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UM VAZIO DE TANTO

Sobreviver no uma questo de escolha. No se trata aqui de acreditar na Providncia Divina, em uma interveno sobrenatural ou mesmo na aleatoriedade do acaso. Deixo isso para quem no aguentou o tranco. Sobreviver, no fim das contas, voc se perguntar por que ainda est de p, enquanto o passar dos dias trama sabotagens e armadilhas sequenciadas. Sempre em cmera lenta o inferno, o inferno, o inferno , fazendo o prximo minuto ser o mais aguardado. Tudo para morder mais um naco de sua carne, subtrair mais um tanto da sua personalidade e te dar em troca abismos e redemoinhos feitos sob medida justo onde di mais. O resultado desse escambo: o sono da razo produz pontos cardeais. [ao despertar de sonhos intranquilos, me agarrei ideia de que em um deles eu havia encontrado o diabo em um bar, em uma noite de domingo. escrevi num pedao de papel qualquer o nome que ele atualmente usa - o primeiro que veio minha cabea assim que o vi. pedi ao garom que levasse o papel at ele, j desdobrado, s para que soubesse que no estava incgnito como poderia cogitar. o nome, em uma lngua que no posso revelar, significa aquele que a tudo enferruja. acendi um charuto e sa. no me interessava a reao.]. Fumando na varanda de casa, olhei ao redor, como manda a etiqueta dos sobreviventes. Vi a luz da TV do apartamento em frente. Uma bicicleta com os dois pneus murchos. Uma pilha de roupas para lavar. A rabiola de uma pipa enganchada na copa de uma rvore no quintal do vizinho. Sinais de vida e apenas isso: sinais, sombras, simulacros. Ferrugem. O mundo volta a ser real como a brasa do cigarro que quase queima meus dedos enquanto eu puxo a fumaa para dentro, j ciente da demora dos fogos de artifcio programados para essa noite. A primeira das impossibilidades anunciadas: o inferno sempre foi espera. Saber disso no faz com que as horas sejam menos vazias.

Jorge Rocha Dez/2012

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