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A AGONIA

Naquela noite
Naquela noite da Ceia, Jesus seguiu com os
Apóstolos (menos o Iscariotes) para as
encostas do monte à vista do Templo, do
outro lado da torrente do Cedrão. Ali havia
uma gruta protegendo um lagar (um
"getsêrnani"), isto é, um espremedor das
azeitonas. Os frutos eram produzidas na
plantação de oliveiras, ali junto. O nome
tradicional desta plantação ficou sendo
"Jardim" ou "Horto das Oliveiras". O Monte
também é chamado "das Oliveiras".
Naquela noite
Os frutos das oliveiras são a fonte do azeite,
aquele· óleo que "alegra o rosto" dos filhos
dos homens (SI 104,15). O azeite era usado
para ungir reis e sacerdotes. Servia também
para aliviar os doentes. As oliveiras daquele
monte ficaram singularmente associadas à
inaudita agonia do seu Criador. Símbolos
para aqueles povos em tomo do mar
Mediterrâneo da bondade e da eternidade
divinas, elas ofereceram ao Senhor Jesus as
suas sombras para acolher a doída oração.
"A distância de um tiro
de pedra"
Jesus saiu do lagar acompanhado do trio
que' preparara para aquele momento,
permitindo-lhes assistir à sua manifestação
gloriosa, a Transfiguração, no Tabor (Mt
17,1-8 pars.; 2Pe 1,16-18): Pedro, João e
Tiago. Pediu-lhes que o acompanhassem na
oração.
"A distância de um tiro
de pedra"
Afastando-se deles "à distância de um tira
de pedra" (Lc 22,41), Jesus começou o seu
combate pessoal, tão profundamente
humano, contra as angústias que afligem e
torturam esta nossa humanidade. Segregou
o pus das dolorosas chagas e doenças que o
pecado e a morte trazem ao ser humano.
"Pavor mortal" "
"Pavor mortal": esta expressão chega a
parecer fraca diante da medonha realidade
da agonia de Jesus. Marcos é sóbrio, mas
incisivo, e nos leva mais próximo do grande
sofredor: "E levando consigo Pedra, Tiago e
João, começou a apavorar-se e angustiar-
se. E disse-lhes: 'A minha alma está triste
até a morte'" (14,33-34).
"Pavor mortal" "
Quem de nós não sentiu em momentos de
infelicidade as tristezas e
angústias do passado reviverem ao contato
com a miséria presente, somando-se ao peso
do futuro que a imaginação faz intolerável e
ameaçador? O simples animal só sente os
males presentes. Quando muito, se
amedronta com o perigo farejado. Nós,
porém, podemos ser vítimas deste terrível
acúmulo de misérias e torturas passadas,
presentes e futuras. Nossa memória, nossa
imaginação e nossa capacidade de previsão
como que se unem contra nós. A opressão se
toma abominável.
"Pavor mortal" "
Muitos sucumbiram nestes momentos,
quando a vida como que perde
toda a beleza, o interesse, o sentido. A
depressão vai se fazendo total.
Chegamos a desejar e até procurar a morte.
O Senhor Jesus mergulhou nestas águas
fundas, onde o ser humano perde o pé e
sente a alma sufocada. Seu mergulho foi
tão autêntico e encarnado que suou
sangue. Lucas, "o caríssimo médico" (Cl
4,4), registra:
"Pavor mortal" "

"Cheio de angústia, orava com mais


insistência ainda, e o suor se lhe tomou
semelhante a espessas gotas de sangue
que caíam por terra." (Lc 22,43)
A oração do Senhor
No meio de sua agonia, com insistência,
Jesus se dirigia ao Pai:

"ABBA! PAPAI! Tudo te é possível para ti:


afasta de mim este cálice' Mas não o que
eu quero, mas o que tu queres!" (Mc
14,36)
A oração do Senhor
"ABBA!"

Mateus (26,39) e Lucas (22,22) não guardaram


o termo aramaico com que Jesus se dirigia ao
Pai, "ABBA!". É um registro próprio de Marcos.
É comovente ver Jesus se dirigindo ao Pai com
a linguagem das crianças de sua gente. Com
efeito, "ABBA!" é o termo usado pelas
crianças. Equivale a "Papai!", "Painho!'', "meu
Pai!", "Paizinho!" ... Quase afundando em
angústia, pois captava em sua carne toda a
carga de mal e perversão que causa a tragédia
humana, Jesus invoca amorosamente a Deus
com toda a intimidade e ternura.
No sofrimento Jesus não esquece
Jesus, que sofre tão cruelmente, não esquece os
seus. O sofrimento não o centra e fecha em si
mesmo, como tantas vezes acontece conosco.
Com efeito, quando sofremos, às vezes nos vemos
no ponto de que a alegria de uma criança nos dói.
Nosso egoísmo nos atraiçoa e chegamos até a
querer que todos se entristeçam conosco. Pelo
contrário, embora todo dor e sensibilidade, Jesus
nos tem presentes em seu coração. Deseja-nos
unidos a si na oração, mesmo se adormecemos
"de tristeza", cansaço e fraqueza. Várias vezes, o
Mestre se ergue
de sua profunda prostração por terra, e nos alerta:

"Vigiai e orai, para não cairdes em tentação."


A Igreja primitiva medita a
agonia do horto
O abatimento profundo de Jesus, a sua espantosa
agonia mortal, tão intensa que repercutiu no seu
corpo, calaram no coração da Igreja primitiva. Na
Carta aos Hebreus, um discípulo dos primeiros
tempos mostra ter muito presente a agonia do
Salvador:
"Convinha, portanto, que Ele se tornasse
semelhante aos irmãos, para
ser, em relação a Deus, um sumo sacerdote
misericordioso e fiel, para expias
assim os pecados do povo. Pois, tendo ele mesmo
sofrido pela tentação, é capaz
de socorrer os que são tentados"
(Hb 2,17-18).
A Igreja primitiva medita a
agonia do horto
Por esta tremenda experiência de
solidariedade conosco, o Emanuel (o
"Deus-conosco") firma a nossa fé em meio
às contradições e dores desta nossa
existência terrena:

"Com efeito, não temos um sumo


sacerdote (Jesus) incapaz de se
compadecer das nossas fraquezas, pois ele
mesmo foi provado em tudo como nós,
exceto no pecado" (Hb 4,15).
A Igreja primitiva medita a
agonia do horto
Assim Cristo Jesus viveu a solidariedade
conosco, seus irmãos de eleição, nos nossos
piores momentos, naqueles mesmos em
que nos parece que a vida perdeu o valor e
que morremos. Sua presença no sofrimento
e na adversidade nos inspira ânimo
confiante e uma doce aragem de esperança:
"Aproximemo-nos, então, com confiança,
do trono da graça para
conseguirmos misericórdia e alcançarmos
graça como ajuda oportuna"
(Hb 4,16).
A Igreja primitiva medita a
agonia do horto
Pois, na verdade,
"é (o Cristo) quem, nos dias de sua vida
terrestre, apresentou pedidos e
súplicas, com veemente clamor e lágrimas,
aquele que o podia salvar da morte;
e foi atendido por causa de sua submissão.
Embora fosse o Filho, aprendeu,
contudo, a obediência pelo sofrimento.
Levado à perfeição, tornou-se para todos
os que lhe obedecem o princípio da salvação
eterna, tendo recebido de Deus o título
de sumo-sacerdote, segundo a ordem de
Melquisedec" (Hb 5,7 -1 O).
"Foi atendido" e "obediência"

Duas expressões causam estranheza no


texto de Hebreus que acabamos de citar:
"foi atendido" e "obediência". Com efeito,
como "foi atendido" se o cálice de
amargura não lhe foi poupado? E este
aprendizado da "obediência pelo
sofrimento" não toma horrenda a face do
ABBA, Paizinho?
"Foi atendido" e "obediência"
Ora, obediência é uma escuta profundíssima, uma
sintonia de vontade. O Pai se despoja do seu Único,
do Filho amado, no qual Ele põe toda a sua alegria
e complacência, Ele se esvazia do seu Verbo Eterno,
de sua Efígie perfeita, Imagem absoluta. O Filho,
por sua vez, "se despoja da condição divina e
assume a condição humana, a condição de
escravo" (FI 2,5-11). Este despojar-se só se entende
com os olhos fixos num amor que se abaixa, um
amor que ama o que nos parece "miserável", um
amor "misericordioso". O Espírito Santo também se
abaixa, descendo sobre nós, sendo derramado pelo
Pai sobre nós. Logo, a Trindade não é soberba, mas,
como resplandece no Filho, Jesus, "mansa e
humilde de coração" (Mt 11,29).
"Foi atendido" e "obediência"
Ora, há uma obediência perfeitíssima, uma
sintonia fina, uma vontade em absoluta
harmonia entre o Filho e o Pai. Assim, ambos
decidem atravessar "o vale das sombras da
morte" (SI 23,4). Por isso, decidem mergulhar
no abismo de amarguras e dores onde o
pecado nos lança para ir executar nosso
resgate. Em consequência, Jesus trouxe a
presença iluminante de seu amor solidário,
indefectível, inaudito, amor que é dom
absoluto do Pai, a todas aquelas situações
das quais nossa angustiante vivência diz que
não há nem saída nem recuperação. Neste
Espírito, Jesus passou pela Agonia.
"Foi atendido" e "obediência"
Fica, assim, evidente na Fé que Jesus foi
ouvido e atendido. Ele obedeceu, isto é, ele
ouviu e atendeu o Pai em nosso favor. Por
isso, o cálice amaríssimo não é retirado.
Cumpre-se a vontade do Pai, que quer nos
salvar das profundezas onde nos enfiamos,
quando fugimos de Sua bondade e dela
desconfiamos, evitando o bem, fazendo o
mal. A "vontade de salvação" (1 Ts 4,3) se
realiza, como o próprio Coração de Cristo
sempre quis que sucedesse:
"O Filho do Homem veio procurar e salvar
o que se tinha perdido" (Le 15,10).
Por causa dos perdidos
Deste modo, Jesus se levanta de sua oração prostrada,
rosto por terra, para cumprir a vontade do Pai e a sua
mesma vontade. Nele é a nossa Humanidade que se ergue
livre e libertada. O inaudito é que Jesus se levanta por nós,
pela multidão indiferente. Ele se levantou por quem estava
perdido. E o que é mais espantoso ainda: Jesus se teria
erguido mesmo que só por MIM, mesmo que eu fosse o
único perdido de toda a história humana (Mt 18,12-14):

"Que vos parece? Se alguém possui cem ovelhas e UMA


delas se extravia, ele não deixa as noventa e nove nos
montes e vai à procura da extraviada? Se consegue achá-
la, em verdade eu vos digo, terá maior alegria com ela do
que com as noventa e nove que não se extraviaram.
Assim, também, não é da vontade do Pai que está nos
céus que um só destes pequeninos se perca".
O traidor e a prisão

Logo ficou evidente o ânimo corajoso e generoso com


que Jesus se levanta para começar a sua paixão,
reconfortado pelo seu "Abba'' (Mc 14,41-42). Não se
levantou para fugir dos que chegam para prendê-lo.
Disse:

"Basta! A hora chegou! Eis que o Filho do Homem


está sendo entregue às mãos dos pecadores.
Levantai-vos! Vamos' O traidor está chegando!"
O traidor e a prisão
Jesus, para a glória do Pai e nossa Salvação, decidiu-se
entrar e conquistar os aterrorizantes domínios que a
traição, a injustiça, a tortura e a morte pensam serem
exclusivamente seus. Jesus foi entregue e se entregou
para vencer nos domínios do mal e da perversidade,
de onde facilmente pensamos que Deus está excluído.

Chegados os guardas, o Senhor se deixou beijar pelo lscariotes. Chamou-o


"amigo" e lhe disse mansamente, apelando ao bem original que marca o
coração humano mais profundamente do que o pecado original (Lc 22,48):
"Judas, com um beijo entregas o Filho do Homem?"
O traidor e a prisão
No entanto, a traição dói. Mesmo perdoada, será
sempre uma coisa horrível. Mesmo tendo perdão, é
uma coisa tão medonha, faz sofrer tanto quando vem
de um amigo e companheiro que Jesus, tendo-a
previsto, comentara (Mt 26,24):

"Melhor seria que ele não tivesse nascido!"


O traidor e a prisão
Muitos têm ouvido esta palavra como se Jesus tivesse
lhe dado uma entonação ameaçadora, rancorosa e
vingativa. Outros o entendem como uma lamentação,
um sentido de apelo, uma tentativa de despertar a
sensibilidade do Apóstolo para o bem. Os que o
escutam com esta ressonância de misericórdia
certamente se alegram observando o lscariotes jogar
fora o dinheiro da traição aos pés dos seus corruptores
(Mt 27,3-5).
Seu mesmo suicídio não nos tira a esperança, pois todos sabemos que a violenta
comoção isenta de responsabilidade. Devemos pensar, além disso, que o suicídio não
era desaprovado pelos antigos como o é para nós, cristãos, em consequência da
meditação da fé na Igreja de Deus.
A prisão
Defrontando os que o vinham prender, Jesus
comentou:
 
"Como a um ladrão, saístes para prender-me
com espadas e paus! No entanto, estive
convosco no Templo, ensinando todos os dias,
e não me prendestes" (Mc 14,46).

"Então, abandonando-o, fugiram todos" (Mc 14,50).


O traidor e a prisão
João apresenta Jesus, nesta hora, enfrentando a crise
com a mesma serenidade que transparece dos
contidos relatos de Marcos, Mateus e Lucas.
Acrescenta, contudo, o que Jesus perguntou a seus
perseguidores (]o 18,4-7):

"A quem procurais?"


Os guardas responderam:
"A Jesus de Nazaré",
Ele disse:
"Eu sou!"
A hora
Seja como for, os que o prenderam deviam estar
pensando que tinha chegado a hora de dar um fim "a
tudo aquilo". Na verdade, porém, tinha chegado a
Hora em que tudo começava:

"Eis que chega a Hora - e ela chegou - em que vos dispersareis, cada
um para o seu lado, e me deixareis sozinho. Mas eu não estou só, porque o
Pai está comigo. Eu vos disse tais coisas para terdes paz em mim. No mundo
tereis tribulações, mas tende coragem: eu venci o mundo.
Pai, chegou a Hora. Glorifica o teu Filho, para que o teu Filho te glorifique" (Jo 16,32-17,1).
 
A hora
Desta Hora ele tinha falado, desejando-a e fazendo com
que fosse
desejada, junto do poço de Jacó, à mulher samaritana:
"Mas vem a Hora - e é agora - em que os verdadeiro
adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade"
(Jo 4,23).

Esta era a Hora pela qual seu Coração autenticamente humano, mesmo que totalmente
divino (ou antes porque tão absolutamente divino), tinha ansiado, embora temido:
"Minha alma está agora perturbada. Que direi? Pai, salva-me desta Hora?
Mas foi precisamente para esta Hora que eu vim! Pai, glorifica o teu Nome!"
(Jo 12,27-28) 
A hora
Nem para João nem para nenhum fiel há dúvidas de que
o Pai, nesta Hora, aceitou a oferta do Filho para o seu
mortal embate contra o pior de nossa malícia, contra o
mais terrível de nossa capacidade de desencadear o mal
até sobre os inocentes, quando não nos restam sequer as
tristes e esfarrapadas desculpas da vingança ou da
"justiça":
"Veio, então, uma Voz do céu: 'Eu o glorifiquei e o
glorificarei novamente!'" (Jo 12,28)

Por isso tudo, resplandecente do suor da sua sanguinolenta agonia à luz vacilante das
tochas dos guardas, Jesus entrou na sua Hora, aceitou o beijo do traidor e deixou-se
conduzir à presença dos Sumos Sacerdotes como um malfeitor.

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