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Professora

Rildenice Santos
PARA GOSTAR DE LER VOL 08
O homem que queria eliminar a memória

Entrou no hospital, mandou chamar o melhor neurocirurgião.


Disse que era caso de vida e morte. Não se sabe como, o melhor
neurocirurgião foi atendê-lo. Médicos são imprevisíveis. Precisa-
se muito deles e eles falham; subitamente, estão ali, salvando
nossas vidas, ele pensou, sem se incomodar com o lugar-comum.
Estava na sala do doutor. Uma sala branca, anônima. Por que são
sempre assim, derrotando agente logo de entrada? 
O médico: 
- Sim? 
- Quero me operar. Quero que o senhor tire um pedaço do meu
cérebro. 
- Um pedaço do cérebro? Por que vou tirar um pedaço do seu
cérebro? 
- Porque eu quero. 
- Sim, mas precisa me explicar. Justificar. 
- Não basta, eu querer? 
- Claro que não. 
- Não sou dono do meu corpo?
- Em termos
- Como em termos ?
- Bem , o senhor é e não é. Há certas coisas que o senhor está
impedido de fazer. Ou melhor: eu é que estou impedido de fazer
no senhor.
- Quem impede?
- A ética, a lei.
- A sua ética manda também  no meu corpo??? Se pago, se
quero, é porque quero fazer do meu corpo aquilo que desejo. E
se acabou.
- Olha a gente vai ficar o dia inteiro nesta discussão boba. E não
tenho tempo a perder. Por que o senhor quer cortar um pedaço
do cérebro?
- Quero eliminar a memória.
- Para quê?
(...)
- Seria muito melhor para os homens. O dia- a –dia. O dia de hoje
para frente. Entende o que eu quero dizer? Nenhuma lembrança
ruim ou boa , nenhuma neurose. O passado fechado, encerrado.
Definitivamente bloqueado. Não seria engraçado? Não se
lembrar sequer do que se tomou no café da manhã? E pra que eu
quero me lembrar do que tomei no café da manhã?
- Se todo mundo fizesse isso, acabaria a história.
- E quem quer saber de história?
- Imaginou o mundo?
- Feliz, tranqüilo. Só de futuro. O dia em vez de se transformar
em passado de hoje, mudando-se em futuro. Cada instante
projetado para frente.
- Não seria bem assim. Teríamos apenas uma soma de instantes
perdidos. Nada mais. Cada segundo eliminado. A sua existência
comprovada através do que?
- Quem quer comprovar a existência?
- A gente precisa.
- Pra que?
- Pra que?
- O médico pensou. Não conseguiu responder. O homem tinha-o
deixado totalmente confuso. Pediu ao homem que voltasse
outro dia. Despediram-se. O médico subiu para os brancos
corredores do hospital, passou pela sala de operações. Chamou
um amigo.
- Estou pensando em tirar um pedaço do meu cérebro. Eliminar
a memória. O que você acha?
- Muito boa idéia. Por que não pensamos nisso antes? Opero
você e de pois você me opera. Também quero. 
PARA GOSTAR DE LER VOL 08
A Velha Contrabandista

Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela
passava pela fronteira montada na lambreta, com um bruto saco
atrás da lambreta. O pessoal da Alfândega - tudo malandro velho -
começou a desconfiar da velhinha.
Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal da
Alfândega mandou ela parar. A velhinha parou e então o fiscal
perguntou assim pra ela:
- Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por aqui todo dia, com
esse saco aí atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco? A
velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe restavam e mais
outros, que ela adquirira no odontólogo, e respondeu:
- É areia!
(...)
Diz que foi aí que o fiscal se chateou:
Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com 40 anos de serviço.
Manjo essa coisa de contrabando pra burro. Ninguém me tira da
cabeça que a senhora é contrabandista.
- Mas no saco só tem areia! - insistiu a velhinha. E já ia tocar a
lambreta, quando o fiscal propôs:
- Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte,
não apreendo, não conto nada a ninguém, mas a senhora vai me
dizer: qual é o contrabando que a senhora está passando por aqui
todos os dias?

- O senhor promete que não "espáia"?


- quis saber a velhinha.

- Juro - respondeu o fiscal.


- É lambreta!
PARA GOSTAR DE LER VOL 08
Piabinha
O rio passava mansamente, espelhando as nuvens bran-
cas do céu. No alto do barranco um menino de calção,
encardido e barrigudinho, o olhava com fixidez. Havia já
algum tempo que estava ali. Então deu as costas e foi
descendo devagar o barranco.
Andou até a margem, onde um outro menino, um
pretinho, pouco maior, estava agachado e curvado com a
mão dentro da água, numa atitude de expectativa. Ficou
em silêncio, olhando-o. O pretinho então se virou:
- Tá difícil ... - falou com uma cara de desânimo.
- Deixa pra outro dia - falou o barrigudinho.
- Pra outro dia? Pra quê?
- Nada - o barrigudinho sacudiu os ombros.
O pretinho ficou olhando-o, os olhos apertados por
causa do sol.
- Ocê tá com medo?
- Eu não.
- Eu tou vendo.
- Tá vendo o quê?
- Que ocê tá com medo.
- Ah - o barrigudinho fez beiço; - eu vou em-
bora, hem.
- Então vai, bobo; mas eu não pego a piaba.
O barrigudinho ficou de cara emburrada, olhando
para o chão.
- Ocê não pegou ainda - falou.
- Porque tá difícil; experimenta ocê.
- Eu não dou conta.
- Então não fala, uai.
Os dois ficaram calados.
O barrigudinho olhou para as águas que, mais lon-
ge, passavam quietas e pesadas; sentiu um arrepio.
(...) Faz do jeito que eu falei - instruiu o pretinho,
afogueado: - a hora que você cair na água bate os braços
e as pernas, não pára não. Ocê vai sair ali nas pedras.
Entendeu? Agora engole a piabinha.
O barrigudinho abriu a boca e fechou os olhos; ficou
esperando com susto. O pretinho apontou com os dois
dedos e jogou a piabinha dentro.
- Engole! Fecha a boca! Engole!
Ele engoliu.
- Agora pula!
O menino ficou parado, sem se mover, olhando fixo
para as águas.
- Pula! Pula!
- Ave Maria cheia de graça...
Ele correu e pulou.
O pretinho viu-o submergir - e não o viu mais. Por
um instante esperou que ele aparecesse no mesmo
lugar. Depois lembrou que ele podia já estar nas pedras
e olhou para lá: não estava. Olhou então para longe
mas nada viu, a não ser uma garça que ia passando
àquela hora sobre o rio, em direção à outra margem; era
uma garça muito branca e voava baixo, batendo as asas
suavemente.
PARA GOSTAR DE LER VOL 08
Pega Ladrão, Papai Noel!

Ele não era bem um Papai Noel, era mais um Santa Claus,
pois trabalhava numa cadeia de lojas multinacional, a
Emperor Presentes e Utilidades Domésticas, aquela grande,
da avenida. Consta, inclusive, que fez um curso de seis
semanas no próprio States para testar e aperfeiçoar sua
tendência vocacional, obtendo boa nota, apesar de cantar o
"Jingle Bell" com imperdoável sotaque latino-americano.
Mas seu visual, mesmo sem uniforme, impressionou
favoravelmente a banca examinadora: era gordo, como
convém a um Papai Noel; tinha olhos da cor do céu e a
capacidade de sorrir durante horas inteiras sem nenhum
motivo aparente. Ora, um Papai Noel é isso: uma mancha
vermelha que sabe rir e às vezes fala.
(...) Ele passeava pelo atraente departamento de brinquedos
eletrônicos, juntamente com seu sorriso, e acabara de
passar a mão nos cabelos louros de um garotinho, quando
viu. Viu o quê? Um homem, e mais que ele, sua mão
surrupiando um trenzinho de pilha, imediatamente metido
numa bolsa promocinal da Emperor. Interrompendo em meio
seu sorriso, Papai Noel deu um passo firme e fez voz de
vigia:
- Por favor, me deixe ver essa bolsa!
Nem todo susto é paralisante: o homem sem largar a
bolsa, saiu em disparada pela seção de brinquedos,
empurrando pessoas, chutando coisas, derrubando e
pisando em brinquedos. Atrás desse furacão, seguia
outro furacão, este encarnado, o Papai Noel aludido,
que repetia em cores mais vivas os desastres
provocados pelo primeiro.
(...) Na avenida a perseguição teve novos aspectos e
emoções. A pista era melhor para corridas apesar de ainda
maior o número de pessoas e obstáculos. O ladrão logo à
saída da loja chocou-se com uma mulher que carregava mil
pacotes, pacotinhos e pacotões. Foram todos para o chão.
Um propagandista de longas pernas de pau fez uma
aterrissagem forçada, que o aeroporto de Congonhas teria
desaconselhado devido ao mal tempo. O Papai Noel também
empurrava, esbarrava e derrubava, aduzindo ao seu esforço
o clássico "pega ladrão!", um refrão tão comum na cidade
que não entendo como ainda não musicaram. Na primeira
esquina, quase... Um carro bloqueou a fuga do homem, que
ficou hesitante pois seu colorido perseguidor se aproximava
em alta velocidade. (...) Consta que Papai Noel perseguiu
o ladrão inclusive pelo Minhocão, de ponta a ponta,
onde é proibida a circulação de pedestres. Também
sem resultado.
A história, que nem história é, podia acabar aqui, mas
prefiro que acabe lá.
Lá, onde?
Naquele quarto de subúrbio.
Aquela noite, o ladrão, à meia-noite em ponto, deu para o
filho o belo presente das lojas Emperor, o trenzinho de pilha
que tinha luzes diversas e ainda apitava, excessivamente
incrementado para qualquer garoto pobre.
O menino, que sabia dos apuros do pai, não recebeu
alegremente a maravilha eletrônica.
- Papai, o senhor não devia ter comprado.
- Mas não comprei.
- Ahn?
- Ganhei.
- De quem?
- De Papai Noel, até. Bom cara. Nem precisei pedir. Ele
correu atrás de mim e me deu o presente. Disse que a
pilha dura três meses. Legal, não?
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O Homem que Espalhou o Deserto
Quando menino, costumava apanhar a tesoura da mãe e
ia para o quintal, cortando folhas das árvores. Havia
mangueiras, abacateiros, ameixeiras, pessegueiros e até
mesmo jabuticabeiras. Um quintal enorme, que parecia
uma chácara e onde o menino passava o dia cortando
folhas. A mãe gostava, assim ele não ia para a rua, não
andava em más companhias. E sempre que o menino
apanhava o seu caminhão de madeira (naquele tempo,
ainda não havia os caminhões de plástico, felizmente) e
cruzava o portão, a mãe corria com a tesoura: tome,
filhinho, venha brincar com as suas folhas. Ele voltava e
cortava. As árvores levavam vantagem, porque eram
imensas e o menino pequeno. O seu trabalho rendia
pouco, apesar do dia-a-dia, constante, de manhã à noite.
Mas o menino cresceu, ganhou tesouras maiores. Parecia
determinado, à medida que o tempo passava, a acabar com
as folhas todas. Dominado por uma estranha impulsão, ele
não queria ia à escola, não queria ir ao cinema, não tinha
namoradas ou amigos. Apenas tesouras, das mais diversas
qualidades e tipos. Dormia com elas no quarto. À noite, com
uma pedra de amolar, afiava bem os cortes, preparando-as
para as tarefas do dia seguinte. Às vezes, deixava aberta a
janela, para que o luar brilhasse nas tesouras polidas.
A mãe, muito contente, apesar de o filho detestar a escola e
ir mal nas letras. Todavia, era um menino comportado, não
saía de casa, não andava em más companhias, não se
embriagava aos sábados como os outros meninos do
quarteirão, não freqüentava ruas suspeitas onde mulheres
pintadas exageradamente se postavam às janelas
chamando os incautos. Seu único prazer eras as tesouras e
o corte das folhas.
Mas o menino cresceu, ganhou tesouras maiores. Parecia
determinado, à medida que o tempo passava, a acabar com
as folhas todas. Dominado por uma estranha impulsão, ele
não queria ia à escola, não queria ir ao cinema, não tinha
namoradas ou amigos. Apenas tesouras, das mais diversas
qualidades e tipos. Dormia com elas no quarto. À noite, com
uma pedra de amolar, afiava bem os cortes, preparando-as
para as tarefas do dia seguinte. Às vezes, deixava aberta a
janela, para que o luar brilhasse nas tesouras polidas.
A mãe, muito contente, apesar de o filho detestar a escola e
ir mal nas letras. Todavia, era um menino comportado, não
saía de casa, não andava em más companhias, não se
embriagava aos sábados como os outros meninos do
quarteirão, não freqüentava ruas suspeitas onde mulheres
pintadas exageradamente se postavam às janelas
chamando os incautos. Seu único prazer eras as tesouras e
o corte das folhas.
(...) E o homem do machado descobriu que podia ganhar a
vida com o seu instrumento. Onde quer que precisassem
derrubar árvores, ele era chamado. Não parava. Contratou uma
secretária para organizar uma agenda. Depois, auxiliares.
Montou uma companhia, construiu edifícios para guardar
machados, abrigar seus operários devastadores. Importou
tratores e máquinas especializadas do estrangeiro. Mandou
assistentes fazerem cursos nos Estados Unidos e Europa.
Eles voltaram peritos de primeira linha. E trabalhavam,
derrubavam. Foram do sul ao norte, não deixando nada em pé.
Onde quer que houvesse uma folha verde, lá estava uma
tesoura, um machado, um aparelho eletrônico para arrasar.
E enquanto ele ficava milionário, o país se transformava num
deserto, terra calcinada. E então, o governo, para remediar,
mandou buscar em Israel técnicos especializados em tornar
férteis as terras do deserto. E os homens mandaram plantar
árvores. E enquanto as árvores eram plantadas, o homem do
machado ensinava ao filho a sua profissão.
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Diálogo da Relativa Grandeza
Sentado no monte de lenha, as pernas abertas, os cotovelos
nos joelhos, Doril examinava um louva-deus pousado nas
costas da mão. Ele queria que o bichinho voasse, ou pulasse,
mas o bichinho estava muito à vontade, vai ver que dormindo -
ou pensando? Doril tocava-o com a unha do dedo menor e ele
nem nada, não dava confiança, parece que nem sentia, se Doril
não visse o leve pulsar de fole do pescoço - e só olhando bem
é que se via - era capaz de dizer que o pobrezinho estava
morto, ou então que era um grilo de brinquedo, desses que as
moças pregam no vestido para enfeitar. (...)
- Gi! Matando louva-deus! Olhe o castigo!
- Eu estou matando, estou?
- Está judiando. Ele morte.
- Eu estou judiando?
- Amolar um bicho tão pequenininho é o mesmo que judiar.
-
(...) Qual seria o tamanho certo dela? Um palmo de cabeça, um
palmo de peito, palmo e meio de barriga, palmo e meio até o
joelho, palmo e meio até o pé... uns seis palmos e meio. Palmo
de quem? Gafanhoto pode ter seis palmos e meio também -
mas de gafanhoto. Formiga pode ter seis palmos e meio - de
formiga. E os bichinhos que existem mas a gente não vê, de
tão pequenos? Se tem bichos que a gente não vê, não pode ter
bichos que esses que a gente não vê não vêem? Onde é que o
tamanho dos bichos começa, e onde acaba? Qual é o maior, e
qual o menor? Bonito se nós também somos invisíveis para
outros bichos muito grandes, tão grandes que os nossos olhos
não abarcam? E se a Terra é um bicho
grandegrandegrandegrande e nós somos pulgas dele? Mas
não pode! Como é que vamos ser invisíveis, se qualquer
pessoa tem mais de um metro de tamanho?
Doril olhou o muro, os cafezeiros, as bananeiras, tudo bem
maior do que ele, uma bananeira deve ter mais de dois
metros...
(...) - Ih, Doril! Você está bobo hoje!
- Boba é você, que não sabe de nada.
Ela esperou, ele explicou:
- Você não sabe que nós somos invisíveis, de tão
pequenos?
- Sei disso não. Invisível é micuim, que a gente sente mas
não vê.
- Pois é. Nós somos como micuins.
Diana olhou depressa para ela mesma, depois para Doril.
- Como é que eu vejo eu, vejo você, vejo minha mãe?
- E você pensa que micuim não vê micuim?
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O Homem que sabia Javanês
Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro contava eu as
partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades,
para poder viver. Houve mesmo uma dada ocasião, quando estive
em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de
bacharel, para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao
meu escritório de feiticeiro e adivinho. Contava eu isso. O meu
amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil
Blas vivido, até que, em uma pausa da conversa, ao esgotarmos
os copos, observou a esmo:
— Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo!
— Só assim se pode viver... Isto de uma ocupação única: sair de
casa a certas horas, voltar a outras, aborrece, não achas? Não sei
como me tenho agüentado lá, no consulado!
— Cansa-se; mas não é isso que me admiro. O que me admira é
que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste Brasil imbecil e
burocrático.
— Qual! Aqui mesmo, meu Castro, se podem arranjar belas
páginas de vida. Imagina tu que eu já fui professor de javanês?
— Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado?
— Não; antes. E, por sinal, fui nomeado cônsul por isso.
— Conta lá como foi. Bebes mais cerveja?
— Bebo.
Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os copos, e
continuei:
— Eu tinha chegado havia pouco ao Rio e estava literalmente
na miséria. Vivia fugido de casa de pensão em casa de pensão,
sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal
do Comércio o anúncio seguinte:
"Precisa-se de um professor de língua javanesa. Cartas etc".
Ora, disse cá comigo, está ali uma colocação que não terá
muitos concorrentes; se eu capiscasse quatro palavras, ia
apresentar-me.
(...) Dentro de seis meses fui despachado cônsul em
Havana, onde estive seis anos e para onde voltarei, a fim de
aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia,
Melanésia e Polinésia.
— É fantástico — observou Castro, agarrando o copo de
cerveja.
— Olha: se não fosse estar contente, sabes que ia ser?
— Quê?
— Bacteriologista eminente. Vamos?
— Vamos.
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Preocupações de uma Velhinha
Se o ronco de um quadrimotor rompe a calma da manhã, os
olhos da velhinha se erguem assustados do canteiro de
couves para o céu onde o monstro de metal passa com
imponência aterradora cintilando ao sol, e de sua mão pende
por um momento o velho regador de lata, que ela pousa depois
lentamente no chão, quando o som já se perdeu e a distância
apagou o minúsculo ponto no azul; e então ela olha para os
canteiros, seus canteiros que ela rega toda manhã e de tempos
em tempos cava com a enxadinha e semeia, ela olha e tem
medo, seu coração que já morreu em muitas mortes e que
sempre ressuscitou com a valentia de uma planta rebelde
parece agora temer coisas jamais vistas, coisas obscuras e
terríveis que lhe anunciam o ronco do avião sobre sua cabeça,
as notícias que os olhos, num intervalo do crochê, vão
tentando decifrar no jornal largado sobre a mesa, ou os
ouvidos atentos recolhem das conversas.
— Antero, os chineses são gente má? …
— Os chineses? Por quê? São gente feito nós mesmos.
— Hoje li no jornal que eles estão matando muita gente …
— Guerra, Mamãe.
— Guerra pra quê?
— Pra que; guerra, uai, um é inimigo do outro e quer destruir o
outro.(...)
Ontem, Cidinho, o netinho maior, na hora que ela estava
aguando, entrou na horta com um estranho objeto na mão, uma
arma que ele falou o nome mas ela não entendeu e que bastava
puxar o gatilho que ela e a horta desapareceriam na mesma hora;
ele falou que ia puxar; ela pediu pelo amor de Deus que não
fizesse isso; ele puxou e então houve um estalo, mas nada
aconteceu, e ele ficou rindo dela e dizendo "Vovó boba, Vovó
boba", e depois saiu de afasta continuando a rir dela e a dar tiros.
Ela ficou parada entre dois canteiros, o coração ainda batendo
forte do susto, as pernas trêmulas, e ao olhar para as suas
couves, verdinhas e viçosas, começou a chorar — era boba
mesmo, era boba.
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A Estranha Passageira
- O senhor sabe? É a primeira vez que eu viajo de avião. Estou
com zero hora de vôo - e riu nervosinha, coitada.
Depois me pediu que eu me sentasse ao seu lado, pois me achava
muito calmo e isto iria fazer-lhe bem. Lá se ia a oportunidade de
ler o romance policial que eu comprara no aeroporto, para me
distrair na viagem. Suspirei e fiz o bacano respondendo que
estava às suas ordens. Madama entrou no avião sobraçando um
monte de embrulhos, que segurava desajeitadamente. Gorda
como era, custou a se encaixar na poltrona e arrumar todos
aqueles pacotes. Depois não sabia como amarrar o cinto e eu tive
que realizar essa operação em sua farta cintura. Afinal estava ali
pronta para viajar. Os outros passageiros estavam já se divertindo
às minhas custas, a zombar do meu embaraço ante as perguntas
que aquela senhora me fazia aos berros, como se estivesse em
sua casa, entre pessoas íntimas.
A coisa foi ficando ridícula:
- Para que esse saquinho aí? - foi a pergunta que fez, num tom de
voz que parecia que ela estava no Rio e eu em São Paulo.
- É para a senhora usar em caso de necessidade - respondi
baixinho. Tenho certeza de que ninguém ouviu minha resposta,
mas todos adivinharam qual foi, porque ela arregalou os olhos
e exclamou:
- Uai... as necessidades neste saquinho? No avião não tem
banheiro? Alguns passageiros riram, outros - por fineza -
fingiram ignorar o lamentável equívoco da incômoda passageira
de primeira viagem. Mas ela era um azougue (embora com
tantas carnes parecesse mais um açougue) e não parava de
badalar. Olhava para trás, olhava para cima, mexia na poltrona e
quase levou um tombo, quando puxou a alavanca e empurrou o
encosto com força, caindo para trás e esparramando embrulhos
para todos os lados.
O comandante já esquentara os motores e a aeronave estava
parada, esperando ordens para ganhar a pista de decolagem.
Percebi que minha vizinha de banco apertava os olhos e lia
qualquer coisa. Logo veio a pergunta:
- Quem é essa tal de emergência que tem uma porta só pra
ela? Expliquei que emergência não era ninguém, a porta é que
era de emergência, isto é, em caso de necessidade, saía-se
por ela. Madama sossegou e os outros passageiros já estavam
conformados com o término do "show". Mesmo os que mais
de divertiam com ele resolveram abrir os jornais, revistas ou
se acomodarem para tirar uma pestana durante a viagem.
Foi quando madama deu o último vexame. Olhou pela janela
(ela pedira para ficar do lado da janela para ver a paisagem) e
gritou:
- Puxa vida!!!
Todos olharam para ela, inclusive eu. Madama apontou para a
janela e disse:
- Olha lá embaixo.
Eu olhei. E ela acrescentou: - Como nós estamos voando alto,
moço. Olha só... o pessoal lá embaixo até parece formiga.
Suspirei e lasquei:
- Minha senhora, aquilo são formigas mesmo. O avião ainda
não levantou vôo.

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