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A(S) POESIA(S) DE

FERNANDO PESSOA

Prof. Dr. Hermano de França Rodrigues


Teoria da Literatura
Alberto Caeiro - I Eu nunca guardei rebanhos
Eu nunca guardei rebanhos, Como ruido dos chocalhos
Mas é como se os guardasse. Para além da curva da estrada,
Minha alma é como um pastor, Os meus pensamentos são contentes.
Conhece o vento e o Sol Só tenho pena de saber que eles são contentes,
E anda pela mão das Estações Porque, se o não soubesse,
A seguir e a olhar. Em vez de serem contentes e tristes,
Toda a paz da natureza sem gente Seriam alegres e contentes.
Vem sentar-se a meu lado.
Mas fico triste como um pôr do sol Pensar incomoda como o andar à chuva
Para a nossa imaginação, Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Quando esfria no fundo da planície Não tenho ambições nem desejos.
E sente a noite entrada Ser poeta não é uma ambição minha.
Como uma borboleta pela janela. É a minha maneira de estar sozinho.
Mas minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Alberto Caeiro – O pastor amoroso VII
Talvez quem vê bem não sirva para sentir
E não agrade por estar muito antes das maneiras.
É preciso ter modos para todas as cousas,
E cada cousa tem o seu modo, e o amor também.
Quem tem o modo de ver os campos pelas ervas
Não deve ter a cegueira que faz fazer sentir.
Amei, e não fui amado, o que só vi no fim,
Porque não se é amado como se nasce mas como acontece.
Ela continua tão bonita de cabelo e boca como dantes,
E eu continuo como era dantes, sozinho no campo.
Como se tivesse estado de cabeça baixa,
Penso isto, e fico de cabeça alta
E o dourado do sol seca as lágrimas pequenas que não posso deixar de ter.
Como o campo é grande e o amor pequeno!
Olho, e esqueço, como o mundo enterra e as árvores se despem.
Eu não sei falar porque estou a sentir.
Estou a escutar a minha voz como se fosse de outra pessoa,
E a minha voz fala dela como se ela é que falasse.
Tem o cabelo de um louro amarelo de trigo ao sol claro,
E a boca quando fala diz cousas que não há nas palavras.
Sorri, e os dentes são limpos como pedras do rio.
Ricardo Reis - Nada Fica
Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.

Leis feitas, estátuas vistas, odes findas —


Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.
Ricardo Reis – Tenho mais almas que uma
Vivem em nós inúmeros;  Os impulsos cruzados 
Se penso ou sinto, ignoro  Do que sinto ou não sinto 
Disputam em quem sou. 
Quem é que pensa ou sente. 
Ignoro-os. Nada ditam 
Sou somente o lugar  A quem me sei: eu 'screvo. 
Onde se sente ou pensa. 

Tenho mais almas que uma. 


Há mais eus do que eu mesmo. 
Existo todavia 
Indiferente a todos. 
Faço-os calar: eu falo. 
Álvaro de Campos – Lisboa revisitada

Nada me prende a nada. Compreendo a intervalos desconexos;


Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo. Escrevo por lapsos de cansaço;
Anseio com uma angústia de fome de carne E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.
O que não sei que seja - Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Definidamente pelo indefinido... Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago;
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar. Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias. Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua. (E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Não há na travessa achada o número da porta que me deram. Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido. Fogem desmantelados, últimos restos
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota. Da ilusão final,
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados. Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
Até a vida só desejada me farta - até essa vida... As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus.

[...]
Álvaro de Campos – Lisboa revisitada
[...]
Outra vez te revejo, Outra vez te revejo,
Cidade da minha infãncia pavorosamente perdida... Sombra que passa através das sombras, e brilha
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui... Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei, Na água que deixa de se ouvir...
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar? Outra vez te revejo,
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram, Mas, ai, a mim não me revejo!
Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória, Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim? E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -
Um bocado de ti e de mim!...
Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.
Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...
Fernando Pessoa – Tudo quanto penso
Tudo quanto penso,
Tudo quanto sou
É um deserto imenso
Onde nem eu estou.

Extensão parada
Sem nada a estar ali,
Areia peneirada
Vou dar-lhe a ferroada
Da vida que vivi.
Fernando Pessoa – Não sei quantas almas tenho
Não sei quantas almas tenho. Por isso, alheio, vou lendo
Cada momento mudei. Como páginas, meu ser.
Continuamente me estranho. O que sogue não prevendo,
Nunca me vi nem acabei. O que passou a esquecer.
De tanto ser, só tenho alma. Noto à margem do que li
Quem tem alma não tem calma. O que julguei que senti.
Quem vê é só o que vê, Releio e digo: "Fui eu ?"
Quem sente não é quem é, Deus sabe, porque o escreveu.

Atento ao que sou e vejo,


Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

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