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A racionalidade

científica
e a questão da
objetividade
Gravidade, Alfonso Cuarón, 2013
Mudança ou progresso?

 A ciência muda:

 ao longo do tempo, as teorias científicas são modificadas e, frequentemente, são


abandonadas e substituídas por outras.

 até as teorias científicas mais avançadas acabam por ser revistas ou substituídas por outras.

 E será que a ciência progride?

 será possível comparar objetivamente o valor das teorias e ter a certeza de que as novas
teorias são melhores, ou estão mais próximas da verdade, do que as teorias anteriores?

 será possível justificar racionalmente a preferência por uma teoria científica?


Mudança ou progresso?

Será possível ter a certeza de que as teorias atuais sobre os dinossauros se


aproximam mais da verdade do que as teorias anteriores?

Pegada de dinossauro na Serra de Aire Esqueleto de Miragaia longicollum, Museu da


Lourinhã
A perspetiva de Popper sobre o desenvolvimento da ciência

O desenvolvimento da ciência

 O valor das teorias científicas depende do resultado dos testes a que são submetidas.

 Uma teoria das ciências empíricas que não seja submetida a testes empíricos é meramente
especulativa.

 Quanto mais falsificável e informativa é uma teoria, mais rigorosos são os testes a que pode ser
submetida.

 Os testes têm como objetivo encontrar falhas na teoria.

 A ciência progride à medida que os testes mostram falhas nas teorias, obrigando os cientistas a
proporem novas teorias.

 As novas teorias são versões cada vez mais precisas e completas das teorias precedentes e
preservam o que há de correto nas teorias precedentes.
A perspetiva de Popper sobre o desenvolvimento da ciência

O progresso científico

 Se a teoria T é mais informativa do que as teorias precedentes ou resiste a testes a que as teorias
precedentes não resistiram, então a teoria T aproxima-se mais da verdade do que as teorias
precedentes e, enquanto não for eliminada pela crítica, é a melhor teoria disponível.

 O progresso científico dá-se por eliminação crítica do erro.

 Ao criticar as teorias, submetendo-as a testes cada vez mais rigorosos, as piores são eliminadas e
as melhores sobrevivem.

 Apenas os testes severos contribuem para o progresso da ciência.

 À medida que as melhores teorias disponíveis vão sendo modificadas ou substituídas por outras,
cada vez mais informativas ou mais resistentes aos testes, a ciência progride na direção da verdade.
A perspetiva de Popper sobre o desenvolvimento da ciência

 Pelo menos no caso das teorias científicas mais avançadas,


não é possível comparar as teorias com os factos a que se
referem e saber se são verdadeiras num sentido absoluto.

 Porém, para sabermos que uma teoria está mais próxima da


Liber Astronomiae, G. Bonatti, 1550
verdade do que outra, apenas precisamos de comparar essas
teorias entre si.

 Podemos comparar duas teorias concorrentes averiguando o


seu desempenho face à crítica, isto é, examinando o modo
como resistem a testes lógicos e empíricos severos.

 Das duas teorias em competição, será melhor aquela cujo Imagem da superfície do Sol obtida
pela sonda espacial Hinode
desempenho face à crítica for superior.
A perspetiva de Popper sobre o desenvolvimento da ciência

Objetividade e racionalidade

 A objetividade científica consiste em as teorias serem selecionadas em função de critérios


objetivos, e não em função de aspetos subjetivos:

 o desempenho face a testes severos é um critério objetivo usado para justificar a aceitação
de uma teoria, ou a preferência por uma teoria em relação a outra.

 A racionalidade é a disposição para aceitar ou rejeitar uma ideia, uma proposição ou uma teoria
em função dos argumentos de que dispomos ou que nos são apresentados:

 os argumentos usados na discussão racional das teorias científicas são os resultados dos
testes a que as submetemos.

 A objetividade e a racionalidade científicas resultam do método científico.


A perspetiva de Popper sobre o desenvolvimento da ciência

Capa do Sidereus Nuncius, A


Galileu frente ao tribunal da inquisição romana, Cristiano Banti, 1857 Mensagem das Estrelas, folheto
publicado em 1610
A perspetiva de Popper sobre o desenvolvimento da ciência

 Existem obstáculos ao progresso na ciência:


 provenientes do contexto social, como a falta de meios económicos e a intolerância
religiosa.
 provenientes dos próprios cientistas, como a falta de imaginação na proposta de teorias e o
dogmatismo, que leva os cientistas a defenderem as teorias dominantes e a desprezarem as
teorias alternativas.
 A falta de imaginação e o dogmatismo são as maiores ameaças à objetividade e à racionalidade
científicas e, assim, ao progresso científico.

 Mas as ameaças podem ser corrigidas pela adopção do método da discussão crítica.
A perspetiva de Popper sobre o desenvolvimento da ciência

Creio que os principais obstáculos ao progresso na ciência são de natureza social, e que podem
dividir-se em dois grupos: obstáculos económicos e obstáculos ideológicos. […]
O mais amplamente reconhecido de todos os obstáculos ideológicos é a intolerância ideológica
ou religiosa, por norma combinada com o dogmatismo e a falta de imaginação.
[…] As ideias novas devem ser consideradas preciosas e [devem ser] cuidadosamente
acarinhadas – sobretudo, se parecerem um pouco extravagantes. Não proponho que devamos
estar desejosos de aceitar novas ideias apenas pelo facto de serem novas. Mas devemos estar
desejosos de não suprimir uma ideia nova, caso não nos pareça muito boa. […]
A perspetiva de Popper sobre o desenvolvimento da ciência

O dogmatismo intolerante constitui um dos principais obstáculos à ciência. De facto,


deveríamos não só manter vivas as teorias alternativas através da discussão, mas também
procurar constantemente novas alternativas. E deveríamos preocupar-nos sempre que não
existam novas alternativas – sempre que uma teoria dominante se torne demasiado exclusiva. O
perigo para o progresso na ciência aumenta muito se a teoria em questão obtiver algo parecido a
um monopólio. […]
Mas existe um perigo ainda maior: uma teoria, mesmo uma teoria científica, pode tornar-se
uma moda intelectual, um substituto da religião, uma ideologia enquistada. […]
K. Popper, “A racionalidade das revoluções científicas”, in O Mito do Contexto, Lisboa, Edições 70, 1989, pp. 46-50.
A perspetiva de Kuhn sobre o desenvolvimento da ciência

 A perspetiva segundo a qual a investigação científica é o modelo


exemplar da pesquisa objetiva e racional foi defendida por muitos
filósofos e é partilhada pela maior parte dos cientistas.

 Kuhn desafiou esta perspetiva em A Estrutura das Revoluções


Científicas.

 Ao estudar a história de várias teorias científicas, Kuhn identificou


um padrão do desenvolvimento da ciência.

 Um aspeto central desse padrão é a alternância, no interior da


comunidade científica, entre períodos de consenso e períodos de
insatisfação e desacordo em relação às teorias disponíveis.
A perspetiva de Kuhn sobre o desenvolvimento da ciência

Ciência normal e ciência extraordinária

 O período de atividade desorganizada que antecede o início de uma disciplina científica


denomina-se pré-ciência.

 Uma disciplina científica tem início com o reconhecimento do valor dos resultados alcançados
por um investigador – esses resultados estabelecem o paradigma científico.

 Um paradigma científico:
 define os problemas que a investigação deve resolver;
 compreende as leis e as teorias fundamentais alcançadas pela investigação fundadora do
paradigma;
 inclui regras e princípios relativos ao desenvolvimento da investigação e à estrutura da
natureza.
A perspetiva de Kuhn sobre o desenvolvimento da ciência

Ciência normal e ciência extraordinária

 Um paradigma científico estipula a forma de conduzir a investigação e de fazer ciência.

 Uma vez estabelecido o paradigma, os investigadores dedicam-se à sua aplicação, iniciando-se,


assim, um período de ciência normal:
 os cientistas procuram resolver problemas de acordo com o paradigma e obter resultados
consistentes com ele.
 ao fazerem-no, expandem o seu âmbito de aplicação e aumentam a confiança nas teorias, nas
regras e nos pressupostos que o compõem.
 O paradigma é um modelo para a resolução dos enigmas da natureza, e a atividade típica da
ciência normal é a resolução dos enigmas da natureza de acordo com o paradigma.
A perspetiva de Kuhn sobre o desenvolvimento da ciência

Ciência normal e ciência extraordinária

 Por vezes, os cientistas não conseguem resolver um problema ou obtêm resultados inconsistentes
com o paradigma:
 as anomalias na aplicação do paradigma são consideradas falhas da investigação e não falhas
do paradigma.
 se as anomalias acabam por ser resolvidas ou compreendidas à luz do paradigma, o paradigma
é reforçado.
 Mas algumas anomalias permanecem sem uma solução satisfatória.

 À medida que estas anomalias persistentes se acumulam, os cientistas começam a perder a


confiança no paradigma.

 A insatisfação crescente no interior da comunidade científica dá lugar à crise.


A perspetiva de Kuhn sobre o desenvolvimento da ciência

Ciência normal e ciência extraordinária

 Uma vez instalada a crise, cessam as condições da ciência normal, iniciando-se um período de
ciência extraordinária, ou revolucionária, em que os cientistas:
 procuram soluções arrojadas e alternativas, fora do modelo de investigação definido pelo
paradigma vigente.
 discutem as teorias, as regras e os pressupostos que compõem o paradigma.
 Por fim, entre as soluções propostas, uma mostra-se promissora e capaz de constituir uma
alternativa ao paradigma em crise:
 o paradigma emergente representa uma mudança da direção da ciência, constituindo uma
nova forma de fazer ciência e de ver o mundo, mas não corrige nem melhora o paradigma
em crise.
A perspetiva de Kuhn sobre o desenvolvimento da ciência

Ciência normal e ciência extraordinária

 As teorias, as regras e os pressupostos que compõem o paradigma emergente são incompatíveis


com os que compõem o paradigma em crise:
 um cientista não pode aceitar ao mesmo tempo os dois paradigmas, nem componentes dos
dois paradigmas.
 para aderir ao novo paradigma, um cientista tem de abandonar o paradigma anterior.
 A comunidade científica divide-se – alguns cientistas mantêm a confiança no paradigma ainda
vigente, mas outros transferem a sua confiança para o paradigma emergente.

 Quando a maior parte dos cientistas se converte ao novo paradigma, cessa o período de ciência
extraordinária e completa-se a revolução científica, iniciando-se um novo período de ciência
normal.
A perspetiva de Kuhn sobre o desenvolvimento da ciência

Ciência normal e ciência extraordinária

 A revolução científica consiste na substituição de um


paradigma por outro e na fundação de uma nova tradição
científica:

 Kuhn encontrou muitas semelhanças entre as


revoluções científicas e as revoluções políticas.
 Em A Estrutura das Revoluções Científicas, Kuhn
escreveu: “Tal como sucede nas revoluções políticas,
também não existe na escolha entre paradigmas
Deposição do retrato de Salazar,
[científicos] outro critério mais elevado do que a Portugal, 1974

aprovação da comunidade relevante.”.


A perspetiva de Kuhn sobre o desenvolvimento da ciência

Ciência normal e ciência extraordinária


A perspetiva de Kuhn sobre o desenvolvimento da ciência

A incomensurabilidade dos paradigmas

 Os paradigmas em competição durante o período de ciência extraordinária, além de


incompatíveis, são incomensuráveis.

 Os paradigmas em competição são incomensuráveis porque não é possível compará-los


objetivamente, segundo critérios independentes.

 Se não é possível compará-los objetivamente, também não é possível afirmar que um é melhor do
que o outro, ou que o novo paradigma representa um avanço em relação ao anterior.

 A tese da incomensurabilidade dos paradigmas põe em causa:


 a racionalidade da escolha entre teorias científicas.
 a ideia de progresso na ciência.
A perspetiva de Kuhn sobre o desenvolvimento da ciência

A escolha entre teorias

 De entre os critérios invocados pelos cientistas para preferirem uma teoria a outra teoria, Kuhn
destaca:
 a capacidade para resolver problemas das teorias e
 a exatidão, a consistência, o alcance, a simplicidade e a fecundidade das teorias.
 Embora todos os cientistas valorizem estas características, nenhuma funciona como critério
independente e objetivo capaz de justificar de forma completamente racional, ou puramente
científica, a escolha entre paradigmas em competição ou entre teorias associadas a esses
paradigmas.

 Isso acontece porque a aplicação dos critérios depende do paradigma e de fatores subjetivos.
A perspetiva de Kuhn sobre o desenvolvimento da ciência

A escolha entre teorias

 A interpretação que é feita dos critérios de escolha e o peso que lhes é atribuído – especialmente,
quando os critérios entram em conflito uns com os outros – dependem dos paradigmas que regulam
a investigação.

 A interpretação e o peso que os cientistas dão aos critérios de escolha, quando têm de aplicá-los,
também dependem dos fatores históricos, pessoais e sociais – fatores subjetivos – que enquadram a
sua investigação:
 o contexto histórico e cultural determina a direção da investigação.
 as convicções religiosas e políticas do próprio cientista, as suas preocupações sociais, as suas
preferências estéticas e até o seu temperamento interferem na escolha entre teorias.
A perspetiva de Kuhn sobre o desenvolvimento da ciência

A escolha entre teorias

 além dos fatores relacionados com o contexto histórico e cultural e com a personalidade do
cientista, também os fatores sociais inerentes ao funcionamento das comunidades científicas
determinam a direção da investigação e a escolha entre teorias:
 dentro da sua comunidade científica, um investigador pode aceitar ou abandonar uma
teoria como consequência da pressão dos pares.
 a escolha de um investigador também pode ser determinada pelas decisões dos
membros mais influentes da comunidade científica, ou seja, dos cientistas com mais
prestígio intelectual, com mais notoriedade pública ou com poder efetivo na
comunidade.
A perspetiva de Kuhn sobre o desenvolvimento da ciência

A escolha entre teorias

 O enquadramento histórico e cultural, as


decisões pessoais dos cientistas e a organização
social das comunidades científicas desempenham
um papel fundamental na adesão a um paradigma A crença de Darwin num Deus
benevolente foi posta em
e na escolha entre teorias: causa pela morte da sua filha
Annie, em 1851.
 esse papel não é reconhecido pela maior
parte dos cientistas nem dos filósofos da
ciência.
 segundo Kuhn, isso deve-se ao facto de não
terem estudado com suficiente atenção a
história da ciência.
A Origem das Espécies, Darwin,
1859
A perspetiva de Kuhn sobre o desenvolvimento da ciência

A escolha entre teorias

A partir do estudo da história da ciência, Kuhn conclui que:

 os critérios de escolha são objetivos e partilhados pelos cientistas.

 porém, ao serem aplicados, os critérios mostram-se imprecisos e, frequentemente, entram em


conflito uns com os outros.

 por conseguinte, os critérios de escolha não asseguram a objetividade nem a racionalidade da


escolha entre teorias.

 a aplicação dos critérios – nomeadamente, a interpretação e o peso que lhes é dado em cada caso
concreto – depende do paradigma e de fatores subjetivos dos cientistas.

 consequentemente, a objetividade e a racionalidade da escolha entre teorias são muito limitadas.


Objeções à perspetiva de Kuhn sobre o desenvolvimento da ciência

Kuhn defende que as mudanças de paradigma não podem ser interpretadas como progresso
científico objetivo.

 a única explicação plausível para o sucesso das numerosas aplicações tecnológicas bem-sucedidas
decorrentes das teorias científicas mais recentes é a maior correção das teorias científicas em que se
baseiam, relativamente às teorias precedentes, menos poderosas do ponto de vista do sucesso
tecnológico.

Kuhn defende que a avaliação das teorias acaba por depender do paradigma dominante e de
fatores subjetivos dos cientistas.

 embora alguns critérios possam ser ambíguos, outros critérios – como é o caso da exatidão
empírica – são claros e podem ser descritos com precisão.
Objeções à perspetiva de Kuhn sobre o desenvolvimento da ciência

 quando, ao aplicarem os critérios, os cientistas discordam uns dos outros, podem justificar as suas
perspetivas, ou seja, podem explicar – e discutir – o modo como interpretam um critério ou a
importância que lhe atribuem em cada caso concreto:
 quando os cientistas explicam e discutem o modo como interpretam um critério ou a
importância que lhe atribuem, a discussão objetiva e racional das teorias científicas continua
a um nível mais profundo.
 por vezes, a avaliação das teorias é determinada por fatores subjetivos e irracionais, mas a
intervenção destes fatores pode ser corrigida ao longo do tempo, através da crítica:
 o método científico consiste num conjunto de procedimentos que visam a eliminação do erro
através de testes.
Objeções à perspetiva de Kuhn sobre o desenvolvimento da ciência

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