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Poesia trovadoresca

Cantigas de escárnio e maldizer


A sátira medieval
Ai, dona fea, fostes-vos queixar
Ai, dona fea
fea, fostes-vos queixar fea: feia
que vos nunca louv[o] em meu cantar;
ora: agora
mais ora quero fazer um cantar
loarei toda via;
em que vos loarei via loarei: louvarei
e vedes como vos quero loarloar: toda via: de qualquer modo
dona fea, velhasandia
e sandia! loar: louvar
se Deus
Dona fea, mi pardom
se Deus mi pardom, sandia: louca
poispois avedes
avedes [a] tam
[a] tam gram gram coraçom
coraçom se Deus mi pardom: assim Deus me
que vosloe
eu loe,
em emestaesta razom
razom perdoe
vos quero ja loar toda via;
pois tendes tão grande desejo.
e vedes qual será a loaçom:
loaçom
dona fea, velha e sandia! loe: louve.
em esta razom: por este motivo.
Dona fea, nunca vos eu loei
peropero
muito trobei loaçom: louvor; elogio.
em meu trobar, muito trobei;
mais ora ja um bom cantar farei, pero muito trobei: embora muito
em que vos loarei toda via; tenha trovado.
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia!

João Garcia de Guilhade


Ai, dona fea, fostes-vos queixar
Ai, dona fea, fostes-vos queixar
que vos nunca louv[o] em meu cantar;
mais ora quero fazer um cantar
em que vos loarei toda via; Quem é o
e vedes como vos quero loar: sujeito poético/sujeito
dona fea, velha e sandia! da enunciação/emissor?
Dona fea, se Deus mi pardom,
pois avedes [a] tam gram coraçom
que vos eu loe, em esta razom
vos quero ja loar toda via;
e vedes qual será a loaçom:
dona fea, velha e sandia!
Voz masculina
Dona fea, nunca vos eu loei (trovador),
em meu trobar, pero muito trobei;
mais ora ja um bom cantar farei,
com atitude de
em que vos loarei toda via; escárnio /
e direi-vos como vos loarei: desprezo
dona fea, velha e sandia!
Ai, dona fea, fostes-vos queixar
Ai, dona fea, fostes-vos queixar Destinatário:
Quem é o
“dona fea”
que vos nunca louv[o] em meu cantar;
mais ora quero fazer um cantar DESTINATÁRI
em que vos loarei toda via;
e vedes como vos quero loar: O
dona fea, velha e sandia! e ALVO DA
CRÍTICA?
Dona fea, se Deus mi pardom,
pois avedes [a] tam gram coraçom
que vos eu loe, em esta razom
vos quero ja loar toda via;
Mulher que,
e vedes qual será a loaçom: apesar de Mulher
dona fea, velha e sandia! “feia, velha destituída
Dona fea, nunca vos eu loei
e sandia”, de dons, mas
em meu trobar, pero muito trobei; deseja ser que deseja ser
mais ora ja um bom cantar farei, louvada pelo cantada
em que vos loarei toda via;
e direi-vos como vos loarei:
trovador
dona fea, velha e sandia!
Ai, dona fea, fostes-vos queixar
Ai, dona fea, fostes-vos queixar Qual é o
que vos nunca louv[o] em meu cantar;
ASSUNTO da
mais ora quero fazer um cantar
em que vos loarei toda via;
cantiga?
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!
Ridicularização
Dona fea, se Deus mi pardom, “Louvor” do amor cortês /
pois avedes [a] tam gram coraçom irónico
crítica à arte
que vos eu loe, em esta razom
(ridicularização poética das
vos quero ja loar toda via;
e vedes qual será a loaçom: da mulher cantigas de amor,
dona fea, velha e sandia! descrita) por meio do
Dona fea, nunca vos eu loei elogio irónico a
em meu trobar, pero muito trobei; uma “dona fea,
mais ora ja um bom cantar farei,
em que vos loarei toda via;
velha e sandia”
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia!
Ai, dona fea, fostes-vos queixar
Ai, dona fea, fostes-vos queixar
que vos nunca louv[o] em meu cantar; Qual é o
mais ora quero fazer um cantar GÉNERO
em que vos loarei toda via;
e vedes como vos quero loar:
LITERÁRIO da
dona fea, velha e sandia! cantiga?
A mulher
Dona fea, se Deus mi pardom, visada na crítica
pois avedes [a] tam gram coraçom
que vos eu loe, em esta razom não é
vos quero ja loar toda via; identificada; Cantiga de
e vedes qual será a loaçom: o sujeito poético escárnio
dona fea, velha e sandia!
refere-se a ela (crítica subtil, em
Dona fea, nunca vos eu loei apenas como que não se
em meu trobar, pero muito trobei; “Dona fea”
mais ora ja um bom cantar farei,
identifica
em que vos loarei toda via; concretamente
e direi-vos como vos loarei: a pessoa visada)
dona fea, velha e sandia!
Ai, dona fea, fostes-vos queixar
Sugestão de elogio, Ai, dona fea, fostes-vos queixar
mas insinuação da que vos nunca louv[o] em meu cantar; Como é realçado
ironia (“dona mais ora quero fazer um cantar
o carácter satírico
fea”) em que vos loarei toda via;
da cantiga?
e vedes como vos quero loar:
Carácter satírico dona fea, velha e sandia!

Antítese irónica Dona fea, se Deus mi pardom,


• Antítese irónica entre
pois avedes [a] tam gram coraçom o corpo da estrofe
Apóstrofe que vos eu loe, em esta razom (sugestão de elogio,
vos quero ja loar toda via; mas insinuação da
e anáfora e vedes qual será a loaçom: ironia, no 1.º verso)
dona fea, velha e sandia! e o refrão (carácter
satírico)
Dona fea, nunca vos eu loei • Apóstrofe e anáfora:
em meu trobar, pero muito trobei;
realce do alvo de
mais ora ja um bom cantar farei,
crítica (vv. 1, 6, 7, 12,
em que vos loarei toda via;
e direi-vos como vos loarei: 13, 18)
dona fea, velha e sandia!
Ai, dona fea, fostes-vos queixar
Ai, dona fea, fostes-vos queixar a
Como se caracteriza
que vos nunca louv[o] em meu cantar; a
FORMALMENTE
mais ora quero fazer um cantar a a cantiga?
em que vos loarei toda via; B
e vedes como vos quero loar: a Refrão
intercalar
dona fea, velha e sandia! B
• Cantiga de refrão
Dona fea, se Deus mi pardom, c • Esquema rimático:
pois avedes [a] tam gram coraçom aaaBaB /cccBcB /
c
que vos eu loe, em esta razom dddBdB
vos quero ja loar toda via; c
B
e vedes qual será a loaçom: c Refrão
dona fea, velha e sandia! intercalar
B
Dona fea, nunca vos eu loei d
em meu trobar, pero muito trobei; d
mais ora ja um bom cantar farei,
d
em que vos loarei toda via; B Refrão
e direi-vos como vos loarei: d intercalar
dona fea, velha e sandia! B
Em síntese esta cantiga de escárnio apresenta as seguintes características:
• o emissor é uma voz masculina (trovador), sendo o destinatário e alvo
das críticas uma mulher (“dona”);
• o trovador caracteriza a “dona” como “fea, velha e sandia”, imitando
ironicamente a cantiga de amor e demonstrando uma atitude de
escárnio e desprezo relativamente a uma mulher que, mesmo sendo
destituída de dons (beleza, juventude e sensatez), deseja ser louvada;
• a sátira reside na ridiculização do amor cortês e na crítica à arte
poética da cantiga de amor;
• o carácter satírico é realçado, sobretudo, pelo recurso à antítese
irónica entre o corpo da estrofe e o refrão (cf. tripla adjetivação, com
valor depreciativo, oposto ao sentido de “loar”) e à apóstrofe,
reiterada em posição anafórica (“Dona fea”);
• formalmente, trata-se de uma cantiga de refrão, com o seguinte
esquema rimático: aaaBaB / cccBcB / dddBdB.

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