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O burrinho pedrês (Profa.

Esther Rosado)
Sagarana, João Guimarães Rosa
A narrativa que abre Sagarana

1. O burrinho pedrês
2. Traços biográficos de Lalino Salãnthiel ( A volta do marido pródigo)
3. Sarapalha
4. Duelo
5. Minha gente
6. São Marcos
7. Corpo fechado
8. Conversa de bois
9. A hora e a vez de Augusto Matraga
A epígrafe

“ E , ao meu macho rosado,


carregado de algodão,
preguntei: pra donde ia?
Pra rodar no mutirão.”

(Velha cantiga, solene, da roça)


Como se fosse uma história encantada

“Era um burrinho pedrês, miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo, Conceição


do Serro, ou não sei onde no sertão. Chamava-se Sete–de-Ouros, e já fora tão
bom, como outro não existiu e nem pode haver igual.
Agora , porém, estava idoso, muito idoso. (...)
Na mocidade, muitas coisas lhe haviam acontecido. Fora comprado, dado, trocado
e revendido, vezes, por bons e maus preços. Em cima dele morrera um tropeiro
do Indaiá, baleado pelas costas. Trouxera, um dia, do pasto – coisa muito rara
para essa raça de cobras – uma jararacussu, pendurada no focinho, como linda
tromba negra com diagonais amarelas, da qual não morreu porque a lua era
boa e o benzedor acudiu pronto. Vinha-lhe de padrinho jogador de truque a
última intitulação, de baralha, de manilha; mas a vida a fora, por amos e anos,
outras tivera, sempre involuntariamente: Brinquinho, primeiro, ao ser
brinquedo de meninos; Rolete, em seguida, pois fora gordo, na adolescência;
mais tarde, Chico-Chato, porque o sétimo dono, que tinha essa alcunha, se
esquecera, ao negociá-lo, de ensinar ao novo comprador o nome do animal, e
na região, em tais casos assim sucedia: e, ainda, Capricho, visto que o novo
proprietário pensava que Chito-Chato não fosse apelido decente.
A marca de ferro – um coração no quarto esquerdo dianteiro – estava meio
apagada: lembrança dos ciganos, que o tinham raptado e disfarçado, ovantes,
para a primeira baldroca de estrada(...)”
Narrador

Narrado em terceira pessoa, O Burrinho Pedrês conta uma


história simples: Depois de ter tido uma vida de muitos donos,
Sete-de-Ouros estava idoso e morava na Fazenda da Tampa
onde tudo era enorme e despropositado, de um tal de Major
Saulo, um homem que ria de tudo,

“ de botas e esporas, corpulento, quase um obeso, de olhos


verdes, misterioso, que só com um olhar mandava um boi
bravo se ir de castigo, e que ria, sempre ria – um riso grosso,
quando irado; riso fino, quando alegre; e riso mudo, de normal.
Mas nada disso vale fala, porque a estória de um burrinho, como
a história de um homem grande, é bem dada ao resumo de um
só dia de sua vida. E a existência de Sete-de-Ouros cresceu
toda em algumas horas- das seis da manhã à meia-noite – nos
meados do mês de janeiro de um ano de grandes chuvas, no
Vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais.”
Metáforas

Observe a metáfora magnífica do narrador: “A serra neblinava,


açucarada...”

Naquela manhã, o Major Saulo reunira seus homens para levar uma
boiada, cerca de 400 reses, engordadas ali na fazenda e que iam
ser embarcadas num trem, no pequeno vilarejo a quatro léguas
dali. Agita-se o gado no cercado: “Alta, sobre a cordilheira de
cacundas sinuosas, oscilava a mastreação dos chifres.”
Comprimem-se uns contra os outros “Como correntes de oceano,
movem-se cordões constantes, rodando remoinhos: sempre um
vai-vem, os focinhos babosos apontando, e as caudas que não
cessam de espanejar com as vassourinhas. Somam-se. Buscam-
se.”
“Quem é visto é lembrado”

“Mas tinha cometido um erro. O primeiro engano seu nesse dia. O


equívoco que decide do destino e ajeita caminho à grandeza
dos homens e dos burros. Porque: “Quem é visto é lembrado”,
e o Major Saulo estava ali:
Ara, veja, louvado seja tu! Hô-hô... Meu compadre Sete-de-Ouros
está velho... Mas ainda pode agüentar uma viagem , vez em
quando... Arreia este burro também, Francolim!
-Sim, senhor, seu Major. Mas, o senhor está falando sério, ou é
por brincar?”
Era sério; os cavalos dos outros homens tinham fugido pela
cerca, num descuido. Francolim viera dizer ao Major que não
havia montarias suficientes. Feitas as contas, são doze os
animais. E o burrinho foi arreado.
E montado pelo João Manico!

E montado por João Manico! Na cozinha, as mulheres riram-se de


dar gosto quando souberam que iam, ambos, João Manico e o
burro, à frente daquela enorme boiada.

Juntam-se os boiadeiros:Leofredo,João Manico, Tote, Bastião,


Silvino, Zé Grande, Juca, Benevides, Juca-Bananeira, Badu,
Sinoca, Raymundão. Um atrito entre Badu e Silvino põe medo
em Francolim. Mas o Major Saulo garante que em terra dele
não haveria mortes.

E sai o gado quando Zé Grande, o guieiro, sopra o berrante.


Quatrocentos e sessenta animais inquietos começam a ser
levados a um outro destino, depois do tempo de engorda e
águas. Ariscos, ligeiros.
Parece poesia, veja:

Nenhum perigo, por ora, com os dois lados da estrada tapados


pelas cercas. Mas o gado gordo, na marcha contraída, se
desordena em turbulências.(...)

Galhudos, gaiolos, estrelos, espácios, combucos, cubetos,


lobunos, lompardos, caldeiros, cambraias, chamurros,
churriados, corombos, cornetos, bocalvos, borralhos,
chumbados, chitados, vareiros, silveiros... E os tocos da testa
do mocho macheado e as armas antigas do boi cornalão...”
Silvino vs Badu
A boiada é colocada nos vagões

A boiada entra no vilarejo ,onde o patrão ficaria com a família, e o


gado seria embarcado na estação de trens; todos estão muito
curiosos, com medo daquele mar de bois e vacas. Embarcam os
bois:

“ Com um último trompejo do berrante, engarrafam no curral da


estrada-de-ferro o rebanho, que rola para dentro e se espalha,
como um balaio de laranjas despejado no chão. Mesmo com a
meia-chuva, vinha o povo do lugar, em fé de festa, para gozar o
espetáculo. E começou o embarque – rico de sortes, peripécias e
aplausos - , que durou mais de hora e meia, até a boiada inteira,
lote a lote, desaparecer no bojo dos carros-jaulas dos dois trens
especiais. E , pois, logo depois, encharcados, enlameados,
cansadíssimos e famintos, os vaqueiros saíram para comer, e
beber, principalmente, porque força há na cachaça que custa o
dinheiro da gente.”
Badu monta o burrinho pedrês

“ Com o que, no prazo de um bom coice, e a não ser


pelo mulo mísero Sete-de-Ouros, ficou vazio o
galpão. Era uma vez, era outra vez, no umbigo do
mundo, um burrinho pedrês. Mas, agora,maior, mais
real,direto – no lugar amplo e sem outras formas –
um homem sozinho: bebedérrimo, Badu.
Pressentindo a vida ruim de regresso, então Sete-
de-Ouros abriu bem os olhos, e avançou os beiços
num derradeiro molho de capim.

Que é do meu poldro?! Ô quê!? Só deixaram para


mim este burro desgraçado?... Só porque fui
comprar uma prenda para a minha morena...”
E Badu, bêbado, dorme... A história de Assinzinho

Silvino confessa ao irmão (Tote) que vai matar Badu assim que
passem pelo córrego; Francolim se aproxima para ouvir a
conversa porque representa o Major e recebeu esta
incumbência. Manico conta histórias de muito tempo atrás,
quando já servia ao Major Saulo, que à época era chamado de
“seu Saulinho”, magro ainda. Narra uma longa história de um
negrinho que trazido a mando do Major acabou por provocar
um dos maiores desastres a que pudera ter assistido: longe da
mãe, trazido à garupa pelo vaqueiro, chorava o tempo todo e,
depois, cantara uma canção tão triste que adormecera todos
os vaqueiros. A boiada estourara e passara por cima de
homens, matando-os enquanto dormiam. O negrinho sumira
para nunca mais ser visto...

Badu continuava a dormir sobre o burrinho pedrês.


A enchente do rio da Fome

“ Sete-de-Ouros parara o chouto; e imediatamente tomou conhecimento


da aragem, do bom e do mau: primeiro as orelhas firmes, para cima –
perigo difuso, incerto; depois, as orelhas se mexiam, para os lados –
dificuldade já sabida, bem posta no seu lugar. E ficou. A treva era
espessa, e um burro não é gato nem cobra, para querer enxergar no
escuro. Ele não espiava, não escutava. Esperava qualquer coisa.
E, quando essa chegou, Sete-de-Ouros avançou, resoluto. Chafurdou,
espadanou água, e foi. Então, os cavalos também quiseram caminhar.
(...)
E era o regolfo da enchente, que tomava conta do plaino, até onde
podia alcançar. Os cavalos pisavam, tateantes, Pata e peito. Passo e
passo, contra maior altura davam, da correnteza, em que vogava um
murmúrio. A inundação. Mil torneiras tinha a Fome, o riacho ralo de
ontem, que da manhã à noite muita água ajuntara, subindo e se
abrindo ao mais. Crescera, o dia inteiro, enquanto os vaqueiros
passavam, levavam os bois, retornavam. E agora os homens e os
cavalos nela entravam, outra vez, com as cabeças se metendo, uma
por uma, na volta de um laço. Eles estavam vindo. O rio ia.”
Sete-de-ouros e a experiência

O burrinho pedrês, anuncia o narrador, “perdeu o fundo e


rompeu nado; mas já tivera tempo de escolher rumo e fazer
parentesco com a corrente...”
Badu sentiu a água nas coxas, continuava a dormir e se agarrou
ao burro: “Contra o dito, sem porquê, bom e melhor que Badu
estava como estava, que para córrego cheio mais vale homem
muito ébrio, em cima de burro mui lúcido.”
Em meio a ciscos e gravetos, o burrinho tem pressa nenhuma e
nada, deixa o corpo boiar, experiente. Os outros cavaleiros
entram em surto de medo e acabam por morrer afogados, eles
e suas montarias. O burrinho não tinha arrancos nem
esperneios: ia flutuando à flor das águas, levando o vaqueiro
bêbado e Francolim Ferreira, o secretário do Major Saulo,
dependurado no rabo.
Homens e cavalos novos apareceram boiando, inchados como
grandes balões, dias depois.
Entre as vacas
Embora saísse do rio somente muitos quilômetros abaixo da
travessia primitiva, o burrico, ao pisar em solo firme, escoiceou
o Francolim e a quase trote trouxe Badu a salvo. Os colegas,
que dormiam no paiol grande, despertaram e vieram tirar o
Badu de sobre a sela: “(...)carregaram com ele, para curtir a
bebedeira num jirau. Depois, desarrearam o burrinho.

Folgado, Sete-de-Ouros endireitou para a coberta. Farejou o


cocho. Achou milho. Comeu. Então, rebolcou-se, com as
espojadelas obrigatórias, dançando de patas no ar e
esfregando as costas no chão. Comeu mais. Depois procurou
um lugar qualquer, e se acomodou para dormir, entre a vaca
mocha e a vaca malhada, que ruminavam, quase sem bulha, na
escuridão.”

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