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TARDE

Olavo Bilac
Contexto literário
• Literariamente, a segunda metade do século XIX foi altamente influenciada pelos
valores da Segunda Revolução Industrial. Em lugar da subjetividade idealista, tão
cara aos românticos, a objetividade crítica passou a imperar.

• De fato, o Realismo-Naturalismo foi um movimento literário cujas principais obras


foram publicadas sob a forma de contos e, sobretudo, de romances. Mas isso não
significa que não tenha havido poetas realistas.

• Acontece que, no final do século XIX, surgiram outros dois movimentos literários,
fundamentalmente poéticos, que coexistiram com o Realismo-Naturalismo, embora
com propostas bem diferentes: o Parnasianismo e o Simbolismo.
Parnasianismo
• No início da década de 1860, surgiu na França um grupo de
poetas que acreditava que a verdadeira poesia não deveria
pautar-se pelo engajamento social. Com isso, eles negavam
tanto a poesia condoreira de Victor Hugo quanto a prosa
realista de Gustave Flaubert. No Brasil, isso equivaleria a opor-
se, simultaneamente, a Castro Alves e a Aluísio Azevedo.

• Théophile Gautier, o principal articulador dessa postura


literária, acreditava no ideal da arte pela arte, ou seja, na tese
de que a poesia não deveria ser valorizada por traduzir
sentimentos humanos ou por denunciar injustiças sociais, mas
sim pela beleza inerente aos versos, quase que de maneira
independente do conteúdo
Poesia realista?
• A poesia parnasiana é, de fato, marcada pela impassibilidade e pelo descritivismo, o
que explica a vinculação entre esse movimento literário e a objetividade.

• Acontece que a objetividade parnasiana difere da realista num aspecto essencial: os


realistas desejavam que a arte manifestasse, como já dissemos, uma objetividade
crítica, por meio da qual o literato abordasse a realidade sem os excessos
fantasiosos do Romantismo e com a intenção de transformar a ordem social; já os
parnasianos adotaram uma postura de objetividade mais ampla, que nega tanto o
sentimentalismo romântico quanto a postura crítica dos realistas.
Parnasianismo no Brasil
• A ideologia parnasiana começa a ganhar força no Brasil a partir de 1880.

• Existem quatro escritores parnasianos de destaque na literatura brasileira: Alberto


de Oliveira, Raimundo Correia, Vicente de Carvalho e Olavo Bilac. Desses três, o que
mais se destacou, tornando-se um dos maiores poetas brasileiros de todos os
tempos foi, sem dúvida alguma, Bilac.

A arte, doutrinava Bilac, deve ser uma tarefa difícil. A própria natureza, disse ele, não
trabalha de improviso: uma borboleta ou uma simples flor custaram longos e pacientes
esforços, são fruto de um complicado mecanismo de metamorfoses. (JORGE, Fernando)
Profissão de fé
Invejo o ourives quando escrevo: Corre; desenha, enfeita a imagem, Possa o lavor lembrar de um vaso
            Imito o amor             A ideia veste:             De Becerril.
Com Ele, em ouro, o alto-relevo Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem
            Faz de uma flor.             Azul-celeste. E horas sem conta passo, mudo,
            O olhar atento,
Imito-o. E, pois nem de Carrara Torce, aprimora, alteia, lima A trabalhar, longe de tudo
            A pedra firo:             A frase; e enfim,             O pensamento.
O alvo cristal, a pedra rara, No verso de ouro engasta a rima,
            O ônix prefiro.             Como um rubim. Porque o escrever – tanta perícia,
            Tanta requer,
Quero que a estrofe cristalina, Que ofício tal... nem há notícia
            Dobrada ao jeito             De outro qualquer.
Por isso, corre, por servir-me, Do ourives, saia da oficina
            Sobre o papel             Sem um defeito: Assim procedo. Minha pena
A pena, como em prata firme             Segue esta norma,
            Corre o cinzel. E que o lavor do verso, acaso, Por te servir, Deusa serena,
            Por tão sutil,             Serena Forma!
Olavo Bilac
• Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac nasceu no Rio de
Janeiro, em 1865, e morreu na mesma cidade, em 1918. Ele
trabalhou como jornalista e como funcionário público e
envolveu-se bastante com o mundo da educação, chegando
mesmo a escrever livros didáticos para crianças pequenas.
• Nacionalista convicto, autor da letra do “Hino à Bandeira”,
Bilac defendeu a instrução primária e, principalmente, o
serviço militar obrigatório.
• A obra mais conhecida de Bilac foi publicada, em primeira
edição, em 1888, quando ele tinha apenas 23 anos. Poesias
é um dos livros mais importantes da poesia brasileira do
século XIX.
“permaneceu como o poeta do gosto médio, e mesmo
medíocre, sofrendo não apenas o desgaste dos que
representam com demasiada fidelidade uma corrente
literária, mas o descrédito que o modernismo lançou sobre
os parnasianos em geral. Todavia, a sua obra vem
revelando uma acentuada vitalidade, de que há poucos
exemplos em nossa literatura, e que se deve talvez à
constância com que o poeta mantém o seu nível.”
(CANDIDO, Antonio)
A obra
• Em 1908, Bilac foi acusado pela imprensa brasileira de receber dinheiro do
governo, em virtude de sua amizade com o Barão de Rio Branco.
• Ele decidiu devolver as quantias recebidas, contra a vontade do governo brasileiro,
e rompeu com os jornais.

• Mas ele continuou publicando textos em revistas ilustradas. Foi assim que, a partir
de 1912, muitos dos sonetos que viriam fazer parte de Tarde foram publicados na
revista Careta, com ilustrações de J. Carlos.
• Quando faleceu, em 1918, Olavo Bilac preparava a
publicação de Tarde, conjunto de 98 sonetos escritos ao
longo de muitos anos. A epígrafe da obra é um trecho de
Dante Alighieri (1265-1321), em que o autor de A divina
comédia fala da passagem do tempo e, especialmente,
de cada uma das épocas da vida.
• A escolha não poderia ser mais feliz. Tarde é uma obra que faz diversas referências ao tema da
velhice e, por extensão, à aproximação da morte. Assim, a própria imagem da tarde representa
menos um momento do dia do que uma etapa da vida. Isso fica claro em “Hino à tarde”,
primeiro poema do livro, cujos versos finais são:

[...]
Amo-te, ó tarde triste, ó tarde augusta, que, entre
Os primeiros clarões das estrelas, no ventre,
Sob os véus do mistério e da sombra orvalhada,

Trazes a palpitar, como um fruto do outono,


A noite, alma nutriz da volúpia e do sono,
Perpetuação da vida e iniciação do nada...
“Ciclo”
Manhã . Sangue em delírio, verde gomo,
Promessa ardente, berço e liminar:
A árvore pulsa, no primeiro assomo
Da vida, inchando a seiva ao sol... Sonhar!

Dia. A flor, – o noivado e o beijo, como


Em perfumes um tá amo e um altar:
A árvore abre-se em riso, espera o pomo,
E canta à voz dos pássaros... Amar!

Tarde. Messe e esplendor, glória e tributo;


A árvore maternal levanta o fruto,
A hóstia da ideia em perfeição... Pensar!

Noite. Oh! saudade!... A dolorosa rama


Da árvore aflita pelo chã o derrama
As folhas, como lágrimas... Lembrar!
Em todos os poemas de Tarde: ao todo, são 54 sonetos em versos decassílabos e 44 em
alexandrinos.
A reflexão sobre o fazer poético, em exercício metalinguístico, aparece mais de uma vez: em
“Palavras”, em “Consolação” e, principalmente, “A um poeta”.
• Nos poemas de Tarde, existe um rigor formal que tende à repetição. E essa
repetição também se dá no plano do conteúdo, já que os temas dos
sonetos

pertencem também a tradição dos lugares-comuns da retórica clássica: a


velhice, a passagem do tempo, o sentido da solidariedade, a aproximação da
morte, a resignação em face da inexorabilidade da morte, apologia da moral
cristã, associação das fases da vida com as estações do ano, o amor na velhice,
a celebração discreta da história, o balanço da vida na velhice, exaltação de
grandes modelos artísticos da história, encarecimento da piedade e da
modéstia cristã, demonstração do homem no cosmos, etc. São os estereótipos
com que escreveram os grandes poemas da humanidade. (TEIXEIRA, Ivan)
• Como um todo, os poemas de Tarde vinculam-se à tradição da poesia lírico-reflexiva. O
descritivismo do Parnasianismo tem pouco espaço no livro. Passagens descritivas estão mais a
serviço de indagações de natureza abstrata.

• Fazendo uma análise dos 98 sonetos e reconhecendo que muitas vezes um mesmo poema
pode encerrar mais de um assunto, é possível encontrar cinco principais linhas temáticas na
obra:
• Passagem do tempo, reconhecimento da velhice e proximidade da morte.
• História e cultura brasileira.
• Elementos da natureza.
• Conflitos existenciais e amorosos.
• Personagens históricas e míticas.
Língua portuguesa
Última flor do lácio, inculta e bela
És, a um tempo, esplendor e sepultura
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela

Amo-te assim, desconhecida e obscura


Tuba de alto clangor, lira singela
Que tens o tom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura

Amo o teu viço agreste e o teu aroma


De virgens selvas e de oceano largo
Amo-te, ó rude e doloroso idioma

Em que da voz materna ouvi: "meu filho


E em que Camões chorou, no exílio amargo
O gênio sem ventura e o amor sem brilho
As estrelas
Desenrola-se a sombra no regaço
Da morna tarde, no esmaiado anil;
Dorme, no ofego do calor febril,
A natureza, mole de cansaço.

Vagarosas estrelas! passo a passo,


O aprisco desertando, às mil e às mil,
Vindes do ignoto seio do redil
Num compacto rebanho, e encheis o espaço...

E, enquanto, lentas, sobre a paz terrena,


Vos tresmalhais tremulamente a flux,
- Uma divina música serena

Desce rolando pela vossa luz:


Cuida-se ouvir, ovelhas de ouro! a avena
Do invisível pastor que vos conduz...
O crepúsculo da beleza
Vê-se no espelho; e vê, pela janela,
A dolorosa angústia vespertina:
Pálido, morre o sol... Mas, ai! termina
Outra tarde mais triste, dentro dela;

Outra queda mais funda lhe revela


O aço feroz, e o horror de outra ruína:
Rouba-lhe a idade, pérfida e assassina,
Mais do que a vida, o orgulho de ser bela!

Fios de prata... Rugas... O desgosto


Enche-as de sombras, como a sufoca-la
Numa noite que aí vem... E no seu rosto

Uma lágrima trêmula resvala,


Trêmula, a cintilar, - como, ao sol posto,
Uma primeira estrela em céu de opala...
Microcosmo
Pensando e amando, em turbilhões fecundos
És tudo: oceanos, rios e florestas;
Vidas brotando em solidões funestas;
Primaveras de invernos moribundos;

A Terra; e terras de ouro em céus profundos,


Cheias de raças e cidades, estas
Em luto, aquelas em raiar de festas;
Outras almas vibrando em outros mundos;

E outras formas de línguas e de povos;


E as nebulosas, gêneses imensas,
Fervendo em sementeiras de astros novos;

E todo o cosmos em perpétuas flamas...


- Homem! és o universo, porque pensas,
E, pequenino e fraco, és Deus, porque amas!
Jesus
Mas sempre sofrerás neste vale medonho...
Que importa? Redentor e mártir voluntário,
Para a tua miséria um reino imaginário
Invento, glória e paz num futuro risonho.

Para te consolar, no opróbrio do Calvário,


Hóstia e vítima, a carne, o sangue e a alma deponho:
Nasce da minha morte a vida do teu sonho,
E todo o choro humano embebe o meu sudário.

Só liberta a renúncia. Ó triste! a sombra imensa


Dos braços desta cruz espalha sobre o mundo
A utopia celeste, orvalho ao teu suplício.

Sou a misericórdia ilusória da crença:


Sobre a força, a fraqueza: e, sobre o amor fecundo,
A piedade sem glória e o inútil sacrifício!
• Alguns dos sonetos do livro são explicitamente numerados, para indicar que fazem parte
de um único bloco, planejado por Bilac. Há três desses blocos em Tarde.

• O primeiro vem introduzido por um texto com o título “Diziam que...”, do Padre Simão
de Vasconcelos, extraído da Crônica da Companhia de Jesus no Estado do Brasil, de 1663.
Nele, faz-se referência a cinco povos fictícios. Para cada um deles, há um soneto: “Os
monstros”, “Os goiasis”, “Os matuiús”, “Os curinqueãs” e “As amazonas”.

• O segundo bloco se chama “Trilogia” e é composto por “Prometeu”, “Hércules” e “Jesus”.


O terceiro bloco chama-se “Édipo” e contém “A pítia”, “A esfinge”, “Jocasta” e
“Antígona”.
Quem pode conceber um poeta que não seja suscetível de
padecimento? Ninguém e nada é impassível: nem sei se as pedras
podem viver sem alma. Uma estátua, quando é verdadeiramente
bela, tem sangue e nervos. Não há beleza morta: o que é belo vive
de si e por si só. (BILAC, Olavo)
Remorso
Às vezes, uma dor me desespera...
Nestas ânsias e dúvidas em que ando,
Cismo e padeço, neste outono, quando
Calculo o que perdi na primavera.

Versos e amores sufoquei calando,


Sem os gozar numa explosão sincera...
Ah! mais cem vidas! com que ardor quisera
Mais viver, mais pensar e amar cantando!

Sinto o que desperdicei na juventude;


Choro, neste começo de velhice,
Mártir da hipocrisia ou da virtude,

Os beijos que não tive por tolice,


Por timidez o que sofrer não pude,
E por pudor os versos que não disse!
Bilac aceitou a morte como um estoico, o que não chega a surpreender. Para quem,
como ele, amou a natureza, a morte nada mais poderia ser do que uma naturalíssima
etapa do processo da vida. [...] Bilac revela-se aqui mais grego do que em qualquer dos
muitos poemas nos quais evocara os temas helênicos. Sua atitude diante da morte
nada tem, aliás, de propriamente religiosa, ao menos no sentido estrito do termo.
Antes a embasa essa moral estoica, segundo a qual o mundo deve ser aceito como é,
regido apenas por uma razão divina que se confunde com o logos universal.
(JUNQUEIRA, Ivan)
Dualismo
Não és bom, nem és mau: és triste e humano...
Vives ansiando, em maldições e preces,
Como se, a arder, no coração tivesses
O tumulto e o clamor de um largo oceano.

Pobre, no bem como no mal, padeces;


E, rolando num vórtice vesano,
Oscilas entre a crença e o desengano,
Entre esperanças e desinteresses.

Capaz de horrores e de ações sublimes,


Não ficas das virtudes satisfeito,
Nem te arrependes, infeliz, dos crimes:

E, no perpétuo ideal que te devora,


Residem juntamente no teu peito
Um demônio que ruge e um deus que chora.
em alguns sonetos de Tarde, parece faltar a adequada junção entre o
momento da invenção (escolha da tópica) e o da elocução (uso no
ornato para verbalizar a tópica). Nem todo grande tema produz
grande poema: daí, a impressão de coisa forçada em diversos passos
do livro. Contribui para essa impressão a extensão meio lenta do
verso alexandrino, muito frequente em Tarde. (TEIXEIRA, Ivan)
Música brasileira
Tens, às vezes, o fogo soberano
Do amor: encerras na cadência, acesa
Em requebros e encantos de impureza,
Todo o feitiço do pecado humano.

Mas, sobre essa volúpia, erra a tristeza


Dos desertos, das matas e do oceano:
Bárbara poracé, banzo africano,
E soluços de trova portuguesa.

És samba e jongo, xiba e fado, cujos


Acordes s‹o desejos e orfandades
De selvagens, cativos e marujos:

E em nostalgias e paixões consistes,


Lasciva dor, beijo de três saudades,
Flor amorosa de três raças tristes.
Vila Rica
O ouro fulvo do ocaso as velhas casas cobre;
Sangram, em laivos de ouro, as minas, que ambição
Na torturada entranha abriu da terra nobre:
E cada cicatriz brilha como um brasão.

O ângelus plange ao longe em doloroso dobre,


O último ouro do sol morre na cerração.
E, austero, amortalhando a urbe gloriosa e pobre,
O crepúsculo cai como uma extrema-unção.

Agora, para além do cerro, o céu parece


Feito de um ouro ancião que o tempo enegreceu...
A neblina, roçando o chão, cicia, em prece,

Como uma procissão espectral que se move...


Dobra o sino... Soluça um verso de Dirceu...
Sobre a triste Ouro Preto o ouro dos astros chove.
Virtuosismo

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