FERNANDO PESSOA
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Álvaro de Campos – Lisboa revisitada
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Outra vez te revejo, Outra vez te revejo,
Cidade da minha infãncia pavorosamente perdida... Sombra que passa através das sombras, e brilha
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui... Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei, Na água que deixa de se ouvir...
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar? Outra vez te revejo,
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram, Mas, ai, a mim não me revejo!
Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória, Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim? E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -
Um bocado de ti e de mim!...
Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.
Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...
Fernando Pessoa – Tudo quanto penso
Tudo quanto penso,
Tudo quanto sou
É um deserto imenso
Onde nem eu estou.
Extensão parada
Sem nada a estar ali,
Areia peneirada
Vou dar-lhe a ferroada
Da vida que vivi.
Fernando Pessoa – Não sei quantas almas tenho
Não sei quantas almas tenho. Por isso, alheio, vou lendo
Cada momento mudei. Como páginas, meu ser.
Continuamente me estranho. O que sogue não prevendo,
Nunca me vi nem acabei. O que passou a esquecer.
De tanto ser, só tenho alma. Noto à margem do que li
Quem tem alma não tem calma. O que julguei que senti.
Quem vê é só o que vê, Releio e digo: "Fui eu ?"
Quem sente não é quem é, Deus sabe, porque o escreveu.