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O FIM DOS TEMPOS

Marcos Palacios

<Dedicado a São Simeão do Pilar (c. 423), que existiu mesmo>

E aconteceu que sendo passadas as festas da Páscoa e estando piando forte as juritis e
começando a sair do brejo as surucucus, falou Simeão, o Filho, à sua Mãe:
- Mãe, é chegado o tempo de derrubar os madeiros, que nesta lua e na próxima se
devem tombar os lenhos, como me ensinou o Pai, em sua sabedoria.
E calou, pois era de poucas falas o Filho, tal qual o Pai. E a Mãe tampouco mais
perguntou, pois que era Mulher e conhecedora de seu lugar e das limitações de lei.
Manhã seguinte, sol nascendo, embrenhou-se Simeão, o Filho, pelos matos, levando a
junta de bois, cangas, facão e machado encabado de novo, luzido no gume. Cordame
não levava, nem carecia, pois que de embiras e cipós eram prenhes aquelas grotas.
A Mãe deixou correr o dia em imaginanças. Em que iria Simeão, o Filho, usar os
lenhos? Nos mourões novos do pasto? No madeirame do curral, que de há tempos pedia
reparos, mais ainda agora, com três vacas paridas. Ou quem sabe no travão do telhado
da casa, que esse que ali estava era ainda aquele, escolhido, tombado, lavrado e
alevantado por Simeão, o Pai, quando para aquelas terras do Pilar chegaram, em
desbravamento, ele e a Mãe, esta já trazendo no ventre Simeão, o Filho, anunciado em
sonhos a Simeão, o Pai, e por voz de anjo a ela, a Mãe. E seria Simeão primeiro e
único, pois que depois daquele parto não mais pudera parir, a Mãe.
O dia passou-o a Mãe, hora por hora, na regra das labutas do hoje, do ontem, do
sempre, exceto o marreco morto e assado para a ceia, na espera da volta de Simeão, o
Filho, que de certo voltaria cansado e carente de coisa quente e substanciosa, depois das
andanças e derrubadas dos lenhos na mata. Mas o dia se fez noite, como, aliás, sempre
se fez e sempre se fará, até o final dos tempos, e Simeão não voltou.
Em apreensão, a Mãe deixou-se ficar em vigília, acendendo velas seguidas ao pé do
oratório, primeiro a Santa Luzia, depois a Santa Iphigenia, por último a Santo
Eustacchio, aquele famoso, o das Trompas.
Afinal, cansada de esperar, a Mãe adormeceu.

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Raiava o dia, quando Simeão, regressou, terreiro adentro, tangendo seus bois
encangados, que bufavam e arfavam como convém que arfem e bufem, nas
circunstâncias, animais como aqueles, mais afeitos a tarefas menos rudes e pesadas.
Arrastavam, todo atado de embirras e cipós, um colossal madeiro, de peso tal e tal
tamanho, que um rasgo profundo vinha lavrando, nas umidades femininas do chão da
manhã.
Calado chegou Simeão. Calado ficou, sem delongas cortando as amarras,
desencangando os bois.
Foi a Mãe quem perguntou:
- Simeão, meu Filho, por onde andaste? Que terrível noite de agonias fizeste passar tua
Mãe, imaginando desgraças: patada de onça, picada de cobra, queda fatal naqueles
grotões, ou coisa pior...
Simeão limitou-se a fazer um gesto, como que dizendo “deixa disso, mulher”. E a Mãe
se calou, como de lei. Mas era Mãe. E mulher, antes de Mãe. E portanto sabia. Não
sabia bem o que, mas sabia. Sabia, como todo seu corpo de Mãe e mulher, que algo
passara ou passaria de grave e de grande e que o destino de Simeão, havia sido selado,
no fundo daqueles grotões de onde saíra o madeiro. Mas melhor não demorarmos nosso
relato sobre essas intuições e premonições femininas e maternas, para não termos que
contar já o final da história e tirar a graça do conto, pois que ela, a Mãe, sem saber bem
o que, sabia...
Desatrelou Simeão o madeiro das cangas da junta de bois e trinta braças teria, senão
mais.
Foi ao poço, lavou-se e de imediato se pôs ao trabalho, como se houvesse uma urgência,
um não poder esperar.
Levou o dia lavrando o madeiro, todo inteiro, sem cortá-lo. Trabalhava com gosto,
afinco, empenho. As mãos firmes aplainando o tronco, alisando, acompanhavam
obedientes a reta certeza dos planos que estavam em sua cabeça. O tronco era agora
como um enorme mastro, gigantesca estaca. No topo, Simeão construiu, com tábuas
fortes, de madeira nobre, uma plataforma.
À tardinha cavou um buraco fundo e, com a ajuda dos bois, de cordames e de uma
roldana de poço, colocou ereta a estranha construção. Firmou a estaca com grandes
pedras, socou a terra em redor.
Subiu à plataforma por uma corda que de lá pendia, levando consigo a roupa do corpo e
um pequeno cesto, que ele mesmo trançou, com embirras. Nada mais levou.

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A Mãe, a tudo assistia, entre pasma e resignada. Somente então, e lá do alto, Simeão, o
Filho, dirigiu estas palavras, à Mãe:
- Mãe, aqui estou para ficar. É esse meu destino e tenho que cumpri-lo, que assim me
foi ordenado. Até o Fim dos Tempos, não mais descerei. Eu fui escolhido, como Moisés
foi um dia escolhido, como Manasés, Baruc, Isaías e depois deles João, o Batista.
Também eu recebi um mandato, também eu recebi uma ordem dos Reinos dos Céus.
Em terra imunda não mais pisarei. Aqui estou, aqui ficarei, à espera do Dia, à espera do
Sinal.
Descerá, terá que descer pensou a Mãe, mesmo sabendo, como sabia, que o destino se
cumpria.
Teria enlouquecido, Simeão? Ou seria possessão, artes do Tinhoso? Que outra razão, ou
desrazão teria levado o rapaz a tais bizarrices? Logo ele, que nunca fora dado a
misticismos, que em Igreja pouco entrara até então, tirante o batismo de praxe, a missa
da morte do Pai e o crisma, recebido por força da insistência e da carolice do compadre,
homem chegado a novenas e romarias, pois que também de pouca água-benta havia
sido Simeão, o Pai. Como explicar a decisão e o gesto daquele que, até então fora
ordeiro, trabalhador, pouco dado a bebidas, esquivo às mulheres da vida, caladão e
metido com suas próprias coisas.
Dois dias se passaram. Ao fim do primeiro, tentou demovê-lo, a Mãe:
-Desce, Filho, desce. É tua Mãe quem te pede. Não me vás matar de dor. Sem ti não
tenho valia...
E Simeão, o Filho, recitava sempre a mesma e curta ladainha:
-Desço não, Mãe, que aqui estou para ficar, até o Fim do Tempos, que assim me foi
ordenado, que assim me foi exigido...
- Exigido por quem, Simeão, meu Filho? Ordenado por quem? Quem senão Satanás,
poderia ordenar a um Filho que abandone sua Mãe, que a deixe desvalida?
- Aquele que tudo sabe, Aquele que tudo vê, Aquele que sempre foi, Aquele que será
sempre... Foi Ele quem ordenou... Aqui ficarei, aguardando a revelação, esperando que
Ele me ilumine e que por minha língua passe a falar o Espírito...
Ao final do segundo dia, cansada de insistir e ouvir sempre a mesma resposta, com
pequenas varianças, a Mãe decidiu chamar o padre. Iluminação ou possessão - fosse
como fosse - era assunto da alçada da Igreja, que melhor poderia julgar o caso e dizer se
por ali havia o dedo do Coisa Ruim, ou se o aparente despautério provinha de divino
chamamento, se o que cheirava a loucura podia em verdade ser um odor de santidade. O
padre que desse um jeito, trouxesse conselho, reza e água benta... E a Mãe se largou

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para a vila, para o arraial de Santa Rita dos Sete Mistérios, onde encontrou padre
Alberico, como de costume, na santa faina diária dos cuidados com sua horta de alfaces
e berinjelas, pois exceção feita à semana da padroeira - quando havia que se organizar a
quermesse - bem pouco lhe demandava aquela paróquia naqueles confins, onde se
nascia pouco, morria-se ainda menos, casava-se quase nunca.
Padre Alberico, colocado ao corrente dos estranhos sucessos, de permeio a suspiros e
lamentações da Mãe, não deu tardança em trocar as roupas surradas do trabalho na horta
pela ensebada batina da Ordem e segui-la em direção ao Pilar onde, a dar-se crédito ao
que acabara de ouvir, passavam coisas estranhas e maravilhosas que nunca sonhara ver
em sua longa e pasmacenta vida de pároco.
A meio caminho calharam de encontrar o delegado Silvino, que posto a par dos
acontecimentos por Padre Alberico, resolveu seguir com eles e tomar ciência pessoal e
direta do prodígio. Assim que Igreja e Lei, lado a lado, atiraram-se para as bandas do
Pilar.
Lá chegando, já desde a entrada do pasto, foram avistando Simeão, o Filho, no alto da
plataforma, imerso em profunda meditação, longe do mundo, aguardando.
O padre foi logo falando:
- Simeão, meu filho, que desatinos são esses? Desce daí para a terra, retoma as tuas
labutas. Venha ordenhar tuas vacas, carpir tuas roças, podar as fruteiras, tratar as
bicheiras das cabras. Desce já que tua Mãe desespera... Subir para o topo de um pau!?
Deixar desvalida uma Mãe!?... Isso só pode ser coisa do Mal, Simeão. Em nome de
Deus desça agora, desça já, de imediato, e renegue aqui embaixo a Satanás, seu séquito
e seus exércitos, seus feitos e artimanhas...
E Simeão, na mesma ladainha:
- Desço não, padre Alberico, que aqui estou por ordem de meu Senhor, Daquele que
tudo criou. Foi Ele quem ordenou. Não desço, não descerei, nem pela força da cruz,
nem pelo mando da espada!
De nada adiantaram as teologias do padre. Menos ainda teve efeito o falar grosso da lei.
Rezou e pediu, o padre; mandou, intimou, o delegado. Simeão onde estava ficou.
Concluíram, afinal, que nada havia a fazer. Perdera o juízo o rapaz. Mas desceria,
acabaria descendo... Era questão de esperar.
E Simeão, o Filho, ali ficou.
A cada dia baixava o cesto de embiras trançadas e sua Mãe ali colocava as únicas coisas
que ele aceitava comer: ovos, favas e leite talhado.

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Sete meses se passaram. Criaram flores os umbuzeiros, pariram as cabras nos campos,
subiu e baixou o rio. Chuva após chuva, sol após sol, Simeão, o Filho, imerso em suas
meditações, dia e noite em orações, permanecia à espera, as roupas já em frangalhos, a
barba imensa, o pelo hirsuto.
E veio então o Sinal. Em coisas desse tipo tem que haver sempre um sinal, que é uma
espécie de atestado, certidão, lavrado em cartório do Céu, firmada por quem de direito,
seja arcanjo, serafim, querubim, ou por Deus Pai em pessoa, quando em dias de menos
serviço, resolve Ele próprio despachar, firmar de seu próprio punho, dispensando
intermediários e puxa-sacos.
Neste caso, o sinal foi muito claro, para não deixar espaço para contraditórios, tolher de
saída as incredulidades: de um dia para o outro, a estaca começou a crescer. Primeiro
um quase nada, depois mais e mais, mais e mais rapidamente.
Era visível, inegável.
A estaca subia.
Uma polegada, duas, pouco a pouco a estaca subia, se aproximava do Céu.
A Mãe foi quem logo notou.
A notícia correu. Prodígio! Prodígio!
De curiosos se encheu o logo o Pilar, que em terra de gente simples pouco é preciso
para que todos se maravilhem: pasmam ante abóboras gigantes, embasbacam ante
bezerros de cinco pernas, pagam para ver a mulher barbada, em dias de festa e
quermesse... Imagine-se então o efeito de um portento como aquele:
- É um Santo! É um Santo! Um Santo bem aqui no Pilar! Um Santo nosso, e de mais
ninguém... - diziam os mais crédulos.
- Ficou louco, endoidou... - diziam os mais céticos.
Céticos ou crédulos, mais e mais chegavam. Todos queriam ver Simeão, o do Pilar que
crescia, Simeão, o que subia aos céus.
Do alto de sua estaca, Simeão, o do Pilar, olhava as gentes na terra, mas nada dizia.
Parecia ainda esperar...
Até uns doutores de falas difíceis, armados de lentes, trenas e tubos de vidro, vieram
estudar o propalado milagre. Mediram, cheiraram, confabularam e saíram falando de
um crescimento espontâneo, natural e passageiro da madeira ali plantada. Nada
misterioso – garantiam - tudo muito explicável, muito científico, lógico e racional.
Mas o madeiro crescia e não dava mostras de estar ciente de tais lógicas e
racionalidades. Crescia e crescia, a cada dia crescia.

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E começaram a chegar os romeiros, vindo cada vez de mais longe, atraídos pelas
histórias fantásticas que começavam a circular pelas feiras e mercados, pelos bares e
estalagens.
Uma tarde, quando começava a cair o sol e o terreiro do sítio fervilhava de gente -
homens, mulheres, crianças, soldados, putas e vendilhões - Simeão, o do Pilar, antes de
tão parcas palavras, sentindo o Momento chegado, deu início à pregação:
- Eu vi, Irmãos, eu vi! Um sinal grandioso apareceu no céu: uma mulher vestida com o
sol, tendo a lua sob os pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas; estava grávida e
gritava, entre as dores do parto, atormentada para dar à luz. Apareceu então outro sinal
no céu: um grande dragão, cor de fogo, com sete cabeças e dez chifres e sobre a cabeça
sete diademas; sua cauda arrastava um terço das estrelas do céu, lançando-as para a
terra.
Fez-se um silêncio profundo, todo feito de medos. Muito se ajoelharam. E Simeão, o do
Pilar, pregava, voz tonitruante, como se o Espírito falasse por sua boca:
- Surgiu então um anjo, com uma taça dourada e disse-me: “Vem! Vou mostrar-te o
julgamento da Grande Prostituta que está sentada à beira de águas copiosas; os reis da
terra se prostituíram com ela, e com o vinho da prostituição embriagaram-se os
habitantes da terra”. E o anjo me transportou em espírito por sobre o deserto, onde vi,
às margens do Jordão, uma mulher sentada sobre uma besta escarlate, que urrava e
lançava fumo. A mulher estava vestida de púrpura, adornada de ouro, pedras preciosas e
pérolas: e tinha na mão um cálice cheio de abominações...
As pessoas desentendidas se entreolhavam e perguntavam umas às outras de que falava
o santo, o que significavam aquelas estranhas imagens, aquelas alegorias que mais
pereciam saídas algum Apocalipse?
E Simeão, o do Pilar, continuava:
- Caiu! Caiu Babilônia, a grande! Tornou-se morada de demônios, abrigo de todo tipo
de espíritos imundos, refugio de aves impuras e repelentes, porque ela embriagou as
nações com o vinho do furor e com ela se prostituíram os reis da terra e os mercadores
da terra se enriqueceram graças ao seu luxo desenfreado...
Cabelos ao vento, agora aos berros, Simeão exortava:
- Sai dela, ó meu povo, sai da Babilônia da carne e do sangue, para que não sejais
cúmplices de seus pecados e atingidos pelas suas pragas; porque seus pecados se
amontoaram até o céu, e Deus se lembrou das suas iniqüidades. Por isso as suas pragas
virão num só dia: morte, luto e fome, e pelo fogo será devorada a terra! E será o Fim
dos Tempos!

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Isso dito, calou-se Simeão, o do Pilar, caindo novamente em profunda contemplação.
Era isso, então! Todos agora entendiam. O Fim dos Tempos chegara! Simeão, o Filho,
ali estava para anunciar, pedir arrependimento, falar da morte iminente...
Cada tarde, ao pôr-do-sol, do alto de seu pilar que, dia a dia, mais e mais subia, Simeão
pregava aos fiéis, que eram agora multidão ao pé da estaca e imaginavam horrorizados
as penas e castigos por vir. E Simeão, o do Pilar, continuava:
- Nós te damos graças, Senhor Deus Todo-Poderoso, porque assumiste o teu grande
poder e passaste a reinar. As nações tinham se enfurecido, mas a tua ira chegou, como
também está próximo o tempo de julgar os mortos, de dar recompensa aos teus servos,
os profetas, os santos e os que temem o teu Nome, e de exterminar os que exterminam
a terra...
As pregações se sucediam, entra dia sai dia, e os milagres começaram a se multiplicar.
Os velhos voltavam a ser jovens, as feias ficavam bonitas, os mudos cantavam árias de
Verdi e Puccini, dentes brotavam das bocas dos banguelas, imbecis chegavam ao
Senado.
E a estaca subia.
Ao final, tão alto estava o pregador em seu pilar que em dias de nevoeiro, por horas e
horas a fio, não se avistava seu topo e era como se do próprio céu viesse a voz de
Simeão, o do Pilar:
- O templo de Deus que está nos céus se abriu, e apareceu a Arca da Aliança. Ai da
terra e do mar, porque o Diabo descerá para junto de vós cheio de grande furor, sabendo
que lhe resta pouco tempo!
Nove meses eram passados desde o dia em que Simeão, o do Pilar, subira ao alto do
madeiro. Sumido na distância, envolto em nuvens, sua voz se perdia no espaço e quase
já não era ouvida pela multidão que se acotovelava aos pés do madeiro. Simeão, o do
Pilar, naquele dia, logo cedo, ao alvor das primeiras luzes, fez então seu derradeiro
anúncio:
- Chegados são os Tempos. Reuni-vos, ó aves dos céus, para o grande banquete de
Deus, para comer carne de reis, carne de capitães, carne de poderosos, carne de cavalos
e cavaleiros, livres e escravos, grandes e pequenos. É hoje! O Dia da Ira é chegado.
Ajoelhai-vos, meu povo, orai e esperai, pois os justos serão salvos e ainda hoje estarão
comigo no Reino de meu Pai.
Apavorados, tremendo e se abraçando, os fiéis oravam, cantavam e choravam,
aguardando o Fim dos Tempos, a volta de Nosso Senhor, o acerto final das contas, a
reparação dos puros, a danação dos infames.

7
E começou a espera, a vigília final.
A multidão ajoelhada, confiante rezava. Rezava e esperava.
Uma hora esperaram, e duas e três.
O povo com fé orava e cantava.
Ajoelhados, oravam moços e velhos, fortes e desvalidos, avós e meninas virgens. Em
uníssono pediam perdão, imploravam clemência, piedade, salvação.
Por muitas horas pediram, mas as horas não se detinham, o Tempo nunca que chegava
ao Fim.
Todo um dia lentamente se arrastou e o sol começou a se por.
Crescia o cansaço, a fome, a sede.
E o Fim dos Tempos não chegava.
Mudo estava Simeão, o do Pilar; mudos estavam os céus, em sua tardança em desatar as
prometidas fúrias, arrasar as serranias, devastar mares e terras, fazer do mundo carvão.
A noite chegou, com seu manto de friagem. E nada de Fim dos Tempos, nada de
línguas de fogo, nem ao menos um dilúvio.
E foram secando as lágrimas, mais baixas se fazendo as rezas, minguando as cantorias,
perdendo vigor as aleluias.
A noite avançava, escura e sem lua, mas as estrelas não caíam. Nada. Nem ventos, nem
tempestades. Nem ao mesmo um corisco, fogo fátuo.Só negrumes e friagens.
Entrada a madrugada, os primeiros começaram a se levantar, levando consigo mulheres
e filhos, encorajados pelo véu da escuridão em sua retirada.
Debandavam, descrendo.
Logo outros imitaram.
E outros e mais outros.
Quando o dia amanheceu, somente a Mãe permanecia firme em seu posto, abraçada à
estaca, o rosto gelado, os olhos inchados do choro. Ela, sim, ainda esperando, ainda
piamente acreditando.
Simeão, o Filho, baixou a corda e pela corda desceu de seu pilar, sem nada dizer.
Seguiu em direção a casa. Na sala, ao pé do oratório, a vela de Santo Eustacchio, o das
Trompas, ainda ardia.
Simeão, o Filho, agarrou o machado, saiu ao terreiro e com golpes rápidos e potentes
colocou abaixo a estaca, tombou em dois tempos o enorme madeiro.
- Aqui está, minha Mãe. Um tronco como nunca se viu. Tirado na lua certa, cortado
como de Lei. Daqui sairão os mourões novos do pasto e as vigas do nosso telhado, que
isto é madeira para durar um século e não se acabar até o Final dos Tempos.

8
E sem mais falares, como de seu feitio, Simeão, o Filho, cravou com força o machado,
começou a partir em cem pedaços a tora de jacarandá.

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Salvador, dezembro de 2007

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