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Antiguidade e Idade Média:

definições e problemas sobre a


música

Lia Tomás © – UNESP- Instituto de Artes, São Paulo


PLATÃO (República, 475 C-E, 476 A-B.)
O filósofo com relação aos amantes de espetáculos e
da música

[Sócrates]Ora daquele que tem aversão às ciências, sobretudo sendo jovem, e ainda sem discernimento
para saber o que é bom e o que não é, não diremos que gosta da ciência nem da filosofia; tal como
daquele que tem aversão à comida, não diremos que tem fome, nem que está desejoso de alimento, nem
que é comilão, mas que está sem apetite ! (...) Mas àquele que deseja prontamente provar de todas as
ciências e se atira ao estudo com prazer e sem se saciar, a esse chamaremos com justiça filósofo, ou
não?

E Gláucon respondeu - Então vais ter muitos filósofos desses, e bem estranhos. Realmente, parece-me
que todos os amadores de espetáculos, uma vez que têm prazer em aprender, são desse número; e há
os amadores de audições, que são os mais difíceis de agrupar entre os filósofos, que não quereriam, de
boa vontade, vir ouvir uma discussão e uma conversa como esta, mas que andam por toda parte, como
se tivessem alugado os ouvidos para escutar todos os coros nas Dionísias sem deixar de ir, quer às
Urbanas, quer às Rurais. A todos estes, portanto, e a outros que se dedicam a aprender tais coisas e
artes de pouca monta, havemos de chamar-lhe de filósofos?
[S]- De modo algum, respondi eu, mas aparências de filósofos.
[G]- E a quais é que chamas verdadeiros?
[S]- Aos amadores do espetáculo da verdade, respondi eu.
(...)

[Sócrates]: É nesse ponto que estabeleço a distinção: para um lado os que ainda agora referiste –
amadores de espetáculos, amigos das artes e homens de ação – e para outro aqueles de quem estamos a
tratar, os únicos que com razão podem chamar-se filósofos (...). Os amadores de audições e de
espetáculos encantam-se com as belas vozes, cores e formas e todas as obras feitas com tais elementos,
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embora o seu espírito seja incapaz de discernir e de amar a natureza do belo em si”.
PLATÃO - Górgias (501 A-B, 501 D)
Música como techné

[Sócrates] – “Penso que a culinária não é uma arte, mas um savoir-faire; não é o caso da medicina.
Com efeito a primeira, a medicina, considerou a natureza do objeto o qual ela dá sua assistência e a
causa que determina sua própria ação; ela pode justificar cada um de seus procedimentos. Com
relação à outra, aquela que tem o prazer como objeto e lhe oferece exclusivamente toda a sua
assistência, minha palavra! ela vai por instinto, sem examinar o todo, nem a natureza do prazer, nem
a causa; de um modo completamente irracional, sem ter a contra exata, por assim dizer, da razão;
apenas a rotina e a experiência podem salvaguardar a lembrança daquilo que ela costumeiramente
produz, graças a qual ela procura o prazer”
(...)

[Sócrates] – “Comecemos nosso exame pela ocupação que consiste em tocar a flauta. Não te parece,
amigo Cálicles, que é algo assim, que persegue unicamente nosso prazer e não considera nenhuma
outra coisa? (...) E o mesmo ocorre com todas que são assim, como por exemplo, com as audições
de cítara nos concursos? (...) E o que me dizes dos ensaios dos coros e da poesia ditirâmbica, não te
parece que ocorre o mesmo?”

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PLATÃO - Fédon, 60E-61 A (Música como sophia)

[Sócrates]: “Várias vezes no curso de minha vida, fui visitado por um mesmo sonho; não era através da
mesma visão que ele sempre se manifestava, mas o que me dizia era invariável: “Sócrates”, dizia-me ele,
“deves esforçar-te para compor música”!. E, palavra ! sempre entendi que o sonho me exortava e me
incitava a fazer o que justamente fiz em minha vida passada. Assim como se animam corredores, também
pensava eu, o sonho está a incitar-me para que eu preserve na minha ação, que é compor música: haverá,
com efeito, mais alta música do que a filosofia e não é justamente isso o que faço?”

Banquete, 215 C (Música como sophia)

[Alcibíades]: “Mas não és flautista? Sim ! E muito mais maravilhoso que o sátiro. Este, pelo
menos, era através de instrumentos que, com o poder de sua boca, encantava os homens
como ainda agora o que toca as suas melodias – pois as que Olimpo tocava são de Mársias,
digo eu, por este ensinadas – as dele então, quer as toque um bom flautista, quer uma
flautista ordinária, são as únicas que nos fazem possessos e revelam os que sentem falta
dos deuses e das iniciações, porque são divinas. Tu porém dele diferes apenas nesse
pequeno ponto, que sem instrumentos, com simples palavras fazes o mesmo”.
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Texto do Papiro de Hibeh (séc. IV a. C.

“Muitas vezes fiquei surpreso, ó cidadãos, com as construções de certas pessoas que não pertencem às
atividades de [vossa área de competência], sem que vocês percebam. Em suas próprias palavras, elas se
definem como ‘harmonistas’[1]; e julgam [várias canções] e confrontam umas às outras, condenam
algumas, aleatoriamente, e sem razão, elogiam outras. (...). Elas também dizem que algumas melodias
fazem as pessoas disciplinadas, outras prudentes, outras justas, outras valorosas ou covardes, não
compreendendo que o gênero cromático não pode tornar covarde, nem o enarmônico valoroso a quem o
emprega em sua música. (...) Com relação a chamada ‘harmônica’, a qual dizem ter bom conhecimento,
elas não têm nada a dizer, mas deixam-se embargar pelo entusiasmo: e acompanham erroneamente o
ritmo, batendo no banco no qual se sentam, simultaneamente ao som do psalterion[2]. Elas não hesitam
em declarar abertamente que certas melodias possuem uma função [peculiarmente característica] de
louro, outras de hera[3]...”

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CLEMENTE DE ALEXANDRIA (150-220)
EXORTAÇÃO AOS GREGOS

“Segundo meu juízo, nosso trácio Orfeu e também o cantor de Tebas e de Metimna
não são dignos do apelativo “homem” porque são uns enganadores. Com o
pretexto da música ultrajaram a vida humana, pois empurrados pelo demônio,
mediante hábil bruxaria, levaram o homem à ruína. Eles são os primeiros que
induzem à idolatria, ao louvar a morte violenta em seus ritos religiosos e conduzir o
homem à adoração de lendas dolorosas (...) Com seus cantos e seus
encantamentos mantiveram em cativeiro e na mais abjeta escravidão, todos
aqueles que, cidadãos do céu, poderiam ter possuído a verdadeira e nobre
liberdade. Porém, quão diverso é meu trovador; ele veio para por fim a esta
amarga escravidão do demônio que reina sobre nós!”

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CLEMENTE DE ALEXANDRIA (150-220)
EXORTAÇÃO AOS GREGOS

“Observa quão potente é o novo canto! Todos aqueles que, ao contrário, teriam
morrido, todos aqueles que não tinham nenhum contato com a verdadeira e
autêntica vida, revivem apenas ao escutar o novo canto. Ademais, é precisamente
este canto o que deu lugar à criação inteira em uma ordem melodiosa e, ao mesmo
tempo, acordou os elementos discordantes, de forma que o universo inteiro pode
estar em harmonia com ele”.

“Por acaso existe algo mais elevado que este puro canto, morada do universo e
harmonia de todas as coisas, que se propaga desde o centro à circunferência e
desde os limites extremos ao centro?”

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SANTO AGOSTINHO
354-430

De musica, livro I, II, 2.:


“Música é a ciência do bem medir”

(Confissões, Livro X, 33):


“Os prazeres do ouvido prendem-me e subjugam-me com mais tenacidade. Mas
Vós me desligastes deles, libertando-me. Confesso que ainda agora encontro algum
descanso nos cânticos que as Vossas palavras vivificam, quando são entoadas com
suavidade e arte. Não digo que fique preso por eles. Mas custa-me deixá-los
quando quero. (...)

Às vezes, parece-me que lhes tributo mais honra do que a conveniente. Quando
ouço cantar essas Vossas santas palavras com mais piedade e ardor, sinto que o
meu espírito também vibra com devoção mais religiosa e ardente do que se fossem
cantadas de outro modo. Sinto que todos os afetos da minha alma encontram na
voz e no canto, segundo a diversidade de cada um, as suas próprias modulações,
vibrando em razão de um parentesco oculto, para mim desconhecido, que entre
eles existe.
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SANTO AGOSTINHO
354-430

Mas o deleite da minha carne, ao qual não se deve dar licença de enervar a alma,
engana-me muitas vezes. Os sentidos, não querendo colocar-se humildemente
atrás da razão, negam-se a acompanhá-la. Só porque, graças à razão, mereceram
ser admitidos, já se esforçam por precedê-la e arrastá-la! Deste modo peco sem
consentimento, mas advirto depois.

Outras vezes, preocupando-me imoderadamente com este embuste, peco por


demasiada severidade. Uso às vezes de tanto rigor, que desejaria desterrar dos
meus ouvidos e da própria Igreja todas as melodias dos suaves cânticos que
ordinariamente costumam acompanhar o saltério de Davi. Nestas ocasiões,
parece-me que o mais seguro é seguir o costume de Atanásio, Bispo de
Alexandria. Recordo-me de muitas vezes me terem dito que aquele Prelado
obrigava o leitor a recitar os Salmos com tão diminuta inflexão de voz que mais
parecia um leitor que um cantor. (...)

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SANTO AGOSTINHO
354-430

Assim flutuo entre o perigo e o prazer e os salutares efeitos que a experiência nos
mostra. Portanto, sem proferir uma sentença irrevogável, inclino-me a aprovar o
costume de cantar na igreja, para que, pelos deleites do ouvido, o espírito,
demasiado fraco, se eleve até aos afetos de piedade. Quando, às vezes, a música
me sensibiliza mais do que as letras que se cantam, confesso com dor que pequei.
Neste caso, por castigo, preferiria não ouvir cantar. Eis em que estado me
encontro.”

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SANTO AGOSTINHO
354-430

De Musica, L.I, III,4

“A música é a ciência do movimento ordenado. E pode-se dizer, sem dúvida, que


os movimentos são regulares quando se observa com arte a medida dos tempos e
das pausas:(com efeito, deleitam e por esta razão se pode denominar modulação
sem inconveniente algum); mas pode ocorrer, por outro lado, que estas cadências
e compassos agradem à contratempo, quando uma voz charmosa e uma
dançarina graciosa procuram provocar uma alegria foliã, quando a circunstância
exige gravidade? Se abusa, então, de uma modulação perfeita, em outros termos,
de um movimento que era excelente, enquanto medida, faz-se um mal uso porque
o emprega contra as conveniências. Portanto, há uma diferença profunda entre
modular e bem modular. A modulação é própria de todos os cantores desde que
não se equivoquem na medida natural das palavras e dos sons; mas a boa
modulação pertence apenas a esta disciplina liberal que nós denominamos
Música.”
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BOÉCIO (480-524)
DE INSTITUTIONE MUSICA, LIVRO I, 2

Existem três músicas; a influência da música

Portanto, parece que, por agora, deve-se dizer isto àquele que examina a música:
quantos tipos de música descritos pelos estudiosos podemos descobrir. São três: a
primeira, a cósmica; a segunda, a humana; a terceira, a produzida por certos
instrumentos, como a cítara, o aulos e outros que acompanham as canções.

Em primeiro lugar, a cósmica é perceptível sobretudo pelo que é visto no próprio


céu, ou na combinação dos elementos, ou na sucessão de estações, pois como é
possível que uma máquina tão veloz como a do céu se mova em uma trajetória
muda e silenciosa? Ainda que seu som não chegue aos nossos ouvidos, porque por
muitas causas é necessário que assim seja, não é possível, contudo, que um
movimento tão veloz de corpos assim volumosos não produza absolutamente
nenhum som, principalmente porque os cursos das estrelas estão ajustados em uma
harmonia tão grande, que nada tão perfeitamente unido, nada tão perfeitamente
ajustado pode ser concebido (...). 12

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BOÉCIO (480-524)
DE INSTITUTIONE MUSICA, LIVRO I, 2

Qualquer um que entre dentro de si mesmo percebe a música humana. De fato,


o que é que mistura ao corpo essa incorpórea vivacidade da razão, senão uma
certa coerência e uma espécie de equilíbrio de sons graves e agudos que
produzem como que uma única consonância? Que outra coisa poderá ser o que
une entre si as partes da própria alma que, de acordo com Aristóteles, é
constituída pelo racional e pelo irracional? Que outra coisa poderá ser o que
combina os elementos do corpo ou mantém unidas suas partes com uma ligação
firme? Mas sobre esta também falarei depois.

A terceira é a música que, segundo se diz, apóia-se em certos instrumentos.


Esta é produzida por tensão, como nas cordas, ou pelo sopro, como no aulos ou
nos instrumentos que se ativam hidraulicamente, ou pela percussão, como os
instrumentos que recebem os golpes nas câmaras de ar, e dessa forma se
produzem sons diversos. Sobre a música instrumental, creio que devemos
discutir na primeira parte desta obra. Mas isso já é suficiente para um
preâmbulo. Agora é preciso dissertar sobre os próprios princípios musicais.
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BOÉCIO (480-524)
DE INSTITUTIONE MUSICA, LIVRO I, 2

Agora se deve considerar que toda arte e toda disciplina têm a razão como
naturalmente mais honrável do que a habilidade, porque esta última é praticada
pela mão e pela obra dos artífices. É muito melhor e mais nobre saber o que
faz cada um do que executar com as próprias mãos o que alguém sabe. Assim,
as habilidades corporais servem como um escravo, enquanto a razão domina
como senhor. A não ser que a mão opere de acordo com o que a razão
determina, agirá em vão.

Quão mais grandiosa é a ciência musical, o conhecimento da razão, do que a


composição e a performance! Evidentemente, tanto quanto o corpo é superado
pela mente. Alguém privado da razão permanece na servidão. A razão impera e
conduz ao caminho reto. A não ser que o corpo obedeça à autoridade, a obra
privada de razão vacilará.
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BOÉCIO (480-524)
DE INSTITUTIONE MUSICA, LIVRO I, 2

Daí decorre que a especulação racional não depende do ato de fazer. De fato,
nenhuma obra das mãos existiria se não fosse guiada pela razão. É possível
entender quão grandes são o mérito e a glória da razão a partir do fato de que os
outros artífices, por assim dizer, de habilidades físicas, tomam seus nomes não da
disciplina, mas dos seus próprios instrumentos. Então o citarista toma seu nome
da cítara, o auletés do aulos, e os outros são chamados com os nomes dos seus
instrumentos. Pelo contrário, é músico aquele que recebe para si a ciência do
canto, ponderando com a razão, não através da servidão do trabalho, mas
através da autoridade da especulação.

Sem dúvida, nós vemos isso na construção dos monumentos e na recompensa


das guerras, na contrária atribuição do vocábulo. Os monumentos são gravados
ou os triunfos são celebrados com os nomes daqueles sob cuja autoridade e razão
são obtidos, não com os nomes daqueles por cujo trabalho e servidão foram
executados.
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BOÉCIO (480-524)
DE INSTITUTIONE MUSICA, LIVRO I, 2

Assim, há três tipos de pessoas que estão envolvidas com a arte musical. Um
tipo é o dos que se apresentam em instrumento, outro compõe as canções e o
terceiro avalia a performance dos instrumentos e as canções. Mas aqueles que se
ocupam de instrumentos e aí consomem todo o seu esforço como os citaristas ou
aqueles que provam suas habilidades no órgão ou outro instrumento musical -,
estão afastados do entendimento da ciência musical, porque agem como
escravos, como foi dito: nenhum deles chega à razão, mas estão totalmente
afastados da especulação.

O segundo gênero dos que praticam música é o dos poetas, que não tanto pela
especulação e razão, mas por um certo instinto natural, são levados para a
canção. Por esse motivo, esse gênero é separado da música.

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BOÉCIO (480-524)
DE INSTITUTIONE MUSICA, LIVRO I, 2

O terceiro é aquele que adquiriu a habilidade de julgar, de forma que possa


examinar os ritmos, as melodias e as canções como um todo. Essa classe, porque
está evidentemente baseada por completo na especulação e na razão, reputar-se-
á estritamente musical.

Uma pessoa dessa classe é um músico que apresenta a faculdade de emitir um


julgamento determinado e apropriado à música, de acordo com a especulação e a
razão, sobre os modos e os ritmos, sobre os tipos de canções, sobre as
consonâncias e todas as coisas que serão explicadas posteriormente e sobre as
canções dos poetas.

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ISIDORO DE SEVILHA (560-636)
ETYMOLOGIARUM SIVE ORIGINUM, LIBI XX

“Música é a arte da mensuração consistindo de som e canção. E é chamada


música por derivação das Musas. As Musas originam seu nome de μασαι
(mousai) , que significa ‘procurar”, pois é por seu intermédio, como
sustentaram os Antigos, que o poder da poesia lírica e do canto foi
“encontrado”. Porque eles são uma realidade sensorial, os sons musicais
desaparecem e passam no tempo porém se imprimem na memória. Eis
porque os poetas imaginaram que as Musas fossem filhas de Júpiter e
Memória. Com efeito, se os homens não os retém na memória, os sons
perecem porque não podem ser escritos.”

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ANÔNIMO (SÉC. IX OU X)
SCHOLIA ENCHIRIADES DE ARTE MUSICA

Aluno - Como a Harmonia nasceu de sua mãe, a Aritmética?


A Harmonia e a Música são a mesma coisa?
Mestre - A Harmonia é dada pelas combinações concordantes de sons
diferentes. A Música é a forma dessa concordância. A Música, como as
outras disciplinas matemáticas, é em todos os seus aspectos vinculada
ao sistema de números. E é por causa dos números que ela pode ser
Compreendida.
Aluno - Quais são as disciplinas matemáticas ?
Mestre - Aritmética, Geometria, Música e Astronomia
Aluno – O que é matemática ?
Mestre – É conhecimento teórico
Aluno – E o que é conhecimento teórico ?
Mestre – Aquele que estuda quantidades abstratas (...)
Aluno – O que é Aritmética ?
Mestre – O estudo das quantidades contáveis em si.

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ANÔNIMO (SÉC. IX OU X)
SCHOLIA ENCHIRIADES DE ARTE MUSICA

Aluno – Mestre, o que é música ?

Mestre – A ciência do modular bem.

Aluno – E o que é modular bem?

Mestre – Compor melos de sons doces. Mas isso no que se refere a arte estrita,
porque não considero “modular” bem se alguém faz mal uso da suavidade da arte
em coisas vãs, assim como o que não sabe servir-se da arte onde convém, ainda
que cante docemente em honra de Deus, apenas com coração devoto.
Aluno – Assim eu penso também.

Mestre – E fazes bem. Não se pode fazer doces cantos se não é para um bom uso
e não se pode fazer um bom uso, nem sequer dos cânticos sagrados, se são
executados sem conhecimento e sem graça. Por essa razão, já que essa disciplina
é necessária de forma necessária nos cantos eclesiásticos, afim de que esses não
sejam vítimas da incúria e ignorância, vejamos quais são as condições
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necessárias para a faculdade de modular bem.
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ANÔNIMO (SÉC. IX OU X)
SCHOLIA ENCHIRIADES DE ARTE MUSICA

Aluno – Vejo que são muitas as coisas que convém que o cantor tenha em
conta e que, se as desconhece, nunca poderá ser um expert. É teu ofício dar a
elas notícia certa.

Mestre – São diversas: umas são as que exige a propriedade dos sons, outras
as que demanda proporção da harmonia, e outras são aquelas com as que a
disciplina do canto se acomoda de forma apta àqueles que acessam a ela
desde fora.

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OUTROS AUTORES

Guido d’Arezzo (séc. XI)


É imensa a distância que existe entre os músicos e cantores; estes
interpretam, enquanto aqueles entendem a constituição da música. O que faz
o que não sabe, pode ser definido como besta.

Engelberto de Admont (início do séc. XIV), De Musica


Definição de música: ciência que investiga e descobre o acordo e a
consonância, segundas proporções harmoniosas, entre coisas contrárias e
desiguais e coisas conjuntas e próximas.

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MARCHETTO DA PADOVA (1274/5-1335(?)
LUCIDARIUM IN ARTE MUSICAEPLANAE

A música é a mais bela de todas as artes (...) de sua nobreza participa tudo o que
tem vida e tudo o que não tem (...). Certamente, não há nada em maior
consonância com o homem do que se deixar relaxar pelos modos doces ao invés
de entrar em tensão pelos modos contrários a esses. Assim mesmo, não existe
idade humana na qual não se experimente deleite diante de uma doce melodia.
(...) Entre todas as plantas, a música é aquela que provoca maior admiração; seus
ramos possuem belas proporções de acordo com os números; as consonâncias são
como suas flores e as doces harmonias, seus frutos (...)

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Há três tipos de música: do universo, do homem, dos instrumentos.

A música do universo existe nos elementos, nos planetas, nos tempos. Nos
elementos ela consiste em peso, número e medida. Nos planetas consiste em
lugar, movimento, natureza. Nos tempos, ela consiste nos dias, mediante a
alternância da luz e da noite, nos meses, mediante a lua crescente e decrescente,
nos anos, mediante a mudança da primavera, do verão, do outono e do inverno.

A música humana existe ora no corpo, ora na alma, ora na conexão dos dois. A
música do corpo consiste ora na atividade vegetativa, pela qual ele cresce como
convém a todos os seres que nascem, ora nos líquidos, cujo fluxo faz o corpo
subsistir como é comum aos seres com vida sensitiva, ora nas atividades
produtivas, como convém de modo especial aos seres racionais. A estas últimas
operações preside a mecânica, as quais são boas quando não excedem a
moderação, para que a ganância não se nutra daquilo de que a fraqueza deveria
sustentar-se(...).

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Hugo de São Vitor, Da arte de ler (cap. 12: A
Hugo de São Vitor, Da arte de ler (cap. 12: A
música)
música)

A música da alma, uma consiste nas virtudes, como justiça, piedade e


temperança, a outra nas potências, como razão, ira e concupisciência. A
música entre o corpo e a alma é aquela amizade natural com a qual a
alma se liga ao corpo não com vínculos corporais mas com determinados
afetos, para mover e tornar sensível o próprio corpo, amizade pela qual
“ninguém odiou sua própria carne”. Esta música consiste em que a carne
seja amada, mas o espírito ainda mais, o corpo seja reforçado e a virtude
não seja destruída.

A música instrumental consiste uma na percussão, como acontece nos


tímpanos e cordas, outra no sopro, como nas flautas e órgãos, outra na
voz, como nos versos e cantos. “Há três tipos de músico: um que compõe
os versos, outra que toca os instrumentos, um terceiro que julga o
desempenho dos instrumentos e dos versos”.

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JOHANNES DE MURIS (1290-1351)
NOTITIA ARTIS MUSICAE - PRÓLOGO

Aristóteles, o príncipe dos filósofos, afirma no Prólogo de sua Metafísica que a


marca distintiva do sábio é a capacidade de ensinar. Os teóricos podem ensinar
em qualquer que seja a arte, os práticos não o podem. Os homens da
experiência (da prática) sabem bem o como das coisas mas ignoram o porquê.
Estes que fazem, não o fazem por ciência, mas à maneira a qual o fogo queima.
Assim, pensamos que em cada arte, a faculdade de compreender e o saber
pertencem bem mais à arte do que à experiência. É por isso que nós julgamos
os homens de arte mais sábios do que os homens de experiência. E é por isso
que nós pensamos que a arte se fundamenta mais na ciência do que na
experiência. Aqueles são capazes de ensinar, estes, ao contrário, não podem.

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Entretanto, visto que a arte vincula-se aos universais, a experiência às coisas
singulares (particulares), e visto que os universais pressupõem as coisas singulares,
a arte pressupõe, portanto, a experiência. Seguramente a experiência criou a arte e
nós constatamos que os homens da experiência são muito úteis àqueles que
possuem a razão sem experiência. Também é necessário a cada arte, apresentar
primeiramente uma teoria e uma prática apropriadas, a fim de que aquilo que é
conhecido como universal possa ser aplicado ao singular. Mas como toda arte
depende das coisas da experiência, é necessário que cada homem de arte comece
por adquirir um conhecimento prático de sua arte.

Assim, para que cada um tire proveito e tomando o cuidado em revelar uma
verdade que foi por muito tempo escondida, nos propomos a conceder toda a nossa
atenção à arte da música nos esforçando em esclarecer, em algumas palavras,
primeiramente a música teórica, depois a música prática – a qual não é reprovável
misturar um pouco de teoria.

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JOHANNES DE MURIS (1290-1351)
COMPENDIUM MUSICAE PRATICAE Cap. VI: DE MUSICA

O que é a música? É a arte mestra das artes: ela contém todos os princípios que
fundam a prática; ela se assenta no primeiro grau da certeza; ela se desdobra
harmoniosamente, de uma maneira admirável, na natureza de todas as coisas; ela é
um prazer para o espírito e uma doçura para os ouvidos; ela alegra os tristes e
satisfaz os ávidos; ela confunde os invejosos e reconforta os aflitos; ela adormece os
despertos e acorda os adormecidos; ela nutre o amor e exalta a riqueza; ela tem por
finalidade instituir o louvor a Deus.

Outra definição: a música é uma ciência que ensina a arte e a maneira de cantar
apropriadamente com a ajuda de notas formadas como se deve.

O que é uma nota? Uma figura quadrilátera, de significação arbitrária, representando


um som quantificado, mensurado pelo tempo.
O que é uma figura quadrilátera? Uma figura delimitada por quatro ângulos.
O que é um ângulo? Ele é triplo.
Como? Reto, obtuso, agudo.
O que é um ângulo reto? Um ângulo formado pelo abaixamento de uma linha
perpendicular sobre uma linha reta. (...) 28

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JOHANNES TINCTORIS, 1435/36-1511 -
COMPLEXUS EFFECTUUM MUSICES

Efeitos causados pela música:

1 - Agradar a Deus 2 - Embelezar os louvores de Deus


3 - Amplificar o gozo dos santos 4 - Assemelhar-se à Igreja militante e
triunfante
5 – Preparação para a benção divina 6 - Estimular os ânimos à piedade
7 - Afastar a tristeza 8 - Abrandar a dureza do coração
9 - Afugentar o diabo 10- Provocar o êxtase
11 - Elevar a mente terrenal 12 - Modificar a má vontade
13 - Deixar os homens contentes 14 - Curar os enfermos
15 - Suavizar os esforços 16 - Incitar os ânimos ao combate
17 - Atrair o amor 18 - Aumentar a alegria dos banquetes
19 - Glorificar os músicos 20 - Santificar as almas

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OUTRAS DEFINIÇÕES DE MÚSICA (IDADE MÉDIA)

HUGO DE SAN VICTOR, Didascalicon, II, 16 (P. L. 176, c. 757).

Música ou harmonia é a consonância de vários elementos diferentes em uma linha


única de composição.

Philippe de Vitry (De Coussemaker, II, 17).

Música é ciência do canto sincero ou o caminho para alcançar facilmente a perfeição


no canto.

ANÔNIMO XII, Tractatus de musica, I (De Coussemaker, III, 475).

Portanto se define assim: música é a ciência liberal que estabelece o


compasso do canto artístico.

30
JERONIMO DE MORAVIA,Tractatus d e musica, I (De Coussemaker,
I, 4).

Segundo Al-Farabi: a música é a ciência que abarca o conhecimento da beleza e


da harmonia, seus componentes e modalidades.

Segundo Ricardo: musica é a consonância de váris vozes semelhantes em apenas


uma linha de composição.

Segundo Isidoro, no terceiro livro das Etimologias: música é a ciência da


harmonia que reside no som e no canto.

Segundo Hugo de San Victor: música é a divisão dos sons e a variedades ritmica
das vozes.

Segun Guido (de Arezzo): música é a ciência da correta harmonia.

31
GROSSETESTE, De artibus liberalibus (Baur, 3-4).

O Alcance da Música
2. No conhecimento da música subjaz não apenas a harmonia da voz humana e a
da expressão, mas também a dos instrumentos e dos elementos cujos encantos
residem no movimento ou no som, e junto a estes, a harmonia dos seres celestiais
e não celestiais.

MUSICA ENCHIRIADIS (Gerbert, 1 ,195).

Relação entre a música e o número


3. Tudo que é agradável na música é produzido pelo número, calculando a
harmonia das vozes; tudo o que é mais prazeroso no ritmo, nas melodias ou em
qualquer moviemtno ritmico, tudo é feito pelo número; e as vozes passam
rapidamente, mas os números permanecem.

32
REGINO DE PRUM, De harmonica institutione, 11 (P. L. 132, p. 494).

Não foi o homem quem inventou a harmonia


4. Mas há que saber que esta harmonia não foi, em absoluto, inventada pelo
gênio humano, mas mostrada pelo divino signo de Pitágoras.

MUSICA ENCHIRIADIS (Gerbert, 1 ,172).

Relação entre a música e o universo


5. O compasso desta modulação que tempera os acordes das vozes, modifica a
natureza dos mortais; ... e assim, a mesma proporção numérica que faz com
que os sons desiguais se agrupem, também funde em harmonia eterna as vidas
com os corpos e as oposições dos elementos e de todo o universo.

33
JUAN ESCOTO ERIGENA, De division e nattirae (P. L. 122, c. 965).
MÚSICA E O SENTIDO INTERIOR
6. Não vejo que nada agrade ao espírito e produza beleza, mas sim os intervalos
proporcionais de várias vozes, que, quando unidas ordenadamente, compõem
um ritmo musical agradável. Não é a diversidade de sons que causa essa doçura
harmoniosa,
mas as proporções dos sons e das proporcionalidades, que ... apenas o sentido
interno da alma percebe e julga.

Jacques de Liège, Speculum musicae (Grossmann, 58).

O ALCANCE DA MÚSICA
7. A música, tomada em um sentido geral e objetivo, se estende a quase tudo:
Deus e as criaturas, incorpóreas e corporais, celestiais
e ciências humanas, teóricas e práticas.

34
REGINO DE PRUM, De harmonica institutione (P. L. 132, c. 491,
Gerbert, I,
233 y 236).

MÚSICA NA NATUREZA E NA ARTE


9. Qual é a diferença entre música natural e música artística? ... Música natural é
aquela que se produz sem nenhum instrumento, sem que nenhum dedo a toque;
soa sem qualquer impulso humano e sem toques; inspirado por Deus, sendo sua
única natureza mestre, compõe doces melodias: é aquela que se produz no céu, ou
na voz humana ... Recebe o nome de música artística que foi pensada e inventada
pela arte e pela inteligência humanos, o que ocorre em alguns instrumentos.
Qualquer pessoa que deseje aprender esta arte deve saber que, embora a música
natural seja muito superior à música artística, ninguém pode conhecer a força da
música natural exceto através da música artística.

35
ADAM DE FULDA, Musica (Gerbert, III, 333).

10. A música é de dois tipos: natural e artística. O natural é mundano e humano.


O mundano é a ressonância dos corpos supra-celestes pelo movimento das
esferas, onde se acredita que haja a maior harmonia; matemáticos lidam com
esse tipo.
O humano se manifesta no corpo e na alma, no espírito e no entrelaçamento dos
membros, pois o homem vive enquanto dura
harmonia, e morre quando essa proporção é quebrada; os físicos lidam com esse
tipo.
A música artística: este tipo está nas mãos dos músicos. Pode ser instrumental ou
vocal.

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