Gil Vicente foi poeta e dramaturgo português, considerado o “Pai do Teatro Português”. Em Portugal, Gil Vicente foi a figura mais importante do humanismo literário. Costuma-se enquadrar Gil Vicente na segunda época da literatura medieval portuguesa, uma época de transição da Idade média para o Renascimento, denominada de Humanismo. O teatro de Gil Vicente, chamado de Teatro Vicentino, teve origem em 1502 com a apresentação de seu texto “O Monólogo do Vaqueiro”. Suas peças, de caráter popular, possuem um forte teor satírico. Suas obras apresentam critica aos costumes da sociedade portuguesa, tecendo um fiel retrato de sua época. Além do caráter satírico, o conteúdo das obras apresentava um teor moralizante, repleto de humor. Escrita na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, “Auto da Barca do Inferno” oscila entre os seus valores morais de duas épocas: ao mesmo tempo que há um severa crítica à sociedade, típica da Idade Moderna, a obra também está religiosamente voltada para a figura de Deus, o que é uma característica medieval. O Humanismo caracterizou-se como um período de conflitos e mudanças de valores. Aos poucos, o ser humano foi deixando de lado a visão teocêntrica da existência humana, passando a interferir mais objetivamente no mundo em que vivia. Começou a valorizar sua própria capacidade intelectual e artística, tornando-se autor de descobertas científicas e de obras de arte admiráveis. O autor, Gil Vicente, enquadra-se nesse momento de transição, ou seja, está ligado tanto ao medievalismo quanto ao humanismo. Esse conflito faz com que Gil Vicente pense em Deus e ao mesmo tempo exalte o homem livre. O reflexo desse conflito interior é visto claramente na sua obra, pois ao mesmo tempo que critica, de forma impiedosa, toda a sociedade de seu tempo, adotando assim uma postura moderna, tem ainda o pensamento voltado para Deus, característica típica do mundo medieval. “Auto“ = Peça teatral em forma poética, de origem medieval, que focaliza temas religiosos e profanos, de criação essencialmente popular, apresenta uma linguagem que integra vocabulário e expressões consagradas pelo povo. Os autos de Gil Vicente tratam sobre temas tradicionais de caráter religioso-moralizante ou pastoris. Manteve-se preso às tradições medievais e fez um teatro de tom didático-moralizante, enraizado no teocentrismo e na ideia de salvação da alma. Apesar de suas personagens serem planas, sem profundidade psicológica, elas tocam a universalidade de aspectos psicológicos significativos que havia naquele tempo, bem como os valores prezados ou repelidos por aquela sociedade. Os membros da Igreja são alvo constante da crítica vicentina. É importante observar, no entanto, que o espírito religioso presente na formação do autor, jamais critica as instituições, os dogmas ou hierarquias da religião, e sim os indivíduos que as corrompem.
Acreditando na função moralizadora do teatro, colocou em cenas
fatos e situações que revelam a degradação dos costumes, a imoralidade dos frades, a corrupção no seio da família, a imperícia dos médicos, as práticas de feitiçaria, o abandono do campo para se entregar às aventuras do mar. As personagens desta obra são divididas em dois grupos: as personagens simbólicas(alegóricas) e as personagens tipo.
Personagens TIPO: são os que apresentam características
gerais de uma determinada classe social. Esses tipos utilizados por Gil Vicente raramente aparecem identificados pelo nome. Quase sempre, são designados pela ocupação que exercem ou por algum outro traço social (sapateiro, onzeneiro, clérigo, frade, bispo, alcoviteira etc.).
Personagens SIMBÓLICOS: representam tipos particulares de
comportamento humano O primeiro grupo inserem-se o Anjo e o Diabo, representando respectivamente o Bem e o Mal, o Céu e o Inferno. Ao longo de toda a obra estas personagens são como que os «juízes» do julgamento das almas, tendo em conta os seus pecados e vida terrena.
No segundo grupo inserem-se todas as restantes personagens
do Auto, nomeadamente o Fidalgo, o Onzeneiro, o Sapateiro, o Parvo (Joane), o Frade, a Alcoviteira, o Judeu, o Corregedor e o Procurador, o Enforcado e os Quatro Cavaleiros. Todos mantêm as suas características terrestres, o que as individualiza visual e linguisticamente, sendo quase sempre estas características sinal de corrupção. Fazendo uma análise das personagens, cada uma representa uma classe social, ou uma determinada profissão ou mesmo um credo. À medida que estas personagens vão surgindo vemos que todas trazem elementos simbólicos, que representam a sua vida terrena e demonstram que não têm qualquer arrependimento dos seus pecados. Primeira apresentação: 1517 na câmara da rainha D. Maria de Castela, que estava enferma. É uma obra alegórica, tanto com relação aos personagens quanto às ideias que, no geral, perpassam uma dedução moral. Classificação do auto: auto de moralidade. Tempo: psicológico, uma vez que todos os personagens estão mortos, perdendo-se a noção do tempo. Estilo: é escrito em tom coloquial, ou seja, a linguagem aproxima-se a da fala, revelando assim a condição social das personagens Estrutura : pode-se dizer que o Auto possui um único ato, dividido em cenas, nas quais predominam os diálogos entre as almas, que estão sendo julgadas, com o anjo e com o diabo. Os personagens do Auto, com exceção do anjo de do diabo, são representantes típicos da sociedade da época. Eles raramente aparecem identificados pelo nome, pois são designados pela ocupação social que exercem (onzeneiro, fidalgo, sapateiro, etc.) Todos o versos são Redondilhas maiores, sete sílabas poéticas. As rimas obedecem, geralmente, o esquema ABBAACCA, como se pode ver na fala do onzeneiro, transcrita abaixo:
"Olá, ó demo barqueiro! (A)
Sabeis vós no que me fundo (B) Quero lá tornar ao mundo (B) E trarei o meu dinheiro (A) Aqueloutro marinheiro (A) Porque me vê vir sem nada (C) Dá-me tanta borregada (C) Como arrais lá do barreiro (A)" Tem como cenário um porto imaginário, onde estão ancoradas duas barcas: uma como destino o paraíso, tem como comandante um anjo; a outra, com destino ao inferno, tem como comandante o diabo, que traz consigo um companheiro.
Todas as almas, assim que se desprendem dos corpos, são
obrigadas a passar por esse lugar para serem julgadas. Dependendo dos atos cometidos em vida, elas são condenadas à Barca da Glorificação ou à do Inferno. Tanto o anjo quanto o diabo podem acusar as almas, mas somente o anjo tem o poder da absolvição. Quando a peça começa, estão no palco o Anjo e o Diabo com seu Companheiro. A primeira cena mostra estes últimos eufóricos na preparação do navio infernal que receberá as almas. Em oposição a esse quadro dinâmico está a figura do Anjo, sério e calado, quase uma estátua. As diferenças entre esses dois personagens são marcantes. Além da oposição conceitual Bem x Mal, Céu x Inferno, eles também assumem posturas opostas, fazendo com que o Diabo – alegre, simpático e principalmente irônico – praticamente domine a peça. Fidalgo: é condenado à barca do inferno por ter levado uma vida tirana cheia de luxúria e pecados. Onzeneiro: é condenado ao inferno pela ganância, usura e avareza. Parvo: ao chegar à barca da gloria o parvo diz não ser ninguém e, por causa da sua humildade e modéstia, a sua sentença é a glorificação. Sapateiro: é condenado por roubar o povo com seu ofício durante 30 anos e por sua falsidade religiosa. Frade: condenado à barca do inferno por seu falso moralismo religioso. Alcoviteira: condenada à barca do inferno pela prática de feitiçaria, prostituição e por alcovitagem. Judeu: condenado ao inferno por desrespeitar o Cristianismo. Corregedor e Procurador: condenando-os ao batel infernal por usarem o poder do judiciário em benefício próprio. Enforcado: condenado ao batel infernal pela corrupção nos meios burocráticos. Cavaleiros das Cruzadas: O fato de morrer pelo triunfo do Cristianismo garante a esses personagens uma espécie de passaporte para a glorificação.