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Os fundamentos filosóficos

da geografia científica
Paulo Cesar da Costa Gomes
“Atribuir a emergência da geografia científica, logo moderna,
às obras de C. Ritter [07/08/1779 – 28/09/1859] e de A.
Humboldt [14/09/1769 – 06/05/1859], não deve colocar em
dúvida o papel e a importância do saber geográfico
anteriormente produzido.
Percebe-se, aliás, que o discurso da geografia científica se
nutriu em grande parte destas fontes temáticas e
metodológicas. Assim, uma das primeiras tarefas da geografia
moderna foi a reatualização destes conhecimentos, ajustando-
os às exigências do discurso científico.” (p. 127)
“As cosmografias estão, pois, na origem da tradição que define
simultaneamente a escolha temática e confere uma
metodologia geral à geográfica. Estas duas preocupações
faziam parte do plano fundamental das cosmografias e
sobreviveram na geografia científica. Foi através delas que a
geografia considerou que era sua a tarefa de produzir imagens
do mundo, de compreender sua organização e de decifrar sua
ordem; em suma, de veicular uma cosmovisão.” (p. 129)
“A análise do passado é, sem dúvida, influenciada pela
percepção dos temas que nos são atuais e que somos sempre
tentados a justificar pelo recurso à História. Assim, a distinção
entre uma tradição matemático-geral, atribuída a Ptolomeu, e
uma [p. 131] tradição histórico-decisiva, devida a Estrabão,
está certamente relacionada ao desenvolvimento ulterior da
geografia e à sua percepção atual.
O fato de que essas duas tradições sejam claramente
identificadas e sublinhadas permite pensar que a geografia
moderna se propõe a ser a união dessas duas tendências.
É certo que um dos objetivos de base dos geógrafos do
fim do séc. XIX consistia em unificar em um só campo
científico todas as tradições que eles herdaram. O objeto
científico homem-meio tornou possível o
estabelecimento de relações de valor geral, conservando
a importância das descrições regionais particulares.
Estas duas condutas eram então vistas como uma
análise em dois níveis complementares.” (p. 130-131)
Os fundamentos filosóficos e os
antecedentes de uma geografia científica
“Segundo L. Fèbvre [22/07/1878 – 11/09/1956], por exemplo,
há uma continuidade entre as perspectivas de Montesquieu e as
de Ratzel [30/08/1844 – 09/08/1904], pois ambos se
propuseram a estabelecer leis gerais para compreender as
relações homem-meio. A Montesquieu se aplica o título de
fundador de um novo determinismo geográfico, antes mesmo
que [p. 134] se possa falar de uma disciplina científica.
O mais interessante a este respeito é a interpretação de
Fèbvre, que estabelece uma oposição entre Montesquieu
e Buffon [07/09/1707 – 16/04/1788] em termos
análogos àquela, que ele propõe, entre Ratzel e Vidal de
La Blache. Para Fèbvre, Buffon representa o ponto de
vista “moderno” da geografia, que considera o homem
como um agente transformador da natureza.” (p. 133-
134)
“Da mesma forma, Gusdorf [1912 – 17/10/2000] nos apresenta
os ideólogos Volney e Ramond como exemplos de um
humanismo persistente, pontuando seus discursos de
comentários analíticos, sem, no entanto, se deixar influenciar
pelos apelos da ciência racionalista definida, em seus traços
gerais, por Lamarck [01/08/1744 – 18/12/1829] e Condorcet
[17/09/1743 – 29/03/1794]. Ele acrescenta que, sem o saber,
Vidal de La Blache teria tido precursores na École Normale
através das figuras de Volney e de Buache.” (p. 137)
A dupla filiação filosófica fundadora: Kant
e Herder
“Em sua tese, May examina o tema da herança kantiana no pensamento
geográfico. Ele nos convida primeiro a recolocar o vocabulário de Kant dentro
do contexto da época. Isso nos leva a ver que o empirismo, a natureza, a
antropologia e mesmo a geografia tinham então acepções sensivelmente
diferentes daquelas empregadas hoje.
A ciência empírica se referia somente a uma primazia da experiência, sem, no
entanto, recusar a utilização de conceitos e categorias advindas do raciocínio.
A explicação científica concerne sempre à razão pura e por este motivo a
conduta das ciências empíricas é similar àquela das ciências teóricas.” (p. 139)
“No caso das ciências empíricas, a intuição provém do contato entre sujeito e objeto
real. O “encontro fenomenal” é guiado por intermédio de representações e a questão
sobre a verdade última das coisas é tautológica, pois só dispomos de representações,
os objetos sendo sempre objetos para mim.
O espaço e o tempo são as únicas intuições puras, a priori. Contudo, a geografia não
pode ser simplesmente definida pela intuição pura do espaço. Com efeito, ela busca
estabelecer relações espaciais entre diversos fenômenos apreendidos através de
experiências, as quais são guiadas por conceitos logicamente arranjados no
pensamento.
Desta maneira, a geografia, a exemplo das outras ciências, procede a partir das
ligações que faz entre as representações “seguindo certas re [p. 142] gras” lógicas.
Em outros termos, o pensamento científico, segundo Kant, é sempre um julgamento
construído por uma conduta lógica.” (p. 141-142)
“A despeito da importância desta leitura sobre a
influência de Kant, é legítimo afirmar que a herança
filosófica da geografia se resume a esta concepção?
Parece que não, e a mediação de Herder [25/08/1844 –
18/12/1803] foi sem dúvida capital. Mesmo se sua obra
é muito menos conhecida do que a de Kant, Herder tem
uma enorme importância para a História das Ideias
enquanto figura central da hermenêutica moderna e da
ciência romântica.
Ele seguiu o curso de “geografia física” de Kant e, a partir de
suas anotações, publicou uma síntese largamente difundida na
época, ainda que essa síntese não tenha sido, ao que parece,
inteiramente aprovada por Kant. Aliás, todos os comentadores
que se debruçaram sobre a vida desses dois personagens
destacam unanimemente a ambiguidade e o conflito que
caracterizavam suas relações recíprocas.” (p. 143)
“O caráter atual do pensamento de Herder é reconhecido, por
exemplo, por L. Dumont. Este último vê aí uma das vertentes
fundamentais da ideologia moderna.
Segundo ele, a originalidade de Herder reside em sua concepção de
conjuntos culturais em que se misturam o antigo e o novo, fazendo
aparecer, assim, todo o leque de possibilidades no fluxo da História. É
inegável que a obra de Herder apresenta um interesse certo para o
pensamento geográfico.
Os pontos de vista que ele sustenta são opostos à ciência de filiação
kantiana e sugerem uma outra via para a investigação científica. Uma
via que será efetivamente retomada ulteriormente na geografia.” (p.
147)

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