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Modelos de intervenção:

serviço social crítico ou radical


Dr. Guilherme Gomes Ferreira
Residente em Saúde da Família e Comunidade pelo Grupo Hospitalar Conceição.
Ativista na ONG Somos - Comunicação, Saúde e Sexualidade.
Membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
Modelos de intervenção

- sistémico ou ecológico - gestão de casos


- crítico ou radical - intervenção em crise
- comportamental - centrado na tarefa
- humanista-existencial (Viscarret, 2014)
O que significa um modelo de
intervenção e qual a sua relação
com as teorias do serviço social?
Pressupostos sobre os modelos de intervenção

Um tipo de intervenção (crítica, fenomenológica, complexa, etc.) responde a uma


elaboração teórica que realizamos sobre a realidade.

Qualquer tomada de decisão está conectada a uma posição teórica. Por isso é que a
gente precisa pensar teoricamente nossa prática, isto é, a prática e a teoria não estão
dissociadas. O fato de não refletirmos sobre a nossa prática permite com que nos
tornemos alienados daquilo que nós mesmos produzimos e permite que tomemos
atitudes ecléticas (que se contradizem e que não possuem coerência; por exemplo:
pró-vida contra o aborto e defesa da pena de morte).
Modelo crítico ou radical

No Reino Unido, Canadá, Austrália e Estados Unidos esse modelo de intervenção


surge a partir dos anos 1970 (Healy, 2000).

Teve especial relevância no serviço social da América do Sul e, particularmente, no


Brasil, pois inspirou o movimento de reconceituação (reconceptualização). O seus
antecedentes intelectuais incluem um amplo conjunto de teorias sociais, que vão
desde teorias feministas (Saffioti), marxismo (Marx; Engels; Gramsci; Althusser),
desenvolvimento comunitário (Souza), teorias críticas da educação (Freire),
sociologia crítica (Bourdieu), teologia da libertação (Martins), etc.
O marxismo influenciou uma série de outros
filósofos e sociólogos no decorrer do tempo.
São exemplos Hannah Arendt, filósofa política,
Angela Davis, feminista negra e socialista, Rosa
Luxemburgo, filósofa e economista, etc, assim
como o surgimento de conjuntos teóricos, entre
eles a teoria crítica e a Escola de Frankfurt.

A teoria crítica procurou


pensar a gênese social da
Karl Marx elaborou uma teoria sociedade e os seres
política da economia, que foi humanos como produtores
difundida depois como de todas as suas formas
marxismo. Alguns dos seus históricas de vida. Já a
seguidores constituem o que Escola de Frankfurt
entendemos hoje como os consistiu de teóricos
teóricos clássicos do marxismo, marxistas críticos à
entre eles Antonio Gramsci ortodoxia desse método.
(que produziu teorias culturais) Entre eles podemos citar
e Louis Althusser (que focou Max Horkheimer, Theodor
mais na dimensão estrutural, Adorno, Jürgen Habermas e
ideológica económica). Walter Benjamin.
Modelo crítico ou radical

Crítico, portanto, está muito relacionado à crítica das teorias tradicionais e


cartesianas com forte matriz social e de análise económica da realidade. Está
presente na criminologia crítica, na sociologia crítica, etc.

Radical tem a ver com ir à raiz, ou seja, buscar a origem, a ontologia. A análise da
sociedade passa por entender a história, e portanto, o início que explica o que
vivemos no contemporâneo. Radical, portanto, não é ser extremado, mas buscar a
origem ou a raíz da sociedade. O serviço social que segue esse modelo também é
chamado em alguns momentos de estrutural ou marxista.
Modelo crítico ou radical

A partir dessas bases, o serviço social crítico argumenta que a raiz da desigualdade
está na sociedade. Por essa razão, a intervenção não deve ser individual, mas
conjuntural. Ela deve apontar para as estruturas sociais de determinação da vida.

Essa perspetiva entende que a função do serviço social não é a de adaptar a pessoa
a um meio. Está comprometido com uma forma de intervenção libertadora (também
chamada de empoderadora ou emancipadora); trabalha para contribuir com a
consciência dos sujeitos, mas também atua para mudar as estruturas de dominação
através da participação comunitária, do advocacy, da educação popular, etc.
Modelo crítico ou radical

O serviço social crítico traz à cena da intervenção social a importância da estrutura


social e da dominação/opressão na análise da questão social (diferente de entendê-
la como um problema social individual).

Algumas categorias teóricas são importantes para este modelo: classe social,
ideologia, trabalho, história, etc. Posteriormente, os movimentos raciais e feministas
trazem para o debate outras categorias de opressão importantes e que passam a ser
utilizadas pelo serviço social crítico (género, raça/etnia, sexualidade, etc.)
Teoria marxista: uma introdução
A dialética-crítica é herdeira da
dialética hegeliana, mas contém uma
crítica a esta.
Método de análise
da realidade: Enquanto Hegel acreditava que o
movimento tese-antítese-síntese se
dialética-crítica originava do pensamento em direção
à realidade, a dialética-crítica entende
que a realidade social origina o
pensamento, que volta para a
realidade como “concreto pensado”.
“O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de guia para os
meus estudos, pode ser formulado, resumidamente, assim: na produção social da
própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias,
independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau
determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade
dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base
real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual
correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da
vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a
consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que
determina sua consciência” (Marx, 1859 [2008], p. 47).
Tese Antítese

Ideia inicial que Nova ideia, resposta à


surge a partir da vida ideia original. É o
concreta dos pensamento elaborado a
sujeitos, da sua partir da vida concreta,
materialidade. DIALÉTICA-CRÍTICA da materialidade.

Enquanto para
Hegel o pensamento
surge do abstrato, Síntese
para Marx ele surge
a partir da vida Resultado da contradição entre tese e
material que antítese, uma conclusão. O pensamento
condiciona a que foi elaborado a partir da vida
consciência dos objetiva volta agora para a realidade
sujeitos. para poder transformá-la.
O materialismo-histórico é a teoria de
Marx: materialista porque olha para a
Teoria que vida objetiva, concreta, determinada
fundamenta o por condições materiais; e histórica
porque busca a origem, a raiz.
método: materialista
Possui algumas categorias centrais: a
e histórica historicidade, a totalidade e a
contradição.
“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade;
não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas
oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem
empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu,
precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente
em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de
guerra e as roupagens [...]. Sobre as diferentes formas da propriedade, sobre as condições
sociais da existência se eleva toda uma superestrutura de sentimentos, ilusões, modos de
pensar e visões da vida distintos e configurados de modo peculiar. Toda a classe os cria e
molda a partir do seu fundamento material e a partir das relações sociais
correspondentes.” (Marx, 1852 [2011], p. 25-60).
A relação entre indivíduo e sociedade
é determinada pela sua condição de
classe. Há duas classes antagônicas em “As premissas de que partimos não
luta: dos trabalhadores (ou constituem bases arbitrárias, nem
proletariado, que constitui a classe dogmas; são antes bases reais de que
dominada) e dos detentores dos meios só é possível abstrair no âmbito da
de produção (ou burguesia , que imaginação. As nossas premissas são
constitui a classe dominante). os indivíduos reais, a sua ação e as
suas condições materiais de
A classe dominante produz uma existência, quer se trate daquelas que
ideologia dominante (superestrutura – encontrou já elaboradas quando do
justiça, política e cultura) que é falsa, seu aparecimento quer das que ele
reproduzida como interesse de todo o próprio criou. Estas bases são portanto
conjunto da sociedade. A classe verificáveis por vias puramente
dominada (estrutura - economia) empíricas” (Marx & Engels, 1845
produz e reproduz a economia mas [2001], p. 10).
não detém depois os resultados do
que foi socialmente produzido.
“A primeira condição de toda a história
humana é evidentemente a existência Ao produzirem os seus meios de
de seres humanos vivos. O primeiro existência, os homens produzem
estado real que encontramos é então indiretamente a sua própria vida
constituído pela complexidade material. A forma como os homens
corporal desses indivíduos e as produzem esses meios depende em
relações a que ela obriga com o resto primeiro lugar da natureza, isto é, dos
da natureza. [...] Toda a historiografia meios de existência já elaborados e
deve necessariamente partir dessas que lhes é necessário reproduzir [...]. A
bases naturais e da sua modificação forma como os indivíduos manifestam
provocada pelos homens no decurso a sua vida reflete exatamente aquilo
da história. Pode-se referir a que são. O que eles são coincide
consciência, a religião e tudo o que se portanto com a sua produção, isto é,
quiser como distinção entre os tanto com aquilo que produzem como
homens e os animais; porém, esta com a forma como produzem. Aquilo
distinção só começa a existir quando que os indivíduos são depende
os homens iniciam a produção dos portanto das condições materiais da
seus meios de vida, passo em frente sua produção” (Marx, 1845 [2001], p.
que é consequência da sua 10-11).
organização corporal.
Marx procura desvendar as relações de
produção e de reprodução entre os
sujeitos, mediadas pelo modo de
produção econômica que é o
capitalismo.
Essa análise está contida nas tuas
teorias políticas sobre a economia: a
teoria do valor e a teoria da mais-valia.
De acordo com ele, toda mercadoria
tem valor: i) de uso (sua utilidade,
correspondente ao trabalho concreto -
a forma que a força de trabalho
assume); e ii) de troca (quantidade de
trabalho abstrato, socialmente
necessário para a sua produção).
Teoria da mais-valia
O valor criado no processo produtivo (propriedade do capitalista) é superior ao valor da força de
trabalho (como mercadoria). Há portanto, força de trabalho que ao final não é paga na forma salário.
Esse excedente é mais-valia e se transforma em lucro quando sai do nível da produção e vai para o nível
da comercialização.

MV (mais-valia) = VP (valor da produção, capital fixo) – s (salário, capital variável)

Ciclo do capital monetário:


M (moeda, capital inicial) – Fp (fatores produtivos: força de trabalho e meios de produção)

M – Fp ... P ... Fp’ – M’


quantidade de trabalho

produzida em um
tempo de trabalho
específico (x) +
forças produtivas
específicas (y) Na esfera da produção, a mais-valia, é A mais-valia pode ser relativa se ela
extraída através da exploração da força de aumenta de maneira indireta, quando o
uma parte do trabalho. O capitalista obtém a mais-valia desenvolvimento das forças produtivas
trabalho é paga através da venda da mercadoria na esfera (por exemplo, aquisição de mais máquinas)
através do salário (z) da circulação, lucrando sobre ela e torna mais barata a mercadoria para o
mas outra parte se reinvestindo outra parte no processo de sustento do trabalho assalariado, tornando
torna trabalho produção. A mais-valia pode ser absoluta assim maior a parte do capital na massa do
excedente e não é quando ela aumenta de maneira direta valor.
paga (tornando-se a através do prolongamento da jornada de
mais-valia). trabalho (x’) ou da redução do salário (-z).
O serviço social crítico a partir do
marxismo
Modelo crítico ou radical

O serviço social crítico aponta a questão de classe como principal dominação e sobre
a qual devemos atuar. Ao realizar essa análise a partir da estrutura económica, essa
perspetiva permite que os assistentes sociais críticos/radicais considerem que a
emancipação humana só pode ser alcançada a partir da superação do capitalismo.

Nesse sentido, a superação das desigualdades de género, raça, sexualidade e outros


marcadores de opressão só trariam a emancipação política. Isso não significa que o
serviço social não deva atuar também sobre essas questões já que a liberdade
constitui o valor ético central.
Modelo crítico ou radical

As teorias sociais críticas procuram explicar a realidade social a partir da sua


estrutura, que determina as relações sociais entre os sujeitos. Assim, ao explicar e
analisar eventos e experiências individuais, eles são observados como efeitos da
estrutura social existente.

Segundo essa perspetiva, a transformação social requer a tomada de consciência da


classe trabalhadora sobre as condições que estão está submetida. O objetivo é que
os sujeitos participem ativamente do processo de mudança através das suas
organizações como coletivo.
Modelo crítico ou radical

O serviço social crítico constrói uma prática que representa um compromisso com os
setores populares dominados. Toma partido, assim, da classe trabalhadora.

A relação entre assistente social e usuário é caracterizada por ser uma relação
baseada em princípios democráticos de igualdade, equidade, confiança e respeito.
Estudo de caso prático:

João tem 28 anos, está desempregado, é homossexual, originário de uma família


devotamente católica, está dependente dos pais. Os pais não aceitam a sua
homossexualidade, encaram como um distúrbio de personalidade e como pecado.
No passado, já tentaram levar João a atendimentos psiquiátricos com objetivo de
reverter sua sexualidade. Habita com os pais em um bairro social maioritariamente
de classe operária. O pai trabalha em uma fábrica e a mãe é doméstica e faz
pequenos trabalhos de costura para ajudar no rendimento familiar. João decide
procurar auxílio junto das respostas sociais da sua área de residência (segurança
social).

Imagine-se o assistente social do caso referido e planeie a intervenção com base no


modelo estudado.
Referências
Althusser, Louis (1970). Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. 3 ed. Lisboa: Editorial Presença / Martins Fontes, 1980.
Bourdieu, Pierre (1998). La domination masculine. França: Éditions du Seuil.

Corrigan, Philip & Leonard, Peter (1978). Social work practice under capitalism. A marxist approach. Reino Unido: Palgrave Macmillan.
Freire, Paulo (1968). Pedagogia do oprimido. Alemanha: Verlag Herder.
Gramsci, Antonio (1960). Escritos políticos. Vol. 1. Lisboa: Seara Nova, 1976.

Healy, Karen (2000). Trabajo social: perspectivas contemporáneas. Madrid: Ed. Morata e Fundación Paideia.

Healy, Karen (2001). Reinventing critical social work: challenges from practice, context and postmodernism. Critical Social Work, v. 2, n.
1.
Leonard, Peter (1984). Personality and ideology: towards a materialist understanding of the individual (critical texts in social work and the
welfare state). Canadá: Palgrave.
Referências
Martins, José de Souza (1989). Caminhada no chão da noite: emancipação política e libertação nos movimentos sociais no campo. São
Paulo: Hucitec.

Marx, Karl (1852). O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.
Marx, Karl (1859). Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

Marx, Karl & Engels, Friedrich (1845). A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2001.
Payne, Malcolm (1995). Teorías contemporáneas del trabajo social. Una introducción crítica. Barcelona: Paidós.
Saffioti, Heleieth Iara Bongiovani (1976). A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis: Editora Vozes.

Souza, Maria Luiza (1987). Desenvolvimento de comunidade e participação. São Paulo: Cortez Editora.
Viscarret, Juan Jésus (2014). Modelos y métodos de intervención en trabajo social. Madrid: Alianza Editorial.

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