O trabalho dos jornalistas gira em torno da produção de
narrativas, tendo a realidade factual como grande referente.
Se concluirmos que o jornalismo é narrativa,
como ele configura e nos conta as suas histórias? Como estimula e projeta a imaginação dos leitores e ouvintes? Como constrói significações? Narrativas do Presente
Estamos nos referindo aqui ao jornalismo objetivo do lide e
da "pirâmide invertida", das hard news ou notícias escritas na forma direta, descritiva, factual. Esse tipo de notícias constitui a essência do jornalismo diário, contrapõe-se à ficção e nega qualquer parentesco com a literatura e as artes. Queremos indagar a esse jornalismo objetivo se ele pode ser interpretado como narrativa. Narrativas do Presente
Uma reportagem é um texto narrativo, pois, por meia dela, o
jornalista narra um acontecimento, o que implica uma sucessão de estados (conjunto de condições em que se encontram em determinado momento).
Noticiar é, portanto, uma forma de narrar.
Narrativas do Presente
As narrativas jornalísticas tratam de fatos verídicos: os
personagens, lugar e tempo e eventos retratados são todos reais. Uma segunda distinção importante é que narrativas jornalísticas visam a ser objetivas e, portanto, impessoais. O jornalista é um observador dos fatos. Outra distinção é que reportagens costumam empregar linguagem direta e simples, pois o objetivo consiste em transmitir informações de forma rápida e clara. Uma narrativa jornalística não deve ser passível de interpretação. Narrativas do Presente
Mieke Bal (2001) diz que um texto narrativo é aquele em
que um agente relata uma narração. Um texto narrativo, diz ele, é uma história que se conta através da linguagem, isto é, uma história que se converte em signos linguísticos. Isto implica dizer que o texto narrativo é aquele no qual se relata uma história, mas o texto não é a história. Os textos podem diferir entre si e contar a mesma história. Narrativas do Presente
A primeira distinção contrapõe narração e descrição.
Narração é o procedimento representativo dominado pelo relato de eventos que configuram o desenvolvimento de uma ação temporal (cronológica) que estimula a imaginação. A descrição, por outro lado, é o procedimento representativo de um momento único, estático, temporalmente suspenso, que procura "naturalizar" o discurso e criar o efeito de real pelo excesso de informações geradoras de verossimilhança. Narrativas do Presente
No jornalismo (como em outros gêneros) é praticamente
impossível encontrar textos puramente descritivos tanto quanto aqueles exclusivamente narrativos. Entretanto, o discurso jornalístico parece tender para a descrição mais do que para a narração na medida em que sua forma direta, clara, precisa e concisa cria o efeito de real mais do que estimula imaginários. Narrativas do Presente
Outra oposição no campo da identidade do enunciado:
showing x telling, utilizando terminologia inglesa da Teoria Literária. O showing é a técnica de representação dramática que mostra uma sucessão de cenas e revelam situações particulares, deixando para o espectador configurar o enredo (mostra, mais que narra, como no teatro e no cinema). O telling se distingue pelo esforço do narrador em conectar, juntar as partes, contar enfim. Narrativas do Presente
Essa oposição nos remete à questão da distância (ou do
posicionamento) que o narrador quer manter das coisas narradas. No showing o narrador aumenta a distância ao desvanecer a sua presença, dramatiza as histórias, privilegia as citações permitindo que as personagens e os fatos falem por si mesmos. No telling o narrador encurta a distância na medida em que se transforma no foco da narrativa, com intervenções afetivas, éticas e estéticas frequentes. Narrativas do Presente
Em relação a essa última oposição, o jornalismo tende para o
showing (ainda que as duas formas possam ocorrer alternadamente num mesmo discurso jornalístico), não só porque dramatiza os fatos, atribui importância aos personagens e suas falas, mas principalmente porque o narrador procura se distanciar e deixar as conclusões éticas, morais e políticas para os leitores e ouvintes. Narrativas do Presente
No jornalismo hard news, o jornalista não pretende contar
histórias (sejam elas realistas ou ficcionais), quer apenas descrever fatos tal como ocorridos na realidade. Neste sentido, afasta-se da narrativa tradicional. Confirmação da precisão dos fatos relatados ou a eventual interpretação criativa são deixadas por conta do leitor ou ouvinte, pois essas intencionalidades estão ausentes do exercício da profissão devido à precisão e imediatismo da prática jornalística. Narrativas do Presente
A distinção entre a narrativa literária e a jornalística se dá,
segundo J.F.Sánchez (1992), pela diferente intenção de cada um desses discursos (pretensão de verdade). O discurso informativo tem uma finalidade externa ou instrumental, precisa ajustar-se ao mundo real, o conhecimento e o fato conhecido são distintos e o sujeito falante é empírico desde uma situação determinada, se dirige a alguém com a finalidade de comunicar informação. É um ato político e social. Narrativas do Presente
O discurso literário, por outro lado, só se compara consigo
mesmo, cria o que diz, o sujeito é universal em uma situação eterna, não se dirige a nada, mas a todos indiferenciadamente em todos os tempos. Narrativas do Presente
Paul Ricoeur (1994) diz que as narrativas são um meio de
reconfigurar a nossa confusa e difusa experiência temporal. Abre para a nossa discussão uma nova trilha, mais densa e pródiga, que perpassa a questão do tempo. A identidade de um texto narrativo, diz o autor, deve ser buscada no caráter temporal da experiência humana porque qualquer narrativa é sempre um mundo temporal. Narrativas do Presente
11 de setembro de 2001: o exemplo de narrativa com
pluralidade de efeitos de sentidos. O acontecimento midiático é objeto de uma dupla construção: a de uma encenação levada a efeito pela transmissão, a qual revela o olhar e a leitura feita pela instância midiática, e a do leitor-ouvinte-telespectador que a recebe e interpreta. Os efeitos resultantes são múltiplos, ligados à maneira pela qual as encenações visuais, os relatos e os comentários jornalísticos se influenciam mutualmente. Narrativas do Presente 11 de setembro de 2001: Escalada do Jornal Nacional Narrativas do Presente No acontecimento do 11 de setembro, a roteirização televisual é formada por dois tipos de roteiro: os dos filmes catástrofes e os das reportagens que relatam os conflitos, as guerras e as catástrofes naturais. O roteiro do filme catástrofe é formado por uma situação inicial (pessoas vivendo a sua rotina); o surgimento da catástrofe durante a qual são mostradas a explosão destruidora e as reações das pessoas; e os heróis vindos de fora (bombeiros, policiais, exército, autoridades locais e nacionais) que acabam vencendo o perigo e salvando o maior número possível de pessoas. Narrativas do Presente
O roteiro da reportagem se caracteriza pelo anúncio do
desencadear de um conflito; exibição das imagens posteriores ao conflito (é difícil ter câmeras na hora do acontecimento, como ocorreu no 11 de setembro), imagens que se detêm no resultado dos estragos materiais e nas vítimas; a ação de socorro (bombeiros, médicos, policiais). Narrativas do Presente
Esses dois roteiros têm entretanto um ponto em comum: sempre
põem em cena três tipos de atores: as vítimas, os responsáveis e os salvadores. Insistem nas vítimas para produzir efeito de compaixão; no agressor pra produzir efeito de antipatia; e no salvador, para produzir efeito de simpatia. Narrativas do Presente
O acontecimento de 11 de setembro foi relatado utilizando
elementos desses dois tipos de roteiros, com algumas particularidades. A situação inicial, feita de tranquilidade, está ausente. Do ponto de vista das mídias, a ordem do mundo é suposta como anterior à desordem de que devem falar. Narrativas do Presente
O surgimento dos fatos como nos roteiros de filmes foi
filmado ao vivo, de início por acaso, com câmeras de amadores, depois pelas câmeras de profissionais as mídias. As vítimas foram tratadas com as imagens habituais das reportagens: exibição dos feridos e contabilidade do número de mortos e feridos. Narrativas do Presente
Nota-se, no entanto, que não foram vistas vítimas mortas
nem cadáveres, e que foram mostrados poucos corpos sendo transportados com urgência. A CNN declarou não querer “traumatizar o povo americano” e não dar prova de “mau gosto”. Narrativas do Presente
Entrevistas com testemunhas que escaparam da morte: o
testemunho de um sobrevivente sempre produz um efeito de fascinação, pois nos remete ao acaso de nosso próprio destino: por que alguns morrem e outros permanecem vivos? Narrativas do Presente
Quanto aos salvadores, foram mostrados até “enjoar”,
particularmente a intervenção e as entrevistas com o bombeiros, cujo heroísmo foi destacado, assim como a presença no local de personalidades políticas. Por fim, o grande salvador, presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, apareceu na cena midiática, de início com um discurso com tendência de preservar a identidade do povo americano, a integridade e a potência da América, depois sob a figura do vingador conclamando a cruzada e a guerra contra o terrorismo. Narrativas do Presente
A imagem das torres que desabam em 11 de setembro de
2001 não tem apenas uma significação. Essa imagem é dotada de uma forte carga semântica (significado). As imagens simplificadas e fortemente reiteradas acabam por ocupar um lugar nas memórias coletivas, como sintomas de acontecimentos dramáticos. Do conjunto dos relatos e comentários produzidos pelos jornalistas sobre o 11 de setembro, destacam-se duas características: o acontecimento é inexplicável e os atores e as causas são essencializados. Narrativas do Presente
Como numa narrativa fantástica, o suspense se mantém por
não se saber qual é a causa dos acontecimentos nem a mente oculta que lhes deu origem. Essencialização dos pró-americanos e antiamericanos; bem versus mal; Bin Laden versus George W. Bush. Narrativas do Presente
O jornalismo configura narrativas de experimentação ética e
moral, revela-se como via de reconfiguração da cultura contemporânea. Essa reconfiguração se realiza nos atos de leitura das notícias de cada dia quando o leitor, ouvinte ou telespectador criativamente reinterpreta, sob o mesmo fundo cultural do autor, o percurso de representação dos dramas e tragédias do homem moderno. Narrativas do Presente
O receptor das fragmentadas notícias quem vai conectar as
partes, tecer os laços de significação temporal, preencher as lacunas, reconfigurar as indeterminações, articular passado, presente e futuro, montar os atravessados quebra- cabeças das intrigas e significados através de atos criativos de recepção. Narrativas do Presente
Há algo singular no caráter da narrativa jornalística,
além de sua configuração moral. Diferentemente da história, a narrativa jornalística, ainda que utilize predominantemente o pretérito perfeito ou imperfeito em seu discurso, refere-se ao presente, ao momento contemporâneo. Um momento fugaz, fugidio, sempre provisório. O jornalista narra continuamente a história do presente imediato, urna história fugidia, inacabada. Obrigado!