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John Rawls, Uma

Teoria da Justiça (parte


1)
Prof. Doutor Roberto Merrill
roberto.merrill@ilch.uminho.pt
Centro de Ética, Política e Sociedade
http://ceps.ilch.uminho.pt
• 1. Introdução e contexto

• 2. Visão geral dos temas principais de Uma


Índice Teoria da Justiça

• 3. A leitura do livro : Capítulo 1. A justiça


como equidade
- Freeman, Samuel. The Cambridge Companion to Rawls. Cambridge
University Press, 2003.

- Rawls, John, Uma Teoria da Justiça, Lisboa, Presença, 1993 [1.ª ed.
em inglês: 1971; ed. Revista: 1999].

- Rawls, John, O Liberalismo Político, Lisboa, Presença, 1997. [1.ª ed.


em inglês: 1993].

Bibliografi - Rawls, John. Justiça como equidade: uma reformulação. Martins


Fontes, 2003. [1.ª ed. em inglês: 2001].

a
1.
Introdução •  
e Contexto
• John Rawls (1921-2002) foi um filósofo político
americano.
• 1950: PhD em Princeton em filosofia moral
• Casou com Margaret Warfield Fox com quem teve
  Biografia quatro filhos
• Professor de filosofia em Cornell nos anos 50 e
de Rawls e depois em Harvard até à sua reforma.
contexto • Influenciado pela luta pelos direitos civis e pelo New
Deal
histórico   • No livro de 2001: “A justiça como equidade”, é
crítico do Estado Social Capitalista e defende uma
democracia de proprietários como alternativa.
• Vídeo:
https://www.youtube.com/watch?v=5-JQ17X6VNg
• 1. Utilitarismo e intuicionismo: o utilitarismo, que
nasce com Bentham no século das luzes, e desenvolve-se
com Mill, domina os debates morais. O intuicionismo é
uma alternativa, mas é fraca.
• 2. A tradição do contrato social: influência de Locke,
O contexto Rousseau e Kant:
filosófico   conceito de estado de natureza + acordo original = contrato
social
• 3. A filosofia moral de Kant: imperativos hipotéticos vs
imperativos categóricos.
• A filosofia política está moribunda no século 20 e renasce
com Rawls a partir dos 1970.
• “Outline of a Decision Procedure for Ethics”
(1951)
• “Two Concepts of Rules” (1955)
• A Theory of Justice (1971)
Visão geral • “Kantian Constructivism in Moral Theory”
dos escritos (1980)
• “Social Unity and Primary Goods” (1982)
de Rawls • “Justice as Fairness: Political Not
Metaphysical” (1985)
• Political Liberalism (1993)
• Justice as fairness: a restatement (2001)
2. Visão geral
dos temas
principais de
Uma Teoria
da Justiça

http://existentialcomic
s.com/comic/119
• A teoria dominante = utilitarismo
• Exemplo de uma sociedade com escravos:
• A felicidade total nesta sociedade supera a infelicidade da
minoria de escravos.
 Objeções ao • Logo, segundo o utilitarismo, esta sociedade é justa.

utilitarismo • Objeção ao utilitarismo: temos a intuição que esta sociedade


e ao é injusta

intuicionismo • Objeção ao intuicionismo: sem resposta para o que devemos


fazer pois as nossas intuições são incompletas, vagas, e em
conflito.

• Rawls: quer uma teoria tão poderosa e sistemática como o


utilitarismo, mas que não seja injusta. E quer uma teoria
melhor do que o intuicionismo para dar conta das nossas
intuições morais.
• Algumas ideias fundamentais:
• 1. Ideia da sociedade como um “sistema de
cooperação”
Um
“sistema de • Exemplo de três amigos que querem começar uma nova
empresa juntos. Um é designer de produto, o outro tem
cooperação” talento para o marketing, e o terceiro é um contabilista
experiente. Têm que decidir como dividir os lucros da
nova empresa. O que seria uma boa regra para
ultrapassar os conflitos entre os três?

• Para Rawls, devemos pensar na sociedade da mesma


maneira: que regras formular para ultrapassar os
conflitos entre os interesses individuais?
• Rawls sobre a sociedade como sistema de cooperação:
Qual é a • “. . . Uma sociedade é uma associação de pessoas…que
reconhecem certas regras de conduta como sendo
regra de vinculativas…e agem de acordo com elas. Estas regras
especificam um sistema de cooperação concebido para
distribuiçã fomentar o bem dos que nela participam…. Uma
sociedade é marcada… tanto por um conflito como por
o mais uma identidade de interesses.”(Rawls, TJ: 28)
• Exemplo das regras de distribuição dos empregos:
justa ? sistema feudal, sistema comunista, sistema capitalista:
• Mas qual é a regra de distribuição mais justa para todos?
• 2. Ideia da “estrutura de base da sociedade”
A • “Para nós, o objeto primário da justiça é a
estrutura de base da sociedade, …a forma pela
“estrutura qual as instituições sociais mais importantes
distribuem os direitos e obrigações fundamentais
de base da e determinam a divisão dos benefícios da
cooperação em sociedade” (RawlsTJ: 30).
sociedade”
• Exemplo do João (trabalhador) e da Carla
(preguiçosa): a vida do João corre melhor por ser
trabalhador? Isso depende da estrutura de base da
sociedade e não apenas do esforço pessoal.
• Numa sociedade feudal onde o João nasce
campesino e a Carla aristocrata, a vida da Carla
corre melhor, apesar dos esforços do João.
• A estrutura de base para uma sociedade: a
Exemplo do bolo a dividir por que se escolhe quando não se conhece o
dois: um divide, ou outro seu lugar no sistema de cooperação da
escolhe. sociedade.
• A nossa resposta a esta maneira de escolher
o nosso lugar na sociedade dá-nos uma
ideia do que seria a sociedade justa. A TJ
desenvolve esta ideia principal.
• Influências:
• O contrato social permite imaginar a estrutura
de base: vem do estado de natureza de Locke
• A ideia do véu de ignorância: vem da
influência da razão moral imparcial em Kant.
2.2. O livro: um guia rápido

• O livro está dividido em três partes de três capítulos cada. Estes capítulos
têm umas 50 páginas cada:
• Parte I. Teoria
• I. A justiça como equidade; II. Os príncipios da justiça; III. A posição original
• Parte II. Instituições
• IV. Igual Liberdade para todos; V. A distribuição; VI. Dever e obrigação
• Parte III. Fins
• VII. O bem como racionalidade; VIII. O sentido da justiça; IX. A justiça como bem
• 1. Um esboço da justiça como equidade (§§ 1-3)
• 2. O utilitarismo e o intuicionismo (§§ 5-8)
Rawls dividiu o seu livro em • 3. O método do equilíbrio reflexivo (§§ 4, 9)
87 secções (§§), numeradas • 4. Os dois princípios de justiça (§§ 10-14)
consecutivamente. • 5. Caracterização da justiça como equidade (§§ 15-17)
• 6. A posição original (§§ 20, 22, 24-25)
As 87 secções são as principais • 7. A apresentação de alternativas (§§ 21, 23, 87)
unidades de leitura do livro. • 8. O argumento a favor da justiça como equidade (§§ 26-30, 33)
• 9. As instituições de uma sociedade justa (§§ 31-32, 34-39, 41-
43)
• 10. Completando o argumento (§§ 40, 44-50)
• 11. A justiça e o indivíduo (§§ 18-19, 51-59)
• 12. A procura de estabilidade (§§ 60-87) : Corresponde à
terceira parte do livro. Esta parte é desenvolvida no livro
posterior Liberalismo Político (1993).
3. A leitura do livro
Capítulo 1. A justiça como equidade
  3.1. Um esboço da justiça como equidade
(§§ 1-3)

• Em § 1, Rawls defende, contra o utilitarismo, duas ideias centrais:


• 1. A justiça é a primeira virtude das instituições, “A justiça é a virtude
primeira das instituições sociais, tal como a verdade o é para os sistemas de
pensamento. Uma teoria, por mais elegante ou parcimoniosa que seja, deve
ser rejeitada ou alterada se não for verdadeira; da mesma forma, as leis e as
instituições, não obstante o serem eficazes e bem concebidas, devem ser
reformadas ou abolidas se forem injustas ” (Rawls, TJ: 27)
• Duas implicações: (1) a justiça nunca deve ser sacrificada por outras
virtudes, como a eficiência e (2) a justiça aplica-se às instituições e não aos
comportamentos individuais.
  3.1. Um esboço da justiça como equidade
(§§ 1-3)

• 2. As pessoas têm direitos invioláveis:

• “ Cada pessoa beneficia de uma inviolabilidade que decorre da justiça, a qual nem
sequer em benefício do bem-estar da sociedade como um todo poderá ser eliminada”
(Rawls,TJ: 27)

• A inviolabilidade não é absoluta, mas moderada no sentido em que não


devemos sacrificar as liberdades de alguém em nome de ganhos
económicos agregados.
Como defender estas duas
afirmações?

Apelando às ideias de
“cooperação” e de
“estrutura de base”.
Rawls é contra o utilitarismo
que se aplica também à
moral individual.
Em § 2, Rawls explicita certas limitações da teoria da justiça que
defende:

• 1. Existem várias instituições (clubs, igreja, etc.) às quais não se aplica a TJ

• 2. Diferença entre “conformação estrita” e “conformação parcial” na


aplicação da TJ:
• conformação estrita: quando as pessoas fazem tudo aquilo que a teoria espera delas
(não roubam, respeitam a lei, ie. seguem os princípios da justiça): a teoria de Rawls é
estrita. Utópica?
• conformação parcial: quando as pessoas não seguem os princípios de justiça
Em § 3, Rawls define a ideia principal da sua teoria
da justiça social, i.e. a justiça como equidade
• “O meu objetivo é apresentar uma conceção da justiça que generaliza e eleva
a um nível superior a conhecida teoria do contrato social, desenvolvida,
entre outros, por Locke, Rousseau e Kant. Para o fazer, não vamos conceber
o contrato original como aquele que permite a adesão a uma sociedade
determinada ou que estabelece uma determinada forma de governo. A ideia
condutora é antes a de que os princípios da justiça aplicáveis à estrutura
básica formam o objeto do acordo original. Esses princípios são os que
seriam aceites por pessoas livres e racionais, colocadas numa situação inicial
de igualdade e interessadas em prosseguir os seus próprios objetivos, para
definir os termos fundamentais da sua associação” (Rawls, TJ:33)
O “véu de ignorância” na
posição original • Imaginem um grupo de pessoas racionais
situadas numa “posição original” por trás
de um “véu de ignorância” graças ao qual
chegam a decisões imparciais.
• Deduzem assim os princípios da justiça para
a “estrutura de base”: são estes princípios
que permitem avaliar se as instituições e as
práticas sociais são justas.
O “véu de ignorância” na
posição original
• Exemplo: a escravidão é justa ou injusta?
• Está em conformidade com os princípios
gerais de justiça social que as pessoas
racionais numa posição original por trás de
um véu de ignorância teriam selecionado
para a sociedade em que querem viver?
• Escolhemos os famosos dois princípios:
Se rejeitamos o utilitarismo
como injusto, que princípios
de justiça escolher detrás do • “O primeiro [princípio] exige a
véu de ignorância rawlsiano? igualdade na atribuição dos direitos e
deveres básicos, enquanto o segundo
afirma que as desigualdades económicas
e sociais, por exemplo as que ocorrem
na distribuição da riqueza e poder, são
justas apenas se resultarem em
vantagens compensadoras para todos e,
em particular, para os mais
desfavorecidos membros da sociedade ”
(Rawls, TJ: 35)
Questões para debater sobre §§ 1-3

• 1. Responsabilidade pessoal, meritocracia e estrutura de base


• Até que ponto somos responsáveis pelo quão bem as nossas vidas podem
correr, e em que medida são as nossas perspetivas de vida influenciadas
por fatores políticos e sociais que estão além do nosso controle pessoal?
Questões para debater sobre §§ 1-3

• 2. Liberalismo versus comunitarismo


• Será a visão de uma sociedade perfeitamente voluntarista (uma sociedade
em que escolhemos os termos da nossa cooperação mútua) um ideal
atraente?
• Quais são as suas limitações?
• Em alternativa, pertencer por tradição a uma sociedade, não fará mais
sentido?
3.2. O utilitarismo e o intuicionismo
(§§ 5-8)
• “A ideia central [do utilitarismo] é a de
que a sociedade está bem ordenada e,
§§ 5-6: Utilitarismo portanto, é justa quando as suas
instituições principais estão ordenadas
de forma a conseguir a maior soma
líquida de satisfação, obtida por adição
dos resultados de todos os sujeitos que
nela participam”
• (Rawls, TJ:41)
• Uma teoria teleológica: o bom é
§§ 5-6: utilitarismo definido independentemente do justo, e
o justo é definido como aquilo que
maximiza o bom.
• Para o utilitarismo: o bom = a felicidade
• Para o perfeccionismo: o bom = a
excelência humana
Rawls contra as teorias teleológicas
• As teorias teleológicas são indiferentes ao princípio da distribuição: não
importa a maneira de distribuir a felicidade na sociedade, desde que a
felicidade total seja a maior possível.
• Quem é feliz é irrelevante.
• Justiça como equidade: teoria deontológica porque rejeita o princípio de
maximização do bem assim como a prioridade do bem sobre o justo.
Objeção da inviolabilidade ao utilitarismo
• Utilitarismo: os direitos básicos invioláveis são uma ilusão socialmente útil
• Definição da felicidade:
• 1. Hedonismo empiricista de Bentham: quantidade do prazer
• 2. Perfeccionismo de Mill: qualidade do prazer
• 3. Preferencialismo subjectivista de Sidgwick: economia, teoria dos jogos
• Objeção ao utilitarismo : a justiça como equidade fixa determinados
direitos básicos, independentemente das preferências vigentes na
sociedade.
Questões para debater sobre §§ 5-6

• Será que devemos ser indiferentes à distribuição da felicidade na


sociedade?
• Será que importa que algumas pessoas sejam infelizes por culpa dos
outros, se essa infelicidade aumentar a felicidade total na sociedade?
• Há algo de errado ao considerar que os nossos direitos básicos invioláveis
são apenas uma ilusão socialmente útil?
§§ 7-8: Sobre o intuicionismo
• As teorias intuicionistas têm duas características:
• 1. Consistem numa pluralidade de primeiros princípios, que podem entrar
em conflito ao darem directivas contraditórias (TJ: 30).
• 2. Não incluem nenhum método explícito, nenhuma regra da prioridade.
Para pesar esses princípios um contra o outro, apenas temos a intuição.

• Objeção: para a justiça como equidade é fundamental que haja uma regra de
prioridade, para poder resolver de maneira justa os conflitos na sociedade.
Objeção ao intuicionismo
• De onde vêm as nossas intuições morais? Dos costumes? Mas são justos
esses costumes ou são parciais?
• A posição original, detrás do véu de ignorância, reduz ao máximo a
parcialidade das nossas intuições.
• Sociedade bem ordenada: conforma-se a uma concepção pública da
justiça social
3.3. O método do equilíbrio refletido
(§§ 4, 9)
• Se os princípios corretos de justiça social são aqueles sobre os quais as
pessoas racionais concordariam na posição original, como podemos ter a
certeza que o procedimento na posição original está correto?

• A resposta de Rawls no § 9: o equilíbrio refletido. Trata-se de um vai e


vem entre os nossas intuições morais e os nossos princípios, até que
ambos se ajustem.
3.3. O método do equilíbrio refletido
(§§ 4, 9)
Questões para debater sobre §§ 4, 9
• 1. É possível dispensar das nossas intuições em filosofia política e moral?
Se não é, o método de equilíbrio refletido trata com sucesso o problema
da parcialidade moral das nossas intuições?
• Exercício:
• Intuição: matar um bebé é imoral
• Regra: não se devem matar pessoas inocentes
• Nunca? Nova intuição: mas se for para evitar a morte de ainda mais pessoas
inocentes?
• Nova Regra?
Questões para debater sobre §§ 4, 9
• 2. Deve uma teoria da justiça social ser pública para que desempenhe a
sua função distintiva na sociedade?
• Seria irracional para as pessoas chegarem a acordo sobre uma teoria
esotérica da justiça que só alguns conhecem e compreendem?
• Exercício: como distinguir entre razões públicas e razões não públicas?
• cf. Debate sobre a neutralidade do Estado

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