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A ÉPOCA da classe mé-

dia é o assunto estuda-


do por Otto Maria Car-
peaux neste quinto vo-
lume da sua monumen-
tal História da Literatu-
ra Ocidental. Trata-se
de um período dos mais
ricos de acontecimentos
importantes da história
da Humanidade, onde
surgem e avultam gran-
des figuras do romance,
da poesia, do teatro e do
pensamento crítico. Mu-
nido de um cabedal in-
vulgar de conhecimentos
literários, Otto Maria
Carpeaux delineia um
quadro geral e profun-
do do período social que
leve como seu fulcro a
ciasse média. A realida-
de político- económica e
suas implicações ideoló-
gicas, as concepções re-
novadoras da arte da
criação artística, as
ideias de uma nova es-
tética, este é o vasto
panorama que o autor
perquire e analisa, a
fim de ressaltar as fi-
guras preeminentes da
criação literária e que
contribuíram para con-
figurar a época da clas-
se média. Todos os as-
pectos dessa época são
iluminados pela inteli-
gência e pela sensibili-
dade «de Otto Maria
Carpeaux, mesmo aque-
les que repontam como
de significação aparen-
temente menor. A sim-
ples enunciação de al-
guns dos temas aborda-
dos permitirá ao leitor
formular uma impressão
deste quinto volume:
hliifili—II determinista,
1

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HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL

Publicados:
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VOLUME I
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lo, Literatura Grega / O Mundo Romano / História do Humanismo e
la das Renascenças / O Cristianismo e o Mundo
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I / O Marroco Protestante / Misticismo e Moralismo / Antibarroco
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VOLUME III
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ILUSTRAÇÃO E REVOLUÇÃO
iCCti Origens Neobarrocas / Classicismo Racionalista / O Pré-Romantísmo /
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O ROMANTISMO
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le Bi Igons do Romantismo / Romantismo de Evasão / Romantismo em
Oposição / O Fim do Romantismo

VOLUME V

los ] A ÉPOCA DA CLASSE MÉDIA


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I.Mtr Literatura Burguesa/O Naturalismo / A Conversão do Naturalismo.

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OTTO MARIA CARPEAUX

HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL

HISTORIA DA
LITERATURA
O C l í) E N T AL

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V*\ EDIÇÕES O CRUZEIRO

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CENTRAL
.1 COMPOSTO E IMPRESSO NAS OFICINAS

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UMA I><» l,iv«AMENTO, 203, Rio
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IKB O CRUZEIRO. NOVEMBRO DE 1963.

Universidade Estadual de Maringá l '


Sistema de Bibliotecas - BCE

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Dlretor

HERBERTO SALES

TO» AUTORAIS ADQUIRIDOS PELA E M PRESA


O CRUZEIRO S. A., QUE SE RESERVA A
M» LITERÁRIA DA PRESENTE EDIÇÃO
CAPÍTULO I

LITERATURA BURGUESA

• * 2 de agosto de 1830, Eckermann anotou no seu


IN Hoje chegou em Weimar a notícia da Revo-
Uçlo dr luiii... t todo mundo se assustou. Na tarde, vi-
lltei Goethe. — Que pensa desse grande movimento?
Dizia éle logo: — " O vulc&o explodiu, tudo está ar-
dendo, n9o haverá mais negociações atrás de portas fecha-
das." — "É terrível — respondi — mas não era possível
esperar outra coisa, nessa situação e com esse ministério,
•enao a expulsão da família real". — "Não me parece ter en-
tendido bem, meu caro amigo — dizia Goethe — não falei
#b»olutamente daquela gente. Trata-se de coisas muito mais
'importantes. Falo da briga científica entre Cuvier e Geof-
fvoy de Saint-Hilaire, na última sessão da Academia".
Cuvier acreditava na permanência dos tipos, criados
por Deus, dentro do reino animal, enquanto Geoffroy de
| Baint-Hilaire defendeu a variabilidade e evolução desses
Ipos, antecipando ideias de Darwin; e essa discussão zooló-
gica parecia a Goethe mais importante do que a luta pela
Iberdade política da nação francesa. Do ponto de vista da
poça, Goethe estava profundamente errado. A Revolução
Julho é um dos acontecimentos mais importantes da
tória moderna, talvez de maiores repercussões do que
Iquer revolução anterior: a Revolução de 1789 signifi-
• a emancipação económica da burguesia, que agora,
Hti 1830, também se apoderou do poder político, remo»
^Bdo os últimos obstáculos da evolução capitalista da
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economia. Goethe, homem de outra época, não pôde ter com- ção muito limitada do marxismo no próprio proletariado,
preendido isso; e explica-se assim a polémica hostil da incapaz de abraçar o socialismo científico porque ainda
qual ele se tornou o alvo: os intelectuais alemães, Boer- não tinha consciência de classe. As reações proletárias con-
ne na frente, denunciaram-lhe a "indiferença olímpica", a tra o domínio da burguesia ainda eram tão desordenadas
hostilidade quase aberta com respeito aos mais altos ideais como a Comuna de Paris em 1870 e o anarquismo bakunista
da democracia e da humanidade. Os homens lutaram pela na Suíça, Itália e Áustria. O feudalismo já estava derrubado;
liberdade; e Goethe teimava em achar isso sem importância
os proletários, ainda incapazes de se defender. Na verda-
considerando mais importante a solução de certos proble-
mas da zoologia. Pensando, porém, sub specie aeternitatis, de, nada se opunha à ascensão vertiginosa do capitalismo.
como o seu mestre Spinoza, Goethe tinha razão. Os pro- O utilitarismo inglês, de Bentham e dos seus compa-
gressos da biologia revelaram-se mais importantes do que a nheiros, constituíra a base do radicalismo político na In-
Revolução de Julho. Geoffroy de Saint-Hilaire preparou o glaterra. Depois, "darwinizou-se": o "útil" identificou-se
advento do darwinismo; as "ciências do espírito" do ro- com o "natural". Como "útil" já não foi considerada "a
mantismo — as ciências históricas — perderam a primazia maior felicidade possível do maior número possível", mas a
em favor das ciências naturais, particularmente da biologia. eliminação dos fracos e incapazes pelo "struggile for life", a
A história dos homens foi substituída, nas preferências da "seleção" dos fortes e aptos. O liberalismo económico de
época, pela história das espécies zoológicas; e desse fato Adam Smith e Ricardo e a doutrina dos livre-cambistas de
decorreram graves consequências morais. A filosofia do Manchester encontraram apoio na biologia. "Laissez faire,
historismo, a de Hegel, desapareceu do teatro do espirito laissez aller"; e tudo se endireitará muito bem; o otimismo
europeu. Entre 1850 e 1860 começou, enfim, o reconhe-
•ociológico dos liberais baseava-se no automatismo da se-
cimento público de Schopenhaeur, pensador anti-histórico,
leção das criaturas e dos fatos, quer dizer, em um determi-
que podia impunemente insultar a memória de Hegel sem
encontrar oposição séria; por volta de 1860, os grandes cien- nismo biológico. Mas esse determinismo, como todo determi-
tistas, os físicos, químicos, biólogos, já fizeram questão de nismo, está em contradição irreconciliável com a liberdade
ignorar as "arbitrariedades' do filósofo "idealista". Em BOlítica. Essa contradição dialética dentro do pensamento
1870, já não havia nenhum hegeliano entre os catedráticos da burguesia é o grande tema da época: aparece, pela pri-
de filosofia nas Universidades alemãs; e os poucos hegelia- Blaira vez, na atitude da grande imprensa depois de 1830;
nos no estrangeiro — Vera e Spaventa na Itália, Cair d e •••aparece, aparentemente, no "compromisso vitoriano";
Thomas Hill Green na Inglaterra — eram considerados ^Hfe, como motivo de pessimismo europeu, por volta de
como esquisitões. O ostracismo de Hegel estendeu-se ao seu ^Êf\ inspira as reações idealistas dos pensadores sociais
discípulo mais devotado e mais antagónico, a Marx. A ciên- ^ B l l t s , como Ruskin e Morris; até, enfim, o determinismo
cia das Universidades burguesas não devia nem podia tomar
•glco se transformar em determinismo mesológico do
conhecimento de uma doutrina profundamente ligada ao
hegelianismo e em parte codificada na terminologia do "•'Hirillamo e desembocar no determinismo económico do
mestre de Berlim, como era o marxismo. O desconheci- marxlamo.
mento do marxismo pela burguesia correspondia à divulga- Depois da Revolução de Julho de 1830, os ideais do li-
beralismo encontraram o defensor incorruptível em Ar-
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2115
2 U 4 OTTO MARIA CARPEAUX
ticas. Na elaboração desse estilo resume-se a história da
l
mand Carrel ( )> articulista do National, tipo de jornal de imprensa francesa sob a monarquia de Julho ( 5 ). Girar-
partido, jornal ideológico. Carrel morreu em duelo; quem din ( 6 ), o assassino de Carrel, tinha fundado em 1836 La
o matou foi o seu concorrente Émile de Girardin, fundador Presse; era um jornalista hábil, capaz de ofender os inimi-
da Presse, tipo do "grande jornal" com muitos anúncios e gos com ironias mordazes e excitar a massa por meio de
pouca ideologia. O acontecimento é evidentemente simbó- ataques violentos. Mas escrever não era a mais importante
lico. Procurou-se-lhe a explicação em intrigas políticas; 'as suas atividades jornalísticas. Até então os jornais fo-
mas será preciso acentuar o antagonismo entre jornalismo ara bastante caros; Girardin barateou o preço das assina-
liberal e jornalismo capitalista, ambos, porém, expressões ras, baseando o negócio, em vez da venda da tiragem, nos
da burguesia vitoriosa ( 2 ). Também será conveniente acen- úncios. "Les conséquences de 1'annonce furent rapides
tuar a quase coincidência do acontecimento com a morte infinies". Para garantir sucesso aos que deram anún-
de Goethe, em 1832, e com a polémica de Boerne e dos ou- ios ao seu jornal, Girardin criou um público permanente
tros jornalistas liberais da Alemanha contra o "olímpi- estável de leitores, publicando no folhetim um romance
co" ( 3 ). Boerne estava perto de Carrel; mas o seu ódio con- i série, em continuações. O êxito dessa invenção foi tão
ande que até os jornais mais antigos, de digna tradição
tra Goethe tem o mesmo sentido como o fato de que Girar-
deológica, se viram obrigados a imitar o exemplo: o Jour-
din ignorava a Goethe. A "época halcyônica" acabara; a do
al des Débats publicou os Mystéres de Paris, de Sue, e
jornalismo começou.
Constitutionnel o Juif errant, do mesmo romancista. Du-
Os instrumentos do jornalismo moderno foram cria-
as père, George Sand, Balzac aparecerão entre os autores
dos na Inglaterra (*). Nas oficinas do Times, fundado em
e romances-folhetins. Inicia-se uma aliança entre jor-
1785, introduziu John Walter em 1814 a imprensa a vapor;
alismo e literatura. A paixão dos jornalistas literários,
mandou os primeiros correspondentes estrangeiros e cor-
e um Boerne e tantos outros, pela liberdade da imprensa,
respondentes de guerra para o Continente; publicou os
instrumento mais poderoso da burguesia, está em rela-
primeiros "artigos de fundo". Conservou, porém, o caráter
com o fato de a literatura começar a viver do público
meio aristocrático do jornal, expressão da elite intelectual
jornais. Quando Gustav Kolb reorganizou, em 1832, a
da Inglaterra. O grande público, "the great middle clas-
ugsburgische Allgemeine Zeitung do editor Cotta, editor
ses", preferiu o Daily Telegraph, desde 1855 o maior jornal
Goethe e Schiller, contratou a Heine como correspon-
inglês, conquistando os leitores pela habilidade de expri-
te em Paris. Em 1843 aparece Charles Dickens entre os
mir as reivindicações do liberalismo em frases democrá-
órteres do Morning Chronicle; e em 1846 fundou o ro-
ncista os Daily News, baseando o sucesso do jornal em
ortagens sobre crimes e acidentes. A Indépendance Bel-
1) Armand Carrel, 1800-1836. (Cf. "O Fim do Romantismo", nota 87.)
R. G. Nobécourt: La vie á'Armand Carrel. Paris, 1930.
Armand Carrel, journaliste. Paris, 1934.
2) L. Fiaux: Armand Carrel et tmile de Girardin, causes et but M (lAvenel: Histoíre de la presse française depuis 1789. Paris,
d'U7i duel, moeurs du temps, dessous de politique. Paris, 1911.
1U00.
3) V. Hehn: "Goethes Publikum. <In: Gedanken ueber Goethe. 7.*
ed. Berlin, 1909.)
4) E. G. Kellet: "The Press, 1830-1865. (In: Early Victorian England, In, 1934.
edit. por G. M. Young, Oxford, 1934.)
2116 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2117
ge, fundada em 1831 em Bruxelas, terá entre os seus colabo-
Cromwell e Milton. Também eram burgueses os drama-
radores estrangeiros um Thackeray, um Mazzini, um Gutz-
turgos e poetas que rodeavam Luís X I V , "ce grand roi
kow, u m Multatuli, um Dostoievski.
bourgeois". Burgueses eram os "dissenters" ingleses do
"Les conséquences de 1'annonce furent rapides et infi- século X V I I I , o público de Addison e Steele, do romance
nies". A *frase encontra-se no artigo Littérature indus- e teatro sentimentais e da poesia pré-romântica. Burgue-
trielle, publicado por Sainte-Beuve em 1839 na "Revue des ses eram os oradores da Revolução francesa. Em todas essas
Deux Mondes"; a imprensa é definida, nesse artigo, como "épocas de transição" agiu, histórica e literariamente, a bur-
"la presse, ce bruyant rendez-vous, ce poudreux boulevard guesia; mas sempre imitando o estilo de outras, mais altas,
de la littérature du jour". O artigo inteiro, denunciando classes da sociedade. Só depois de 1830 venceu, com a
"des hommes ignorants des lettres, envahissant la librairie burguesia, o próprio estilo de vida da burguesia: a econo-
et y rêvant de gains chimériques", serve à polemica contra mia livre e o parlamentarismo, os trajes masculinos mais
Balzac; mas este mesmo criticará a nova situação das letras sóbrios, sem qualquer vestígio de pitoresco, a prosa de
nas Illusions perdues, assim como Thackeray o fará em Pen- casaca e cartola, a prosa dos negócios e a prosa na literatura.
denis. Os dois grandes romancistas escreveram com co- Byron e Puchkin ainda escreveram romances em versos; e
nhecimento da causa: ambos eram jornalistas. Mas o pró- o romance de W a l t e r Scott, embora em prosa, foi poético.
prio Sainte-Beuve, colaborador do Constitutionnel, do Mo- Mas agora, o romance tornou-se prosaico.
niteur e do Temps, também era jornalista. Ninguém pôde
escapar. E "les conséquences furent infinies". Começou A história do romance como género literário divide-se
uma época da prosa. Pela primeira vez na história da li- tm duas épocas: antes e depois de Balzac ( 7 ). Com êle, até
teratura universal, a prosa tornou-se mais importante do o termo mudou de sentido. Antes de Balzac, "romance"
que o verso. Uma forma de literatura em prosa, o romance, íôra a relação de uma história extraordinária, "romanesca",
quase absorveu todos os outros géneros; o género de Cer- (ora do comum. Depois, será o espelho do nosso mundo,
vantes e Alemán, Defoe e Abbé Prévost, Rousseau e Scott, [dos nossos países, das nossas cidades e ruas, das nossas
Stendhal e Manzoni, tornou-se a expressão soberana da Btfias, dos dramas que se passam em apartamentos e quartos
vida burguesa. E i s a obra de Balzac, romancista da bur- imo de nós outros. Depois da leitura de um romance de
guesia. lulzac revela-se imediatamente tudo o que há de irreal, de
iginário e "romanesco" em La Princesse de Clèves, em
Balzac é a figura mais importante da transição entre o inon Lescaut, em La Nouvelle Héloise, e a diferença
romantismo e o realismo-naturalismo: representa o adven-
to da burguesia. Mas é urgentemente preciso definir os
>noré de Balzac, 1799-18*50.
termos dessa afirmação geralmente aceita. No fundo, todas Chouans (1827); La peau de chagrin (1830); Gobseck (1830);
as épocas são épocas de transição. E com respeito à bur- IH Lambert (1832); Vlllustre Qaudíssart (1832); Colonel Cha-
(1832); Le cure de Tours (1832); Le chef-d'oeuvre inconnu
guesia: ela já apareceu tantas vezes no palco da história \); Engenie Grandet (1833); Le médecin de campagne (1833);
e da história literária. Burgueses eram os políticos e os liuchesse de Langeaís (1834); La filie aux yeux d'or (1834);
Ooriot (1834); La recherche de VAbsolu (1834); La femme
poetas das cidades italianas do "Trecento". Burgueses Ue ans (1835); Le lys dans la vallée (1835); La Maison Nu-
eram Lorenzo de' Mediei e os humanistas do "Quattrocen- 11837); Histoire de la grandeur et de la décadence
Birotteau (1837); Les secrets de la princesse de Cadig-
to". Burgueses eram os puritanos do "Commonweal" de 139); Massimilla Doni (1839); Ursule Mirouet (1841); Une
tse affaire (1841); Un ménage de garçon (1842); La ra-
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2119
2118 OTTO M A R I A CARPEAUX
co reformado entre paisanos bem-nascidos. Em Bal2ac, as
significa uma das modificações mais importantes em toda ambições revelam direção nítida. Rastignac, em Père Go-
a história da literatura universal. O próprio Balzac era tiot, o intelectual que pretende conquistar a cidade de Pa-
bem capaz de escrever romances que parecem pertencer ris, conhece os meios para subir na sociedade burguesa, ou
àquela linhagem tradicional: o romance erótico da Femme antes o único meio: o dinheiro. De nada vale o sonho ro-
de frente ans é um deles. Aí o termo ainda tem o sentido mântico de uma felicidade que chega de presente, seja de
em que se fala ou falava de "viver um romance com uma Deus, seja do diabo; é isto que demonstra La peau de cha-
mulher". Mas os heróis e heroínas de madame de La Fayet- grin. O que vale é a Recherche de 1'Absolu, e esse "Absolu",
te, do Abbé Prévost, de Rousseau e Constant não fazem ou- com maiúscula, é o Dinheiro. Mas tampouco se trata do
tra coisa senão viver "romances com mulheres"; das outras dinheiro do velho Grandet, dinheiro imobilizado em co-
necessidades vitais de um homem em carne e osso não se fres, terrenos e casas. "Enrichissez-vous, messieurs!", disse
fala. Esse monopólio novelístico do sexo foi rompido, num o ministro do rei-burguês Luís Felipe, do qual Balzac era
episódio de Werther e em Le Rouge et Le Noir, pelo moti- o súdito pouco leal; e o romancista, génio ingénuo da eco-
vo inédito da ambição; mas são reivindicações vagas no in- nomia política, conhecia a fundo as condições indispensá-
telectual burguês na sociedade feudal, do oficial napoleôni- veis para realizar aquele imperativo burguês: era preciso
mobilizar o capital imobiliário. Daí o papel importante dos
tabeliães no mundo balzaquiano de proprietários, advogados,
bouilleuse (1842); Splendeurs et misère des courtísanes (1843); industriais, comerciantes e aristocratas empobrecidos. De
Illusions perdues (1843); Modeste Mignon (1844); Le cure de vil-
lage (1845); Cousine Bette (1846); Cousin Pons (1847); Le de- dinheiro e negócios fala-se, principalmente, nos romances
pute d'Areis (1847.) de Balzac. A Comédie Humaine é a "Tragédia do Dinhei-
Edição por M. Bouteron e H. Longnon, 40 vols., Paris, 1912/1940.
H.tt Taine: "Balzac" (In: Nouveaux essais de critique et d'hístoire. ro". Daí aquela diferença. Todos os romancistas antes de
7. ed. Paris, 1901.) Balzac parecem-se mais ou menos com adolescentes de 18
F. Brunetière: Balzac. Paris, 1906.
C. Calippe: Balzac et ses idées sociales. Paris, 1906. •nos que vêem no amor o conteúdo da vida inteira. Balzac
E. R. Curtius: Balzac. Bonn, 1923. é o adulto: as suas mulheres são substantivos no texto do
A. Bellessort: Balzac et son oeuvre. Paris, 1924.
E. Prestem: Recherches sur la technique de Balzac. Paris, 1926. contrato de casamento, ou então objetos do prazer, tenta-
P. Barrière: Honoré de Balzac et la tradition littéraire classique. 6es e obstáculos do homem de negócios, motivos de fa-
Paris, 1928.
P. Abraham: Honoré de Balzac. Recherches sur la création in- das. Os romances antes de Balzac terminam com o ca-
tellectueUe. Paris, 1929. ento; os romances de Balzac começam com o casamento
E. Buttke: Balzac ais Dichter des modernen Kapitalismus. Berlin,
1932. e lança os fundamentos, de uma nova firma.
Alain: En lisant Balzac, Paris, 1935.
R. P. Bowen: The Dramatic Construction of Balzac's Novéis. Balzac confessava-se conservador: filho fiel da Igre-
Eugene, Ore, 1940. • partidário da monarquia do ancien regime. Paradoxal-
R. Fernandez: Balzac. Paris, 1943.
A. Billy: La vie de Balzac. 2 vols. Paris, 1944. te, foi este reacionário que descobriu e revelou as con-
A. Béguin: Balzac visionnaire. Genève, 1946. Uências da Revolução. Não tem nada com o romantismo
B. Guyon: La pensée politique et sociale de Balzac. Paris, 1947.
G. Atkinson: Les idées de Balzac d'après la Comédie Humaine. •1. Os Hugo, Lamartine e George Sand repetiram as
5 vols. Genève, 1948/1950. •» retumbantes de 1789; nas suas obras, a realidade so-
M. Bardèche: Balzac romancier. 3.* edição, Paris, 1951.
G. Lukacs: Balzac und der jranzoesische Realismus. Berlin, 1952. I de 1840 está ausente ou romanticamente deformada.
G. Pradalié: Balzac historien. Paris, 1955.
F. Marceau: Balzac et son monde. Paris, 1955.
H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 2121
2120 OTTO M A B I A CARPEATJX
em cujo estilo escreveu Les Chouans. Mas Scott era um
Balzac detestava as frases revolucionárias; mas como obser-
épico romântico em prosa clássica, e Balzac um dramaturgo
vador da sociedade é infinitamente mais avançado. Sabe
clássico em romances realistas.
que o liberalismo político é a fachada do liberalismo eco-
O romantismo de Balzac é inegável: mas é um roman-
nómico; e contra este guarda todos os ressentimentos de
tismo especial, já perto da fronteira do realismo, como o
um amor infeliz. A sua própria situação social era mais
de E. T . A. Hoffmann, Manzoni e Cooper, três objetos da
ou menos a do seu Colonel Chabert ou de Julien Sorel: um
sua admiração literária, três descobridores de mundos no-
burguês parisiense, entravado primeiro pela Restauração
vos. O romantismo de todos eles é fuga de uma realidade
monárquica, depois pela revolução industrial. Não gosta-
insuportável; outros mundos lhes pareciam mais "român-
va de confessar isso. Atribuiu-se, como Musset, uma nobre-
ticos"; e não havia mal em descrever esses mundos novos
za duvidosa, que só deu prestígio no ambiente da boémia
com o realismo aprendido nos romancistas ingleses. Balzac
literária; sonhava, durante a vida inteira, com duquesas e
não pôde aprender muito nos ingleses; o seu próprio mun-
condessas que enchem os seus romances como enfeitos de
do já era mais avançado do que o de Fielding ou Scott.
casa, destinados a impressionar os credores. A aristocracia
O inglês com que o romancista de Paris se parece é o
de sangue devia-lhe servir de ponte para alcançar a aristo-
romancista de Londres: Dickens. Neste e naquele há o
cracia do dinheiro. Balzac, detestando os grandes indus-
barulho e o turbilhão da grande cidade, cheia de gente.
triais, era êle mesmo um grande industrial. Malogrou, é
Mas em Dickens, é uma massa atomizada de indivíduos ri-
verdade, em mil negócios fantásticos; mas ganhou afinal
dículos e trópicos, infelizes ou burlescos. E m Balzac, não
muito dinheiro na indústria literária, sendo êle um dos
se trata de massas atomizadas, mas de uma sociedade: a
"hommes ignorants des lettres, envahissant la librairie et
Ccmédie humaine é a história de uma sociedade hierarqui-
y rêvant de gains chimériques." Daí, escreveu muito e mui-
camente organizada, sendo elementos e critérios de orga-
to de mais. É verdade que a quantidade impressionante da
nização: as tradições, o dinheiro e as paixões. T u d o isso
obra de Balzac também representa u m valor; o autor de
Balzac vê claramente com o olho do sociólogo e com o olho
poucos livros assim seria um editor notável, mas não seria
do visionário que Bégrin lhe descobriu. Sua força visioná-
um Balzac. Contudo, grande parte da sua obra já enve-
ria só tem um limite: ignora a Natureza. É escritor ex-
lheceu irremediavelmente, porque constituída de romances
clusivamente urbano. Essa "urbanidade" produz até cer-
de mero divertimento, escritos às pressas para ganhar di-
ta aridez: os personagens estão solidamente integrados na
nheiro. Mas são justamente os que mais agradaram ao pú-
êde das relações sociais; mas não dependem do ambiente,
blico de então e suscitaram a indignação de Sainte-Beuve:
cimente descrito, das velhas ruas e ruazinhas do centro
os romances só aparentemente realistas nos quais se revela-
Paris. Há uma discrepância sensível entre Balzac, ana-
ram os segredos eróticos daquelas duquesas e condessas. Aí
ta da sociedade, e Balzac, romancista da cidade. O mo-
Balzac mentiu; era, na vida, um grande mentiroso. Mas
dessa discrepância encontra-se no seu método nove-
a mentira é a outra face do seu génio inventivo; e nem sem-
pre Balzac mentiu quando falava com admiração de artis-
tocratas de panache. Havia no romancista da burguesia Balzac tem um método cuidadosamente elaborado —
uma forte saudade de épocas passadas, um torysmo pré- o distingue de Dickens — para dominar aquele turbi-
romântico à maneira de Walter Scott, seu primeiro modelo, urbano. Dickens compõe reportagens, integrando-as
2122 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2123
•té formarem histórias de tamanho considerável. Os ro-
mancea d€ Balzac são, em geral, muito mais curtos: êle tem resco; menos nos seus tipos apaixonados. Não dispõe da
uma v i i l o global da sociedade burguesa, decompondo essa economia psicológica de Molière, que fêz de Harpagão,
viaão até resultarem monografias de tamanho reduzido, mas Tartufo, Alceste homens completos com uma paixão domi-
dizendo tudo sobre certo bairro, certa profissão, certa clas- nante no c e n t r o ; o velho Grandet, Cousin Pons, Cousine
se. Balzac é um classificador, "o Linné da burguesia". A Bette, Balthazar Claes, na Recherche de VAbsolu, são mons-
própria composição da Comédie humaine explica-se assim: tros monomaníacos, desumanos; niguém teria a coragem de
depois de ter escrito certo número de romances, Balzac reu- rir deles. Antes inspiram a mistura de "terreur et pitié"
niu-os conforme um sistema de estática sociológica, e come- que a dramaturgia aristotélica exigia. Realizam a "catarse"
çou a escrever mais romances "sociais" para ocupar os lu- de Balzac; a sua vingança contra a sociedade que não o
gares ainda vazios do esquema. À estática juntou-se a dinâ- admitiu, embora sendo êle o seu Homero, ou antes seu Sha-
mica: da província para Paris há um movimento contínuo kespeare. Pois é, novamente, pelo valor da quantidade que
no sentido de industrialização e aburguesamento; e na pró- Balzac excede os limites do teatro clássico. No dizer de
pria Paris esse movimento continua, como descida de clas- Taine: "Avec Shakespeare et Saint-Simon, Balzac est le
ses decadentes e ascensão de elementos novos. O meio para plus grand magasín de documents que nous ayons sur la
simbolizar esse movimento social é a volta de certos perso- nature humaine."
nagens, aparecendo em vários romances em lugares diferen- Balzac sabia t u d o : das duquesas e dos negócios. Mas
tes da hierarquia social. Eis o cimento da construção li- assim como só sonhava de duquesas, assim ficaram-lhe fe-
terária da Comédie humaine. Quer dizer, os personagens chados os escritórios dos grandes industriais. As suas pró-
de Balzac, além de serem caracteres humanos, são tipos prias empresas fantásticas acabaram todas em falências. O
sociais, representando categorias inteiras da sociedade. leu destino comercial tem algo da ascensão rápida e queda
Esse processo é o do teatro clássico francês, sobretudo da rofunda do seu César Birotteau; e este é um fabricante
comédia de Molière. Com efeito, Balzac é um grande dra- e perfumes, quer dizer representante de uma indústria an-
maturgo. O tamanho reduzido da maior parte dos seus ro- a, le luxo, profissão de pequeno-burguês francês a ser-
mances é consequência da composição rigorosamente dra- o de gente do "ancien regime". O próprio Balzac era
mática. Mais uma vez é preciso salientar que Balzac, com rguês; mas pertencia à burguesia antiga, pré-capitalista;
todo o seu romantismo inato, não é absolutamente român- uanto era romântico, revela-se antes como pré-românti-
tico. Nada do teatro de Hugo ou de Musset; nada de sha- descobrindo novos ambientes e reagindo com o pessimis-
kespeariano. Balzac é económico quanto aos recursos esti- de um realista por desilusão. A mais completa das suas
lísticos; chegou a parecer mau estilista aos espíritos ro- t é Cousine Bette; a melhor realizada é La Recherche
mânticos; ignorando a natureza, só se dedica à "la cour et Absolu; os seus estudos mais profundos são Père Go-
la ville", como os dramaturgos do século X V I I ; neles apren- § Kugénie Grandet. Mas a sua maior obra talvez seja
deu o mecanismo, a construção quase mecânica do jogo das Wúns perdues: aí, o literato Lucien de Rubempré ocupa,
paixões diante de uma decoração imutável que está sem- Wto da sociedade, o único lugar que lhe deixaram, o de
pre presente sem tomar parte nos acontecimentos. Daí Boi corrompido pelo jornalismo. Há nisso um elemen-
Balzac, descrevendo tantas coisas pitorescas, não é pito- ftebiográfico, apresentado sem romantismo nem senti-
mo, com a frieza do sociólogo, ou, se quiserem, com
2124 OTTO MARIA CABPEAUX

o cinismo de um comerciante em literatura; ou então, com HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2125


o realismo psicológico de um moraliste do século XVII, não
Saínte-Beuve e Mérimée — e a burguesia tradicional, pré-
admitindo outros motivos dos atos humanos senão o egoísmo
capitalista, à qual Balzac pertencera; esta foi sacrificada em
interessado e paixões mais ou menos dissimuladas. É o pes-
toda a parte; na França pela ditadura cesariana ne Napoleão
simismo psicológico dos grandes moralistes franceses e do
III que se deu ares de socialista; na Alemanha pelo Estado
classicismo em geral. Balzac é o Machiavelli da burguesia,
policial, que oprimiu o liberalismo político, concedendo po-
analisando-lhe e resumindo-lhe os processos. Deste modo,
rém, plena liberdade económica. Em consequência, os in-
o grande realista, acreditando na permanência dos maus
telectuais tomam a palavra pela burguesia pré-capitalista,
instintos na natureza humana, torna-se fatalmente reacio-
enaltecendo-lhe as virtudes: estes não são especuladores,
nário. É verdade que a ideologia político-religiosa de Bal-
nem em política nem nos negócios! Surgiu uma literatura
zac não é de construção tão sólida como os seus romances;
que é conservadora, mas não reacionária. O seu meio prefe-
o seu monarquismo é tão duvidoso como o seu catolicismo.
rido de expressão é o teatro, que permite a representação das
Por isso não é um De Maístre, dando lições à "Cidade";
contradições dialéticas da posição burguesa, assim como
mas é o historiador fidedigno de sua "Cidade", do mundo
Balzac se tinha representado pela construção dramática dos
da Comédie humaine; e aquela ideologia só lhe serve de
seus romances. O instrumento dramatúrgico dessas repre-
critério para classificar os fenómenos e pôr em ordem no-
sentação já estava pronto: na França, a técnica teatral de
velística o caos. O conservador Balzac, criando a literatura
Scríbe; na Alemanha, o teatro tendencioso de Gutzkow.
moderna: eis o paradoxo ideológico da sua obra, ilumi-
nando o conflito entre os ideais liberais e individualistas Augier ( 8 ) é o herdeiro de Scríbe; apenas substituiu
do século XVIII e as necessidades económicas e militaris- o "1'arfpour 1'art" das complicações engenhosas pela thèse:
tas do século XIX; talvez só o reacionário, observando de contra a tentação perigosa pelas mulheers à maneira da
fora os fatos, fosse capaz de descobrir e admitir aquele con- Marneffe, de Balzac; contra as ambições desmesuradas de
flito. Depois de 1830, a burguesia vitoriosa traiu os ideais lum Rastignac ou Rubempré; contra as ligações com a aris-
do liberalismo; e Balzac o denunciou. Depois de 1848, o tocracia arruinada; contra o culto excessivo do dinheiro.
medo da revoluçãe proletária levou os burgueses à reação lAugier defendeu o ideal supremo da burguesia tradiciona-
aberta; então chegara a hora de Balzac, o único entre a ge- Qlita francesa, a família, o lar, a honestidade pessoal e co-
ração romântica que nunca aderira ao "romantismo social", •nercial; não era reacionário, antes ao contrário, um voltai-
ficando fiel às ideias monárquicas e religiosas do romantis- M.ino e advogado dos princípios moderados de 1789, inimi-
mo de 1820. O realismo de Balzac é de 1860, de 1870; será • 0 dos padres e sobretudo dos jesuítas, relaxados em ma-
continuado por Flaubert, por Zola. A posição ideológica de íéria de conduta moral — acreditava sinceramente ser pas-
Balzac é de 1850; já é post-romantismo. Gflliano. Mas não há nada de angústias em Augier. As
•uns "teses", honestas e justas, são perfeitamente razoáveis,
O resultado de 1848 foi a aliança tácita entre os pode-
res feudais — aristocracia latifundiária e Igreja — e a
grande burguesia, assustada pelas revoltas proletárias. As runile Augier, 1820-1889.
" vítimas foram os intelectuais — os românticos desiludidos L9 gendre de M. Poirier (1854); Les lionnes pauvres (1858); Les
\ ou exilados, enquanto não viraram conformistas, como •nt.es (1861); Le fils de Gíboyer (1863); Maitre Guérin (1864);
jMOfif et Èenards (1869); Les Fourchambault (1879.)
Í£, Oaillard: Smile Augier et la comédie sociale. Paris, 1910.
mm: Théâtre d'híer et ã'aujourd'hui. Paris, 1926.
2126 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2127

e a demonstração cénica, bastante hábil, é convincente. J u s - ( 10 ) é o único precursor, digno desse nome, de Ibsen: mas
tamente por isso Augier não é, como lhe chamaram, o Bal- êle também não era poeta. Hebbel é uma das expressões
zac do teatro. Convence menos pela sugestão dramática do mais poderosas do século da prosa: era pensador, e chegou
que pela habilidade cénica. Prepara o caminho ao vaude- no entanto a resultados tão permanentes como, em geral,
ville burguês de Sardou. As suas tentações não perturbam, só a alta poesia atinge. A razão pode estar no conservan-
porque são apresentadas sem um mínimo de poesia. "Como tismo de Hebbel, na sua atenção aos elementos permanentes
esse Augier é um sujeito antipoético!", disse Flaubert; e a da natureza humana e da ordem do Universo. Mas esse
conservantismo num rebento do proletariado rural era pro-
mesma objeção atinge todas as tentativas de basear a críti-
duto da desilusão efémera de 1848. Hebbel também é con-
ca social no teatro nos conceitos da moral burguesa. "Anti-
servador pelo seu primitivismo de um filho das camadas
poeta!", eis o insulto que a geração de 1898 lançou contra
menos cultivadas da raça germânica. E r a autodidata pau-
o Augier do teatro espanhol, Echegaray (°), dominador de
pérrimo, proletário perturbado pela revolução industrial
todos os efeitos cénicos, com aparências românticas que
e pelas tendências avançadas dos intelectuais que o recebe-
aprendera em Calderón. A eloquência patética, que êle
ram como confrade em Hamburgo. Começou a escrever no
considerava como tradição nacional, prejudicava-o tanto
estilo duro e abrupto do novo "Sturm und Drang" pré-ro-
como a mania dos efeitos retumbantes do teatro de Bou-
mântico dos Grabbe e Buechner: em Judith, Genoveva,
levard. Contudo, Echegaray é melhor do que a sua fama. Herodes und Maríamne, ocuparam-no "casos anormais",
As suas teses são mais profundas, e defendidas com muito sobretudo de sexualidade perturbada em conflito com as
mais paixão, do que as de Augier. A tragédia do idealista convenções rígidas do ambiente; mas são sempre conven-
— em Ô Locura ó Santidad — não apenas retoma a tradição ções de uma civilização decadente, do Oriente antigo antes
quixotesca; também lembra teses de Bjoernson e Ibsen — da invasão do helenismo, do mundo germânico pouco depois
as extremas possibilidades do teatro burguês. da cristianização, da civilização greco-romana antes do ad-
Mas Echegaray não é um contemporâneo legítimo de vento do cristianismo. Os heróis dessas tragédias são ho-
Ibsen; Augier também só forneceu ao norueguês certos mens fortes, "super-homens", que caem no entanto porque
esquemas cénicos, de efeito infalível. Echegaray e Augier chegaram antes do tempo; a convenção é mais forte do
foram antipoéticos porque não viram o fundo permanente- que eles; e nisso já se revela o espírito sociológico da época
mente humano nas variações sociais: Balzac o conheceu
10» Friedrich Hebbel, 1813-1863.
como sociólogo, Hebbel como pensador. Por isso Hebbel Judith (1840); Gedichte (1842); Genoveva (1843); Maria Magda-
lene (1846); Neue Gedichte (1848); Herodes und Maríamne (1860);
Agnes Bernauer (1852); Gyges und sein Ring (1856); Die Nibe-
lungen (1862); Tagebuecher (1885/1887).
9) José Echegaray, 1833-1916. Edição por R. M. Werner, 2." ed., 27 vols., Berlin, 1913.
La esposa dei vengador (1874); El pufio de la espada (1876); 6 A. M. Werner: Hebbel. Ein Lebensbid. 2." ed. Berlin, 1913.
locura ó santidad (1877); El gran Galeoto (1881); El conflito entre O. Walzel: Hebbel und seichne Dramen. Leipzing, 1919.
dos déberes (1882); El hijo de don Juan (1892); El loco Dios (1900), E. A. Georgy: Die Tragoedien Friedrich Hebbels. Leipzig, 1922.
etc. A. Scheunert: Der Pantragismus ais System der Weltanschauung
I. Ixart: El arte escénica en Espana. Madrid, 1893. und Aesthetik Friedrich Hebbels. Leipzig, 1930.
H. v de Curzon: Le théãtre de José Echegaray. Stude analytique, K.vPurdie: Friedrich Hebbel, a Study of His Life and Work. Lon-
Paris, 1912. don, 1932.
E. Mérimée: "José Echegaray et son oeuvre dramatique". (In: Bul-
letin Hispanique, XVin, 1916.) P. O. Graham: The Relation of History to Drama in the Works
riedrich Hebbel. Northampton, 1934.
2128 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2129

e a filosofia trágica do próprio Hebbel. A primeira obra- obsoletas nem se opor às mudanças históricas; mas não o
prima, Maria Magdalene, retoma mais uma vez um motivo indivíduo, só o Tempo pode decidir disso. Os heróis da
do "Sturm und D r a n g " : a moça que foi seduzida e se poderosa trilogia Die Nibelungen caem, porque o tempo do
suicida. Mas o verdadeiro herói dessa primeira tragédia paganismo germânico já passou. Em Hebbel vive um resto
burguesa do século X I X é o pai da moça, o Meister Anton,
do hegelianismo, da ideia da "missão" especial de cada povo
representante das convenções mais rígidas da pequena-bur-
e de cada época.
guesia alemã, verdadeiro "super-homem" de um pequeno
Hebbel é mesmo o único pensador autêntico nessa épo-
mundo também já decadente sob o impacto de uma transição
ca de positivistas, tímidos diante dos fatos; os seus diários
social. "Já não compreendo o mundo", são as suas últimas
constituem um comentário da obra dramática, dura, seca,
palavras, revelando a perplexidade do próprio dramaturgo.
prosaica — a prosa do comentário é evidentemente superior.
Hebbel não era poeta. Escolheu, para vencer o seu pré-
Nas notas fugitivas Hebbel não se sentiu obrigado a obe-
romantismo, péssimos modelos: na poesia lírica, que era o
decer à lógica dos seus conceitos dramatúrgicos, chegando
seu amor infeliz, o seco Uhland; na técnica dramatúrgica,
a construir um sistema metafísico. No primeiro plano desse
o hábil e superficial Gutzkow. Pelo menos, o primeiro for-
seu "teatro filosófico" há os imbecis, covardes e ordinários
neceu-lhe os meios de expressão direta e sem ênfase; e o
que sempre enchem o m u n d o : os judeus de Betúlia, os pe-
outro, as normas de composição coerente, até coerente de-
quenos burgueses de Maria Magdalene, os romanos brutais
mais. Hebbel é o dramaturgo mais lógico de todos os tem-
em Herodes und Mariamne, o povo da Lídia em Gyges und
pos, ligando da maneira mais implacável os acontecimentos
sein Ring. No segundo plano, os heróis, os super-homens,
aos caracteres: quase sugere o fatalismo. "Aquilo de que o
os Holofernes, Golo, Anton, Herodes, Gyges, Hagen. No
homem é capaz de se tornar, isto ele já é perante Deus." O
terceiro plano, as relações e convenções sociais, hostis aos
deus de Hebbel, porém, é a História, não no sentido de He-
grandes indivíduos e atmosfera indispensável dos fracos. E
gel, mas no sentido sociológico, como peso das tradições e
no último plano, o Tempo, a História que é o juiz dos ho-
convenções que se opõem à vontade do indivíduo. E Hebbel
mens, das classes, nações e épocas. Aquela massa imbecil
chegou a apreciar a tradição como fator positivo, superior
é o vencedor atual; para eles fica o reino terrestre. Todas
ao arbítrio individualista. Depois da desilusão de 1848 es-
as épocas são baixas, e o país de Lídia, onde não há lugar
creveu a tragédia Agnes Bernauer: os dramaturgos que ti-
para os grandes indivíduos, fica em toda a parte. Mas a
nham tratado esse episódio da história medieval, tomaram
História dará razão aos vencidos, que deviam cair para
todos o partido do príncipe bávaro, revoltando-se contra o
preparar o caminho a novas tradições e novos mitos. Deste
pai que mandou assassinar sua amante burguesa; Hebbel,
modo, o conflito do herói'trágico com a sua época baseia-se
porém, aprova a "raison d'État" do velho duque que sacrifi-
na própria lei da História. O próprio mundo é fatalmente
ca a felicidade do filho aos interesses da coletividade. Em
trágico. O "pan-tragismo" de Hebbel é como um schopen-
Gyges und sein Ring (Gyges e seu anel) voltam os proble-
hauerianismo histórico. Wagner, no Ring des Nibelungen,
mas sexuais; mas desta vez, a convenção do pudor tem
e Ibsen, em Kejser og Galileer, realizaram o que Hebbel
razão contra as arbitrárias ideias de Gyges que quer refor-
pensara e não sabia dramatizar; porque êle também era um
mar os costumes e lei, porque "não é bom tocar no sono do
grande homem em época baixa, e a verdadeira tragédia não
mundo". Contudo, Hebbel não pretende defender coisas
controu expressão na Lídia do século XIX.
2 1 3 0
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2131
OTTO M A R I A CARPEAUX

Ludwig ( n ) , perdendo a vida inteira com experiências e


As tragédias de Hebbel já se representam cada vez
experimentos. Acertou só uma vez, no Erbfoerster, tragé-
mais raramente nos palcos; permanecerão como livros de
dia do homem rural, expropriado pela mobilização do capi-
estudos, para compreender melhor certos aspectos perma-
t a l ; Ludwig, filho de camponeses, vivera esse problema
nentes da vida humana e certas transições literárias do sé-
balzaciano da Alemanha de 1848. O fim dessa tragédia tam-
culo XIX. Hebbel situa-se entre o idealismo positivo de
bém é um " J á não compreendo o m u n d o ! " ; e o próprio Lud-
Schiller e o idealismo negativo de Ibsen; compreendeu que
wig nunca chegou a compreender o seu problema trágico.
a tragédia não é possível sem uma fé idealista num destino Detestava o idealismo "falso" de Schiller, contra o qual
mais forte do que os destinos individuais, sem fé num sen- lançava as críticas mais ásperas e, em parte, certas; mas dis-
tido na história; por isso procurou sempre as situações cordou também de Hebbel, por este introduzir nos aconteci-
críticas da história, como era o seu próprio tempo. Mas mentos dramáticos ideias filosóficas, alheias à vida. O ideal
esse tempo, de convicções positivistas, acreditando só em de Ludwig era o realismo fidelíssimo, sem tendência algu-
fatos palpáveis, negou o sentido na história. O conservan- ma; em Shakespeare acreditava encontrar esse "realismo
tismo de Hebbel pretende, no fundo, salvar a História, afir- sem ideias". Mas a Agnes Bernauerin que opôs à Agnes
mando o valor da tradição, porque só assim se explicava o Bernauer de Hebbel, ficou na esfera trivial do drama bur-
acontecimento trágico. O resto não é trágico; é só triste. guês em disfarce histórico. Ludwig saiu do epigonismo só
Nessa distinção reside a explicação do fracasso integral da como novelista regional de sua província, da T u r í n g i a :
literatura trágica inteira entre Schiller e Ibsen; menos em Zwischen Himmel und Erde (Entre o céu e a terra) é uma
Hebbel que fêz uma tentativa heróica de salvar a tragédia. das melhores novelas em língua alemã, monumento do anti-
E n t r e os contemporâneos de Hebbel há só um outro go artesanato.
adepto do pensamento "pan-trágico": é o húgaro Madá- O teatro dé Hebbel e Otto Ludwig deixou os contem-
ch ( , 0 - A ), cuja Tragédia do Homem acompanha o primeiro porâneos tão perplexos como um crítico marxista está per-
homem, Adão, através de suas reincarnações em diversas plexo diante da ideologia reacíonária do realista Balzac.
épocas históricas. É uma grande peça épico-dramática e, Estavam acostumados a pensar em termos políticos, a dis-
embora inspirada em duras experiências pessoais, uma das tinguir nitidamente entre conservadores e liberais; em Heb-
obras representativas do pessimismo do século. bel e Ludwig encontraram dois liberais, cuja obra revelou
tendências conservadoras. A crítica do século XIX não sa-
Aos epígonos da tragédia clássica faltava a força para
resolver o problema de Hebbel: não sabiam encontrar o
caminho para o realismo. Eis a tragédia pessoal de Otto U) Otto Ludwig, 1813-1865.
Der Erbfoerster (1850); Die Makkabaeer (1853); Die Heiterethei
und ihr Wiãerspiel (1854); Zwischen Himmel und Erde (1856).
Publicações pástumas: Die Torgauer Heide (1844); Das Fraudélin
von Scvdéry (1848); Agnes Bernauerin (1854/1864); — Shakes-
10A) Imre Madách, 1823-1864. pcare-Studien (1871).
A Tragédia do Homem (1861). Edição por P. Merlcer, 18 vols., Muenchen, 1912/1920.
Edição das obras por G. Halasz, 2 vols., Budapest, 1942. A. Stern: Oíío Ludwig, ein Dichterleben, 2.» ed. Leipzig, 1906.
G. Vojnovich: Imre Madâch e a Tragédia do Homem. Buda- L. Mis: Les oeuvres dramatiques d'Otto Ludwig. 2 vols. Lille, 1929.
pest, 1914. (Em húngaro.) ii Schoenweg: Otto Ludwim's Kunstschaffen und Kunstdenken,
B. Alexander: Imre Madách. Budapest, 1923. (Em húngaro.) L Koeln, 1941.
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OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2133

bia explicar essa situação; só o crítico socialista Franz Meh- Este equilíbrio precário entre forças antagónicas é um
ring reconheceu em Hebbel e Ludwig os representantes traço permanente da história alemã do século X I X : a classe
da pequena-burguesia intelectual, assustada pela proleta- média, gozando de liberdade económica e espiritual, pa-
rízação e pelo capitalismo moderno, desconfiado e pessimis- gando o preço de renunciar ao poder político, que fica nas
ta em face da decepção de 1848. O liberalismo estava dispos- mãos da aristocracia semifeudal e militarizada. Esse equi-
to a fazer concessões à reação político para conservar o nível líbrio precário também é um fato característico da situação
material e intelectual da vida. O liberalismo económico europeia, em geral, por volta de 1850. Em face do perigo
que os governos reacionários de 1850 concederam, tornou proletário, que a revolução revelara, a burguesia devia em
possível um "compromisso": o partido nacional-liberal, o toda parte renunciar a uma porção dos ideais que a tinham
maior apoio de Bismarck na obra da unificação da Alema- levado à emancipação intelectual e ao poder económico.
nha, era liberal e prussiano ao meimo tampo. A expressão Na França, renunciou à liberdade política, em favor da di-
desse "compromisso" é Gustav Freytag ( , a ) , no seu tempo tadura de Napoleão I I I . Na Inglaterra da Rainha Vitória,
um dos autores mais lidos, e não sem carta r a t i o : seco, pro- a burguesia, vitoriosa em 1832, desistiu das reformas "radi-
fundamente antipoético, mas sólido como um inglês. Na cais" que pregara, para garantir-se o poder económico. Rea-
época da pior reação política ousou glorificar, na bem cons- lizou-se uma correspondente transição ideológica do cien-
truída comédia Die JournaJisten (Oa Jornalistas), o jorna- tismo matemático-físico ao cientismo biológico-técnico; o
lismo, as eleições livres, o regima parlamentar: era um li- cientifismo matemático-físico do século X V I I I levara, no
beral. Ao mesmo tempo, esta profaiaor universitário da terreno político, ao conceito da igualdade, já inadmissível
literatura alemã era fortementa nacionalista, de tendências para a burguesia vitoriosa; o cientismo biológico-técnico do
prussianas. No romance SoJl und Haben (Débito e Crédito) século X I X forneceu, pelo darwinismo, os argumentos bio-
lido e famoso também no estrangeiro, defendeu a burguesia lógicos para afirmar a liberdade económica. A figura da
comercial como fundamento sólido da evolução nacional: transição é Mill ( 1 S ) : cientista e "radical" no sentido do
foi o primeiro romance alemão em que se fala de negócios século X V I I I ; mas o seu antipassadismo (e anti-historis-
e dinheiro, obra de um BaUac menor. Depois da unifica- mo) já não é o dos enciclopedistas, e sim o do positivismo;
ção de 1870, F r e y t a g tentou até um plano zolesco: Die Comte o influenciara sensivelmente. O "fato" é o único
Ahnen (Os Antepassados), ciclo de 8 romances históricos, objeto da sua fé, e nisso êle se encontra com a sua época,
representando a evolução da nação alemã, dos tempos pa- que também só acreditava em fatos científicos na teoria e
gãos até a época contemporânea; a burguesia tinha conquis- em valores materiais na prática. • Contudo, era uma f é : no
tado o seu lugar ao lado dos junkers, orgulhosos de sua próprio utilitarismo existem, em forma secularizada, os
árvore genealógica. dogmas do puritanismo, duro contra os outros e contra si
mesmo, mas também de uma vontade muito forte e sincera
de melhorar a condição do próximo conforme os preceitos
do Evangelho. Daí as contradições naquilo a que se chama
12) Gustav Freytag, 1816-1895.
Die Jouxtialisten (1852); Soll und Haben (1855); Dieverlorene
Handschri/t (1864); Die Ahnen (1872/1880).
H. Lindau: Gustav Freytan. Leipzig, 1907. 18) Cf. "Fim do romantismo", nota 8.
2134 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2135

"espírito vitoriano": liberalismo e até radicalismo político, intelectuais, vivendo à margem da vida em irresponsabili-
e subserviência "esnobística" em face das tradições aristo- dade comodíssima. O surto do totalitarismo politico e cul-
cráticas; livre-pensamento teológico, positivismo, darwinis- tural, nos anos antes e durante a Segunda Guerra Mundial
mo e agnosticismo, e culto de lábios ao dogma da Igreja an- levou, porém, a uma revisão, pelo menos parcial, daqueles
glicana ou das seitas puritanas; propaganda dos "slogans" julgamentos duros. Volta-se a apreciar as vantagens da to-
democráticos no mundo inteiro, e rude imperialismo colo- lerância, da estabilidade económica, enfim, do liberalismo.
nial; opressão implacável do proletariado e acessos tempo- E dessa mudança de opinião aproveitar-se-á, com certeza,
rários de coinsciêncía cristã, dos quais Carlyle e Dickens a memória do mais típico de todos os vitorianos, de Ma-
tinham dado os primeiros exemplos; otimismo da fé no caulay.
progresso ilimitado, e uma poesia triste, melancólica, de Dizem que as obras de Macaulay ( l õ ) se encontravam,
epigonismo consciente. E i s o "espírito da época vito- nas casas dos ingleses típicos, ao lado da Bíblia e do Sha-
riana" ( 14 )- kespeare. Ninguém encarnava tão bem todos os ideais e
aspirações do inglês médio do século X I X : fé no pro-
Os contemporâneos mal percebiam aquelas contradi-
gresso e respeito pelo grande passado histórico, entusiasmo
ções; sendo positivistas, estavam acostumados a acreditar
pela liberdade e consciência da grande missão religiosa dos
só nos "fatos", quer dizer, no sucesso. E o sucesso era im-
anglosaxões na terra, cultura espantosa, enciclopédica, e
ponente: a Inglaterra da Rainha Vitória era o país mais
talento de divulgá-la da maneira mais convincente e mais
poderoso, mais rico e, pelo menos na aparência, o país mais
agradável. A History of England from the Accession of
livre e mais feliz do mundo. Depois das grandes crises
James II formou a consciência política de gerações intei-
económicas e sociais do fim do século, e quando o poder po-
ras de ingleses: escrita do ponto de vista de um whig da
lítico do império também já evidenciava as primeiras fen-
"Revolução Gloriosa" de 1688, ligando-a diretamente à Re-
das, o vitorianismo caiu em descrédito absoluto. Por volta
forma parlamentar de 1832; e tudo está perfeito nesse me-
de 1920, "vitorianismo" era sinónimo de hipocrisia meio
lhor dos mundos liberais, sobretudo quando narrado com
nojenta, meio ridícula. Sobretudo a timidez dos vitorianos
todos os recursos de um grande orador parlamentar que
em tocar em questões sexuais era insuportável para a mo-
lera muito Walter Scott. Os Essays de Macaulay tornaram-
cidade da época do fox-trott e do short; e no combate con-
se ainda mais populares, porque o caráter fragmentário da
tra o liberalismo, falso porque antí-social, reuniram-se as
obra facilitava a leitura. As frases felizes de Macaulay, as
denúncias dos socialistas e dos antiliberais da Direita. Na-
famosas "Macaulay flowers", transformaram-se imediata-
quela época de Lytton Strachey, em que o espírito radical
mente em citações proverbiais. Ao-puritano das classes mé-
e zombador do século X V I I I voltou, explicaram a hipocri-
sia vitoriana como "compromisso vitoriano", compromisso
de vários aspectos: entre liberalismo retórico e esnobismo Itn Thomas Babington Macaulay, 1800-1859.
pseudo-aristocrático da burguesia; entre utilitarismo puri- Lays of Aneient Rome (1842); Criticai and Historical Essays, con-
tributeá to the Edimburg Review (1843); History of England from
tano dos homens de negócios e poesia pseudo-romântica dos the Accession of James II (1848/1861).
Edição dos Essays por F. C. Montague, 2 vols., London, 1903. a
O. O. Thevelyan: The Life and Letters of Lord Macaulay. 7. ed.
2 vols. London, "1932.
H)
Ssí" C h e s t e i t 0 n : The
VMorian Age in Literature. 14.- ed. London, A. Bryant: Macaulay. London, 1932.
Et, C. Beatty: Lord Macaulay, Victorian Liberal. London, 1938.
»

2136 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2137

dias agradaram as palavras, em Southefs Edition of the mo", do fim das modificações porque tudo já estaria perfei-
Pilgrim's Progress, sobre "a única obra literária de todos to. A sua história da Inglaterra moderna não é obra de um
os tempos com respeito à qual os intelectuais tinham que historiógrafo, e sim de um homem de partido, identificando
aceitar, enfim, a opinião dos leitores populares"; e os in- anacrônicamente os whigs de 1688 e os liberais de 1832.
telectuais consolaram-se com os ataques contra o "cant" in-
Inconscientemente, Macaulay falsificou a história, porque
glês, em Moore's Life of Byroo. Os utilitaristas decoraram
não tinha nenhuma filosofia da história. O seu horizonte
a frase lapidar, em Lord Bacon: "An acre in Middlesex is
better than a principality in Utopia"; os patriotas assusta- era o de um inglês médio e satisfeito; por isso agradou
ram-se, lendo em Ranke's History of the Popes, que a Igre- tanto a todos os ingleses médios e satisfeitos.
ja Romana, após ter desafiado as tempestades de todos os Haverá, porém, revisão parcial do processo. Chester-
séculos, "provavelmente ainda ficará em pé quando, num ton já apontou, como uma das contradições intrínsecas de
século futuro, um viajante melancólico desenhará as ruínas
Macaulay, o entusiasmo scottiano desse progressista e anti-
da Tower B r i d g e " ; mas que tenham paciência, e ouvirão
passadista pela história, que ele sabia apresentar cheia de
que, "quando o último navio de guerra inglês se terá afun-
colorido romântico. Os Essays constituem, na verdade, um
dado ao lado dos últimos rochedos cretáceos desta ilha, ain-
da ficará um monumento imperecível da nossa raça: a li- manual da melhor civilização inglesa, sobretudo do século
teratura inglesa." O próprio Macaulay parecia o pontífice X V I I I ; e as ligeiras deformações anacrónicas decorrem
máximo dessa grande tradição literária; e atrás da figura mesmo da capacidade máxima de Macaulay: da sua arte
de mestre-escola meio sublime, meio ridícula, do doutor de narrar. Os ensaios sobre Lord Clive e Warren Hastings
Johnson, em Croker's Edition of BosweWs Life of John- são novelas inesquecíveis, obras-primas de um romancista
son, surgiu a figura do mestre-escola maior, o "doutor Ma- nato. Como historiógrafo, não tinha filosofia; mas como ro-
caulay", "praeceptor Angliae". E os colegiais tinham que mancista estava no ponto firme da moral inglesa, que nem
decorar os seus Lays of Ancient Rome como se fossem sempre é cant de hipócritas e à qual devemos algumas con-
obras-primas da poesia inglesa. quistas inestimáveis do verdadeiro liberalismo. É verdade
Macaulay é u m ótimo objeto para iconoclastas. Da que Macaulay era um esnobe, adorando a fina cultura dos
sua poesia, exercícios de escola, já não vale a pena de falar. aristocratas; mas assim evitou a vulgaridade, que tantas
Nos Essays reparam-se, ao lado de frutos de leituras imen- vezes aborrece em Dickens, dando ao seu moralismo algo
sas, certos erros e ignorâncias pavorosas, sobretudo com puritano, o relevo de uma grande tradição de uma grande
respeito a coisas não-inglêsas: reultado do orgulho tipica- nação.
mente insular. As famosas "flowers" são, no fundo, luga-
res-comuns brilhantes, bem apresentados, mas nem sempre Se Macaulay se tornasse romancista, talvez estivesse
com sentido exato. Enfim, o liberalismo de Macaulay está dignamente ao lado de Dickens, Thackeray, George Eliot
sujeito a todas as dúvidas: nos primeiros anos da sua car- • Trollope. Mas a perda não é muito grande. J á temos o
reira parlamentar lutou galhardamente em favor de refor- acaulay do romance, o representante máximo do "compro-
mas radicais; mas quando as reivindicações da burguesia Isso vitoriano" no género vitoriano: o próprio Tra-
estavam satisfeitas, transformou-se em campeão do "finalis- •ray.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2139
OTTO M A R I A CARPEAUX
2138
choque com as hipocrisias de sua época. No prefácio de
A Thackeray ( 1C ) não faltava muito para colocar-se
Pendennis chegou a queixar-se por não ter a liberdade de
entre os grandes escritores da literatura universal: poucos
exprimir-se, de Fielding. Mas conformou-se. O retrato co-
reuniram, como ele, o espírito específico de uma nação e
nhecido de Thackeray mostra um senhor inglês, de barbas
de uma época e um espírito livre, aberto aos problemas per-
brancas, sentado numa poltrona, em meio de muitos livros;
manentes e aos problemas novos. Os defeitos que o afrou-
quase um lorde e scholar. Na verdade, Thackeray era jor-
xaram são os de Macaulay: o moralismo e o caráter livres-
nalista que tinha que trabalhar duro e escrever de mais para
co do seu talento. No inicio, tinha ambições subersivas de
ganhar a vida. Mas realizou de maneira perfeita a "mimi-
um homem formado pela literatura do século X V I I I : abor-
cry" aristocrática da burguesia vitoriana, afinal só pôde
receram-no o medievalismo à maneira de Walter Scott e o
descobrir o esnobe quem era ele mesmo um pouco de esnobe.
falso aristocratismo de Disraeli. A sua paródia de Ivanhoe
O esnobe Thackeray armado de espírito analítico, descobriu
é de mordacidade terrível; e contra o costume do inglês
a raiz do esnobismo: a vontade de subir na hierarquia social.
médio de se curvar perante a aristocracia, imitando-lhe com
Levando essa descoberta em Vanity Fair, até as últimas con-
lealdade ridícula todos os hábitos, Thackeray lançou The
sequências, Thackeray inventou a história de Becky Sharp
Book of Snobs, inventando o termo e imortalizando o tipo.
que poderia ser verdade: Becky, conquistando por todos os
Continuando assim, Thackeray ter-se-ia tornado o escritor
meios uma posição social, Vanity Fair é uma obra-prima,
mais subversivo da sua época, inimigo perigoso do "com-
digna de Balzac; uma galeria shakespeariana ou antes mo-
promisso vitoriano". Mas não pôde continuar assim porque
lièriana de caracteres num vasto panorama, brilhantemente
era filho da "upper middle class", o que lhe limitava o ra-
construído, da sociedade inglesa de 1820. Em Vanity Fair,
dicalismo das convicções teóricas, e porque a existência
assim como nas grandes obras de Balzac, os caracteres, ti-
privilegiada da sua classe lhe limitava as experiências vi-
pos da alta comédia, são criaturas do ambiente social, bo-
tais. Foi um crítico sério da vida; mas não disse tudo o
necos do destino como da predestinação dos puritanos. Para
que a sua crítica lhe teria inspirado, para não entrar em
essa "vanity fair" da sociedade moderna, Thackeray encon-
trou o nítido, tão significativo, num livro muito puritano,
16) Wllliam Makepeace Thackeray, 1811-1863. no Pilgrim's Progress, de Bunyan; os personagens também
History of Mr. Samuel Titmarsh and the Great Hoggarty Diamond parecem bonecos, porque dependendo da vontade soberana
(1842); The Book of Snobs (1846/1847); Vanity Fair (1847/1848);
The History of Pendennia (1848/1860); The Histôry o) Henry Es- do i omancista-moralista que os guia, comentando-lhes cons-
mond (1852); The Ncwcomes (1863/1855); The Virginians (1857/ tantemente todos os passos. Nisso, Thakeray não é "moder-
1859) .
Edição por G, Salntsbury, 17 vols., Oxford, 1908. : pertence à época antes de Balzac. E a sua mistura me-
Ch. Whibley: Wílliam Makepcace Thackeray. London, 1903. nos agradável de sátira e sentimentalismo também pertence
L. MelvUle; William Makepeace Thackeray. 2,a ed. 2 vols. Londonr
1927. • uma época passada, ao século X V I I I dos Richardson,
G. Saintskmry: A Consíderation of Thackeray. London, 1931. |Flclding e Sterne que eram os seus modelos literários. Nê-
R. Las Vergnas: William Makepeace Thackeray, 1'homme, le pen- li'M aprendeu o fino estilo coloquial que o distingue de to-
seur, le romancier. Paris, 1932. jta OB outros romancistas ingleses da sua época. E Tha-
M. Elwin: Thackeray. A Personality. London, 1932. H u r escreveu mais uma obra-prima quando se internou
J. W. Dodds: Thackeray; a Criticai Portrait. Oxford, 1941.
L.*Stenson: The Showman of Vanity Fair. The Life of William I léculo X V I I I : The History of Henry Esmond, roman-
Makepeace Thackeray. New York, 1947.
J. Y. T. Greig: Thackeray. A Reconsideration. Oxford, 1950.
G. Tillotson: Thackeray, the Novelist. Cambridge, 1954.
G. N. Ray: Thackeray. 2 vols. London, 1955/1956.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2141
OTTO M A R I A CARPEAUX
2140
Com exceção de Vanity Fair, a sátira de Thackeray
ce histórico e romance social ao mesmo tempo. Assim como
parecerá ao leitor moderno mais inofensivo do que real-
havia em Macaulay um génio "manque" de romancista, ha-
mente era; a dissimulação deve-se, em parte, ao humorismo
via em Thackeray um génio "manque" de historiador, con-
humanístico, tipo século X V I I I inglês, em parte à conside-
forme a sua própria expressão: "I would have history fa-
ração ao público. Essa consideração foi obrigatória como
miliar rather than heroic; and think that Mr. Hogarth and
uma lei, produzindo equívocos curiosos. Pois muitos vito-
Mr. Fielding will give our children a much better idea of
rianos eram, na realidade, muito diferentes da impressão
t h e maners of the present age in England than the Court que criaram a seu respeito. Assim, o sublime Tennyson re-
Gazette and the newspapers which we get thence". Isso vela-se, nas suas cartas íntimas, como humorista de espírito
está em Henry Esmond e refere-se ao século X V I I I ; histo- mordaz, veia que não ousou manifestar na poesia para não
riador do seu próprio tempo Thackeray tornou-se em Pen- pôr em perigo sua fama de vate inspirado. H á os conheci-
dennis: e é "history familiar", de homens fracos e triviais dos distúrbios sexuais na vida de Carlyle; há o caso da espo-
como os encontramos todos os dias, vistos pelos olhos de sa repudiada, na vida de Dickens; há uma "chronique scan-
um humorista, quer dizer, neste caso, de um satírico que daleuse" atrás dos bastidores vitorianos — o comentário
rjerdoou aos homens porque são tão fracos e lamentáveis. encontra-se na curiosa correspondência de Edward Fitzge-
Thackeray pertence à "literatura da desilusão", típica dos rald ( 1 7 ), mais um espírito mordaz que sabia dissimular,
anos de 1850; é um realista, tendo diante dos olhos o vasto facilitando-se a vida de scholar independente pela reti-
panorama da cidade de Londres, da sociedade inglesa, do rada completa da vida pública; o primeiro e talvez o maior
Império britânico. Nada vê de grandioso neste panorama dos poetas da "tour d'ivoire". "Poeta" só se diz "cum gra-
grandioso; só misérias morais e intelectuais; mas o realis- no salis", porque as poesias originais de Fitzgerald têm pou-
mo de Thackeray cria contornos firmes; os seus persona- ca importância; importantes são as suas traduções, as de
gens tomam-se inesquecíveis, mais representativos da épo- Calderón, depois e sobretudo a tradução dos Rubaiyat, 110
ca vitoriana do que os personagens da Court Gazette e dos quadras do persa Ornar Khayyam, poeta e astrónomo do
"news-papers". São criações de um artista. Béculo X I I . Ornar Khayyam fêz versos à maneira de uma
O artista Thackeray era, êle mesmo, jornalista, e jor- tradição antiga na literatura persa: aparentou um credo
nalista vitoriano, prisioneiro do gosto do seu público. Só místico, em parte seriamente, em parte para poder alegar
assim se explica a sua timidez quanto ao grande tabu dos
vitorianos, a sexualidade, e o afrouxamento do seu radi-
calismo de intelectual, virando cada vez mais moderado.
17) Edward Fitzgerald, 1809-1883.
Enfim, começou a evitar a apresentação de personagens Six Dramas of Calderón (1853); The Rubaiyat of Ornar Khayyam
m a u s ; e com isso a sua sátira e crítica social perderam a (1859, 1868); Letters and Literary Remains (1903).
Kdição das obras completas por G. Bentham, 7 vols., New York,
razão de ser. The Newcomes e The Virginians, continuan- 1902.
do respectivamente a ação de Pendennis e Henry Esmond, li Jackson: Edward Fitzgerald and Ornar Khayyam. London,
já s | o apenas bons romances. Mas sempre Thackeray con- íno».
A, O. Benson: Edward Fitzgerald. London, 1905.
servou o espírito cáustico e um "je ne sais quoi" de tristeza A M. Terhune: "The Life of Edward Fitzgerald. New Haven,
dissimulada; lendo-o, pensa-se em seus contemporâneos: 1047.
K de Polnay: Into an Old Room. The Paradox of Edward Fitzge-
•em Flaubert, Turgeniev e Machado de Assis. IM. London, 1950.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2143

9 U 2 OTTO MARIA. CARPEAUX


outra Bíblia e do Shakespeare, o livro mais divulgado e
mais lido em língua inglesa. Porque exprimem um aspecto
um sentido alegórico nas suas canções de vinho; com efeito,
permanente do sentimento humano acerca de vida e mundo.
parece ter sido grande bebedor, amigo das flores e das
Cepticismo e malícia secreta, eis o resultado da anglici-
raôças. O vinho era o seu narcótico para aguentar melhor
zação vitoriana do poeta exótico. Cepticismo e malícia
o outro credo seu, o de um mistico ateu, epicureu, acredi-
muito intensa, eis o resultado da anglicização de outro poe-
tando na destruição definitiva de corpo e alma do homem,
ta exótico, contemporâneo quase de Fitzgerald e dos gran-
no Nada absoluto depois da morte. Certos críticos, sobre-
des vitorianos, com pequeno atraso cronológico justificado
tudo franceses, denunciaram com violência as liberdades ilí-
pela distância geográfica e as dificuldades do intercâmbio
citas do tradutor infiel ou ignorante, que Fitzgerald teria
intelectual. Mas Machado de Assis ( 1 S ), o maior escritor
sido, ao passo que Tennyson julgou: " T h e best translation
da literatura brasileira, não é exótico em relação à Ingla-
ever made." São dois equívocos iguais. Os Rubaiyat persas
terra, e sim em relação ao Brasil. O caso é enigmático: um
não passam de uma oportunidade para permitir a Fitzgerald
mulato de origens proletárias, autodidata, torna-se o escri-
fazer versos heréticos; e nem esta última palavra dá expli-
tor mais requintado da sua literatura, espírito cheio de
cação perfeita do caso, porque os disfarces fantásticos são
arrière-pensées, que exprimiu menos em versos parnasianos
uma moda geral da poesia vitoriana. Assim como Tennyson
à maneira de Fitzgerald, do que em romances meio satíricos
se fantasiou de autor de "chansons de geste", Rossetti de
i maneira de Thackeray. Em Machado de Assis havia mui-
poeta trecentista e Morris de chauceriano, assim Fitzgerald
tas influências estrangeiras, e são justamente as influências
apresentou-se como poeta persa. Assim, já não sentiu medo
inglesas que o distinguem dos seus patrícios, em geral
de revelar o seu credo céptico: não chorou sobre dúvidas
afrancesados: Swift e Sterne, sobretudo. Mas influências
religiosas, como Tennyson em In Memoriam, mas sorriu
não explicam o génio. Machado de Assis também tem algo
francamente de "this sorry Scheme of Things". O seu
"Carpe diem!" persa era niilista, mas alegre:
18) Joaquim Maria Machado de Assis, 1839-1908.
Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881); Papéis Avulsos (1882);
"Ah, make the most of what we yet may spend. Histórias sem Data (1884); Quincas Borba (1891); Várias Histó-
Before we too into the Dust descend; rias (1895); Páginas Recolhidas (1899); Dom Casmurro (1900);
Esaú e Jacó (1904); Memorial de Aires (1908.)
Dust into Dust, and under Dust, to lie, Edição W. M. Jackson, 31 vols.. Rio de Janeiro, 1936. (6.B ed.,
Sans W i n e , sans Song, sans Singer, and — sans 1950.)
[End!" Edição Crítica, em preparação (vol. VI: Memórias póstumas de
Brás Cubas. Rio de Janeiro. 1960.)
J. M. Graça Aranha: Machado de Assis e Joaquim Nabuco. Co-
Fitzgerald era um pessimista vitoriano, mas sui gene- mentáriosft e notas à correspondência entre estes dois escritores.
1023. (2. ed. Rio de Janeiro. 1942.)
ris: modelando e remodelando seus versos à maneira de Aui-. Meyer: Machado de Assis. Porto Alegre, 1935.
um parnasiano, transformando o agnosticismo positivista L. M. Pereira: Machado de Assis. 2.a ed. São Paulo, 1939.
IRUR. Gomes. Influência inglesa em Machado de Assis. Salvador,
da sua época em doce música romântica, transfigurando m
"one moment in annihilation's waste" em obra de arte dura Barreto Filho: Introdução a Machado de Assis. Rio de Janeiro,
1047.
como bronze. Terá sido por isso que os vitorianos hipócri- AUff. Meyer: Machado de Assis (1935-1958). Rio de Janeiro, 1958.
ta» suportaram e até saudaram essa "Bíblia da Incredulida- [j|U((. Gomes: Machado de Assis. Rio de Janeiro, 1958.
M.injlldo Pereira: Machado de Assis. Rio de Janeiro, 1959.
de"? Oa Rubaiyat de Fitzgerald, revelando maior vitalida- cio Tati: O mundo de Machado de Assis. Rio de Janeiro, 1961.
de do que o i Easays de Macaulay, continuam, ao lado da
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2145

OTTO M A R I A CARPEAUX mas não vale; todos os cemitérios se parecem." O humoris-


2144
ta céptico "só sabia olhar a vida subspecie mortis", e por
em comum com Jane Austen, que não conhecia, provavel-
meio desse "só êle superou as limitações vitorianas, tor-
mente. A sua formação talvez fosse mais francesa do que
nando-se atual para todos os tempos. Histórias sem Data
aquelas influências deixam entrever. Dos moralistes fran-
chama-se um volume de contos seus, e "sem data" é a sua
ceses provém a sua desconfiança extrema com respeito à
honestidade dos motivos dos atos humanos — a sua psico- obra inteira.
logia é, em geral, a de L a Rochef oucauld; parece ter conhe- A base económica da literatura vitoriana existia, pelo
cido Leopardi — menos o poeta do que o pensador das menos para pequenos grupos, também no Brasil e em toda
Operette morali — ao qual o ligavam o epicureismo, no sen- a parte de onde a City canalizou para Londres e os midlands
tido grego da palavra» e o cepticismo niilista em face do os juros das inversões e empréstimos de capital inglês. A
universo; leituras de Schopenhauer fortaleceram-lhe a vi- inteligência vitoriana é essencialmente a de rentiers, depen-
são negra e quase demoníaca dos homens e das coisas; mas dendo da estabilidade económica que as belonaves de Sua
sempre sabia exprimir-se com a urbanidade reservada e Majestade Britânica garantiram. Daí se explica a estabi-
irónica de um "homme de lettres" do século X V I I I . T u d o lidade do "compromisso vitoriano"; e quanto mais o im-
isso parece incrível num mulato autodidata do Rio de Ja- pulso inicial da revolução industrial diminuiu e os merca-
neiro semicolonial da época. Contudo, podem-se alegar, dos conquistados no estrangeiro se saturaram, tanto mais se
além da particularidade do génio que resiste à análise, al- calmaram as dúvidas. A prosperidade inglesa, baseada em
gumas razões de ordem política e económica: o Império do economia utilitarista e ciência positivista aplicadas, pare-
Brasil de 1880 era semicolônia da Inglaterra vitoriana. Ma- cia feita para toda a eternidade, como o dogma de uma
chado de Assis, proletário e "half-breed", alto funcionário e Igreja. Por volta de 1850, o Tennyson de In Memoriam
presidente de uma Academia de Letras, é um grande escri- ainda esteve preocupado com escrúpulos teológicos; vinte
tor vitoriano. As Memórias Póstumas de Brás Cuba, Quin- anos mais tarde, em By an Evolutionist, o poeta já tenta
cas Borba e Dom Casmurro não têm que recear a compara- reconciliar-se com o darwinismo. Darwin ( i a ) , agnóstico
ção com Thackeray; falhas de coerência na composição no- sem hostilidade contra a religião, domina todos os espíritos,
velística, que uma crítica de formação francesa apontaria, deixando em paz o céu, explicando de maneira satisfatória
não são defeitos tão graves em romances de tipo inglês, se os milagres da natureza e fornecendo os melhores argu-
bem que em língua portuguesa. O sentido de forma latino mentos científicos em favor da nâo-intervençao do Estado
do mulato latinizado revelou-se melhor nos contos. "O na vida económica: é preciso deixar funcionar a seleção
Alienista", "Noite de Almirante", "Missa de Galo", "O E s - natural pelo "struggle for Hfe". O. liberalismo inglês pa-
pelho" são espécimes magníficos de um género que esteve, rece ter realizado a maior felicidade do maior número pos-
aliás, mal representado na literatura inglesa do século X I X . sível, versão utilitarista da utopia de Platão; e assim como
H á quem goste dos versos de Machado de Assis; mas a sua
verdadeira poesia está antes na atmosfera, meio irónica
meio fúnebre, que envolve os berços e os leitos de morte 10) Charles Darwin, 1808-1882.
dos seus personagens; até uma crónica sobre o "Velho Se- Voyage of a Naturalist round the World (1849); The Origin of
the Species by Means of Natural Selection (1859); The Descent of
nado" acaba com as palavras resignadas e maliciosas: "Se Man and Selection in Relation to Sex (1871.)
O. A. Dorsey: The Evolution of Charles Darwin. New York, 1927.
valesse a pena saber o nome do cemitério, iria eu catá-lo,
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2147
OTTO M A R I A CARPEAUX
2146
do Departamento dos Correios, modesto, pontualíssimo.
ali, não há lugar na sociedade vitoriana para as mais Inú- Nas horas livres, esse trabalhador infatigável escreveu 46
teis das criaturas, os poetas. A prosa reina soberanamente; romances, com o mesmo cuidado com o qual elaborou ofí-
Thackeray, "gentleman" idoso da época alegre da Regência cios e despachos; e resultou uma cópia novelística da In-
fora poeta em comparação com Trollope, romancista do glaterra vitoriana tão fiel que os contemporâneos se reco-
Parlamento e da Igreja de Gladstone. nheceram nos personagens, chegando a amar Trollope como
É verdade que o darwinismo arrancou aos teólogos o se ele tivesse criado os seus próprios leitores. Só se indig-
lugar-comum mais querido dos sermões: a sabedoria de naram quando a autobiografia revelou o método mecânico-
Deus que arranjou com tanta engenhosidade as coisas da burocrático do romancista: tantas e tantas páginas por dia,
natureza que tudo serve para qualquer fim útil. Isso já não sempre o mesmo número, sem consideração das diferenças
é possivel afirmar depois da eliminação da teologia. Mas de assunto. Desde então, Trollope, "realista sem alma", caiu
o clero anglicano marchava com o tempo; o liberalismo teo- em descrédito, tanto mais que as crises económicas e sociais
lógico ( 20 ) venceu os escrúpulos. O volume Essay and Re- da Inglaterra pós-vitoriana, destruindo a antiga prosperida-
views, publicado um ano depois da Origin oí the Species de, fomentaram novo romantismo. Trollope, porém, foi
by Means oí Natural Selection, vale por uma vitória defini- conscientemente anti-romântico. O seu realismo evita os
tiva. Depois, só os puritanos obscurantistas da Escócia ou-
sentimentalismos, as nuanças, os meios-tons, os segredos.
sarão anatematizar o professor Robertson Smith, porque
T u d o está prosaicamente claro, como na vida de um homem
Estudara os vestígios do politeísmo oriental no Velho Tes-
profundamente honesto, capaz de publicar a sua correspon-
tamento. O Oxford Movement está esquecido; Newman
dência íntima e a sua contabilidade particular. Trollope
vive recluso no Oratório de Birmingham. Os dignitários da
parece-se com os grandes comerciantes da City, cujos negó-
Igreja anglicana só se preocupam com negócios administra-
cios se estenderam ao globo inteiro e em cuja palavra a
tivos e eleições políticas, levando a vida particular e ir-
gente podia acreditar sem prova escrita. É porque Trollope
responsável dos poetas vitorianos, mas sem poesia alguma.
é dono absoluto dos seus assuntos. Nele, o método novelís-
E i s os ingleses mais ingleses da Inglaterra, os personagens
tico de Fielding, a onisciência soberana do romancista com
de Trollope. respeito ao enredo e aos personagens, chega à plenitude.
Trollope ( 2 1 ) parecia e foi protótipo daquele "filisteu"
do qual os românticos tinham zombado t a n t o : funcionário
Duke's Chilâren (1880); br. Wortle's School (1881); — An Auto-
liinaraphy (1883) .
20) Cf. "Fim do romanstimo", nota 18. io dos Barchester Novéis por M. Sadleir, 14 vols., Oxford,
21) Anthony Trollope, 1815-1882. 11129.
The Macdermots oí Ballycloran (1847); The Warâen 1855); Bar-
chester Towers (1857); Doctor Thorne (1858); Castle Richmond T. H. S. Escott: Anthony Trollope. His Work, Associates and Li-
(1860); Framley Parsonage (1861); Orley Farm (1862); Rachel Ray ry Originais. London, 1913.
(1863) ;The Small House at Allíngton (1864); The Belton Estate (1 B. NIchols: The Significance of Anthony Trollope. New York,
(1866); The Last Chronicle of Barset (1867); The Claverings 1080,
(1867); Phineas Fillm, the Irish Member (1869); The Viçar o/ Bull- M Badleir: Anthony Trollope; a Commentary. New York, 1927.
hampton (1870); Sir Harry Hotspur o/ Humblethvjaite (1871); Walpole: Anthony Trollope. London, 1928.
The Eustace Diamonás (1873); The Way we Live Noto (1875); The , Ourtls Browne: Anthony Trollope. London, 1950.
Prime Minister (1876); The American Senator (1877); Is He Po- * J. Cockshut: Anthony Trollope. A Criticai Study. London,
i.iw.
penjoy? (1878); John Calãigate (1879); Cousin Henry (1879); The
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2149
OTTO MARIA CARPEAUX
2148 rivista irlandês Finn está contrabalançado pelo personagem
Na vontade bem vitoriana de ficar fielmente realista e agra- do magnífico Duke of Omnium, primeiro ministro de Sua
dar, no entanto, ao público, Trollope dirige as vidas cinzen- Majestade. Trollope conhecia intimamente a Inglaterra in-
tas e triviais dos seus personagens ao encontro de grandes teira; devem-se a êle os primeiros romances sobre a vida
cenas dramáticas, ligeiramente sensacionais, nas quais se rural irlandesa; e com o tempo, até saiu das ilhas britânicas,
revelam, sem análises psicológicas, os caracteres. Conforme escrevendo o primeiro romance australiano. Sem ênfase e
a tradição do romance inglês, de Fielding até Jane Austen, eloquência patriótica, tornou-se o romancista do " E m p i r e "
Trollope é mais dramaturgo do que psicólogo. inteiro.
Os personagens de Trollope não são heróis imponentes; Trollope era modesto: só pretendeu divertir os leito-
mas vivem indestrutivelmente, como monumentos; e são tão res, e nesse afã revelou-se inesperadamente o artista cons-
ingleses que têm, para o estrangeiro, algo do encanto do ciencioso de tantas e tantas páginas por dia, quase um par-
exótico. A série dos romances mais famosos de Trollope, a nasiano. Escreveu romances só para escrever romances.
"Barsetshire Cbronicle", com as obras-primas Barchester Lembra-se o "1'art pour l'art" burguês de Scribe que negou
Towers e The Warden no centro, trata um ambiente des- a relação entre as obras literárias e os costumes da época;
conhecido fora da ilha: à sombra da catedral medieval de e de repente surge a dúvida se o realismo de Trollope foi
Barchester, no interior da Inglaterra, vive o clero anglica- um realismo autêntico. Os romances de Trollope parecem
no, bispos e cónegos dignamente casados, funcionários am- fotografias da vida inglesa de 1860, ao ponto de leitores
biciosos ou "scholars" eruditos e inábeis, cujas esposas i n - ingénuos os tomarem por crónicas. Mas então, entre esses
fluem na nomeação dos dignitários eclesiásticos; intrigas leitores se levantaram críticos improvisados, conhecedores
parlamentares, estudos bíblicos e obrigações da vida social perfeitos dos mecanismos administrativos da Igreja e do
em mistura esquisita — os clergymen de Trollope são tudo* Parlamento, demonstrando que certos pormenores nos ro-
menos sacerdotes. Qualquer leitor de sentimentos religio- mances de Trollope estão "errados". Com efeito, Trollope
sos, conquanto não seja inglês, estará desconcertado, até não é naturalista, e os seus romances não são documentos
pensando em blasfémia ou sátira. Mas esta não era a in- Bociológico-históricos. Trollope é "só" realista, quer dizer,
tenção de Trollope. Moralismo e sátira de um Thackeray criador de um mundo imaginário, assim como são imaginá-
estão fora das cogitações do seu prosaismo absoluto, que é rias a cidade e a catedral de Barchester, eternas porque
o resultado do "compromisso vitoriano", tomado a sério nunca as havia e as suas pedras não podem ser destruídas.
sem hipocrisia alguma: Trollope é honesto, mas não puri- Os romances de Trollope não copiam a Inglaterra vitoriana
t a n o ; liberal, mas com temperamento de conservador; acei- que já não existe; criou êle outra Inglaterra vitoriana, mo-
tando os resultados da ciência moderna, sem abandonar de numento para sempre. E uma vez, essa força de imagina-
todo a tradição religiosa. Trollope era cristão sem entu- f l o criadora se elevou até as alturas daquela do "Balzac vi-
siasmo nem fanatismo. A Igreja interessava-o como grande llonnaire", criando um panorama completo e multiforme de
e velha instituição social; e não era o único dos seus in- época: The Way we Live Now, a maior obra de Trollo-
teresses sociológicos. Outra instituição assim era o Parla- — Só há poucos anos, quando já tinham desaparecido os
mento, ao qual dedicou uma série de romances políticos,, mos vestígios da Inglaterra victoriana "real", então a
também sem tendência; Trollope era conservador por tem- ta i e lembrava com saudades da Inglaterra vitoriana
peramento e liberal por convicção, e o personagem do ar-
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2151
OTTO M A R I A CABPEAUX
2150 o poeta nacional, leitura preferida da rainha. Meio século
"irreal" de Trollope, trivial mas imperecível. Descobriu-se mais tarde, Tennyson tinha que pagar caro a glória des-
na sua prosa cinzenta a poesia secreta. mesurada da qual gozara em vida. O seu conservantismo
A época vitoriana não tolerava outra poesia senão se- pessimista, o seu tradicionalismo formal aborreceram pro-
creta. Isso não quer significar o ostracismo absoluto dos fundamente a geração de 1920. "Tennyson", declaram, "foi
poetas; foram banidos da sociedade burguesa apenas aque- o poeta de predileção da época mais antipoética na história
les que ousaram exprimir sentimentos e conflitos pessoais, da Inglaterra". Joyce criou o trocadilho malicioso: "lawn-
senão preferiram a retirada voluntária como Fitzgerald. A tennyson". O poeta tornara-se o bode expiatório do anti-
poesia tinha que servir de enfeito aos domingos; nos dias vitorianismo.
úteis, aquela coisa inútil só era um hobhy de estetas ou uni- As restrições são inevitáveis; mas a injustiça é eviden-
versitários. "Excellent scholar's poetry", rezaram os anún- te. As limitações do talento de Tennyson são evidentes:
cios dos editores; mas não se tratava de poesia erudita, mas menos por culpa sua do que em consequência da ta-
antes da expressão de sentimentos que os eruditos deviam refa grandiosa de desempenhar o papel de "vate nacional"
calar em face da ciência. Daí o caráter sentimental, melan- que o orgulho vitoriano impôs a um grande poeta idílico.
cólico, pós-romântico da poesia vitoriana, salvando-se porém Tennyson, ignorando a "metaphysical poetry", veio da
um número bastante grande de poesias pela perfeição da melhor tradição romântica: de Wordsworth e Keats. De
forma, consequência da existência particular, privada, da Wordsworth vem a parte menos vistosa e mais permanente
poesia ( 2 2 ). da sua obra lírica, os pequenos lieds que lembram a poesia
O pontífice da poesia vitoriana foi Tennyson ( s s ) , ex- alemã: "Tears, idle tears, I know not what they m e a n " ;
primindo em forma perfeita, irresistivelmente musical, to- "It is the miller's d a u g h t e r . . . " ; "Now sleeps the crimson
dos os aspectos do "compromisso": cultura clássica e in- p e t a l . . . " ; "Come down, o maid. . ." Às vezes, ousou acom-
teresses científicos, respeito à tradição e dúvidas religio- panhar a Wordsworth até à região do rude idílio camponês,
sas, orgulho da grandeza nacional e melancolia do idílio como no esplêndido Northern Farmer, Old Style; mas en-
perdido. Por isso, Lord Tennyson era o "Poet Laureate", tfio achou por bem o disfarce do dialeto de Lincolnshire.
Na poesia "séria", da qual tinha os conceitos solenes de um
22) A. Smith: The Maín Tendencies of Victorian Poetry. Bírminghan, parnasiano, não se permitiu "vulgaridades". Assim, pelo
1907. iiunos, entendeu êle o "classicismo" de Keats, no qual
23) Alfred Lord Tennyson, 1809-1892. •prendeu a cultura do verso e o esteticismo aristocrático.
Poems (1832); Poems (1842); The Príncess (1847); In Memoriam Virgílio era o seu ideal; e To Virgil dedicou a mais perfeita
(1850); Maud (1855); Jdylls of the King (1859/1885); Enoch Arãen dntt suas poesias. A escolha era instintiva e certa. Virgílio
(1864); Demeter and Other Poems (1889). Umbém fora idilista, o poeta requintado e epigônico das
Edição por Hallam Tennyson (Exersley Edition), London, 1913.
H. S. Van Dyke: The Poetry f Tennyson. London, 1898. clogas; e Tennyson também requintou o idílio, até de
S. L. Gwynn: Tennyson, a Criticai Study. London, 1899. li, até chegar à falsificação pseudo-romântica, em Enoch
A. Lang: Alfred Tennyson. London. 1901. ilcti, que não é por acaso o mais popular dos seus poemas.
A. O. Benson: Alfred Tennyson. London, 1904.
«Mia realmente o poeta antipoético da burguesia. E so-
E. H. Griggs: The Poetry and Philosophy of Tennyson. London,
1906. 0 mesmo destino de Virgílio: impuseram-lhe a grande
F. Roz: Tennyson. Paris, 1911.
H. G. Nicholson: Tennyson. Aspects of His Life, Character and
Poetry. Boston, 1925.
P. F. Baum: Tennyson, Sixty Years After. Chapei Hill, 1948.
Ch. Tennyson: Six Tennyson Essays. London, 1945.
OTTO M A B I A GARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2153
2152
poesia representativa, da qual não era capaz. Assim nasce- reconciliar-se, enfim, com as aspirações da sua época. Rea-
ram as poesias patrióticas, a Ode on the of the Duke of cionário êle só era pela timidez, pelo esteticismo que pre-
Wellington e The Charge of the Light Brigade, antecipa- tende chegar à beleza sem luta e sem sofrimento.
ções da ideologia de Kipling, e enfim o poema representa-
tivo da época, os Idylls of the King, modernização lamentá- "Surely, surely, slumber is more s w e e t . . .
vel das lendas do Rei Artur, não se sabe bem se aburgue- O rest ye, brother mariners, we will not wander
samento ridículo dos heróis do passado ou carnaval de [more".
máscaras medievais em salão vitoriano. O próprio Tenny-
son, trabalhando vinte e cinco anos nessa sua obra máxima,
Viveu numa prisão dourada; mas dentro dessa prisão con-
sentiu a fadiga. O poeta da Aeneis vitoriana foi dominado
seguiu o máximo que se pôde realizar em poesia assim li-
pelo sentimento de ser epígono. J á em Ulysses — o mais
mitada. O seu equilíbrio entre sentimento romântico e
forte, mais viril dos seus poemas — dizia que
forma clássica, produto de trabalho incessante, revela-se
nos versos mais perfeitos e mais musicais, jamais escritos
" . . . though em língua inglesa. Música sempre harmoniosa, embora nem
W e are not now that strength which in old days
sempre cheia de sentido — mas o próprio Tennyson o con-
Moved earth and heaven; that which we are, we
[are". fessou: "I don't think that since Shakespeare there has
been such a master of the English language as I. But sure,
I've nothing to say".
Sentiu quebrada a força da fé antiga que êle lamentou em
In Memoriam, nênia interminável sobre a morte do seu ami- Tennyson é o representante máximo do parnasianis-
go Hallan, tão sentimental como Lycidas fora clássico, ex- mo anglo-saxônico; e este era menos estéril do que o fran-
primindo as dúvidas religiosas da época e satisfazendo-se cês. Conservando a herança de Keats, Tennyson antecipou
com uma confiança precária nos desígnios da Providência; a musicalidade do simbolismo; e o seu pessimismo amargo
um grande discurso poético, sincero e eloquente, mas pouco não é seco como o de um Leconte de Lisle, porque não
firme. E i s o Tennyson retórico, didático, moralizante, o c filosofia e sim a consciência que tem seu Virgílio, a de ser
reacionário carlylianc de Locksley Hall, comentando com "Light among the vanish'd ages."
pessimismo amargo as quimeras utópicas dos radicais, dos Tennyson não excluiu possibilidades e esperanças dos ou.
"Men, my brothers, men the workers. ..", tros:
que esperam a felicidade pelo materialismo, a abolição da "Tis not too late to seek a newer world".
guerra, a época quando Talvez por isso os poetas do "new world" chegaram, en-
" . . . T h e war-drum throbb'd no longer, and the bat- fim, a perdoar-lhe seus pecados vitorianos. Para o espan-
[tle-f lags were furl'd to geral, a última escolha de poesias de Tennyson foi orga-
I n the Parliament of man, the Federation of the ida e prefaciada pelo poeta revolucionário dos anos de
[World". 1030: por Auden.* E T . S. Eliot resolveu comentar o pen-
Contudo, Locksley Hall é o poema representativo da época. Itnento religioso de in Memoriam.
E m Tennyson, inglês típico, havia bastante liberalismo para Tennyson sabia-se epígono:
HISTÓBIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2155
OTTO MARIA CARPEAUX
2154
( a 4 - A ); a arte menor dos amenos "vers de société", em al-
"Let it fail on Locksley Hall, with rain or hail, or
gumas amostras de Henry Austin Dobson (1840-1924); a
[fire or snow;
calma da vida particular vitoriana, em My Garden, de
For the mighty wind arises, roading seaward, Thomas Edward Brown, poeta notável no dialeto da ilha
[and I go".
de Man ( 2 4 - B ); musicalidade algo fácil do verso, na Ode
("We are the m u s i c m a k e r s . . . " ) , de Arthur William Edgar
Pelo menos, este epígono era um nobre; não convém con- 0'Shaugnessy ( 2 4 _ c ) ; enfim, Music, de George Du Maurier
(1834-1896), é versão livre de uma poesia de Sully Prudhom-
fundi-lo com os seus próprios epígonos.
me. É o pleno parnasianismo.
Os tennysonianos, eis o verdadeiro mal da poesia vito-
riana, consequência do sucesso desmesurado do "Poet Lau- O último e mais distinto representante dessa "gentle-
reate". A vitória da modalidade tennysoniana é, em grande men poetry" foi Robert Bridges ( 2 5 ), espécie de Tennyson
menor; êle também idilista nato, autor de numerosas pe-
parte, obra das antologias, que desempenham na história
quenas poesias de nobre melancolia que já bastariam para
da poesia inglesa função importante ( 2 4 ). O próprio Ten-
•ncher uma antologia das melhores. Às vezes, Bridges che-
nyson estava, como todos os poetas então vivos, excluído
gou a aproximar-se dos deliciosos "songs" dos elisabetianos.
do Golden Treasury de Palgrave, antologia popularíssima;
In felizmente, êle também sofreu da ambição, de todos os
mas tinha influído muito na escolha: Donne e Blake não
figuram nessa antologia; os poetas preferidos são Gray,
Wordsworth, Shelley, Keats, de modo que toda a tradição
poética inglesa se apresenta como preparação a Tennyson.
I
ipígonos de Keats, de escrever um grande poema filosó-
fico; e quando o Testament of Beauty do octogenário saiu
|nfim em pleno século XX, o próprio Bridges já tinha pu-
blicado, onze anos antes, as poesias do seu amigo falecido
Quando, quase meio século depois, Arthur Quiller-Couch Jerard Manley Hopkins, precursor da poesia modernista.
organizou o Oxford Book of English Verse, destinado a al-
cançar popularidade não menor, foi preciso consertar cer-
tas injustiças com respeito ao passado; e Tennyson já não MA) William Johnson, Cory, 1823-1892.
se encontra no centro invisível do livro. Mas uma parte Ionica. (1891.)
F. C. Mackenzie: William Cory. A Biography. London, 1950.
desmesurada do volume está reservada para os tennysonia-
Ill) Thomas Edward Brown, 1830-1897.
nos, dos quais, desta maneira, certas poesias se gravaram Collected Poems (1900).
na memória inglesa, perpetuando a tradição vitorina em to- Edição das poesias por A. Quiller-Couch. 4.B ed., Liverpool, 1952.
dos os seus aspectos: o cepticismo dos scholars, em Mim- J) Arthur 0'Shaugnessy, 1844-1881.
, of France (1872); Music and Moonlight (1874).
nermus in Church e Heraclitus, de William Johnson Cory L. O. Moulton: Arthur 0'Shaugnessy, his Life and WorTc. Lon-
don, 1894.
felTt Bridges, 1844-1930.
iorter Poems (1890, 1896); a The Testament of Beauty (1929).
das obras poéticas, 2 ed., London, 1936.
24> rfce Gowen Treosury, • » I» " « * • * » " ^ ^ ™l- B. Young: flpoerí Bridges, a Criticai Stuãy. London, 1914.
S E SSoSFL* o, M M Verse, edit. por Arthur Qumer- 1: Robert Bridges. London, 1942.
on: Robert Bridges, 1844-1930. Oxford, 1945.
S M S S C / o / S r * » Verse, eu«. por Arthur Quufcr- Vrlght: Metaphor, Sound and Meaning. A Study of fío-
tridgei' "Testament of Beauty". Philadelphia, 1915.
Couch, 1912.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2157

OTTO M A R I A CABFBAUX
2156 teratura europeia, além de um vago idealismo burguês,
mais estético do que político e de nada filosófico. T u d o
A tradição tennysoniana na Inglaterra acabou t a r d e ; mas
isso era, então, novo em Boston e New York. Tennyson foi
acabou. "Poet Laureate" da Rainha Vitória; a Longfellow chamou
O vitorianismo não era fenómeno limitado à Inglater- um crítico "Poet Laureate do americano médio"; e o título
r a ; a "genteel tradition" nos Estados Unidos apresenta fei- não é mera ironia. Longfellow era, sem possuir a arte sutil
ções análogas de um romantismo tardio ou pós-romantismo de Tennyson, um versificador hábil; até superou o mestre
que, por motivos semelhantes, se tornou reacionário ( 2 C ). na arte do soneto, na qual conseguiu alguns resultados ex-
A transição do romantismo emersoniano ao pós-romantis- celentes. Deveu os seus efeitos principalmente à sábia es-
mo é representada por Longfellow ( 2 7 ), que é o Tennyson colha dos assuntos; e por isso é poeta maior só na poesia
americano; um Tennyson menor. E n t r e a gente culta de narrativa: Evangeline e o famoso poema épico Hiawatha
Boston, a "viagem de formação" para a Europa era obri- não têm que recear comparações com obras europeias mais
gatória; mas os resultados eram diferentes. Os transcen- l.imosas. Longfellow educou os americanos a ler poesia;
dentalistas encontraram na Europa o classicismo goethia- mas nem sempre lhes forneceu os melhores exemplos. A
no, o democratismo hugoniano, o medievalismo carlyliano min poesia lírica é livresca até a mera imitação dos modelos,
e várias filosofias místicas. Longfellow, cabeça de vagos

I
uiimental no pior sentido da palavra, tão nobre em ideias
sentimentos poéticos e inteligência reduzida, estava livre
mo rica em formas métricas. Corrompeu o gosto literá-
de preocupações filosóficas. Na Europa impressionaram-
í de duas ou três gerações americanas. Só raramente o
no as lendas heinianas do Reno e a paisagem das comédias
U sentimentalismo se intensificou; e então estava cons-
de Shakespeare, na Inglaterra, as baladas alemãs e o teatro
Inte do seu epigonismo, como na posia sobre The Jewish
espanhol, a arte italiana e o romantismo inglês. W o r d s -
Htiotcry at Newport, no impressionante verso final:
worth, Tennyson e Schiller tornaram-se os seus modelos.
"And the dead nations never rise again."
Aos americanos da sua época, ainda bastante rudes, trans-
BSm nenhuma parte Longfellow parece mais livresco,
mitiu Longfellow um tesouro de assuntos e formas da li-
li* europeizado, mais falso do que neste verso, lamen-
Hdo as agonias históricas em plena América, "terra da
26) Van Wyck Brooks: The Flowering of New England. New York, ^fcrtísão", o "Promised Land" da Harvard Commemora-
1936. I Ode de Lowell. Contudo, o verso de Longfellow é
27) Henry Wadsworth Longfellow, 1807-1882. llfro e tem sentido. Durante a primeira metade do sé-
Voices o/ the Night (1839); Ballads and Other Poems (1841); The
Spanish Student (1843); The Belfry of Bruges and Other Poems i XIX, o Estado de Massachusetts fora o centro inte-
<1845); Evangeline (1847); The Seasiãe and the Fíreside (1849); • M l dos Estados Unidos: a prosperidade económica
The Song of Hiawatha (1855); The Courtship of Miles Standísh
(1858); New England Tragedy (1868); Christus (1872); Michael i da Boston bastava para sustentar os clubes de es-
Angelo (1883). ^ • Q p e i z a d o s da capital e da Harvard University na
Edição por H. E. Scudder, 11 vols., Cambridge Mass., 1893.
Ch. E. Norton: Longfellow. Boston, 1907.
P. E. More: Longfellow. (In: Shelbume Essays. vol. V. Princeton,
1908).
H. S. Gorman: A Victorian American, Henry Wadsworth Long-
fellow, New York, 1926.
J. T. Hatfield: New Light on Longfellow, with Special Reference
to his Relations to Germany. Boston, 1933.
S bridge. Com a Guerra de Secessão, terminando
a da indústria e do comércio de New York e
l iôbre o Sul agrário, fortaleceu-se o monopó-

L. Thompson: Young Longfellow, 1807-1843. New York, 1938.


HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2159

OTTO M A R I A CARPEAUX de-brâmane" de Harvard, James Russel Lowell ( 2 0 ). Os


2158
seus começos eram esplêndidos: a Fable for Critics, que
lio intelectual da Nova-Inglaterra; a aristocracia escravo-
arrancou com mordacidade violenta as falsas celebridades
crata estava derrotada. Mas da nova prosperidade, da in-
do Parnaso americano, nem sequer respeitando o venerável
dustrialização do "Gilded Age", Boston já não participou,
Bryant, o iceberg poético; e os Biglow Papers, escritos de
transformando-se em ilha isolada de scholars e letrados eu-
maneira muito original no dialeto dos ianques da Nova-
ropeizados, os chamados "brâmanes", que mantiveram sozi- Inglaterra, protestando contra a vergonhosa guerra impe-
nhos a tradição cultural inglesa, a "genteel tradition" de rialista contra o México. A segunda série dos Biglow Pa-
uma civilização superior ao ambiente. Tinham-se criado pers, em favor da Abolição, já é bastante mais fraca. De-
as condições insulares de existência de uma elite em meio pois, é melhor passar sob silêncio a retórica das "grandes"
do materialismo reinante: atmosfera vitoriana, cheia de odes para comemorações cívicas; e os ensaios literários de
pressentimentos de um "fim do mundo". Lowell, escritos no espírito do vitorianismo inglês, tam-
O espírito de elite encarnou-se no maior dos "brâma- bém já perderam muito do antigo brilho. No fim, Lowell
nes", em Oliver Wendell Holmes ( 2B ), esnobe máximo. era um professor ultraconservador. O "Indian Summer"
Causeur espirituoso, zombando, nas conversas da "Break- da Nova Inglaterra tinha começado — e "the dead nations
fast Table", da gente miúda bostoniana, criando tipos hu- never rise again".
morísticos e sentimentais como um Addison ou Steele ame- A poesia vitoriana do tipo Tennyson-Longfellow apre-
ricano; enciclopedista à maneira do século X V I I I , inimigo senta certas características inconfundíveis que se pode re-
feroz do puritanismo, estabelecendo em Boston a capital sumir da maneira seguinte: abandono do romantismo en-
mundial do livre-pensamento, sem qualquer pensamento f/itico, em favor de uma poesia mais calma, mais doméstica
novo, senão o darwinismo, importado da Inglaterra; autor domesticada, chegando-se, às vezes, até a retirada para a
ôrre-de-marfim"; cuidado muito grande, até extremo, na
de famosíssimos "vers de société" e de algumas poesias sen-
Cultura do verso e da forma; esse "1'art pour l'art" levo à
timentais que todo americano sabe ou sabia de cor. Esse
desconsideração dos assuntos políticos e sociais, atitude
grande homem de Boston é às vezes de trivialidade descon-
que se dirige igualmente contra o utilitarismo da burguesia
certante. Contudo, ainda era um liberal, parece que o últi-
Industrial e comercial e contra as reivindicações sociais;
mo. Porque já se tinha estabelecido de maneira perfeita o •ntiutilitarismo leva a um novo entusiasmo, aliás mode-
"compromisso vitoriano" do qual se tornou vítima o "gran- do, pela cultura clássca, sobretudo das épocas da deca-
ncia grega e romana, e ao interesse por todos os assuntos

) «lumes Russel Lowell, 1819-1891.


28) Oliver Wendell Holmes, 1809-1894. A rabie for Critics (1848); The Biglow Papers (1848, 1861); Amonff
The Autocrat at the Breakfast Table (1831); Poems (1836, 1846, MW Books (1870/1875) etc.
1849). The Professor at the Breakfast Table (1860); Elsie Venner Htllçno (Riverside Edition), 11 vols., Boston, 1899.
(1861); The Poet at the Breakfast Table (1872). • onslet: James Russell Lowell, His Life and Work. 2.a ed. 2
Edição por J. J. Morse, 15 vols., Boston, 1896. IMI l»o;,tOn, 1905.
J. J. Morse: The Life and Letters of Oliver Wendell Holmens. 2 WÊL S. Bcudder: James Russel Cowell, a Biography. 2.a ed. 2 vols.
vols. Boston, 1896. H n t o n , 1006.
M. A. De Wolfe Howe: Holmes of the Breakfast Table. New York, i (1 lli-atty: James Russell Lowell, Na;;hville, 1942.
1939. iticl: Victorian Knight-Errant. London, 1952.
E. M. Tilton: Oliver Wendell Holmes. New York, 1947.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2161
OTTO M A R I A CAJOHUUX
2160
riflo é contrário ao espírito parnasiano, como eram Mill e
remotos no tempo ou no espaço, como o Oriente e as ci-
Darwin; Renan é, êle próprio, um idólatra da forma, um
vilizações primitivas; o resultado dessas excursões exóti-
poeta científico, um céptico para seu uso particular e um
cas é uma visão pessimista da História na qual tudo está
reacionário em matéria política. Renan é mesmo, embora
condenado a agonizar, enfim, e perecer; essa visão apóia-se
em prosa, o maior dos parnasianos franceses.
em argumentos científicos, tirados da filosofia positivista,
da qual se rejeita, porém, a ideia do progresso, a conse- O "Parnasse" ( 30 ) deve o nome ao editor parisiense
quência é uma visão apocalíptica do próprio tempo, amea- Alphonse Lemerre, que em 1866 publicou uma antologia de
çado pelas perturbações sociais; fortalece-se assim a ati- poetas novos, com a presença de alguns românticos ar-
tude reacionária em matéria política, bem compatível aliás rependidos: "Le Parnasse Contemporain". Em 1871 e 1876
com dúvidas religiosas que podem chegar até a negação for- publicaram-se continuações. E n t r e os colaboradores encon-
mal do cristianismo; essa filosofia céptica exprime-se com traram-se Gautier, Banville, Baudelaire, Leconte de Lisle,
preferência em forma dissimulada, como opinião de epi- Heredia, Sully Prudhomme, Verlaine, Coppée, Villiers de
cureus gregos ou persas ou sábios chineses, o que ajuda a L i s l e Adam, Catulle Mendes, Mallarmé. E n t r e os grandes
conservar a compostura de poetas honrosamente burgueses;; ornes do passado imediato faltava só um: Victor Hugo,
assim evitam-se as convulsões do subjetivismo romântico, xilado na ilha de Guernsey. A ausência de Hugo é signifi-
cultivando-se uma poesia calma e disciplinada, até de im- •tiva. O parnasianismo pode ser definido como hugonia-
passibilidade; o romantismo inicial de todos esses poetas, IHITIO desiludido pela experiência de 1848.

renegado depois, revela-se na preferência pelos assuntos Contudo, impõe-se prudência nas definições do parna-
exóticos, pitorescos, medievais, chegando-se até um carnaval anismo. A "escola" encontra-se, desde decénios, em des-
de fantasias poéticas, e doutro lado, no intimismo, que subs- dito absoluto e bem merecido. Os parnasianos realmen-
titui o subjetivismo romântico, mas não exclui acessos de lírandes, Baudelaire, Mallarmé, Verlaine, tornaram-se
patriotismo mais ou menos oficial. lindes poetas "à condition d'en sortir"; o resto é, quase
Essas definições, tiradas sobretudo da poesia de T e n - dos eles, dum prosaísmo insuportável. A indignação de
nyson, Fitzgerald e Longfellow, demonstram que a poesia titica francesa de 1890 e, depois, de crítica de outras na-
vitoriana não é um fenómeno isoladamente anglo-saxònico; "os, justifica-se em face dos tanto mais justa que legiões
constitui um pendant da poesia parnasiana na França. Com- I poetastros parnasianos, conquistando países e continen-
efeito, mutatis mutandis é Tennyson parnasiano, e Fitzge- inteiros para o culto do soneto com "chave de ouro",
rald também o é: In Memoriam e os Rubaiyat completarn- liando, em certa parte, o seu.domínio até o século
se; e com a devida consideração das diferenças nacionais, X. barrando o caminho à poesia autêntica. Uma reabili-
será possível a comparação com certas obras de Sully Pru- l o do parnasianismo seria difícil. A tarefa da história
dhomme e Leconte de Lisle. H á mais outras diferenças, féria, porém, não é de combater nem de defender, mas
evidentemente. A ausência do caní puritano na França e,
em compensação, a presença dos restos da Boémia românti-
ca permitiram a evolução do parnasianismo fantaisiste dos i mo: Parnasse et Symbolisme. Paris, 1925.
inlítu: Histofre du Parnasse. Paris, 1930.
Gautier e Banville, de que não existe analogia na Ingla- Mil: Les Parnassiens. Uesthétique de 1'école. Les oeuvres
terra. Antes de tudo, o pensador dominante, na França, |f« hommes. Paris, 1934.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2163
O r r o M A M A C A R P B A U X
2162 «ições sociais da época — indiferença que convém sobretu-
explicar. Êle não se pode satisfazer com a refutação dos do aos que sempre estavam fora da hierarquia social, os
conceitos meio absurdos — culto da forma "metálica" e antigos boémios do romantismo. Assim Gautier ( 3 1 ), que
estilo, com maiúscula, de impassabilidade — que constituí- ocultou o provocante colete rubro da "bataille d'Hemani",
ram o programa da escola; tanto menos que os próprios par- para rimar o manifesto do "1'art pour 1'art":
nasianos não obedeceram aos seus dogmas: o ' T a r t pour
1'art", que proclamaram, encerrou várias tendências religio- "Sans prendre garde à 1'ouragan
sas, filosóficas e políticas; e a impassibilidade é tão rara Qui fouettait mes vitres fermées,
entre os parnasianos como entre os poetas, bons e ruins, de Moi, j'ai fait Emaux et Camées."
todos os tempos. Com efeito, com tanta uniformidade o
parnasianismo nunca teria conquistado os poetas de dois Não será de todo impossível gostar de certas poesias de
continentes e de todas as raças. O fenómeno de difusão do Emaux et Camées. Gautier, renunciando ao barulho revo-
parnasianismo é bastante complexo. lucionário, ficou poeta menor, capaz de sugerir comoven-
O motivo fundamental é a retirada do romantismo pú- tes evocações românticas, como em Le Château du souvenir,
blico, hugoano, para uma existência privada: o parnasia- e esboçar despretensiosos quadros de geme, como Fumée.
nismo, poesia da época duma burguesia economicamente Mas o corpo do volume consiste numa vasta coleção de
satisfeita, politicamente derrotada e socialmente assustada, pedras preciosas ("Vers, marbre, onyx, e m a i l . . . " ) , e este
é o reverso da mentalidade utilitarista da época, em con- preciosismo, que ainda embalará os simbolistas, não é senão
sequência de um prosaísmo irremediável. A famosa "cul- n petrificação dos antigos sonhos pitorescos da boémia ro-
tura da forma" é como um hobby de gente desocupada, em- mântica, sonhos espanhóis sobretudo, embora tampouco fal-
bora preocupada, e não chega a tornar-se séria; só serve tem reminiscências da maneira do século X V I I I de abusar
para o enfeito de lugares-comuns triviais. A condição de da China e outros países orientais: como numa grande loja
sair dessa esterilidade de ourivesaria verbal é a renúncia a «le antiguidades ou de brinquedos. A mistura não era de
toda e qualquer possibilidade de lugar-comum, quer dizer, todo feliz; e pode-se achar que UEscurial de Gautier é,
ao pensamento "claro"; eis o passo, para além do parna- no mesmo tempo, um castelo na Boémia e uma chinoiseríe.
sianismo, que dará Mallarmé. A "clareza latina" não é a A curiosidade histórico-geográfica da alma vazia de Gau-
suprema qualidade da "escola", mas o seu estigma. A "tour tier era insaciável; em prosa conseguiu, aliás, fixar melhor
dúivoire" não se distingue muito da casa burguesa de 1860; a* impressões colhidas durante as viagens na Espanha,
torre e casa estão cheias de bricabraque e enfeitos inú- Itália, Turquia e Rússia. Era, conforme a sua definição
teis entre os quais o visitante não ousa sentar-se e o poeta Mmpre citada, "un homme pour qui le monde visible exis-
realiza as pirouettes de acrobata de rimas ricas. É uma ta." Até para os valores plásticos da Antiguidade clássica
forma de protesto contra o utilitarismo, ao qual se devem brlrom-se agora os velhos ao ex-romântico, adorando o
prestar as homenagens indispensáveis na vida civil. A su- inteão já quase à maneira de Renan.
prema dessas homenagens é o reacionarismo político, que
reina igualmente na casa e na t o r r e ; como conformismo dos
Sainte-Beuve e Mérimée, sem renúncia ao livre-pensamento
f. "Fim do Romantismo", nota 32.
voltairiano, e como indiferença fingida para com as tran-
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2165
2164 OTTO M A B I A CARPEAUX
dionisíaco. Precursor fora Maurice de Guérin ( 3 2 ), român-
A curiosidade histórico-geográfica dos parnasianos era
tico da primeira geração, atacado do mal du siècle ao qual
insaciável: alimentaram-na os estudos e descobertas da ar-
sucumbiu fisicamente o seu corpo; mas não o seu espírito.
queologia e filologia. Com espanto, os poetas ouviram da Estranhamente, foi a influência do romântico Lamennais
descoberta, por Mariette, do templo do Serápio em Mênfis, que lhe salvou a poesia, convertendo-o ao catolicismo lati-
com os 64 túmulos de sagrados touros Ápis: a escavação, no, abrindo-lhe as portas da beleza mediterrânea. E n t r e gra-
pelo mesmo Mariette, das cidades mortuárias em Sakkara ves escrúpulos religiosos, Guérin escreveu La Bacchante
e Abydos fortaleceu a associação poética entre povos mor- e Le Centaure, evocações impressionantes, quase keatsia-
tos e religiões mortas; e os templos grecizantes de Edfu e nas, do paganismo dionisíaco; esses maravilhosos poemas
Dendera lembraram o reino requintado e decadente dos em prosa, elaborados com arte de escultor verbal, são as
Ptolemeus, um dos assuntos prediletos da poesia parnasia- primeiras poesias parnasianas, superiores a todas as se-
na. Botta desenterrou em Mossul o palácio do Rei assírio guintes porque o parnasianismo é propriamente prosaico.
Depois veio a ciência. Thalès Bernard traduziu em 1846
Sargon; Layard, o palácio do Rei Senakherib em Ninive —
um exército de deuses e demónios fantásticos saiu das tum- 0 dicionário mitológico do alemão Jacobi, e Louis Ménard
deu a conhecer as ideias do inglês Max Mueller sobre o
bas para obsediar as imaginações. Os trabalhos de Renan
politeísmo primitivo dos gregos. É digno de nota que o
na Síria ampliaram esse pandemônio e colocaram o cristia-
juóprio Thalès Bernard era poeta parnasiano (Adorations,
nismo primitivo entre as religiões orientais que contribuí-
1856) ; e Ménard era mesmo um dos parnasianos importan-
ram à ruína da civilização greco-romana. A história intei- tes, chefe espiritual da "école paienne", anticristã, à qual
ra parecia u m vasto cemitério de povos, civilizações e deu- Leconte de Lisle aderiu.
ses; e como suprema sabedoria revelou-se a religião nihilis-
Os parnasianos, em geral, eram pagãos; não pagãos ale-
la dos antigos indianos, o budismo, do qual Eugène Burnouf
gres, faunos, mas pensativos, tristes, cépticos como o seu
deu notícias impressionantes.
mestre Renan. Gostaram de fantasiar-se de "gregos de
O espetáculo da natureza tropical, com as devastações Alexandria" ou "romanos da decadência", assim como estes
periódicas e a vegetação exuberante, sepultando as ruínas, •parecem nos quadros históricos de Couture. O positivismo
fortaleceu a mentalidade pessimista: os parnasianos eram forneceu aos "poetas científicos" uma filosofia rudimentar
viajantes infatigáveis, e alguns nasceram mesmo longe da < pouco consoladora da história, que, aplicada ao próprio
França; Leconte de Lisle e Dierx na ilha de La Réunion, «éculo XIX, sugeriu angústias apocalípticas. "Crépuscule
d«m dieux" é um dos motivos prediletos dos parnasianos,
Heredia em Cuba.
1 brincando com o satanismo como crianças assustadas. É
As nuvens das mitologias esquecidas e ressuscitadas
escureceram o céu clássico da Grécia. Atenas ainda não 1
'ii Ire rio Guérin, 1810 — 1839.
morrera para sempre; mas foi preciso passar por caminhos t a Bacchante, Le Centaure (escr. 1836, pupl. 1840.)
i;fto por H. Clouard, 2 vols., Paris, 1930.
tortuosos até os antigos românticos redescobrirem a har- li, Byromaki: Maurice de Guérin. Paris, 1921.
monia das colunas e Renan entoar a Prière sur VAcrópole. , 1 dTlarcourt: Maurice de Guérin et le poème en prose. Paris,
Foi preciso revelar o lado noturno da Grécia, o paganismo BI
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2167
OTTO M A R I A CARPEAUX
2166
dores da causerie espirituosa e de um estilo claro, pitores-
evidente o motivo social dessas preocupações pseudo-reli- co e elegante. J á desapareceu também o medo pânico que
giosas; mas eis a porta pela qual sairá do parnasianismo u m os ortodoxos e tradicionalistas sentiram em face de Renan;
Baudelaire. Nos outros, a angústia só chega, como em Ten- e desde então gostam de admirar, eles também, o estilista
nyson e Turgeniev, para sugerir o sentimento pessimista
incomparável. Renan é menos um pensamento do que um
da própria inutilidade, da inutilidade de todos os esforços
estilo.
de um epigonismo irremediável: "Nous vivons d'une ombre r
Admite-se a influência nefasta do cepticismo renania-
monsieur, du parfum d'un vase vide". A frase é de Renan.
no sobre duas gerações da mocidade francesa; o seu dile-
Renan ( 33 ) é das figuras mais discutidas da história do
tantismo científico continuou a fornecer argumentos e
espírito europeu. O ex-seminarista de Saint-Sulpice, depois
citações aos oradores de festas cívico-laicistas e reuniões
pontífice do livre-pensamento, é admirado por alguns como
maçónicas, e o seu egoísmo céptico — "La France se m e u r t ;
um Lúcifer, portador da Luz nas trevas do obscurantismo;
ne troublez pas son agonie!" — desempenhou a função de
e amaldiçoado por outros, como um Lúcifer, anjo negro,
revoltado contra Deus. Não basta, porém, considerá-lo as- fermento invisível da corrupção moral que arruinou a Ter-
sim como fenómeno contraditório, porque o pensamento ceira República, que foi laicista, renaniana: a laicização da
de Renan escapa às definições do partidarismo. É um Pro- escola, a expulsa das congregações, a separação entre Esta-
teo, revelando-se às vezes como libertador idealista, às ve- do e Igreja em 1905, eis as obras póstumas de Renan; e não
zes como apóstata demoníaco, às vezes como céptico egoísta existe ilustração mais eloquente disso do que a conhecida
e reacionário; e o fato mais estranho é a limitação da sua fotografia de 1904, mostrando a Guarda Republicana arma-
influência. Foi proclamado o maior representante do livre- da de fuzis, defendendo o monumento recém-inaugurado de
pensamento; mas nos anais da historiografia crítica o seu Renan em Tréguier contra a massa fanatizada dos seus con-
nome só aparece como o de um estudioso das línguas se- crrâneos, os camponeses católicos da Bretanha. Renan
míticas; e os seus discípulos encontram-se menos entre os icreceu o enterro triunfal no Panteão. Mas foram os re-
historiadores e sociólogos da religião do que entre os ama- unianos de 1895 e 1900 que defenderam a verdade e a justi-
(i contra as mentiras e violências dos anti-dreyfusistas; e o
cume da decadência moral, a traição de 1940, não era obra
33) Ernest Renan, 1823 — 1892. os renanianos, e sim dos anti-renanianos, derrubando a Re-
Histoire générale et système compare des langues sémitiques
(1855); ttudes d'histoire religieuse (1857); Vie de Jesus (1863); ública e estabelecendo um fascismo francês inspirado
Les Apôtres (1866); Saínt Paul (1869); La reforme intellectuelie •te nas ideias reacionárias da Reforme intellectuelie et
et morale (1871); UAntlchrist (1873); Callban (1878); Veau de
Jouvence (1880); Marc-Aurèle et la jin du monde antique (1881); orale, do mesmo Renan. É um P r o t e o ; a sua vida de bre-
Souvenirs d'enfance et de jeunesse (1883); Le prètre de Nemi 0 devoto, seminarista de Saint-Sulpice, fugitivo, apóstata,
(1885); Vabbesse de Jouarre (1886); Histoire du peuple d'Israel
(1887/1893); VAvenir de la Science (1890). •Alista da ciência revolucionária, erudito, céptico, "bispo
Edição crítica da Prière sur VAcrópole por E. Vinaver e T. B. L. Anli-Igreja", eterno défroque que fêz da sua vida e obra
Webster, Manchester, 1935. M n "la sépulture brillante de ma foi perdue" — eis
G. Séaílles; Renan, essai de biographie psycologíque. Paris, 1895.
H. Parigot: Renan, Végoisme intellectuel. Paris, 1909. iclivo ótimo de pesquisas psicológico-literárias à
J. Pommier: Ernest Renan, essai de biographie intellectuelie. Pa- H f e do Sainte-Beuve, que explicarão t u d o ; menos a
ris, 1923. ^ t r a n ç a duradoura de P r o t e o : o seu estilo.
P. Lasserre: La jeunesse de Renan. 3 vols. Paris, 1925/1932.
M. Weiler: La pensée de Renan. Grenoble, 1945.
Shil van Tilghem: Renan. Paris, 1948.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2169
2168 OTTO M A B I A CARPEATJX

idealista continuamente desiludido; repetindo as crises re-


O próprio estilo de Renan escapa às definições: é cla-
ligiosas e políticas de Sainte-Beuve, tornou-se, como este
ro no sentido especificamente francês da palavra ("ce qui
depois de 1848, conformista e racionado, fiel até depois
n'est pas clair, n'est pas français") ; é pitoresco como a poe-
de 1870 à ditadura e à família de Napoleão I I I . Pertence,
sia daquele "pour qui le monde visible existe"; é evocativo
como Sainte-Beuve e Mériméa, ao grupo dos românticos de-
como a realização clássica do grito romântico: "O Temps,
cepcionados que prepararam o parnasianismo, sem renegar
suspends ton vol!" Três adjetivos contraditórios, relativos
de todo a herança romântica. Esta se revela sobretudo, e de
a três estilos renanianos. O primeiro estilo de Ranan, o cla-
maneira desagradável, na antigamente famosa Vie de Jesus,
ro, o voltairiano, é o de um "enciclopedista", de um liber-
à qual um crítico severo e justo chamou de "procissão de
tador à maneira do século X V I I I , de idealismo incontestá-
sentimentais santos de gesso, saídos duma loja de artigos de
vel e erudição de segunda mão. A Vie de Jesus baseia-se,
devoção da Place Saint-Sulpice". Mas a obra histórica de
toda ela, nos estudos de David Friedrich Strauss e outros
Renan não se limita às obras de divulgação em estilo paté-
protestantes alemães, sem contribuir à exegese crítica ne-
tico-irônico. A Histoire générale et système compare des
nhum fato ou ideia nova; asism co^mo a Histoire du peuple
langues sémitiques é um monumento de ciência autêntica,
d'Israel é toda tirada dos estudos de Wellhausen. Mas se
positiva, digamos positivista. O positivismo de Renan não
a obra exegética de Renan tem pouco mérito na evolução do
tem nada com Comte; é antes o dos grandes matemáticos
livre-pensamento, prestou serviço imenso aos ortodoxos,
e físicos do seu tempo, complemento racional, em prosa,
despertando-os do comodismo da apologética tradicional,
da poesia positivista dos parnasianos, largamente inspira-
criando indiretamente o movimento científico no catolicis-
dos no paganismo grecisizante e no pessimismo histórico
mo francês e italiano. Mas tampouco deixou de advertir
de Renan. Assim como os parnasianos, Renan viveu "d'une
os livres-pensadores quanto às consequências da renascença
ombre", da do "catholicisme qui n'a qu'un défaut, c'est que
da ortodoxia: " C e s t M. Homais qui a raison. Sans M.
ce n'est pas vrai" Além disso, quase tudo lhe parecia bom
Homais, nous serions tous brulés vifs".
no catolicismo, tudo muito bonito, poético, pitoresco; e
O outro estilo de Renan, o do céptico é post-romântico,
com o poder de refrear as massas incultas e bárbaras. Re-
pitoresco, evocativo, o das grandes visões históricas: os
nan viveu "d'une ombre"; mas disso viveu bem, como epicu-
nómades semíticos conquistando a Cananeia; os profetas-
reu, gozando das alegrias do lar, dos bons livros e dos
demagogos, revoltados contra o despotismo e a decadência
"crimes et malheurs de 1'histoire". Renan pertenceu cons-
moral das elites da J u d e i a ; Jesus com os discípulos, pas-
cientemente à elite. No fundo, a sua oposição ao cristia-
seando no vale primaveril da Galileia; São Paulo, pregan-
nismo dos camponeses fanatizados de Tréguier, que lhe as-
do entre as orgias do naturalismo sexual dos romanos de-
saltarão o monumento, reduz-se à dúvida com respeito à
generados; Marco Aurélio, ditando o testamento da civili-
igualdade dos filhos de D e u s : não viu "razão por que a
zação grega. No fundo desses panoramas entrevê-se sem-
alma de um papua devia ser imortal". Caliban era o seu
pre a testemunha de todos os séculos, a Igreja, da qual o
pesadelo. Ao monstro dedicou o mais espirituoso dos seus
défroque saíra; Renan nunca deixou de ser clérigo, seja
brilhantes "dramas filosóficos" — "pièce de résistance" da
do catolicismo romano, seja das esperanças meio científi-
sua obra inteira, e a explicação teórica de Caliban, deu-a
cas, meio utópicas, do romantismo; e acabou como bispo,
na Réíorme intellectuelle et morale, manual da política rea-
em paisano, do laicismo da Terceira República. Foi um
2170 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2171

cionária, que inspirará um Barres e um Maurras. A Maur- "Post Laureate" da Terceira República e recebendo o pri-
ras, Renan fornecerá a comparação entre a beleza perfeita meiro Prémio Nobel de L i t e r a t u r a : eis um "test" do pés-
da Partenon (Prière que je fis sur 1'Acrópole quand je ius simo gosto literário da época.
arrivé à en comprendre la paríaite beauté) e a harmonia O mais desagradável em Sully Prudhomme decorre do
perfeita do Estado hierarquizado. O grecismo de Renan seu pós-romantismo de pequeno burguês. Nos grandes bur-
está no meio entre o seminário dos padres de Saint-Suplice gueses — menos pela condição do que pelo gosto — do par-
e a dos monarquistas da redação da "Action f rançaise". Com nasianismo sobreviveu mais de Hugo do que de Musset,
as pedras do Partenon, Renan reconstruiu a "cathédrale chegando-se a uma espécie de neoclassicismo burguês, do
desaffectée" da sua fé perdida na qual rezaram os discípu- qual o representante é Leconte de Lisle ( a B ) ; sucessor de
los do seu positivismo. Não é possível dizer se ele mesmo Hugo na Academia, tradutor de Homero, Hesíodo, Teócrito
concordaria com as consequências; não gostou delas nun- e dos trágicos gregos, o maior poeta do "Parnasse". Le-
ca. "Pour penser librement il faut être sur que ce qu'on conte de Lisle nasceu nos trópicos; parecia destinado a con-
publie ne tirera pas à conséquence". Considerava como o ferir à poesia hugoniana o "nouveau f risson" de paisagens
privilégio mais precioso da elite intelectual a irresponsa- desconhecidas, de u m "condoreirismo" africano. A desilu-
bilidade. Com efeito, a sua historiografia é irresponsável, são de 1848 matou o romântico em Leconte de Lisle. O bur-
da mesma maneira como a criação poética é irresponsável guês erudito fugiu para a Antiguidade clássica, as civili-
ao lado da ciência positiva. Renan realizou em prosa o zações orientais, a natureza primitiva. E m vez de sensa-
sonho dos poetas parnasianos: a poesia científica. E assim ções novas deu imagens perfeitas de coisas acabadas, uma
como a poesia dos parnasianos, poesia dum cepticismo pri- poesia de "peças de museu", conservadas com o zelo de
vado, a do Renan foi admiradíssima, sem "tirer à consé- um inimigo fanático dos deuses mortos. Com efeito, cha-
quence". As obras principais de Renan continuam e conti- mou-se a Leconte de Lisle "conservador de um museu de
nuarão como obras-primas de estilo, independente do con- história da religião" e "diretor de gabinete de antiguidade";
teúdo. "Emaux et camées". e a sua poesia científica tem a precisão das descrições num
A grandeza literária de Renan, poeta científico e es- catálogo de museu. Midi, Les éléphants, La Bernica, Som-
tilista evocativo, patenteia-se pela comparação com o par- meil du Condor, Illusion suprême e muitas outras poesias
nasiano que pretendeu poetizar a ciência positiva: Sully dos Poèmes antiques e Poèmes barbares destacam-se pela
Prudhomme (S4)> ao qual chamaram "Lucrécio moderno",
e que versificou e rimou incansavelmente os progressos da
ciência os preceitos morais da escola laica, e as tristezas sen- 35) Charles Leconte de Lisle, 1818-1894.
timentais de um burguês envelhecido. Sully Prudhomme, Poèmes antiques (1852); Poèmes barbares (1862); Poèmes tra-
giques (1884); Derniers poèmes (1895). — Traduções: Teócrito
(1861); Homero (1866/1867); Hesiodo (1869); Esquilo (1872); Ho-
rácio (1873); Sofocles (1877); Euripides (1885).
Edição das poesias por J. Madeleine e E. Vallée, 4 vols., Paris,
34) René François Armand Sully Prudhomme, 1839-1907. 1926/1928.
Les solitudes (1869); Les Destins (1872); Les mines tendresses J. Dornis: Essai sur Leconte de Lisle. Paris, 1909.
(1876); La Justice (1B78); Le Prisme (1886); Le Bonheur (1888). E. Esteve: Leconte de Lisle, 1'homme et 1'oeuvre. Paris, 1923
E. Esteve: Sully Prudhomme, poete sentimental et poete philo- J. Vianey: Les "Poèmes barbares" de Lecont de Lisle, Paris. 1933.
sophe. Paris, 1925. A. Fairlie: Leconte de Lislés Poems on the Barbarian Races. New
P. Flottes: Sully Prudhomme. Paris, 1930. York, 1947.
OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÔRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2173
2172
construção absolutamente magistral do verso e das estro- perficie — continuando-se as tendências descritivas e in-
fes. É poesia retórica, sem alma nem música; mas é preciso timistas da poesia de Hugo e o pessimismo de Vigny. Le-
admitir que os simbolistas detestavam igualmente, na poe- conte de Lisle é um Hugo moderado, aburguesado e assom-
sia de Leconte de Lisle, a precisão do metro e a precisão brado. E m geral, o valor relativo da poesia parnasiana está
do pensamento. Leconte de Lisle é daqueles poetas parna- determinado pela porção de romantismo que conserva. Por
sianos aos quais o inimigo mais feroz da escola não pode isso, sobreviveram melhor aqueles parnasianos que, vindo
chamar de imbecis. O seu pessimismo é coisa mais séria do da boémia romântica como Gautier, ficavam fiéis à irrespon-
que o seu conceito de poesia; e não pode zombar dos Poè- sabilidade dos "Jeune-France". Assim Banville ( 1 0 ), o
mes antiques, de Leconte de Lisle, quem admira a Tentation mais famoso dos acrobatas da rima, poeta cheio de música
de Saint Antoine, de Flaubert, epopeia leconte-de-lisliana verbal, mas inteiramente vazio; funesta tornou-se a sua
em prosa. Só a forma do poeta é neoclassicista. A ideia tentativa de codificar, no Traité de versification française,
de que » as normas do "Parnasse" e impô-las como leis eternas da
"La nature se rit des souffrances humaines" revela a poesia francesa. Um Banville "sem lei nem rei' foi Riche-
influência de Vigny e Leopardi, classicistas de colorido ro- pin ( 3 7 ) ; Banville dos subúrbios, o parnasiona-vagabundo,
mântico como o próprio Leconte de Lisle. Classicismo mé- satanista pouco perigoso — mas eis a porta pela qual Ver-
trico, contemplação romântica e pessimismo positivista es- laine saiu do "Parnasse", assim como Mallarmé saiu pelo
tão em harmonia, em versos como estes da Ulusion suprême: culto da forma e Baudelaire pela angústia apocalíptica do
pessimismo científico.
"Soit! La poussiére humaine, en proie au temps O parnasianismo intimista é representado por Cop-
[rapide, pée ( 3 8 ), descrevendo em versos "impecáveis" a vida dos
Ses voluptés, ses pleurs, ses combats, ses remords, pequenos-burgueses parisienses; às cenas proletárias, como
Les dieux qu'elle a conçus et 1'univers strepide na famosa Greve des forgerons, não deixou de dar desfe-
Ne valent pas la paix impassible des morts." cho reconciliatório. Como poeta dos pequenos sentimentos

Só na morte da sua própria poesia conseguiu Leconte de


Lisle a impassibilidade, seu ideal poético. J á não podemos 36) Théodore de Banville, 1823-1891.
admirar incondicionalmente essa poesia de bricabraque exó- Les Cariatides (1842); Les stalactites (1846); Odes funambules-
ques (1857); Sonnailles et clochettes (1890) etc.; Petit traité de
tico e antiguidades falsifacadas, gosto de 1880. Leconte de versification française (1872).
M. Fuchs: Théodore de Banville. Paris, 1912.
Lisle é um pessimista didático, um Hesiodo moderno, pro- J . Charpentier: Théodore de Banville, Vhomem et 1'oeuvre. Pa-
saico e cinzento como o grego; mas assim como este, será ris, 1925.
sempre respeitado. 37) Jean Richepin, 1849-1926.
La Chanson des gueux (1876); Les Blasphèmes (1884) etc.
A impassibilidade da poesia parnasiana não passa de R. Miles: Les poetes français contemporains: Jean Richepin. Pa-
uma lenda; perturbou-a o germe romântico em toda a poesia ris, 1887.
do século X I X , sem produzir, aliás, angústias profundas. 38) François Coppée, "1842-1908.
Les poèmes modernes (1869); Êlégies (1876); Les paroles sincères
Paul Martino acentuou a filiação do parnasianismo ao ro- 1890); Dans la prière et dans la lutte (1901).
mantismo — é preciso acrescentar: u m romantismo de su- L. Le Meur: La vie et 1'oeuvre de François Coppée. Paris, 1932.
OTTO M A R I A GARPEAUX HISTÓFIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2175
2174

sentimentais do lar francês, Coppée é verdadeiro "poeta na- natural da Cuba — "Sous les palmiers, au long f rémissement
cional" em tom menor, apesar das ridicularidades da "for- des palmes" — o único em que o culto da forma elaborada
ma escultural". Mas não era menos "nacional" em tom parecia capaz de transfigurar completamente os assuntos
maior, como nacionalista, antissemita, antidreyfusista, mo- histórico-geográficos. "Parecia", porque o valor definitivo
narquista. Mas as possibilidades todas de eloquência na- dos seus sonetos tão admirados já não está tão certo. He-
cional no "culto da forma" e da rima rica só se revelaram redia era um homem de salão de 1880, móveis de peluche,
em Rostand (3S>), em que o "Parnasse" produziu u m pouco quadros históricos na parede, iluminação a gás. Os seus so-
tarde, seu dramaturgo: rimador engenhoso como Banville, netos são mesmo pequenos quadros históricos, infelizmen-
versificador prosaico como Leconte de Lisle, dramaturgo te iluminados a gás, quer dizer do ponto de vista de um
habilíssimo como Sardou. No fundo, esse Sardou do "Par- burguês culto, rico, melancólico, rei do lugar-comum. O
nasse" ressuscitou o teatro romântico de Hugo, com maior seu verso, que parecia bronze, parece-se antes com peluche,
sucesso popular, mas sem o lirismo do grande "vate". tão frouxo é na verdade; e as famosas "chaves de ouro" —
Quem fala de belezas líricas em Chantecler, revela surdez "Du fond de l'Océan des étoiles nouvelles"; "Un frisson
poética e desconhecimento da poesia francesa moderna. dór, de maere et d'émeraude"; La Mer qui se lamente en
Cyrano de Bergerac será, por muito tempo ainda, uma peça pleurant les Sirenes" — u m crítico malicioso comparou-as
indispensável do repertório francês; mas a indiferença aos aforismos, cuidadosamente preparados e decorados antes
absoluta do dramaturgo com respeito à realidade das coisas da party, com os quais W i l d e deslumbrou a gente da mesma
revela bem o espírito parnasiano; dos outros parnasianos, sociedade e época. Mas os exageros de então e a imbecili-
Rostand difere apenas pela qualidade inferior do seu verso. dade das imitações não devem influir na apreciação justa.
Será melhor aguardar outra oportunidade do que o sucesso O talento de Heredia era limitado e só receptivo, como a
de Rostand para falar no problema do drama poético. sensibilidade artística de u m connoisseur e colecionador.
Alguns dos objetos que Heredia colecionou, são realmente
O parnasianismo pitoresco, cuja árvore genealógica tem belos, como Médaille antique, cujo verso final — "L'immor-
as raízes nas Orientales de Hugo, revela os seus diversos telle beauté des vierges de Sicile" — ainda fica na memória.
aspectos em Gautier, Renan, Leconte de Lisle. T e m mais O defeito fatal é sempre o mesmo e o de todo o parnasianis-
um representante exímio em José-María de Heredia ( 4 0 ), mo pitoresco: o historismo falso, a ocupação com um pas-
sado ao qual nada ligava os poetas.

39) Edmond Rostand, 1868-191B. O historismo parnasiano é um traço característico da


La princesse loíntaine (1895); Cyrano ãe Bergerac (1897); UAíglon literatura burguesa da segunda metade do século X I X . Não
(1900); Chantecler (1010).
J . Haraszti: Edmond Rostand. Paris, 1913. está diretamente ligado ao historismo herderiano dos ro-
A. Lautier e F . Keller: Edmond Rostand. Paris, 1924. mânticos; é uma intepretação positivista desse historismo,
J. W. Orieve: L'oeuvre dramatique ã'Edmond Rostand. Paris,
1933. considerando todas as civilizações e épocas como fases pre-
40) José-Maria de Heredia, 1842-1905. paratórias do próprio século X I X e da sua civilização, con-
Les Trophées (1893). siderada perfeita.: a atitude decorrente é a desvalorização
Edição Lemerre, Paris, 1924. I
B. Langevin: José-Maria de Heredia. Paris, 1907. do passado como mero gabinete de curiosidades pitorescas,
M. Ibrovac: José-Maria de Heredia. Sa vie, son oeuvre. 2 vols. ou então o pressentimento angustioso de que a pretensa per-
Paris, 1923.
2176 OTTO M A M A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2177

feição poderia significar o fim próximo. Daí a falsidade, a Este reacionarismo político do "Félibrige" é mais um indí-
pouca sinceridade do pessimismo histórico dos parnasianos. cio do caráter parnasiano do movimento. Tratava-se de
Em certa parte, porém, esse historismo pôde desempenhar uma "reforme intellectuelle e morale", no sentido renania-
a função de um vigoroso fermento poético. O historismo no, da França meridional; e o equilíbrio entre elementos ro-
herderiano, de origens germânico-eslavas, não podia in- mânticos e clássicos é o que os parnasianos ambicionavam,
fluenciar aquelas regiões de fala neolatina qu enão possuíam sem capacidade de realizá-lo. Na Provença e Catalunha, a
personalidade nacional independente. Herder, os irmãos história, por mais pitoresca que fosse, não era uma coleção
Schlgel, Sismondi, Southey consideravam a literatura pro- de peças de museu, e sim uma tradição nacional, embora
vençal como fenómeno histórico, sem pensar na possibili- sem corpo político.
dade da sua ressurreição; e os casos da Catalunha e da Ru-
O "Félibrige" ( 4 1 ), espécie de sociedade poética ou
mânia deixaram ainda menos esperanças. Na verdade, o
Academia particular, foi fundado em 1854, quando estavam
renascimento político e literário dessas pequenas "nações la-
reunidos, no castelo de Font-Ségugne, perto de Avignon,
tinas só se podia realizar através da revivificação da tra-
Mistral, Roumanille, Aubanel, Anselme Mathieu e três ou-
dição latina mediterrânea; através daquele classicismo con-
tros poetas. Mistral ( 42 ) é, sem possibilidade de compara-
tra o qual o pré-romantismo herderiano se revoltara. P o r
ção, o maoir entre eles; o único poeta da Renascença neo-
isso, "Félibrige" e "Renaixensa" vieram só decénios mais
latina, digno de estar na companhia dos grandes da literatu-
tarde, depois de 1850, quando a força do romantismo e a sua
ra universal. A língua não constitui dificuldade séria para
resistência anti-classicista já estavam quebradas. O cará-
quem conhece outros idiomas neo-latinos. O acesso será
ter estilístico do "Félibrige" ainda está sujeito à discussão.
mais fácil, ao leitor moderno, através do maravilhoso Lou
Os começos do movimento estavam ligados ao nome de
pouèmo dou Rose, dedicado ao grande rio da Provença, o
Lamartine, admirador entusiasmado de Mistral; e a "neo-
Ródano:
latinidade" inteira é romântica no sentido em que Friedrich
Schlegel chamou "românticas" a todas as literaturas me-
ridionais, as "literaturas du Midi" de Sismondi. Os "féli-
41) L. Grazíani: La poesia moderna in Provenza. Bari, 1920.
bres", porém, sentiam-se classicistas; e não sem boas ra- E. Rlpert: Le Félibrige. Paris, 1924.
zões. Cultivaram o verso cuidadosamente elaborado; supri- A. V. Roche: Provençal Regionalism. Evanston, ali., 1965.
miram o subjetivismo em favor de normas estéticas gerais; 42) Frédéric Mistral, 1830-1914.
Mírèio (1859); Calenãau (1867); Lis Isclo d'Or (1875); Nerto
e não deixaram passar oportunidade alguma de se lembra- (1884); La reino Jano (1890); Lou pouèmo dou Rose (1897); Lou
rem das origens greco-latinas da civilização mediterrânea. Trésor dou Félibrige (1878/1886).
Veneravam Virgílio como mestre. Não incluíram, porém, Edições: Mirèio, 52.a ed., Paris Charpentier, 1920.
H. Schoen: Frédéric Mistral et la littérature provençale. Paris,
entre as suas admirações o classicista Carducci, pagão e 1910.
republicano. Os "félibres" eram católicos e monarquistas; J. Vincent: Frédéric Mistral. Paris, 1918.
P. Lasserre: Frédéric Mistral, poete, moraliste, citoyen. Paris,
e o seu classicismo encontrará, meio século mais tarde, os 1918.
defensores mais fervorosos em Maurras e Léon Daudet. A. Thibaudet: Mistral ou la Republique du soleil. Paris, 1930.
L. Larguier: Mistral. Paris, 1930.
R. Lafont: Mistral ou 1'illusion. Paris, 1954.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2179
OTTO M A R I A CARPEAUX
2178
berdades provinciais; da "Província" que deu o nome a to-
"Amo de-longo renadivo, das as unidades administrativas do mundo. Ou então, Mis-
amo jouiouso e fièro e vivo, tral teria sido o "doctor latinitatis", o poeta e mestre duma
que' endihes dins lou brut dóu Rose e dóo Rousaul latinidade futura, federação composta da "italianià", da
amo de sènvo armoniouso "hispanidad" e criações semelhantes, nascidas do espírito
e di calanco souleiouso, da Action Française e prontas a esmagar a França. Está
t'apelle! encarno-te dins mi vers prouvençau!" fora de dúvidas o humanismo de Mistral, autor erudito do
E i s o "leitmotiv" de todas as obras de Mistral: de Calen- Trésor dou Félibiige, humanismo baseado no conservantis-
dau que é o seu poema narrativo mais perfeito; de Nerto; mo monárquico-católico. Isso não tem nada ou pouco com
de Lis Isclo d'Or, cujo título é um programa, lembrando o a sua poesia. Mas é verdade que reside nesses elementos
sonho de Mistral, a "Republique du Soleil" das civilizações acessórios o motivo do seu papel histórico de um parnasia-
neolatinas, mediterrâneas. Mistral é um grande artista; a no, superior aos parnasianos pela tradição viva que encar-
sua arte narrativa lembra, de longe, a Lrongfellow, ao qual nava; mas também o motivo da relativa esterilidade dos
é, no entanto, muito superior. Também lembra*" os Lake seus esforços extraliterários. A literatura neoprovençal,
Poets. Mas Mistral não moraliza; e apesar do entusiasmo que com Mistral começara, também quase acabou com ele.
romântico de todas as suas iniciativas, o seu ' T a r t pour Morreram muito antes de Mistral os melhores dos seus
1'art" é clássico e nacional ao mesmo tempo. O poema épico camaradas no "Félibrige": Roumanille ( 4 a ), que era um
Miréio, a obra capital, é, entre os poemas do século XIX, fino elegíaco e idilista, e Aubanel ( 4 4 ), um dos grandes poe-
só comparável ao Pan Tadeusz de Mickiewicz; mas quanto tas eróticos do século. Ficaram os "félibres", não desprezí-
menos romântico e mais grego! Os admiradores de Mistral veis, das províncias vizinhas, Arsène Vermenouze na Au-
exageraram muito, por motivos compreensíveis de orgulho vergne, Miqueu Camelat na Gascogne, Joseph Pons no
regional. Mas o valor de sua poesia é incontestável. Roussillon. Na própria Provença, Prosper Estieu e Anto-
Mistral contaminou com o seu entusiasmo todos os nin Perbosc aproximaram-se do neoclassicismo artificial;
críticos. É preciso eliminar aqueles exageros que serviram Valéry Bernard, do realismo. Hoje, Albert Pestour e Paul
para interpretações intencionalmente equívocas. A compa- Eyssavel não passam de poetas provincianos.
ração com Homero não é séria; a com Hesíodo não é muito Na ocasião do sexto centenário da morte de Petrarca
lisongeira nem justa; e o apelido de "Teócrito provençal" reuniram-se em Avignon, em torno de Mistral, represen-
só lembra a espontaneidade maior do poeta moderno e arte tantes de várias nações latinas; e nos " J e u x Floraux" em
superior do poeta grego. Mistral não é um grego. Mas
tampouco é um latino em sentido antigo, um Virgílio da
Provença. Não há restrição alguma na observação de que 43) Joseph Roumanille, 1818 — 1819.
Mistral é u m poeta regionalista; esse fato não diminui a Li margarideto (847); Li sounjarello (1851); La campano munta-
do (1857) etc.
sua grandeza. Todas as tentativas, empreendidas por ele N. Welter: Joseph Rouvianille. Diekirch, 1899.
mesmo, pelos seus discípulos, admiradores e aproveitado- 44) Théodore Aubanel, 1829 — 1886.
res, de estender artificialmente o "campo de açao" da sua La maíougrano entre-duberto (1860); Li filho d'Avignon (1886).
J. Vincent: Théodore Aubanel. La vie et 1'homme, le poete. Pa-
poesia, só prejudicaram a apreciação serena. Mistral teria ris, 1924.
encarnado o espírito da Provença medieval, com as suas li- A. H. Chastain: Théodore Aubanel. Paris, 1929.
2180 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2181

Montpellier, em 1875, ouviram-se proclamações sobre a ierente nas suas canções místicas de um espírito inquieto,
"República do Sol" e a "Raça Latina". O "campo de ação" sacerdote em luta permanente com as autoridades eclesiás-
de Mirei o: tradução francesa, pelo próprio Mistral, em 1883; ticas. Contudo, não é possível compará-lo, como já foi fei-
castelhana, por Celestino Verdaguer; italiana, por Mário to, ao grande poeta-sacerdote flamengo Gezelle, nem a Mis-
Clini; rumena, por Bonifácio Hebrat. H á duas traduções tral. E m compensação, a nova literatura catalã não acabou
em língua catalã, por Francisca Bartrina d'Ayxemís e por com Verdaguer; ao contrário, hoje, já empalecida a sua
Francisco Briz, ambas publicadas já em 1861. A "Renaixen- £ama, êle nos parece no papel glorioso do precursor de um
sa" catalã precedeu algo ao "Félibrige", e, oprimidos e Maragall, Carner, Sagarra e Lopez Pico. E a mesma sorte
ameaçados pelo poder da Castelha, os catalães saudaram coube a outro visitante da festa de Montpellier, ao rumeno
Alecsandri (•"), criador da língua poética na qual Eminescu
com entusiasmo o aliado de além da fronteira.
e Arghesi se exprimirão. Contudo, por volta de 1900, o
A "Renaixensa" ( 4B ) foi obra de alguns diletantes poé-
movimento da latinidade poética parecia terminada. Ha-
ticos, melhor intencionados do que dotados: Joaquín Ru-
via, mais tarde, alguns simpatizantes: o francês Gasquet,
bió y Ors, e Victor Balaguer, polígrafo, autor do Trovador
o português Eugênio de Castro, enfim D'Annunzio em que
âe Montserrat (1857). A eles aliou-se o grande filólogo
os motivos políticos já prevalecem, assim como na figura
Manuel Milá y Fontanals para instituírem em 1859 uma
isolada do espanhol Basterra ( 1 S ), poeta da unidade do mun-
festa periódica de poesia catalã em Barcelona, os "Jocs
do latino, postumamente promovido a "Poet Laureate" da
Florais". Nesse ambiente surgiu o mais famoso, mas não
Falange espanhola.
o maior poeta da nova literatura catalã, Verdaguer ( 4 0 ), au-
tor da grande epopeia geológico-mitológico-pré-histórica Aos parnasianos, em geral, mesmo quando residiam em
La Atlântida; de um outro poema épico, Canigó, e de nume- países tropicais, não foi tão propício o sol como aos medi-
rosas baladas históricas — parece parnasiano típico. Mas terrâneos. Continuaram a poesia exótico-descritiva, só com-
nem sempre foi assim. Os poemas narrativos só têm valor parável, na mesma época, ao carnaval de estilos da arqui-
documentário na história da Renaixensa. Verdaguer é di- tetura, enchendo-se os novos boulevards de Paris e Viena
com igrejas e paços municipais neogóticos, Universidades
neo-renascentistas, teatros neobarrocos, Parlamentos e Bol-
45) A. Rubió y Lluch: Lo Gayter dei Llobregat. Barcelona, 1902. sas com colunas dóricas. Sinal do gosto evasionista da bur-
I. Amade: Origines et premières manifestations de la renaissance guesia, comparando a sua própria época com as maiores do
littéraire en Catalogue. Paris, 1924.
passado. Os poetas parnasianos cultivaram o mesmo gosto,
46) Jacint Verdaguer, 1845 — 1902.
La Atlântida (1877); Idillis i cants mistics (1879); Cansons de mas com poucos motivos de satisfação e orgulho; nessa
Montserrat (1880); Caritat (1885); Canigó (1886) etc. é-poca da prosa, a poesia não podia deixar de ser tristemen-
Edição completa por A. Matheu y Fornells, 30 vols., Barcelona, te pessimista, o que explica, aliás, a sobrevivência da me-
1914/1919.
M. de Montoliú: Mossèn Jacint Verdaguer. (in: Estudis de litera- lancolia romântica em muitos parnasianos.
tura catalana, Barcelona, 1912).
R. D. Peres: Verdaguer y la evolución poética catalana. Barce-
lona, 1913.
R. F. Gttell: Verdaguer y su obra. San José da aCosta Rica, 1915. 47) Cf. "Romantismo de evasão", nota 105.
V. Serra i Boldu: Mossèn Jacint Verdaguer. 2. ed. Barcelona,
1932. 48) Cf. "O Equilíbrio europeu", nota 164.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2183
2182 OTTO M A M A CARPEAUX

O estudo dos parnasianos franceses menores (*•) per- tar virilmente um mundo sem Deus nem sentido; era mais
mite estabelecer algumas distinções. Glatigny ( 5 0 ), que foi profunda do que Sully Prudhomme — não difícil isso, aliás
considerado por alguns como o poeta mais genial da escola, — mas não obteve o mesmo sucesso porque evitou o senti-
apresenta o fervor romântico dentro da forma elaborada. mentalismo, escrevendo em versos duros sem melodia.
Dierx ( 6 1 ), mais uma vez um poeta exótico, patrício de Le- Esses tipos diferentes também são os do parnasianismo
conte de Lisle, era o maior "ourives do verso" e "joalheiro internacional, entre os latinos e entre as nações germânicas
da palavra", sem dar muita atenção ao sentido. Parece pre- e eslavas, onde numerosos poetas cultivaram o mesmo estilo
parar a poesia hermético-musical de Mallarmé, e até foi sem aceitar a doutrina ou então até desconhecendo escola
eleito "prince des poetes" depois da morte de Mallarmé,
e nome. Assim o dinamarquês Boedtcher ( B4 ), poeta de
como o seu sucessor. N a verdade, Dierx foi mero técnico
perfeição grega. Ou Feth ( 5 5 ), grande poeta russo, que sa-
do verso, meio post-romântico, meio post-parnasiano. O
bia compor quadros impressionistas da natureza; o seu
parnasianismo, dando-se como arte dificílima, tornou-se téc-
"1'art pour l'art" de pessimismo schopenhaueriano foi posto
nica, aprendida com facilidade pelos diletantes que conti-
nuaram parnasianos em pleno século XX, sobretudo na em ostracismo pelos utilitaristas e só ressuscitado na época
América Latina. Pelo paganismo helenista bateu-se Mé- do simbolismo. E n t r e os exóticos situa-se Gonçalves Cres-
nard ( 0 2 ) ; existem relações com a erudição religiosa de po ( 5 6 ), português nascido no Brasil, evocando em sonetos
Leconte de Lisle e Flaubert e o anticristianismo do mesmo perfeitos motivos da paisagem física e humana da sua terra
Leconte de Lisle e de Carducci. O pessimismo "filosófico" natal; em Portugal, Gonçalves Crespo iniciou a época da
aparece em Madame Ackermann ( C3 ), mulher que sabia acei- cultura do verso em vez do culto da correção gramatical,
idolatrada pelos românticos da escola de Castilho; no Brasil,
teve repercussão o seu interesse pelos motivos folclóricos.
49) A. Schaffer: The Genres of Parnassian Poetry. A Study of ths
Parnassian Minors. Baltimore, 1944.
50) Albert Glatigny, 1839 — 1873.
Vigiles Folies (1857); Les Flèches d'or (1864).
J. Reymond: Albert Glatigny. La vie, 1'homme, le poete. Les 54) Ludvig Boedtcher, 1793-1874.
origines de 1'école parnassienne. Paris, 1936. Digte (1856, 1875).
51) Léon Dierx, 1838 — 1912. A. Shumacher: Ludvig Boedtcher. Et digterliv. Kjoebenhavn,
Lèvres closes (1867); Paroles du vaincu (1871); Poésies complè- 1875.
E. Uoulet: Léon Dierx. Paris, 1925.
tes (1896). 55) Afanassi Afanassievitch Feth, 1820 — 1891.
M. L. Camus-Clavier: Le poete Léon Dierx. Paris, 1942. Fogo da noite (1883) etc.
Edição por N. N. Strachov e B. Nikolski, 3 vols., Petersburgo. 1910.
52) Louis Ménard, 1822 — 1901. V. M. J. Briussov: Perto e longe. Petersburgo, 1911. (em língua
Poèmes (1855); Revertes d'un paíen mystique (1886). russa).
Ph. Berthelot: Le dernier paien. Louis Ménard et son oeuvre. Pa- V. Fedina: Afanassi Afanassievitch Feth. Documentos pode ves-
ris, 1902. tudo. Petersburgo, 1915 (em língua russa).
H. Peyre: Louis Ménard. 2 vols. Paris, 1934.
53) Louise-Victorine Choquet, madame Ackermann, 1813-1890. 56) António Gonçalves Crespo, 1846-1883.
Premiares Poésies, Poésies philosophiques (1874). Miniaturas (1870); Noturnos (1882).
A. Citoleux: La poésie philosophique au XIXe siècle. Madame M. Vaz de Carvalho: Estudo crítico de Gonçalves Crespo. (Pró-
Ackerman. Paris, 1906. logo da 3. a edição dos Noturnos. Lisboa, 1898).
2184 OTTO MARIA CARPEAUX
HISTÓRIA DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 2185

P r e c u r s o r d o p a r n a s i a n i s m o n o s p a í s e s g e r m â n i c o s foi ao parnasianismo pela erudição literária e pelo culto da for-


o a l e m ã o R u e c k e r t ( 5 T ) , ao q u a l a c o m p o s i ç ã o d e a l g u n s d o s
ma, d e m o d o q u e a s u a m a n e i r a v a g a r o s a d e t r a b a l h o só
seus lieds p o r S c h u m a n n d e u f a m a u n i v e r s a l , i m e r e c i d a .
pode ser comparada à de F l a u b e r t . E m numerosas baladas
O seu culto da forma, aliás em versos duros, é o mesmo de
históricas, magistralmente construídas e em alguns poemas
Platen. Como este imitou a lírica persa de Goethe, forne-
cendo depois numerosas traduções livres de poemas persas, n a r r a t i v o s d e u A r a n y a o s h ú n g a r o s u m a Legende des siècles
indianos e chineses; mas não tem nada da inteligência poé- n a c i o n a l , m a i s s ó b r i a , p o r é m , do q u e a d e H u g o , s ó b r i a c o m o
tica e profundeza h u m a n a de Fitzgerald. O j n t e r ê s s e pela o calvínismo no qual A r a n y nasceu e que o aproxima de
p o e s i a o r i e n t a l a p a r e c e n o s i d í l i o s ^bíblicos d o f l a m e n g o P o l Conrad Ferdinand M e y e r ; mas a angústia religiosa do
de M o n t (r,s), poeta bucólico de formação francesa, rene- suíço falta n o realismo do h ú n g a r o , ao qual m u i t o s críti-
g a n d o d e p o i s essas o r i g e n s p a r a d e c l a r a r - s e " g e r m â n i c o " , cos c o n s i d e r a m c o m o o m a i o r p o e t a d a n a ç ã o . "Parnasiano
a p o i a n d o o n a c i o n a l i s m o a n t i f r a n c ê s e n t r e os f l a m e n g o s . 00
n a c i o n a l " t a m b é m era S n o i l s k y ( ), aristocrata sueco, r e -
D e feição n a c i o n a l t a m b é m é a o b r a d o h ú n g a r o A r a n y ( ° 9 ) ,
presentando o ' T a r t p o u r l'art" pessimista na poesia des-
ligado ao parnasianismo pelo s e n t i m e n t o melancólico de
critiva, m a s c e l e b r a n d o e m b a l a d a s o p a s s a d o h e r ó i c o d a
intelectual em país de aristocratas rudes, de rápida revolu-
ç ã o i n d u s t r i a l e b u r g u e s i a a i n d a i n c u l t a ; A r a n y está l i g a d o sua nação, e exprimindo em outras poesias u m liberalismo
sincero, até de t e n d ê n c i a s socialistas, que o conde, mais tar-
de, r e n e g o u . Fora da Inglaterra e Holanda é Snoilsky o
57) Friedrich Ruecúert. 1788-1866. m a i o r s o n e t i s t a das l í n g u a s g e r m â n i c a s . Aristocratismo e
Oestliche Rosen (1822); Liebes/ruehling (1823); Kindertotenlieder
(1834) etc. exotismo reuniram-se no conde alemão Schack ( 6 I ) , grande
Traduções: Die Makamen des Hariri (1826); Nal und Damajanti mecenas dos p i n t o r e s Boecklin e Marées, t r a d u t o r d a epo-
(1828); Schi King (1833); Die Weisheit des Brahmanen (1836/
1839); Rostem und Suhrab (1838) etc. peia n a c i o n a l do p e r s a F i r d u s i ; aos s e u s v e r s o s s o b r e v i v e r á
C. Beyer: Friedrich Rueckert. Frankfurt, 1868.
a sua história do teatro espanhol, obra que marcou época.
58) Pol de Mont (Karel Polydoor de Mont), 1857-1931.
Idyllen (1882, 1884); Op mijn Dorpken (1886); Van Jezus (1887);
Koppen en Busten (1903); Vier legenden (1904); Zomerulammen
(1922) etc.
F . Francken: Pol de Mont. Amsterdam, 1927. <0) Graf Cari Snoilsky, 1841-1903.
G. Meir: Por de Mont. Antwerpen, 1932.
Orkiãeer (1862); Italienskabilder (1865); Sonetter (1871); Svenska
59) Janos Arany, 1817 — 1882. Bilder (1886).
Toldi (1847); Bolond Istók (1850, 1873); Os ciganos de Nagyida
(1852); A noite de Toldi (1854); Baladas (1856); Baladas (1877); O Edição por R. G. Berg, 7 vols., 2.° edição, Stockholm, 1917/1918.
amor de Toldi (1879). K. Warburg: Cari Snoilsky. Stockholm, 1905.
Edição por F. Riedl, 6 vols., Budapest, 1902/1907. P. HalJstroem: Cari Snoilsky Stockholm, 1933.
L. Gyoengoesi: A vida e as obras de Janos Arany. Budapest,
1901. (Em língua húngara.) Cl) Adolf Friedrich, Graf von Schack, 1815-1894.
F . Riedl: Janos Arany. 7.B ed. Budapest, 1920. (em língua hún- Gedichte (1867); Naechte des Orients (1874); — tradução de Fir-
gara.) dusi (1815); — Geschichte der dramatischen Literatur und Kuns-
A. Schoepflin: Poetas, livros e recordações. Budapest, 1925. (Em tin Spanien (1845/1846).
língua húngara).
G. Vojnovich: A vida de Arany. c vols. Budapest, 1931/1938 (em P. Krause: Die Balladen und Oden des Grafen Schack. Breslau,
Jingua húngara). 1915.
2186 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2187

Talvez o maior de todos os parnasianos fosse o poeta poéticas completas de Dante, Ariosto, Tasso, Leopardi e
tcheco Vrchlicky ( 6 2 ), pelo menos com respeito ao tama- Carducci; e, mais, grande parte das poesias de Michelan-
nho e multiformeidade da sua Obra. E r a descendente de gelo e Parini. E traduziu Camões, Calderón e Verdaguer,
gerações de rabinos alemães, enquanto na família da mãe Byron e Shelley, Goethe e Schiller, Mickiewicz e Puchkin
havia vários padres católicos tchecos. Vrchlicky sempre se e muitos poetas orientais. Criou uma literatura universal
julgou sacerdote da arte, como o seu supremo modelo Hugo, em língua tcheca, de modo que não causa estranheza a sua
em que aprendeu a eloquência pomposa, a ênfase cósmica, fama de maior poeta da nação. Mas enfim, os críticos sim-
o exotismo multicolor. Talvez fosse a copseqúência das bolistas e realistas denunciaram o seu ecleticismo insensa-
to, o "1'art pour l'art", o exotismo, o paganismo falso. Como
suas origens indefinidas, entre as nações, a sua inquietação
tantos outros parnasianos, Vrchlicky fracassou pela falta
permanente, fugindo da praga pequeno-burguesa para a An-
de caráter poético e substância humana.
tiguidade grega, daí para a Resnascença italiana e o Ro-
cocó francês — poeta parnasiano de um carnaval de estilos Um ar mais puro, quase mediterrâneo, respira-se nas
históricos, acabando no pessimismo de Leconte de Lisle. poesias do holandês Vosmaer ( fl3 ), sacerdote tão rigoroso
Dotado de uma fertilidade que em toda a literatura uni- do helenismo que, mais tarde, combateu com força o sim-
versal só pode ser comparada com a de Lope de Vega, bolismo ao qual criara a língua poética.
Vrchlicky escreveu dez ou mais poemas épicos, mais do Na Alemanha havia um autêntico movimento parnasia-
que quarenta volumes de versos, vários dramas poéticos, e no em Munique, sede de um cenáculo cujo chefe era o então
realizou uma obra imensa de tradutor, que permite apreciar lidíssimo poeta Emanuel Geibel ( 6 4 ). Mas este, embora
as suas preferências, capacidades e limitações. Na sua An- nacionalista alemão, imitou muito a H e i n e ; seus desleixos
tologia da poesia francesa do século X I X prevalecem Hugo» métricos e a vulgaridade da sua expressão teriam inspirado
Gautier, Leconte de Lisle, Banville e Sully Prudhomme; horror a um parnasiano francês, se pudesse ler versos ale-
é o "Parnasse". E m três antologias sucessivas traduziu mães; mas se pudesse, teria encontrado na poesia de Geibel
Vrchlicky quase a obra inteira de H u g o ; e, mais, as obras. o mesmo epigonismo consciente de todos os adeptos da es-
cola. Artista do verso foi, porém, o suíço Leuthold ( 0 4 - A ),
poeta italianizado que adorava a Grécia; foi homem de gé-
62) Jaroslav Vrchlicky (pseud. de Emil Frida), 1853-1912. nio indisciplinado, que pereceu na noite da loucura. A Gré-
Espirito e Mundo (1878); Sinfonias (1878); Mitos (1879/1880); Vi- cia decadente, a bizantina, era assunto preferido e caracte-
brações (1880); Poemas épicos (1880); Hilarion (1882); Sphinx
(1883); O que a vida me deu (1883); Perspectivas (1884); Twar-
ãowski (1885); Sonetos de um solitário (1885); Música da alma
(1886); Fragmentos da Epopeia (1886/1894); Pó de ouro (1887);
Borboletas em todas as cores (1887); O herdeiro de Tântalo (1888); 63) Carel Vosmaer, 1826 — 1888.
Afrecos e gobelinos (1890); Vozes no deserto (1890); Vida e Morte Nanno (1883); Jnwijding (1888); — tradução de Homero (1883/
(1892); A minha sonata (1893); Janela na tempestade (1894); 1889).
Canções de um romeiro (1895); Bar-Kochba (1898); Deuses e ho- J. P. Boyens: Carel Vosmaer. Helmond, 1931.
mens (1899); O poema de Vineta (1906); Ilhas de coral (1908);
A árvore da vida (1908), etc., etc. 64) cf. "Ó Fim do Romantismo", nota 41.
Edição por A. Praxak, V. Tichy e outros, 72 vote. Praha, 1948/1954. 64A) Heinrich Leuthold, 1827 — 1879.
E. Albert: Jaroslav Vrchlicky. Wein, 1903. Gedichte (1878; nesta coleção o poema épico Penthesilea).
A. Jensen: Jaroslav Vrchlicky. Stockholm, 1905. Edição por G. Bohnenblust, 3 volfl., Frauenfeld, 1914.
F. Krejci: Jaroslav Vrchlickicky. Praha, 1913, (em língua tcheca.) A. W. Ernst: Heinrch Leuthold, ein Dichterportraet. 2.a ed.
J. Weingart: Jaroslav Vrchlicky. Praha, 1920. (Em língua theca.) Hamburg, 1893.
2188 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2189
oe
rístico do alemão Lingg ( ), outrora famoso, hoje ilegível
tradição pagã; Poems and Ballads inspiraram-se evidente-
pela dureza do verso. O helenismo parnasiano tem várias
mente no neopaganismo francês e em Baudelaire. Mas esse
faces. No sueco Rydberg ( C6 ), a decadência da Grécia é
furor dos sensos não é parnasiano; e no sentido rigoroso da
atribuída ao cristianismo; Rydberg era campeão do libera-
palavra não existe nenhuma obra de Swinburne que seja
lismo teológico. Na sua poesia, dura mas sincera e profun-
parnasiana. Foi um poeta de receptividade enorme, sempre
da, exprimiu pensamentos da época por vir. Foi, no en-
atenta, dotado de facilidade extraordinária de expressão
tanto, um burguês moderado, mas um grande caráter.
verbal; sabia assimilar todos os estilos, traduzindo-os para
O helenismo dionisíaco está representado^ por Swin- música verbal inglesa. Explica-se assim que Swinburne re-
burne ( 6 7 ), justamente na Inglaterra do cant vitoriano; e a presentava um caso singular, talvez único: um hugoano in-
sensualidade desenfreada do primeiro volume de Poems and glês. A influência de Hugo é sensível na obra inteira de
Ballads não podia deixar de provocar indignação no país Swinburne e particularmente na poesia política dos Songs
da rainha-viúva e dos banqueiros morais. Poesias como before Sunrise, dedicados à causa da liberdade italiana. Mas
Laus Venexis, Dolores e Noyades motivaram a denúncia isso lembra logo os casos de Byron e Landor. Swinburne
de Robert Buchanan contra a "escola da poesia carnal". O não era revolucionário de verdade, antes um aristocrata re-
poeta não pôde alegar que existe na literatura inglesa uma voltado e anarquista; e a sua revolta não era fatalmente
política — nos últimos anos da sua longa vida conf essou-se
65) Hermann Lingg, 1820-1905. partidário do imperialismo inglês — nem sempre atual.
Gedichte (1853, 1868); Die Voelkerwanderung (1866/1868); Byzan- Repetiu com virtuosidade os ataques anticristãos de Shel-
thinische Novellen (1881).
Edição de poesias escolhidas (com introdução) por E. Lissauer, ley, em que aprendera a musicalidade do verso, e achou
Muenchen, 1924. enfim os seus verdadeiros modelos naqueles anarquistas vio-
W. Knote: Lingg und seinl lyrísche Dichtung. Muenchen, 1936.
lentos e mórbidos que eram os dramaturgos elisabetiano-
66) Victor Rydberg. 1828-1895.
Singoalla (1857); Den Sidsta Atenaren (1859); Prometheus och jacobeus, aos quais dedicou os seus célebres estudos críti-
Ahasverus (1877); Dikter (1882, 1891); Vapensmeden (1891). cos, deformados pelo entusiasmo grandiloqiiente, mas mes-
Edição por K. Warburg, 14 vols., Stockholm, 1896/1900.
K. Warburg: Victor Rydberg. 2 vols. Stockholm, 1900. mo assim de grande m é r i t o ; Swinburne fêz muito para a
O. Holmberg: Victor Rydberg's Lyrik. Stockholm. 1935. compreensão de Marlowe, Webster, Tourneur, Middleton.
67) Algernon Charles Swinburne, 1837 — 1909. Interpretou-os, porém, como a todos os poetas que amava,
Poems and Ballads (1866); Songs before Sunrise (1871); Poems
and Ballads II (1878); Tristram of Lyonesse (1882); — Atalanta à sua maneira, como se tivessem sido verbalistas. Não foi
in Calydon (1865); Chastelard (1865); Bothwell (1874); Erechtheus outra coisa o sensualismo dos primeiros poemas e o baude-
(1876); Mary Stuart (1881); etc. e t c ; — WiUiam Blake (1867);
A Study of Ben Jonson (1889); The Age of Shakespeare (1908) etc. lairianismo de outros: libertinismo puramente estético,
Edição: Bonchurch Edition, 20 vols., London, 1925/1927. sensualidade cerebral, satanismo teórico. T u d o em Swin-
E. Gosse: The Life of Algernon Charles Swinburne. London, 1917.
T. E. Welby: A Study of Swinburne. London, 1926. burne é inspiração livresca, repetição de sentimentos e mo-
H. Nicolson: Swinburne. New York, 1926. tivos alheios; o que lhe pertence só é a fabulosa técnica
H. Hare: Swinburne. A Biographical Approach. London, 1949.
S. C. Chew: Swinburne. Boston, 1929. verbal, superior à do próprio Tennyson. Swinburne é cer-
W. R. Rutland: Swinburne, a Nineteenth Century Hellene. Ox- tamente um dos maiores músicos do verso inglês — basta
ford, 1931.
G. Lafourcade: Swinburne, a Literary Biography. London, 1932. ouvir o começo de um dos coros da tragédia lírica Atalanta
C. K. Hyder: Swinburne's Literary Career and Fame. Durham in Calydon:
N. O., 1933.
2190 OTTO MARIA CAnPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2191

"Before the beginning of years da morte de Baudelaire; e a notícia fora falsa, o poeta ainda
There came to the making of man viveu. Tudo em Swinburne parece falso, menos a melodia
Time, with a gift of tears; pela qual êle se tornou "o seu próprio eco", música sem sen-
Grief, with a glass that ran; tido, mas também sem hermetismo, assim como aquele coro
Pleasure, with pain for leaven; em que a crítica moderna só vê dannunzianismo decadente
Summer, with f lowers that f ell; e vazio. Swinburne, admiradíssimo durante a segunda
Remembrance fallen from heaven, #
metade da sua vida, está hoje em descrédito absoluto, e não
And madness risen from hell; parece perto a reabilitação. Hugonianismo decadente, pa-
Strenght without hands to smite; ganismo cerebral, "1'art pour l'art", técnica poética sem
Love that endures for a breath; atenção ao sentido, disfarce carnavalesco em mil fantasias,
Night, the shadow of light, eis mais uma definição do parnasianismo do qual Swinr
And life, the shadow of death." burne foi, quanto ao estilo, o virtuoso máximo.
Cara também era aos parnasianos a Grécia "ática", a
Eis a famosa "melodia permanente", conforme a expressão do sorriso espirituoso e céptico; Anatole France, em que
de Wagner, ao qual Swinburne dedicava culto fervoroso. esse "aticismo" chegará ao cume, fora um dos editores do
Um crítico sagaz observou que nesse coro se podem inver- "Parnasse Contemporain". Como uma antecipação provin-
ter à vontade sujeitos e predicados sem prejudicar o sen- ciana sua é Juan Valera (° 8 ), o elegante diplomata espa-
tido; mas também sem prejudicar a música. O wagnerianis- nhol, mestre do estilo sonoro, tradutor de Dafnis y Cloê,
mo é, aliás, entre ingleses e franceses, sinal característico o que lembra aos franceses o caso de Courier e a outros
dos simbolistas; e a musicalidade de Swinburne não é o críticos o paganismo falso de Ménard. Valera era um Don
único elemento simbolista da sua poesia. Títulos como Bal- Juan de salão, um espírito frívolo — Azorin caracterizou-o
lad of Dreamland e A Forsaken Garden são reveladores; e assim, definitivamente. A frivolidade revela-se na maneira
não falta a grave melancolia do decadentismo, naqueles co- como os seus romances enfeitam e falsificam os assuntos:
ros que desmentem a alegria pagã das explosões eróticas cm Pepita Jiménez, o problema do celibato é colocado no
da mocidade. Pode-se falar em arrependimento baudelai- ambiente do "costumbrismo"; em Las ilusiones dei doctor
riano? À morte de Baudelaire dedicou Swinburne o mais Faustino, o pessimismo decadente dos intelectuais pós-ro-
belo dos seus poemas, Ave Atque Vale: mânticos. Às vezes, esses romances, que têm valor literá-

"There lies not any troublous thing before, 68) Juan Valera, 1824 — 1905.
Nor sight nor sound to war against thee more, Pepita Jiménez (1874); Las ilusiones dei doctor Faustino (1874/
1875); Asclepigenia (1878); tradução de Dafnis y Cloè (1880); Jua-
For whom ali winds are quiet as the sun, nita la Larga (1895); Génio y Figura (1897); — Cor/as america-
nas (1889/1890).
Ali waters as the shore." M. Azaria: Prólogo da edição de Pepita Jiménez (Clássicos Cas-
tellanos, vol. LXXX, Madrid. 1927).
J. A. Balseiro: Don Juan Valera, (in: Novelistas espanoles con-
Mas a beleza deste poema não é baudelairiana; é "emotion temporâneos. Nèw York, 1933.)
recollected in tranquillity", que passou logo. Fato simbó- E. Fishtine: Don Juan Valera, the Critic. Bryn Mawr, Pe., 1933.
Alb. Jiménez: Valera y la generación de 1868. Oxford, 1956.
lico: Ave Atque Vale foi escrito quando chegou a notícia C. Bravo Villasante: Don Juan Valera. Barcelona, 1959.
2 1 9 2
OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓBIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2193

rio e sobretudo estilístico parecem de um Flaubert bem político, lutas contínuas entre as frações da "aristocracia
humorado- Valera é só estilista, se bem dos mais finos; e crioula" pelo lugar modesto que o capitalismo estrangeiro
isso explica as suas simpatias para com os menores vestígios lhes concedeu, situação perigosa dos intelectuais, que se es-
do parnasianismo, onde os pôde descobrir. Assim conse- gotaram em gestos revolucionários e versos hugonianos. O
guiu o maior feito da sua carreira literária: nas Cartas Chile porém politicamente estabilizado, foi durante o século
americanas, dedicadas aos poetas da América Latina, des- X I X um deserto literário sem poesia. Só no fim do século
cobriu versos parnasianos de um jovem poeta nicaraguense, mudou a situação, com o estabelecimento de monopólios
Completamente desconhecido; e predisse com clarividência ingleses e norte-americanos. A política tornou-se mais
o grande futuro de Ruben Darío. calma. Os intelectuais conseguiram empregos na alta admi-
Fato curioso: Valera não encontrou outros parnasianos nistração e diplomacia, a condição de rentiers. Então, ca-
na Colômbia, no Peru, na Argentina. Os grandes parna- pazes de gozar da vida, renunciaram às aspirações revolu-
sianos hispano-americanos surgiram muito mais tarde, liga- cionárias; começaram a lamentar a incultura do ambiente,
dos aos simbolistas do "modernismo", enquanto ao mesmo a sonhar das belezas de civilizações europeias, antigas, exó-
tempo a poesia brasileira já estava dominada pelo "Parnas- ticas. Chegara a hora do parnasianismo hispano-americano.
se". Nas repúblicas espanholas havia quase só hugonianos, No Brasil, essa hora chegou 25 anos antes, devido à estabili-
por volta de 1890, com alguns restos do romantismo espa- dade política da monarquia; e o parnasianismo brasileiro
nhol em plena decomposição; cantou-lhe a canção fúnebre, conquistou uma vitória tão completa que sobreviveu de
irónica, o espírito heiniano do peruano Ricardo Palma ( 6 9 ), duas gerações os movimentos análogos em outra parte.
parente literário de Valera, subversivo disfarçado de tradi- O parnasianismo brasileiro corresponde menos do
cionalista, esboçando nas famosas Tradiciones peruanas um que qualquer outro ao programa do partido. Aí não era
panorama encantador, colorido e ligeiramente irónico, da preciso sonhar de palmeiras; as palmeiras estavam presen-
cidade de Lima dos tempos coloniais; um parnasiano às tes, e a sensibilidade tropical venceu à "paix impassible
avessas. tíes morts". Os mais originais entre os parnasianos brasi-
O atraso do parnasianismo na América espanhola é fato leiros são os que dedicam sua atenção principalmente à Na-
de importância sociológica. A falta de independência eco- tureza. Assim o poeta descritivo e, em certas horas, filosó-
fico Alberto de Oliveira ( 7 0 ), cuja longa vida é correspon-
nómica é um fato comum das repúblicas hispano-americanas
sável pela sobrevivência excepcional do parnasianismo no
e do Brasil no século XIX. Na Colômbia, Venezuela, Mé-
Brasil; e Vicente de Carvalho ( 70 " A ), grande poeta do mar,
xico, Peru significava isso a impossibilidade do equilíbrio
em cuja arte se notam elementos arcaizantes e outros, sirn-

60) Ricardo Palma, 1833 — 1912. 70) Alberto de Oliveira, 1859-1937.


Tradiciones Peruanas (1872/1910). Poesias completas (1900); Poesias, 2.ft série (1912); Poesias, 3.a
Edição oficial do Governo de Peru, 6 vols., Madrid, 1924. (2.» ed., série (1913).
1944/1946.) Phocion Serpa: Alberto de Oliveira. Rio de Janeiro, 1958.
L. A. Sanchez: Don Ricardo Palma y Lima. Lima, 1927.
A. Palma: Ricardo Palma. Buenos Aires, 1933. 70A) Vicente de Carvalho, 1866-1924.
G. Feliú Cruz: En torno de Ricardo Palma. Santiago, 1933. Poemas e Canções (1908).
V. Garcia Calderón: Ricardo Palma. Paris, 1938. M. da C. V. de Carvalho e A. V. de Carvalho: Vicente de Car-
valho. Rio de Janeiro, 1943.
2194 OTTO M A R I A CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2195

bolistas. Mas o grande nome do "Parnasse" brasileiro é vidas religiosas — um espanhol, escrevendo um poema nar-
Olavo Bilac ( 7 0 - B ), joalheiro do verso e verbalista exube- rativo sobre Lutero não será caso frequente — e das dia-
rante, burilando as expressões da sua veia erótica indisci- tribes contra a corrupção moral, poeta do heroísmo cívico;
plinada conforme as regras da ourivesaria gautieriana e verbalista espantoso, rimador incansável, mas sempre sin-
acabando na melancolia melodiosa do volume Tarde. A al- cero, honesto e as mais das vezes triste. Parece-se muito
guns sonetos belos de Bilac sobrevivem e sobreviverão. com êle, no outro pólo da Europa, o polonês Asnyk ( 7 4 ),
"Tarde" sempre foi o leitmotiv da obra do melancólico Rai- que já foi definido como mistura de Slowacki e Heine, com-
mundo Corrêa (71,11) que se destaca pela honradez artística parações impróprias, consequência de que não é usual de
e pelo pessimismo austero; mas é só reflexo pálido de me- falar em parnasianismo entre os eslavos.
lancolias estrangeiras. Parecido com êle — a observação é
Tampouco é usual definir como parnasiano o grande
de Manuel Bandeira — foi o mexicano Othón ( 7 2 ), poeta
poeta português Antero de Quental ( 7 t 5 ); e é preciso admi-
bucólico e triste, grande sonetista, quase o único parnasiano
tir que a sua personalidade não permite aquela definição;
hispano-americano sem o menor vestígio de influência sim-
mas quanto à obra, haverá poucas dúvidas. Conforme o tes-
bolista. Contra esta def endeu-se o parnasianismo brasileiro
temunho de todos os contemporâneos, Quental era um aan-
com tanto êxito que conseguiu esmagar os grandes poetas
simbolistas Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, per- t o ; um homem que se sacrificou, às vezes de maneira dom-
petuando-se o culto das "chaves de ouro" até a segunda dé-
cada do século XX.
74) Adam Asnyk, 1838 — 1897.
A feição melancólica e "filosófica" do parnasianismo Poesias (1869, 1887, 1894); Kiestut (1878).
J. Tretiak: Adam Asnyk como representante de sua época. Kra-
encontra-se no espanhol Nunez de Arce ( 7 3 ), poeta das dú- ków, 1922 (em língua polonesa).
75) Antero de Quental, 1842 — 1892.
70B) Olavo Bilac, 1865-1918. Odes modernas (1865); Primaverasa românticas (1871); Sonetos
Poesias (1888, 1902); Tarde (1919). (1881); Sonetos completos (1886; 2. ed., 1890). — Causas da de-
Aíí. de Carvalha: Bilac. Rio de Janeiro, 1942. cadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos (1871)
E. Pontes: A viâa exuberante de Olavo Bilac. 2 vols., Rio de Ja- etc.
neiro, 1944. Edição dos sonetos completos e poemas escolhidos por M. Ban-
deira, Rio de Janeiro, 1942.
71) Raimundo Correia, 1860 — 1911. Antero de Quental. In Memorian. Porto, 1896.
Versos e Versões (1887); Aleluia (1891); Poesias (1898). Fid. de Figueiredo: Antero de Quental, a sua psicologia, a sua fi-
Edição por Múcio Leão, 2 vols. São Paulo, 1948. losofia, a sua arte. Lisboa, 1909.
W. Ribeiro do Vai: Vida e obra de Raimundo Correia. Rio de Joaqu. de Carvalho: A evolução espiritup.1 de Antero. Lisboa, 1929.
Janeiro, 1960. SanfAna Dionísio: Antero: algumas notas sobre o seu drama e a
72) Manuel José Othón, 1859-1906. sua cultura. Lisboa, 1934.
Poemas rústicos (1902); Himno de los bosques (1908). Ant. Sérgio: Os dois Anteros; Sobre o socialismo de Antero, (in
Ali. Reyes: Los poemas rústicos de Manuel José Othón. (in: Con- Ensaios, vol. V. Lisboa, 1936).
ferencias dei Centenário. México, 1910). A. J. da Costa Pimpão: Antero, o Livro dos Sonetos. Coimbra,
1942.
73) Gaspar Nunez de Arce, 1834 — 1905. Rebelo de Betencourt: O verdadeiro Antero. Lisboa, 1942.
Gritos de combate (1875); Vision de Fray Martin (1880). Ant. Ramos de Almeida: Antero de Quental, infância e juventude.
I. dei Castillo y Soriano: Nuúez de Arce. 2. a ed. Madrid, 1907. Porto, 1943.
M. Menéndez y Pelayo: Estúdios de crítica literária, vol. I, 3. a ed., Ant. Ramos de Almeida: Antero de Quental, decadência e morte.
Madrid, 1915. Porto, 1944.
J. Romo Arregui: Vida, poesia y estilo de Gaspar Nunez de Arce. J. Br. Carreiro: Antero de Quental, subsídios para a sua biogra-
Madrid, 1946. fia. 2 vols., Lisboa, 1948.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2197
2196 OTTO M A R I A CARPEAUX
Esse poeta entrou para o movimento menos parnasiano
quixotesca, pelos seus ideais. E esse idealismo tinha pro- que se possa imaginar: a revolução intelectual dos estudan-
fundidade filosófica, sob a influência de leituras alemãs, tes de Coimbra contra o tradicionalismo romântico, polí-
que não deixaram, aliás, muitos vestígios na sua obra poé- tico e religioso. Visto de outro lado, o movimento de Coim-
tica. Como outros grandes idealistas era Quental um auto- bra apresenta aspectos parecidos com a "Renaixensa" catalã:
didata, homem de leituras múltiplas e desordenadas; de He- tentativa de renovação da vida nacional pela literatura. A
gel e Mommsen, Heine e Michelet, Proudhon e tantos outros participação de Antero à "Escola de Coimbra" não ajuda
compôs uma fisolofia sui generis, intensamente schope- para compreender-lhe o sentido da poesia; a sua coleção de
nhaueriana, mistura de socialismo romântico e budismo in- sonetos, já definida como "diário poético de uma alma au-
diano, em oposição ao catolicismo tradicional da península. gustiniana", não tem nada com isso, pertence a uma outra
Deste modo chegou Quental ao anticlericalismo apaixonado fase: não ao santo revolucionário Quental, mas ao santo
das suas poucas, mas impressionantes obras em prosa, expli- suicida Quental. Mas a subqualidade neolatina, quer dizer,
cando pela influência nefasta da Igreja a decadência ibéri- parnasiana, daquele movimento, do qual alguns chefes aca-
ca. Havia, porém, no liberalismo e democratismo de Quen- barão como tradicionalistas, ajuda a reconhecer a qualidade
tal uma forte veia religiosa, até mística, profundamente an- parnasiana da poesia de Quental. As comparações com Leo-
gustiado como êle estava pelos sofrimentos dos pobres e pardi não acertam bem, antes a com Vigny, em cuja forma
humildes. E assim, o santo tornou-se socialista militante, ciãssico-romântica se anunciara o parnasianismo e cujas
membro da Primeira Internacional. Logo é preciso obser- Destinées se publicaram postumamente em pleno parnasia-
var que a Primeira Internacional não era puramente mar- nismo. Daí o pessimismo algo vago de Quental — "A ilu-
xista. Ao contrário, a Associação malogrou pela resistên- são e vazio universais" — daí a nobreza da expressão e a
cia interna contra Marx, pelas intrigas dos bakunistas e falta de colorido, daí a monotonia do pensamento e do vo-
proudhonistas; e Quental, longe do marxismo científico, cabulário. Quental é um grande sonetista; mas Fidelino de
também era anarquista-comunista de motivos idealistas: um Figueiredo tem razão, considerando como o maior dos seus
poemas o Hino da Manhã, maldição à luz enganadora:
socialista religioso. As suas angústias estavam em relação
nítida como os acessos de pessimismo desesperado — " . . . a
minha alma já morreu" — e abulia patológica, motivo e ex- "Símbolo da Ilusão que do infinito
pressão, ao mesmo tempo, da incoerência entre niilismo Fêz surgir o Universo, já marcado
Para a dor, para o mal, para o pecado,
budista e idealismo revolucionário. Essas condições expli-
Símbolo da existência, sê maldito!"
cam o malogro do santo como socialista militante; o mís-
tico falhou na revolução social. É verdade que aquele pes- Livre da forma rígida, Quental é maior; tanto maior quan-
simismo só se manifestou periodicamente, ao lado de outras to mais se aproxima da prosa. Talvez fosse maior prosador
fases, eufóricas, de uma ciclotimia maníaco-depressiva, que do que poeta. E assim estaria certo. O parnasianismo, poe-
levou o poeta ao suicídio. Mas o suicídio só é o resultado sia duma época da prosa, é essencialmente prosaico; da for-
definitivo da vida de Quental; sua importância duradoura ma poética, que o aperta como uma camisa de força, provém
reside nas expressões daquele pessimismo transitório: é a todas as suas falsidades. O maior dos parnasianos é mesmo
sua obra poética. um prosador: Renah.
2198 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2199

Deste modo, seria inconveniente censurar a "esterili- mação da sua vida pequeno-burguesa em boémia desenfrea-
dade" do outro grande céptico da época, Amiel ( 7 t t ), porque da, pela influência de Rimbaud. Flaubert e Baudelaire
não chegou a exprimir-se em poesia. Não teríamos perdido também passaram pela "éducation sentimentale" da Boémia,
muito com uma quantidade de sonetos e poemas "científi- cuja importância histórica como fermento do romantismo
cos" que Amiel não escreveu. O seu meio genuíno de ex- sobrevivente é muito maior do que o valor atual das suas
pressão era a prosa do seu diário. O "caso Amiel'* existe só expressões.
na psicologia: ali é o lugar de definições como o "Hamlet
A boémia podia agir contra a poesia burguesa dos par-
protestante" de Bourget, o "infeliz por falta de deveres"
nasianos porque era de origem antiburguesa. É a forma
de Brunetière, o "artista sem a r t e " de Hofmannsthal, o
francesa da mesma resistência dos intelectuais que gerara
"tímido" de Maranon. O cepticismo anticalvinista de Amiel
na Alemanha de 1800 o "épater le bourgeois" de Friedrich
é parnasiano pela inibição simultânea, consequência de an-
Schlegel em Lucinde e a vagabundagem de Clemens Bren-
gústias menos pascalianas do que burguesas. A originali-
tano. O motivo imediato era o estabelecimento da monar-
dade de Amiel não está na sua incapacidade de expressão,
quia burguesa em julho de 1830; em 1833 aparece Les Jeu-
e sim no contrário: n a sua capacidade de auto-observação
ne-France, de Gautier, romance da vida livre e licenciosa
e anotação dos resultados. Amiel é o mais consciente dos
dos artistas românticos com as moças dos subúrbios de
parnasianos; por isso resistiu à tentação de fazer poesia
Paris. E m 1835, Vigny ( T7 ) deu ao Théâtre Français seu
inútil, assim como Constant, atacado do "mal du siècle",
Chatterton, peça de valor dramático reduzido, mas de im-
não fêz poesia romântica e sim um romance psicológico.
portância histórica muito grande: o poeta é apresentado,
A diferença entre diário e romance, nos dois casos, está na
nessa tragédia, como fatalmente incompreendido pelos "fi-
dose de romantismo: em Constant havia muito pré-roman-
listeus" burgueses, de modo que "épater le bourgeois" se-
tismo o que lhe permitiu a obra de imaginação; em Amiel
ria a sua reação natural. Chatterton criou, para muitos de-
não havia nenhum pós-romantismo, o que inibiu a deforma-
cénios e em cetros círculos até hoje, a imagem típica do
ção imaginativa dos movimentos psicológicos observados.
"poeta". U m Aloysius Bertrand viveu essa "boémia" na
Este último critério pode prestar serviços para deter- realidade; e Murger ( 78 ) escreveu o romance que a tornou
minar as possibilidades de saída do parnasianismo. Quatro popularíssima. Existem duas espécies de boémia: a ver-
poetas franceses tornaram-se grandes "à condition d'en sor- dadeira e a falsa. A boémia autêntica é uma desgraça: a
t i r " : Baudelaire, Mallarmé, Verlaine e Flaubert. Em Mal- miséria dos artistas, para cuja profissão inútil não há lugar
larmé, as causas determinantes eram influências românticas na hierarquia utilitarista das profissões. Mas também exis-
do estrangeiro: a poesia inglesa e o wagnerismo alemão. te a falsa boémia de artistas pobres mas felizes na vida sem
No caso de Verlaine, agiu um motivo pessoal: a transfor- ocupações "sérias" e de amor livre. Na realidade, a falsa

76) Frédéric Amiel, 1821-1881. 77) Cf. "P-omantismos de oposição", nota 14.
Fragments d'un Journal intime (ed. por E. Schérer, 1882/1887). 78) Henri Murger, 1822 — 1861.
Edição por L. Bopp, Paris, 1939/1948. Scènes de la vie de bohême (1851).
A. Thibaudet: Amiel on la pari du rêve. Paris, 1929. Q. Montorgueil: Henri Murger, romancier de la Bohême. Paris,
L. Bopp: Frédéric Amiel. Essais sur se pensée. Paris, 1931. 1929.
2200 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2201
boémia só existe entre artistas-diletantes ineptos, vivendo
Zola, lembrando-se também a influência que exerceu fora
das mesadas do p a i ; ou então é um espetáculo arranjado
da França: sobre Hardy, Turgeniev e Fontane, Eça de
por artistas malogrados e expertos para assustar e secreta-
Queirós e Fogazzaro. Mas não por isso é que Flaubert está
mente divertir o burguês que paga ingresso. Antigas tradu-
geralmente admirado. O romancista Flaubert perdeu nos
ções das Scènes de la vie de bohême para o inglês e alemão
últimos decénios, adversos ao seu ideal de "1'art pour l'art,
começam com prefácios apologéticos, pedindo desculpa pela
muito do seu prestígio; uma obra tão grande como Uédu-
leviandade dos heróis e a imoralidade das heroínas do ro-
cation sentimentale só continua ser lida e estudada pelos
mance. Mas nota-se o prazer clandestino do leitor burguês
highbrows; e Madame Bovary, ao contrário, está circulan-
cm saber de coisas que as convenções morais da sua classe
do em edições baratas, tido como romance erótico com des-
lhe proibiram; também no sentimentalismo da morte de
fecho policial. A glória de Flaubert parece residir no seu
Mimi, o burguês chorou a triste impossibilidade de realizar
estilo; mas nosso apreço pelas artes estilísticas diminuíram
os seus "sonhos de desejo". Nesse sentido, a falsidade da
muito. Será o estilo a suficiente razão de ser de uma obra
popularíssima ópera La Bohème de Puccini acompanha con-
de arte. Há quem declare: "Os romances de Flaubert são
dignamente a falsidade do romance de Murger. Neste, po-
obras admiráveis; mas não nos importam, não nos ajudam
rém, é de importância capital o pós-escrito, em que os boé-
vitalmente".
mios se metem na política de 1848, para acabarem, eles mes-
mos, como "filisteus" tristes. Com isso, Murger dá o pri- Flaubert era o mais vagaroso dos escritores: 5 anos,
meiro esboço de uma "cura do romantismo pela realidade", 7 anos e mais para escrever um romance de tamanho redu-
de uma "éducation sentimentale". Seis anos depois publi- zido, isso inspira inveja aos escritores profissionais, insatis-
cou-se Madame Bovary. feitos com o trabalho imposto pelo público; e inspira res-
peito ao próprio público, encontrando um escritor anti-
Todo mundo admite o papel importantíssimo de Flau-
boêmio, consciencioso e sério como um comerciante da pra-
bert ( 70 ) na história do romance moderno, entre Balzac e
ça. É literatura tão séria, tão bem documentada como uma
79) Gustave Flaubert, 1821 — 1880. obra da ciência, realizando o ideal parnasiano da poesia

t dame Bovary (1857); Solambò (1862); Ueãucation sentimen-


e (1869); La tentation de saint Antoine (1874); Trois cantes
(1877); Bouvard et Pécuchet (1881); Corresvondance générale
científica. Com efeito, o trabalho preparatório de Flaubert
consistiu em uma documentação muito mais exata do que
(1887/1893). os estudos meio fantásticos de Balzac de "fisiologia da so-
Edição por E. Maynial, 6 vols., Paris, 1936. ciedade". Flaubert fêz, como um geógrafo ou sociólogo
Edição de Madane Bovary por G. Leleu, 2 vols., Paris, 1936.
E. Faguet: Flaubert. Paris, 1899. moderno, "field work", observações sistemáticas no "cam-
J. de Gautier: Le génie de Flaubert. Paris, 1913. po", no teatro físico e psicológico dos acontecimentos. Atrás
E. Seillière: Le romantisme des realistes; Gustave Flaubert. Pa-
ris, 1914. ,de Madame Bovary, os flaubertianos podiam descobrir os
A. Thibaudet: Gustave Flaubert. Paris, 1922. • modelos reais: a cidade normanda de Ry, a adúltera Del-
L. Bertrand: Gustave Falabert. Paris, 1923.
L. de Sidaner: Gustave Flaubert, son oeuvre. Paris, 1930. phine Couturier que se tornará Emma Bovary, o livre-pen-
D. L. Demorest: Uexpression figurée et symbolique dons Voeuvre «ador Jouenne que aparecerá como M. Homais, e assim em
de Gustave Flaubert. Paris, 1931.
W. Digeon: Le dernier visage de Flaubert. Paris, 1946. diante; estudos fecentes destruíram todas essas hipóteses:
F. Steegmuller: Flaubert and Madame Bovary. 2.» ed. London, o modelo de Emma Bovary teria sido madame Louise Pra-
1947.
Ph. Spencer: Flaubert, a Biography. New York, 1953. dler, a mulher do conhecido escultor, e a tragédia teria
2202 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2205

acontecido em Paris. Essa descoberta acrescenta malf um jetivo. Evidentemente, não foi por incapacidade de elimi-
motivo para a devida admiração por Flaubert: pois só no ná-lo que Flaubert deixou subsistir esse desequilíbrio entre
ambiente provinciano, para o qual o romancista transpôs o» intenção e realização. A ironia impôs-se ao romancista,
acontecimentos reais, teria sido possível a tragédia de céptico e pessimista porque passara pelas decepções ideoló-
Emma Bovary. A lentidão do processo da transfiguração gicas de 1848 e 1852.
artística em Flaubert não teria sido, aliás, compatível com A obra-prima de dolorosa ironia flaubertiana é Un
o espírito dramático que informa a obra de Balzac. Flau- coeur simple. A história da velha criada, embalada em so-
bert tem a cabeça épica, sabe dar aos assuntos certa perma- nhos de um filho perdido em mares longínquos, é narrada,
nência supra-histórica e supra-atual que os romances de através da frieza realista do tom, com certa crueldade sá-
Balzac, historiador de sua sociedade, não possuem Madame dica, martirizando o pobre personagem; e o fim, quando-
Bovary e Un coeur simple, mesmo se localizados exatamen- o papagaio, única lembrança do filho, aparece à agonizante,
te em casas parisienses ou lugares da Normandia de 1850, em visão, como a pomba do Espírito-Santo, é de uma ironia
passam-se em todos os tempos e países da história e do desumana e sôbre-humana, iluminando em visão rápida o
mundo. A distância entre as pessoas e fatos reais que for- "engano general" da humanidade. É o mesmo engano acer-
neceram o assunto ao romancista, e os personagens e acon- ca da verdadeira natureza das coisas, da realidade, que pro-
tecimentos do plano novelístíco é incomensurável. Essa duz a ruína de Emma Bovary, enganada pela falsidade das
"distância épica" é resultado do estilo de Flaubert. O seu leituras românticas, assim como a França fora enganada
esforço ingente de inúmeras noites de insónia desesperada pela ideologia romântica, em 1848. O mesmo engano, em
não se reduz àquilo que os amigos e os biógrafos estranha- La tentation de saint Antoine, é o da humanidade inteira,
vam e admiravam: à eliminação radical dos adjetivos e sua enganada pelos deuses, as fantasias religiosas que ela mes-
substituição por substantivos que não precisam desse acom- ma criou. Essa obra máxima de Flaubert, nunca bastante
panhamento — "não existem sinónimos", disse Flaubert — apreciada, simboliza o bovarysmo do género humano. A
nem à colocação sábia das "coupes" das frases. Procurava filosofia de Flaubert aproxima-se do pan-tragismo do seu
a exatidão máxima de correspondência entre objetos e pa- contemporâneo Hebbel; mas Flaubert, poeta muito maior,
lavras, movimentos e frases, para conseguir a representa- è menos lógico. A tragicidade do mundo não reside, na
ção objetiva da realidade. O exemplo mais famoso é a des- obra de Flaubert, em conflitos de sentido histórico, entre o
crição da festa agricultural em Madame Bovary, combina- indivíduo e a lei, mas na cegueira do homem imbecil, toman-
ção sinfónica de discursos oficiais e conversa erótica entre do a sério a lei imbecil que êle mesmo criou; é cegueira
Emma e Rodolphe e o ruído dos bois e o vento nas árvores. como a dos heróis da tragédia grega, mas sem heroísmo.
Mas nessa composição polifônica também se revela a ironia O Universo está definido, tragicamente, pela "bêtise hu-
amarga do romancista, dirigida contra os seus próprios per- aine".
sonagens. M. Homais, imagem tão fiel do livre-pensador
provinciano, é ao mesmo tempo uma caricatura grandiosa; O intuito de Flaubert era a representação artística, a
e ele é, no fim do romance, o vencedor. Os imbecis são os tilização da "bêtise humaine", para eliminá-la desta ma-
senhores deste mundo. Ironia e pessimismo de Flaubert ira. A Êducation sentimentaJe significa a liquidação do
estão em grave contradição com o seu ideal de realismo ob- antismo pela estilização parnasiana. L'êducation senti-
tâle é a obra mais ambiciosa de Flaubert, mas não a
HISTÓBIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2205
OTTO M A R I A CARPEAUX
2204 tico sem cair de novo no romantismo sentimental? Flau-
mais perfeita. O fundo, o panorama da época na qual o ro- bert estava protegido contra esse perigo pela sua qualidade
mantismo foi derrotado, está realizado; o primeiro plano de burguês. Mas é preciso definir o termo. Um dos muitos
quase desaparece, pela mediocridade mesquinha de Frédé- contemporâneos literários aos quais Flaubert dedicava o
ric Moreau e madame Arnoux, resultado desconcertante no ódio do desprezo, era A u g i e r ; este também protestava con-
qual colaborou o pudor de Flaubert perante o problema da tra o romantismo — será interessante comparar Les pauvrcs
exibição autobiográfica. Uéducation sentimentale é um lionnes e Madame Bovary — e também era burguês, mas
poderoso romance psicológico, o mais comovente que foi de uma outra espécie: burguês parisiense, do alto comér-
escrito depois de Stendhal; mas não tem a perspectiva de cio honrado, por assim dizer, mas contudo da parte do ca-
uma visão histórica de sua época, do romantismo desiludi- pital móvel. Flaubert era burguês provinciano; mais im-
d o ; pois Flaubert continuava, apesar de tudo, preso naquela portante, porém, do que a antítese geográfica é a económica,
ilusão. É opinião geralmente admitida que o realista Flau- a situação de rentier, vivendo de rendimentos sem neces-
bert continuou no fundo romântico. O seu ideal do escritor sidade de fazer negócios. Esta situação, de rentiers ou en-
é o "vate", o visionário cósmico de H u g o : a humanidade tão de funcionários públicos com vencimentos e futuro ga-
inteira é imbecil; só o poeta vê as coisas como são realmen- rantidos, é a condição económica da arte parnasiana e tam-
te, só êle é capaz de apresentá-las com o realismo da verda^ bém da arte de Flaubert, modelando e remodelando os seus
de, pela ironia objetiva da sua arte estilística. Daí o estilo romances durante cinco, sete e dez anos, sem necessidade
tem função dupla: a função analítica do desmascaramen- urgente de publicá-los. Daí o parnasianismo de Flaubert,
to e a função ativa da "éducation". A Êducation sentimen- tão manifesto nas frases ciseladas da exótica Herodias; no
tale dá testemunho da impossibilidade de reunir essas duas panorama da história das religiões, na Tentation de Saint
funções. Balzac, narrador sem preocupações estilísticas, Antoine; na poesia arqueológica de Salambô. Flaubert rea-
profetizara a vitória da burguesia; nos romances de Flau- lizou o seu ideal de romance cientificamente documentado,
bert, os burgueses balzaquianos estão fracassando. Conti- realizando o ideal de "poesia científica" do parnasianismo,
nuou o desprezo romântico do mundo, quer dizer, do mundo mas experimentando também a desgraça da doutrina: Sa-
lambô é um romance arqueológico sem sentido histórico,
burguês. um romance sem sentido humano. " C é t a i t à M e g a r a . . . " ,
Daí d mania de estilista de Flaubert, as suas lutas ín- eis a frase magnificamente musical com que a obra começa;
timas, às vezes durante uma noite inteira em torno de um mas que nos importa o que aconteceu em Megara? E quem
único adjetivo, o trabalho de semanas numa única página. sabe se aconteceu realmente assim em Megara? O problema
A ilusão romântica estava destruída; uma forma artística do romance histórico, colocado nos devidos termos, pela pri-
como que eterna devia fixar a renúncia à ilusão. Flaubert meira vez, por Manzoni, foi resolvido por Flaubert, e em
acreditava nesse poder da arte com o fervor de um místico; Kentido negativo. A tentativa da reconstituição do passedo,
e essa fé na onipotência da arte é tipicamente romântica em Salambô, foi desmentida pela impossibilidade de verifi-
Mais uma vez, revela-se o romantismo secreto, clandestino, car exatamente o que "aconteceu em Megara". Acontece,
como porta para sair do prosaísmo parnasiano. porém, que La tentation de Saint Antoine também é um r
O elemento romântico no parnasianismo é justamente o •nce histórico, o de todas as religiões; que L'édusai:
"*Tart pour 1'art", que era o instrumento de trabalho de
Plaubert. Mas como seria possível esse romantismo estilís-
2206 OTTO M A R I A CARPKAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2207
sentimentale também é um romance histórico, o da França de Fiaubert, são, conforme a expressão feliz do crítico ame-
romântica e burguesa; que Madame Bovary também é um ricano Trilling, os dois santos mártires da literatura. —
romance histórico, o da província francesa sob o Segundo Fiaubert ainda pode "ajudar-nos."
Império. Enquanto não foram concebidos como romances E já "ajudou" muito. Pois "Madame Bovary" é a "ma-
históricos, tornaram-se tais, pelo génio épico de Fiaubert. ravilha do mundo" entre todos os romances. É o primeiro
E m horas lúcidas, Fiaubert sentiu toda a sua literatura romance rigorosamente construído como um poema. A re-
como falida. O mundo pertence à "betise humáine"; mas a leitura e a re-releitura sempre foi descobrir concatenações
própria literatura também é uma "bêtise", talvez a maior inesperadas. Quanto à arte da estrutura, "Madame Bova-
de todas, e certamente, conforme Leopardi, "la piú sterile r y " situa-se entre a "Divina Commedia" de Dante e o "Ulys-
delle professioni". Se o mundo é o cosmos da "bêtise hu- ses" de Joyce. É o precursor do romance poemático mo-
maine", a literatura realista é o museu parnasiano das "bê- derno. Mas seu autor acabou, como Dante e Joyce, em exí-
tises humaines" tragicamente incuráveis. O caso dos dois lio amargo.
imbecis Bouvard et Pécuchet, cujo zelo em documentar-se Fiaubert acabou em desespero, porque, como artista,
tem cheiro suspeito de auto-ironia, é o do próprio lucidís- era incapaz de fazer concessões, de concluir um "compro-
simo Fiaubert. Mas o supremo documento da auto-análise misso". Depois de Fiaubert, haverá só uma alternativa: ou,
suicida de Fiaubert é sua correspondência. Ali, a ironia sacrificar a poesia à ciência, criando-se em vez de uma poe-
que pretendeu derrubar o romantismo, revela-se como arma sia científica uma ciência poética — as grandes obras his-
do romantismo — fora Friedrich Schlegel que criara esse toriográficas de Taine, que são na verdade romances ten-
conceito. A fé romântica no poder construtivo da arte e a denciosos; ou então, sacrificar a ciência à poesia, deforman-
í é romântica no poder destrutivo da ironia anularam-se re- do-se a realidade conforme as leis de uma poesia menor,
ciprocamente. É isso o que a crítica moderna censura no melancólica ou humorística. Eis o "compromisso vitoriano"
estilo de Fiaubert. De dois estilos dispõe a língua francesa: na França, a arte menor de Ferdinand Fabre e Alphonse
do estilo analítico, seja de Pascal, seja de Bossuet, seja de Daudet.
Voltaire; e do estilo ativo, seja de Molière, seja de Sten- Ferdinand Fabre ( 80 ) não desempenhou papel de pre-
dhal, seja de Balzac. Fiaubert fêz a tentativa de reunir os cursor — não era bastante original para isso — nem era um
dois estilos, tentativa irrealizável. Cada uma das suas fra- atrasado, porque forte e independente. Acompanhou, em
ses, cada um dos seus parágrafos é impecável; Fiaubert certo isolamento, a evolução de Fiaubert a Zola, sem tirar
escreveu as páginas mais perfeitas em prosa francesa. O as consequências radicais nem daquele nem deste; eis o que
conjunto dos seus romances, por mais admirável que seja o caracteriza como escritor de "compromisso". Fabre espe-
a construção novelística, ressente-se daquela incongruên- cializou-se num ramo pouco explorado da vida provinciana:
cia etilística. A insatisfação permanente de Fiaubert consi- a vida do clero. Descreveu com mestria os tipos diferentes,
go mesmo não estava de todo injustificada. Em vão, Fiau-
bert retirou-se para o convento do seu palacete, levando a 80) Ferdinand Fabre, 1830 — 1898.
vida de um "monje das letras"; o problema "verdade ou Les Courbezon (1862); Vatíbé Tigrane (1873); Mon onde Célestin
(1881); Lúcifer (1884).
ficção" estava tão irresolúvel como o problema parnasiano J. Barbey d'Aurévilly: Ferdinand Fabre. (In: Le Roman contem-
"ciência ou poesia". Bouvard e Pécuchet, os heróis imbecis porain. 3." ed. Paris, 1902).
ffi. Gosse: French Profiles. London, 1905.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2209
2208 OTTO M A R I A CARPEAUX

sa francesa. Na sua situação de um provinciano no ambien-


do pobre vigário de aldeia até o cónego ambicioso que pre-
te meio hostil da capital, havia todos os elementos de um
tende tornar-se bispo. Como realista da estirpe de Flau-
grande conflito. Mas este não se revela na obra de Dau-
bert, viu as misérias, imbecilidades, mesquinhezas; como
det. Estava indeciso. Zombou dos seus conterrâneos me-
escritor de "compromisso", não tirou conclusões anticleri-
ridionais: em Tartarin de Tarascon, da sua capacidade de
cais. No fundo, continuou, com maior força viril, a tradição
do conto rústico; às vezes, como em L'abbé Tigrame, chegou mentir jocosamente; em Numa Roumestan, do seu talento
a uma monumentalização que lembra a Gotthelf. Contudo, verbalista e charlatanismo político; mas continuou a ado-
o seu ' T a r t pour l'art" realista nunca ofende; e talvez por rar a sua terra, preferindo-a às ruas de Paris. Tornou-se
isso seja que Fabre está hoje injustamente esquecido. moralista à maneira de Augier, advertindo contra o perigo
da corrupção da família em Fromont jeune et Risler ainé
Como autor rústico, Fabre é fatalmente regionalista:
e da corrupção da mocidade em Sappho; esses dois roman-
o seu objeto não é o clero da França, mas só o clero da re-
ces, os seus melhores, são panoramas brilhantes da grande
gião de Bedarieux. O regionalismo, ocupando-se às mais
das vezes de províncias atrasadas, permite evitar certos pro- cidade, que era afinal a capital da pátria de Daudet, nacio-
blemas atuais, facilitando deste modo o "compromisso". Re- nalista fervoroso. O moralismo de Daudet não é profundo,
gionalista foi e continuou sempre Alphonse Daudet ( 8 1 ), o tampouco como a sátira fácil de Les róis en exil e do
representante principal do romance realista, moderado, na Immortel. O provençal e reacionário Daudet era um escri-
época de Zola; por isso, parecia um flaubertiano que não tor brilhante, tocando com virtuosismo todos os registros
quis dar o passo decisivo para o naturalismo. Mas, com qua- do esprit e do sentiment, um grande causeur. Mas de modo
se toda a sua obra, é Daudet um contemporâneo de Flaubert, algum um grande romancista. Das suas obras tem Jack,
assim como Zola aliás; e em vez de dizer que não "quis", a história comovente de uma criança infeliz, as maiores pos-
será melhor dizer que não podia. Assim como nos contos da sibilidades de ressuscitar.
bua mocidade e na Arlésienne, foi sempre um regionalista A França do século X I X deu à literatura de ficção no-
da Provença, admirador de Mistral, um "félibrien" em pro- velística um Stendhal, um Balzac, um Flaubert, um Zola.
Significaria diminuí-los, associando-lhes um Daudet. Para
cstabelecer-lhe a categoria, será bastante desmentir a com-
81) Alphonse Daudet, 1840 — 1897. paração frequente com Dickens, com o qual não tem pouco
Le Pettit Chose (1868); Lettres de mon moulin (1869); U Arlésienne
(1872); Les aventures véritables ãe Tartarin de Tarascon (1872); em comum senão o "compromisso"; mas Dickens, vindo de
Contes du lundi (1873); Fromont jeune et Risler ainé (1874); época anterior, aceitou a situação encontrada, e Daudet é
Jack (1876); Le Nabab (1877); Les róis en exil (1879); Numa Rou-
mestan (1880); Sappho (1884); L'Immortel (1888). o próprio autor do "vitorianismo francês", criando um na-
Edição da Librairie de France, 20 vols., Paris, 1929/1934. turalismo reacionário. "La Republique será naturaliste, ou
L. Diederich: Alphonse Daudet, sein Leben und seine Werke. Ber-
lin, 1900. tile ne será pas", dizia Zola; "La Republique será conser-
P. Marguerite, V. Marguerite, G. Geffroy e outros: Alphonse Dan- vative, ou elle ne será pas", dissera Thiers. Daudet tentou
det. Paris, 1908.
E. Fricker: Alphonse Daudet et la société du second Empire. Pa- reconciliar., os dois conceitos, com o resultado de todas as
ris, 1938. tentativas assim. O seu moralismo é reação de um burguês
J. E. Clogenson: Alphonse Daudet, peintre de son temps. Paris,
1946. provinciano, decepcionado pela industrialização e democra-
G. Benoit-Guyod: Alphonse Daudet, son temps, son oeuvre. tização do país. Em vez de compará-lo a Dickens, propõe-se
Paris, 1947.
G. V. Dobie: Alphonse Daudet. London, 1949.
OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2211
2210

antes a comparação com De Amicis, cujo Cuore é o pondant de companheiros de nível médio ou baixo. A tradição ro-
de Jack, de Daudet, e que também sabia acertar aspectos mântica acabou com o colapso de Gogol; e a crítica que
humorísticos, da vida militar na Itália desiludida depoii da saudara essa catástrofe, conseguiu impedir a formação de
unificação nacional. Também se sugere a comparação com uma nova tradição literária. Aqueles três grandes escrito-
Palácio Valdês ( 8 2 ), que revela analogias certíssimas com Tes estavam isolados porque trabalhando num país apaixo-
Daudet e continuou, por meio de várias traduções, um dos nadamente hostil à literatura.
autores preferidos de Léon Daudet e da gente da "Action O primeiro responsável foi Bielinski ( 8;1 ), o maior dos
Française". O ambiente psicológico do espanhol também é críticos literários russos. No começo fora eslavófilo, orto-
parecido: o aburguesamento cinzento na época da restau- doxo, nacionalista, admirador de Puchkin. Em Gogol, sau- «
ração dos Bourbons; apenas Palácio Valdês é menos com- dou o continuador do grande poeta; mas o Capote abriu-lhe,
bativo porque veio depois do experimento malogrado da como à Rússia inteira, os olhos. Interpretou o conto como
República Espanhola, enquanto Daudet ia ao encontro da a verdadeira volta à alma do povo russo e à realidade da
democratização pelos dreyfusistas. Aburguesamento e de- Rússia; e ao mesmo tempo substituiu as esperanças herde-
silusão são os motivos social e psicológico da chamada li- rianas de um grande futuro da raça eslava pela dialética
teratura realista. hegeliana. E r a m os dias nos quais o jovem Dostoievski,
Os mesmos motivos desempenharam papel importante outro protegido de Bielinski e autor dos Pobres, novela
na evolução da literatura russa: o aburguesamento realizou- gogoliana, frequentava os círculos revolucionários. Em bre-
se, ou antes começou pelas reformas liberais do tzar Ale- ve, porém, Bielinski devia reconhecer seu engano com res-
xandre I I , sobretudo a abolição da servidão dos camponeses peito a Gogol; à Correspondência com amigos do romancis-
em 1861; a desilusão, ali, era de uma classe correspondente ta, o crítico respondeu com uma famosa carta aberta, decla-
aos rentiers europeus: os proprietários de terra, meio-aristo- rando a guerra a todas as tendências conservadoras na lite-
cráticos. Sob o regime despótico do tzar Nicolau I, excluí- ratura e proclamando a substituição do romantismo reacio-
dos da vida pública, foram eles que se sentiam "inúteis" nário pelo realismo de tendências sociais; a própria razão
como o Eugénio Onegin de Puchkin, tornando-se propagan- de ser da literatura seria a descrição realista e impressio-
distas do liberalismo. Depois da grande reforma, a sua "inu-
nante dos sofrimentos do povo, para criar a mentalidade re-
tilidade" agravou-se economicamente; e a "literatura dos
volucionária.
proprietários rurais" tornou-se auto-acusação anti-românti-
ca e nostalgia neo-romântica. A consequência imediata dessa atitude era a formação
Essa constelação produziu pelo menos três escritores de de uma literatura que não quis ser literatura e. sim propa-
primeira ordem — Gontcharov, Turgeniev e Saltykov — ganda. No fundo, isso não era anti-romantismo, e sim "ro-
mas não uma corrente literária de que se pudesse acompa- mantismo social" no sentido dos franceses, baseado no so-
nhar a evolução. Foi então que a literatura russa começou cialismo utopista do "jovem hegelianismo", mas sem ca-
a afigurar-se aos estrangeiros como se fosse composta só pacidade de chegar à conclusão final, ao marxismo. Está
de alguns poucos grandíssimos autores, desacompanhados

82) Cf. "Romantismos de oposição", nota 108. 63) Cf. "Romantismos de evasão", nota 164.
2212 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2213

assim traçado o caminho de Herzen ( 8 4 ), escritor genial que civilização ocidental por uma grande revolução russa e es-
não se realizou plenamente. Nos seus começos é inconfun- lava: manifesto anti-romântico de um revolucionário que
dível a influência do romantismo francês, sobretudo de não era capaz de esquecer o romantismo eslavófilo. A ação
George Sand, então o escritor estrangeiro mais lido na positiva do socialista Herzen exerceu-se através da revista
Rússia. As ideias emancipatórias e meio socialistas da clandestina Kolokol, redigida e impressa em Londres, li-
Sand enchem o romance De Quem é a Culpar, que seria díssima e muito influente na Rússia durante os primeiros
um panorama admirável da Rússia patriarcal, se não fosse, anos do governo do Tzar Alexandre I I , este mesmo leitor
ao mesmo tempo, um panfleto político contra a servidão; assíduo do periódico contrabandeado. Mas os resultados
e seria admirável como panfleto político se a crítica do que a propaganda de Herzen conseguiu, eram todos no sen-
autor não fosse visivelmente influenciada pelos seus ressen- tido do liberalismo: abolição da servidão, autonomia ad-
timentos de filho ilegítimo de um latifundiário. A con- ministrativa dos distritos, tribunal do júri. Abriram-se as
dição social de Herzen, embora homem rico, foi a dos in- portas à mobilização do capital agrário e ao aburguesamen-
telectuais pequeno-burgueses alemães de então; foi êle o to na Rússia. E Herzen foi coerente, tirando a extrema
primeiro russo que interpretou o hegelianismo de maneira consequência do seu socialismo liberal ou liberalismo so-
esquerdista, sem recorrer às esperanças humanitárias, herde- cialista: tornou-se partidário de Bakunin, anarquista. En-
rianas, e sim conforme as doutrinas alemãs. O seu radica- tão já tinha perdido a influência na Rússia. Era um homem
lismo tipicamente eslavo chegou do eslavofilismo imedia- fracassado. A sua impressionante autobiografia, O meu pas-
tamente ao materialismo de Feuerbach. Mas não chegou sado e pensamento, parecia a um crítico revelar "um Pro-
nem um passo mais adiante. Herzen exilou-se para a Eu- meteo idealista, preso ao rochedo do materialismo"; tam-
ropa, sua terra de promissão, onde experimentou logo as- bém poder-se-ia dizer, um socialista preso ao romantismo
conseqúências da revolução malograda de 1848. Contra essa eslavo. Herzen é algo como representante de uma boémia
do socialismo, boémia constituída pelos grupos de russos
Europa, que lhe parecia incapaz de levantar-se, lançou,
exilados nas capitais europeias.
primeiro em língua alemã, o grande panfleto Vom anderen
Ufer (Do Outro Lado), profetizando o fim apocalíptico da Herzen é o primeiro grande representante da Intelli-
gentzia russa. Usa-se essa ortografia, transcrição mais ou
menos fiel das letras russas, para evitar confusão com a
84) Alexi Ivanovitch Herzen, 1812-1870. palavra "inteligência" que é evidentemente outra coisa.
De quem é a culpa? (1847); Do outro lado (.Vom anderen Ujer)
(1850); Kolokól (1857/1869); O meu passado e pensamento (1875/ A literatura russa do século' X I X teve que desempe-
1879) . nhar várias funções, além da literária propriamente dita:
Edição por S. Lemke, 22 vols., Petersburgo, 1917/1923. era jornalismo, num país em que não existia imprensa li-
O. Sperber: Die sozialpolitischen Ideen Alexander Herzens. Leip-
zig, 1894. vre; era tribuna política, num país em que não havia par-
K. Levin: Alexi Herzen. 2.a edição. Moscou, 1922. (Em língua lamento; era cátedra universitária, num país em que as
russa.) Universidades eram fiscalizadas por sargentos de Polícia;
J. Steklov: Herzen. Moscou, 1923. (Em língua russa.)
R. Larry: Alexandre Herzen. Paris, 1929. era púlpito, num país em que a própria Igreja estava muda.
E. H. Carr: The Romantic Exiles. London, 1933. Todas essas funções foram desempenhadas pela classe dos
J. Florovski: Die Sackgassen der Romantik. (In: Orient und. que escreviam, mais numerosa do que o grupo de autores de
Occident, 4, 1935).

2214 OTTO M A M A CARPEAUX


HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2215

poesias e romances. Essa classe é a Intelligentzia, isto é : pcqueno-burgueses das cidades e, mais, um terceiro grupo
os homens de cultura superior que, excluídos da vida públi- que é difícil definir: digamos, por enquanto, "o êxodo ru-
ca, fizeram oposição sistemática, divulgando suas ideias no ral dos intelectuais". Ideologicamente, a Intelligentzia tam-
disfarce de obras de ficção e de poesia, burlando a censura, pouco era homogénea. Mas a grande divergência entre os
influenciando a opinião pública, reivindicando (e, às ve- "eslavófilos", que pretenderam conservar o caráter nacional
zes, conseguindo) reformas e preparando, deliberada ou in- e> religioso da Rússia, e os "ocidentalistas" que pretende-
voluntariamente, revoluções. A Intelligentzia não é um fe- ram europeizar o país, essa divergência já não era tão agu-
nómeno especificamente russo e não é só do século X I X . da por volta de 1850. No fundo, todos eram ocidentalistas:
Também constituíram uma Intelligentzia os philosophes e desejando reformas. Mas também eram todos, no fundo,
encyclopedistes franceses do século X V I I I , lutando contra eslavófilos, atribuindo à Rússia a missão de salvar a huma-
o Ancien Regime e preparando ideologicamente a Revolu- nidade corrompida. Alguns membros da Intelligentzia vol-
ção. E nem sempre se trata de luta contra um regime des- tarão mesmo, mais tarde, a um eslavofilismo radicalizado:
pótico. A Intelligentzia norte-americana dos anos de 1920 será o pan-eslavismo. E esse radicalismo é característico, in-
revoltou-se contra o governo democrático de uma maioria. dependente da sua tendência para a Esquerda ou para a
Mas tampouco se trata de simples oposição de um grupo. Direita. A Intelligentzia foi, no início, quase homogenea-
De Intelligentzia, naquele sentido, só se pode falar quando mente liberal; depois, radicalizou-se cada vez mais, sob a
os intelectuais de um país a integram de maneira compacta, Influência dos intelectuais pequeno-burgueses das cidades,
não havendo oposição contra essa oposição. É o que acon- os precursores do socialismo russo: Tchernichevski, Do-
teceu na Rússia do século XIX, explicando o enorme poder broliubov, Pisarev. Continuavam liberais os latifundiários
exercido por essa classe sem poder, que criou a grande li- aristocráticos como Turgeniev e Gontcharov; mas entre
teratura russa ( 8 4 - A ). C-les também surgiram radicais, embora de tendência dife-
rente, como Tolstoi. Houve, enfim, aquele terceiro grupo:
A Intelligentzia não foi, portanto, um grupo entre ou-
espécie de "êxodo rural de intelectuais", isto é, membros
tros grupos, mas uma classe: a dos intelectuais, no senti-
da classe rural que por este ou aquele motivo tiveram de
do em que Cari Mannheim considera como classe os inte-
I se separar da sua classe. São os mais radicais dos radicais.
lectuais. Mas é preciso advertir contra um equívoco: as
Têm que fugir para o estrangeiro. São os Herzen e Ba-
"classes" literárias não coincidem com as classes da socie-
kunin: os anarquistas.
dade ( 84 * B ). Na Intelligentzia russa do século X I X havia
os latifundiários aristocráticos e seus filhos, os intelectuais
Herzen pertencia à "boémia política" dos russos que
Viviam exilados na Suíça, em Londres e outras cidades eu-
rooéias. Desde a "falência" de Herzen, o chefe dessa boé-
84A) M. Zdzilchowski: Die Graundprobleme Russlanãs. Leipzig, 1907. mia era Bakunin ( 8 5 ), este já não escritor, ou, quando mui-
D. Ovsianko-Kuiikovski: História da Intelligentzia russa. Mos-
cou, 1908. (Em língua russa.)
Th. G. Massaryk: Russland und Europa. Jena, 1913.
Th. G. Masarky: Russland und Europa. Jena, 1913. ) Mikail Alexandrovitch Bakunin, 1814 — 1876.
grad, 1924. (Em língua russa.) P. Nettlau: Das Leben Michail Bakunins. 3 vols. London, 1896/
84B) G. Zonta: Storia delia letteratura italiana, vol. IV. H. cap. 2., To- 1000.
rino, 1932. Rlc. Huch: Michail Bakunin und die Anarchie. Leipzig, 1923.
81. H. Carr: Michail Bakunin. London, 1937.
2214 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2215

poesias e romances. Essa classe é a Intelligentzia, isto é : pequeno-burgueses das cidades e, mais, um terceiro grupa
os homens de cultura superior que, excluídos da vida públi- que é difícil definir: digamos, por enquanto, "o êxodo ru-
ca, fizeram oposição sistemática, divulgando suas ideias no ral dosintelectuais". Ideologicamente, a Intelligentzia tam-
disfarce de obras de ficção e de poesia, burlando a censura, pouco era homogénea. Mas a grande divergência entre os
influenciando a opinião pública, reivindicando (e, às ve- "eslavófilos", que pretenderam conservar o caráter nacional
zes, conseguindo) reformas e preparando, deliberada ou in- e religioso da Rússia, e os "ocidentalistas" que pretende-
voluntariamente, revoluções. A Intelligentzia não é um fe- ram europeizar o país, essa divergência já não era tão agu-
nómeno especificamente russo e não é só do século X I X . da por volta de 1850. No fundo, todos eram ocidentalistas:
Também constituíram uma Intelligentzia os philosophes e desejando reformas. Mas também eram todos, no fundo,
eslavófilos, atribuindo à Rússia a missão de salvar a huma-
encyclopédistes franceses do século X V I I I , lutando contra
nidade corrompida. Alguns membros da Intelligentzia vol-
d Ancien Regime e preparando ideologicamente a Revolu-
tarão mesmo, mais tarde, a um eslavofilismo radicalizado:
ção. E nem sempre se trata de luta contra um regime des-
será o pan-eslavismo. E esse radicalismo é característico, in-
pótico. A Intelligentzia norte-americana dos anos de 1920
dependente da sua tendência para a Esquerda ou para a
revoltou-se contra o governo democrático de uma maioria.
Direita. A Intelligentzia foi, no início, quase homogênea-
Mas tampouco se trata de simples oposição de um grupo.
* mente liberal; depois, radicalizou-se cada vez mais, sob a
De Intelligentzia, naquele sentido, só se pode falar quando
influência dos intelectuais pequeno-burgueses das cidades,
os intelectuais de um país a integram de maneira compacta,
os precursores do socialismo russo: Tchernichevaki, Do-
não havendo oposição contra essa oposição. É o que acon- broliubov, Pisarev. Continuavam liberais os latifundiários
teceu na Rússia do século XIX, explicando o enorme poder aristocráticos como Turgeniev e Gontcharov; maa entre
exercido por essa classe sem poder, que criou a grande li- cies também surgiram radicais, embora de tendência dife-
teratura russa ( 8 4 - A ). rente, como Tolstoi. Houve, enfim, aquele terceiro g r u p o :
A Intelligentzia não foi, portanto, um grupo entre ou- espécie de "êxodo rural de intelectuais", isto é, membros
tros grupos, mas uma classe: a dos intelectuais, no senti- da classe rural que por este ou aquele motivo tiveram de
do em que Cari Mannheim considera como classe os inte- te separar da sua classe. São os mais radicais dos radicais.
lectuais. Mas é preciso advertir contra um equívoco: as Têm que fugir para o estrangeiro. São os Herzen e Ba-
"classes" literárias não coincidem com as classes da socie- kunin: os anarquistas.
dade ( 84 " B ). Na Intelligentzia russa do século X I X havia
os latifundiários aristocráticos e seus filhos, os intelectuais Herzen pertencia à "boémia política" dos russos que
viviam exilados na Suíça, em Londres e outras cidades eu-
ias. Desde a "falência" de Herzen, o chefe dessa boé-
i
84A) M. Zdzilchowski: Die Graundprobleme Russlands. Leipzig, 1907. mia era Bakunin ( 8B ), este já não escritor, ou, quando mui-
D. Ovsianko-Kulikovski: História da Intelligentzia russa. Mos-
cou, 1908. (Em língua russa.)
Th. G. Massaryk: Ricssland und Europa. Jena, 1913. Mlkail Alexandrovitch Bakunin. 1814 — 1876.
Th. G. Masarky: Russland und Europa. Jena, 1913.
grad, 1924. (Em língua russa.) P. Nettlau: Das Lében Michail Bakunins. 3 vols. London, 1896/
84B) G. Zonta: Storia delia letteratura italiana, vol. IV. H. cap. 2., To- Rio. Huch: Michail Bakunin und die Anarchie. Leipzig, 1923.
rlno, 1932. B, H. Carr: Michail Bakunin. London, 1937.
2216 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2217

to, panfletário em língua francesa ou alemã. O papel de não convencem. O próprio autor só escolheu o género para
Bakunin no movimento socialista europeu foi efémero e poder discutir com relativa liberdade o problema que foi
funesto. Iniciou-se, o que é significativo, com a sua parti- e é o problema primordial da Rússia: "Que fazer?". Fa-
cipação no congresso pan-eslavo de Praga, em 1848; con- zer alguma coisa, realizar algo de útil ou preparar as reali-
tinuou com a sua oposição contra Marx no seio da Primei- zações futuras, só isso parecia importante no imenso país
ra Internacional; e acabou nas associações anarquistas, meio da indolência sonolenta, da filosofia do "não adianta", do
românticas, dos trabalhadores do Jura, na Suíça, e na Itá- "nitchevo". Movimentar o país para preparar a revolução
lia meridional. O papel de Bakunin na Rússia foi grande socialista. Tchernichevski e os seus discípulos opuseram ao
e negativo num outro sentido: revelou, conforme a ex- eslavofílismo meio oriental o "ocidentalismo" mais radical. ^
pressão de Florovski, "os becos sem saída do romantismo". O programa era a europeização da Rússia. Falava-se em
Com Herzen e Bakunin acaba o hegelianismo russo, que continuar a obra de Pedro, o Grande, interrompida pelo
sempre fora meio eslavófilo. Inicia-se a época do positivis- romantismo. A Europa dera o exemplo. Mas a Europa de
mo, mais do inglês de Mill do que do francês de Comte, e 1860 não era socialista, e era radical só num sentido quase
do utilitarismo; quer dizer, do radicalismo político, que se oposto: a industrialização continuou com velocidade ver-
julgava socialista, mas serviu, nesse momento histórico, tiginosa. Os mestres de Tchernichevski — como tradutor
às aspirações da burguesia. e divulgador exerceu grande influência — eram Mill, Bu-
ckle, Darwin. O utilitarismo, esse pesadelo dos intelectuais
O grão-mestre do radicalismo russo foi Tcherniche- ingleses, parecia panaceia aos intelectuais russos.
vski (8<J). Assim como nos casos de Herzen e Bakunin, a
"O que fazer?" — também se perguntou isso aos poetas.
obra realizada não justifica a grande influência. Mas a
Da existência de Tiutchev, vivendo em exílio diplomático,
época era antiliterária. Era de conversas teóricas, prepa-
ninguém sabia. Feth foi ridicularizado. O poeta da Rús-
rando ações revolucionárias. Essas conversas constiuem o
sia radical era Nekrassov ( 8 7 ). Conhecedores fidedignos
único, e pálido, encanto do seu romance O Que Fazer?:
afirmam que Nekrassov era um poeta nato, só desviado
aquelas discussões noturnas, intermináveis, de estudantes e
da arte pela doutrina da poesia propagandística. O seu
outros intelectuais russos sobre revolução, socialismo, amor
maior poema, Quem vive feliz na Rússia?, não justifica exa-
livre e Deus, que constiuem parte essencial da literatura
tamente aquela apreciação: é uma sátira política e social
russa do século X I X e serão imitadas em toda a literatura
contra a Rússia da servidão, então já abolida, em versos du-
do naturalismo europeu. Tentativas recentes de descobrir
grande arte de construção novelística em O Que Fazer?
87) Nikolai Alexeíevitch Nekrassov, 1821 — 1876.
Poesias (1861, 1863); Quem vive feliz na Rússia? (1889 1877); Mu-
lheres russas (1872.)
86) Nikolai Gavrilovitch Tchernichevski, 1828 — 1889. Edição por N. A. Tchukovski, 2.ft ed., Moscou, 1928.
Que jazer? (1863) G. N. Sakulin: Nekrassov. Leningrado, 1822. (em língua russa)
G. V. Plekhanov: Tchernichevski. 2.a ed. Moscou, 1924. (em lín- B. Lichenbaum: Através da literatura. Leningrado, 1924. (em
língua russa)
gua russa)
J. Steklov: Tchernichlvski. 2.ft ed. Moscou, 1828. (Em língua russa). A. Kubikov: A poesia ãe Nekrassov. Moscou, 1928. (em língua
russa)
J. Silberstein: Bielinski und Tchernichevski. (In: Jahrbuecher S. Jevgeniev-Maximov: Nekrassov e seus contemporâneos. Mos-
fuer Kultur und Geschite der Slaven, N. F., VII, 1831.) cou, 1930. (em língua russa)
N. Beltchikov: Nikolai Ganrilovitch. Tchernichevski. Biografia Oh. Corbet: Nekrassov, 1'homme et le poete. Paris, 1949.
critica. Moscou, 1947. (em língua russa)
2218 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2219

ros e expressões triviais. Há, aliás, quem defenda a tese de derna. Esse trabalho de revisão foi realizado pelos jovens
Nekrassov ter adotado deliberadamente o estilo de "chan- críticos Dobroliubov e Pissarev (HH). O mais radical foi
sonnier" vulgar, para fins satíricos. As poesias de tamanho Pissarev; o seu ataque violento contra "o inútil poeta" Pu-
menor, embora antes baladas do que líricas e sempre de ten- chkin, em 1865, marcou época: a época da prosa. No ter-
dência abolicionista, revelam uma eloquência notável e for- reno da crítica literária foi Pissarev exatamente o que no
te sentimento humanitário, lembrando às vezes a Victor terreno político se chamava "nihilista": defendendo a dou-
Hugo. Os cesteiros, O Frio, Os miseráveis, gozam até hoje trina conforme a qual era preciso destruir tudo o que exis-
de popularidade imensa; mas é duvidoso se contribuíram te para poder construir o futuro. Não chegou a tanto o
muito para a formação do gosto poético na Rússia. Nekras- crítico Dobroliubov, que sabia fazer análise sociológica de
sov não encheu a lacuna entre Puchkin e Anenski, entre a obras literárias. Num famoso estudo, O Reino das Trevas,
poesia romântica e a simbolista; antes é ele o responsável serviu-se dos dramas de Ostrovski como pretexto para de-
pela mediocridade de poesia russa durante meio século. nunciar o atraso asiático da Rússia patriarcal; e o mesmo
Talvez tivesse sido melhor propagandista em prosa; pelo panorama sinistro constitui o fundo da sua crítica do Oblo-
menos revelou habilidade considerável na fundação e dire- mov, de Gontcharov.
Ção de jornais e revistas, ganhando fortuna e até riqueza.
Não é sem significação esse fato, considerando-se que o Gontcharov (8t>) é, para a literatura universal, o autor
poeta radical defendeu, durante a vida inteira, só uma re- de um livro só, do romance Oblomov: um dos maiores li-
forma radical: a abolição da servidão, quer dizer, a medida vros de todos os tempos. Tem elementos para agradar as
legislativa que iniciou o aburguesamento da Rússia agrá- espécies mais diferentes de leitores; mas para compreen-
ria. Nekrassov era utilitarista, em todos os sentidos. "O der bem a obra precisa-se de uma qualidade preciosa e rara
papel de embrulho em que dás um pedaço de pão ao fa-
minto, vale mais do que o papel em que foi escrito o Fausto
de Goethe" — essa frase de Nekrassov revela mais senti- 88) Nikolai Alexandrovitch Dobroliubov, 1836 — 1861.
mentalismo dickensiano do que compreensão das tarefas ci- Dmitri Ivannovitch Pissarev, 1840 — 1868.
V. Zhdanov: Dobroliubov. Moscou, 1952. (Em língua russa)
vilizadoras que também tem o socialismo, que afinal não A. Coquart: Dmitri Pissarev et Vidéologie du nihiliame. Paris,
aspira à formação de analfabetos saciados, e sim à distri- 1947.
buição justa de todos os bens da civilização. Nekrassov é, 89) Ivan Alexandrovitch Gontcharov, 1812-1891.
Uma história trivial (1847); Oblomov (1857); A queda (1868).
como anti-romântico, um "filisteu" maciço, duvidando da Edição das obras completas por S. A. Vengerov, 12 vols., Peters-
utilidade da poesia. Mas só atacou os poetas "inúteis" do burgo (1899).
A. A. Mazon: Un maitre du roman russe, Ivan Gontcharov. Pa-
seu próprio tempo, como F e t h ; não ousou atacar os "clás- ris (1914).
sicos", porque eram geralmente respeitados. "Afinal toda E. A. Liacki: Gontcharov. 4.a ed. Stockholm, 1925. (em língua
russa)
poesia de hoje é mais ou menos inútil", dizia Nekrassov, E. A. Liacki: Romance e Vida. A evolução da personalidade cria-
excluindo desse julgamento provavelmente só a sua pró- dora de Gontcharov. I. Praha, 1925. (em língua russa)
V. E. Evgenev-Maksimov: Ivan Gontcharov. Moscou, 1925 (em
pria poesia. língua russa).
L. S. Utevski: A vida de Gontcharov. Moscou, 1931 (em língua
russa).
A vitória do utilitarismo impôs à crítica uma revisão W. Rehm: Experimentum medietatis Studten zur Geistes.-und Li~
geral de todos os valores da literatura russa, passada e mo- teraturgeschichte des 19. Jahrhunderts. Muenchen, 1947.
J. Lavrin: Gontcharov. New Haven, 1954.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2221
2220 OTTO M A R I A CARPEAUX

entre os leitores modernos: de paciência. Porque em Oblo- descobri-los ébom consultar as outras obras de Gontcharov.
mov não se passa nada: ou antes, o que se poderia chamar Pertencia à classe dos senhores rurais como o seu herói pas-
sivo, sofrendo êle mesmo um pouco de "omoblovchtchina":
"ação", nesse romance, só se passa para iluminar a inação
escreveu muito pouco. Depois de uma primeira novela e do
do herói, da qual tudo depende. Oblomov, se bem que admi-
Oblomov deu só o romance A Queda, imaginação como
rando a atividade do seu amigo alemão Stolz, não se ca-
história pessoal com o panorama da época no fundo —
sará nem exercerá profissão alguma; prefere continuar a
algo como uma Éducation sentimentale russa. Repete cer-
vida sonolenta de um "senhor de engenho" russo, para o
tos motivos de Oblomov, como a inação de Raiski. Mas
qual mil servos têm que trabalhar. Êle mesmo, servido
também há outros elementos, novos, que completam de
fielmente pelo servo Zakhar, dorme e come e dorme outra
maneira indispensável aquela obra-prima. Raiski é apre-
vez e sonha, acordando só para comer e dormir mais uma
sentado como incapaz de viver porque é ou porque se jul-
vez, e assim em diante. É o romance mais "imóvel" da li- ga artista; a discussão do problema "Arte ou Vida", nesse
teratura universal; o romance do infinito enfado universal. romance, situa o autor perto do seu contemporâneo Flau-
Oblomov é um tipo daquela época: um "homem inútil", bert; Gontcharov é algo como um parnasiano russo. Mas
como fora Eugénio Onegin, mas perfeitamente arromânti- Raiski não é o personagem principal; entre os outros des-
co e por isso satisfeito consigo mesmo. Os russos criaram taca-se a avó, madame Bereskova, encarnação da Rússia
uma palavra, "oblomovchtchina", para dar nome ao seu "état antiga, com suas virtudes maternais. Esse ponto é de im-
d'âme" de abulia consumada — mas Oblomov não foi apre- portância para esclareer melhor as intenções de Gontcha-
sentado como caso clínico aos psiquiatras. Inutilidade e rov: apesar de criticar a "oblomovchtchina", não pensou em
abulia de Oblomov têm fundamento social: continuam em soluções radicais; é um liberal-conservador, que sabe apre-
função da servidão, desmoralizando o senhor de tal manei- ciar o passado. Mas nem Raiski nem a velha Bereskova es-
ra que êle acabou incapaz do trabalho de ler um livro ou tão realmente no centro. O "herói" de A queda é o enfado:
de se vestir. Oblomov é, no primeiro plano, a acusação a vida que aborrece porque nada se passa nela. Esse papel
mais terrível que se lançou contra a estrutura social da central do enfado em A queda permite descobrir o último
Rússia antes da abolição. Mas se fosse só isso, Gontcharov dos vários planos de Oblomov: o enfado como doença me-
seria o Nekrassov da prosa, e a sua obra já teria perdido tafísica do homem abandonado por Deus num Universo va-
toda atualidade, permanecendo só como documento da so- zio. É, no tempo do ateísmo feuerbachiano, o epitáfio do
ciologia histórica. Em vez disso, Oblomov, como obra de individualismo romântico.
arte, sobreviveu à abolição, cada vez mais apreciado, in-
Mas só pela análise filosófica, assim como Rehm a rea-
gressando enfim no pequeno número dos livros "clássicos"
lizou, revela-se esse plano, o mais profundo, da obra. Como
que não precisam do "interesse" do leitor, antes lhe impõem
romance realista é Oblomov o panorama simbólico da Rús-
a "suspension of disbelief". Como o Dom Quixote, como
sia de 1860, da luta entre os eslavófilos conservadores e os
todas as grandes obras da literatura universal, é Oblomov
"ocidentalistas" radicais que pretendiam renovar tudo e,
de simplicidade só aparente; a análise revela nesse roman-
•e fôr preciso, destruir tudo. Gontcharov era liberal, como
ce vários planos, unificados pela mais perfeita composição
quase todos os senhores rurais; as suas convicções políticas
novelística — o da acusação social; depois, o da desilusão tcriam-no levado par.', o lado da esquerda. Mas como esteta
flaubertiana; enfim, no fundo, a calma épica — mas para
2222 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2223

não apreciava o utilitarismo nem sequer o movimento; po- ao lado do outro, encontrando-se sem possibilidade de en-
dia dizer, com Baudelaire: " J e hais le mouvement qui tender-se. O verdadeiro personagem complementar é o ser-
déplace les lignes". Gontcharov era u m clássico, no sentido vo Zakhar, sem o qual Oblomov não podia executar as fun-
mais rigoroso da palavra; mas não chegara sem luta a esse ções vitais mais primitivas; é o "alter-ego" do "herói". A
resultado. Documento da luta é aquela sua primeira nove- composição de Oblomov não é determinada pela oposição
la, Uma história trivial, contando a história das ambições entre Oblomov e Stolz, mas pela harmonia entre Oblomov
românticas de um moço que acaba na trivialidade da buro- e Zakhar. O romance simboliza a imobilidade da sociedade
cracia. É a obra mais f laubertiana de Gontcharov, caracteri- russa, apoiada na paciência ociosa dos senhores e na paciên-
zando-o como um dos grandes escritores da desilusão euro- cia trabalhosa dos servos. Por isso, Oblomov é, no foro ínti-
peia. O prosador mais vagaroso, mais consciencioso da li- mo do romancista, superior a Stolz. Não faz nada porque
teratura russa era, como Flaubert, um desiludido do ro- não precisa fazer nada. O outro é estrangeiro; Oblomov é
mantismo; e como novo romantismo apareciam-lhe as gran-
russo.
des ambições dos radicais que acabariam um dia, pensava
éle, na mesma trivialidade. Gontcharov não era capaz de Oblomov é o representante da nação; e continuará re-
acreditar muito em Stolz, que é o personagem mais pálido, presentando-a até ser eliminado por um russo diferente, o
sem vida pesosal, do grande romance. Os russos de então de Gorki. O herói de Gontcharov, "senhor de engenho", é
adoravam a Alemanha, país da ciência crítica, da técnica sedentário até o paradoxo; os heróis-vagabundos de Gorki
utilitária, da filosofia política. Os romnces russos de então estão perpetuamente caminhando. São os homens ativos da
estão cheios de conversas sobre David Friedrich Strauss e futura revolução. Gontcharov pertence à outra família de
Fuerbach, o materialismo de Louis Buechner e os adubos escritores russos. Talvez haja entre os seus antepassados li-
artificiais de Liebig, os estudos químicos de Bunsen e o li- terários o gordo Krylov. Mas depois pioraram os tempos.
beralismo historiográfico de Mommsen. Não causa estra- Os servos serão emancipados, os senhores viverão no es-
nheza que Gontcharov tenha escolhido u m alemão como trangeiro como Turgeniev, esteta gontcharoviano; e o ne-
opositor de Oblomov. Contudo, é significativo que o único crólogo de Oblomov será escrito por Tchekhov, no Jardim
personagem ativo do romance é um estrangeiro. As sim- de cerejas. Gontcharov desconhece, porém, o esteticismo
patias de Gontcharov estão todas do lado de Oblomov, o melancólico de Turgeniev e a melancolia decadente de
fainéant mais amável do mundo, que tem, no fundo, razão Tchekhov. Não é romântico, absolutamente, e neste sen-
em não agir; porque n a Rússia não adianta nada. Simpa- tido é bem o contemporâneo de Tchernichevski e Dobroliu-
tizando com Oblomov, a cuja classe pertenceu, Gontcharov bov. Mas tampouco é realista no sentido moderno, e sim
conseguiu eliminar toda paixão denunciadora e amargura
num sentido muito antigo. O sol exuberante na sua obra
flaubertiana. A "ação" de Oblomov parece passar-se num
n8o corresponde bem à realidade russa, lembra antes as
verão permanente, de calor quase mediterrâneo — é o único
paisagens idílicas do Mediterrâneo; até o seu outono é sem
grande romance russo do século X I X sem neve nem gelo.
tristeza. A epopeia do ruralismo russo é uma obra per-
Está cheio de sol. Nessa atmosfera não há lugar para dis-
manente porque vista como que pela distância de séculos,
cussões ideológicas. Com efeito, Stolz não é o verdadeiro
Aquela "distância" pela qual se caracteriza a calma imper-
complemento de Oblomov. Os dois personagens vivem um
turbável da epopeia. Oblomov é o poema da preguiça divi-
2224 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2225

na, um poema homérico. Gontcharov realizou o que Puch- e da arbitrariedade dos senhores. O papel desse livro na
kin sonhara: em língua russa, uma obra grega. agitação pela emancipação dos servos já foi comparado à
A situação de Turgeniev ( 90 ) já é muito diferente: já repercussão de Uncle Tom's Cabin durante a luta pela li-
precisava tomar mais a sério as ideologias radicais; e pode- bertação dos escravos pretos nos Estados Unidos. Homem
se dizer que Turgeniev criou o romance ideológico da ideal, outro Stolz, mas eslavo, parecia o revolucionário búl-
Rússia. Em De Quem é a Culpa? e O Que Fazer?, as dis- garo Insarov, no romance com o título ameaçador Nas vés-
cussões sufocam a ação e tiram a vida aos personagens. Nos peras. Eis o Turgeniev dos liberais. De repente, em 1862,
romances de Turgeniev também ocorrem muitas discussões, saiu o romance Pais e Filhos, e fêz escândalo. Durante
mas estão perfeitamente enquadradas no enredo, as con- toda a segunda metade do século X I X , os europeus esta-
vicções ideológicas dos personagens misturam-se de tal vam acostumados a chamar "nihilistas" aos revolucionários
modo com os motivos pessoais que resultam criaturas vivas russos; e quase ninguém se lembrava que só o romance de
que agem e reagem e não meros porta-vozes do autor. A Turgeniev tinha popularizado aquela expressão, que desa-
doutrina do dia, porém, era a identificação entre obra e pareceu só quando os revolucionários já eram marxistas.
autor: "Com aquele romance, o romancista pretende afirmar Do ponto de vista do marxismo, os utopistas russos de 1860
isso ou aquilo"; e Turgeniev apresentou à crítica russa o parecem-se realmente mais com anarquistas do que com so-
espetáculo desconcertante de um romancista, afirmando cialistas. Em Turgeniev, porém, o termo tinha outro sen-
em cada um dos seus romances coisa diferente. tido : o niilista seria um homem para o qual só existiam
motivos de utilidade política e social, de modo que tinha
O Diário de um Caçador fêz sensação pelas descrições
um "nada", "nihil", na alma em vez dos sentimentos huma-
impressionantes da vida dos servos, vítimas da pior miséria
n o s . Pais e Filhos é a tragédia do niilista Basarov, tra-
gédia porque esse homem generoso não é capaz de viver
90) Ivan Sergeievitch Turgeniev, 1818 — 1883.
Diário de um homem supérfluo (1850); Diôrio de um caçador conforme a doutrina desumana que professa; e Turgeniev
(1852); Rudin (1855); O nido de aristocratas (1859); Nas vésperas pretende afirmar que os russos em geral, criaturas muito
(1860); Pais e filhos (1862); Fumaça (1867); Um rei Lear da estepe'
(1870); Primavera (1873); Punin e Baburin (1874); Terra vir- humanas, não serão capazes de fazer a revolução do niilis-
ginal (1876); Poemas em prosa (1878/1882); Clara Militch (1882). mo. A indignação dos radicais e até dos liberais contra o
Edição por M. M. Gerschenson, 9 vols., Moscou, 1929.
N. Borkovski: Turgeniev. Berlin, 1902. romance foi compreensível; mas teria sido menor, prestan-
E. Haumant: Turgeniev, la vie et 1'oeuvre. Paris, 1907. do-se a devida atenção aos romances precedentes: já no
N. N. Strachov: Estudos críticos sobre Turgeniev e Tolstoi. 5.*
ed. Petersburgo, 1908. (em língua russa) prin-.i:o romance, Rudin, o herói é um moço inepto que se
J. Ivanov: Ivan Sergeievitch Turgeniev. Petersburgo, 1914. (em j \ ' r génio c ao qual todcs consideram como génio porque
língua russa) *ço; "Qblomov em ação, ou antes uma mistura de Oblo-
C. Garnett: Turgeniev. London, 1917.
M. Gerschenson: O sonho e o pensamento de Turgeniev. Moscou. ->.„v e Bakunin", diz um crítico moderno. E no Nido de
1919. (em língua russa) Aristocratas, os estudantes radicais são esnobes decadentes.
J. Nikolski: Turgeniev e Dostoievski. Sofia, 1921. (em língua
russa) D e s t e modo, o autor de Pais e Filhos estava coerente con-
A. Yarmolinski: Turgeniev, the Man, his Ari and his Age. New sigo mesmo. Surpreendeu o público, porém, novamente
York, 1926. pelo romance seguinte, Fumaça, em que os conservadores
E. Damiani: Ivan Turgeniev. Roma, 1930.
M. K. Kleman: Ivan Sergeievitch Turgeniev. Vida e Obra. Le~ • l o representados como homens levianos e frívolos. E, vi-
nlngrad, 1942. (em língua russa)
D. Magarshack: Turgeniev. London, 1954.

2226 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2227

vendo em exílio voluntário durante vinte e oito anos, T u r - cências indeléveis da mocidade, passada nos grandes lati-
geniev não deixou dúvidas quanto ao seu liberalismo ina- fúndios do interior da Rússia; reminiscência que guardava
balado e sincero. e evocava a fidelidade comovida de um Proust. Como ar-
Em cada uma das suas obras o romancista ideológico tista puro, Turgeniev não tem "filosofia" definida. Não
Turgeniev se apresenta diferente. Foi defeito gravíssimo dá "statements" mas "meaning"; "sentido", em vez de "afir-
para os críticos russos; mas não para os europeus. Turge- mações". Para o romancista, nem sempre é isso vantagem;
ao contrário. Turgeniev, não tendo uma "filosofia", não
niev foi o primeiro romancista russo que se tornou famoso
sabe dar uma interpretação da vida. Os seus personagens
na Europa. Ali se conheceram pouco as discussões entre
não são porta-vozes do autor; mas também carecem de con-
eslavófilos e ocidentalistas; os europeus até não eram bem
tornos fixos, parecem desapareer nas nuvens no céu poético
capazes de distinguir entre liberais e radicais; tudo pareceu
sobre as fazendas russas de Turgeniev. Nenhum dos seus
"niilista" e tudo muito simpático. Turgeniev é, realmente,
personagens, nem sequer o próprio Basarov, encontram-se
um autor capaz de sugerir simpatias. Muito influenciado
entre as criaturas imortais do romance moderno, nenhum
por George Sand, na qual aprendeu a combinação de ten-
é lembrado como tipo permanente da humanidade. Eis uma
dências sociais e ambientes bucólicos, Turgeniev era me-
das razões por que Turgeniev, famosíssimo entre 1860 e
nos exótico do que, até então, os russos foram imaginados; 1890, não sabia manter-se no lugar ao lado de Gogol, Gont-
tinha algo do humorismo de Dickens, um dos autores de charov, Tolstoi e Dostoievski. Abre-se exceção quanto às
sua predileção, mas sem vulgaridade alguma; era um aris- personagens femininas, desenhadas com a ternura de um
tocrata afrancesado, vivendo de 1855 a 1870 na mundanís- pastelista do rococó. Ali, assim como na descrição de pai-
sima estação de águas de Baden-Baden, depois em Paris, sagens outonais e das famosas "despedidas" dos persona-
sempre acompanhando a famosa cantora Pauline Viardot- gens, o artista Turgeniev é poeta; e como poeta tinha o di-
Garcia, à qual dedicou o amor mais fiel e infeliz; mantinha reito e até o dever de dar "meaning" em vez de "state-
relação de amizade com Flaubert, com o qual se parecia ments".
pelo cuidado da elaboração artística dos romances. Se T u r -
geniev foi incoerente na ideologia, não foi incoerente na Um poeta de 1860, porém, tinha mais outros deveres.
composição. Os seus romances são os mais curtos entre os Os parnasianos mais exclusivos da Inglaterra, estavam gra-
romances russos, construídos à maneira francesa: não são vemente preocupados com os problemas religiosos, filosó-
vastos panoramas, mas dramas rápidos. Pais e Filhos é, do ficos e sociais da época; incapazes de mudar o rumo da
ponto de vista da técnica novelística, uma das grandes evolução, advertiram pelo menos, e advertiram solenemente.
Neste sentido é Turgeniev um poeta vitoriano. Discutir
obras-primas do século XIX. Turgeniev é artista. Sempre
£is ideologias e a situação social dos ideólogos e antiideólo-
se disse isso para explicar a hostilidade dos russos contra
gos era para êle um dever de responsabilidade literária; e,
êle, acostumados à literatura propagandística, e, por outro
•ssim, criou o romance ideológico, o romance que preten-
lado, a admiração dos europeus, estetas requintados ou lei-
deu responder às perguntas: "De quem é a culpa?" e "que
tores ingénuos. Turgeniev é artista, quase do *Tart pour
fazer?". Realizou aquilo que os radicais exigiram. Mas
1'art"; as discussões ideológicas só têm para êle a mesma
HK suas respostas não eram satisfatórias; e nisso também é
importância dos caracteres humanos e das paisagens; e mais
Turgeniev um vitoriano, se bem que nas condições espe-
importantes que tudo isso são, para Turgeniev, as reminis-
2228 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2229

ciais da Rússia. Turgeniev era "senhor de engenho", pro- gens e moças meio esquecidas, sabendo que tem de despedir-
prietário de terras e aristocrata, no sentido restrito em que se, depois, para sempre. Toda a poesia de Turgeniev está
havia aristocracia na Rússia tzarista. Pertenceu à classe concentrada numa cena de Fumaça: o estudante Litvinov,
contra a qual se deu o golpe mortal, abolindo-se a servidão. observando a fumaça da locomotiva que se dissolve no céu
Os "senhores de engenhos" russos eram, porém» todos li- como uma nuvenzinha — "e tudo lhe parecia fumaça, tudo,
berais; como eles, Turgeniev era liberal, ocidentalista, li- a sua própria vida, a vida russa, toda a vida humana, e so-
vre-pensador. Com ele começa a típica "literatura dos se- bretudo a Rússia i n t e i r a . . . fumaça." É a poesia de despe-
nhores de engenho": liberais, agindo contra os seus pró- dida do homem irrealizado, infeliz como o próprio Turge-
prios interesses económicos. É a literatura dos Turgeniev, niev, o poeta das esperanças malogradas de pais e filhos.
Gontcharov, Tolstoi. A explicação dessa atitude suicida Pelo sentimentalismo, muito fino aliás, distingue-se
não é fácil. Lembra-se a atitude semelhante de muitos aris- Turgeniev de Flaubert. Não é implacável como o francês,
tocratas franceses do século X V I I I e a ab-rogação voluntá- nem para consigo, nem para com os outros; e esse sentimen-
ria dos privilégios na noite do 4 de agosto de 1789. Outros talismo é tipicamente pré-romântico, correspondendo qua-
falam em remorsos da classe dominante, remorsos que se- se sempre, como na segunda metade do século X V I I I , a
riam especificamente eslavos. Mas Turgeniev também te- uma fase de pré-industrialização. Aplicada a hipótese ao
ria sido o mais europeizado de todos! Na verdade, estava caso russo de 1860, significaria: "Com a abolição da ser-
na consciência da sua classe a impossibilidade de manter vidão, nós outros, senhores rurais, restaremos inúteis"; e
a situação antiga. Turgeniev, com o seu sentimento vito- os olhos enchem-se de lágrimas, que são conforme Schope-
riano de responsabilidade, procurou sucessivamente as so- nhauer, o sinal da compaixão para consigo mesmo. A car-
luções mais diferentes, com o resultado de aborrecer a to- reira literária de Turgeniev começa com o Diário de um
dos. Tolstoi, que lhe estava próximo, tratou-o como aris- Homem Supérfluo, iniciando uma literatura inteira de "su-
tocrata antiquado, inimigo do povo. Dostoievski, do outro pérfluos", filhos de senhores rurais; deu-se sentido social
lado da barricada, reconhecera a arrière-pensée reacionária à "superfluidade" de Eugênio Onegin. Quase no fim da
cm Pais e Filhos e estava entusiasmado; depois, desdenhou carreira literária de Turgeniev está o romance Terra Virgi-
a Turgeniev como "liberal afrouxado", caricaturando-o nal, em que Solomin opõe ao estudante niilista Nechdanov
como Stepan Verkhovenski, nos Demónios. Turgeniev per- uma tese inédita: a solução do problema agrário russo está
manecia no exílio francês, porque lá havia amigos; na sua na industrialização. O conflito de consciência em Turge-
própria terra, o exílio teria sido mais amargo. Compreende- niev e na classe à qual pertencia, é. o mesmo conflito dos
se porque leu muito Schopenhauer. O seu pessimismo era o burgueses da Inglaterra vitoriana. E assim como já ressus-
de um russo muito russo, mas desterrado. Nunca podia es- citavam vários grandes romancistas vitorianos meio esque-
quecer a terra russa — daí a poesia carinhosa, "proustiana", cidos, asism chegará o dia em que será redescoberto o valor
das suas evocações de paisagens russas, de moça;, russas que <lo grande Turgeniev, que exerceu tanta influência em
conhecera nos seus dias de estudante. Quaso c:r. todos os Henry James, Proust e até em Joyce. A poesia de Turge-
romances de Turgeniev uma ou outra cena ou até grande niev, algo romântica e um pouco parnasiana, guarda o en-
parte do enredo tem como teatro uma fazenda para a qual o canto da nostalgia dolorosa; no dizer de J a m e s : " . . . the
estudante volta da Universidade, em férias, revendo paisa- mlll sad music of Turgeniev."
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2231
2230 OTTO M A R I A CARPEAUX

O fenómeno da inconstância ideológica repete-se, en- A primeira obra de Saltykov, talvez a mais popular de
fim, em Saltykov-Chtchedrin ( 9 1 ), mas de maneira tão di- todas, são os Esboços da Província, contos e crónicas, que
satirizam a vida nas pequenas cidades do interior da Rússia,
ferente que revela uma modificação radical nas bases sociais
panorama implacável da corrupção dos grandes e pequenos
da literatura russa. Saltykov era grande aristocrata como
funcionários do governo e do sistema político e social in-
Turgeniev, mas déraciné num outro sentido: já tinha per-
teiro. Saltykov mantém-se, pelo assunto e pela maneira
dido o equilíbrio económico. Não vacilou entre soluções
caricatural de tratá-lo, na tradição que Gogol criara no Ins-
contraditórias, mas. mudou realmente de partido, e várias
petor-Geral e Almas Mortas. Mas os Esboços da Província
vezes. Começou como jornalista radical, namorando ideias
têm o único fim de desmoralizar o governo e excitar a in-
socialistas. Entrou no serviço público e fez carreira sur-
dignação geral. Dos motivos profundos de Gogol não há
preendente, chegando a desempenhar as altas funções de
vestígio. O objeto principal da sátira são "os senhores Pam-
governador das províncias de Riasan e Tver. Saiu do ser-
padours", quer dizer, os governadores de província — e
viço público por "incompatibilidade de temperamento", vol- poucos anos mais tarde será Saltykov governador de pro-
tando ao jornalismo, revelando-se como o crítico mais acer- víncia. Isso não o impediu de escrever a História de Uma
bo, mais mordaz que o regime tzarista jamais teve. Fêz Cidade Conforme os Documentos Originais, em estilo de
nova viravolta para o conservantismo, mostrando-se reacio- crónica medieval, sendo a cidade de Glupov (quer dizer,
naríssimo, de modo que a sua última obra, mais uma vez "cidade dos imbecis") uma alegoria da Rússia. Essa alego-
veementemente radical, já não foi levada a sério. Mais tar- ria satírica, a mais terrível da literatura universal, come-
de, alguns críticos explicaram as mudanças de Saltykov ça, como muitas epopeias clássicas, com um sonho proféti-
como, meros subterfúgios destinados a burlar a censura com co que revela aos três fundadores da cidade — a Rússia
a qual o escritor lutou durante 30 anos; talvez todas as suas foi fundada pelos três irmãos Rurik — a história futura de
atitudes não tivessem sido "sérias". Mas as obras de Salty- Glupov — e o sonho foi tão pavoroso pesadelo que dois
kov, que acompanham as suas mudanças, são muito sérias; dos irmãos logo se suicidaram. Ao terceiro, porém, disse o
compõem o "livro negro" da literatura russa. povo: "Que te importam as mentiras historiográficas que
os nossos netos vão aprender na escola?" E o irmão sobre-
vivente fundou o Império de Glupov, para "sistematizar e
91) Mikail Jevgrafovltch Saltykov (pseud. N. Chtchedrin), 1826-1888. codificar a desordem e a violência". E assim continua a
Esboços da Provinda (1856-/1857); Esses senhores de Tachkent história de Glupov até o dia em que um grande Imperador-
(1867/1881); História de uma Cidade Conforme os Documentos
Originais (1870); A Familia Golovliev (1877); Além da Fronteira Reformador assumiu o poder, proibindo a literatura, "mes-
(1880/1881); Crónica de Pochekhonia (1883.) mo a modesta literatura dos cronistas de cidade".
Edição: 3.a ed. da edição original, 12 vols., Petersburgo, 1918/1919.
Edição critica de obras escolhidas por A. Chebaiev e J. Eichen- Edições completas das obras de Saltykov só foram pu-
baum, 6 vols., Moscou, 1926/1928. blicadas depois da revolução de 1917. Até então, havia ape-
N. K. Mikhailovski: M. Chtchedrin. Petersburgo, 1891. (em
russo) Wk as edições expurgadas pela censura tzarista. A luta
A. Pypin: Saltykov. Petersburgo, 1899. (em russo). 'Jtllicla de Saltykov com a censura tem qualquer coisa de
A. M. Mendelson: Michail Jevgrafovitch Saltykov. Moscou, 1925
(em russo). Co; é a luta do homem contra a burrice eterna. Mas os
N. Sthelsky: Saltykov and the Russian Squire. New York, 1940. ores não perceberam nada de perigoso na História de
S. A. Makachin: Saltykov-Chtchedrin. Moscou, 1949. (em russo).
2232 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2233
Uma Cidade e deixaram passar a sátira monstruosa. Con-
tudo, estavam tão acostumados a descobrir alusões em Sal- uma transição social. Essa obra, talvez a mais negra da li-
tykov, que lhe maltrataram e truncaram sobretudo as obras teratura russa, é documento de uma possibilidade perma-
nas quais a tendência era evidentemente reacionária. De- nente das relações familiares, e, mais do que isso, o do-
pois da emancipação dos servos havia uma fase de prospe- cumento de uma convicção filosófica do romancista: a
ridade efémera, fundação de numerosas indústrias e estra- grande reforma não melhorou nada, os homens continuam
das de ferro, especulação na Bolsa, venda vertiginosa de sempre os mesmos infames e imbecis. T u d o fica no mes-
ações de empresas na Ásia Central, recém-conquistada pe- mo, na Rússia e no mundo.
las tropas russas. Saltykov comentou essa evolução em Em face dessa convicção, a única à qual Saltykov ficou
Esses Senhores de Tachkent, caricaturando os financistas fiel durante a vida inteira, as suas mudanças de atitude po-
e, com eles, os utilitaristas e reformadores; reconheceu a lítica perdem muito em importância. Saltykov satiriza a
relação entre a mobilização do capital agrário e as ideolo- tudo e a todos na Rússia, porque tudo é ruim, irremediavel-
gias radicais. E em Além da Fronteira zombou dos exila- mente. Acumula as negações: "Nada não presta para nada".
dos que conspiravam, longe do perigo, nos cafés de Zuri- A sátira de Saltykov dirige-se contra o género humano in-
que e Genebra, e dos "exilados" que falaram mal da pátria teiro e contra a sua variedade russa em particular, assim
nas elegantes estações de águas da Alemanha meridional e como Swift — a comparação entre Swift e Saltykov é
da França. Enfim, Saltykov pareceu arrepender-se. Deu a usual — lançou os seus panfletos contra os ingleses em
Crónica de Pochekhonia, evocação poderosa dos tempos da particular e contra o género humano "in totum". A compa-
servidão, mostrando criaturas humanas na humilhação mais ração com Swift, as mais das vezes só empregada com res-
profunda. Mas a Crónica de Pochekhonia não é um do- peito ao estilo, abre vastas perspectivas. Swift tampouco
cumento de amor à humanidade. Disso era incapaz o psicó- mereceu a confiança dos homens do seu partido, porque, as-
logo cruel do conto "Spleen", retrato psicológico perfeito sim como Saltykov, notou, com olhos penetrantes, o mal
do romantismo dos senhores rurais, tão imbecis como todos em toda parte. Swift é, no fundo, um niilista; Saltykov é,
os outros. A Crónica de Pochekhonia é o pendant neces- entre tantos que se chamaram ou foram chamados "niilis-
sário de uma obra precedente: o romance A Família Go- tas", o único niilista verdadeiro da literatura russa. No seu
lovliev. É o único verdadeiro romance do polígrafo e ocupa conto O Pobre Lobo uiva o sofrimento de toda a criatura,
lugar isolado na sua produção imensa: é o estudo psicoló- sofrimento que. acabará só com a destruição da criação ma-
gico de uma família de réprobos, sobretudo do chefe da lograda. Como todos os grandes pessimistas que não con-
família, Juduchka, mistura monstruosa de avarícia, hipo- fiavam nos homens, Saltykov é conservador; mas um con-
servador sem confiança no passado, um conservador-des-
crisia, crueldade, infâmias de toda a espécie. O intuito do
truidor. A sua ideologia não está muito longe da de Bal-
romancista torna-se evidente: pretende demonstrar que os
zac; as suas conclusões aproximam-se das dos intelectuais
vícios dos senhores, adquiridos durante a época da sua
radicais. Desse modo, o escritor essencialmente reacioná-
dominação absoluta sobre as almas e corpos dos campone-
rio tornou-se o ídolo dos intelectuais que se constituíram
ses-escravos, se perpetuam depois da emancipação, transfor-
cm classe para realizar as suas ideias: a "Intelligentzia". A
mando os carrascos físicos de antes em vítimas morais de-
f.jUira de Saltykov contribuiu para uma nova interpretação
pois. Mas A Família Golovliev não é só o documento de
<la sátira de Gogol: O Capote, visto através da Família
2234 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2235
Golovliev, tornou-se modelo de uma nova "literatura de desgraçada dos tradicionalistas. Só então se prestou a de-
acusação". vida atenção aos romances de Alas, sobretudo a La Regenta,
O mundo europeu de 1860 não tomou conhecimento de um dos romances mais poderosos do século XIX, retrato
Saltykov. Mas ter-lhe-ia compreendido o .pessimismo. J á duma mulher católica, personagem dominadora, que se per-
estava no fim de um ciclo, voltando ao pessimismo socioló- de nas nuvens de um falso misticismo; o fundo é constituí-
gico de Balzac. Revela-se a possibilidade de um romance do pelo panorama minuciosamente descrito de uma cidade
realista de tendência conservadora; e tornar-se-á possível, de província espanhola, vida entre os dois pólos da Cate-
no tempo de Zola, até um romance naturalista de tendência dral e do Cassino. Os admiradores modernos preferem, no
cristã e católica. entanto, o outro romance, Su único hijo, em que é mais evi-
A possibilidade desse compromisso, mais um "compro- dente a imitação dos processos novelísticos de Flaubert, ao
misso vitoriano", está manifestado no grande escritor espa- passo que o resultado do processo, em Alas, está mais per-
nhol que assinou com o pseudónimo jocoso "Clarin", nome to de Ferdtnand Fabre. Esta última comparação também
do palhaço na comédia clássica: Leopoldo Alas ( l)2 ). Cla- pretende indicar que Alas não é um radical. O crítico jo-
rin tornou-se famoso pelos Folletos e Paliques, artigos coso dos poetastros académicos poupou de maneira inexpli-
destinados, em sua maioria, aos jornais humorísticos da ca- cável as falsas celebridades literárias da Restauração, os
pital que divulgaram as sátiras mordazes do solitário pro- Campoamor e Echegaray. Ao "modernismo" anti-romântico
fessor da Universidade de Oviedo. A Espanha viveu os opôs o culto, embora culto particular, de Victor Hugo. Re-
dias da Restauração monárquica, aburguesamento cinzento velou, no comovente conto Adiós, Cordera, a mais profunda
simpatia para com o povo espanhol, sempre sacrificado; mas
disfarçado de carnaval histórico da coroa de Castela. Cla-
também zombou dos republicanos fanáticos. Falou de crí-
rin perturbou o silêncio satisfeito, distribuindo golpes sa-
tica da Bíblia; mas confessou-se profundamente comovido
tíricos para todos os lados, sobretudo contra a política con-
perante os ritos da Igreja romana; e escreveu El Serlor,
servadora. Mas também revela bons conhecimentos da mo-
impiedosa análise psicológica do caso erótico de um padre,
derna ciência francesa e alemã, sobretudo da crítica anti-
mas o desfecho do conto é de autêntica elevação mís-
teológica. Defende Renan contra os ataques de um acadé-
tica. Alas-Clarín é modernista e tradicionalista ao mesmo
mico católico. O anticlericalismo — só aparente, aliás —
tempo. A última palavra da sua sabedoria encontra-se em
de Alas tornou-o simpático à geração seguinte, aos "homens
um dos seus "cuentos morales", "El sombrero de senor
de 1898" que pretenderam reformar a Espanha antiquada e cura": o vigário de aldeia tornou-se' objeto de mofas pelo
seu sombreiro antiquado; mas, alguns anos mais tarde» já
92) Leopoldo Alas (pseud. Clarin), 1852 — 1901. ninguém zomba do mesmíssimo sombreiro, que voltou a ser
La Regenta (1884); Novelas cortas (1886); Folletos literários "le dernier c r i " da moda. O realismo abriu os olhos a Leo-
(1886/1891); Su único hijo (1890); Palique (1893); Cuentos mora-r
les (1896); El Gallo de Sócrates (1901), etc. poldo Alas para ver o necessário no novo, e no antigo o eter-
Azorfn: "Leopoldo Alas". (In: Clássicos y Modernos. Madrid, 1913.) no. Conseguiu o equilíbrio perfeito dos poucos grandes hu-
P. Sainz Rodriques: Discurso sobre Clarin. Oviedo, 1921.
J. A. Balseiro: "Leopoldo Alas". (In: Novelistas espaúoles con- moristas da literatura universal.
temporâneos. New York, 1933.)
J. A. Cabezas: Clarin. El provinciano universal. Madrid, 1936.
C. Clavería: Cinco estúdios de literatura moderna. Madrid, 1949. Humor assim é raro, mas Alas não estava tão isolado
A. Brent: Leopoldo Alas and "La Regenta". Columbia, Mo., 1951. Como nos parece na perspectiva de hoje. Estava demonstra-
2236 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2237

da a possibilidade de lutar com armas modernas pelos ideais clórico elevou-a uma psicologia penetrante, herança menos
antigos; e, justamente na Espanha, essa atitude balzaquiana do naturalismo do que do catolicismo.
foi adotada por mais de um católico. Primeiro pelo jesuíta A superficialidade das relações entre estilo e ideologia
Coloma ( 03 ), tradicionalista literário como * sua mestra está ainda mais acentuada em duas escritoras italianas
Fernán Caballero, depois realista sensacional no famoso ro- que seguiram caminhos parecidos. Matilde Serao-Scarfo-
mance Pequeneces, diatribe satírica contra a sociedade grã- glio ("5), depois de ter escandalizado a sociedade italiana
fina de Madrid. Obra de um padre insatisfeito com os pela descrição de cenas eróticas, ganhou fama europeia pe-
meios tradicionais da propaganda eclesiástica, mero inci- los seus romances da vida napolitana. Era a época na qual
dente numa carreira literária, composta de livros infantis as viagens para a Itália se tornaram baratas; os recém-ca-
e romances históricos. Assim como o padre Coloma erigiu sados povoaram Veneza, os peregrinos encheram Roma e
o monumento literário a Fernán Caballero, assim o seu pró- os artistas Florença, e todo mundo repetiu em coro as can-
prio monumento literário foi erigido pela Condessa Emilia ções napolitanas nas festas do Posilippo. Os romances da
Par d Bazán ( 94 ), outro "enfant terrible" da grande socie- Serão, naturalistas mas evitando cuidadosamente os "ex-
dade espanhola; e ela, livre das limitações do padre, já con- cessos", fixaram a imagem tradicional da Nápoles pobre,
fessou a influência irresistível de Zola. A Condessa Pardo suja e alegre, Paese di cuccagna de proletários, vítimas do
Bazán lutava galhardamente pelo naturalismo na literatura jogo e da "questione meridionale". As causas dessa questão
e pelo feminismo na vida social. O tom moralizante do je- — quer dizer, do abandono administrativo e económico da
suíta estava fora das suas cogitações. Os contemporâneos Itália meridional — encontravam-se em Roma; e em dois
só perceberam, assustados, o zolaísmo em vigorosos roman- grandes romances descreveu Matilde Serão o ambiente da
corrupção parlamentar e jornalística na nova capital. São
ces regionalistas, como Los Pazos de Ulloa e La madre na-
hoje documentos históricos, evocando a época constitucio-
turaleza. As tendências conservadoras da escritora perce-
nal do reino da Itália, assim como se tornaram documentos
bem-se melhor na distância. O que ficou é a arte de uma
históricos, já algo empalecidos, aqueles romances napolita-
grande paisagista, às vezes rude, espécie de Pereda da
nos. Maltide Serão converteu-se depois ao catolicismo, ade-
Galícia. Acima da mera descrição do ambiente físico e fol- rindo às doutrinas de Bourget, perdendo todo o vigor da sua
fase naturalista. Ficaram, como no caso da Pardo Bazán, mas
em grau menor, os aspectos evocativos, destacando-se os dra-
93) Luis Coloma, 1851 — 1915. mas da vida dos humildes nos contos da escritora. Matilde
Pequeneces (1891); Boy (1895); La reina mártir (1901). Serão sempre revelara o coração de uma mulher idealista
E. Pardo Bazán: El padre Luis Coloma, biografia y estúdio crí-
tico. Madrid, 1916.
94) Emilia Pardo Bazán, 1851 — 1921.
Los Pazos de Ulloa (1886); La madre naturaleza (1887); MorriUa 95) Maltide Serao-Scarfoglio, 1856 —1927.
(1889); Cuentos de Marineãa (1892).
A. Andrade Coello: La condesa Emilia Pardo Bazán. Quito, 1922. Fantasia (1883); II ventre di Napoli (1884); La conquista di Roma
J. A. Balseiro: "Emilia Pardo Bazán". (In: Novelistas espaUoles (1885); Vita e avventure di Riccarão Joanna (1886); Racconti
contemporâneos. New York, 1933.) napoietani (1889); 11 paese di cuccagna (1890);. Evvíva la vita
G. Brow:Lo vida y las novelas de dona Emilia Pardo Bazán. (1909), etc.
New York, 1940. R. Garzia: Matilde Serão. Rocca S. Casciano, 1916.
B. Oroce: "Matilde Serão". (In: La Letteratura delia Nuova
E. González López: Emilia Pardo Bazán, novelista de Galicia. New Itália, vol. H l . 3.» ed. Bari, 1929.)
York, 1944. M
2238 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITEBATURA OCIDENTAL 2239

e maternal; a conversão só afirmou um credo. O mesmo Hann ( " ) , a "George Sand alemã", cuja conversão em 1850
credo idealista é assunto permanente nos romances da es- também foi julgada como acesso de romantismo; mas em
critora lombarda que escolheu o pseudónimo Neera ( 0 6 ) : 1850, as conversões românticas já passaram de moda, e o
gozou de um curto momento de celebridade europeia para aristocratismo orgulhoso da condessa, descendente de uma
logo passar a ser considerada como autora dê romances an- grande família feudal do Mecklemburgo, tem significação
tiquados para divertimento dos "bien pensants". Depois, especial. Iniciou ela uma voga de conversões naquela re-
só o velho Benedetto Croce se lembrou de Neera; e a re- gião protestante e feudalíssima da Alemanha; e entre os
leitura confirmou-lhe os conceitos. La vecchia casa é uma convertidos encontrou-se o Barão Vogelsang, fundando,
obra flaubertiana às avessas: a heroína, sentindo ódio ins- depois, em Viena o poderoso partido católico que defendeu
tintivo contra a irmã mais nova, descobre nos papéis do os interesses da pequena burguesia contra a grande burgue-
adorado pai, já morto, a origem do seu sentimento; a irmã sia liberal: "cristianismo social", talvez errado, mas signi-
é fruto do adultério da mãe. Neera recusou o zolaísmo, ficativo como oposição.
então dominando a Itália. E r a realista, conservando os cri- São, todos eles, figuras isoladas. Mas havia delas em
térios morais do passado, superando assim a mentalidade toda a parte. A literatura dinamarquesa, apesar de pos-
antiilusionista da época. suir Ewald, Oehlenschlaeger, Aarestrup, Drachmann, não
E m todos esses escritores, a superficialidade da rela- produziu poeta mais sério do que Paludan-Mueller ( 1 0 °), o
ção entre estilo literário e ideologia moral, ou então a ca- autor de Adam Homo, poema épico-satírico, história de
sualidade do contato é evidente. Quase se parecia confir- um homem que vendeu a própria alma para chegar a honras
mar a opinião dos eslavófilos e pan-eslavistas russos, de- e fortuna. Parece estranho que Paludan-Mueller tenha em-
fendida por Dostoievski, de que o cristianismo europeu es- pregado uma forma romântica — o poema satírico à manei-
tava morto ou agonizante. Mas foi um erro. O cristianismo ra de Byron — para denunciar o romantismo das vitórias
só se encontrava acanhado, continuando à margem da socie- fáceis; porque a tendência parece dirigir-se contra o oti-
dade burguesa. Mas continuou vivo, menos como ingre- mismo do Aladdin de Oehlenschlaeger. Paludan-Mueller
diente do "compromisso vitoriano" do que em alguns es- não visava, porém, o próprio o Aladdin, e sim os "filhos de
píritos isolados, chegando às vezes à franca oposição con- Aladdin", os que traíram os ideais românticos para vencer
tra a sociedade.
Podem-se citar os nomes de Tommaseo (° 7 ), na Itália,
e de Marceline Desbordes-Valmore (° 8 ), na França; e a 99) Ida Graefin Hahn-Hahn, 1805 — 1880.
Graefin Faustine (1841); Aus der Gesellschatt (1844), etc.
quem pretende explicar tudo nesses casos como romantis- A. Jacoby; Ida Graefin Hahn-Hahn. Mainz, 1844.
mo atrasado será lembrado o nome da Condessa Hahn- 100) Frederik Paludan-Mueller, 1809 — 1876.
Amor og Psyche (1834); Adam Homo (1841/1848); Lujtskipperen
og Atheisten (1853); Ahasverus (1853); Kalamus (1854); Bene-
96) Neera (pseudónimo de Anna Radius Zuccari), 1846 —1918. áikt af Nurcia (1861); Paradiset (1862); Ivar Lukkes historie
Teresa (1886); Anima sola (1894); La vecchia casa (1900), etc. (1866/1873); Adónis (1874).
B . Croce: "Neera". (In: La Letteratura delia Nuova Itália, vol. Edição por V. Andersen, 3 vols., KJoebenhavn. 1909.
III. 3.» ed. Bari, 1929.) F. Lange: Paludan-Mueller. KJoebenhavn, 1899.
97) Cf. "Romantismos de Evasão", nota 94. V. Andersen: Paludan-Mueller. 2 vols. KJoebenhavn, 1910.
H. Martensen-Larsen: Den virkelige Paludan-Mueller. KJoebe-
38) Cf. "Pontos de Partida do Romantismo", nota 55. nhavn, 1924.
2240 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2241

em carreiras burguesas. A ideia é profundamente cristã; garam a preferi-la ao famoso irmão. A leitura das poesias
e Paludan-Mueller não cessou de opor os ideais cristãos habitualmente representadas nas antologias não confirma
aos apetites desordenados do tempo. Em Kalamus apresen- este juízo. "A Birthday" ("My heart is like a singing
tou um asceta indiano, em Benedikt ai Nurcia o patriarca b i r d . . . " ) , " W h e n I am dead", "Remember" são poesias
dos monjes ocidentais. Enfim, o velho poeta, vindo dos muito belas, cheias de sentimento sem sentimentalismo, de
tempos do romantismo, reconheceu solenemente o reino da uma facilidade de expressão que lembra a poesia popular,
prosa, escrevendo um ronfance, Ivar Lykks historie, novo mas por isso mesmo inferiores à arte consumada de Dante
e último protesto contra o "espírito do tempo", seja liberal, Gabriel Rossetti. Outras poesias, menos divulgadas, mo-
seja radical. Paludan-Mueller, em função do seu cristianis- dificam a impressão. Os admiradores mais apaixonados da
mo radical, está perto do seu contemporâneo Kierkegaard; poetisa, Swinburne, Saintsbury, De la Maré, reabilitaram-
e Adam Homo exerceu influência sobre o Peer Gynt. Quer Ihe a memória, colocando "Sleep at Sea", "Avent", "Goblin
dizer, Paludan-Mueller é um dos primeiros escritores eu- Market" entre os maiores poemas religiosos da língua. Com
ropeus que duvidaram da razão de ser moral da burguesia, efeito, "Passing Away" seria digno de George Herbert, de
preparando o caminho do poeta que colocará a burguesia, um Herbert moderno; só depois da experiência romântica
perante a "exigência moral". Também é significativo o f i t o podia ser escrito um yerso como este de " T h e One Cer-
de o protestante rigoroso ter evocado a figura do grande tainty":
monge; os poetas cristãos da época revelam todos, mesmo " . . . A n d morning shall be cold and twilight grey."
quando protestantes, inclinação ao catolicismo, que se en- Às vezes, o leitor de Christina Rossetti tem a impressão
contrava, por assim dizer, fora da sociedade moderna e pa- irresistível de que as suas maiores poesias nunca foram es-
recia, por isso, mais oposicionista. critas; que só estão lembradas nas entrelinhas das poesias
Essa inclinação contribuiu para a conversão de New- existentes, fatalmente inferiores:
m a n ; e continuou entre os anglo-católicos, no meio dos
quais surgiu, no entanto, a maior poetisa religiosa do an- " W i t h stillness that is almost Paradise.
glicanismo, Christina Rossetti ( 1 0 1 ). E m vida, foi eclipsada Darknesse more clear than noonday holdeth her,
pelo irmão Dante Gabriel Rossetti; depois, os seus admi- Silence more musical than any song."
radores conseguiram destronizar Elizabeth Barret-Brown-
ing, proclamando Christina a maior poetisa inglesa; e che- É a confissão de um místico autêntico.
Outra confissão de Christina Rossetti está no começo
do "Bride S o n g " :
101) Christina Georgina Rossetti, 1830 — 1894.
Góblin Market and Other Poems (1862); The PrincCs Progress
anã Other Poems (1866); A Pageant anã Other Poems (1881). "Too late for love, too late for joy,
Edição por W. M. Rossetti, London, 1904.
D . M. Stuart: Christina Rossetti. London, 1930. Too late, too late!"
E. Biikhead: Christina Rossetti anã Her Poetry. London, 1930.
E. W. Thomas: Christina Georgina Rossetti. New York, 1931.
I M. Zaturenska: Christina Rossetti. A Portrait vAth Background. Depois de duas experiências infelizes, a poetisa renuncia-
New York, 1949. ra ao amor terrestre, levando uma vida de freira voluntária,
M. Sawtell: Christina Rossetti. Her Life and Religion. Londoa.
1955. assim como o anglo-catolicismo desejava restabelecer a ins-
2242 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2243

tituição monástica dentro da Igreja anglicana. Daí foi só "Publication is the auction
um passo para a conversão que abrirá novas perspectivas, Of the mind of m a n . . . "
nem todas ascéticas. Patmore deu esse passo. A americana
Só depois da sua morte editaram-se as poesias, mais de
Emily Dickinson ( 1 0 2 ), filha da terra puritana da Nova-
oitocentas — e continuam a publicar-se inéditas — todas
Ingiaterra, não era capaz de dá-lo; tornou-se cristã de uma
de laconismo epigramático, logo reconhecidas como do-
espécie singular e poetisa das maiores de tocTos os tempos,
cumentos de uma extraordinária experiência religiosa, e
A única experiência erótica da sua vida, amor a um ho-
por isso, no início, mais estudadas pelos professores de psi-
mem casado do qual escrúpulos justificados a afastaram, cologia do que pelos poetas. Ainda há quem defenda esse
deixou-a perplexa para sempre. Até então, fora a única re- ponto de vista — a psicanálise forneceu argumentos. Mas
voltada no seio da sua família da mais pura ortodoxia cal- Louis Untermeyer, crítico de poesia, já falou da "colossal
vinista; agora, parecia passar além de todos os preconceitos substance" da obra de Dickinson, na qual nenhuma linha
ascéticos do puritanismo, fechando-se na sua casa de Am- seria dispensável. Emily Dickinson não é, ou não é só, um
herst, pequena cidade de Massachusetts, mantendo contato "caso" psicológico. É considerada, hoje, como o maior
com o mundo apenas través da correspondência com poucos poeta americano. Não inspirará nunca admiração perplexa,
amigos, nem sequer recebendo visitas. Aquelas cartas re- como Poe, nem será tão popular como Whitman. É poesia
velam o mesmo espírito insubmisso da sua mocidade, quan- para os poucos "poet's poetry".
do ela se recusava a "mortificar-se num dia tão alegre A sua obra poética é das mais originais em língua in-
como o de Natal". Emily Dickinson era mesmo alegre, es- glesa, quase sem analogias. Emily Dickinson gostava de
pirituosa até a mordacidade — mas isso também acontece Robert Browning, talvez mais do seu otimismo do que da
em velhas tias, e assim ela foi considerada pelos parentes. sua poesia, e mais da poesia de Emerson, poesia filosófica
Escreveu poesias, é verdade, mas não quis publicá-las, pelo e epigramática como a sua. O amigo com o qual ela se cor-
pudor antiexibicionista que herdara dos antepassados: respondia sobre poesia, era o emersoniano Thomas W e n t -
worth Higginson, que em vão tentou ensinar-lhe uma lin-
guagem mais correta e expressão mais sentimental, mas que
a fortaleceu na religiosidade alegre, a puritana, quase pan-
102) Emily Dickinson, 1830 — 1886.
Poems (1890): Further Poems (1929); Bolts of Melody (1945). teísta. Emily Dickinson experimentou verdadeiros êxtases
Edição por M. Dickinson Bianchi e A. Leete Hampson, New diante da Natureza; tudo adquiriu,-para ela, significação
York, 1937 (2.a ediçfio, aumentada, London, 1947).
M. Dickinson Bianchi: The Life and Letters of Emily Dickinson. mística. Mas nada de romantismo. A inteligência poética,
New York, 1924. agudíssima, de Emily Dickinson não deixou passar nenhu-
A. Tate: Reactionary Essays on Poetry and Ideas. New York, ma palavra sem sentido exato; doutro lado, excluiu as afir-
1936.
G. Taggard: The Life and Mind of Emily Dickinson. New York, mações de natureza lógica, próprias da ''poesia filosófica",
1938. didática, chegando assim ao laconismo de oráculos poéticos
G. F. Whicher: This Was a Poet. New York, 1938. que nem sempre é possível decifrar. No afã de dar só poe-
H. W. Wells: Introduction to Emily Dickinson. Chicago, 1947. r.ia essencial, escolheu as formas mais elementares, quadras
R. Chase: Emily Dickinson. Boston, 1952.
R. Patterson: The Riddle of Emily Dickinson. Boston, 1952. .i maneira dos provérbios rimados do povo, mas duma in-
M. Todd Bingham: Emily Dickinson. A Revelation. New York,
1954.
2244 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2245

tensidade extraordinária, densas como condensações de poe- poeta anglo-saxônico, Coventry Patmore ( 1 0 3 ), conseguiu
sias mais longas, como estenogramas. A vítima dessa téc- resolvê-lo pela conversão ao catolicismo. Dando esse pas-
so, saiu da sociedade inglesa do século XIX, tornando-se
nica poética é a gramática,
contemporâneo de Dante, com o qual revela certo parentes-
co estranho. Mas abraçando o dogma que toma a sério a
" . . .1 only said the syntax, , santificação das coisas terrestres pela Encarnação, tornou
And left the verb and the pronoun out". inexistente aquele conflito erótico. A obra principal de
Patmore, o poema The Angel in the 11 ouse, foi um dos
A poesia de Emily Dickinson está cheia de elipses violen- maiores, talvez o maior sucesso de livraria de um livro de
tos, como de uma visionária que tem que contar coisas ine- poesia no século X I X . É uma glorificação do matrimónio,
fáveis e só o pode fazer balbuciando; as fraquezas mesqui- e os ingleses consideravam-no como o Cântico dos Cânti-
nhas da língua humana não importam. Visionária Emily cos do "nome, sweet home". É um poema fraco, de senti-
Dickinson era; viu até as profundidades do Céu e os abis- mentalismo excessivo, hoje quase ilegível. Da antiga fama
mos do Inferno. Com razão, porém, Van W i c k Brooks sa- de Patmore salvaram-se, nas antologias, algumas pequenas
lientou, ao lado da visão, a miopia da poetisa, velha tia, poesias avulsas como " T h e Revelation", "Magna est Veri-
tas", "Heaven and Earth", destacando-se versos extraordi-
usando óculos que lhe permitiram ver com exatidão minu-
nários, como este:
ciosa as pequenas coisas desta Terra. Contradição daquelas
das quais nasce, conforme I. A. Richards, a grande poesia.
No começo, Emily Dickinson tentou eliminar pela ironia " . . . angels, mirth
os obstáculos terrestres da sua visão poética. Depois, jun- Is one in cause, and mode, and kind
W i t h that which they profaned on earth."
tou os dois mundos por meio duma espécie de trocadilhos
— e reconhece-se a maneira meio mística meio chistosa dos
Eis aí o poeta místico, o "Píndaro cristão" das grandes
"metaphysical poets" do século X V I I , de Donne e Herbert.
odes, pouco conhecidas, como "To the Body", com o verso
A religião de Emily Dickinson não era, evidentemente, a
final, entusiasmado.
mesma. Não era anglo-católica, e sim filha de puritanos "Quick, tender, virginal, and unprofaned." A fé de
americanos. A Natureza, na sua poesia, é, conforme a ob- Patmore era a santificação do amor físico pelo amor divino.
servação de Allan Tate, um símbolo da Morte. Mas todo
o esforço da poetisa visava à transfiguração desse fato si-
nistro em acontecimento puramente interior, místico: 103) Coventry Patmore, 1823 — 1896.
Poems (1844); The Angel in the Hou.se (18B4/185B); The Un-
know Eros (1877).
" P a r t i n g is ali we know of heaven, Edição por B . Champneys, 5.a ed., London, 1038.
E. Gosse: Coventry Patmore. London, 190B.
And ali we need of hell." O. Burdett: The Idea of Coventry Patmore. Oxford, 1921.
F. Page: Patmore, a Study in Poetry. Oxíord, 1933.
D. Patmore: The Life and Times of Coventry Patmore. Lon-
Enquanto realmente há "caso", irresolúvel e irresolvi- don, 1949.
C. J. Oliver: Coventry Patmore. New York, 1958.
do, em Christina Rossetti e Emily Dickinson, um outro J. C. Reid: The Mind and Art of Coventry Patmore. London, 1958.
2246 OTTO MABIA CARPEAUX HISTÓBIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2247

Patmore é, na literatura de todos os tempos, o grande poeta tos eram inevitáveis; e repeliram-se quando Gezelle tentou
do amor conjugal. E i s o sentido daquele grande poema, fomentar o sentimento nacional flamengo entre os semina-
oposto e no fundo incompreensível à época vitoriana de ristas. Foi gravemente advertido e, depois, destituído do
homens e mulheres assexuados pelo cant. Patmore era mís- magistério; devia levar, durante decénios, a vida de um po-
tico. E m outra obra, Sponsa Dei, pretendeu dar, em forma bre pároco de aldeia. Assim como esse nacionalismo fla-
doutrinária, uma analogia minuciosa do "amor entre Deus mengo, em conflito com o Estado e a Igreja afrancesados,
e alma e do amor entre homem e mulher. Quem lhe aconse- é diferente do nacionalismo catalão em conflito com o Es-
lhou destruir o manuscrito foi Gerard Manley Hopkins, o tado e a Igreja da Castela, assim a poesia de Gezelle é di-
mesmo que devia realizar aquilo a que Patmore aspirava; ferente do romantismo exaltado e das formas artificiais,
mas Hopkins só foi reconhecido em 1918, duas gerações de- parnasianas, de Verdaguer. Gezelle abandonou logo o sen-
pois da sua morte. A época vitoriana não suportava "The timentalismo romântico, algo lenauiano, da sua primeira
Revelation". coleção Kerkhofbloemen. Adotou o tom simples da poesia
i popular, mas depositou nesses Gedichten, Gezangen en Ge-
Cristianismo radical tomou, naquela época, fatalmente, beden despretensiosos um amor extático à natureza, ao sol,
uma feição oposicionista; e poesia é, por definição, radical. "obra esplêndida de mãos venerandas" —
ft característica a existência de poetas-sacerdotes que, sem
"O heerlijk handgedaad van hoogst eerweerde han-
sair da fé dogmática, entraram em conflito com a própria
den" — ao silêncio das noites de inverno, quando a neve
Igreja. Um deles era Verdaguer ( 1 0 4 ), o místico catalão.
"jaz sobre o agro do mundo" —
Outro é Gezelle ( 1 0 5 ), o místico flamengo, que já foi com-
parado àquele, se bem que as analogias sejam poucas. Ge-
"Een witte spree
zelle, professor de seminário em Bruges e outras pequenas
ligt overal
cidades de Flandres, ousou escrever versos em língua ho-
landesa, numa época na qual a Bélgica estava inteiramente gespreid op's werelds akker".
afrancesada e o alto clero apoiava a situação que conde-
nava os flamengos a constituir uma massa muda. Os confli- É como nos quadros flamengos do século X V : sobre as
aldeias abre-se o céu da fé gótica, tendo o pintor a visão de
todos os anjos cantando. Gezelle era uma natureza francis-
104) Cf. nota 46. cana, a sua poesia é "cântico do sol e despedida"—
105) Guido Gezelle, 1830 — 1899. "Zijn Zonnelied en afscheid van de wereld." Sendo
Kerkhojbloemen (1858); Gedichten, Gezangen en Gebeden (1862);
Tijdkrans (1893); Rijmsnoer (1897); Laatste verzen (1899). um dos poetas mais independentes e mais completos do
Edição por A. Vermeylen, Fr. Baur e outros, 11 vols., Antwerpen,
1930/1940. Béculo XIX, Gezelle criou, ou antes, ressuscitou uma litera-
H. Rommel: Un poète-prêtre. Guião Gezelle. Bruxelles, 1900. tura que dormira desde muitos séculos, a literatura flamen-
G. L. van Roosbroeck: Guido Gezelle, the Mystic Poet of Flanders.
Vinton, Io., 1919. ga; e isso o coloca, de longe, ao lado de Mistral. Mas
• A. Walgrave: Het leven van Guião Gezelle. 2 vols. Amsterdam, o fato característico da sua vida é aquele conflito, que não
1923/1924.
A. Schillings: Guido Gezelle, ãe mensch en de dichter. Antwer- •« originou da sua mística e só aparentemente do seu na-
pen, 1930. lonalismo. Gezelle era cristão extratemporal; seu m u n d o
M. Willems: Guido Gezelle. Bruxelles, 1944.
2248 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2249

não o suportava. Fatalmente, o cristão autêntico devia estar Baudelaire. Na verdade, a boémia quase é a consequência
em oposição ao "compromisso vitoriano". inevitável da situação social do aristocrata decaído, quando
Por isso, esses cristãos em oposição podiam adotar for- intelectual; e isso também é importante para compreender
mas literárias pouco gratas aos bien-pensantes; o realismo a "oposição católica" inteira. Enfim, aquelas frases foram
flaubertiano e até o naturalismo zolaiano. De Barbey escritas, por Barbey d'Aurévilly, em defesa do seu estilo
d'Aurévilly ( 10c ) só se lêem hoje os escritos de crítica lite- naturalista contra os ataques do católico conservador Veuil-
rária. Mas não sabia interpretar com imparcialidade obras lot; e isso prepara os futuros conflitos entre a "oposição
alheias, e os seus julgamentos são as mais das vezes injus- católica" e o próprio catolicismo.
tíssimos. Mas era um grande escritor, vigorosíssimo, e os Esses conflitos anunciam-se em Hello ( 1 0 7 ). Na litera-
seus ataques, quase se diria ataques de cavalaria, contra Zo- tura universal, Hello sobreviverá devido à menos conhecida
la e contra o naturalismo em geral, guardam o valor do ' T a r t das suas obras, o volume Contes extaordinaires; contos hof-
pour 1'art" polémico de um jornalista extraordinário. Ata- fmannescos, de tendência marcada, que se poderia chamar
ques injustificáveis aliás, porque o próprio Barbey d'Au- "social-cristã". O conto "Ludovic" — história de um ca-
révilly, como romancista, adotou o estilo do inimigo. "J'ai pitalista que adorava o dinheiro como a um deus e que en-
usé de cette grande largeur catholique qui ne craint pas louqueceu porque esqueceu a palavra "Deus", que abre a
de toucher aux passions humaines, lorsqu'il s'agit de faire fechadura do seu cofre — é um símbolo magistral. Hello é
trembler sur leurs suites; romancier, [il a] accompli sa ta- hoje famoso comp escritor apologético contra o espírito da
che de romancier, qui est de peindre le coeur de l'homme sua época; através de Bloy, o "renoveau catholique" na
ÍÍUX prises avec le péché, et il l'a peint sans embarras et França está em relação com êle; e assim se esqueceu o con-
sans fausse honte." A citação serve para refutar um bien- flito do seu misticismo estranho com o dogma ortodoxo.
pensant como H e n r y Bordeaux, pretendendo reduzir Bar- A solução, quer dizer, a derrota deu-se em António
bey a um " W a l t e r Scott normand". Regionalista vigoroso Fogazzaro ( 1 0 8 ). Quando, por volta de 1904, rebentou o
êle era; mas o seu desembaraço veio do estilo boémio da conflito entre a suprema autoridade da Igreja e os moder-
sua vida, e o vigor veio da posição de aristocrata católico
em franca oposição contra a sociedade burguesa. Barbey 107) Ernest Hello, 1818 — 1885.
d'Aurévilly demonstrou que boémia e catolicismo não eram L'homme (1872); Paroles de Dieux (1878); Contes extraordinaires
incompatíveis; e isso será importante para compreender (1879), etc.
J. Serre: Ernest Hello, Vh.om.me, le penseur. Paria, 1894.
St. Fumet: Ernest Hello ou Le drame de la lumiire. Paris, 1928.
108) António Fogazzaro, 1842 — 1911.
106) Jules Amédée Barbey d'Aurévilly, 1808-1889. Miranda (1874); Valsolda (1876); Malombra (1881); Daniele
Une vieille maitresse (1851); Uensorcelée (1854); Le chavalier Cortis (1885); Fedele (1887); 11 mistero dei poeta (1888); Plccolo
des Touches (1864); Un prêtre marié (1865); Les diaboliques mondo antico (1896); Piccolo mondo moderno (1900); II Santo
(1874); — Les oeuvres et les hommes (26 vols., 1860/1909). (1906); Poesia (1908); Leila (1911).
E. Grele: Jules Barbey d'Aurévilly, sa vie et son oeuvre. 2 vols. Edição por P. Nardi, 12 vols., Milano, 1932/1940.
Paxis, 1904. T. Gallarati Scotti: La vita di António Fogazzaro. MUano, 1920.
H. Bordeaux: Le Walter Scott normand: Barbey d'Aurévilly. Pa- P. Nardi: Fogazzaro. Milano, 1929.
ris, 1925. L. Portier: António Fogazzaro. Paris, 1937.
E. Creed: Le ãandysme de Barbey d'Aurévilly. Paris, 1938. E. Donadoni: António Fogazzaro. 2.11 ed. Bari, 1939.
H. Quéru: Le dernier grand seigneur: Jules Barbey d'Aurévilly. R. Viola: Fogazzaro. Firenze, 1939.
Paris, 1946. A. Píromalli: Fogazzaro e la critica. Firense, 1952.
2250 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2251

nistas, que pretenderam "modernizar" o dogma, Fogazzaro, tido simbólico atrás dos acontecimentos reais. Assim se
já então muito lido, colocou-se ao lado dos rebeldes; a essa apresenta o conflito entre o católico Franco e sua mu-
atitude deveu o curto momento de fama universal, para cair lher livre-pensadora Luísa, em Piccolo mondo antico, a
depois no meio desprezo de ser considerado romancista an- obra-prima do autor, belo panorama da burguesia lombar-
tiquado, provinciano, sem importância permanente, mais da de 1860, obra típica do estilo vitoriano: realista sem
ou menos à maneira de Palácio Valdês. Com efeito, Fogaz- "excessos", delicadamente humorística em meio de sérios
zaro é "provinciano"; não porque o ambiente da sua cidade conflitos ideais. Fogazzaro é como a continuação moderna
de Vicenza constitua o fundo de muitas obras suas, mas de Manzoni; o ambiente é o mesmo, os palácios aristocrá-
porque a Itália inteira de 1880 ou 1900 era, em relação ao ticos de Vicenza, atrás de cujas venezianas sempre fecha-
resto da Europa, provinciana e atrasada. E Fogazzaro é das homens nobres se debatem entre os preconceitos do
realmente "antiquado"; o estilo realista dos seus romances passado e as exigências do mundo novo. Mas Fogazzaro
não é de 1900 nem de 1880, mas de 1860. Essa apreciação não sabe dominar-se tão bem como o grande Manzoni. A
atual de Fogazarro encerra, no entanto, uma injustiça sua sensualidade é invencível, é a dum eterno adolescente,
evidente. Em várias fases da história literária italiana, a sempre receando o confessor e sempre disposto a fugir de
"pequena" literatura das províncias era superior à preten- casa para viver uma "primeira" experiência erótica. Essa
siosa literatura classicista, literatura oficial dos intelec- sensualidade não é "moderna"; ao contrário, é o seu tributo
tuais. E Fogazzaro não é mais provinciano do que os seus ao romantismo, à boémia, assim como no católico Barbey
verdadeiros contemporâneos, os romancistas "insulares" da d'Aurévilly e no "catholique, mais athée" Baudelaire. F o -
Inglaterra vitoriana. É superior a eles pela atmosfera de gazzaro julgava-se "moderno"; e era duplamente vitoriano,
decisões históricas que pairava desde sempre sobre a Itá- ao colocar no centro dos seus escrúpulos religiosos o evo-
lia. O modernismo de Fogazzaro não foi uma atitude pre- lucionismo darwinista. E i s o elemento antiquado em Fo-
cipitada; anunciara-se na sua obra inteira e confere a este gazzaro, que o levou fatalmente ao conflito com a Igreja,
"romancista de 1860", que vive por volta de 1880 e 1900, anunciando-se já na continuação daquela obra-prima, em
importância inconfundível para se compreender a situação Piccolo mondo moderno. Desde então, todos os personagens
do cristianismo "oposicionista" em face ao mundo burguês. de Fogazzaro parecem neuróticos. Choram e rezam muito
Daniele Cortis não é o melhor romance de Fogazzaro, em face de contínuas tentações sexuais, às quais é difícil
mas um dos mais característicos; o herói fracassa pelo con- resistir. O "mundo moderno" de Fogazzaro é muito reli-
flito íntimo entre as suas convicções católicas e uma pai- gioso e fala corajosamente em "reforma da I g r e j a " ; mas
xão erótica; mas acredita malograr, devido à incompatibi- não se passa realmente nada, os sentimentos sufocam a
lidade da sua situação de chefe do partido católico-liberal ação, e Deus, continuamente invocado, permanece mero
com o conservantismo das supremas autoridades da Igreja. nome, assim como nas proclamações oficiais do Estado bur-
Com efeito, o catolicismo liberal fora impossível depois guês. Assim / / santo, o romance em que Fogazzaro defen-
de 1870. Também é démodé o realismo de Fogazzaro, rea- deu o modernismo teológico. Com grande escândalo e para
lismo moderado, algo entre George Sand e Flaubert. Mas grande proveito do editor, o livro foi posto no Index dos
o romance salva-se, como quase todos os romances de Fa- livros proibidos pela Igreja. Ainda hoje pode comover a
gazzaro, pela alta qualidade dramática, reflexo de um sen- cena dramática no Vaticano, a conversa noturna entre o
2252 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2253

Papa e o "santo" que lhe pede a reforma da Igreja. Mas, deformações, transformações e transfigurações que a ima-
no resto, o romance é insuportavelmente sentimental, cheio gem do poeta —
dum falso misticismo, acabando em inação desesperada. Re- " . . . vase de tristesse, ô grande taciturne" — sofreu
presenta a espécie católica do "compromisso vitoriano". nos olhos da posteridade: do "Satan d'hôtel garni, un Bel-
Fogazzaro foi um vencido. A sua obra, ou, antes, uma parte zébuth de table d'hôte", de Brunetière, até o "Notre Bau-
essencial dessa obra, salva-se pelas qualidades líricas, ele- delaire", do católico Fumet. Aos académicos parecia Bau-
gíacas, do canto de um vencido, pela música secreta à qual delaire o pós-romântico degenerado, guardando alguns es-
muito será perdoado. plendores da poesia de Hugo — e Baudelaire guardou mes-
A importância histórica de Fogazzaro reside nesse ro- mo alguns dos melhores elementos da poesia de Hugo, ao
mantismo do realista, na boémia erótica do burguês, na re- qual dedicava admiração profunda; mas parecia deformá-
ligiosidade do homem moderno; no conflito entre esses ele- los pelo péssimo gosto de "cantor das prostitutas" e da
mentos antagónicos na sua alma. Nesse sentido histórico, decomposição fúnebre, gosto patológico de uma boémia já
'Ton peut comparer sans crainte d'être injuste" o lirismo
mórbida. No seu tempo, esse grandíssimo artista do verso
algo frouxo de Fogazzaro ao lirismo intenso de Baude-
parecia estar perto dos parnasianos; mas esses burgueses
laire.
moderados envergonharam-se da sua companhia indecente,
Numa tese de Stirnberg sobre as vicissitudes póstumas
achando "exagerado" e "perverso" o seu pessimismo negro.
da poesia de Baudelaire (10°) é possível acompanhar as
Em compensação, esse pessimismo agradou aos decaden-
109) Charles Baudelaire, 1821 — 1867. tistas do "fin du siècle": eles não tinham medo de "épater
Les Fteurs du Mal (1867, 1861, 1868); Les paradis artificieis le bourgeois". Celebraram em Baudelaire o poeta de
(1860); Petits poèmcs em prose (1868).
Edição completa por I. J. Orépet, 10 vols., Paris, 1923/1937.
Edição de Mon Coeur mis à Nu e Fusées por Oh. Du Bos, Pa- "La sottise, 1'erreur, le péché, la lésine..."; e "La Cha-
ris, 1930. rogne", templo sujo de "mes amours décomposés", parecia-
C. Mauclair: Baudelaire. Paris, 1916.
G. de Reynold: Baudelaire. Paris, 1920. lhes o cume da poesia "moderna"; talvez seja mesmo o poe-
E. Raynaud: Baudelaire et la religion du Dandysme. Paris, 1922. ma mais perfeito de Baudelaire. Enfim, prestou-se aten-
Ch. Du Bos: Approxímatíons. Vol. I. Paris, 1922.
St. Fumet: Notre Baudelaire. Paris, 1926. ção à estranha preferência estilística do poeta pelas expres-
R. Vivler: Uoriginalité de Charles Baudelaire. Bruxelles, 1928.
P h . Soupault: Baudelaire. Paris, 1931. sões litúrgicas. Na evocação de
J. Pommier: La mystique de Baudelaire. Paris, 1932. "Des Trones, des Vertus, des Dominations" reconhe-
A. Ferran: Vesthêtique de Baudelaire. Paris, 1933.
H. Stirnberg: Baudelaire im Urteil der Mitwelt und Nachwelt. ceu-se algo mais do que uma das blasfémias habituais do
Muenster, 1935.
J. Charpentier: Baudelaire. Paris, 1937 . poeta satanista; antes a visão mística do homem perdido
F . Kemp: Baudelaire und das Christentum. Marburg, 1939. no abismo do pecado. Descobriu-se a qualidade dantesca
J. P. Sartre: Baudelaire. Paris, 1946.
G. Macchia: La critica d'arte âi Baudelaire. 2 vols. Napoli, 1951. de Budelaire, poeta do Limbo ou do Purgatório, poeta es-
J. Prévost: Baudelaire. Essai sur 1'inspiration et la création poé-
1 tiques. Paris, 1953. piritualista porque tomou a sério o pecado como condição
M. Turnell: Baudelaire. A Study of his Poetry. London, 1953. terrestre da alma, sofrendo do
M. A. Ruff: UEsprit du Mal et Vesthêtique Baudelaírienne. Pa-
ris, 1955. "Spectacle ennuyeux de rimmortel péché." Revelou-se
L. J. Austin: UUnívers poétigue de Baudelaire. Paris, 1956. enfim, aos críticos, a Angústia de Baudelaire. —
J. P. Richard: Poésie et profondeur. Paris, 1956.
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" . . . 1'Angoisse atroce, despotique, feio e patológico, e quanto à sua fé em Deus continuam as
Sur mon crâne incline plante son drapeau noir." dúvidas mesmo depois das interpretações de Du Bos. Mas
em duas coisas ele acreditava com a convicção mais firme:
E essa angústia não seria outra coisa que a consciên- na Beleza e no Diabo.
cia contrita do pecador no confessionário, próximo da abso- Um contemporâneo de Baudelaire que, parece, não o
lvição, da derrota do seu orgulho satânico pela Graça divi- conhecia, Mathew Arnold disse: "There is not a creed
na. O próprio Anatole France já tinha reconhecido que which is not shaken, not an accredited dogma which is not
"Baudelaire n'est pas le poete du vice, mais du péché, c'est shown to be questionable, not a received tradition which
qui est bien différent." Eis o Baudelaire'católico de Du does not threaten to d i s s o l v e . . . But for poetry the idea
Bos e F u m e t : uma alma perdida no abismo romântico, mas is everything; the rest is a work of illusion of divine illu-
sentindo náusea do pecado, salva-se, subindo para o céu s i o n . . . T h e strongest part of our religion to-day is its un-
católico, romano, onde "tout n*est qu'ordre et beauté". Daí conscious poetry." A poesia de Baudelaire é consciente no
a singularidade da sua poesia: conteúdo romântico em for- máximo grau. Substituiu-lhe a religião perdida. Daí o
ma clássica, o que significa a perfeição absoluta. culto à Beleza, o seu ' T a r t pour 1'art" que o fêz aparecer
como parnasiano. A religião da Beleza devia satisfazer às
São três imagens diferentes de Baudelaire. Cada uma
suas fortes necessidades religiosas, porque — e é preciso
parece incompatível com as duas outras. Na verdade, Bau- f
salientar isso — Baudelaire passara por todas as dúvidas
delaire é uma das figuras mais complexas da literatura uni-
do século; era incapaz de acreditar em dogmas e tradições.
versal, tão complexo que as três interpretações poderiam
Acontece, porém, que as necessidades religiosas eram mais
muito bem coexistir, explicando três aspectos diferentes da
fortes do que as satisfações estéticas; e essa insatisfação
sua poesia e personalidade. Baudelaire seria, ao mesmo
afasta-o, mais uma vez e definitivamente, do parnasianismo.
tempo, o romântico desesperado, o boémio perverso, o pe-
Baudelaire não era uma "anima naturaliter christiana", mas
cador arrependido. Mas não seria isso um "compromisso",
sim uma "anima naturaliter religiosa". E como a religião
incompatível com o radicalismo intrépido do poeta mais
tradicional não era capaz de consolá-lo na sua angústia pa-
original do século? Certo, se pudéssemos acreditar firme-
vorosa, Baudelaire chegou a inventar uma religião parti-
mente no seu radicalismo. Mas aí surgem as primeiras dú-
cular. A situação parecia-se com a dos últimos pagãos de-
vidas. Uma parte da poesia de Baudelaire, sobretudo a par-
pois do advento do Cristianismo, desesperados no seu de-
te erótica, não é "poésie p u r é " ; a restrição não tem sentido
senfreado naturalismo sexual, fabricando-se religiões sin-
moralizante, mas estético. Nem sempre Baudelaire dizia a
cretistas de elementos gregos, cristãos e orientais: o gnosti-
verdade. Mentiu às vezes, e intencionalmente. Gostou até
cismo. Baudelaire, em situação parecida, apoderou-se de to-
de envolver-se numa aura de demonismo inacessível aos ou-
dos os fragmentos de religião ao seu alcance, inclusive do
tros mortais, fazendo os gestos do satanismo; e mais uma
ocultismo swedenborgiano. Criou um gnosticismo sui gene-
das suas armas de isolamento era um culto meio sublime,
ris, um maniqueísmo com a figura de Lúcifer no centro.
meio ridículo da Beleza, o "dandysmo". Parece, porém,
Falou do "Prince des Ténèbres" com maiúsculas. Acredita-
que Baudelaire nunca foi mais verdadeiro, mais sincero,
va no Diabo. Daí a seriedade, quase se diria a serenidade do
do que justamente nessas duas poses, de mise-en-scène ma-
seu pessimismo infernal, sem melancolias românticas, sem
gistral. Nem sempre foi sincera a sua poesia intencional do
2256 OTTO MARTA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2257

lamentações elegíacas. Ao seu naturalismo sexual corres- Baudelaire, evidentemente, não compreendeu bem o seu
ponde um naturalismo poético, capaz de transformar tudo próprio romantismo, e não é admirável que outros se tenham
em poesia, a prostituição e o ópio, os cheiros exóticos da equivocado, considerando-o como romântico degenerado.
índia e a perplexidade das ruas de Paris — Baudelaire é, Na verdade, o seu romantismo parecia assim porque é in-
em "Tableaux parsiens", o primeiro poeta da grande cidade compatível com o romantismo grandiloqiiente ou senti-
moderna — o amor lésbico e a decomposição fúnebre — to- mental de H u g o e Musset. A êles Baudelaire opunha um
dos esses novos mundos que Baudelaire conquistou para a romantismo íntimo, psicológico, de descobertas inesperadas
("Au fond de 1'inconnu pour trouver du n o u v e a u . . . " ) ; é o
poesia. Sua teologia do Mal e sua filosofia das "correspon-
"outro romantismo", o "romantismo de profundidade", do
dances" entre todas as coisas no Universo são as bases de
qual na França só Nerval tivera noção, o romantismo má-
sua ampliação da poética: a estética do Feio.
gico dos sonhos de Novalis e Hoffmann. Não pelo natura-
Essa conquista é um dos feitos mais notáveis do poeta
lismo dos assuntos e das expressões eróticas, mas por meio
Baudelaire, tanto mais notável que essa liberdade de falar dessa magia verbal é Baudelaire precursor e mestre de toda
de tudo em poesia precedeu à liberdade de falar de tudo no a poesia moderna, até e inclusive do surrealismo. Do ponto
romance (conquista de Zola) e precedeu de muito à liber- de vista do "romantismo social" o "outro" romantismo, o
dade de falar de tudo na prosa da vida cotidiana (conquista mágico, é uma deformação: resultado da pressão mental
de F r e u d ) . Com essa conquista, Baudelaire tornou-se um da época burguesa e capitalista, cuja imagem aparece nos
verdadeiro libertador da poesia, libertando-a do monopólio grandiosos "tableaux parisiens": não uma "divine comédie
tirânico dos temas petrarquescos e românticos — amor de Paris", porque não são realmente realistas, e sim visioná-
ideal, lua e o resto. Baudelaire é o Petrarca da poesia mo- rios. É esclarecedora a comparação de Baudelaire com os
derna. Mas a comparação com Zola e Freud não é inequi- seus discípulos, imitadores e falsificadores: Swinburne,
vocamente positiva. Essa poesia de ruas, tavernas, prosti- Wilde, D'Annunzio, Dário, Heym e tantos outros. Baude-
tutas — o seu naturalismo — é a parte mortal da poesia laire é mais sincero do que todos êles. Não serve a Satã
de Baudelaire, a parte anedótica, romântica às avessas, fei- com prazer, mas com pavor. A sua Paris não parece infer-
ta para "épater le bourgeois"; hoje, já não assusta a nin- nal, mas é o Inferno. Não deforma para assustar, mas por-
guém. Aí há resíduos da atitude provocante, também "sa- que está assustado. O seu pessimismo angustiado leva-o
áiretamente à fé no poder de Satã, ao maniqueísmo; a essa
tanista", de Byron, Baudelaire é o último byroniano. Como
fé êle dá o dogma do pecado original como fundamento,
pós-romântico, descobriu a grandeza no romantismo de De-
acusando a Natureza inteira, a criação de Deus, como cul-
lacroix, reconheceu a importância de Wagner. Chegou a
pada — de maneira pouco cristã — para desculpar a sua
supervalorizar o romantismo de Poe, a cuja poesia musical
própria culpabilidade. Baudelaire aceita o dogma da Cria-
e vazia só ele, Baudelaire, conferiu o sentido metafísico que ção do mundo por Deus para empregá-lo como arma con-
transformou a Poe em precursor do simbolismo. Foi Bau- tra Deus que criou tudo aquilo. Daí o seu protesto contra
delaire que levou a sério a charlatanesca estética de Poe, qualquer tentativa de enfeitar ou embelezar a realidade das
excluindo da poesia todos os elementos narrativos, didáti- coisas. Daí o seu protesto contra a idealização romântica
cos e de eloquência, lançando, assim, os fundamentos de do amor. Daí o seu protesto contra a fé na bondade dos
toda a poesia moderna.
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homens e contra a fé no progresso. Daí, Baudelaire está minar da poesia, mas não da vida. Baudelaire é o poeta da
perto de De Maistre, e são frequentes as suas afirmações má consciência da burguesia. Expiou, na angustia, as co-
de aristocratismo político, reacionário. vardias e "compromissos" da sua época. Odiava "l'horloge!
Um poeta assim, de oposição sistemática, não pode dei- dieu sinistre", o deus da burguesia, contra a qual a sua ati-
xar de inspirar equívocos a seu respeito. O seu anti-ro- tude não podia ser outra senão a do boémio dissoluto ou do
mantismo sugeriu a todo mundo a imagem de um Baudelai- dandy provocante, ou então a do reacionário à maneira de
re parnasiano; só os académicos não se enganaram, excluin- De Maistre. No mundo do utilitarismo apareceu a mais
do-o tenazmente da "boa sociedade". Baudelaire, com efei- inútil das criaturas, o poeta —
to, não é da boa sociedade. É um boémio como Aloysius "Lorsque, par un décret des puisaances suprêmes,
Bertrand. Mas distingue-se da boémia comum pelo dandis- Le Poete apparait en ce monde ennuyeux • • - para
mo intencional; e no fundo do dandismo j á se descobriu substituir os determinismos biológico e económico pelo ter-
uma religião; religião falsa, mas religião. É boémia de pro- ror da predestinação religiosa, para anunciar, como os cris-
fundidade. Daí a mistura de sarcasmo mordaz e frieza su- tãos heréticos Tertuliano e Kierkegaard, seus irmãos no es-
blime que caracteriza a arte de Baudelaire; daí o fundo ex-
pírito, os terrores apocalípticos do Fim. Antecipando ideias
tático da sua poesia ("Les transports de 1'esprit et des
de Dostoievski e Nietzsche, previu, como um profeta, o
s e n s . . . " ) , a descoberta swedenborgiana das "correspondan-
processo de decomposição do seu m u n d o : "Le monde va ti-
ces", e a anotação dessas descobertas em tom friamente clás-
nir. La seule raison pour laquelle il pourrait durer, c est
sico. "Conteúdo romântico em forma clássica", isso quer di-
qu'il existe. Que cette raison est faible, comparee à tou-
zer, a eliminação implacável dos elementos retóricos e didá-
tes celles qui annoncent le c o n t r a i r e . . . Car, en supposant
tico-tendenciosos, que desfiguraram a poesia do romantismo
qu'il continuât à exister matériellement, serait-ce une exis-
francês: uma "poésie p u r é " como espelho puro de um mun-
tence digne de ce nom et du Dictionnaire h i s t o r i q u e ? . . .
do extra-mundano, irracional, onde "tout n'est qu'ordre et
beauté"; mas também " . . . luxe, calme et volupté". H á um Ces temps sont peut-être bien proches; qui sait même s'ils
grão de verdade nas afirmações incompreensivas de Sar- ne sont pas vénus?"
t r e : Baudelaire é, por condições psicológicas e psicopatoló- Mas o F i m ainda não chegara. Baudelaire nao podia
gicas, um adolescente eterno, adorando o Vício desconheci- ser compreendido no século da burguesia. Equivocaram-se,
do. Foi, como homem, imaturo. Mas desejava o amadureci- considerando-o como romântico degenerado, • • t a m a t a pro-
mento e a perfeição. " J e hais le mouvement qui déplace les vocador, falso profeta. Só em nossos dias, q u a n d o o fim da
lignes", afirmou; e o seu desejo supremo foi mentalidade burguesa se revelou próximo, começou a verda-
deira influência de Baudelaire, fundador da poesia lírica
" A h ! ne jamais sortir des Nombres et des Êtres". Nem moderna, assim como Petrarca fundara a a n t i g a .
sempre, mas muitas vezes, Baudelaire satisfez a essa exigên- A comparação de Baudelaire com P e t r a r c a seria capaz
cia. Les Fleurs du Mal, eis o Código de uma poesia perma- de fornecer alguns esclarecimentos i m p o r t a n t e s de ordem
nente. psicológica e formal. Só a distância do t e m p o não nos per-
Dessa importância permanente de Baudelaire é preci- mite reconhecer imediatamente no poeta i t a l i a n o do século
so distinguir a sua importância histórica. O "Ennui", que o XIV as mesmas complicações psicológicas c o m o no poeta
assombrava, é aquele elemento racional que conseguiu eli- francês do século X I X , fonte de poesias mais parecidas com
2260 OTTO M A R I A CARPEAUX

as de Baudelaire do que a forma clássica de Petrarca e dos


seus discípulos e imitadores revela. Não é menos perfeita
a forma de Baudelaire — os dois são, afinal, sonetistas; e,
nos dois, a cultura formal tem o mesmo sentido de discipli-
na : resistência contra a destruição do mundo ideal da poe-
sia, mas resistência de poetas, intimamente contaminados
pelo "espírito da época", que é, nas cidades italianas do CAPÍTULO II
"Trecento" e, igualmente, na Paris de Napoleão I I I , o es-
pírito da burguesia. Petrarca e Baudelaire, os dois são ar- O NATURALISMO
tistas de formação humanista, mas inquietados e perturba-
dos pela angústia dum mundo que acaba. A um crítico li- ££T"\ O realismo ao naturalismo": o caminho parece em li-
terário do século X I V —se. tivesse então existido essa es- *-* nha reta. O naturalismo teria sido um realismo mais
pécie — Petrarca pareceria a última expressão poética do radical. A evolução teria começado com o realismo, ainda
grande humanismo medieval; só na perspectiva de séculos moderado, de Balzac, radicalizando-se em Flaubert e che-
posteriores, ele parece o primeiro poeta do novo humanismo gando, enfim, ao radicalismo naturalista de Zola.
da Renascença. Quanto a Baudelaire, essa perspectiva his- Mas esse esquema não resiste à análise. Pode Balzac
tórica ainda não existe: Baudelaire é o poeta do tempo em ser chamado, em qualquer sentido que seja, de escritor "mo-
que o liberalismo económico e o determinismo científico derado"? Êle é o contrário disso. O próprio Zola foi menos
da burguesia acabaram com a autonomia do espírito, com "imoderado". Mas, antes de t u d o : Flaubert não é o inter-
a herança da Antiguidade grega. Baudelaire é "le Poete", mediário entre Balzac e Zola. Suas intenções não eram so-
com maiúscula, do "monde ennuyeux" do advento da bur- ciológicas, como as de Balzac e Zola; e suas realizações
guesia: uma "contradictio in adjecto", como a poesia mo- pertencem a outra variedade de obra. Não se pode imagi-
derna inteira. Mas essa contradição será levada em conta, nar um Flaubert construindo ciclos de romances. Aquele
como mérito, quando o século terá de comparecer perante esquema não reflete fielmente os fatos. Na evolução per-
"les Dominations" para ser julgado. corrida do realismo ao naturalismo, devem ter agido outras
influências mais que o radicalismo sociológico.
Encontramos, no meio do caminho entre 1840 e 1880,
uma figura que não é possível colocar em qualquer ponto
daquela suposta linha reta: é o poeta-músico Richard
Wagner. É verdade que sua influência literária só se fêz
sentir mais tarde, na poesia do simbolismo; mas não é a
poesia simbolista dos seus conterrâneos alemães; estes já
t i o imitadores dos simbolistas franceses. Wagner é, por
volta de 1885, uma grande potência literária na França. Por
outro lado, a obra de W a g n e r tem — o que êle, como na-
cionalista alemão, não pôde nem quis admitir — mais do
2262 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2263

que uma raiz no romantismo francês: na música de Auber, foi relizada por Bismarck e os Junkers prussianos. Em
de Meyerbeer, de Berlioz, no romantismo social de Prou- 1870, o nacionalismo perdeu o aspecto democrático; até
dhon. Pois o romantismo não deixou de agir depois de na França vencida e chauvinisme tornar-se-á monopólio da
1848, embora de maneira menos espetacular. Balzac ainda direita. Na Alemanha e na Inglaterra o nacionalismo reve-
é meio romântico. Flaubert é romântico contra a vontade la os primeiros sintomas imperialistas. Começará a luta
e às avessas. Zola, enfim, é mais romântico que os dois. pelas colónias. O acontecimento principal da época, de-
Aquele germe que intensificou tanto o realismo, até êle pois de 1870, é a industrialização rapidíssima da Alemanha,
virar naturalista, é o próprio romantismo. Mas será melhor derrotando as potências de economia agrária e obrigando
falar em neo-romantismo. E o maior dos neo-românticos é os países industrializados a esforços inéditos para manter
mesmo Wagner. o equilíbrio nos mercados.
O fato só surpreende porque não estamos acostumados As consequências eram de ordem geográfica, política e
a colocar o alemão Wagner ao lado daqueles romancistas social. A concorrência alemã nos mercados internacionais
franceses. A literatura francesa é entre 1840 e 1900, a pri- arranca a Inglaterra da sua splendid isolation insular; e
meira da Europa; a literatura alemã da mesma época é po- desde então, a literatura inglesa será mais inclinada a acom-
bre e provinciana. Mas Wagner não é propriamente "lite- panhar os movimentos literários no Continente do que na
rato" : é o homem que impôs à literatura do seu século a in- primeira metade do reinado da Rainha Vitória. Tampouco
fluência da mais forte expressão artística dos alemães — a é acaso o aparecimento de novas literaturas no panorama
música. O fato não pode deixar de ter uma relação qualquer europeu: escandinavas e russa. Durante a primeira metade
com o fato que impôs à Europa a predominância política do século os países escandinavos estavam dominados pela
da Alemanha. A vitória alemã em 1870 não chegou a criar influência cultural da Alemanha. Mas quando, em 1864, a
uma nova civilização alemã; mas modificou o mapa espiri- Prússia investiu contra a pequena Dinamarca, arrancando-
tual da Europa. lhe metade do seu território, as simpatias mudaram; e o pós-
O ano de 1870 marcou época na história europeia. Os romantismo sonolento foi substituído pelas novas tendên-
contemporâneos, talvez com exceção do velho Carlyle, te- cias francesas, despertando forças inesperadas. Em 1876
riam protestado contra essa apreciação; a vitória da Ale- começou-se a movimentar a Rússia, nos Balcãs e contra a
manha sobre a França parecia-lhes devida simplesmente à Turquia; e os seus exércitos foram acompanhados de uma
força bruta, mecânica, do exército prussiano, sem signifi- nova literatura, violentamente nacionalista e reacionária.
cação alguma na história das coisas do espírito, nem sequer Deste modo, a Alemanha viu-se isolada no momento do
na ordem económica. Mas não é tanto assim. Até 1870 seu maior triunfo, voltando à situação "atrás de muralhas
o nacionalismo estava sempre aliado ao liberalismo e à de "chinesas" de antes de Lessing e Herder. Os outros países
mocracia, aliança que veio dos dias da Revolução Francês - não lhe imitaram a estrutura política, a aliança dos pode-
quando "jacobinismo" e "patriotismo" eram sinónimos, res feudais com a grande burguesia industrial. Ao contrá-
unidade nacional da Itália foi conseguida pelo liberalismo rio, uma onda de democratismo radical passou pela Europa
de Cavour, aliado ao democratismo de Garibaldi. Na pró- de Gambetta, Gladstone e Crispi. A burguesia ocidental
pria Alemanha, os revolucionários de 1848 foram naciona- fitava enfraquecida; e os intelectuais de origem pequeno-
listas; mas fracassaram. A unidade nacional da Alemanha burguesa prometeram uma nova "Era das luzes", de "Enli-
2264 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2265

ghtenment". Estavam eles, como a pequena burguesia in- o pálido herói byroniano, com as ideias liberais de um " J u n -
teira, gravemente ameaçados pela rápida industrialização; gdeutscher" de 1840, passou por exemplo de "profundidade
daí o conteúdo principalmente político e intelectual, mas alemã". Spielhagen empregava a técnica de Sue com certa
pouco social, do seu radicalismo. Ao mesmo tempo, esse habilidade; In Reih' und Glied, (Em Marcha) biografia
romanceada de Lassalle, é mesmo bom romance, apesar da
radicalismo acompanhava-se de um pessimismo cada vez
incompreensão do autor pela questão social. Hoje, é ver-
mais grave, reflexo do determinismo económico que o ca-
dade, já ninguém é capaz de ler romances assim. Contudo,
pitalismo industrial impôs ao mundo.
numerosos leitores alemães conservaram-se fiéis a Spielha-
O pessimismo, depois de 1870, encontra-se igualmente
gen até em pleno século XX, e esse fato revela o atraso
na França de Taine e Zola e na Alemanha de Burckhardt e
quase incrível do gosto literário da Alemanha de então,
Wagner. Na França, os motivos eram evidentemente po-
julgando-se superior ao mundo inteiro do qual ela estava
líticos: a derrota militar, considerada como sintoma de
separada por aquela "muralha chinesa". Havia, porém, mais
decadência nacional. Alegaram-se, porém, motivos seme-
uma razão por que um numeroso grupo de alemães, contem-
lhantes para justificar o pessimismo na Alemanha vence- porâneos de Zola, Tolstoi e Dostoievski continuavam leito-
dora: a unificação nacional não fora feita pelas forças da res fiéis de Spielhagen: eram os liberais; e Spielhagen —
liberdade, mas pelas do prussianismo; daí a insatisfação fato raro — continuara liberal, depois do triunfo da Prús-
geral com o novo "Reich" de Bismarck, poderosíssimo, mas sia em 1870, sem aderir a Bismarck. Leu-o a parte liberal
em que a civilização alemã entrou em decadência manifesta. da burguesia, enquanto leitores mais modestos preferiram
Admitindo-se tudo isso, não é possível, no entanto, ignorar o humorista F r i t z Reuter ( 3 ), antigo revolucionário, fisica-
as consequências da industrialização, a destruição das ve- mente destruído pela prisão de muitos anos; no saboroso
lhas estruturas sociais. Justamente com respeito à Alema- dialeto dos camponeses de Mecklemburgo, o "Plattdeutsch",
nha foi acentuada ( L ) a relação entre os progressos do ca- descreveu as experiências amargas da sua vida, consolando-
pitalismo e a perda da "alegria de viver", entre o determi- se pelo álcool e pelo humorismo.
nismo económico e o fatalismo resignado dos que naqueles
anos se tornaram leitores de Schopenhauer ( 1 _ A ). Ao mesmo tempo viveu na Suíça, fora das fronteiras
Quando o Reich se construiu, o romancista alemão mais <lo Reich um orgulhoso e materialista, um modesto funcio-
nário do governo cantonal de Zurique, solteirão mal-humo-
lido era Spielhagen ( 2 ), cujo Problematische Naturen (Ca-
rado e sarcástico. Só poucos iniciados sabiam do seu pas-
racteres Problemáticos) foi traduzido para várias línguas:
sado literário, abandonado havia decénios; mas, quando
conseguiram vencer-lhe o pudor de fracassado na vida,
1) G. Dehn: "Der evangelische Mensch und der Sozialismus. (In: arrancando-lhe a permissão de reeditar obras já esquecidas,
Neue Blaetter fuer ãen Sozialismus, 8, 1930.)
IA) G. Lukács: Deutsche Realisten des 19. Jahrhunderts. Berlln,
1952.
2) Friedrich Spielhagen, 1829 — 1911. ) Fritz Reuter, 1810 — 1874.
Problematische Naturen (1860); In BeiJi' und Glied (1866); Kein Huesung (1858); Ut mine Featung3tid (1861); Ut mine
Sturmjlut (1876), etc, etc. Stromtid (1862/1864), etc.
H. Henning: Friedrich Spielhagen. Leipzig, 1910. Edição por K. F. Mueller, 18 vols., Leipzig, 1905.
V. Klemperer: Spielhagens Zeitromane und ihre Wurzeln. Ber- A. Wllbrandt: Fritz Reuter. 2.* ed. Berlln, 1896.
lin, 1913. M. Moeller: Fritz Reuter. Berlln, 1905.
2266 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2267

a literatura de língua alemã tinha mais um grande escritor: de 1870, voltou a escrever: remodelou aquele romance e
Gottfried Keller ( 4 ). Fora, na mocidade, romântico; do- alguns contos, também esquecidos. As suas ideias artísticas
cumento disso é a sua poesia lírica, meio lenauiana, mais destinaram-no para o classicismo, assim como a Alemanha
tarde supervalorizada pelos admiradores. Como jromântico de então estava cheia de epígonos de um goethianismo fal-
entusiasmado foi para Berlim, para estudar pintura. Lendo so. Mas Keller não era alemão; era suíço. A sua gente des-
Feuerbach e frequentando os círculos dos "jovens hegelia- cende, toda, de camponeses, é dura e algo pesada, gosta de
nos", perdeu a fé em Deus; a sua miopia e o desgosto da exprimir-se com realismo franco e humorismo grosseiro, e
"grande" pintura histórica de então fê-lo perder, também, a revela — Gotthelf é o "tipo ideal" do escritor suíço — in-
fé na sua a r t e ; voltou para a sua terra, onde uma decepção clinação marcada para tendências pedagógicas. Keller tam-
erótica o fêz perder a fé em si mesmo. O documento dessa bém é assim. Realismo e humorismo, e uma pedagogia se-
evolução é o romance Der gruene Heinrich (Henrique Ver- creta, caracterizam as Zuericher Novellen (Novelas Zuri-
de), que ficou então despercebido. E Keller retirou-se da quenses), contos que se passam em três séculos diferentes
literatura, levando durante mais de vinte anos a vida silen- da história da cidade de Zurique: Keller nunca escreveu
ciosa do "escrivão de Estado" do cantão de Zurique Der coisa melhor do que Der Landvogt von Greifensee, colocan-
gruene Heinrich é a Éducation sentimentale alemã: a his- do no ambiente engraçado dos literatos Zueriquenses de
tória da derrota do romantismo. Mas pertence à literatura 1750 a dolorosa educação de um Keller de então, de namora-
alemã: é o último dos grandes "Bildungsromane", "roman- dor romântico a solteirão sereno, e do que Das Faehnlein
ces de formação", género tipicamente alemão, que come- der sieben Aufrechten, em que opõe aos revolucionários pa-
çara com o Simplicissimus, de Grimmelshausen, culminou lavrosos de 1848 o democratismo calmo e congénito dos suí-
no Wilhelm Meister, de Goethe, e acabou com o Gruener ços. A arte de Keller não é absolutamente ingénua ou pro-
vincianamente antiquada; seu realismo é mais "real" do
Heinrich.
que o dos realistas contemporâneos da Alemanha quase to-
Keller tinha renunciado ao romantismo e a toda a li-
dos eles algo fantásticos; pois Keller visa o chão firme de
teratura; mas não aos seus ideais. Apenas pretendia reali- uma sociedade tradicional, da democracia suíça. Tampou-
zá-los só no seu modo de viver: o racionalismo superior de co é sua arte inofensivamente idílica, como os críticos na-
um Lessing, o humanismo equilibrado de Goethe. Depois turalistas acreditavam. Um conto tão intensamente trágico
como Romeo und Júlia auf dem Dorfe basta para demons-
trar o contrário, enquanto os outros contos da coleção Die
4) Gottfried Keller, 1819 — 1890. Leute von Seldwyla (A Gente de Seldwyla) são do mais
Gedichte (1846); Der gruene Heinrich (1854/1855; 2.a versão».
(1880); Die Leute von Seldwyla (1856); 2.a ed., 1874); Siében Le- •aboroso humorismo, zombando da vaidade provinciana, da
genden (1872); Zuericher Novellen (1878); Das Sinngedicht (1882); desonestidade comercial e da falsa cultura popular da gen-
Martin Salander (1886).
Edição por E. Ermatinger e F. Hunziker, 10 vols., Stuttgart, 1919.. te de uma típica cidadezinha Suíça — mas o ambiente geo-
Edição critica por J. Fraenkel, 26 vols., Erlenbach, 1926/1953. ráfico-político desaparece atrás do estilo, inesgotável em
F. Baldensperger: Gottfried Keller, sa vie et ses oeuvres. Paris.
1899. aditas metáforas humorísticas, cheio de verdades huma-
M. Hay: A Study of Kéllefs Life and Works. Bern, 1920. • em forma epigramática, de modo que Kleider machen
H. Maync: Gottfried Keller. Berlin, 1923. Ute, Pancraz der Schmoller ou Die drei gerechten Kam-
E. Ermatinger: Gottfried Kellers Leben, Briefe und Tagebuecher
3 vols. Stuttgart, 1924/1925.
G. Lukacs: Deutsche Realisten des 19. Jahrhunderts. Berlin, 1952.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2269
OTTO M A R I A CARPEAUX
2268
vés de narrações de testemunhas dos acontecimentos pas-
macher não têm nada de contos provincianos; apresentam
sados; técnica que lembra a Conrad, e serve, no caso de
símbolos permanentes de conduta humana. O fundo é pes-
Saar, para atenuar a crueldade da vida, apresentando des-
simista. Quase sempre, em Keller, os homens são fracos
graças dolorosas como lembranças longínquas. Todos os
e as mulheres ruins, e todos aspiram às aparências falsas e
personagens das Novellen aus Oesterreich (Novelas Aus-
vistosas. No último romance, este sim um romance regio-
tríacas) são vencidos; e o "Gloria victis!" de uma das no-
nal, Martin Salander, a Suíça moderna aparece como o pa- velas é um grito muito fraco. Saar amou à sua terra, mas
raíso dos faiseurs e brasseur d'affaires. Mas a vida tem sem esperança. As Wiener Elegien (Elegias Vienenses)
força educadora — eis a última fé do ateu impertinente são um quadro poético da grande cidade, outrora centro
Keller — e os poucos bons sujeitos que existem ela os trans- do imenso império dos Habsburgos, agora provincializan-
forma, através de vicissitudes dolorosas, em estóicos se- do-se cada vez mais, sacudida pelo tremor das reivindica-
renos, "pequenos Goethes" de uma vida honesta, laboriosa ções sociais, mas ainda com o mesmo sol de outono sobre a
e afinal feliz, enquanto há felicidade nesta terra. Os outros paisagem e as cúpulas e torres de outros séculos. Poesia
não valem a pena da atenção, senão de um riso que mata. de outono. "Outono transfigurado" é toda a literatura ale-
E Keller podia despedir-se da vida com o verso goethiano, mã séria dessa época infeliz. Poesia de outono é a qualida-
dionisíaco, da sua mocidade, sobre "a abundância áurea do de dos romances da baronesa turingiana Luise von Fran-
mundo": çois ( 6 ), que não tinha nada da força viril de Marie von
Ebner-Eschenbach, mas algo da mestria dos pintores holan-
"Trinkt, o Augen, was die Wimper haelt, deses de quadros de genre, narrando a transformação dolo-
Von dem gold'nem Ueberfluss der Welt." rosa das famílias aristocráticas, caindo para o standard de
vida pequeno-burguesa.
Sem esse "presente dos deuses" — o humorismo — a
Toda a literatura de ficção na Alemanha, entre 1850 e
época admitiu só um consolo: a lembrança melancólica de
1880, é um documento histórico de transição social: no co-
dias mais felizes. Outro "provinciano", isto é, um alemão
meço da época, os personagens são sempre condes e barões;
fora da Alemanha, o austríaco Saar ( B ), não tinha humor;
no fim, pertencem à classe média ( 7 ). E o "Reich" alemão,
os seus contos descrevem a Áustria depois da derrota de
enriquecendo-se enormemente, sofreu perda pavorosa de
1866, separada da Alemanha e procurando o seu caminho
substância cultural, porque as novas classes dirigentes já
próprio, mas sem muita esperança. É como a continuação de
não admitiam os valores do humanismo, entregando-se por
Grillparzer. A técnica novelística de Saar é digna de nota:
completo ao materialismo económico.
os destinos dos personagens revelam-se indiretamente, atra-

fl) Luise von François, 1817 — 1893.


5) Ferdinand von Saar, 1833—1906. Ausgewaehlte Novellen (1868); Die letzte Reckenburgerin (1871);
Innocens (1866); Novellen aus Oesterreich (1876); Drei neue No- Frau Erdmuthen Zwillingssoehne (1872).
vellen (1883); Wiener Elegien (1893); Neue Novellen aus o H. Bender: Luise von François. Hamburg, 1894.
H. Enz: Luise von François. Zuerich, 1918.
reich (1897).
Edição por J. Minor, 12 vols., Leipzig, 1908. 7) E. Kohn-Bramstedt: Aristocracy and the Middle Classes in Ger-
many. Social Types in German Literalure, 1830-1900. New York.
J. Minor: Ferdinand von Saar. Wien, 1898. 1937.
A. Bettelheim: Ferdinand von Saars Leben und Schaffen.
1909.
OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2271
2270
Os vencidos — as classes médias antigas, de formação fantasiados de romanos ou de italianos da Renascença ou de
humanística — leram Schopenhauer ( 8 ), cuja repercussão franceses da Revolução. E n t r e essa falsa "arte de costume
começou nesse tempo; não a repercussão da sua metafísica histórico" e o pessimismo existe uma relação íntima, em
romântica, mas a do seu pessimismo que iluminava e con- 1880 e em modas literárias posteriores.
fortava os desiludidos. Keller e Saar eram leitores assíduos Os "provincianos" como Keller e Saar resistiam melhor
de Schopenhauer; estudaram-no e imbuíram-se no seu espí- a esse perigo do que os escritores de sucesso urbano. Assim
rito os Raabe, Hamerling e Richard Wagner. A repercus- também o mais provinciano de todos, Raabe ( i 2 ) . Nenhum
são de Schopenhauer tornou-se internacional (°). Leram- outro escritor alemão é tão difícil, quase incompreensível
no Flaubert e Turgeniev, Tolstoi, Hardy e Machado de para leitores não-alemães como Raabe; até os títulos dos
Assis. As traduções inglesa (por R. B. Haldane, 1883-1886) seus livros são intraduzíveis. Mas também, na própria Ale-
e italiana (por O. Chilosetti, 1888) acompanharam a intro- manha, nunca foi muito popular; o seu alto valor só foi de-
dução do naturalismo pessimista na Inglaterra e na Itália. vidamente apreciado, por uma elite literária, cada vez me-
A tradução francesa de A. Burdeau (1888-1890) tornou-se nor em número. Hoje, porém, os seus romances e contos
uma das bíblias do simbolismo decadentista. Havia schope- continuam também lidos por gente menos culta, que o pre-
nhauerianos poloneses como Asnyk, rumenos como Emines- fere porque não tem nada de "moderno". Com efeito, Raabe
cu; e vários escritores húngaros, como Kemeny ( 1 0 ), um é um escritor "antiquado". Narra os seus enredos meio ro-
dos últimos grandes representantes do romance histórico manescos vagarosamente, comentando-os por meio de di-
à maneira de Scott, transformando-o em veículo de estudos gressões moralizantes ou humorísticas. A escola de Jean
psicológicos, marcados pelo pessimismo; e Madách ( n ) , Paul é evidente. Como este é Raabe, numa época de pros-
cuja Tragédia do Homem acompanha o homem sofredor peridade geral, o amigo dos pobres, humildes, ofendidos;
por todos os séculos da história. A introdução do pessimis- menos dos proletários propriamente ditos — esses nfio exis-
mo schopenhaueriano, essencialmente a-histórico, na filo- tem no seu ambiente provinciano, atrasado — do que dos
sofia da história deu quase sempre resultados infelizes. aristocratas e burgueses empobrecidos e mais cultos do
Pretendendo-se demonstrar a igualdade dos sofrimentos hu- que os nouveaux riches; dos mestres-escolas incompreendi-
manos em todos os tempos, os personagens históricos trans- dos entre gente bárbara; dos pequenos comerciantes, víti-
formaram-se em manequins, schopenhauerianos modernos, mas dos grandes; das criadas maltratadas e das crianças.

12) Wilhelm Raabe, 1831 — 1910.


Chronik der Sperlingsgasse (1857); Unsers Nergotts Kanzlei
8) Cf. "Romantásmos de Oposição", nota 13. (1862); Der Hungerpastor (1864); Drei Fedem (1865); Abu Telfan
9) J. Krauss: Studlen Veber Schopenhauer. Leipzig, 1931. (1866); Der Schuedãerump (1870); Horacker (1876); Alte Nester
(1880); Kloster Lugau (1893); Die Akten des Vogelaangs (1895);
10) Zsigmond Kemény, 1815 — 1875. Novellen (1900).
Os iluminados (1858); Tempos duros (1862), etc. Edição por F . Hesse e L. Geiger, 18 vols., Berlin, 1913/1916.
Edição por P. Gyulai, Budapest, 1896. A. Spiero: Wilhelm Raabe. 2.» ed. DarmstaUt, 1926.
L. Nogrady: Vida e obras de barão Zsigmond Keményi. Budapest, R. Guardini: Stopfkuchen. Muenchen, 1932.
1902 (em língua húngara). W. Fehse: Wilhelm Raabe's Leben. 2.* ed. Berlin, 1937.
G. Lukacs: Deutsche Reálisten des 19. Jahrhunderts. Berlin,
F. Papp: Barão Zsigmond Keményi. 2 vols. Budapest, 1922/1923. 1952.
(Em língua húngara). H. Pongs: Wilhelm Raabe. Heldelberg, 1958.
11) Cf. "O Advento da Burguesia", nota 10A.
«

2272 OTTO MARIA CARPFAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2273

A sua mistura de realismo e idealismo tem algo de Dickens. crente, tinha fé na possibilidade de uma ordem superior.
Horacker, o melhor dos seus contos, parece um idílio bucó- Sentiu inveja dos homens de pé firme. Gostava do século
lico; mas os personagens são vagabundos, mendigos e cri- XVI, tão sinistro na história alemã, porque foi o século da
minosos. Raabe sintetizou o seu "ideal-realismo" na máxi- Reforma, do protestantismo militante. Raabe, como scho-
ma: "Presta atenção às ruas e olha para as estrelas!" O que penhaueriano, não acreditava em nenhum dogma cristão;
êle desprezava era o reino intermediário entre as ruas dos menos na doutrina de que a Terra é um vale de lágrimas.
pobres e o céu dos ideais: o reino do sucesso material. Mas o "Deus", que há de ter num romance de estilo antigo,
Esse alemão alemaníssimo não se conformou nunca com o em Raabe é o terrível "Deus absconditus" dos luteranos pri-
"Reich" de Bismarck, dos nacionalistas prussianos e dos mitivos dos quais o escritor descendia. Raabe lembra algo
burgueses industriais. E r a conservador demais para isso. a Jacob Boehme, o sapateiro místico da Silésia; gostava
Detestava a nova Alemanha barulhenta, em comparação mesmo dos sapateiros que trabalham humilde e silenciosa-
com a qual a Alemanha antiga lhe parecia um idílio de ver- mente, pensando em coisas superiores, esmagados pela in-
dadeira nobreza. Em Abu Telfan, um alemão que viveu dústria moderna. Raabe sempre tomou o partido do ho-
muitos anos entre os selvagens da África central, sonhando mem antigo contra o homem moderno, do artesão contra o
da pátria, volta e experimenta a maior desilusão; é signifi- industrial e o operário. Os seus personagens lembram os
cativo que na obra de Raabe aparecem muitos reemigrantes artesãos, mendigos, doentes e aleijados que, nas gravuras
assim. No mais conhecido dos seus romances, Der Hunger- de Rembrandt, rodeiam o Cristo: é muito incerta a luz mís-
tica que transluz pelas trevas do claro-escuro. Não é fácil
pastor, Raabe descreveu com compreensão surpreendente
compreender a Raabe. Quando velho e já muito lido, mas
as transformações econômico-sociais que lhe mataram os
continuando incompreendido, Raabe comparou-Be a si mes-
ideais de conservador incurável. Mas o seu pessimismo não
mo a "um carteiro morto que leva cartas lacradas para des-
se limitava a uma determinada época. Escolheu, para tea-
conhecidos". Às vezes, as cartas de Raabe, escritas nas le-
tro dos seus romances e contos históricos, as épocas de
tras indecifráveis de séculos passados, revelam comentários
grandes desgraças na história alemã — sobretudo a época
permanentes da condição humana.
da Reforma e da Guerra de Trinta Anos — para chegar a
conclusões sempre iguais: a vida é a grande inimiga dos Raabe ainda não era lido, e já todo o mundo admirava
homens. Der Schuedderump — expressão arcaica que dá o os poemas do austríaco Hamerling ( 18 ) como expressões do
título à sua obra-prima — é a carreta na qual, em tempos de mais profundo pessimismo filosófico, seja porque se tratas-
peste, o carrasco levou os cadáveres para a vala comum; se da aparição do J u d e u E r r a n t e em meio das orgias e hor-
para Raabe, é o símbolo da vida. rores da Roma imperial, seja porque cuidasse da revolução
Grande leitor e admirador de Schopenhauer, Raabe ti- dos sectários anabatistas em Muenster. Poesia monstruosa
rou do seu conservantismo idílico as conclusões filosófi- e até grotesca, na qual se apreciavam o colorido histórico
cas mais negras. Mas o fundo do seu pensamento não era
antiquado, e sim antimoderno; e, pensando-se bem, não é
tão antimoderno seu "mal-estar dentro da civilização", ex- 13) Robert Hamerling, 1830 — 1889.
Sehwanenlied der Romantik (1862); Ahasverus in Rom (1866);
pressão sua que Sigmund Freud tomará emprestada para Des Koenig von Sion (1869).
título de um dos seus livros. Apenas, Raabe, embora des- M. M. Rabenlechner: Robert Hamerlings Leben unã Werke.
Hamburg, 1897.
2274 OTTO MARIA CARPEAUX HlSTÓBIA DA LlTEBATURA OCIDENTAL 2275

e as e n t r e l i n h a s e r ó t i c a s . E r a a é p o c a n a q u a l u m p i n t o r e r o m a n c e s d e s c r e v e u o a m b i e n t e a r t í s t i c o d a c a p i t a l báva-
medíocre, Hans Makart, despertou delírios de admiração, r a ; e m " g r a n d e s " t r a g é d i a s a p r e s e n t o u as o r g i a s e c r u e l d a -
e n c h e n d o v a s t o s q u a d r o s h i s t ó r i c o s c o m m o n t a n h a s d e cor- d e s da R o m a i m p e r i a l ; n o d r a m a f i l o s ó f i c o Der Meister
pos de m u l h e r e s nuas. A o lado da V i e n a de M a k a r t e H a - von Palmyra exprimiu o pessimismo nobre de u m epígono
merling, M u n i q u e , a cidade de P i l o t y e Lenbach, era o cen- •culto e f a t i g a d o .
t r o d a q u i l o q u e o R e i c h b i s m a r c k i a n o c o n s i d e r a v a c o m o cul- A m a i o r f i g u r a d e M u n i q u e era H e y s e ( 1 T ) , a t é f i g u r a
t u r a a r t í s t i c a . L á se p i n t a r a m n a s A c a d e m i a s e e s t u d o s as e u r o p e i a , p e l o s e l o g i o s q u e B r a n d e s d i s t r i b u i u ao s e u l i -
d e s g r a ç a s h i s t ó r i c a s d e t o d o s os t e m p o s — d e p o s i ç õ e s , a b d i - b e r a l i s m o r e l i g i o s o e m o r a l . C o m e f e i t o , H e y s e era l i v r e -
cações, e x e c u ç õ e s — e as o b r a s d o s p o e t a s e e s c r i t o r e s e r a m p e n s a d o r n o s d o i s s e n t i d o s ; n o r o m a n c e Kinder der Welt
c o m o l e g e n d a s em b a i x o d e s s e s q u a d r o s . A s s i m H a m e r l i n g (Filhos Deste Mundo), r o m a n c e fraco à m a n e i r a d e S p i e -
n a p o e s i a ; e os r o m a n c e s m a i s a d m i r a d o s e r a m Eine aegyp- Ihagen, combateu a intolerância e a hipocrisia em questões
tische Koenigstochter (1864), n o qual o e g i p t ó l o g o G e o r g morais. Mas a luta não era o seu lado mais forte, e a liber-
E b e r s se s e r v i u d a s u a e r u d i ç ã o r e s p e i t á v e l p a r a fazer ficção dade erótica parecia-lhe mais importante do que qualquer
t r i v i a l í s s i m a , e Ein Kampf um Rom (1876), e m q u e F é l i x o u t r a . N o s s e u s c o n t o s e n o v e l a s t r a t a - s e d e s i t u a ç õ e s com-
Dahn, excelente historiógrafo da época das migrações bár- plicadas entre amantes, problemas psicológicos que o autor
baras, descreveu, com acentuado nacionalismo "germânico" resolve de m a n e i r a s e m p r e engenhosa, mas n e m sempre ve-
c alusões anticlericais, a derrota dos godos pelos bizanti- rossímil, como n a r r a d o r habílissimo sem m u i t a profundida-
nos, na Itália. d e . P a r a o c u l t a r esse d e f e i t o — H e y s e era a r t i s t a m u i t o
A é p o c a a p r e c i a v a o r o m a n c e h i s t ó r i c o e as l e m b r a n ç a s •consciente — a s s u m i u a p o s e s e r e n a d e u m c l a s s i c i s t a g o e -
d o passado alemão. Scheffel (14) continuava Iidíssimo. O t h i a n o . T a m b é m e m p r e g o u o r e c u r s o d e f a z e r p a s s a r os
c o n d e S c h a c k e s t a v a e m casa t a n t o n a I t á l i a , c o m o n a E s - a c o n t e c i m e n t o s , as m a i s d a s v e z e s , na I t á l i a m o d e r n a ou d a
p a n h a ou n a P é r s i a . E m M u n i q u e , a c i d a d e d o s p i n t o r e s , R e n a s c e n ç a , p a í s e m q u e se i m a g i n a v a m as p a i x õ e s m a i s
reuniu-se em t o r n o do epígono Geibel (15) u m a "escola" f e r v o r o s a s e n o e n t a n t o s e r e n a d a s pela b e l e z a d a p a i s a g e m
d e p o e t a s e e s c r i t o r e s q u e se j u l g a v a m g o e t h i a n o s p o r q u e -e d o a m b i e n t e a r t í s t i c o . E m b o r a H e y s e e s t i v e s s e c o m o e m
imitavam a Platen, usavam barbas, capas e chapéus carac- casa n a I t á l i a , a " I t á l i a " d o s s e u s c o n t o s t e m a l g o d e i r r e a l ;
terísticos dos pintores de então, e viajavam cada ano para n ã o é a I t á l i a d o s i t a l i a n o s , e s i m a I t á l i a d o s t u r i s t a s es-
a Itália, paraíso dos estetas. É evidentemente, o parnasia-
nismo alemão. U m a figura típica, embora mais ligada a
Viena do que a Munique, era W i l b r a n d t ( 1 0 ) : em comédias 37) Paul Heyse, 1830 — 1914.
Novellen (1855); Neue Novellen (1858, 1862, 1875); Meraner No-
vellen (1867); Moralische Novellen (1869, 1878); Kinder der Welt
14) Cf. "Romantismos de Evasão", nota 11. (1873); Troubadour-Novellen (1882); Unvergessbare Worte und
15) Cf. "Fim do Romantismo", nota 41, e "Advento da Burguesia", andere Novellen (1883); Villa Falconieri und andere Novellen
nota 64. (1888); Novellen vom Gardasee (1902).
Edição por C. Petzet, 15 vols., Stuttgart, 1924.
A. Helbig: Geibel und die Muenchner Schule. Aarau, 1912. Q. Brandes: "Paul Heyse". (In: Moderne Qeister. 4.a ed. Ber-
16) Adolf Wilbrandt, 1837 — 1911. lin, 1901.)
Die Maler (1872); Arria und Messalina (1874); Der Meister von
Palmyra (1889); Hermann Ifinger (1892); Die Osterinsel (1895). H. Spiero: Paul Heyse, der Dichter und sein Werk. Stuttgart,
V. Klemperer: Adolf Wilbrandt. Stuttgart, 1907. 1910.
P. Zincke: Paul Heyse's Novellentechnik. Karlsruhe, 1930.
2276 OTTO M A R I A ÍCARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2277

trangeiros. Esses contos têm hoje sabor especial das coisas radores dos métodos científicos e técnicos, tão eficientes,
agradavelmente antiquadas. Talvez sejam os melhores os dos alemães.
que se passam fora da Itália propriamente dita, no Tirol Na obra de Carducci ( 1 8 ), essa influência é óbvia. Ao
italiano. Assim, no começo da carreira literária de-Heyse, diletantismo estético dos seus patrícios o austero poeta,
as Meraner Novellen, contos comoventes da vida dos tuber- professor temido da Universidade de Bolonha, opunha o
culosos que procuram alívio naquela região paradisíaca; e r trabalho exato no terreno da história literária, as edições
no fim, as Novellen vom Gardasee, do lago clássico de Ca- críticas, a revisão dos textos. Mas o professor era poeta.
tulo e dos quadros de Boecklin. T u d o isso é "coisa anti- Não sabia resistir à tentação de tirar conclusões sintéticas,
quada do tempo de antes da grande guerra"; Heyse morreu, esboçar panoramas históricos; e chegou a uma síntese da
octogenário, em 1914. Nos seus contos, até os camponeses história literária, moral e civil da nação italiana, baseada,
italianos são gente culta que fala de sutilezas da psicologia ao seu ver, integralmente na civilização clássica, greco-
erótica em termos de poetas petrarquescos; e na atmosfera latina, e só deformada pela influência do cristianismo. Pre-
há qualquer coisa de "halcyônico" que sugere, na releitura, tendendo acompanhar a renascença nacional da Itália por
a nostalgia de um mundo não mais feliz, mas mais belo. meio de uma renovação literária, o humanista Carducci
J á os contemporâneos da segunda metade da longa vida voltou-se para as fontes; e a métrica de Platen, do qual
de Heyse sentiam isso. O "poeta do E r o s " tornou-se leitu- traduziu várias poesias, forneceu-lhe o modelo de uma poe-
ra para moças do colégio. Foi considerado como o ú l t i m o sia italiana em metros antigos, as Odi barbare. Não cor-
descendente da estirpe de Goethe; e em 1910 conferiram- respondia, porém, o novo reino aos seus ideais sublimes.
Ihe o Premio Nobel. Hoje em dia, Heyse já não é muito Ao contrário. E o professor de Bolonha tornou-se poeta
lido. Permanecem as suas excelentes traduções de poetas cívico, patriota extremado, republicano, anticlerical; o poe-
italianos, de Parini, Leopardi, Giusti, Belli. ta da oposição. Depois, fêz escândalo a sua apostasia po-
lítica: a conversão do republicano, comovido pela beleza
Dois traços característicos dos epígonos-parnasianos de
Munique são estes: a cultura formal do estilo conforme a s
normas de Platen, e o entusiasmo estético pela Itália. O
conhecedor da literatura italiana lembra-se imediatamente 18) Giosue Carducci, 1835 — 1907.
Levia Gravia (1868); Poesie (1871); Nuove poesie (1872); Odi bar-
de um contemporâneo dos muniquenses, nacionalista e h u - bare (1877); Nuove odi barbare (1882); Rime nuove (1887); Terze
manista italiano e admirador tão assíduo de Platen que odi barbare (1893) etc, Delle rime di Dante (1865); Dello svol-
gimento delia letterature nazionale (1871); Crítica e arte (1874);
chegou a basear na métrica do poeta alemão a sua renovação Pietro Metastasio (1882); Uopera di Dante (1888) etc.
da poesia italiana: Carducci. Em 1870, a Alemanha, an- Edição N. Zanichelli, 20 vols.. Bologna, 1889/1909.
A. Jeanroy: Giosue Carducci, Vhomme et le poete. Paris, 1911.
tipatizada na Europa inteira, tinha perdido as suas provín- E. Thovez: Jl pastore, la gregge e la zampogna. Napoll, 1911.
cias de influência cultural no estrangeiro: a Holanda, a A. Meozzi: Uopera di Giosue Carducci. Firenze, 1921.
B. Croce: Giosue Carducci. Bari, 1927.
Escandinávia, a Rússia. Em compensação, ganhou uma A. Galletti: Uopera di Giosite Carducci. 2 vols. Bologna, 1929.
nova zona de influência na Itália. Menos porque ajudara à E. Palmieri: Giosue Carducci, studio intorno alia critica e alia
lirica carducciana. Firenze, 1930.
unificação política da península, ligando-se ao novo reino G. Santangelo: Carducci. Palermo, 1945.
por uma aliança, do que por os italianos se tornaram admi- G. Natali: Giosue Carducci. Bologna, 1950. (2.a ed. Firense, 1961).
M. Saponaro: Carducci. 2.° ed. Milano, 1951.
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da Rainha Margherita e pelo liberalismo do Rei Umberto. Itália", puramente clássica, infelizmente deformada pelas
Carducci acabou como "Poet Laureate" da Itália. nefastas influências do cristianismo. Então, o poeta das
Daí os aspectos diferentes e até contraditórios da sua Primavere elleniche adotou o falso paganismo de Swin-
obra, elogiada até as alturas e censurada acerbamente/ Car- b u r n e ; acreditava ser baudelairiano, escrevendo um Inno
ducci era um grande erudito e um grande professor. As a Satana. Apareceu como cantor furioso do republicanismo
suas edições continuam modelos até hoje. Ninguém antes, jacobino, do ça ira. E no Saluto itálico dirigiu-se às re-
e ninguém depois, dominava como êlje a literatura italiana giões "irredente", ainda dominadas pela Áustria —
inteira, relacionando-a sempre à literatura latina e ao espí- " . . . in faceia a lo stranier, che armato accampasi
rito grego. Daí ter sido êle um homem livresco, e~a sua su'l nostro suol, cantate: Itália, Itália, Itália!"
poesia, feita de citações e alusões, poesia de professor, "ex- Carducci estava enganado. T u d o isso não era tão "sa-
cellent scholar's poetry", retórica e retumbante. É poesia tânico" como parecia. Todo mundo na Itália era partidário
de epígono, poesia parnasiana; e as perspectivas históricas, do "irredentismo", inclusive os círculos oficiais, que o dis-
desenvolvidas nas grandes odes como Dinanzi alie Terme simulavam por motivos diplomáticos. Nenhuma persegui-
di Caracalla, Alie fonti dei Clitumno, Su YAdda, Su Monte ção ameaçava aos republicanos na Itália liberal. E o anti-
Mário, revelam, além da influência de Hugo, a de Leconte clericalismo era doutrina oficial do Estado, ao qual o Va-
de Lisle. Justamente por isso foi Carducci tão admirado t i c a n o recusou o reconhecimento diplomático. Carducci,
pelos professores e, depois, também pelos círculos oficiais quando se converteu à monarquia, não precisava retratar-
da nova Itália; e foi esse lado retórico da sua poesia que se em nada. Mas os efeitos da sua poesia, acolhida em todos
aborreceu aos "jovens", aos estetas à maneira de D'Annun- os manuais escolares, já estavam aí. Carducci criara mais
zio e aos partidários do futurismo de Marinetti. Talvez do que uma consciência nacional, antes um mito coletivo
nunca um poeta cercado da admiração nacional tenha so- da nova Itália. Neste sentido, é o tipo do professor furi-
frido ataque tão mordaz como Carducci sofreu no livro de bundo que tira dos seus livros slogans de violência nacio-
Enrico Thovez, cujo título II pastore, il gregge e la zam- nalista. Menos de vinte anos depois da morte do grande
poeta democrata, poesias suas como Nell' annuale delia
pogna já revela a tendência de denunciar o poeta como ora-
fondazione di Roma eram peças oficiais da literatura fas-
dor oco, sedutor da mocidade ingénua. O ataque atinge os
cista. E os d'annunzianos e futuristas, os anticarduecianos
imitadores numerosíssimos que devastaram, com efeito, a
de outrora, assistiram à nova vitória, póstuma, do velho
poesia italiana, mas não aprecia bem a origem da retórica
poeta.
carducciana. E s t a origem encontra-se na sua situação so-
cial, que o aproxima, mais uma vez, dos parnasianos alemães, Vitória efémera; e, mais uma vez, a culpa não é de
platenianos como êle: intelectuais pequeno-burgueses, li- Carducci mas dos seus imitadores e exploradores. Basta ler
berais por definição, decepcionados com o lendemain da os numerosos estudos críticos de Carducci — uma das me-
unificação nacional. Até então, Carducci fora só humanista lhores e mais duradouras partes da sua obra — para saber
e poeta idílico. Foi a indignação que o transformou em que não era um hugoniano ôco nem um retórico pré-fascis-
poeta cívico, no satírico dos Giambi ed Epodi, moldados ta. As suas convicções" eram profundamente humanitárias,
nos Châtiments de Hugo. Mas vieram coisas piores. Àque- de um grande cosmopolita de coração generoso; na Itália,
la indignação juntou-se à teoria fantástica duma "terza lie amava o centro de uma civilização da qual êle esperava
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2281
2280 OTTO M A R I A CABPEAUX

a libertação da humanidade inteira. Não foi o primeiro fas- gílio. O poeta da Roma imperial também não conseguira
cista, mas o último humanista. E no foro intimo, ele tinha criar um mito político em poesia; mas salvou-se pelo senti-
mento profundamente humano em que as supremas neces-
mesmo essa consciência de ser "último", epígorlo. Numa
sidades da urbe e da humanidade se identificaram. Isso já
das grandes odes, Nella piazza di San Petronio, confessa
não era possível com respeito à nova Roma, capital do rei-
escrever \
no nacional da Itália. Mas aquelas grandes odes também
" . . . il verso in cui trema se salvam, porque se baseiam numa tradição humanitária
un desiderio vano delia bellezza antica." que é bem italiana e que a mocidade d'annunziana e futu-
rista não sabia continuar. Deste modo, Benedetto Croce,
"Desiderio vano"! Na poesia de Carducci é frequente o último grande liberal da Itália, tinha razão, ao terminar
uma melancolia pouco helénica e inesperadamente român- um ensaio sobre Carducci com um verso de Tasso, citado
tica. Na famosa ode Alia stazione in una mattina d'autun- bem a propósito:
no confessa mais: "D'Italia grande, antica, Tui timo vate."
Não há dúvida, porém, de que esta Itália do professor
"Oh qual caduta di foglie, gélida, erudito não era a do povo. Carducci é um poeta incomen-
continua, muta, grave, su 1'anima! jsuràvelmente maior do que todos os parnasianos franceses
io credo che solo, che eterno, e muniquenses alemães juntos; mas a sua posição era a
che por tutto nel mondo é novembre." mesma; e a êle também se opunha a voz modesta de resis-
tência popular, a das províncias. Na Itália, aliás, a oposição
Como tantos outros parnasianos era Carducci um ro- entre a poesia retórica, "cósmica" e classicista, dos cultos,
mântico secreto; e como tantos outros românticos ele tam- e a poesia provinciana e dialetal, do "popolo minuto", é um
bém era um idilista irritado e exacerbado. Talvez se apli- fenómeno permanente, desde os dias dos marinistas e ar-
que bem a Carducci o que o seu admirador Benedetto Croce cadianos e da commedia delVarte. Verdadeira antítese de
dizia de um outro poeta italiano, de Pascoli: um idilista Carducci é Cesare Pascarella ( 1 9 ), poeta em dialeto de
que assumiu erradamente o papel do bardo, do vate nacio- Roma, dos proletários e pequenos-burgueses da mesma
nal. E n t r e as peças mais belas de Carducci encontram-se Roma que a Carducci significava a capital histórica da civi-
as de poesia íntima e paisagística: "II bove", "Traversan- IÍ2ação europeia. Para Pascarella, não. O seu horizonte
do la Maremma toscana", "San Martino". E quando ele diz acaba na fronteira do subúrbio de Trastevere. A epopeia
dos olhos do b o i : geográfica de Colombo, na Scoperta deli'America, é para

" . . . dei grave occhio glauco entro 1'austera


dolcezza si rispecchia ampio e quieto 19) Cesare Pascarella, 1858 — 1940.
Villa Gloria (1886); Scoperta deli' America (1894); Sonetti (1904).
il divino dei pian silenzio verde." — E. Veo: / poeti romaneschi. Roma, 1925.
B. Croce: "Cesare Pascarella". (In: La Letteratura delia Nuova
Itália. Vol. I I . 3.» ed. Bari, 1929.)
revela-se uma maneira de sentir realmente clássica, não li- A. Bizzarri: "Vita dl Cesare Pascarella". (In: Quadrivio, 1933.
vresca, estudada, mas de um descendente autêntico de Vir- 10/11)
2282 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2283

ele assunto de conversas numa taberna romana, e o episódio "Questa bella mia sirena
heróico-patriótico de Villa Gloria torna-se a coisa mais anti- F a morirmi co' suoi canti."
patética do mundo. Pascarella é humorista; mas* não con-
vém confundi-lo com o poeta de hoje em dialeto romano, Os contos de Di Giacomo bastam para desmentir essa
o famoso Trilussa, "humorista" inofensivo. Pascarella é apreciação. São dum naturalismo muito mais amargo do
poeta autêntico; e dentro dos limites que o dialeto impõe, que os romances naturalistas de Matilde Serao-Scarfoglio.
a sua arte verbal, sobretudo nos sonetos, não é menor do Os seus personagens preferidos são as pobres moças cam-
que a de Carducci. ponesas que vêm à cidade em busca de trabalho e caem na
Contudo, o romano Pascarella apenas é poeta menor em prostituição suburbana; é o troubadour dessas infelizes do
comparação com o napolitano Di Giacomo ( 2 0 ). Durante amor físico. E atrás dessas vítimas levanta-se o grito de
mais de vinte anos, a sua poesia correu, admiradíssima, pelo todas as criaturas infelizes da grande cidade, infelizes em
mundo inteiro que lhe desconhecia por completo o nome. face da natureza mais bela do mundo, e dessa desarmonia
O caso é singular. Di Giacomo era um grande erudito, co- estridente tira o poeta Di Giacomo as harmonias perfeitas
nhecedor íntimo do passado da sua cidade; as suas obras dos seus versos, verdadeiramente clássicos, grande arte em
sobre o assunto são valiosas; o próprio Benedetto Croce dialeto popular, música que desmente a arte dura e falsa dos
é, a esse respeito, discípulo dele. Conhecendo como nin- poetas classicistas que viram Nápoles, sempre, apenas pe-
guém a vida popular de Nápoles, Di Giacomo participava los óculos de Teócrito e Virgílio. Di Giacomo é hoje jus-
das famosas festas folclóricas, escrevendo textos para as tamente apreciado; apenas o dialeto, algo difícil até para os
canções; e, com a música, esses textos, ora alegres, ora sen- italianos do resto da península, impediu-lhe a repercussão
timentais, sempre saborosos, percorriam o mundo. O poeta- devida.
diletante não pensava em reuni-los, tampouco os contos fol-
E m parêntese, poder-se-ia mencionar uma evolução qua-
clóricos que publicou ocasionalmente em revistas locais.
se análoga na Espanha. Lá desempenhou o papel de Car-
Croce revelou o poeta. À primeira vista, Di Giacomo pare-
ducci o autor dos Ecos nacionales, o hugoniano Ruiz Agui-
ce o rei do lugar-comum napolitano; canta tudo aquilo que
lera ( 2 I ) . Nem de longe pode ser comparado ao grande ita-
os turistas conhecem de sobra — os lazzaroni, as serenatas, liano; mas os contemporâneos dedicaram-lhe a mesma ad-
as belas noites de lua no mar em face da cidade que é ne- miração, não apenas um Palácio Valdês, mas também o
cessário ver antes de m o r r e r : grande naturalista Pérez Galdós e até o renovador da E s -
panha em espírito democrático, o educador Francisco Giner
de Los Rios. A popularidade de Ruiz Aguilera só foi que-
20) Salvatore Di Giacomo, 1860 — 1933. a
Poesie (edit. por B. Croce e F. Gaeta 2. ed.. Napoli, 1907). brada pelo poeta popular Salvador Rueda ( M ) , o cantor
Novelle napoletane (edit. por B. Croce, Milano, 1914).
K. Vossler: Salvatore Di Giacomo, ein neapolitanischer Volksdi-
chter in Wort, Bild und Musik. Heidelberg, 1898.
F. Gaeta: Salvatore Di Giacomo. Napoli, 1911.
L. Russo: Salvatore Di Giacomo. Napoli, 1921. 21) Cf. "Romantismo de Oposição", nota 77.
B. Croce: "Salvatore Di aGiacomo". (In: La Letteratura delia 22) Salvador Rueda, 1857 — 1933.
Nuova Itália. Vol. m . 3. ed. Bari, 1929.) Poesias completas (1911).
E. Moschino: "Salvatore Di Giacomo e la sua arte". (In: Leo- A. Martínez Olmedilla: Salvador Rueda, su vida, sus obras. Ma-
nardo, X/2, 1939.) drid, 1908.
2284 OTTO M A B I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2285

da Andaluzia, infelizmente um verbalista torrencial, de fa- Norte, veio o frísio Storm ( 2 4 ), que ainda nascera como sú-
dito dinamarquês. Escandinava é a sua grave melancolia,
mília hugoniana. A verdadeira renovação parecia caber a
nas poesias e nos contos. Como contista, Storm sobrevive
outro poeta regionalista, Gabriel y Galán ( 2 3 ), paisagista
e sobreviverá, comentarista dos homens silenciosos e me-
emocionado — lancólicos que vivem no litoral dos mares nórdicos, acostu-
mados à luta contra uma natureza hostil, fechando em si
"La duice poesia de mis campos mesmos, com o máximo pudor, os seus sentimentos e tragé-
Como el agua resbala por la piedra!" — dias íntimas. E m Storm há algo da arte severa de Brahms,
Quem leu In St. Juergen, Carsten Curator, Die Soehne des
idilista sentimental, de sinceridade inegável, embora o seu Senators, Hans und Heinz Kirch, guardará lembrança ines-
"realismo" seja mais romântico do que se deseja. O suces- quecível da terra e da gente de Theodor Storm, da pequena
so de Gabriel y Galán foi tão grande que o compararam a cidade cinzenta sobre a qual está zunindo, durante o ano1
Garcilaso de la Vega. Comparação absurda, tle consequên- inteiro, o vento frio do Mar do N o r t e ; e nas noites lamen-
tam no ruído desse vento as vozes das almas que passaram
cias funestas. A crítica conservadora tentou jogar Gabriel
e que não encontram paz porque nunca foram capazes de se
y Galán contra Dário e os "modernistas"; e a renovação
abrir. Storm condensou essa "Stimmung" num pequeno
da poesia espanhola não veio do regionalismo europeu e sim
,poema, com o verso-refrão que é como a epígrafe da sua
da América. obra inteira: "Querida cidade cinzenta à beira do mar"—
A renovação da literatura alemã veio realmente da pro-
víncia — e do pessimismo. O que faltava sobretudo a Heyse
"Du graue Stadt am Meer."
c a todos os epígonos-parnasianos era a atmosfera; aquilo
a que os alemães chamam "Stimmung": o acorde entre a A importância histórica do grande contista Storm re-
emoção e o ambiente, o lirismo. É tudo literatura livresca. side, principalmente, na sua poesia lírica. Depois de um
"Stimmung" havia em Raabe, mas o humorismo algo esqui- intervalo de duas gerações de prosa, Storm reencontrou o
sito a ocultava. "Stimmung", a da melancolia tipicamente
austríaca, havia em Saar. É muito significativo que o liris- 24) Theodor Storm, 1817 — 1888.
Immensee (1852); Gedichte (1852); In St. Iuergen (1867); Ein
mo, depois de 1870, só sobreviveu na província, nas margens stiUer Musikant (1874); Aquis submersus (1877); Carsten Curator
(1877); Zur Wald-und Wasser/reude (1878); Renate (1878);
do Reich, longe da nova capital industrializada e da "cida- Eekenhof (1879); Die Soehne des Senators (1880) Rans und
de dos pintores" afetados. Saar era um homem à margem, Heinz Kirch (1882); Ein Fest auf Haderslevhuus (1885); Boetjer
Basch (1887); Der Schimmelreiter (1888).
geográfica e humanamente. Da outra margem, do extremo Edição por A. Koester, 8 vols., Leipzig, 1919/1920.
Eg Lukacs: "Theodor Storm". (In: Die See leund die Formen.
Berlin, 1911.)
A. Biese: Storms Leben und Werke. Leipzig, 1917.
P. Pitrou: La vie et 1'oeuvre de Theodore Storm. Paris, 1923.
23) José Maria Gabriel y Galán, 1870 — 1905. P. Schuetze e E. Lange: Storms Leben und Dichtung. 4.a ed. Ber-
Castellanos (1902); ExtremeUas (1902); Campesinas (1904). lin, 1925.
A. Revilla Marcos: José Maria Gabriel y Galán. Su vida Fr. Stuckert: Theodor Storm. Sein Leben und seine Welt. Bre-
obras. Madrid, 1923. men, 1955.
F. Iscar Peyra: Gabriel y Galán, poeta de Castilla, Madrid.
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tom da poesia popular, a música romântica dos Brentano e trício Liliencron ( 2 5 ) da imitação epigônica; deu-lhe a co-
Eichendorff; dir-se-ia Lenau, se Storm não fosse superior ragem de falar imediatamente, com lirismo direto, da sua
pela cultura cuidadosa, quase parnasiana, do verso. O ele- própria realidade pessoal. E assim Liliencron se tornou um
mento romântico é forte em Storm: aparece na sua melan- dos maiores poetas líricos de língua alemã. No começo,
colia, no gosto da solidão. Mas também é realista, enca- encontrou resistência dura da parte dos conservadores que
rando a realidade sem sentimentalismo; e, além do binó- o consideravam como diletante e revolucionário inábil do
mio romantismo-realismo, está a sua técnica novelística, que verso. Depois, muito da sua poesia — Liliencron era fe-
lembra a Saar e, mais do que este, a Conrad. Quase nunca cundo e escreveu demais, muitos versos fáceis — entrou
Storm narra diretamente os acontecimentos do enredo; um na memória dos menos cultos; e, então, começou a resis-
amigo conta, numa noite de conversa, coisas que viu na mo- tência dos "modernos". Os contemporâneos imediatos de
cidade, há muitos anos passados, ou então coisas que ouviu Liliencron eram os decadentistas melancólicos e requin-
contar, naquela época, por um velho que as testemunhara tados, imitadores do simbolismo francês; a eles, o alemão
na mocidade dele. Deste modo, tudo aparece refletido e ^ g o grosseiro com a sua aparente alegria de viver era in-
mais uma vez refletido; tudo, em Storm, é lembrança lon- tensamente antipático; e, em parte, essa resistência conti-
gínqua. O mundo lírico de Storm é uma transfiguração de nua e será impossível, porque Liliencron, pela sua situação
realidades passadas pela memória. Neste sentido, Storm social, não pode ser simpático ao mundo. Descendente de
é evasionista como Saar e Raabe. Mas, enquanto Raabe de- barões dinamarqueses, era aristocrata prussiano, da pequena
formava as coisas pelo humorismo e Saar pela melancolia aristocracia dos JunJkers, e era oficial prussiano. Lembran-
nostálgica, Storm deformava a realidade num sentido mais ças da guerra de 1870 e cenas da vida militar prussiana na
plástico: criou símbolos de significação permanente. Já paz são frequentes na sua poesia; até as poesias eróticas
refletem aventuras de tenente. E há muita gente que não
a novela histórica Ein Fest auf Haderslevhuus e o conto
gosta disso. O "militarismo" em Liliencron é, porém, só
"Hans und Heinz Kirch" destacam-se assim; ainda mais a
uma lembrança nostálgica de dias mais felizes. O poeta foi,
última e mais forte das suas novelas, Der Schimmelrejter
cedo, reformado; e depois de uma experiência malograda
(O Cavaleiro Branco), em que um fantasma da superstição
no serviço público civil, tinha que viver miseravelmente
popular se revela como lembrança quase mítica de uma
como literato profissional, boémio; desde então, a sua poe-
grande figura esquecida do passado: do homem que sim-
sia, embora conservando os mesmos assuntos, tornou-se
boliza a luta daquela gente germânica contra o mar. Aí,
Storm, aproximando-se do tamanho e forma do romance,
ultrapassou definitivamente o binómio romantismo-realis- 25) Detlev von Liliencron, 1844 — 1909.
Adjutantenritte (1883); Gedichte (1889); Neue Gedichte (1893);
mo; através da narração duplamente indireta aparece uma Kriegsnovellen (1894); Poggjreâ (1896); Nebel und Sonne (1900);
realidade superior, a da arte. Bunte Beute (1903); Balladenchronik (1906).
Edição por R. Dehmel, 8 vols., Berlin, 1911/1913.
H. Spiero: Detlev von Lilíencrons Leben und Werice. Berlin,
A poesia lírica de Storm não é comparável à sua arte- 1913.
H. Maync: Detlev von Liliencron. Berlin, 1920.
narrativa; mas teve repercussão mais profunda. Libertou J. Elema: Stil und poetischer Charakter bei Liliencron. Amster-
— e é este o mérito principal do poeta Storm — o seu pa- dam, 1937.
H. Leip: Liliencron. Leipzig, 1943.
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cada vez mais "moderna". Não parece assim, à primeira "Und der gesungen dieses Lied,
vista. É paisagista de estilo meio romântico, como Storm. Und der es liest, im Leben Zieht
Uma das poesias melancólicas desse género, "Auf dem Kir- Noch frisch und froh;
chhof" ("No Cemitério"), é conhecida mundialmente pela Doch einst bin ich und bist auch du
música de Brahms. Além desse poema, o mundo lá fora Verscharrt im Sand zur ew'gen Ruh' —
ignora o poeta, que tem algo de regionalista: poeta do W e r W e i s s Wo."
mar e das florestas sombrias da Alemanha setentrional, e
sobretudo da estepe que êle descobriu poeticamente; e nes- Todos nós, que andamos pela vida, um dia estaremos
enterrados — "Quem Sabe Onde".
ses Heidebilder é que Liliencron aparece em toda a sua
In einer grossen Stadt revela as angústias do homem
"modernidade", dum realismo muito franco e tratamento
perdido entre milhões de homens alheios, sozinho na gran-
muito pessoal, antitradicionalista, do verso.
de cidade. E m toda a parte, em Liliencron, está a obses-
Liliencron não pertence à "escola clássica" da poesia são da morte, para a qual encontrou afinal o símbolo nos
alemã; não tem nada com Klopstock e Hoelderlin, pouco versos quase clássicos de Acherontisches Froesteln, a visão
com Goethe e Moerike. Os seus antepassados poéticos são do rio Lete, que o levará para o silêncio frio:
Matthias Claudius e Eichendorff, a "escola da poesia po-
"Durch kahle Aeste wird ein Fluss sich zeigen,
pular". Por isso sabia escapar do epigonismo; mas à músi-
Der sçhlaefrig an mein Ufer treibt die Faehre,
ca do lied juntou o realismo que faz o encanto de poesias
Die mich hinueberholt ins kalte Schweigen."
como "Maerztag", a sensibilidade impressionista dum ofi-
cial e caçador, acostumado a viver ao ar livre, observando
Do começo até o fim, a poesia de Liliencron apresenta
as oscilações da atmosfera:
um quadro completo da existência humana, não excluindo
nada. Preparou-se assim a lírica naturalista do seu amigo
"Wolkenschatten fliehen ueber Felder, Richard Dehmel, que devia editar-lhe as obras completas.
Blauumdunstet stehen ferne W a e l d e r . . . " Mas este, se bem que menos profundo, tem horizonte mais
amplo: já está emocionado pela questão social, que Lilien-
O horizonte poético de Liliencron era limitado: vida cron ignorava ou quis ignorar, limitado pelos preconceitos
da sua casta.
militar, caça, paisagens, fugitivas aventuras eróticas, boé-
Doutro lado, essa casta aristocrática prussiana, embo-
mia, e muita nostalgia de ocasiões perdidas. Mas esse jun-
ra dirigindo o país, abrigava grande número de pequenos
ker era poeta nato, em todas as suas consequências. A vida
icrratenientes e oficiais subalternos que, gozando de pri-
normal rejeitou-o. E êle reagiu com pessimismo cada vez
vilégios de aparência, não participavam da prosperidade
mais negro. Quando, em Wer Weiss v/o, pretendeu es- geral. Os grandes aristocratas prussianos, sobretudo os da
crever a balada patriótica dos soldados mortos na batalha Silésia e da Renânia, tornaram-se sócios dos reis do car-
e enterrados, "quem sabe onde", ocorreram-lhe os versos , do aço e da "indústria química. Os pequenos viram-se
finais — M. reduzidos à condição de oficiais subalternos e funcionários
2200 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2291

públicos mal remunerados, mas cumprindo o dever com tério, L'Adultera, começou a série dos seus romances "mo-
a mesma tenacidade e honestidade dos antepassados e ocul- dernos", realistas. Com o romance da sedução de uma po-
tando, precariamente, a pobreza vergonhosa. Liliencron bre moça por um oficial, Irrungen, Wirrungen, conseguiu
era dessa gente. Mas, em geral, eles não sabiam escrever. o primeiro êxito. E o seu romance mais famoso, Effi
Acharam o cronista fiel num homem de outra estirpe e até Briest, é uma Madame Bovary prussiana. O sentido secre-
de outra raça, homem acima dos partidos de qualquer es- to dessas histórias, narradas com elegância despreocupada,
pécie, políticos, sociais e literários: Fontane. é uma crítica ao conceito de honra da aristocracia prussia-
A literatura alemã renovou-se pelo provincialismo; n a : continuam idolatrando esse fetiche, em condições so-
consumou-se essa renovação pelo escritor que descobriu a ciais que j á não admitem o culto sincero, permitindo, po-
província em redor da capital e enfim a província dentro rém, atos poucos honrosos contra gente inferior ou inde-
da própria capital. O ponto de partida de Fontane ( 26 ) fesa. Contudo, Fontane não considerava como melhor a
eram os romances nos quais Alexis glorificara a história nova burguesia. Não tinha censurado as atitudes aristocrá-
modesta e contudo significativa de Brandemburgo. Numa ticas; só tinha demonstrado, com objetividade imparcial,
obra na qual trabalhou durante vinte anos, publicando-a em as consequências morais, desastrosas. Tampouco censurou
pedaços, as Wanderungen durch die Mark Brandenburg, a burguesia; preferiu o sorriso sarcástico; e Frau Jenny
descobriu Fontane o encanto íntimo e as lembranças histó- Treibel é um panorama altamente divertido das atividades
ricas daquela paisagem que fora considerada feia porque de uma grãfina berlinense. Fontane é mais humorista do
é sombria. Escreveu mesmo romances históricos, dos quais que satírico. Em Irrungen, Wirrungen (Equívocos, Confu-
o mais importante, Vor dem Sturm, descreve a corrução sões), o oficial culpado é, afinal, um arrependido sem cul-
moral na Prússia antes da derrota de 1806. Mas poucos o pa propriamente dita; e Jenny Treibel é, apesar de tudo,
leram e ninguém lhe reconheceu as qualidades literárias. muito razoável e simpática. Fontane não toma partido
Fontane ganhava a vida como jornalista nos grandes diá- contra os seus personagens. Para atitudes partidárias fal-
rios berlinenses; e depois de 1870 foi êle, parece, o único ta-lhe o entusiasmo; é antipatético. Não gosta da nova
que observava a transformação da pequena capital quase época burguesa. Mas também duvida dos "bons, velhos
provinciana de outrora em grande cidade moderna. As ob- tempos". Acha que todos os tempos foram ruins, que a
servações do jornalista ensinaram-lhe o realismo. Mas o Justiça e a Bondade nunca tiveram oportunidade de vencer,
modelo imediato era Flaubert. Com um romance de adul- e que ao homem honesto não resta outra solução do que a
lei moral dos prussianos à antiga: cumprimento do dever
26) Theodor Fontane, 1819 — 1898. sem esperança de recompensa. Ainda havia gente assim;
Wanderungen durch die Mark Brandenburg (1862/1881); Vor c no romance magistral Die Poggenpuhls Fontane reve-
dem Sturm (1878); Grete Minde (1880); L'Adultera (1882); Irrun-
gen, Wirrungen (1887); Stine (1890); Frau Jenny Treibel (1892); lou-lhes a existência de oficiais pobres, residindo em bair-
Effi Briest (1895); Die Poggenpuhls (1896); Der Stechlin (1898).
Edição S. Flscher, 21 vols., Berlin, 1905/1908; Edição dos roman- ros baratos de Berlim: província dentro da própria capital.
ces, 8 vols., Muenchen, 1959. Fontane é mestre do colorido regional. Uma época
C. Wandrey: Theodor Fontane. Muenchen, 1919.
H. Maync: Theodor Fontane. Berlin, 1920. da vida berlinense e brandemburguense fica fixada nos seus
K. Hayens: Theodor Fontane. London, 1920. romances. Os enredos não são muito importantes. Os per-
G. Radbruch: Fontane oder Skepsis und Glaube. Leipzig, 1945.
O. Lukacs: Deutsche Realisten ães 19. Jahrhunderts. Berlin, 1952. •onagens revelam-se dialogando; o último romance, Der
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Stechlin, consiste só em diálogos e conversas, sempre deli- de 1870, sem vontade de submeter-se ao novo estado de coi-
ciosas. " E m toda conversa precisa-se de um que se cala", sas. O divórcio entre o Reich alemão, a organização polí-
reza uma das frases aforísticas de Fontane. Êle mesmo era tico-militar-econômica, e a civilização alemã era completo.
o observador silencioso dos seus personagens, aos quais Mas a linha de separação não acompanhava a fronteira
comunicava o seu próprio talento extraordinário de cau- entre os programas políticos. Os socialistas e os católicos,
seur espirituoso. Talvez se encontre nesse talento o se- os inimigos mais decididos do Reich de Bismarck, não es-
gredo de Fontane. E r a berlinense típico; mas descendia tavam representados dentro daquela "oposição literária".
de huguenotes franceses, daqueles que emigravam para a E liberais da velha estirpe como Freytag aderiram ao Reich,
Prússia no fim do século X V I I , desempenhando desde en- enquanto o "oposicionista" Raabe era conservador. A dis-
tão um grande papel na vida social e cultura de Berlim. tinção entre "literatura da capital" e "literatura da provín-
Daí o esprit de Fontane e a sua capacidade de ignorar os cia" é melhor, mas também inexata — Fontane era berli-
preconceitos da sua gente, a sua imparcialidade que limi- nense — e sem conteúdo ideológico. Críticos modernos
tou a sátira ao sorriso complacente. "É preciso não exage- gostam de lembrar os místicos do século X V I I e os pietis-
rar as tragédias", dizia F o n t a n e ; e, com exceção de Effi tas do século X V I I I , os "Stillen im Lande" (os "Quietos
Briest, os seus romances não terminam com desfecho trá- no País"), retirados do mundo barulhento; e essa defini-
gico; mas tampouco com happy end. As soluções ficam ção acerta pelo menos com respeito a Keller, Raabe e Storm,
indecisas, em suspenso. Eis o elemento de "compromisso sem excluir Fontane. Contudo, a distinção não ê satisfató-
vitoriano" em Fontane, mas também mais uma prova da ria: parece indicar que os escritores provincianos estavam
sua imparcialidade objetiva em face da vida. O jornalista mais longe da realidade do que os outros, enquanto se dá,
liberal, que glorificava a aristocracia prussiana, não per- na verdade, o contrário. J á com respeito à psicologia dos
tencia a nenhum partido, tampouco a um partido literário. personagens, os "provincianos" são os mais sinceros, rea-
Tinha — como único crítico berlinense — a coragem de listas, livres da ambição de fantasiar as suas criaturas como
saudar os começos do naturalismo zolaísta na Alemanha; e bonecos históricos ou exóticos, o que caracteriza o epigo-
com espanto e surpresa os jovens da vanguarda literária nismo parnasiano. Quanto ao ambiente, também se limitam
verificaram que esse velho já tinha realizado a parte melhor a coisas vistas e vividas — e foi esse realismo no qual o
das suas próprias aspirações. Fontane foi celebrado pelos Reich não achou graça, Keller, Raabe, Storm, por mais
jornais liberais e ignorado pelos círculos oficiais. Numa arcaica que pareça a sua maneira de narrar, são os equiva-
pequena poesia humorística, descrevendo a festa do seu lentes alemães do realismo europeu dos Flaubert e Tha-
setuagésimo aniversário, Fontane comenta a ausência de ckeray e, sobretudo, de Trollope; è Fontane revela mesmo
todos os nomes aristocráticos que enchem os seus roman- muita semelhança com os dois ingleses; a diferença deve-se
ces, consolando-se com a presença de tantos jornalistas ju- à situação fechada da civilização alemã, então separada das
deus. Fontane não era oficialmente reconhecido. grandes correntes europeias. Os "novos senhores", porém,
Por volta de 1875 ou até de 1880, Keller e Fontane não podiam gostar desse realismo que cheirava a oposição.
eram desconhecidos; Raabe e Storm eram leitura dos "me- O gosto oficial continuou "histórico": a nova burguesia
nos cultos" ou "atrasados". A todos eles negou-se o reco- precisava de uma árvore genealógica, e os junkers de Bis-
nhecimento oficial, porque refletiram a Alemanha de antes marck, de um costume medieval.
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HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2295

Daí uma nova onda de historiografia política na Ale- eloquente em favor da liderança prussiana na Alemanha.
manha, comparável à historiografia política de 1830 e 1840,. Esse precursor do pangermanismo era de longínqua des-
de Guizot e Thiers, Macaulay e Gervinus; escreveu-se his- cendência eslava; e já se comparou a sua eloquência tor-
tória para aludir, nas entrelinhas, a atualidade. O mau rencial às canções de batalha dos lendários bardos eslavos.
exemplo fora dado por um dos maiores historiadores de Treitschke é o maior nome da literatura oficial do novo
todos os tempos, Mommsen ( 2 7 ). E r a um gigante da eru- Reich, tão pobre em valores culturais como rico em forças
dição, conquistando novos continentes da arqueologia, nu- militares e económicas e em trabalho científico a serviço
mismática, epigrafia e jurisprudência romanas. Um monu- daquelas. Não é fácil descobrir um só nome representativo
mento também é a Roemische Geschichte (História de da literatura oficial. O mais indicado parece ser Wilden-
Roma); mas aí já aparece a maneira de "atualizar" a his- bruch ( 2 9 ), que glorificou em poemas narrativos as vitórias
tória, representando-se Cícero como advogado nacional- de 1870; como dramaturgo, apresentou no palco príncipes
liberal, Catilina como agitador lassalliano, os generais ro- prussianos e imperadores medievais, com tanto sucesso que
manos como junkers. Mommsen, ligado ao seu conter- se ousou comparar as peças, cheias de retórica retumbante,
râneo Storm como amigo de mocidade, era e continou li- às "histórias" de Shakespeare. Mas nem sempre agradou
beral. Mas, conforme a sua própria confissão, a Roemis- aos poderosos. Wildenbruch era parente da casa imperial
che Geschichte é fruto das decepções de 1848, protesto con- dos Hohenzollern, mas um caráter independente, o jovem
tra o palavrório vazio dos oradores parlamentares, que não- Imperador Guilherme I I detestava-o como a um oposicio-
conseguiram a unificação nacional. Mommsen admirava a nista.
César; não gostava de Bismarck, mas, quanto à Antigui- A distinção entre "oficial" e "oposição" é insuficien-
dade, revelou simpatias perigosas para com a "política da
te. Na verdade, havia na Alemanha de 1880 três "classes
mão forte". Essas simpatias inspiraram, de todo, a histo-
literárias" diferentes, correspondentes às classes sociais
riografia de Treitschke ( 2 8 ). Ao julgá-lo, não se deve es-
dos burgueses-capitalistas, dos burgueses atrasados da pro-
quecer a sua atividade como publicista oficial de Bismarck,
víncia, e dos rentiers. A primeira dessas classes exprimiu-
como chefe dos prussionófilos na Saxônia, orador parla-
se através da literatura epigonista-parnasiana; a segunda,
mentar, jornalista nacionalista e anti-semita. A sua gran-
através da literatura dos "quietos"; e a terceira através do
de obra histórica, a Deutsche Geschichte von 1815 bis 1848,
renascentismo italianizante. Impõe-se, logo, mais uma dis-
(História da Alemanha Entre 1815 e 1848), é um panfleto
tinção. Os poetas de Munique também gostavam muito da
Itália e, particularmente, da Renascença italiana, como de
uma época de criaturas belas, inteligentes e fortes no am-
27) Theodor Mommsen, 1817-1903. biente de uma arquitetura suntuosa. Os burgueses ricos de
Roemische Geschichte (1854/1856) .
J. Hartmann: Theodor Mommsen. Berlin, 1908. 1880 gostavam de reconhecer os seus antepassados espiri-
W. Weber: Theodor Mommsen. Stuttgart, 1929.
28) Heinrich von Treitschke, 1834 — 1896.
Historische und politische Aufsaetze (1865, 1870); Deutsche Ges- 20) Ernst von Wildenbruch. 1845 — 1909.
chichte von 1815 bis 1848 (1879) . Vionville (1874) Sédan (1875); Die Karolinger (1882); Harold
E. Marcks: Treitschke. Ein Gedenkblatt. Berlin, 1905. (1882); Die Quitiows (1888); Der Generalfeldoberst (1889); Der
W. Bussmann: Treitschke, sein Welt-und Geschichtsbild. Goettin- neue Herr (1891); Heinrich und Heinrichs Geschlecht (1895).
gen, 1952. B. Litzmann: Ernst von Wildenbruch. 2 vols. Berlin, 1913/1916.
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HISTÓBIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2297
tuais naquelas grandes figuras; e para a nação reconhecer
geralmente o parentesco com as maiores épocas da história, Pela decadência do humanismo, a Itália deixou de ser
mandaram construir palácios e edifícios em todos os estilos, o país da arte greco-latina, transformando-se em país da
com predileção no gótico das ricas cidades medievais e no arte renascentista. Esse processo foi bastante complicado.
estilo da Renascença italiana: aquele carnaval de arqui- A interpretação do fenómeno "Itália" percorreu, até a for-
tetura, que é o equivalente artístico da poesia parnasiana. mação do conceito "Resnascença", um certo número de fa-
Mas o chamado "Renascentismo" tem outros motivos e ou- ses ( 3 0 ), entre as quais se destacam duas hipóteses opostas:
tras raízes sociais: os seus portadores eram os rentiers a primeira, literária e livresca; a segunda, artística e "exis-
cultos, até muito cultos, uma elite espiritual, filhos da anti- tencial". Os romeiros medievais que se serviram dos Mi-
ga burguesia pré-capitalista, das cidades suíças meio aris- rabilia, espécie de Baedekers religiosos, para conhecer e
tocráticas, de Zurique e Basileia, e daquelas grandes ci- visitar os santuários de Roma, são os antepassados dos hu-
dades alemãs que sucumbiram menos à influência prussia- manistas eruditos que na Itália só procuraram manuscritos,
inscrições, achados arqueológicos. Do ponto de vista filo-
na, como Francfurt e Hamburgo. E n t r e eles, havia muitos
sófico, não há diferença entre relíquias cristãs e relíquias
judeus ricos, filhos de banqueiros, excluídos da vida pú-
pagãs. Os romeiros recitaram versículos bíblicos diante
blica pelo anti-semitismo alemão, assim como os outros es-
dos lugares famosos na história eclesiástica; e um Addison,
tavam excluídos da evolução capitalista pela particularida-
nas Remarks on Several Parts of Italy, cita abundante-
de da sua situação económica. Mas o fenómeno não era,
mente versos de poetas latinos, quando avista os lugares
de modo algum, exclusivamente alemão. Havia "renascen-
famosos da história romana.
tismo" na França e, sobretudo, na Inglaterra. Em toda a
parte, a "velha burguesia", base social dos esforços e ati- No pólo oposto encontram-se os chevaliers dos séculos
vidades culturais, começava a perder a importância eco- X V I e X V I I , cuja formação terminava regularmente com
nómica; e com isso estava em perigo a própria civilização uma viagem pela Itália, a "cavalier tour" ou "tour de che-
nacional, cedendo ao utilitarismo científico-técnico. Daí a valier"; procuraram na Itália aprender boas maneiras e ex-
nostalgia de épocas de civilização mais artística, mais com- perimentar aventuras eróticas. O último desses chevaliers
pleta, enquanto o interesse pela Renascença italiana se ori- foi Stendhal, fugindo da França "trivial e burguesa" para
ginou também do enfraquecimento do humanismo greco- a Itália das "paixões selvagens". E um eco epigonístico
latino. Quanto mais o humanismo clássico perdeu, tanto desse conceito é a novela erótica de Heyse. E n t r e os dois
mais era preciso procurar outros modelos no passado: não pólos situam-se os artistas plásticos, entusiasmados pelo
apenas na Itália, como fizeram tantos alemães e ingleses, passado como os humanistas, mas tão pouco livrescos como
os chevaliers. Durante o século XVI, os artistas estran-
mas também no próprio passado nacional. De modo que o
geiros, na Itália, são simples aprendizes; até um Duerer
resultado do renascentismo italinizante foi, em muita par-
sentiu-se assim. Mas os pintores franceses do século X V I I ,
te, um renascimento de tradições nacionais, esquecidas mi
abandonadas, e enfim o nacionalismo orgulhoso e agressivo
Neste sentido, o renascentismo é um fenómeno geral na .'10) W. Rehm: Das Werden des Renaissancebíldes in der deutschen
Europa. Dichtung. Leipzig, 1924.
W. Waetzoldt: Das klassische Land. Berlin, 1927.
J. R. Hale: England and the Italian Renaissance. The Groioth of
interest in its History and Art. London, 1954.
H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 2299
OTTO M A R I A CARPEAUX
2298
italianofilia encontre-se em Gregorovius ( 3 1 ), filho da lon-
quando a arte italiana contemporânea já foi considerada
gínqua P r ú s s i a oriental, que passou a vida inteira no país
decadente, só chegam para estudar o passado. Descobrem
aos seus sonhos nórdicos. Numa imensa Geschichte der
os palácios e vilas, os jardins de Roma, os logradouros pú-
Stadt Rom is* Mittelalter, (História da Cidade de Roma na
blicos e a gente viva entre as ruínas, as osterias, o vinho e
Idade Média), descreveu, com o colorido de um romance
as moças. Ao lado da Êcole Française de Roma vive a boé-
histórico, o período mais sombrio da história italiana:
mia dos artistas franceses e, depois, a de outras nações.
Roma na Idade Média, em ruínas, devastada pelos bárbaros
O mármore frio já não satisfaz. Procura-se, depois da arte
e pela peste, governada por prelados ignorantes e fanáticos
greca-romana, a arte italiana, mas não a contemporânea —
— em Gregorovius há muito preconceito de protestante.
"Barroco" tinha sentido pejorativo — e sim a histórica.
Mas era um poeta nato. A sua obra de medievalista é como
Evidentemente, conforme o gosto classicista dos franceses,
o pedestal da magnífica Itália livre da Renascença. A sua
prefere-se agora aquela arte italiana que mais harmoniza
emoção revela-se na epígrafe que escolheu para a obra má-
com a antiga: a do Cinquecento. Rafael"é o maior nome.
xima da sua italianofilia, os Wanderjahre in Italien (Anos
O século X V I I I consagrará essa escolha, acrescentando o
de Viagem na Itália): o verso virgiliano "Deus nobis haec
suave Correggio. O Quattrocento é desdenhado como épo-
otium f ecit". A Itália era como o dia santo da humanidade.
ca infantil da arte. Ainda Goethe passou por Florença sem
As dúvidas surgiram quando a italianofilia passou para
ver nada. O romantismo modificou a perspectiva. Por
as mãos dos rentiers. A decadência do humanismo já não
volta de 1820, os pintores alemães em Roma estão cheios
lhes permitia outra atitude em face da Itália q U e a renas-
de entusiasmo religioso pela arte ingénua do F r a Angélico
centista; mas ao seu passadismo meio pessimista de epí-
da Fiesole. Enfim, Ruskin e os pré-rafaelitas ingleses
gonos faltava a vitalidade dos artistas. A Renascença foi
prestam a última homenagem a Rafael, chamando "pré-
uma época genial, pensavam, mas genial demais, corrom-
rafaelita" a arte italiana "antes dele", a do Quattrocento,
pendo-se a si mesma pelo excesso de individualismo. O pro-
à qual dedicam a maior admiração. Raffaello é substituído
blema que ocupava os rentiers foi a explicação da derrota
por Botticelli. O século XX dará mais um passo para trás:
da Renascença. Neste sentido escreveu Gobineau ( 32 ) as
entronizará a Giotto.
cenas históricas La Renaissance, espécie de "diálogos dos
A literatura percorreu o caminho inverso. No século
mortos" ou "imaginary conversations" entre os génios da-
X V I I I , a Itália, como país de cultura, merecia apenas a
atenção dos grecistas e latinistas. Os românticos já pre-
ferem Dante e celebram as aventuras político-militares dos
31) Ferdinand Gregorovius, 1821 — 1891. -
imperadores alemães medievais na Itália. Começa-se a fa-
lar da "eterna nostalgia dos povos germânicos pelo Sul".
Os italianófilos ingleses, os Byron, Shelley, Keats, Landor, F. J. Hoenig: Gregorovius, der Geschichtschreiber der Stadt Rom
Stuttgart, 1921. " " " Kom-
Browning, justificam bem essa teoria. Landor e Brown- 32) Joseph Arthur, comte de Gobineau, 1816-1882.
ing já são contemporâneos dos pintores pré-rafaelitas: o Essai sur Vinégalité des roces humaines (1853/1855): NouvelTr*
asiatiques (1878); La Renaissance (1877). "ouveiles
século XV, o Quatrocento, é festejado como o maior pe- M. Lange: Le comte de Gobineau, étude biographique et critiaue
ríodo da civilização humana depois da Grécia; comparam Strasbourg, 1924. . * •
M. Brion: Gobineau. Marseille, 1927.
Florença a Atenas. Talvez o mais belo eco literário ci
2300 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2301

quele grande tempo, quando já moribundo. Gobineau pre- ca já decadente das cidades suíças; ele mesmo era mais do
feriu o século X V I , não por motivos estéticos, mas porque que decadente, sofrendo de ciclotimia, passando a mocida-
na Renascença o interessava principalmente o fim em cor- de inteira numa espécie de letargia sonolenta. Só com qua-
rução moral, crimes, degradação e derrota. E r a pessimista. renta anos de idade tornou-se capaz de começar atividades
Como diplomata, tinha visto o mundo inteiro — as Nou- literárias; e na velhice caiu novamente em graves distúr-
velles asiatiques são uma lembrança deliciosa disso; mas o
bios mentais. Se este homem gostava de escrever novelas
mundo inteiro o aborrecera. E m toda a parte encontrou só
históricas cujos personagens são, de preferência, super-
decadência. O seu orgulho aristocrático, ilimitado, expli-
homens de instintos violentos, o caso parece já explicado:
cava esse fenómeno pelo aburguesamento, que ele identifi-
um burguês decadente, fantasiando-se de trajes históricos
cava com uma deterioração da raça, chegando, assim, à
para satisfazer mentalmente os instintos mórbidos. Com
teoria racista que é o motivo principal da sua sobrevivên-
efeito, grande parte da obra de Meyer pertence ao parnasia-
cia e o estigma do seu nome. À raça nórdica, pretenso ber-
nismo dos epígonos; e o patriotismo suíço do romance
ço da alta aristocracia francesa, atribuiu todos os feitos e
histórico Juerg Jenatsch não esconde os motivos da admi-
méritos da história e civilização; responsabilizou as raças
inferiores, os "sublatinos", "levantinos", "semitas", pela ração pelo herói amoral. Apenas, Meyer é um artista muito
decadência da humanidade. Considerava a isso como "filo- maior do que todos os outros parnasianos de língua alemã.
sofia da história", e procurava demonstrá-la, apresentando Empregou a técnica novelística indireta de Storm na maior
os momentos "críticos" da história, quer dizer, aqueles que das suas novelas, e Storm aparece ao lado do suíço como um
revelam a "morte" de uma raça e de uma civilização. E i s o pobre-diabo provinciano: na Hochzeit des Moenchs (O
sentido de La Renaissance. A teoria na qual a obra se Casamento do Monge). Dante, exilado na corte de Verona,
baseava, sem exprimi-la diretamente, só encontrou aten- é maltratado pelos cortesões que o querem obrigar a con-
ção muito mais tarde. A época dos grandes quadros histó- tar uma história; e o poeta conta uma novela sinistra na
ricos admirava a obra como "panorama", e admirava-a de- qual se repetem e entrelaçam os destinos reais dos presen-
mais, porque não tomou conhecimento de outra interpreta- tes — enfim, todos estão estupefatos, e Dante sai da sala
ção da Renascença, mais profunda e mais artística: a de noturna, uma tocha solitária iluminando-lhe o início do
Conrad Ferdinand Meyer, baseada em doutrina imensa- amargo caminho solitário pelos séculos. Meyer tem o sen-
mente diferente e, no entanto, de conteúdo psicológico pa- so das grandes cenas dramáticas, apresentando-as em es-
recido.

Conrad Ferdinand Meyer ( 3 3 ) era o último rebento de Edições por R. Faesi, 4 vols., Leipzig, 1926, e por J. Fraenkel, 4
vols., Zuerich, 1928.
uma grande família de Zurique, da burguesia aristocráti- R. DUarcourt: Conrad Ferdinand Meyer. Paris, 1913.
A. Frey: Conrad Ferdinand Meyer, sein Leben und seine Werke.
3.° ed. Stuttgart, 1919.
F . J. Bauragarten: Das Werk Conrad Ferdinand Meyers. Re-
33) Conrad Ferdinand Meyer, 1825 — 1898. naissanceempfinden und Stil. Muenchen, 1920.
Gedichte und Balladen (1864); Huttens letzte Tage (1871); En- H. Maync: Conrad Ferdinand Meyer und sein Werk, Frauenfeld,
gelberg (1882); Juerg Jenatsch (1876); Der Heilige (1880); Gedi- 1925.
chte (1882); Novellen (1883); Die Hochzeit des Moenchs (1884); Dié R. Faesi: Conrad Ferdinand Meyer. Frauenfeld, 1925.
Richterin (1885); Die Versuchung des Pescara (1887); Angela C. K. Bang: Maske und Gesicht in den Werken Corand Ferdi-
Borgía (1890). nand Meyers. Baltimore, 1940.
HJSTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2303
2302 OTTO MARIA. CARPEAUX
duzindo mais uma vez uma analogia aparente com Gobi-
tilo muito elaborado — "Meyer", disse Gottfried Keller,
neau. Para revelar o caráter dos seus personagens, Meyer
"é como brocado". colocou-os no momento de grandes crises históricas, nas
Muitas dessas novelas são só "brocado", decorativas, quais se aproxima do homem a tentação de agir contra a
já menos legíveis hoje em dia. O valor permanente de vontade de Deus, contra a sua predestinação, para desviar
Meyer reside na sua poesia lírica: síntese única do gran- o destino, o destino individual e o da época. Uma tenta-
de classicismo de Goethe e Hoelderlin com o tom simples e ção assim ataca na Versuchung des Pescara (A Tentação
comovido da poesia popular, na tradição de Eichendorff e de Pescara) um herói exemplar da Renascença italiana;
Storm. E i s o segredo da arte de Conrad Ferdinand Meyer: Guicciardini, tipo do intelectual corrompido, pretende ex-
é como um diamante de muitos reflexos, expressões da plorar as ambições ideais do nobre, já mortalmente ferido.
alma complicada de um suíço algo primitivo e burguês de- Mas Pescara vence a tentação; morre puro como vivera. E
cadente, artista requintado e cristão angustiado, e esse úl- a sua viúva, Vittoria Colonna, acabará em reclusão e deses-
timo ponto é de importância interpretativa. Meyer con- pero, e o mundo da Renascença, já sem heróis, acabará em
servou-se fiel ao calvinismo rigoroso dos seus antepassa- degradação. O próprio Meyer venceu uma tentação como
dos. Conseguiu até o que nenhum poeta antes conseguira, a de Pescara. Lutaram na sua alma o individualismo amo-
isto é, exprimir numa fórmula de simplicidade comovente ralista e a timidez mórbida perante o destino. Venceu tal-
o terrível dogma da predestinação, nas rimas monótonas do vez, menos pela consciência cristã do que pela consciência
Saeerspruch, sobre os "grãos da semente de Deus" — do peso inelutável da história, representado tão impressio-
" . . . und keines faelt aus dieser Welt, natemente nos versos do seu Chor der Toten, do coro dos
und jedes faellt, wie's Gott gefaellt." '"mortos que são muitos":
O calvinismo ortodoxo de Meyer corresponde ao or- " W i r Toten, wir Toten sind groessere Heere
gulho aristocrático de Gobineau. O cristão sincero, porém, Ais ihr auf der Erde, ais ihr auf dem Meere!"
é incapaz de acusar aos outros; só pode acusar a si mesmo.
E os meios de auto-acusação do calvinista, que não tem Essa consciência histórica encontrou a sua expressão
oportunidade para confessar-se, são limitados. Meyer ti- máxima em Burckhardt ( 3 4 ), professor da história das artes
nha que acusar-se, a si mesmo, de instintos recalcados. No
34) Jacob Burckhardt, 1818 — 1897.
seu calvinismo sobreviveu a "vontade do poder" dos ante- Die Zeit Konstantins des Grossen (1852); Der Cicerone (1855);
passados. Exprimiu-a na novela Der Heilige (O Santo), Die Kultur der Renaissance in Italien (1860); Weltgeschichtliche
Betrachtungen (1868/1871; publ. 1898); Griechische Kulturges-
cujo herói, o arcebispo-martir Thomas Becket, é o tipo da chichte (publ. 1898/1902).
imperiosidade clerical e ao qual Meyer deu os traços ca- Edição por K. E. Hoffmann, 14 vols., Basel, 1929/1934.
C. Neumann: Jacob Burckhardt. Muenchen, 1927.
racterísticos de um intelectual moderno; exprimiu-a na W. Rehm: Jacob Burckhardt. Frauenfeld, 1930.
admiração pelos super-homens meio geniais, meio crimi- K. Loewith: Jacob Burckhardt. Luzem, 1936.
A. von Martin: Niletzsche und Burckhardt. Zwei geistige Welten
nosos da Renascença. Mas tremeu èm angústia pascaliana im Dialog. 3. a ed. Basel, 1945.
— era grande leitor de Pascal. Aproximou-o do francês • W. Kaegi: Jacob Burckhardt. Eine Biographie. 3 vols. Basel,
1947/1955.
comunidade da doença física e mental. A ciclotimia de W. Kaegi: Jacob Burckhardt. Eine Biographie. 3 vols. Basel, 1947/
Meyer influiu, sem dúvida, no seu conceito da história, pro- 1947/1958.
• — *

2304 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2305

plásticas na Universidade de Basileia, de uma grande fa- de historiografia que, dando atenção menor aos aconteci-
mília da "burguesia aristocrática" da cidade de Erasmo e mentos políticos, considerava em primeira linha os fenó-
dos humanistas; velho solteirão, vivendo com egoísmo culto menos culturais; a "Kulturgeschichte". A Kultur der Re-
às suas predileções artísticas e históricas. Além da Kultur naissance in Italien é u m panorama: uma obra de arte, só
der Renaissance in Italien (A Civilização da Renascença comparável aos grandes panoramas de Michelet, mas mais
na Itália), livro fundamental do renascentismo, publicou serena, embora comovida pela luta íntima em Burckhardt,
pouco em vida; e as publicações póstumas ficaram quase em face das grandes figuras da Renascença, entre admira-
despercebidas, até o século XX reconhecer em Burckhardt ção artística e horror moral. O problema é o de Gobineau;
um dos espíritos "cruciais" do nosso próprio tempo. Pelas mas a conclusão é incomensuràvelmente mais profunda:
origens e condição social e pelo gosto do "brocado", Bur- todo poder é mau, por definição. Daí o pessimismo histó-
ckhardt parecia-se com Conrad Ferdinand Meyer. Mas não rico de Burckhardt, leitor assíduo de Schopenhauer. En-
era calvinista nem cristão, e sim um céptico, acreditando em fim, o humanista encontrou o seu próprio pessimismo nos
gregos, descobrindo o "lado noturno" da civilização helé-
nada senão na arte como único valor e justificação da exis-
nica, martirizada pela tirania política da "polis" totalitá-
tência humana. E r a humanista, da estirpe de Erasmo; e
ria. Burckhardt morreu como profeta, em angústia apo-
Goethe era o seu modelo, um Goethe aburguesado do fim
calíptica.
do século X I X . Sentindo-se desterrado no seu tempo uti-
litarista, só podia encontrar os seus ideais no passado, e No seu tempo, Burckhardt tinha só um discípulo que
com preferência no país das "nostalgias germânicas pelo o compreendeu: Nietzsche; e este, isento dos escrúpulos
Sul", na Itália. Aos tesouros artísticos da Itália dedicou morais do velho basileense, o compreendeu mal. Burck-
uma grande obra, uma espécie de guia, o Cicerone. Mas sa- hardt, como pessimista, tinha destruído o conceito tradi-
bia da fragilidade do seu ideal em face das forças brutas cional de uma antiguidade idílico-harmoniosa; o discípulo,
políticas e económicas. A notícia, aliás falsa, da destrui- filólogo e helenista entusiasta, pretendeu lançar as bases de
ção do Museu do Louvre na ocasião do sítio de Paris, em uma nova civilização. O paradoxo reside, porém, só no
1870 comoveu o velho até às lágrimas. Naquele ano repe- lado psicológico. A tradição humanista, decadente desde
tiu, na Universidade de Basileia, o curso que os seus her- muito, sofreu em 1870 uma derrota pavorosa; no novo Reich
deiros editaram, postumamente, como Weltgeschichtliche estava relegada à condição de preparatórios escolares para
Betrachtungen (Considerações Sobre a História Universal), estudos "mais úteis". A nação alemã entrou no seu novo
um dos maiores livros do século, reflexões sobre a relação período histórico sem tradição alguma, como bárbaros. A
entre a força e a cultura, sobre as grandes crises históri- decadência cultural era tão rápida como o desenvolvimento
económico. A tradição antiga, conservada pelas elites, es-
cas, sobre a sorte e a desgraça na História. O passadismo
tava "apolítica", impotente. Foi então que Nietzsche con-
de Burckhardt baseava-se nas suas experiências políticas:
cebeu a ideia de lançar as bases de uma nova civilização,
na mocidade fora jornalista, partidário das velhas famílias
invertendo o pensamento de Burckhardt: o poder não é o
conservadoras de Basileia, opondo-se em vão à democrati-
inimigo, mas o fundamento da cultura, da qual o jovem fi-
zação da cidade. Desde então, Burckhardt era consciente-
lósofo acreditava v e r a aurora na música de Richard
mente "apolítico", e nesse espírito criou uma nova espécie
Wagner.
2306 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2307

W a g n e r ( 3 5 ), o grande músico, ocupa na história da ças dramáticas não vivem fora do palco. Não era por acaso
literatura alemã e europeia um lugar eminente, embora não que Wagner sonhava do "Gesamtkunstwerk", isto é, da co-
justificado pelo valor literário das suas obras. Quando um laboração de todas as artes no palco. Não conseguiu de todo
admirador apaixonado o comparava a Goethe e Beethoven, esse fim, que teria degradado a poesia e a pintura a meros
um céptico respondeu: "Está certo, W a g n e r faz música auxiliares da música; só no teatro barroco dos jesuítas se
melhor do que Goethe e melhores versos do que Beetho- encontra coisa semelhante. Mas conseguiu o suficiente
ven". Na verdade, W a g n e r não era poeta. Os seus versos para ser chamado, com razão, o maior "teatromonarca" do
são lamentáveis; vivem só em função da música que os século XIX. Nasceu mesmo para o t e a t r o ; era ator, inclu-
acompanha, mas que é, por sua vez, inseparável do texto. sive na vida, fazendo com o maior sucesso o papel do génio;
Wagner não era poeta; era compositor. Mas fora das par- e no seu "caso" estudou Nietzsche "o elemento de ator na
tes sinfónicas das suas obras, só é compositor num sentido psicologia do artista". Daí a falsidade evidente de tantas
especial, sem precedentes na história da música. Pôs as atitudes e gestos de W a g n e r ; mas esse elemento teatral
duas artes, a música e a poesia a serviço do teatro. Wagner correspondia ao gosto da época pelo costume pitoresco e as
é um grande dramaturgo; mas isso também num sentido poses patéticas. Foi assim que W a g n e r se tornou o artista
especial. J á se notou que Wagner aprendeu em Schibe a oficial do novo Reich: o imperador e os príncipes aparece-
arte de apresentar e solucionar complicações dramatúrgi- ram na ocasião da inauguração do teatro de festivais wag-
nerianos em Bayreuth.
cas; e Tristan und Isolde e Die Meistersinger von Nuern-
berg (Os Mestres Cantores de Nuremberg) têm, inegavel- Essa aliança tinha motivos profundos. W a g n e r enten-
mente, verdadeira força dramática. Mas assim como os tex- dia de teatro como ninguém. Reconheceu como razão da
tos de Wagner não são nada sem a música, assim as suas pe- fraqueza do teatro moderno a falta de uma fé comum de
público e do dramaturgo. Sem uma fé comum assim, que
35) Richard Wagner, 1813 — 1883. existia em todas as grandes épocas da história do teatro,
Rienzi, der letzte der Tribunen (1842); Der jligende Hollaender o dramaturgo só pode apresentar, em vez de convicções
(1843); Tannhaeuser und der Saengekrieg auf der Wartburg
(1845); Kunst und Revolution (1849); Lohengrin (1850); Das coletivas, opiniões particulares; o que não se harmoniza
Kunstwerk der Zukunft (1850); Das Judentum in der Musik com a índole coletiva da arte teatral. Por isso, W a g n e r
(1850); Oper und Drama (1851); Der Ring des Nibelungen (1853);
Tristan und Isolde (1865); Die Meistersinger von Nuernberg pretendeu ressuscitar o "mito", quer dizer, um sistema de
(1868); Modem (1878); Religion und Kunst (1879); Erkenne dich símbolos nos quais todos acreditam. A ideia veio do ro-
setbst (1881); Heldentum und Chrístentum (1881); Parsifal (1882).
Edição por J. Kapp, 14 vais., Leipzig, 1914. mantismo, da mitologia romântica de Schellíng, Goerres e
K. F. Glasenapp: Das Leben Wagners. 6 vols. Leipzig, 1894/1911. Creuzer; e Wagner, na mocidade, fora romântico. Nos anos
E Newman: The Life of Richard Wagner. 3 vols. New York, 1932/
H. Lichtenberger: Wagner, poete et penseur. 4.B ed. Paris 1907. de luta em Dresden, tornou-se materialista revolucionário,
E. Ludwig: Die Entzauberten. Berlin, 1913. partidário de Feuerbach e dos "jovens hegelianos"; tam-
H. St. Chamberlain: Richard Wagner. 6.a ed. Muenchen, 1919.
G. Adler: Richard Wagner. 2.ft ed. Muenchen, 1923. bém leu muito Proudhon. O conceito do "ouro", do dinhei-
E. Kurth: Die romantische Harmonik und ihre Krise in Wagners ro, que, no Ring des Nibelungen (Anel dos Nibelungen),
Tristan. 3.a ed. Berlin, 1927.
E. Newman: The Life of Richard Wagners. 3 vols. New York, gera todos os males, é um vestígio dessa fase; Shaw acre-
1932/1941. ditava reconhecer nisso o "socialismo de Wagner". Mas
P. A. Loos: Richard Wagner. Vollendung und Tragik der deusts-
chen Romantik. Bem, 1953. l i t e já tinha encontrado, naquela época, a fonte inesgotá-
2308 OTTO M A H I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2309
vel da sua nova fé teatral: o mito germânico. Só foi pre- mo da fin du siècle: na França de Mallarmé e Barres, na
ciso substituir o otimismo materialsta de Feuerbach pelo Inglaterra de George Moore, na Itália de D'Annunzio. A
pessimismo espiritualista de Schopenhauer — Wagner con- importância histórica de W a g n e r não pode ser determina-
verteu-se a Schopenhauer depois da desilusão de 1848 — da pelas suas ideias pseudofilosóficas, nem pela influência
para chegar ao neo-romantismo teutônico de Bayreuth: se- estética que exerceu, hipnotizando o público e, sobretudo,
ria como se Burckhardt fosse interpretado no sentido do os literatos. Devemos ter a coragem de determinar a im-
nacionalismo de Treitschke. Foi isso em que Nietzsche portância de W a g n e r na história literária, pelos valores da
acreditava descobrir o fundamento de uma nova civilização sua música.
alemã: a "Kultur" como "Gesamtkunstwerk", a serviço da
Como músico, W a g n e r é a figura central do neo-ro-
nação. mantismo. Quer dizer: foi romântico, embora moderno.
O idílio durou poucos anos; Nietzsche passou a de-
As raízes de sua arte estão no romantismo alemão. Schel-
nunciar com a maior violência o nacionalismo romântico
ling já tinha antecipado a ideia do teatro como "Gesamt-
e o romantismo pessimista de Wagner. Esses dois elemen-
kunstwerk". Fouqué tinha antecipado o entusiasmo tea-
tos amalgamaram-se no mestre de Bayreuth duma maneira
tral pelos Nibelungen. Wackenroder e Tieck tinham cria-
bem estranha. Embora nacionalista, W a g n e r olhou com a
do a fascinante imagem da Nuremberg medieval, da cidade
preocupação pessimista da sua época inteira o futuro dos
de Duerer e Hans Sachs, que será o cenário dos Meister-
alemães que lhe pareciam decadentes. Explicou a decadên-
singer von Nuernberg. Novalis tinha criado a "poesia da
cia pelo racismo de Gobineau; publicou panfletos anti-se-
noite", essência dos "sonhos de desejo" do romantismo que
m i t a s ; perdeu-se, interpretando Gobineau pelo pessimismo
encontrarão sua plena realização — o testamento do roman-
schopenhaueriano, num niilismo religioso de diletante, es-
tismo — em Tristan und Isolde, o "opus metaphysicum" de
pécie de budismo cristão-germânico. Reuniu em Bayreuth
Wagner. É o ponto mais alto do romantismo alemão; e é
grande número de partidários fanáticos da sua arte e das
seu fim trágico, expiado pela religiosidade romântica de
suas ideias, os "wagnerianos". O diretor de teatro tornou-
Parsifal.
se profeta e fundador de seita.
Foi um episódio dos mais desagradáveis na história do Mas W a g n e r não é só um fim. O "élan vital" e a força
espírito alemão. Temos, no século XX, assistido à repetição revolucionária da sua obra vieram do romantismo francês;
desse episódio, com violência desdobrada, quando os herdei- não é por acaso que os neo-românticos franceses, os poetas
ros dos "wagnerianos" se apossaram da Alemanha, procla- simbolistas, se tornarão wagnerianos apaixonados. Até o
mando o racismo e o mitologismo de W a g n e r como dou- "anti-Wagner" francês, Debussy, não escapará a essa in-
trina oficial do Terceiro Reich. O fim dessa falsa "Re- fluência avassaladora: o "reino de acordes da nona", Pel-
nascença", em sangue e vergonha, ao som da marcha fú- iéas et Mélisande, não teria sido possível sem a harmónica
nebre do Crepúsculo dos Deuses, revelou mais uma vez o nova, o cromatismo desenfreado de Tristan und Isolde, obra
caráter episódico daquele Wagnerismo, sem importância •m que a harmonia romântica entra em plena crise: os her-
alguma na história do espírito europeu. [tftiros e superadores dessa crise serão Debussy, Schoenberg
Mas também foi mero episódio a forte influência de Alban Berg. O passadista Wagner também foi uma fôr-
W a g n e r nos começos da poesia simbolista e no decadentis- do futuro.
OTTO M A R I A CABPEAUX HISTÓBIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2311
2310

Mas essas crises não se podiam prever por volta de dências iniciais do movimento. Assim, no fino narrador
1870, quando o "episódio W a g n e r " só teve, por enquanto, Emil Strauss ( 3 7 ), o pessimismo do humanista em face da
repercussão na Alemanha. W a g n e r criou naquele tempo civilização capitalista; e no calvinista Wilhelm Schae-
um estilo da vida artística e um estilo da vida pública. As fer ( 3 8 ), o apelo angustiado às forças criadoras do pas-
casas burguesas guarneceram-se de mil enfeitos e enfeite- sado nacional. Strauss e Schaefer acabaram no mais radi-
zinhos em estilo "Renascença alemã" de Nuremberg; e o cal dos nacionalismos. O wagnerianismo e o langbehnismo
jovem Imperador Guilherme I I , na sua couraça brilhante, provinciano aliaram-se ao espírito revolucionário das or-
julgava-se novo Lohengrin ou Siegfried. O nacionalismo ganizações da juventude; e a "grande renovação da Kultur
cultural tornou-se a religião dos intelectuais pequeno-bur- alemã" levou ao nacional-socialismo.
gueses da província, reagindo contra o cosmopolitismo li- A evolução "renascentismo — renovação nacional —
beral das camadas tradicionais e da capital. O porta-voz nacionalismo" parece um fenómeno particularmente ale-
desse radicalismo provinciano era um obscuro panfletário, mão. Mas foi um movimento europeu. Apenas, nem sem-
Langbehn ( 3 6 ) : em livro anónimo, dedicado a Rembrandt, pre é fácil diagnosticá-lo, porque aparece combinado com
sem revelar compreensão alguma pela arte profunda do outros movimentos e estilos, até com o naturalismo e o cor-
"maior artista de raça germânica", Langbehn, o "Rem- respondente radicalismo político. É possível estudar e ana-
brandtdeutsche", denunciou a falta de estilo na vida alemã, lisar esses mesmos elementos contraditórios num movimen-
exigindo uma nova Kultur, antiutilitária; já sendo sem tra- to de aparências muito diferentes e no outro pólo da Eu-
dição humanista, esse antiutilitarismo só pôde ser naciona- ropa: na reação portuguesa da "Escola de Coimbra".
lista; e foi assim, violentamente. Langbehn era um espírito
confuso, homem que fracassou lamentavelmente; acabou, O papel petrificador do parnasianismo foi desempenha-
convertido ao catolicismo, como vagabundo, que os seus' do em Portugal pelo pós-romantismo de Castilho; e contra
novos correligionários, iludidos, chamavam de "francisca- cie reagiram os estudantes da geração de 1870 da Univer-
no". O seu livro, sem originalidade nem muito sentido, edi- «idade de Coimbra, exigindo a modernização e europeiza-
tado em 1890, foi publicado no mesmo ano em 18. a edição. ção da vida portuguesa ( 3 9 ). O precursor dessa renovação
A consequência imediata do sucesso era uma reação lite-
rária, dirigida igualmente contra o parnasianismo muni-
37) Emil Strauss, 1866 — 1960.
quense e contra o naturalismo, como "estilos estrangeiros". Der Engelwirt (1901); Freund Hein (1902); Kreuzungen (1904);
Os literatos provincianos dedicaram-se às "fontes da vida Der Spiegel (1919); Der Schleier (1920); Das Riesensprielzeug
1934).
nacional", aos costumes e paisagens regionais. Essa "Hei- J. Hofmiller: Emil Strauss. (In: Corona, 3, 1933).
matkunst" produziu, as mais das vezes, só obras de nível Fr. Endres: Emil Strauss. Muenchen, 1936.
inferior, leitura das classes médias menos cultas. Nos pou- 18) Wilhelm Schaefer, 1868 — 1952.
cos regionalistas de importância literária revelam-se as ten- Anekdoten (1908, 1911); Karl Stauffers Lebensgang (1912); Der
Lebenstag eines Menschenjreundes (1912); Dreizehn Buecher der
deutschen Seele (1922).
F. Stucket: Wilkelm Schaefer. Muenchen, 1935.
) F. Pacheco: A Escola de Coimbra e a Dissolução do Romantismo
36) Julius Langbehn, 1851 — 1907. Llaboa, 1917.
Rembrandt ais Erzieher. Von einem Deutschen (1890.) Fld. de Figueiredo: História da Literatura Realista. 2.B ed. Lisboa,
C. Gurlitt: Langbehn, der Rembrandtdeutsche. Berlin, 1927. nr.M.
23J 2 OTTO MARIA CARPEAUX H I S T Ó R I A DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 2313

era u m m o d e s t o p o e t a l í r i c o , J o ã o d e D e u s ( 4 0 ) . A s u a Os outros, embora logo separados de Braga, adotaram


popularidade notável é especificamente portuguesa; ne- o seu radicalismo político. O pessimista parnasiano Quen-
nhum crítico estrangeiro ainda descobriu um grande poeta t a l ( 4 2 ) , a f i g u r a p r i n c i p a l e n t r e os c o i m b r a n o s , a d e r i u a o
e m J o ã o d e D e u s . M a s s e r á a c e s s í v e l a t o d o s os l e i t o r e s , s o c i a l i s m o da P r i m e i r a I n t e r n a c i o n a l . R a m a l h o O r t i g ã o
j u s t a m e n t e o q u e d i s t i n g u e esse p ó s - r o m â n t i c o e l e g í a c o d o (48), u m dos maiores jornalistas do século X I X , empreen-
pós-romantismo dos castilhistas: a musicalidade intensa do deu uma campanha admirável de "limpeza" do país, criti-
seu v e r s o — c a n d o o falso t r a d i c i o n a l i s m o e a r o t i n a e m t o d o s os s e t o -
res. Mas será difícil definir com exatidão o seu progra-
"vago, impalpável, infinito, eterno." ma p o l í t i c o . E as m e s m a s d ú v i d a s p e r m a n e c e m c o m r e s -
p e i t o ao g r a n d e r o m a n c i s t a E ç a d e Q u e i r ó s , q u e t r a d u z i u
E m c o n t r a d i ç ã o a p a r e n t e c o m isso e s t á o g o s t o d e J o ã o e m ficção a c r í t i c a d o s e u a m i g o .
de D e u s pelas expressões epigramáticas, a l g u n s admirado-
E ç a de Queirós (44) é u m a das figuras mais proteicas
r e s já se r e c o r d a r a m d a Anthologia graeca. S e r á c o n v e n i e n -
da l i t e r a t u r a u n i v e r s a l . B r i l h a e m m u i t o s r e f l e x o s c o m o o
t e l e m b r a r o g o s t o do p o v o p e l o p r o v é r b i o r i m a d o . J o ã o d e
seu F r a d i q u e M e n d e s ; e qualquer definição que p r e t e n d e
Deus é sempre poeta popular, de espontaneidade admirável,
poeta tipicamente português também pela frequência do s e r e x a t a , será i n c o m p l e t a e u n i l a t e r a l . A v e l h a g u a r d a e
motivo erótico e pelo sentimentalismo da saudade — a g r a n d e m a i o r i a dos e c i a n o s r e v o l t o u - s e , c o m m u i t a r a z ã o ,
q u a n d o A n t ó n i o S a r d i n h a fêz a t e n t a t i v a d e d e f i n i r o r o -
"Tão íntima saudade, m a n c i s t a como " r e n o v a d o r " e p r e c u r s o r d o n a c i o n a l i s m o lu-
T ã o íntimo desejo, sitano, integralista. Mas essi interpretação não teria sur-
De u m m u n d o que não vejo." p r e e n d i d o t a n t o se n ã o t i v e s s e s i d o t ã o g e r a l m e n t e a c e i t a

O p o p u l a r i s m o d e J o ã o d e D e u s foi o q u e l h e g a n h o u
os c o r a ç õ e s d a m o c i d a d e : a o p a t r i o t i s m o g r a n d i l o q i i e n t e 42) Cf. "Advento da Burquesia", nota 75.
dos "trovadores" castilhistas opôs u m nacionalismo ingé- 43) José Duarte Ramalho Ortigão, 1836 — 1915.
As Farpas (1871/1887); A Holanda (1883).
nuo, seduzindo até o positivista e hugoniano Theófilo Bra- Ric. Jorge: Ramalho Ortigão. Lisboa, 1915.
g a ( 4 1 ) , e n t ã o l i g a d o ao m o v i m e n t o d e C o i m b r a . 44) José Maria Eça de Queirós, 1846 — 1900.
O Crime do Pe. Amaro (1876); O Primo Basílio (1878); O Man-
darim (1879); Os Maias (1880; A Relíquia (1887); A Correspon-
dência de Fradique Mendes (1891); A Ilustre Casa de Ramires
40) João de Deus Nogueira Ramos, 1830 — 1896. (1900); A Cidade e as Serras (1901); Contos (1902); Obras Pós-
Flores do Campo (1868); Ramo de Flores (1875); Campo âe Flo- tumas (1925/1926) etc.
res (1893). M. Silva Gaio: Eça de Queirós. Coimbra, 1920.
Edição por T. Braga, 4." ed., Lisboa, 1915. Castelo Branco Chaves: "Eça de Queirós". (In: Estudos Críticos.
M. Silva Gaio: João de Deus, Coimbra, 1903. Coimbra, 1932.)
V. Nemésio: O Erotismo de João de Deus. Coimbra, 1930. Álvaro Lins: História Literária de Eça âe Queirós. Rio de Ja-
J. G. Simões: "João de Deus ou o Sentimento de Altitude". (In: neiro, 1939.
O Mistério da Poesia. Coimbra, 1913.) J. G. Simões: Eça de Queirós. O homem e o Artista. Lisboa,
Fel. Ramos: "A Crítica de João de Deus e a Mentalidade Portu- 1945.
guesa". (In: Ensaios de Critica Literária. Lisboa, 1933.) Ant. Ramos Almeida: Eça. Porto, 1945.
A. J. Saraiva: As Iáéis de Eça de Queirós. Lisboa. 1947.
41) Cf. "Romantismos de Oposição", nota 83. E. Da Cal: Lengua y estilo de Eça de Queiroz. Coimbra, 1954.
2314 OTTO M A B I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2315

a interpretação precedente que apresentara o romancista dade eciana", o seu estilo pessoal, irónico. Justamente isso
como radical, inimigo da monarquia, da I g r e j a e dos bien- não pôde aprender em Zola. Aprendeu-o antes me Flaubert,
pensants. cuja influência se nota no segundo romance, O Primo Basí-
Esta última opinião baseia-se num argumento fortís- lio, obra admirável de construção novelística e caracteriza-
simo: corresponde de todo ao primeiro romance de Eça. ção dos personagens. É um romance altamente dramático,
O Crime do Padre Amaro. É uma sátira terrível contra a a maneira de Balzac. E Balzac, esse sim, era a grande ad-
corrução do clero português; e a última cena do romance miração francesa de Eça de Queirós. Com um pouco menos
— os dois padres infames e o aristocrata reacionário, con- de diletantismo e um pouco mais de força construtora, Eça
fraternizando e congratulando-se porque Portugal sonolen- teria sido capaz de escrever a Comédie humaine da socieda-
to não sucumbe às tentações do liberalismo e socialismo — de portuguesa. Só nos deu fragmentos dessa epopeia sa-
já justifica por si só aquela interpretação. O Crime do tírica. Mas um dos fragmentos é grande: o romance Os
Padre Amaro é o romance mais divulgado de Eça de Quei- Maias recompensa pela perda daquela epopeia. É o máximo
rós ; está traduzido para todas as línguas, assim como vários do que se podia esperar, um panorama da sociedade lisboeta
outros romances seus estão traduzidos para o espanhol e de 1880, povoado de caracteres tão bem definidos que se
francês, em edições baratas, às vezes escandalosamente ilus- tornaram representantes típicos da nação portuguesa. Eça
tradas, revelando logo a espécie de interesse que prende os é um grande realista; o seu panorama de Portugal difere
leitores a essas obras: além do radicalismo subversivo — muito das cenas violentamente sentimentais do romântico
e mais do que este — as cenas eróticas, bem desenvolvidas, Camilo Castelo Branco. Mas por isso não está provado que
que lembram imediatamente o naturalismo francês. A clas-
0 quadro de Eça seja mais fiel, mais verdadeiro. Eça tam-
sificação de Eça de Queirós como naturalista é tão usual
bém viu a Portugal "à travers un tempérament", tempera-
como a afirmação do seu radicalismo. Mas radicalismo e
mento de um irónico mordaz, aborrecido da vida portuguesa
naturalismo de Eça de Queirós ficam sujeitos à mesma
c ironizando o que aborrecera. Ao mesmo tempo houve,
dúvida.
nesse antipatriotismo, uma secreta saudade: Eça lembra-
O Crime do Padre Amaro é de 1876; e La faute de do e cria, ao mesmo tempo. É o processo de Proust. Daí
Yabbé Mouret de Zola, romance um pouco parecido, é de 1 composição "proustiana", algo incoerente de Os Maias.
1875. Mas a obra de 1876 só é a segunda versão, muito re- Nu ironia de Eça age como força deformadora o sentimento.
modelada, do Crime do Padre Amaro, já publicada no me Ao ataque falta a última coragem destrutiva, substituída
mo ano de 1875 n a Revista Ocidental, órgão da "Escola polo sorriso de superioridade de u m cavaleiro muito viajado
Coimbra". O português não deveu nada a Zola; e não H pouquíssimo nostálgico da vida lisboeta, por pior que
imitou em nenhuma das suas obras seguintes. Eça estav • lhe afigure. Eça de Queirós não matou nem melhorou a
sem dúvida muito afrancesado, sem que essa observaçi cledade portuguesa; mas melhorou o estilo dos jornalis-
signifique censura alguma. A influência francesa era fort portuguêses e brasileiros. Só isso lhe podiam imitar. O
em Portugal, servindo as mais das vezes só de enfeite du; fora arma terrível contra a burguesia tornou-se o sal
sociedade decadente e atrasada. Eça aproveitou-se melh crónicas dominicais nos jornais burgueses.
das leituras francesas: revolucionou a l í n g u a portuguôi A burguesia é o objeto do ódio de Eça de Queirós; so-
petrificada pelos gramáticos, dando-lhe a famosa "flexibll '«MIO aquela burguesia que usa as frases-feitas e trajes
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2317
2316 OTTO M A R I A CARPEAUX

tins ( 4C ), estilista brilhante e resumidor arbitrário de estu-


da Monarquia e da Igreja, do tradicionalismo, para cobrir
dos alheios, que começou como republicano socialista, para
as suas misérias permanentes. A indignação de Eça é de
acabar glorificando a monarquia portuguesa e as suas vir-
ordem estética; daí a aparência da superficialidade. Como
tudes tradicionais. A tentativa de renovar uma civilização,
seu Fradique Mendes, é Eça um céptico blasé, abusando
renovando-se a cultura de uma elite, levou ao nacionalismo.
de leituras de Renan e usando bigode, bengala e monóculo.
Os dandys de 1880 eram todos assim; mas entre eles havia A discussão em torno do verdadeiro sentido da Escola
só poucos artistas. E Eça de Queirós foi um grande ar- de Coimbra poder-se-ia repetir — e repetiu-se — a propó-
tista. sito do grande precursor espanhol Ganivet ( 4 7 ). Seu Idea-
rium espano] forneceu à geração de 1898 os motivos: a
O esteticismo de Eça de Queirós explica a sua pouca
análise da decadência ibérica e a necessidade da renovação
fidelidade aos ideais do radicalismo. Nas suas últimas obras
radical da Espanha. O livrinho desse génio malogrado con-
aparece como regionalista português, com pruridos tradi- tém, porém, algo mais do que só pessimismo e radicalismo.
cionalistas. Tinha visto e experimentado tudo o que Paris Fornece uma tipologia da historia espiritual da Espanha:
ofereceu, e voltou-se para Portugal como um turista, ávido o senequismo como filosofia nacional espanhola; Dom Qui-
de novas sensações exóticas. Por isso, a última fase de Eça xote como herói nacional; a doutrina de Vida es sueno
de Queirós não constitui base suficiente para a reinterpre- como ideologia ibérica. São os temas de Unamuno, do "an-
tação de António Sardinha ( 4C ), que teria gostado de poder tieuropeu"; e a tentativa de Ganivet de escrever um drama
apresentar Eça e a escola coimbrense inteira como "nacio- calderoniano, El escultor de su alma, é mais uma prova do
nalistas renovadores", precursores do integralismo. Nem seu tradicionalismo literário. Será, no entanto, difícil iden-
basta para isso a referência a Camões e à glória perdida de tificar — como já foi tentado — esse tradicionalismo de
Portugal naquela cena final do Crime do Padre Amaro; Ganivet com o nacionalismo totalitário moderno. Os seus
nem o parentesco puramente literário de Eça com Balzac. romances filosóficos, cheios de sátira violenta e anar-
Mas, por mais arbitrária que seja aquela reinterpretação, quismo subversivo, bastam para desmentir a tentativa.
não deixa de conter um grão de verdade: Eça de Queirós
era uma natureza artistocrática; e todos aqueles coimbren-
ses eram aristocratas intelectuais. O pessimismo niilista de 46) Joaquim Pedro Oliveira Martins, 1845 ~ 1894.
Quental coloca-se entre o catolicismo da sua carta em de- História da Civilização Ibérica (1879); História de Portugal (1879);
Portugal Contemporâneo (1811); História da República Romana
fesa do Silabo do Papa Pio IX e a sua participação na rea- (1885); Os Filhos de D. João I (1891); Vida de Nun'Alvares (1893);
ção antiinglesa, patriótica, de 1890; e o seu estudo da de- O Príncipe Perfeito (1896).
L. Magalhães: Perfil de Oliveira Martins. Lisboa, 1930.
cadência ibérica estava inspirado pelo desejo de uma "vita
47) Angel Ganivet, 1862 — 1898.
nuova" da nação. O nacionalismo do positivista e republi- Idearium espaúol (1897); La conquista dei reino de Maya por el
cano Teófilo Braga está fora de dúvidas. E como último último conquistador espanol Pio Ciã (1897); Los trabajos dei infa-
tigable creador Pio Ciã (1898); El escultor de su alma (publ.
comprovante está aí a carreira do historiador Oliveira Mar- 1916).
Edição por M. Fernandes Almagro, 2 vols., Madrid, 1943.
M. Fernández Almagro: Vida y obras de Ganivet. Valência.
1925.
Q. Saldaria: Angel Ganivet. Madrid, 1930.
45) A. Sardinha: "O Espólio de Fradique". (In: Purgatório das Ideias. A. Espina: Ganivet, el hombre y la obra. Buenos Airps. 1942.
Lisboa, 1929.)
2318 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2319

Discussões desta espécie nunca terminam com conclu- A literatura vitoriana, estudada de perto, revela-se
sões definitivas. O que se pode concluir é só uma tipologia quase inteiramente antivitoriana. Todos os grandes vitoria-
daqueles movimentos paralelos na Alemanha, Portugal, E s - nos têm protestado contra o espírito dominante da sua épo-
panha e, também, na Inglaterra e na França. O primeiro ca; mas nem todos protestaram contra as mesmas expres-
elemento característico é o pessimismo. E m todos esses ca- sões desse espírito: há uma oposição contra os abusos da
sos está no início a convicção pessimista de um fim dos economia burguesa, a de Carlyle, Dickens e Ruskin; há uma
séculos, de uma decadência da nação. Mas esta decadência oposição de estetas contra o utilitarismo, a dos pré-raphae-
não é considerada irremediável. Procura-se um modelo his- litas; há uma oposição de europeizantes contra o puritanis-
tórico ; e do ponto de vista da tipologia não importa se esse mo e o espírito de insularidade, a de Matthew Arnold. Em
modelo é encontrado na Renascença italiana ou na tradi- geral, essas oposições não são radicais: vão até certo pon-
ção medieval da própria nação; ou então, no mito germâ- t o ; e depois se conformam, aderindo ao "compromisso vi-
nico, como em Wagner, ou no Barroco, como em Ganivet. toriano". O melhor critério dessa timidez dos grandes vi-
Tampouco importa, do ponto de vista da tipologia, se o ra- torianos é a diferença entre a sua prosa e a sua poesia; e o
dicalismo, que constitui a última conclusão e a proposta prá- melhor exemplo e Matthew A r n o l d : na prosa, um liberal
tica para a renovação, é um radicalismo democrático e so- impenitente, e na expressão mais imediata da poesia tão
cialista, ou um radicalismo nacionalista e reacionário. Mais melancólico e resignado como Tennyson. Até o pessimis-
do que uma vez — como no caso da Escola de Coimbra — mo fatalista de Hardy enquadra-se nesse panorama. A ex-
as duas interpretações são possíveis; e o que parecia radi- ceção é a poesia otimista de Browning.
calismo revolucionário no século X I X pode parecer radica-
Robert Browning ( t 8 ) é um dos poetas mais poderosos
lismo reacionário no século XX. Taine, renascentista à ma-
de língua inglesa; mas muitos críticos já lhe negaram essa
neira de Burckhardt, parecia radical subversivo à gente de
distinção. No começo, sobretudo havia resistência: os lei-
1880; mas já antes de 1900 tornara-se mestre do tradiciona-
tores, acostumados à música de Tennyson, acharam Brown-
lismo francês.
ing duro e incompreensível. Respondeu-se-lhes, porém, que
Por volta de 1880, é fundamental a diferença entre a a aparente obscuridade do poeta reside apenas na sua ri-
zona alemã, monárquica e conservadora, da Europa, e, por queza em alusões eruditas, de modo que só leitores cultos
outro lado, a zona ocidental na qual se nota um enfraque- o podem compreender; e constituíram-se Browning Socie-
cimento da burguesia e uma forte corrente democrática. ties para divulgar os conhecimentos necessários e comen-
Democrática não apenas no sentido político; trata-se de
um ataque geral da intelligentzia pequeno-burguesa contra
as convenções da sociedade burguesa; no mundo anglo-sa- 48) Robert Browning, 1812-1889.
Paracelsus (1835); Sorãello (1840); Bells and Pomegranates and
xônico, particularmente, de ura ataque contra as conven- Pippa Passes 1841; Dramatic Lyrics 1842; Dramatic Romances and
ções de ordem sexual. Mas não é possível uma separação Lyrics (1845); Dramatis Personae (1864); The Ring and the
nítida: Dante Gabriel Rossetti, o pré-rafaelita, foi incluí- Book (1868/1869); Asolando (1889).
Edição por A. Birrell, 2.a ed.. 2 vols., New York, 1919.
do por Robert Buchanan entre os "criminosos" da "escola G. K. Chesterton: Robert Brownig. London, 1903.
da poesia carnal". Não é possível nem preciso enrijecer os E. Dowden: The. Life of Robert Browning. London, 1904.
St. A. Brooke: Hhe Poetry of Robert Browning. 2.* ed. 2 vols. Lon-
esquemas, que só servem de fios através de um labirinto. don, 1905.
2320 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2321

tar as obras do poeta. Ignorância é uma coisa que ninguém ca bem. A sua poesia é a de um inglês rico que viajou
gosta de confessar. Começaram todos a fingir admiração muito e conhece todas as literaturas e a arte de todos os
por Browning; e esse esnobismo tornou-se tão forte que países. Os índices das matérias dos seus volumes de versos
sobreviveu a várias mudanças do gosto literário, encontran- são de natureza enciclopédica: "Soliloquy of the Spanish
do-se enfim com a admiração de muitos "modernistas" in- Cloíster"; " T h e Laboratory, Ancien Regime"; "Saul";
gleses de 1920: estes como que reconheceram-se em Brow- "Cleon"; "Abt Vogler"; "Rabbi Ben E z r a " ; "A Toccata of
ning, na sua obscuridade hermética, na amplitude do seu G a l u p p i V — quase um carnaval histórico de "dramatis per-
horizonte cosmopolita, na harshness inconvencional do seu sonae", assim como nos quadros da época. Como os ingleses
verso, enfim, no seu otimismo. Otimistas eram os jovens, ricos do seu tempo, Browning prefere a Itália —
aborrecidos com o pessimismo oficializado de Tennyson e
as elegias melancólicas dos poetas georgianos. Só recente- "Open m y heart and you will see r v c v ^ - - - * '" r t
mente uma nova crítica, baseando-se em princípios socioló- Graved inside of i t : Italy." —
gicos e em mais rigorosos critérios estilísticos, duvida da
qualidade do otimismo browninguiano. Salienta que Brow- mas menos a Itália viva, com. a qual simpatizaram Byron,
ning era um grande burguês, passando a vida em palácios Shelley e Landor e a sua própria mulher Elizabeth, do que
em Florença e Veneza, dedicado só aos estudos, leituras a Itália da Renascença: a dos grandes artistas ("Andrea
e à arte. Não se lhe nega o entusiasmo de idealista; mas « dei Sarto"; " F r a Lippo Lippi"), dos grandes humanistas
teria sido um idealismo impotente, incapaz de escapar ao ("A Grammarian's Funeral"), dos bispos descrentes e es-
seu tempo. Daí a relativa incapacidade de expressão, a tetas ("The Bishop Orders His Tomb at St. Praxedis'
obscuridade confusa. Browning teria sido um parnasiano Church"), das paixões de homens fortes ("The Statue and
sem cultura da forma. the Bust"). Browning é renascentista. Comparando-se, po-
O otimismo de Browning não harmoniza com a clas- rém, essas poesias com os objetos que as inspiraram, ligei-
sificação como parnasiano. Mas o poeta era, como os epígo- ra decepção é inevitável. Da beleza harmoniosa das obras
nos, um "scholarly poet". de arte italiana entrou pouco nos versos do inglês, e não
"This man decided no to Líve but Know", diz Brow- é possível afastar de todo aquela suspeita de incapacidade
ning em "A Grammarian's F u n e r a l " ; e o verso se lhe apli- de expressão. Uma análise compreensiva revela, no entan-
to, que as aspirações de Browning não visaram à harmonia
A. Symons: An Introduction to the Study of Browning. 2.a ed.
London, 1906. plástica. O seu renascentismo não é .prazer estético sem
W. H. Griffin e H. C. Minchin: The Life of Robert Browning. New luta nem esforço. A Renascença o interessava como mo-
York, 1910.
P. Berger: Robert Browning. Paris, 1912. mento histórico em que homens fortes e geniais se defron-
E. Koeppel: Robert Browning. Berlin, 1912. taram com crises perigosas da moral pública e particular.
P. De Reul: Uart et la pensée de Robert Browning. Bruxelles,
1929. Nas poesias de outro assunto não-italiano, Browning tam-
F. R. G. Duckworth: Browning. Background and Conflict. New bém prefere tempos de crise, situações extraordinárias, ho-
York, 1931.
B. Miller: Robert Browning. A Portrait. London, 1952. mens esquisitos. Escolheu a forma e o tom conforme os
J. M. Cohen: Robert Browning. London, 1952. assuntos; nem sempre foi possível evitar expressões obs-
H. Ch. Duffin: Amphibion. A Reconsíderation of Browning.
London, 1956. curas e prosaicas, e às vezes nem tentou dizer coisa algu-
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m a : existem várias interpretações divergentes do famoso gram's Apology" é o esboço de uma teologia muito moder-
poema "Childe Roland to the Dark Tower Carne"; mas o na. Neste último poema encontra-se o leitmotiv de Brow-
próprio poeta confessou o intuito de apenas sugerir a ning:
atmosfera de pavor misterioso. Esse autor de duros versos
filosóficos preferiu entre todas as artes a menos acessível "EnthusiasnVs the best thing, I repeat."
à razão: a música; a sua poesia "Abt Vogler" conferiu ao
esquecido organista alemão uma auréola como o pobre Vo- O seu liberalismo não era o liberalismo parlamentar de
gler nunca a possuíra, quase como a um Beethoven: Macaulay. Ainda o epílogo do volume Asolando, publica-
" T h e C Major of this l i f e . . . " do no dia em que Browning morreu, é um manifesto como
O fundo de "Abt Vogler" é uma profissão de fé: um uma marcha de batalha. O otimismo do liberal Browning
credo de panteísmo artístico. Nem sempre, mas quase sem- era algo sentimental como o de Pippa, otimismo de um ho-
pre Browning pretende afirmar alguma coisa, proclamar mem rico e feliz que sofreu pouco na vida. Daí a relativa
uma mensagem; com razão, foi chamado "ensaísta em ver- falta de profundidade da sua "mensagem": e Chesterton
sos". A sua poesia é a de um grande intelectual; e um críti- teve a coragem de enfrentar os Browning Societies de dois
co moderno comparou-lhe os monólogos dramáticos com a continentes, negando que Browning tivesse sido filósofo ou
maneira dialética dos "metaphysical p o e f s " do século X V I I . poeta filosófico.
Resta definir-lhe a metafísica. Qual foi a mensagem de Mas se não foi isso, o que foi? Não foi profeta. Mas
Browning? tampouco foi poeta lírico, esse autor de versos tão duros
O panteísmo luminoso de "Abt Vogler" baseia-se numa e tão pouco acessivo. O hermetismo de Browning não tem
grande confiança no mundo e na natureza humana. nada com o hermetismo de Mallarmé ou da poesia moderna.
Browning é difícil, porque não quer falar diretamente.
"Schemes of life, its best rules and right uses, the Fala através de máscaras deliberadamente assumidas: como
nos seus famosos monólogos poético-dramáticos. Revela
[courage that gains."
almas (menos a sua própria). Não é profeta nem lírico,
mas psicólogo; como um romancista, embora em versos.
Browning viu o mundo em harmonia; e a mais famosa
E sua maior obra, The Ring and the Book é um romance
das suas obras, o pequeno drama Pippa Passes, culmina
num grito de júbilo: em versos.
The Ring and the Book é a história, bastante melodra-
"God's in His heaven — mática, de um crime passional, meio sórdido, na Itália do
All's right with the world!" século X V I I , de enredo parecido com os contos de Sten-
dhal; mas a técnica de narração do poema inglês é outra:
Não poderia ser maior a oposição ao pessimismo grave os diferentes personagens contam, dos seus diferentes pon-
de Tennyson; os dois maiores poetas vitorianos constituem tos de vesita, o que aconteceu; e o resultado é um panora-
contraste completo. E m "Caliban upon Setebos, or Natu- ma, composto de vários quadros subjetivos. Essa técnica
ral Theology in the Island", o liberal Browning zombou da é a de Storm e.Conrad; mas em Browning, ela tem outro
ingenuidade dos teólogos antidarwinistas; e "Bishop Blou- fundamento psicológico. Não lhe importa a atenuação das
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paixões pela melancolia passadista, nem um mistério cós- O pendant de Browning é a arte novelística de George
mico ao qual o homem só se pode aproximar. O que lhe im- Eliot (• ,8 ). Assim como Browning iniciou — técnica e ideo-
porta é a justiça. Cada um, no grande drama da vida, tem logicamente — uma poesia nova, assim a crítica inglesa fala,
a sua parcela de razão; e o liberalismo vital de Browning a propósito de George Eliot, da "new novel": na história
do romance inglês, ela desempenhou o papel de Flaubert
não quer julgar e sim compreender. Há nessa grande gene-
na França. Parecem tão imensamente diferente porque o
rosidade algo do sentimentalismo do século X V I I I — e esse
conservantismo inglês ligou a romancista à arte novelística
ponto é fundamental na interpretação do liberal-entusiasta do século X V I I I ; por isso, é ela grande humorista, que
— mas também há certa indecisão e até confusão. Vive- aprendeu muito em Jane Austen. E o seu ponto de parti-
ram várias almas dentro da alma de Browning; cada uma da não era o romantismo, como no caso de Flaubert, mas
desejava exprimir-se, assim como na Odisseia as almas dos o protestantismo sectário. Daí a gravidade da luta religio-
heróis mortos desejam beber do sangue para poder falar a sa e a alta seriedade das preocupações morais do romancis-
ta, verdadeiro oráculo ou "sibila" do seu tempo.
Ulisses — às vezes, a poesia de Browning é como uma sin-
fonia mal orquestrada de muitas vozes, confusa e obscura. A arte de George Eliot não nos parece tão "moderna"
como aos seus contemporâneos; nem tão "antiga" como a
E m The Ring and the Book, o poeta conseguiu a dramati-
certos críticos anglo-americanos de hoje que a opõem, como
zação. Assim também se explica aquela forma singular da
"arte novelística dos bons velhos tempos", aos neonatura-
maioria das poesias de Browning: são monólogos dramá- listas. Desde então, as mudanças dos costumes e da opinião
ticos — um volume se intitula Dramatis Personae — de pública foram tão radicais que mal compreendemos a indig-
força shakespeariana de caracterização. Browning orgu- nação da sociedade inglesa contra a escritora que traduziu
Ihava-se dessa invenção poética, falando de "inquiries into a herética Vida de Jesus, de David Friedrich Strauss, e vi-
espécies of Mankind". Não se contenta com a apresentação veu durante anos com um homem casado e não divorciado.
É preciso dizer que essas atitudes corajosas não se revelam
de personagens pitorescos; estuda os motivos psicológicos,
as consequências morais. Os resultados nem sempre har-
monizam bem com o otimismo das afirmações. E na verda- 49) George Eliot (pseud, de Mary Ann Evans), 1819 — 1880.
Scenes of Clerical Life (1857); Adam Bede (1869); The MUI on the
de, Browning só acredita na vida porque acredita na trans- Floss (1860); Silas Marner (1861); Romola (1863); Félix Holt the
Radical (1866); Middlemarch (1871/1872); Daniel Deronda (1876).
figuração da vida pela arte. Eis o tributo que Browning Edição: Warwick Edition, 12 vols., Edinburg, 1901/1903.
pagou ao espírito parnasiano da época. Mas não é um par- W. C. Brownell: "George Eliot". (In. Vivtorian Prose Masters.
New York, 1901.)
nasianismo frio, e sim um renascentismo, expressão artís- L. Stephen: George Eliot. London, 1902.
E. S. Haldane: George Eliot and Her Times. London, 1927.
tica de um grande liberalismo, religioso e laicista. Não P. BoinThonne: George Eliot. Essai de biographie intellectualle et
inorale. Paris, 1934.
é em nada vitoriano. O esteticismo de Browning é a sua B. C. Williams: George Eliot. London, 1936.
arma para proteger-se contra o caos do mundo dos agnósti- G. Bullett: George Eliot. Her Life and Books. London, 1947.
J. Bennett: George Eliot. Her Mird and her Art. Cambridge, 1948.
cos, para escapar à tragédia. Neste último ponto, porém, F. R. Leavis: The Great Tradition. London, 1949.
R. Spealght: George Eliot. London, 1954.
éle também continuou vitoriano. B. Hardy: The Novéis of George Eliot: a Study in Form. Lon-
don, 1959.
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claramente na obra de George Eliot. Sobretudo os grandes geral, compridos de mais para o nosso gosto; a leitura tor-
romances são antes tradicionais, estão na tradição de Fiel- na-se, muitas vezes, torturante. Daniel Deronda é uma das
ding, romancista do realismo onísciente. Na época vito-
obras mais tediosas da literatura inglesa, mas nesse roman-
riana, porém, a franqueza de Fielding parecia, novamente,
ce também pode F . R. Leavis destacar o episódio trágico
quase sensacional; e as convicções e a coragem da roman-
em torno de Gwendolen Harleth. O lado forte de George
cista revelam-se nas conclusões que ela tirou de enredos
Eliot revela-se no romance meio autobiográfico The MUI
meio sérios, meio humorísticos: aconteceu, até, aquela coi-
sa inédita no ambiente vitoriano, o fim trágico em vez do on the Floss, em que, num ambiente descrito com fino hu-
happy end costumeiro. morismo, o desfecho trágico decorre, com a maior natura-
lidade, do caráter rebelde da heroína Maggie Tulliver. E
George Eliot começou onde George Sand acabara: com
sobretudo na obra-prima da autora, Middlemarch, romance
novelas rústicas. Mas a mentalidade que concebeu as Sce-
de uma vida frustrada ou antes, de vários vidas frustra-
nes of Clerical Life é diferente. Aí já se encontra a mis-
d a s ; mas é muito mais do que isso. É o panorama completo
tura de elementos humorísticos e trágicos, característica do
espírito dramático da romancista; The Sad Fortunes of da existência numa pequena cidade inglesa por volta de
the Reverend Amos Barton é uma comédia de inspiração 1830. O panorama é compreensivo e rico como a própria
fieldinguiana. O ambiente é o da égloga à maneira de W o r - vida. Os destinos dos numerosos personagens entrelaçam-
dsworth; mas o sentido é a saída do sectarismo protestan- se de maneira complicada; George Eliot sempre preferiu,
te em que a escritora fora criada. Agora, ela será livre- um pouco como George Sand, os enredos melodramáticos.
pensadora. Mas o realismo inato não lhe permite fazer obra Também desempenham papel muito grande, e grande de-
propagandística à maneira da Sand; assim como nos ro- mais para o gosto moderno, o acaso e as coincidências. Mas
mances de George Eliot não entrará nada de defesa do não há, também, acasos e coincidências na realidade? A
amor livre. A liberdade íntima da escritora em questões fidelidade do realismo está garantida pela psicologia: des-
religiosas exprime-se, nos romances, só como reflexo, de- de Shakespeare e J a n e Austen, ninguém criou tantos per-
terminando o julgamento dos acontecimentos e persona- sonagens inesquecivelmente vivos, Dorothea e o velho Broo-
gens. Revela-se isso até no idílio rústico de Silas Marner, ke e o pseudo-intelectual Casaubon e o casal Lydgate e Ro-
num humanitarismo menos espetacular do que o de Dickens, samond e tantos outros; e toda essa multiformidade da
e no romance trágico Adam Bede, que escandalizou a so- obra está seguramente dirigida, dir-se-ia governada pelo
ciedade vitoriana. Para nós outros, hoje, o valor de Adam infalível senso moral da escritora que sabe tudo e sabe tudo
Bede reside, principalmente, na apresentação fiel da vida bem. Middlemarch é um dos grandes romances panorâ-
na countryside inglesa. Mas George Eliot não é idilísta; micos da literatura universal.
é uma grande intelectual. Nem sempre conseguiu manter
puro e livre de tendências o seu realismo. A propaganda Apesar de tudo isso e apesar da crescente admiração da
de ideias estragou-lhe duas obras de vulto: Daniel Deron- crítica moderna, George Eliot ainda está pagando, postu-
da; e Félix Holt, o romance político, embora F . R. Leavis mamente, o preço pela admiração excessiva que lhe dedica-
possa destacar o episódio altamente dramático de Mrs. ram os contemporâneos. Leitores modernos, leitores jo-
Transom e seu filho. Os romances de George Eliot são, em vens sobretudo, ainda a acham "antiquada". Mas esse pre-
2328 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2329
conceito já não impede a apreciação do extraordinário pa- A solução demorou m u i t o ; e as fases da evolução fo-
pel que George Eliot desempenhou na evolução histórica ram rolorosas. Um poeta como Clough ( 5 0 ) ; amigo de
do romance inglês. O grande tamanho dos romances elio- Matthew Arnold, nato para evocações musicais de paisa-
tianos explica-se pela necessidade de preparar cuidadosa- gens nórdicas e elaboração artística de metros complicados,
mente e tornar compreensível a conclusão trágica de acon- perdeu o equilíbrio mental em dúvidas religiosas, que Ten-
tecimentos num ambiente, cuja descrição exigiu realismo nyson, em In Memoriam, conseguira tranquilizar. De Clou-
gh sobrevivem, com certa injustiça a respeito da sua "poe-
humorístico. É por isso que George Eliot voltou ao rea-
sia pura", quase só os versos epigramáticos de perplexida-
lismo do romance inglês do século X V I I I ; e na época vi- ']
de espiritual. Mais um passo para a frente foi W h i t e ( B 1 ),
toriana, esse realismo, abandonado havia tanto tempo, já foi que usou o pseudónimo Mark Rutherford para assinar os
sentido como novidade, até como novidade audaciosa. Mas seus fortes romances autobiográficos, histórias da liberta-
George Eliot não era um Fielding feminino. Adotando a ção religiosa e moral de um puritano da classe-média pro-
técnica da onisciência, sem ceder ao sentimentalismo dic- vinciana. Todos esses "libertadores" ingleses lutam com
kensiano, ela ia mais longe do que o humorista na com- dificuldades, quase dom-quixotescamente, porque são al-
preensão das possibilidades trágicas da vida humana. O mas e inteligências bastante complicadas. Mas para dar com
elemento vitoriano na romancista era a forte consciência da coragem, o passo decisivo, precisava-se de certa ingenuida-
d e : eis o mérito do romance Story of an African Farm, da
responsabilidade moral, resíduo na sua educação religiosa;
sul-africana Olivia Schreiner ( ° 2 ) ; o tom feminino e meio
daí também as reticências com respeito ao problema sexual,
pietista dessa obra de libertação de uma escritora-diletante
que constituíram para torná-la "antiquada". O elemento não ocultou o fato central: Olivia Schreiner, descrevendo
novo, da new novel, é que ela evitou toda grandiloquência . a luta de uma moça contra as doutrinas religiosas e con-
sentimental. Com firmeza tanto maior sabia salientar o sen-
tido moral das suas histórias de gente humilde e pouco im-
portante. Nenhum grande romancista da literatura univer-
50) Arthur Hugh Clough, 1819 — 1861.
sal é tão modesto, na atitude literária, como George Eliot. The Bothie of Tober-na Vvolich (1848); Amours de Voyage (1849);
Mas atrás dessa modéstia encontra-se uma curiosidade dra- Dipsychus (1850) .
Edição por C. Whibley, London, 1913.
matúrgica e um senso de crítica moral tão fortes como no J. J. Osborne: Arthur Hugh Clough. London, 1920.
grande poeta intelectualista, em Browning. Apenas George G. Levy: Arthur Hugh Clough. London, 1938.
51) William Hale White, 1831 — 1913.
Eliot, menos complicada e menos confusa, compreendeu a
The Autóbíography of Mark Rutherford (1881); Mark Rutherford's
incompatibilidade desse moralismo com a religiosidade Deliverance (1885).
H. Klinke: William Hale White. Frankfurt, 1931.
tradicionalista da época vitoriana. Daí a preferência que C. M. Maclean: Mark Rutherford. A Biography of Willam Hale
dá aos desfechos trágicos. Estava plantado o problema re- White. London, 1955.
I. Stock: William Hale White. A Criticai Study. London, 1956.
ligioso, sem cuja solução o renascentismo inglês não teria 52) Olivia Schreiner, 1862 — 1920.
sido capaz de ultrapassar as fronteiras de um esteticismo The Story of an African Farm (1883); Trooper Peter Halkett
(1897).
vago. S. C. Schreiner: The Life of Olivia Schreiner. London, 1924.
V. Buchanan Gould: Not Without Honour. London, 1948.
2330 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2331

venções morais do puritanismo, afirmou claramente o que grande mestre, um professor de cultura para uma nação
nos romances de George Eliot ficara reservado à consciên- inteira. Em dias mais calmos teria sido um educador se-
cia da romancista. O pendant da diletante Olivia Schrei- g u r o ; o tempo em que nasceu, angustiou-o de tal maneira,
ner nos círculos da alta inteligência era Mary W a r d ( 5 8 ), que o seu classicismo majestoso nos parece hoje uma ten-
cujo Robert Elsmere, história das dúvidas religiosas e per- tativa permanente de auto-educação, daquele self-control
da de fé de um teólogo, causou sensação enorme. Como es- que o pai Thomas Arnold ensinara em Rugby. Matthew
critora, Mary Ward não é menos diletante do que Olivia Arnold não era um vitoriano completo. O tempo colocou-o-
Schereiner; e o realismo das suas descrições da sociedade entre seu amigo Clough e sua sobrinha Mary W a r d ; e essa
até é mais superficial. Mas Mary W a r d dizia coisas das situação é simbólica. Como Clough, Arnold era um espí-
quais a outra nem sabia. E r a uma mulher altamente intelec- rito de inquietação religiosa; doutro lado, o tio de Mary
tualizada, a sobrinha daquele Matthew Arnold que fora o W a r d é o tio-avô de Aldous Huxley e Julian Huxley, da
amigo de Clough. Em torno de Arnold, filho do teólogo gente mais cosmopolita da Inglaterra, netos do agnóstico
liberal Thomas Arnold, fecha-se um ciclo. Thomas Henry Huxley. O próprio Matthew Arnold foi
Thomas Arnold (1775-1842), "headmaster" e reforma- criado em Rugby, sob os auspícios do pai, a cuja memória
do da famosa escola de Rugby, fora um dos maiores peda- dedicou um dos seus poucos poemas profundamente como-
gogos ingleses, talvez o maior desde os dias de Colet e vidos: "Rugby Chapei". Estudava em Oxford, parecia
Erasmo. O filho, Matthew Arnold ( 5 4 ), também foi um destinado a um helenista de estilo mais puro. O seu primei-
ro ensaio, On Translating Homer, já é obra dum grande
53) Mary Humphry Ward, 1851 — 1920. scholar e humanista. Mas não de um humanista ortodoxo.
Robert Elmsre (1888); The History of David Grieve (1892); Mar- Discute a "questão homérica", lembra H e r d e r ; e herdaria
cella (1894); Sir George Tressady (1895); Helbeck of Bannisdale
(1398) etc, etc. na é a sua tentativa de ressuscitar uma literatura esquecida:
J. S. Walters: Mrs. Humphry Ward, Her Work and Influence.
London, 1912. On the Study of Celtic Literature. Herderiana é a tenta-
J. P. Trevelyan: The Life of Mrs. Humphry Ward. London, 1913. tiva de chamar a atenção para literaturas estrangeiras, dis-
54) Matthew Arnold, 1822 — 1888. cutindo a ironia de Heine, o classicismo de Maurice de
Poems (1853); Poema (1855); Essaya in Criticism (1865); On the
Study of Celtic Literature (1867); New Poema (1867); Schoola Guérin, o cepticismo de Renan. Na Inglaterra vitoriana,
and Universities on the Continent (1868); Culture and Anarchy ilha quase hermeticamente fechada às correntes literárias
(1869); Literature and Dogma (1873); God and the Bible (1875);
Essays in Criticism (1888). do continente, era isso trabalho de apóstolo. E Arnold era
Edição completa por Q. W. E. Russell, 15 vols., London, 1903. um apóstolo da civilização. Até a sua função oficial de ins-
Edição das poesias por H. B. Forman, 2 vols., London, 1900/1902.
H. W. Paul: Matthew Arnold. London, 1902. petor do ensino forneceu-lhe oportunidade para quebrar
St. P. Sherman: Matthew Arnold. New York, 1917. o isolacionismo inglês, chamar a atenção para as vantagens
H. Klngsmlll: Matthew Arnold. London, 1928.
C. H. Harvey: Matthew Arnold, a Critic of the Victorian Perioá. ilo ensino superior à maneira europeia, sobretudo na Ale-
London, 1931.
L. Trilling: Matthew Arnold. London, 1939. manha. Notou, porém, dois grandes obstáculos da europei-
C. B. Tinker e H. F. Lowry: The Poetry of Matthew Arnold. Lon- tação dos ingleses: o utilitarismo económico, que acredita-
don, 1940. va poder comprar tudo por dinheiro, tudo até cultura; e o
L. Bonnerot: Matthew Arnold poete, essai de biographie psycho-
logique. Paris, 1947. puritanismo, com o seu moralismo estreito, hostil à beleza.
E. K. Brown: Matthew Arnold, a Study in Conflict. Chicago, 1948
Cl. Dyment: Matthew Arnold. London, 1948.
2332 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2333
Atacou esses dois inimigos na mais importante, se bem não do nos sonetos e outras poesias de tamanho menor; e uma
melhor, das suas obras, Cultuie and Anarchy. vez, em Requiescat escreveu um dos versos permanentes da
Demonstrou que a civilização material, por mais prós- poesia inglesa:
para que seja, degenera em anarquia espiritual, se não fôr
acompanhada de cultura pessoal. E esta, Arnold não era "The vasty hall of L)eath."
capaz de encontrá-la na Inglaterra, cuja população lhe pa-
recia dividida em três grupos: "barbarians", "philistines", Arnold é tão melancólico como Clough. A luta ínti-
and "populace". Contra a suficiência inglesa, Arnold pre- ma entre as dúvidas religiosas e a fé nos valores espirituais,
tendeu definir o que é cultura — é esta a pretensão de to- entre o cosmopolitismo estético e a respeitabilidade do pro-
dos os renascentistas, mesmo quando o seu supremo ideal fessor e grande burguês, produziu em Arnold uma espécie
não é a Renascença mas o modelo da própria Renascença: de "mal du siècle", muito típico nos melhores entre os vi-
a Grécia. O aluno de Rugby e Oxford era discípulo de torianos. Em Arnold havia fortes resíduos românticos: o
Goethe: cultura não existe sem a harmonia que se expri- admirador de Wordsworth também era leitor infatigável
de Sénancour; e a crítica moderna também descobre o ro-
me através da beleza grega. Aproveitando-se de uma dis-
mantismo na sua maneira da crítica literária, sacrificando
tinção de Heine, Arnold tomou o partido do "espírito helé-
a estrutura e a ideologia das obras à escolha e elogio dos
nico" contra o "espírito hebraico", quer dizer, contra o pu-
"belos versos e trechos". Os maiores documentos do ro-
ritanismo inglês. Mais uma vez lembra a Herder a sua ten-
mantismo arnoldiano são dois poemas da angústia: "Dover
tativa de demonstrar a beleza literária da Bíblia. Só assim, Beach" e " T h e Scholar-Gypsy". Angústia do intelectual
acreditava, a Bíblia poderia salvar-se numa época de irreli- perante a visão de tempestades terríveis —
giosidade crescente que acabará admitindo só uma religião:
a da arte. O ponto final da atividade de Arnold, filho do
" . . . confused alarms of struggle and flight,
teólogo liberal Thomas Arnold, é o ataque ao dogma or-
W h e r e ignorant armies clash by night." —;
todoxo.

A t é aí, Matthew Arnold parece bastante rebelde. Mas mas a inquietação espiritual do scholar-gypsy calma-se na
não é assim a sua poesia. Não é poeta de primeira ordem, atmosfera humanista de Oxford. A última Impressão que
mas poeta sincero. Poeta culto e até poeta erudito, tra- a poesia de Arnold sugere é sempre harmonia perfeita, har-
tando assuntos de todas as épocas e regiões à maneira nar- monia entre o sentimento romântico e a forma clássica.
Na poesia como na atitude em face da religião, Arnold é
rativo-contemplativa de Wordsworth, e quase nunca fa-
parnasiano; um crítico francês lembrou-se, a seu respeito,
lhando: fosse em "dramas" líricos de assunto grego, como
de Leconte de Lisle. O espírito vitoriano de Arnold não
Merope e Empédocles on Etna; fosse em temas nórdicos,
chega, porém, aos extremos da cultura meramente formal
como The Forsaken Merman e Balder Dead; fosse em poe-
c do anticristianismo. Acredita na arte como um cristão
mas orientais, como "Sohrab and Rustum". A poesia do
•m Deus, mas com a severidade de um puritano. Arnold
Arnold é algo fria, professoral, "excellent scholar's poetry". 6, em primeira linha, um "grande moralista. Julgava-se "gre-
Mas também dispõe de autênticos acentos líricos, sobretu- go"; mas era muito "hebraico". Um apóstolo entre infiéis
2331. OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2335

que pretendeu converter, iluminar. O filho de Thomas Ar- evasionismo superficial e insincero, "romantismo de ricos"
nold também foi um educador. (Meredith). Mas houve, entre tantos pintores e poetas eva-
A primeira lição de Arnold que os intelectuais ingle- sionistas, um pintor-poeta autêntico; talvez porque foi, en-
ses ouviram, foi o esteticismo cosmopolita; aceitaram-na tre tantos italiniazantes, o único italiano autêntico: Dante
com o mesmo fervor religioso com o qual Carlyle tinha Gabriel Rossetti.
abraçado a harmonia moral da Idade Média. Para transfor- Rossetti ( 5 0 ), filho de um patriota italiano, protestan-
mar o evangelho medievalista de Carlyle em evangelho re- te e poeta, exilado na Inglaterra, era artista nato; e a sua
nascentista dos pré-rafaelitas, as condições estavam dadas: condição contribuiu para entranhá-lo, cada vez mais, no so-
no esteticismo de Keats, na italianofilia de Shelley e Lan- nho de um renascimento de Florença em meio da neblina
dor e de toda a burguesia culta da Inglaterra, procurando de Londres. O pré-rafaelitismo, artifício para os outros,
o paraíso italiano para fugir da atmosfera de fumaça das era o seu clima natural; mas prejudicou antes o seu ta-
fábricas inglesas. lento. Sem ser um pintor de primeira ordem, teria bastan-
te força para fazer ilustrações muito poéticas para edições
"Open my heart and you will see de Dante e Petrarca; em vez disso, elaborou essas ilustra-
Graved inside of it, " I t a l y " ; ções como grandes quadros místicos, simbólicos, sensuais,
enfim fantasias históricas ao gosto da época. Em compen-
cantou Browning, e o pintor Edward Burne-Jones comen- sação, contribuiu para a poesia inglesa um realismo pictó-
tou: "Meu corpo está passando pela neblina das ruas de rico, até então desconhecido; o mundo de Dante e Beatrice
Londres, mas o meu espírito está em Florença". Burne- parecia revelar-se logo nos primeiros versos da Blessed
Jones, junto com os pintores William Holman H u n t e John Damozel:
Everett Millais, fundara a Pre-Rephaelitic Brotherhood,
associação de monjes da arte, dedicados ao culto da beleza " T h e blessed Damozel leaned out
italiana, sobretudo do Quattrocento "antes de Raffaello"; From the golden bar of Heaven;
da arte de F r a Angélico, Perugino e Botticelli, que o crí- Her eyes were deeper than the depth
tico Ruskin lhes interpretou. Porque só naqueles, pinto- Of waters stilled at even;
res "ingénuos" ainda havia a pureza moral, condição de She had three lilies in her hand,
suprema beleza física, que merecia o culto quase religioso. And the stars in her hair were seven".
O movimento pré-rafaelita ( 55 ) contava entre os seus adep-
tos muitos pintores e alguns poetas. Na história literária,
esse movimento artístico entra como influência difusa, pre- 56) Dante Gabriel Rossetti, 1828 — 1882.
sente na poesia de Tennyson e Browning e de muitos poe- Poems (1870); Ballads and Sonnets (1881).
Edição por W. M. Rossetti, London, 1911.
tastros que desacreditaram, depois o pré-rafaelitismo como A. C. Benson: Rossetti. London, 1904.
Ch. Davies: Dante Gabriel Rossetti. London, 1925.
E. Waugh: Rossetti, His Life and Works. London, 1928.
L. Wolff: Dante Gabriel Rossetti. Paris, 1934.
H. Rossetti Angelí: Dante Gabriel Rossetti. London, 1948.
55) W. H. Hunt: Pre-Raphaelitism and the Pre-Raphaelitic Bro- O. Doughty: A Victorian Romantic. Dante Gabriel Rossetti. Lon-
therhood. 2 vols. London, 1905. don, 1949.
F. E. Welby: The Victorian Romantics, 1850 — 1870. London, 1929.
2336 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2337

A força sugestiva dessas imagens é de todo moderna ; seu disfarce esteticista, a fuga da responsabilidade. Reagi-
não tem nada que ver com o simbolismo intelectualista da ram, então, as duas forças que estavam reunidas no Mestre
Vita Nuova, que Rossetti traduziu magistralmente. Simbo- A r n o l d : o moralismo e o racionalismo anti-romântico. Daí
lismo forçado é o único defeito, ocorrendo casualmente, as duas verdadeiras oposições que pretenderam "limpar"
dos sonetos do House of Life, que estão entre os mais belos a civilização da burguesia inglesa: a de Ruskin e M o r r i s ;
de uma literatura que possui os de Shakespeare, Donne, e a de Meredith e Butler.
Milton, Wordsworth e Keats. O simbolismo de Rossetti Ruskin ( 67 ) não é o mesmo para os europeus continen-
parece destinado a esconder, antes do que a revelar, a sua tais e para os ingleses. No continente, sobretudo na Fran-
doutrina da união mística entre as almas e os corpos, dou- ça, foi entendido como um dos maiores estetas do século
trina "carnal", altamente escandalosa aos críticos vitoria- X I X ; como o prosador insuperável que tinha descrito, nos
nos. E a sensualidade de Rossetti foi bastante mórbida. Modem Painters, os quadros de Turner, de tal modo que
Colocou o manuscrito ainda inédito da House of Life no o leitor acredita vê-los; que tinha reconstruído, em pala-
caixão de sua mulher, Elizabeth Eleanor Siddal; sete anos vras, nas Seven Lamps of Architecture, as catedrais da Ida-
depois, mandou exumar o corpo da amada para publicar a de Média; e em cujos Stones of Venice se respira a obscuri-
obra. Parece um conto fantástico de Poe, ou uma loucura dade mística do interior da basílica de São Marco. Nesse
sentimental de poeta "noturno" do tempo de Young. E sentido foi Ruskin uma grande influência na França de
ninguém definiu melhor do que o próprio Rossetti essa Mallarmé, Barres e Proust. Aos ingleses, Ruskin parecia,
morbidez poética: antes, um iconoclasta, querendo colocar a arte acima dos
lucros e destruir a sociedade moderna em favor de sonhos
"Under the arch of life, where love and death, utópicos; é o homem da eloquência torrencial e confusa
Terror and mystery, guard her shrine, I saw de Unto this Last e de Fors clavigera. Parte da confusão
Beauty e n t h r o n e d . . . " é culpa do próprio Ruskin, espírito pouco claro, mais ora-
dor do que pensador, confundindo problemas da arte e pro-
Nisso não há nada de Renascença, nem de italiano. blemas da vida, valores estéticos e valores morais. Apesar
Rossetti descende do esteticismo de Keats e P o e ; foi capaz
de redescobrir Blake e antecipar o Simbolismo. A sua poe-
57) John Ruskin, 1819 — 1900.
sia já revela todo o encanto musical e vago dos simbolistas Modem Painters (1843/1860); The Seven Lamps of Architecture
célticos, cumprindo uma profecia do crítico Arnold. Como (1849); The Stones of Venice (1851/1853); Unto this Last (1860/
1862); Munera Pulveris (1862/1863); Sesame and Lilies (1865);
este, mas com franqueza maior, é Rossetti uma natureza The Crown of Wild Olive (18C6); Fors Cíavigera (1871/1884).
romântica, quebrada pelo vitorianismo ("The lost days of Ediç&o por E. T. Cook e A. D. O. Weddèrburn, 39 vols., London,
1902/1912.
my life until t o d a y . . . " ) . A perfeição de Rossetti é menos Fr. Harrison: John Ruskin. London, 1902.
poética, do que artística; e foi artística demais para o seu A. Chevrillon: La pensée de Ruskin. Paris, 1909.
E. T. Cook: The Life of John Ruskin. 2 vols., London, 1911.
tempo. Os pré-rafaelitas, espíritos e corpos pálidos, não F. W. Roe: The Social Philosophy of Carlyle and Ruskin. New
aguentaram tanta intensidade, fosse mesmo mórbida. York, 1922.
H. A. Ladd: The Vivtorian Morality of Art, an Analysis of Ruskin's
Por mais paradoxal que pareça, o pré-rafaelitismo não Esthetic. London, 1932.
G. Grew: Ruskin. London, 1936.
é a contradição e sim o último refúgio do vitorianismo: o P. Quennell: John Ruskin. London, 1D50.
2338 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2339
disso, existe na sua evolução uma lógica quase rigorosa. fleto poderoso contra o individualismo capitalista, contra
Arnold tinha exigido uma nova civilização, sem definir- o coletivismo escravizador da máquina, em favor de um
lhe o conteúdo. Ruskin indicou aos pré-rafaelitas o cami- socialismo espiritualista.
nho da Itália. Mas fez logo uma restrição: não a Renas- Ruskin exerceu influência enorme; mas não aquela que
cença do século X V I , arte independente da vida, nem se- desejara. Despertou em inúmeros corações a fome da be-
quer a Renascença inteira do século XV, mas sim a arte leza, mas não converteu nenhum capitalista ao cristianis-
gótica, expressão existencial da vida dos artistas. Daí os mo e nenhum operário ao artesanato gótico. A culpa era
ataques contra pintores classicistas, como Poussin e Clau- sua. O seu medievalismo era impotente, porque um medie-
de Lorrain, nos Modem Painters; daí os ataques contra a valismo sem fé dogmática é meramente estético. Também
arte mentirosa, de fachada, da alta Renascença, nos Stones era estético o "socialismo" de Ruskin, socialismo idílico e
of Venice. Ruskin chega a reconhecer o mal, a mentira, na romântico dum descendente de Wordsworth. Com efeito,
própria consciência artística que visa a fins fora das ne- a influência de Ruskin na Inglaterra acabou com o pré-
cessidades vitais do homem. Opõe ao artista o artesão, que rafaelismo que êle mesmo criara; mas não o substituiu por
serve em vez de dominar. Ruskin apresenta uma doutrina doutrina social coerente. Não era possível resolver os pro-
coerente de fé, sacrifício e obediência, nas Severt Lamps blemas sociais por meio de aulas de pintura e de história
of Architecture: o elogio entusiasmado do estilo gótico. das artes plásticas. Mas, à pintura, deu Ruskin uma nova
Isso parece, à primeira vista, muito vitoriano. O artesão base, uma doutrina social. À pintura e a todas as expres-
está mais perto do técnico do que o artista; e a época vi- sões artísticas; então a arte — o caso não é único — re-
toriana gostava imensamente do gótico, construindo nesse percutiu na vida, produzindo uma nova maneira de agir.
estilo o novo Parlamento e inúmeras prefeituras e estações William Morris ( 68 ) vive na história inglesa como uma
de estrada de ferro, até a gare em Calcutá. Ruskin, artista das figuras mais singulares e mais poderosas do século
nato e puritano até a raiz dos cabelos, reconheceu a menti- XIX. Mas a sua personalidade está mais viva do que a
ra neogótica. Responsabilizou justamente o técnico que sua obra. Os seus grandes poemas narrativos, coleçoes
não é um artesão, servindo a Deus, mas um criado do ma-
monismo. A conclusão lógica desse medievalismo antibur- 58) William Morris, 1834 — 1896.
The Defence of Guenevere and Other Poems (1858); The Life
guês à maneira de Carlyle — a filiação era consciente — anã Death of Jason (1867); The Earihly Paradise (1868/1870);
é o ataque ao mundo moderno, quer dizer, à organização so- Sigurd the Volsung and the Fali of the Nibelungs (1876); News
from Nowhere (1891).
cial que impede a verdadeira expressão artística. A arte, Edição por M. Morris, 24 vols., London, 1910/1915.
conforme Ruskin, está intimamente ligada à vida; exprime J. Spargo: The Socialism of William Morris. London, 1906.
A. Noyes: William Morris. London, 1908.
mesmo a estrutura social da época. Nessa ideia revela-se A. Compton-Rickett: William Morris. A Study in Personality.
Ruskin como contemporâneo de Marx, em cuja vizinhança London, 1913.
A. CIutton-Brock: William Morris, His Work and Influence.
— as casas estavam separadas por poucos quarteirões — London, 1914.
J. W. Mackail: Life of William Morris. New York, 1922.
foram escritos livros como Munera Pulveris, Sesame and B. J. Evans: William Morris and His Poetry. London, 1925.
Lilies, The Crown of Wild Olive, ataques terríveis ao li- P. Bloompield: William Morris. London, 1934.
M. Morris: William Morris. Artist, Writer, Socialist. 2 vols. Ox-
beralismo económico; contra a liberdade de economia, para ford. 1936.
salvar a liberdade da arte. Sobretudo Unto this Last, pan- M. R. Grennan: William Morris, Medievalist anã Revolutionary.
New York, 1945.
2340 OTTO M Á F I A CAPPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2341

enormes de imagens fantásticas, encontram, cada vez me- plicou-se na famosa "Apology" do Earthly Paradise, poe-
nos, leitores; as suas realizações nas artes gráficas e decora- sia que merece comentário como uma das produções poéti-
tivas pertencem a um gosto já antiquado; o seu socialismo cas mais significativas, mais reveladoras, do século intei-
era militante, mas utópico. ro. Morris começa confessando a impotência vital da sua
A injustiça contra o poeta Morris é grande, embora arte:
pareça irremediável. Não é um artista tão perfeito como
Rossetti, mas dotado de poder muito maior de imaginação, "Of Heaven or Hell I have no power to sing,
um verdadeiro visionário de imagens. Não eram imagens- I cannot ease the burden of your fears,
originais, isso é verdade, mas essa originalidade faz falta
Or make quick-coming death a little thing,
ao século X I X inteiro; e, afinal, toda a literatura, desde o-
Or bring again the pleasure of past ycars,
Barroco ou já desde a Renascença, viveu de imagens em-
Nor for my words shall ye forget your tears,
prestadas. Morris, que não era italiano e sim um inglês-
Or hope again for aught that I can say,
típico, preferiu ao "Trecento" italiano o "Trecento" i n -
T h e idle singer of an empty day".
glês; em vez de Dante, escolheu Chaucer como modelo,
romantizando-o ao gosto do século XIX, tratando-lhe os
Depois dessa declaração de falência do pós-romantismo
assuntos como se fossem de Spenser. A fórmula "Chau-
vitoriano, tennysoniano, Morris explica numa comparação
cer-Spenser" forneceu-lhe a possibilidade de transformar
extaordinàriamente bela o fim do seu poema e do medie-
os temas medievais pelo romantismo pré-rafaelita, sejam
valismo-renascentista dos pré-rafaelitas:
temas da lenda céltica (Defence of Guenevere), sejam t e -
mas nórdicos (Sigurd the Volsung). E m Chaucer (e em.
Froissart), Morris aprendeu o requinte da sua arte poéti- "Folk say, a wizard to a northern king
ca: tratar assuntos da Antiguidade grega como se fossem' A t Christmas-tide such wondrous things did show,
romances de calavaria medievais. A Idade Média fizerai T h a t through one window men beheld the spring,
assim, com toda ingenuidade, os seus romances de Tróia And through another saw the summer glow,
e de Alexandre, o Grande; Morris escreveu assim, com a r t e And through a third the fruited vines a-row,
consumada, The Life and Death of Jason, e enfim a sua W h i l e still, unheard, but in its wonted way,
obra capital, o Earthly Paradise, em que se enquadram 12 Piped the drear wind of that December day.
novelas de assunto grego e 12 novelas de assunto nórdico' So with this Earthly Paradise it i s . . . " , —
ou normando, sempre no mesmo estilo medieval. É a r t e
que lembra as maravilhosas tapeçarias medievais do museu arte de lanterna mágica, criando "a shadowy isle of bliss"
do Hotel Cluny, mas também as decorações suntuosas, d e no meio do Oceano nórdico, frio e terrível,
gosto pouco certo, das casas grande-burguesas de 1880.
Morris, como poeta, colocou-se, de propósito, fora da rea- "Whose ravening monsters mighty men shal slay,
lidade industrial e comercial da Inglaterra moderna; eva- Not the poor singer of an empty day."
sionismo que devia degradar a arte a mero enfeite sem
função vital. Morris estava consciente desse perigo. E x - A grandeza de Morris reside na sua coerência, superior
u de Ruskin. Tirou as conclusões, enfrentando a realidade.
2342 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2343

Venceu o vazio, o "empty day", realizando com as mãos, gura típica é o grande scholar Leslie Stephen ( D0 ), estu-
literalmente, aquelas imagens mágicas. Criou, como sócio dioso dos free-thinkers deístas do século X V I I I , defensor
de um agnosticismo não-materialista contra as reivindica-
e diretor artístico de uma fábrica de móveis e tapeçarias,
ções teológicas de Newman; um Swift sem amargura nem
D nova arte decorativa que devia dominar o fim do século;
misantropia, o precursor do antivitoriano Lytton Strachey.
fundou a Kelmscott Press, publicando edições maravilho- Da mesma família de espíritos foi Meredith ( c o ), anti-
sas de livros de poesia antigos e modernos, uma nova arte cristão decidido, darwinista sem conclusões materialistas
gráfica, de repercussões até hoje. E enfim, o autor da uto- e, nesse pormenor, ainda um vitoriano, algo confuso, inca-
pia News from Nowhere resolveu alistar-se entre os "mi- paz de expressão direta. Um dito muito conhecido afirma
ghty men", combatendo os "ravening monsters": em 1881. que "Meredith não escreveu em inglês, e sim em Meredith".
tornou-se membro da Social Democratic Federation, do Mas é justamente isso o que negam os últimos críticos e
partido socialista ao qual pertenceu a atividade dos últi- reabilitadores do romancista, elogiando-lhe a imperecível
frescura juvenil do estilo, sobretudo nas descrições da Na-
mos anos da sua vida: para construir a nova Jerusalém do
tureza. Meredith é o "poet's novelist". E é mesmo poeta.
socialismo "in England's green and pleasant land".
Na poesia de Modem Love e Poems and Lyrics of the Joy
Como poeta, Morris parece-se com A r n o l d : a sua poe-
sia é mais conformista, "conforme" o "compromisso vitoria-
no", do que a sua doutrina. Mas o ideal arnoldiano de uma 69 Leslie Stephen, 1832 — 1904.
Hours in a Library (1874/1879); A History of Englisli Thought in
nova civilização, Morris realizou-o à sua maneira. Era, en- the Eíghteenth Century (1876); An Agnostics Apology (1893);
t r e os estetas, o único que sabia "realizar", "fazer" alguma Studies of a Biographer (1898/1902).
F. W. Maitland: The Life and Letters of Leslis Stephen. London.
coisa, fosse móvel, fosse livro, fosse comícios públicos e 1906.
ameaças de revolução. Venceu o passadismo evasionista; 60) George Meredith, 1828-1909.
The Ordeal of Richard Feverel (1859); Evan Harrington (1861);
revelou o sentido "futurista" do renascentismo. Modem Love and Poems of the English Roadside (1862); Sandra
Belloni (1864); Rhoda Fleming (1865); The Adventures os Henry
O preço que tinha de ser pago por isso, foi a destruição Richmond (1871); Beauc1iamp's Career (1876); The Egoist (1879);
Ths Tragic Comeãians (1880); Poems and Lyrics of the Joy of
do "compromisso vitoriano", ao qual os semipuritanos Ar- Earth (1883); Diana of the Crossways (1885); Lord Ormont and
nold e Ruskin ficaram ligados, ao passo que Morris se tor- His Aminta (1894); The Amazing Marriage (1895); The Idea of
cornedy and the zlses of the Comic Spirit (1897).
nou socialista. A grande burguesia, mesmo na sua parte Fdição: Memorial Edition. 27 vols., London,-1909/1911.
a. M. Trevelyan: The Poetry and Philosophy of George Meredith.
mais culta, não podia acompanhar esse passo que lhe des- London, 1906.
truiria os fundamentos económicos da existência. Justa- J. Moffat: George Meredith, a Pmer to the Novéis. London, 1909.
J. W. Beach: The Comic Spirit in George Meredith. New York,
mente os grandes intelectuais, como as famílias Arnold e 1911.
W. Chislett: George Meredith, a Study and Appraisal. London,
Huxley, preferiram a atitude, de menor responsabilidade, 1925.
J. B. Briestley: Meredith. London, 1926.
da aristocracia do século X V I I I : deixar de lado as ques- R. E. Sencourt: The Lije of George Meredith. London, 1929.
tões sociais e reservar-se os privilégios do livre-pensamen- S. Jassoon: Meredith. London, 1948.
L. Stevenson: The Ordeal of George Meredith. New York, 1953.
to — e de algumas outras liberdades menos puritanas. Fi- J. Lindasay: George Meredith, his Life and Worlhs. London, 1956.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2345
2344 OTTO M A R I A CABPEAUX
middle class" e aristocracia — que vive de terras, rendas,
of Earth — os títulos são significativos — conseguiu um
ações, divertindo-se com golfe, críquete e arte pré-rafaelí-
estilo direto, vigoroso, lembrando a Wordsworth, mas pro-
tica, fazendo e desfazendo casamentos, disputando eleições
fessando doutrinas opostas: um panteísmo pagão, antipu-
para a Casa dos Comuns, conversam muito e falam por afo-
ritano, alegre e intenso, sem o verbalismo de Swinburne
rismos espirituosos que são o meio preferido de expressão
nem a morbidez de Rossetti. Na "união mística" de Ros-
de George Meredith: assim, Evan Harrington, Sandra
setti, o corpo apoderara-se da alma, produzindo as angús-
Belloni, The Adventuies of Harry Richmond. Um título
tias de "tales of horror" em versos vividos; em Meredith,
como Lord Ormont and His Aminta é altamente simbólico:
opondo a love ao sex, a alma assimila-se à sexualidade —
são "romances pastoris" da sociedade vitoriana, mas sem
isso também é pouco grego, mas muito moderno no sentido
falsas ilusões. Em Diana of the Ctossways chega a certa
de 1920. Meredith é, até certo ponto, um precursor de D.
crueldade da observação; e flaubertiano, mais uma vez,
H. Lawrence; e na frescura de pensador ao ar livre, que
é o maior dos seus romances, The Egoist, o desmascara-
conservou até a extrema velhice, é um precursor de Shaw.
mento completo do herói eterno de Meredith.
Opôs desmentido vigoroso ao pessimismo do seu amigo
H a r d y : ao passo que Hardy viu nas mulheres as vítimas Todos esses romances são notáveis; dão ao leitor a
do determinismo biológico, Meredith as considerava como impressão de pertencer, durante as horas da leitura, àque-
as últimas criaturas instintivas, filhas de Pan. A sua fa- la sociedade brilhante e exclusiva. As comédias de Wilde
mosa frase — "Woman will be the last thing civilised by dão a mesma impressão; mas facilitam a entrada. Meredith,
man" — não é de desprezo e sim de esperança. Meredith não. O seu senso social não é bem desenvolvido. Em Beau-
tirou na literatura as consequências que George Eliot só champ's Career zombou dos políticos radicais, e The Tra-
ousara tirar na vida. gic Comedians é um panfleto contra Lassalle; radicalismo
Meredith revela alguns pontos de contato com George e socialismo também seriam sentimentalismos. É uma con-
Eliot e até com George Sand. No ambiente rústico passa- cessão ao espírito vitoriano. E m relação com isso está a
se o romance Rhoda Fleming, tão diferente dos romances pouca habilidade estilística do prosador Meredith, pelo
rústicos de Hardy. Meredith acredita reconhecer a identi- menos nas análises psicológicas; tudo o que diz é compli-
dade de sentimentalismo erótico e egoísmo estreito. "Sen- cado, talvez por relutância de dizê-lo diretamente. O meio
timentalismo quer o prazer sem as consequências": esse flaubertianismo de Meredith evita os desfechos trágicos,
egoísmo é o grande inimigo contra o qual Meredith luta. enquanto fôr possível; evita o chocking. Evita a sátira di-
Seu esforço de desiludir os sentimentalismos românticos reta, ficando no humorismo satírico. Tem mais de Sterne
lembra a Flaubert. Bem flaubertiano é o primeiro grande do que de Swift. O humorismo — definido como "luz
romance de Meredith, e conforme a opinião de muitos o oblíqua", no admirável ensaio The Idea of Comedy and the
melhor: The Ordeal of Richaid Feverel, história de um Uses of the Comic Spirít — é a grande arma de Meredith
moço, estragado por uma educação puritana, apaixonando- contra egoísmo e sentimentalismo. É o espírito da comédia
se sentimentalmente pela primeira jovem que encontra, e como força social. Mas é comédia, ligada aos costumes de
acabando desiludido. "As mulheres são o nosso ordálio." determinada clas.se e época, por isso condenada a envelhe-
Assim se inicia a longa série dos romances-comédias de Me- cer; e os romances de Meredith já envelheceram muito.
redith, passando-se, todos eles, na alta sociedade — "uper
2316 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2347

O humorismo desempenhou papel bastante grande no fantil de Carroll passa hoje por clássico da língua. E aquilo
trabalho de minar o espírito vitoriano. A revista humorís- a que Dodgson só aludiu, disse-o francamente Butler.
tica Punch fêz contribuições notáveis para esse fim. Crí- Samuel Butler ( e a ) é o enfant terrible da literatura vi-
ticos modernos chamaram a atenção para o fato de que toriana. Enquanto a teologia liberal lutava pela liberdade
William Schwenk Gilbert ( 0 1 ), autor de libretos de opere- da exegese bíblica, chegou Butler a ressuscitar uma hipó-
tas burlescas como The Pirates of Penzance e The Gondo- tese de certos free-thinkers do século X V I I I , afirmando
liers para o compositor Sullivan, antecipou boa parte da que Cristo não morreu realmente na cruz, sendo a ressur-
sátira antiaristocrática e antiesnobística de Shaw. "I don't reição um erro ou uma fraude das testemunhas. Enquanto
think much of my profession", diz o pirata de Gilbert "but os pré-rafaelitas se entusiasmavam por Florença e Veneza,
contrasted with respectability it is comparatively honest". afirmou Butler ter descoberto maravilhas da arte numa
O mais engenhoso e o mais encoberto desses humoristas foi província tão pouco visitada como o Piemonte. Os shakes-
"Lewis Carroll" ( 6 2 ), cujas Alice's Adventures in Wonder- peariólogos tinham que indignar-se com a sua hipótese so-
land continuam sendo a delícia de todas as crianças de raça bre o sentido secreto dos sonetos, e os filólogos com as suas
anglo-saxônica. O autor, Charles L. Dodgson, era em eru- teorias sobre a origem da Odisseia. Enfim, Butler ousou o
dito professor de matemática, não gostando de confessar a incrível: atacou o santuário científico dos vitorianos, o
paternidade daqueles divertimentos em literatura infantil. darwinismo, exigindo uma finalidade espiritual da evolu-
Alice in Wonderland fêz uma carreira espantosa e abre ção biológica, uma futura super-raça, livre dos antigos pre-
perpectivas maravilhosas. No seu uso de combinações en- conceitos e capaz de começar uma nova era da humanidade.
graçadas e deliberadamente absurdas de palavras, os "port- No diletantismo científico de Butler existe muita coi-
manteau words", que revelam então sentido inesperadamen- sa séria, como por exemplo a descoberta da arte barroca no
te simbólico, descobre a crítica moderna o processo estilís- Piemonte; diletantes e autodidatas, livres dos preconcei-
tico de Joyce, em Ulysses e Finnegarís Wake; a intenção tos dos profissionais, têm sempre sorte assim. Mas há, em
de zombar da linguagem científica e técnica, talvez fosse Butler, uma grande porção de blague. E, enfim, muita sá-
isso o que o cientista Dodgson gostasse de ocultar. Sua obra tira mordaz contra a mistura vitoriana de progresso racio-
fêz carreira oposta à de Gulliver's Traveis: a grande sáti- nalista-utilitarista e puritanismo suficiente. Não é mero
ra de Swift transformou-se em livro infantil, e o livro in-
63) Samuel Butler, 1835 — 1902.
Erewhon (1872); Erewhon Revisited (1901); The Way of AU Flesh
61) William Schwenk Gilbert, 1836-1911. (1903); Notebooks (1912), etc. etc.
The Pirates of Penzance (1880); The Mikaão (1885); The Gondo- Edição por H. F. Jones e A. T. Bartholomew, 20 vols., London,
liers (1889), etc. 1923/1926.
H. Pearson: Gilbert and Sullivan. New York, 1935. G. Cannan: Samuel Butler, a Criticai Study. London, 1915.
C. E. M. Joad: Samuel Butler. London, 1924.
62) Lewis Carroll (pseudónimo de Charles Lutwidge Dodgson), 1832 — P. Meissner: Samuel Butler der Juengere. Eine Studie zur Kultur
1898. des ausgehenden Viktorianismus. Leipzig, 1931.
Alice's Adventures in Wonderland (1865); Through the Looking- C. G. Stilman: Samuel Butler, a Mid-Victorian Modern. London,
Glass (1871). 1932.
Edição por A. Woollcott, New York, 1936. J. B. Fort: Samuel Butler, étude d'un caractere et d'une intelli-
S. D. Collingswood: The Life and Letters of Lewis Carroll. gence. 2 vols. Bordeaux, 1934.
New York, 1899. P. N. Furbank: Samuel Butler, 1835-1902. Cambridge, 1949.
H. M. Ayres: Carroll's Alice. New York, 1936. Ph. Henderson: Samuel Butler. London, 1953.
2348 OTTO M A R I A CARPEATJX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2349

acato a identidade de nomes entre Samuel Butler, o autor antiteológica, que o coloca ao lado de tantos teólogos male-
de Erewhon, e Samuel Butler, o autor de Hudibras. "Erew- dicentes, como Erasmo, Rabelais, Swift, Sterne e o abbé
hon" é o anagrama de "Nowhere"; mas não daquele "Now- Jérôme Coignard, de Anatole France.
h e r e " do qual o socialista Morris trouxe notícias de Utopia. Butler exerceu influência considerável no século XX.
O "Nowhere" de Butler é a Inglaterra vitoriana caricatu- Bernard Shaw descobriu o esquecido, explorando-lhe lar-
rada: tudo o que existe na Inglaterra da Rainha Vitória gamente os paradoxos provocadores; Wells tomou-lhe em-
é exagerado e levado a extremas consequências, absurdas: prestados vários humorismos e propostas utópicas; Arnold
como o culto da máquina. Mas nem tudo é absurdo em Bennett ficou impressionado com o quadro cinzento da
E r e w h o n ; algumas coisas que lá existem antecipam o so- vida familiar inglesa; Gide fortaleceu na leitura de Butler
cialismo de Shaw e o imoralismo de Nietzsche. a sua aversão de adolescente permanente contra as leis mo-
N o fim de sua longa vida de estudioso e criador de rais da família; D. H. Lawrence continuou com radicalis-
ovelhas na Nova Zelândia, Butler voltou a fazer uma visi- mo maior na linha do sexualismo espiritualizado. Só hoje
ta em Erewhon. Mas Erewhon Revisited apresentou-se di- tendo desaparecido na própria Inglaterra os últimos ves-
ferente, corrompido por uma religião falsa, que é uma ca- tígios do puritanismo, The Way of AU Flesh começa a en-
ricatura maliciosa do cristianismo. Butler, teólogo aposta- velhecer sensivelmente: revelado como documento pessoal
siado, fora discípulo de Voltaire; na velhice, a sátira anti- e como "period piece". Agora já se pode melhor situar,
cristã tornou-se ódio de um misantropo isolado, de um pes- historicamente, o livro: pertence às primeiras décadas do
simista exilado da sociedade como Swift. Butler é o mais século XX, embora escrito no século XIX. Butler, o lu-
radical dos antivitorianos. Tentou destruir o vitorianismo tador destemido, tinha tido a coragem de atacar aberta-
pelo menos em si mesmo; mas com sucesso duvidoso. A mente a mais fundamental das instituições puritanas. The
emigração para a Nova Zelândia não dera o resultado de Way of AU Flesh só foi publicado como obra póstuma, no
livrar-se do vitorianismo. Butler estava perseguido pelo começo do século XX, colocando-se, deste modo, fora do
fantasma do puritanismo e, enfim, resolveu eliminá-lo no seu tempo e dando a impressão de que Butler tivesse sido
seu berço, na família inglesa. The Way of AU Flesh repre- um fenómeno isolado na sua época. Admitindo-se a singu-
senta essa tentativa de destruição: emprego do instrumen- laridade da sua figura, contudo, não é tanto assim. Há con-
to novelístico de Thackeray para a apuração antimoralista temporâneos autênticos de Butler — Melville, Multatuli,
de um ambiente que Butler conheceu tão bem que o roman- de Coster; e todos eles, mesmo fora da Inglaterra, pagaram
ce tomou feição autobiográfica, enchendo-se de vida e vi- mais caro do que êle a independência do espírito.
gor inéditos. The Way of AH Flesh seria só um grande O mais curioso entre esses "contemporâneos" de Bu-
documento psicológico, de um Stendhal inglês e amargu- tler é o americano Melville (° 4 ). Tinha escrito alguns bons
rado, se não o tivesse inspirado a fé idealista que Butler
depositara nos seus inesgotáveis Notebooks: fé num fim
(14) Herman Melville, 1819 — 1391.
ideal da evolução biológica, espécie de lamarckismo espi- Typee (1846); Omoo (1847); Redburn (1849); Mardi (1849);
ritualista; mística sem Deus. Butler não conseguira liber- White Jacket (1850); Móby Dick (1851); Pierre (1852); Piazsa
Tales (1856); The Confidence-Man (1857); Bílly Budd (publ.
tar-se de todo da teologia. Ficou teólogo até na sua sátira 1924).
Edição: Standard Edition, 16 vols., London, 1922/1924.
2350 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2351

romances da vida marítima, Redburn, White facket, para Melville não é apenas um "caso". De cada um dos seus mo-
cair depois em esquecimento completo, sobrevivendo quase tivos de revolta contra o calvinismo nôvo-inglês encontra-
40 anos à sua atividade literária; a pausa corresponde à se um paralelo em Butler; e asism como o antipuritano
grande distância, na obra de Butler, entre Erewhon e Erew- Butler era o antipuritano Melville: um erudito-diletante.
hon Revisited. Por volta de 1920, quando Butler já estava Numerosas alusões nos seus romances demonstram a sua
glorioso, também redescobriram Melville. Conservaram-se- curiosidade e vastos conhecimentos filosóficos e literários,
lhe sempre fiéis alguns leitores românticos, gostando da sobretudo da literatura elisabetana e da romântica. Mel
sua obra como documento do tempo em que os veleiros ville é — o que Butler não era — artista. Prova disso é a
americanos navegavam pelo Pacífico, antes de a guerra veemência lírica do seu estilo, absolutamente pessoal, estilo
civil acabar com a marinha mercante dos Estados Unidos. capaz de maravilhas extraordinárias da arte de narrar, como
Agora descobriu-se nesse romântico "atrasado" um grande na novela "Benito Cereno", nos Piazza Tales. Parece um
poeta épico e nas aventuras do capitão Ahab contra a baleia thriller de elaboração artística. Mas a ambição dessa arte
Moby Dick a epopeia do espírito de aventura americano.
era muito grande. Melville pensava, por um momento, ser
Mas a descoberta ia mais longe. Não foi voluntariamente
o Shakespeare do romance americano, um Shakespeare ro-
que Melville interrompera as atividades literárias. A sua
mântico visto através de Poe, parecendo-se com John Ford,
vida foi quebrada pelo escândalo provocado pelo seu roman-
o dramaturgo do incesto, e com J o h n Webster, o dramatur-
ce Pierre, confissão de um amor incestuoso. Agora estava
go da decomposição moral. Com as peças jacobéias pare-
aberto o caminho da interpretação psicanalítica. Moby
ce-se Moby Dick, obra antivitoriana porque a vitória cabe,
Dick seria o monstro, surgindo do subconsciente de um
no desfecho, ao espírito do mal. O romantismo de Melville,
puritano, revoltado contra o ambiente que Hawthorne des-
alimentado por motivos subconscientes, por assim dizer
crevera. Melville seria um caso de "pessimismo por frus-
tração", uma grande curiosidade. "impuros", não é, porém, autêntico, assim como o seu pes-
simismo só é reação contra o rousseauanismo inicial dos
Com isso estão bem definidos os motivos psicológicos idílios no Pacífico, Typee e Omoo. Melville é um escritor
da arte de Melville; mas só os motivos e não os resultados. forçado. Suas intenções são das mais sérias. Suas ambições
são grandiosas, serão desmesuradas. Também foi desmesu-
rado seu sucesso póstumo, devido, em parte considerável,
R. Weaver: Herman Melville, Mariner and Mystic. New York. ao interesse psicológico do seu "caso" e ao desejo dos nor-
1921.
J. Freeman: Herman Melville. New York, 1026. te-americanos de possuir um grande poeta épico. Quase
L. Mumford: Herman Melville. New York, 1929. sempre em Melville, a realização fica atrás da intenção;
W. Thorp: Herman Melville. New York, 1938.
C. R. Anderson: Melville in the South Seas. New York, 1939. menos, talvez, nas novelas curtas e em "Belly Bridd" basea-
J. Simon: Herman Melville, marin, métaphysicien et poete. Pa- do em experiência trágica. Melville não se realiza comple-
ris, 1939.
W. E. Sedgwick: Herman Melville. The Tragedy of Mina. Cam- tamente quando não se baseia em experiência vividas. "Sub-
bridge Mass., 1945. consciente" disso, procurava apoiar-se numa documentação
R. Shase: Herman Melville, a Criticai Study. New York, 1949.
N. Arrin: Herman Malville. New York, 1950. quase de naturalista; Moby Dick é um manual da pesca das
L. Thompson: Melville's Quarrel with God. Princeton, 1952. baleias. Isso aproxima-o de Zola e, mais, de Multatuli.
L. Howard: Herman Melville. Berkeley, 1952.
O. M. Netcalf: Herman Melville. Cambridge, Mass., 1954. Como este, era um romântico ao qual as circunstâncias ex-
2352 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2353

teriores e interiores impuseram o realismo. Dessa contra- dizer "sofri muito", é o pseudónimo que Eduard Douwes
dição nasceu, nos dois casos, uma atitude semelhante à de Dekker adotou por motivos justificados.
B u t l e r : a atitude satírica. Em Butler e Multatuli, a sátira Romantismo ou ambição, ou antes ambição romântica
é de natureza social. Em Melville, ao qual devemos um ro- levou-o para as índias Holandesas onde esperava encontrar
mance satírico contra o charlatanismo na vida americana, um idílio rousseauano; e encontrou a exploração implacá-
The Confidence-Man, também existem motivos sociais da vel dos servos javaneses pela aliança vergonhosa do gover-
arte, expressão da transição da vida americana para a ra- no colonial com os régulos indígenas. O conflito de Dek-
cionalização capitalista; daí a nostalgia do "tempo dos ve- ker, quando "residente", isto é, governador do distrito de
leiros". Mas êle era artista. Os motivos sociais perderam- Lebak, com os seus superiores foi violento; levou à sua
se, como em Swift, numa grande visão — dir-se-ia, visão de destituição, à volta forçada para Europa; e desse choque
místico — da existência humana: de Typee, idílio entre entre romantismo e realidade nasceu o maior romance da
antropófagos — até Moby Dick, epopeia dos esforços inú- literatura holandesa, Max Havelaar. A forma, indireta, é
teis da humanidade contra as forças da Natureza talvez paródia de muitos romances históricos do romantismo,
a primeira obra de literatura universal em que no centro apresentados como transcrições de manuscritos antigos.
dos acontecimentos não está colocado o homem, mas a rea- Batavus Droogstoppel, comerciante no ramo de café em
lidade objetiva das forças extra-humanas do mar, do Des- Amsterdã, encarnação do espírito mercantil e hipócrita dos
tino como peso material. Contra esse inimigo só vale a * holandeses, encontra por acaso o manuscrito em que Max
atitude cervantina. Assim, em "Benito Cereno", a atitude Havelaar, residente demitido de um distrito nas índias Ho-
do capitão, parecendo louco mas agindo assim porque age landesas, conta a história das suas experiências na colónia.
como prisioneiro de piratas, é um símbolo da escravização Droogstoppel está curioso de saber pormenores sobre pro-
do homem pelo destino: expressão simbólica do dogma pu- dução e comércio do café; e encontra, em vez dessas infor-
ritano da predestinação, e alusão ao "way of ali flesh". mações, uma acusação violenta contra a sua estirpe e con-
Casos ideologicamente parecidos são os de dois escri- tra si mesmo. Max Havelaar é, antes do que um romance,
tores dos Países-Baixos, menos conhecidos, de modo que uma coleção de documentos, interrompidos por episódios
até agora, não se tentou a aproximação: Multatuli, na Ho- inventados, dos quais o mais famoso, a história de Saidjah e
landa, e Charles de Coster, na Bélgica. Multatuli ( 6 5 ), quer Adinda, reúne os elementos principais da arte de Dekker.
Em primeira linha, o romantismo: amor rousseauano da na-
65) Multatuli (pseudónimo de Eduardo Douwès Dekker), 1820 — 1887. tureza tropical, sentimentalismo rousseauano também na
Max Havelaar of de Koffiveilingen der Nederlandsche Handel- apresentação dos amantes, separados pela brutalidade dos
STnaatschappij (1860); Minnebrieven (1861); Ideen (1862/1877);
Millioenenstudien (1870); Vorstenschool (1872). " governantes e exploradores, e um humorismo alusivo à ma-
Edições por M. Schepel-Dekker, 2.a ed„ 10 vols., Amsterdam, 1891/ neira de Dickens na caracterização maliciosa da hipocrisia
1892, e por G. Stuiveling e F. C. A. Batten, Amsterdam, 1950 sgg.
S. Lublinski: Multatuli. Berlin, 1899. holandesa, que se aproveita do suor dos servos, sufoca em
J. Prinsen: Multatuli en de romantiek. Amsterdam, 1909. sangue as suas rebeliões, e dá graças a Deus "que lutou mais
J. Van den Bergh Van Evsinga: Multatuli. Amsterdam, 1920.
J. De Gruyter: Het leven en de werken van Eduard Douwes Dekker. uma vez ao lado dos exércitos cristãos". Eis já o segundo
2. vols. Amsterdam, 1920/1921. elemento, a eloquência de um grande propagandista das
E. Du Perron: De man van Lebak. Amsterdam, 1937.
A. J. de Maré: Multatuli-literatuur. Amsterdam, 1948. ideias humanitárias, eloquência de fervor oriental, como
2854 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2355

convinha ao assunto; Multatuli foi um dos maiores orado- Multatuli é um radical dos anos de 1860, numa época
res-pensadores-estilistas do século X I X e o renovador da de radicalismos agitados e na qual o radicalismo obteve
prosa holandesa. Ao assunto também convém o terceiro ele- muitos triunfos. As ideias radicais de Multatuli também
mento, oposto aos dois outros: os episódios, como a histó- triunfaram, num setor limitado: na administração das co-
ria comovente e revoltante de Saidjah e Adinda e tantos lónias. Mas êle mesmo não foi reconhecido, tampouco como
outros, baseiam-se em documentação minuciosa, apresen- foram reconhecidos Butler e Melville. E n t r e eles e o ra-
tada pela transcrição de atos e processos oficiais do gover- dicalismo está o romantismo inato que não conseguiram
no colonial; toda a história de Max Havelaar é, afinal, uma afastar das suas almas, e que os desviou da sátira social
autobiografia, melhor documentada do que um romance de para o exotismo e o erotismo. Somente na vizinhança des-
Zola. A esse método naturalista ligam-se o êxito imediato ses radicais sui generis se compreende a figura singular de
e a importância histórica da obra: é o primeiro romance Charles de Coster (m)} tão isolado que o seu nome mal
colonial em que as tendências sociais importam mais do aparece nas histórias da literatura francesa, e que até nas
que os encantos do exotismo. Foi mais a documentação histórias da literatura belga de expressão francesa só lhe
irrefutável do que a tendência que sacudiu as consciências cabe um lugar de precursor. Mas a glória dos decadentistas
na Holanda; o resultado foi uma reforma completa da ad- belgas — Maeterlinck, Rodenbach — já empalideceu, e Ver-
ministração colonial, ao passo que o "culpado" dessa re- haeren, grande poeta, não voltará à atualidade sem ter pas-
forma, Dekker, se transformou em Multatuli, atacado por sado por discussões difíceis. Charles de Coster, porém, é o
todos como caluniador e inimigo da pátria, caçado de lu- maior e o mais original escritor da literatura franco-belga,
gar para lugar, vivendo em miséria perpétua e terminando que, depois, de uma interrupção de séculos, com êle res-
a vida no exílio. suscitou. Contudo, não era de origem francesa; era fla-
mengo, e a essência germânica da sua obra impediu até
E i s a segunda fase na vida e obra de Multatuli: a sua hoje o pleno reconhecimento do seu valor pela crítica fran-
revolta integral contra todas as convenções sociais, o aban- cesa, ao passo que a língua que adotou, o exclui da litera-
dono da mulher e o "casamento livre" com outra, os ata- tura flamengo-holandesa. Charles de Coster é o pendant
ques furiosos, nas Minnebrieven e Ideèn, contra toda auto-
ridade política e social e contra o cristianismo, a defesa do
amor livre e do anarquismo; e todo esse furor romântico de 66) Charles de Coster, 1827 — 1879.
um liberal indignado exprime-se em Ideias, isto é, coleções Contes brabançons (1861); Legendes flamandes (1867); La Legende
de contos, parábolas, aforismos, crónicas jornalísticas so- de les aventures héroiques, joyeuses et glorieuses d' Ulenspiegel et
de Lamme Goedzak (1868).
bre atualidade do dia, interpretadas como a documentação Edição do Ulenspiegel: Editions sociales intematlonales, Paris,
de um naturalista-idealista. "Sou um Dom Quixote ou um 1937.
C. Lemonnier: La vie belge. Paris, 1905.
santo?", perguntou o próprio Dekker. Foi Dom Quixote do L. Monteyne: Charles de Coster, de mensch en de kunstenaar.
Antwerpen, 1917.
romantismo e santo do radicalismo naturalista. Sua in- H. Liebrecht: La vie et le rêve de Charles de Coster. Bruxelles,
fluência moral, como germe subversivo de um idealismo 1927.
J. Hanse: Charles de Coster. Leeuwoen, 1928.
revolucionário, ainda não acabou na Holanda de hoje, meio G. Charlier: Charles de Coster. Bruxelles, 1942.
puritana, meio socialista. M. Van de Voorde: Charles de Costefs Ulenspiegel. 3.a ed. Kortrijk,
1948.
2:$56 OTTO MABIA CARPEAUx HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2357

d e C o n s c i e n c e : este, f r a n c ê s d e o r i g e m , e s c o l h e u a l í n g u a turalista, no sentido de Zola, ao passo que se trata de ex-


f l a m e n g a p a r a se t o r n a r p a s s a d i s t a r o m â n t i c o ; C o s t e r p a s - pressões de um naturalismo diferente, de um naturismo de-
sou-se para o lado francês, fugindo d o romantismo nacio- senfreado, seja de rebelião sexual, seja de política anar-
n a l , d o qual o s s e u s Contes brabançons e Legendes flaman- quista. Considerava-se como naturalista o norueguês Hans
des ainda dão testemunho. Coster tornou-se escritor fran- Jaeger ( C7 ), porque em toda literatura moderna não existe
cês para revoltar-se contra as convenções literárias, român- expressão mais franca do amor livre do que nos seus ro-
ticas, e as convicções político-religiosas, católicas, da sua mances, literariamente fracos, Fra Kristiania-bohême (Boé-
gente. Imitando com habilidade extraordinária a língua mia de Oslo) e Syk kjaerlighed. (Mocidade Doente). O
arcaica de Rabelais, adotou ao mesmo tempo algo do espí- próprio Jaeger acreditava ser socialista; militava no par-
rito rabelaisiano, da abundância erótica e culinária da Fran- tido social-democrático norueguês. Só quando, depois do
ça pré-clássica, para evocar a Flandres "pré-católica": o escândalo, provocado pelos seus romances, já meio esque-
herói do Ulenspiegel, personificação lendária do espírito cido, confessou-se anarquista. De valor heurístico é, aliás,
popular belga, é no romance de Coster o herói das guer- a palavra "boémia" no título do primeiro romance: a pró-
ras contra a opressão espanhola, com marcada tendência pria ideia do amor livre tem a origem na boémia romântica,
anticlerical. É discutível se a reconstrução da época é tão assim como o propósito de reabilitar a prostituição, como
fiel como a da língua, que tampouco se passa de anacronis- protesto contra as convenções sexuais da burguesia. Talvez
mos. Ulenspiegel talvez traduzisse menos o espírito fla- uma das últimas expressões dessa ideia seja a Magdalena,
mengo do século X V I — o tempo já não era o de W a l t e r do tcheco Machar ( o s ), novela em versos, em estilo român-
Scott — do que o espírito belga permanente através de tico; Machar, poeta satírico à maneira de Heine, adotou a
todos os séculos, "le coeur de la mère Flandre", ainda vivo, distinção de Heine e Arnold entre espírito helénico e es-
e sempre vivo no ambiente arcaico e pitoresco das cidades pírito hebraico para justificar a sua atitude rebelde, êle, an-
belgas, cujos palácios municipais estão em pé como ou- ticlerical como Charles de Coster, socialista e nacionalista
trora e cujas ruas ainda ressoam do barulho das mesmas tcheco ao mesmo tempo; acabou como versificador patrió-
paixões políticas. "Ulenspiegel est notre Bible nationale", tico, poeta oficial da República Tcheco-Eslovaca.
dizia Lemonnier; e isso se refere igualmente à forma do O afrouxamento das convenções sexuais é um dos obje-
livro, série de quadros nem sempre coerentes, mas sempre tivos mais importantes dos radicais, para minar a burgue-
vivos, pitorescos, emocionantes, como quadros de Brueghel sia; e tem as raízes no espírito antiburguês da boémia ro-
ou Metsys — "tous les belges sont des peintres-nés". Char- mântica, da Lucinde, de Friedrich Schlegel até às Fleurs
les de Coster foi pintor nato e anarquista nato, e assim,
com independência admirável do espírito, morreu na mi-
séria. 67) Hans Jaeger, 1854 — 1910.
Fra Kristiania-bohême (1885); Syk kjaerlighed (1893); Anarkis-
mens Bibel (1907).
Essa aliança entre romantismo e radicalismo, erotis- J. ipsen: Hans Jaeger. Oslo, 1926.
mo e anarquismo, continuou em plena época naturalista; 68) Jan Svatopluk Machar, 1864-1942.
porque se trata antes de um estado de espírito do que de Tristium Vindobona (1893); Magdalena (1894); Con/iteor (1900/
1902); Sob os raios, do sol grego (1907); O veneno de Judeia
uma ideologia ou de um estilo; e nada é mais fácil do que (1907); Prisão (1918).
confundir os produtos desses espíritos com a literatura na- J. Martinek: Jan Svatopluk Machar. Praha, 1912.

*
H I S T Ó R I A DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 2359
2358 OTTO MARIA CARPEAUX

du Mal, d e B a u d e l a i r e — a d i f e r e n ç a d o s v a l o r e s l i t e r á r i o s l i b e r d a d e e r ó t i c a d o s f i l h o s c o n t r a as c o n v e n ç õ e s r i g o r o -
não importa na análise da evolução histórica. A porta d e sas d a f a m í l i a francesa, d a s q u a i s a " p r o s t i t u t a v i t u o s a " s e
entrada das ideias boémias para a literatura burguesa é u m t o r n a a vítima. H á nisso muito de George Sand e da "jeu-
género de valor literário r e d u z i d o : o teatro burguês de nesse d o r é e " ; e mais da boémia de Musset do que da de
P a r i s do S e g u n d o I m p é r i o . A i n d a s e r á p r e c i s o a p r e c i a r M u r g e r . A s s i m c o m o S c r i b e r e d u z i r a os a c o n t e c i m e n t o s
d e v i d a m e n t e o p a p e l h i s t ó r i c o d a peça, c u j a r e p r e s e n t a ç ã o históricos, "explicando-os" como complicações de natureza
só p a r e c e o p o r t u n i d a d e p a r a a r r a n j a r u m p a p e l b r i l h a n t e pessoal, assim D u m a s Filho, discípulo de Scribe com res- (
a atrizes v a i d o s a s : L a dame aux camélias, de Dumas F i l h o . p e i t o à t é c n i c a d r a m a t ú r g i c a , r e d u z i u os p r o b l e m a s sociais
A árvore genealógica da "pecatriz p e n i t e n t e " e justificada a conflitos entre gerações, conflitos de natureza erótica
pelos sofrimentos é m u i t o a n t i g a : o historiador dessa ideia ou financeira, enfim conflitos menos da sociedade do que I
l e m b r a r - s e - á , a l é m d a s M a d a l e n a s do t e a t r o r e l i g i o s o espa- da "sociedade" parisiense à qual pertenceu e que o público
nhol, da Francesca da Rimini de D a n t e ; e parece m e s m o p a r i s i e n s e e do m u n d o i n t e i r o a d m i r a v a com e s n o b i s m o in-
que outra Francesca da Rimini representa o "missing-link" g é n u o . A p a l a v r a " s o c i a l " , em D u m a s F i l h o , t e m o s e n t i d o
entre L uc inde e M a r g u e r i t e G a u t h i e r : a heroína da t r a g é - desse t e r m o nas "notícias sociais" dos jornais. S e m p r e o
d i a Francesca da Rimini, do r o m â n t i c o i t a l i a n o S i l v i o P e l - d r a m a t u r g o se e s f o r ç o u p a r a d a r c e r t o r e l e v o " s o c i o l ó g i c o "
l i c o ( 6fl ) ; d e m o d o q u e o p a t r i o t a s o f r e d o r d a s Mie prigioni à s s u a s p e ç a s : s o b r e t u d o os p r e f á c i o s f a l a m em t o m g r a v e
e cristão resignado da prisão de Spielberg seria o p r e c u r s o r de perigos que ameaçam a família francesa, das forças que
de D u m a s F i l h o e até de Ibsen, criador das N o r a e R e b e k k a e s t ã o c o r r o m p e n d o a m o r a l d a n a ç ã o — m a s as p r ó p r i a s
W e s t . A evolução realizou-se no palco de Paris, d e n t r o d o peças, c o m p o s t a s d e causeries espirituosas e efeitos céni-
género "drama burguês", que deveu a Scribe a técnica ha- cos r e u m b a n t e s , d e s m e n t e m a s e r i e d a d e d a q u e l a s p r e o c u p a -
b i l í s s i m a e a A u g i e r ( 7 0 ) a thèse b u r g u e s a e a n t i - r o m â n t i c a . ções m o r a l i s t a s e s o c i o l ó g i c a s , m e r o s r e c u r s o s p a r a o c u l t a r
La dame aux camélias d e D u m a s F i l h o ( 7 1 ) , f i l h o d o f a m o s o a frivolidade vazia dos "problemas" e das "soluções". Da-
romântico, é a antítese das ideias de A u g i e r : este a d v e r t i u mas F i l h o é u m continuador de S c r i b e ; e o t e a t r o parisien-
os p a i s c o n t r a a s p e r i g o s a s a v e n t u r a s e r ó t i c a s d o s f i l h o s , se s e g u i u - l h e os c a m i n h o s , a c a b a n d o n a h a b i l i d a d e frívola
corrompendo a família francesa; Dumas Filho defendeu a e divertida de Sardou ( 7 2 ) . Na evolução das ideias literá-
rias n a F r a n ç a , esse t e a t r o d e i x o u d e s e r u m f a t o r d e c i s i v o ,
de m o d o q u e d e s d e e n t ã o a r e n o v a ç ã o do t e a t r o f r a n c ê s
dependia do r o m p i m e n t o completo com a tradição scribia-
69) Cf. "Romantismos de oposição", nota 74-A. n a ; r o m p i m e n t o q u e foi r e a l i z a d o p o r B e c q u e e p e l o " T r é â -
70) Cf. "O advento da burguesia", nota 8. tre L i b r e " de Antoine. Mas, fora da França, a técnica dra-
71) Alexandre Dumas fils, 1824-1895.
La dame aux camélias (1852); Demi-monâe (1855); La question
ã'argent (1857); Le fils naiurel (1858); L'ami des femmes (1864);
La jemme de Claude (1873); Francillon (1887).
P . Lamy: Le théâtre d'Alexandre Dumas fils. Paris, 1929. 72) Victorien Sardou, 1831 — 1908.
O. Gheorghiu: Le théâtre de Dumas fils et la société contempo- Nos intimes (1861); La famille Benoiton (1865); Nos bons villa-
raine. Paris, 1931. geois (1866); Divorçons (1880); La Tosca (1887); Thermidor
T . Linge: La conception de 1'amour dans le drame de Dumas (1891); Madame Sans,-Gêne (1893) etc.
fils et d'Ibsen. Paris, 1935.
D. S. Braun: The Cortisane in the French Theatre form Hugo H. Rebell: Victorien Sardou. Paris, 1903.
to Becque. Baltimore, 1947. J. A. Hart: Sardou anã the Sardou Plays. London, 1913.
2360 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2361

matúrgica de Scribe, Augier e Dumas Filho podia servir das criadas; e em Manette Salomon, o dos artistas. O re-
para acabar com as inatualidades românticas e chamar a sultado foi desolador: aquela corrução moral que os bur-
atenção do público inadvertido para os problemas da reali- gueses denunciaram na boémia, é comum a todas as classes,
dade social, apresentados no palco; eis a intervenção da de modo que a "questão da boémia" se transforma em ques-
"técnica francesa" na carreira dramatúrgica de Bjoernson tão social, no sentido mais amplo da palavra. Também no
e Ibsen ( 7 3 ). sentido sociológico: porque, sendo aquela corrução inde-
O problema da boémia não podia, por enquanto, ser de- pendente dos níveis da educação e de credos de qualquer
batido com seriedade em teatros que dependiam do público espécie, tampouco depende dos indivíduos, que são meros
burguês. A discussão continuou no romance, ao qual Flau- bonecos das convenções e instintos; a corrução é fruto de
bert tinha conquistado a liberdade de apresentar a corrução todos os ambientes sociais, diferindo só pelos pretextos mo-
documentada; sobretudo naquela parte da produção nove- rais e pelas expressões linguísticas. Daí resultaram as obri-
lística que permaneceu à margem do grande mercado pa- gações do romancista: basear suas obras numa experiência
risiense de livros; romances escritos por artistas profis- fidedigna, documentada; e apresentar essa documentação
sionais para os letrados profissionais. É assim a "novelist's sociológica na linguagem do ambiente descrito e com os
novel" dos irmãos Edmond e Jules de Goncourt ( 7 4 ), des- pormenores característicos do respectivo meio social. T u d o
cobrindo ambientes e corruções desconhecidas e descobrin- isso já estava desenvolvido ou em germe, em Flaubert;
do a mesma corrução no ambiente burguês bem conhecido. mas este só aplicara o processo a questões de ordem pes-
Desta maneira revelou-se, em Charles Demailly, o ambiente soal. "Madame Bovary, c'est moi", dizia Flaubert; mas ma-
dos "hommes de lettres" profissionais; em Soeur Philomè- dame Bovary, como tipo, e o "bovarysmo", como doença so-
ne, o mundo dos hospitais; em Renée Mauperín, a vida das cial, são criações da crítica literária que tinha passado pelas
moças de alta sociedade; em Germinie Lacerteux, o mundo lições de Taine e Zola. Os irmãos Goncourt parecem in-
termediários nessa evolução: depois do realista Flaubert,
73) J. Marsan: Théâtre d'hier et théãtre d'aujourd'hui. Paris, 1926. são eles os primeiros naturalistas.
74) Edmond de Goncourt, 1822 — 1896, e Jules de Goncourt, 1830-1870. Essa opinião sobre os irmãos Goncourt, como meros
Charles Demailly (1860); Soeur Philomène (1861); Renée Mau-
perín (1864); Germinie Lacerteux (1865); Manette Salomon precursores, está hoje tão firmemente enraizada que nin-
(1867); Madame Gervaisais (1869); La filie Elisa (de Edmond de guém, quase, já lhes lê os romances. É uma das mais gra-
Goncourt) (1877); Les frères Zemganno (de Edmond de Gon-
court) (1879); — Uart au XVTIIe siècle (1859); La jemme au ves injustiças literárias: não são, decerto, obras-primas
XVJIe siècle (1862; Journal, 22 vols., Paris, 1897/1859.
Edição da Academia Goncourt, 27 vols., Paris, 1926/1935. permanentes, mas são romances de grande valor e do mais
A. Delzant: Les Goncourt. Paris, 1889. alto interesse. A crítica moderna já tem dito isso. Mas o
G. Loesch: Die impressionistische Syntax der Goncourts. Nurem- sucesso do trabalho de reabilitação é duvidoso. Continuam
berg, 1919.
P. Sabatier: Uesthétique des Goncourt. Paris, 1920. mais lidos os brilhantes estudos dos irmãos Goncuort sobre
E. Seillière: Les Goncourt moralistes. Paris, 1927. a arte e a sociedade do Rococó, mas a maior glória literá-
M. Immergluck: La guestion sociale dans 1'oeuvre des Goncourt.
Paris, 1931. ria dos Goncourts é seu o Journal, vasta crónica social,
P. Sabattier: Germinei Lacerteux des Goncourt. Paris. 1848. literária e artística do Segundo Império, um dos grandes
R. Ricatte: La création romanesque chez les Goncourt. Paris,
1953. documentos da história da civilização francesa. A leitura
A. Billy: Les frères Goncourt. Lè vie littéraire à Paris pendant do Journal não revela, nos autores, interesses de sociologia
la seconde moité áu XIXe, siècle, Paris, 1954.
2362 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2363

científica; antes são contemporâneos do Parnasse, estetas Taine ( 7B ) já é menos lido hoje em dia; daí a necessida-
requintados, preocupadíssimos com sutilezas estilísticas e de de repetir a afirmação de que é um escritor muito gran-
sintáticas. O moralismo dos Goncourts não é o moralismo de. A crítica censurou àsperamnte o seu estilo retórico,
político de Taine, nem o moralismo social de Zola, nem se- cheio de metáforas intencionalmente realizadas; e quase se
quer o moralismo romântico e anti-romântico de Flaubert; esqueceu o poder de evocação nas caracterizações da pintu-
antes o moralismo sentimental do século X V I I I , em que os ra veneziana e holandesa, na explicação de Racine pelo am-
Goncourts estavam em casa. Continuam a tradição novelís- biente do "grand siècle", na comparação das Ifigênias de
tica do Abbé Prévost, de Choderlos Laclos, de Restif de la Racine e Goethe. Talvez ainda maior do que essa "beleza
Bretonne. Daí a sua "estética do feio", apresentando os de trechos seletos" seja, em Taine, a força construtiva: as
vícios e as perversões, com todas as nuanças, num estilo obras historiagráficas de Renan são coleções de quadros
complicado, altamente impressionista. O moralismo dos encantadores, acompanhados de reflexões espirituosas; Tai-
Goncourts é o de estetas que sentem a sua existência amea- ne escreveu a epopeia da literatura inglesa, a epopeia da
çada pela decadência da sociedade; assim como os seus monarquia e da revolução francesas, e foi justamente esse
precursores do tempo do Rococó, esperam e temem uma ca- poder de composição que prejudicou o pensador: porque
tástrofe moral. O seu "rococoísmo" é o equivalente do "re- Taine exigiu que as suas obras fossem aceitas como resul-
nascentismo" alemão nas suas últimas fases; ao mundo pa- tados rigorosamente científicos; e isso já não é possível ad-
risiense de antes de 1870 apresentam um modelo de civili- mitir. A Histoire de la Httérature anglaise é importante
zação autêntica, complemento do seu naturalismo nove- para o conhecimento de T a i n e ; como obra científica, res-
lístico. sente-se de lacunas inexplicáveis de informação, além da
deformação violenta de certos fatos e personagens para jus-
O romance dos Goncourts não teria, talvez, dado como
tificar um esquema preconcebido. Acontece o mesmo com a
último resultado o naturalismo de Zola, se não sobreviesse
a sua preocupação; em 1870, a sociedade decadente do Se-
gundo Império se desmoronou. O pessimismo que já prece-
75) Hippolyte Taine, 1828-1893.
dera à "année terrible" revelou-se como previsão "super- Essai sur les jables de La Fontaine (1853, 1861); Voyage aux eaux
estrutural". Uma geração morreu em 1870 — Sainte-Beuve, âes Pyrénées (1855, 185fl); Essai sur Tite-Live (1850); Essais de
critique et d'nistoire (1858); Histoire de la Httérature anglaise
Mérimée, Jules de Goncourt. Os sobreviventes desespera- (1864/1869); Nouveaux essais de critique et d'histoire (1865);
Voyage en Italie (1866); Vie et opinions de Tomas Graindorge
ram — Renan aconselhou não perturbar a agonia da Fran- (1868); De VIntelligence (1870); Les origines de la France con-
ça. Três soluções eram possíveis e foram encaradas: a temporaine I: UAncien Regime (1875J; Les origines etc. II: La
Révolution (1877/1884); Philosophie de 1'Art (18B2); Les origines
reação política, preconizada por Renan na Reforme intel- etc. III: Le regime moderne (1890/1894).
lectuelle et morale; o abandono de todas as ilusões, voltan- V. Giraud: Essai sur Taine, son oeuvre et s»n influence. Paris,
1901.
do-se para os fatos positivos, solução de Comte; e o radi- J. Zeitler: Die Kunsthilosophie von Hippolyte Taine. Leipzig,
1901.
calismo revolucionário — na política o da Commune, na
P . Lacombe: Taine historien et sociologue. Paris, 1909.
literatura o de Rimbaud. Todas as três correntes encon- V. Giraud: Hippolyte Taine. Paris, 1928.
A. Chevrillon: Taine. Formation de sa pensée. Paris, 1932.
tram-se em Taine, que é a figura central da literatura fran- M. Leroy: Taine. -Paris, 1933.
cesa da segunda metade do século XIX. K. de Schaepdryver: Hippolyte Taine, essai sur Vunitè de sa pen-
sée. Paris, 1938.
2364 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2365

história da Revolução, cuja documentação parece abundan- deu um passo mais adiante: substituiu o determinismo eco-
te, mas foi cuidadosamente escolhida para chegar a deter- nómico, que era a fé não confessada do seu tempo, pelo de-
minadas conclusões políticas; depois dos estudos de Au- terminismo mesológico, que será, como naturalismo, a fé
lard e Mathiez, a obra ainda pode ser lida, mas já não con- dos últimos decénios do século X I X .
sultada. Unamuno não estava longe da verdade quando cha- A primeira conclusão refere-se à psicologia, agora su-
mou a Taine "falsificador genial". bordinada ao estudo do ambiente social e das corersponden-
Apenas, Taine não pode ser julgado como pesquisador, tes reações no tererno psicofísico. O modelo da análise des-
apesar de uma vida de pesquisas. Essa grande alma não era sas reaçoes e relações já estava em Le Rouge et Le Noir; e
seca; não conseguiu ser meticulosa, exata. O reino de Tai- a descoberta de Stendhal é o outro grande feito crítico de
ne fica em alguma parte entre a ciência e a arte, lá onde Taine. Essa volta à psicologia materialista do século X V I I I
Montesquieu acredita ser historiador e Zola acredita ser foi entendida, no século X I X , como altamente revolucioná-
sociólogo. O positivismo de Taine está tão cheio de "arriè- ria, destrutiva — assim a censurou Bourget no Disciple;
re-pensées" artísticas como está cheio de "arrière-pensées" e esse equívoco é da maior importância para compreender
místicas o positivismo de Comte que dera o nome ao progra- a interpretação usual de Taine por volta de 1880: como
ma de abandonar as ilusões metafísicas par estudar só os um dos grandes ideólogos do radicalismo. Mas não era
fatos palpáveis. Taine tornou-se positivista assim como tanto assim. Taine, isso é verdade, continuou uma revolu-
Flaubert se tornou anti-romântico; e as duas atitudes reve- ção; mas, sendo profundamente hostil ao "romantismo so-
lam mais do que uma analogia. Les Origines de la France cial" e a todo romantismo, continuou uma outra revolução,
contemporaine é um romance histórico, tão bem ou tão mal anterior, a pré-romântica. Taine, como crítico, é o con-
documentado como Salammbô, mas com o realismo pes- tinuador de Herder, ao qual chegou através de Madame de
simista de uma Éducation sentimentale dos franceses de- Stael, e ao qual compreendeu à maneira do "mesologista"
pois da derrota. Assim como Flaubert, Taine é pessimista, Montesquieu. Assim como Herder, Taine não fala de psi-
porque ambos não acreditam muito no resultado definitivo cologia individual — já o Shakespeare de Herder é "o tipo
da educação; Flaubert acabou no pan-imbecilismo de Bou- da dramaturgia germânica" — e sim de psicologia coletiva.
vaid et Pécuchet; e T a i n e confessou a sua convicção mais Taine é o contemporâneo de Burckhardt e Gobineau. Em
íntima: "A proprement parler, Thorrime est fou". Dois todas as suas caracterizações de almas coletivas, de nações
pessimistas: Flaubert, porque acredita na incurabilidade e épocas, através das expressões artísticas, revela-se Taine
da natureza humana. Taine, porque acredita na incapacida- como o represntante francês do "renascentismo", para cuja
de do homem de vencer o ambiente, que é o Destino. O bibliografia contribuiu duas obras capitais, a Voyage en
romancista preferido de Taine não é Flaubert, e sim Bal- Italie e a Philosophie de 1'Art. Mas não são menos "renas-
zac — tê-lo compreendido, contra os preconceitos de Sain- centistas" as suas evocações da civilização grega, da arte
te-Beuve, é um dos grandes méritos do crítico Taine. Bal- holandesa, até — apesar da antipatia íntima — a do "Grand
zac é, para Taine, mais do que o fundador do romance rea- Siècle": são modelos de civilizações completas, apresen-
lista; é o fundador da sociologia. Balzac, como primeiro, tados a uma época de civilização fragmentária, de decadên-
compreendeu as relações sociais e descobriu o sangue que cia. Aliás, já Stendhal considerara como decadente a Fran-
circula nos tecidos da sociedade: o dinheiro. E Taine ça, quando fugiu para a Itália, país da arte viva e das pai-
2366 OTTO M A R I A CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2367

xões mais fortes. E outro grande renascentista ocidental, ciam mais evidentes: aos escritores, a interpretação posi-
Matthew Arnold, não foi menos pessimista quanto à situa- tivista que levou ao naturalismo de Zola; aos pensadores
ção da civilização inglesa. Arnold, como anglo-saxão, acre- filosóficos e políticos, a interpretação materialista que en-
ditava no poder da educação. Taine, embora antijacobino, quadrou Taine no movimento do novo radicalismo europeu.
continuou a acreditar em revoluções. E m Stendhal, mais O jovem Zola ( 78 ) viu as ideias de Taine através da
uma vez, encontrou a fórmula: a "energia". Taine chegou psicofísica pessimista de Claude Bernard (™), que lhe for-
à pretensão de ressuscitar as energias nacionais, anestesia- neceu um fio de orientação psicológica no caos das relações
das pela desilusão anti-romântica. Nesta sua última fase, sociais, perturbadas pela corrução do Segundo Império e
Taine já era anti-revolucionário, quer dizer, hostil à revolu- pela derrota. Quer dizer, a influência de Bernard sobre
ção jacobina, mas favorável à contra-revolução. Intervirá Zola, por maior que fosse, não foi decisiva. A diferença
a influência do "Burckhardt francês", Fustel de Coulan- fundamental entre os Goncourts e Zola provém da influên-
ges ( 7 0 ), revelando a influência da religião sobre a "Cida- cia de Taine. Sob essa influência, o jovem romancista mo-
de" antiga. E o naturalismo mesológico de Taine, que pare- dificou os seus projetos de um grande romance flaubertiano
cera tão subversivo, prestar-se-á para fundamento do na- que devia passar-se no sul da França; La Conquête de Plas-
cionalismo pseudocatólico, racial e geográfico, de Barres. sans, revelando analogias bastante grandes com Madame
Numa interpretação da literatura moderna ( 7 7 ), Taine Bovary, é um fragmento conservado do projeto original
é apresentado como o continuador legitimo de Lessing, Her- ( 79 " A ). Desde então, Zola abandonou a psicopatologia pseu-
der e Madame de Stael, como o spiritus rector dessa litera- do-romântica de Thérèse Raquin, a mais "claube-bernardia-
tura moderna; teria feito para o futuro, o que Sainte-Beuve na" das suas obras. Afastou-se até de Flaubert, voltando-
fizera com respeito ao passado. Aapreciação está certo se para Balzac, que Taine lhe revelara, retomando o fio da
enquanto se dá conta da natureza das ideias de T a i n e : não Comédie Humaine, projetando a "histoire naturelle et so-
são criações de ficção, nem conceitos científicos, mas sím- ciale d'une famille sous le second Empire", antecipação no-
bolos de um reino intermediário entre arte e ciência, o da velística das Origines de la France Contemporaine. A in-
crítica literária. São "ideias literárias", capazes de inter- tenção não era revolucionária; a revelação duma decadên-
pretações diferentes, todas "justas" e todas "erradas", por- cia nunca é revolucionária. A t é em 1877, quando das críti-
que naquele reino não vigora o axioma do terceiro excluí- cas hostis da imprensa republicana contra UAssommoir,
do. Pelos princípios do século XX, Taine aparecia princi- Zola não quis ser chamado "écrivain démocratique et quel-
palmente como ideólogo da contra-revolução nacionalista. que peu socialiste", negando qualquer intuito político da
Aos seus contemporâneos, duas outras interpretações pare- sua obra puramente objetiva. O Zola de 1871 e 1877 ainda
não é o da affaire Dreyfu e dos Quatre Êvangiles. Mas

76) Numa-Denis Fustel de Coulanges, 1830-1889. 78) Cf. nota 107.


La cite antique (1864); Histoire des institutions politiques de l'an- 79) Claude Bernard, 1813 — 1878.
cienne France. (1875/1892.) Jntroduction à 1'étude de la médecine experimentale (1865).
J. Tourneru-Aumont: Fustel de Coulanges. Paris, 1931. J. L. Faure: Claude Bernard. Paris, 1925.
77) P. Colum: From These Roots. The Ideas That Have Made Mo- 79A) U. Tolomei: Tutto Zola. (In: Letteratura, II/4, 1939).
dem Literature. 2.B ed. New York, 1944.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2369
2368 OTTO MARIA CARPEAUX

cujo evolucionismo discutível, estabelecendo analogias en-


intuito é uma coisa e interpretação é outra. Na França, a
tre a "storia letteraria" e a "storia civile", não o impediu
obra de Zola repercutiu principalmente pela forte impres-
de tornar-se o intérprete extraordinário de Dante, Maquia-
são das cenas eróticas sobre as massas dos leitores; Zola
vel, Manzoni e Leopardi, o intérprete mais genial de obras
parecia um revolucionário escandaloso; e os protestos dos
literárias no século X I X ; o seu radicalismo dera-lhe a li-
republicanos de 1877 só pretenderam defender 'Thonneur
berdade de uma crítica conforme princípios puramente es-
des classes ouvrières" contra o caluniador dos costumes po-
téticos sem perder de vista as relações da arte com a vida.
pulares. E fora da França, em ambientes literários mais
Assim escreveu a Storia delia letteratura italiana como uma
atrasados, Zola foi fatalmente interpretado como radical,
espécie de "Origines de 1'Italie contemporaine". A doutri-
assim como Taine.
na estética, hegeliana, de De Sanctis, atacada por Carducci
Um dos fatos característicos da época de 1870 é certo
enfraquecimento da grande burguesia nos países ocidentais, e os positivistas, foi logo esquecida, para ressuscitar só
ou antes a transição para uma fase mais democrática da evo- muito mais tarde, graças aos esforços de Croce; mas as
lução capitalista. É a época na qual a figura do socialis- atividades de De Santcis na vida universitária e à frente do
ta elegante Lassalle empolga o mundo, o anglicano ortodoxo Ministério da Educação da Itália contribuíram para trans-
Gladstone se converte à democracia, e Gambetta aparece formar o anticlericalismo oficializado do novo reino na-
como última encarnação do demagogo jacobino. Constitui-se quele clima de liberdade espiritual que fez da Itália de
uma espécie de Intelligentzia europeia. "Tudo o que agora 1900 o paraíso da Intelligentzia europeia. Esse novo radi-
tem valor na Europa, milita sob a bandeira da liberdade e do calismo celebrou triunfos notáveis na Inglaterra vitoriana.
progresso", declarou Georg Brandes aos seus ouvintes, em Enquanto Leslie Stephen se mantinha na atitude reserva-
Copenhague; e, em breve, esse docente-livre dinamarquês da das Hours in a Library, desceu Huxley ( 81 ) para a are-
será um porta-voz da Europa radical. A mudança da atmos- na, transformando o darwinismo em grande máquina de
fera é realmente radical. H á pouco, o representante daquela guerra contra os teólogos, revelando-se como o "orador"
"liberdade e progresso", na Itália, fora o romântico Maz~ mais notável — com exceção de Brandes — do novo radi-
zini. Agora é o pós-hegeliano Francesco De Sanctis ( 8 0 ), calismo. Os "positivistas" e agnósticos ingleses não conhe-
ciam os embaraços filosóficos da formação hegeliana de
De Sanctis. Buckle ( 8 2 ), o "Taine inglês", historiador me-
80) Francesco de Sanctis, 1817 — 1883. Bológico da civilização inglesa ignora os "preconceitos me-
Saggi critici (1866); Saggio sul Petrarca (1869); Storia delia
letteratura italiana (1870/1871); Nuovi saggi critici (1872); Stu-
ãio sul Leopardi (publ. 1885); La letteratura italiana dei secolo
XIX (publ. 1897). ei) Thomas Henry Huxley, 1825 — 1895.
Edição da Storia por B. Croce, 2 vols., Bari, 1913; Edição dos Man's Place in Nature (1863); Lay Sermons (1870); Collected
Saggi por L. Russo, 3 vols., Bari, 1952/1954.
B. Croce: Gli scritti di Francesco De Sanctis e la loro varia for- Essays (1894).
tuna. Bari, 1917. H. Peterson: Huxley, Prophet of Science. New York, 1932.
L. Russo: Francesco De Sanctis e la cultura napoletana. Vene- A. Huxley: "T. H. Huxley as a Literary Man". (In: The Huxley
Memorial Lectures. New York, 1932.)
zia, 1928.
E. Cione: Francesco De Sanctis, il Romanticismo e il Risorgimento. •2) Henry Thomas Buckle, 1821 — 1862.
Roma, 1932. History of Civilísation in England (1857/1961).
E. Cione: VEstética di Francesco De Sanctis. Firenze, 1935. J. M. Robertson: Buckle and His Critics. London, 1895.
F. Fraenkel: Buckle und seine Geschichtsphilosophie. Bern, 1906.
L. A. Breglio: Life and Criticism of Francesco De Sanctis. New
York, 1940.
2370 OTTO M A R I A C A R P E A U X H I S T Ó R I A DA L I T E R A T U R A O C I D E N T A L 2371

tafísicos", escrevendo história sem e contra a "filosofia" d e u , e m favor d o r a d i c a l i s m o , as p r o v í n c i a s c u l t u r a i s f o r a


desprezada. Lecky ( 8 3 ), pesquisador das superstições anti- das suas fronteiras políticas. P e r d e u a influência n a H o -
cientificas e dos conflitos entre a teologia e o progresso, é landa, país de Multatuli, onde agora Allan Pierson, p a s t o r
— com exceção dos seus trabalhos sobre história irlandesa apostasíado, podia defender as ideias de Renan, e B u s k e n
— menos historiados do que o grande jornalista do progres- H u e t (85) podia realizar u m a verdadeira revolução intelec-
sismo racionalista. Enfim, Spencer ( 8 4 ), sistematizando os tual : distinguir entre valores morais e valores estéticos n a
resultados da ciência e antropologia conforme um esquema literatura, distinguir entre valor permanente e valor histó-
evolucionista, deu ao positivismo de Comte e Mill uma r i c o ; condenar, do primeiro p o n t o d e vista, os romances d e
feição radical; o darwinismo, que tinha servido de apoio W o l f f e D e k e n , e, d o s e g u n d o , m e t a d e d o s " c l á s s i c o s " h o -
ao capitalismo implacável dos "hard times", vira em Spen- landeses, inclusive H o o f t ; rejeitar a literatura retórica e
cer base duma doutrina de liberalismo principalmente in- p a t r i ó t i c a d o s T o U e n s e Vaci L e n n e p ; s a l i e n t a r , c o m o b o m
dividualista, que chega, em The Man versus the State, às "renascentista" e poeta parnasiano n a s suas horas livres, a
fronteiras do anarquismo; é o pólo oposto à doutrina polí- harmonia da civilização holandesa do século X V I I , e p r o -
tica de Hegel, revelando porque esse neo-radicalismo era curar uma nova idade áurea das letras por meio do radica-
incapaz de aliar~se ao marxismo. Todos esses ingleses são l i s m o r e n o v a d o r . E , c o m e f e i t o , o " m o v i m e n t o d e 1880",
escritores notáveis, sobretudo Huxley. E m todos eles vive a maior revolução na história da literatura holandesa, já ba-
algo da eloquência clara e elegante, sem ênfase, dos ensaís- teu à s p o r t a s .
tas ingleses do século X V I I I . Por meio de inúmeras tra- Sobretudo, a civilização alemã p e r d e u a sua influên-
duções, essa prosa anti-romântica conquistou a Europa, de- cia n o s p a í s e s n ó r d i c o s . O n o r u e g u ê s S t e f f e n e o s u e c o
cidindo em toda a parte a vitória do radicalismo, até na Sturzenbecker foram meio-alemães. Os dinamarqueses B a g -
Rússia de Tchernichevski; menos, porém, na Alemanha, gesen e Oehlenschlaeger escreveram p a r t e das suas obras
então fechada no seu prussianismo suficiente e provincia- em a l e m ã o , ou t r a d u z i r a m a s s u a s p r ó p r i a s o b r a s p a r a a
nismo melancólico, senão sonhando de Renascença. Com o língua falada em Schleswig, província alemã da D i n a m a r -
desaparecimento da repercussão de Hegel, a Alemanha per- ca. O s p r o b l e m a s d i s c u t i d o s p e l o s H e i b e r g , G o l d s c h m i d t ,
Kierkegaard, Paludan-Mueller, eram problemas da civili-
zação alemã. A t é n a Suécia, mais afastada, o pós-romantis-
83) William Edward Hartpole Lecky, 1838 — 1903. mo alemão continuou a dominar. " A l e m ã o " é o fino-sueco
History o) the Rise and Influence of the Spirit of Rtionalism
in Europe (1865); History of European Morais from Augustus to
Charlemagne (1869); A History of Englanã in the Eigtheenth
Century (1878/1890). 85) Conrad Busken Huet, 1826-1886.
Mrs. Lecky: Memoir of W. E. H. Lecky. London, 1909. Brieven over de Bijbel (1857); Litterairische Fantasièn (1874/
84) Herbert Spencer, 1820 — 1903. 1880); Potgieter (1877); George Sand (1877); Het land van Ru-
First Principies (1862); Principies of Biology (1864/1867); Princi- bens (1879); Het land van Rembrandt (1884).
pies of Psychology (1870/1872); Principies of Sociology (1876/ J. B. Meerkerk: Conrad Busken Huet. Haarlem, 1911.
G. Colmjon: Conrad Busken Huet, een groot Nederlander. Hag,
1896); Principies of Ethics (1879/1892); The Man versus the 1944.
State (1884.)
H. Elliot: Herbert Spencer. London, 1917. C. G. N. De Nooys: Conrad Busken Huet. Hag, 1949.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2373
2372 0TTO MARIA CARPEAUX

de Bjoernson ( 8 9 ), "Synnoeve Solbakken", "Ame", "En


Runeberg ( 8 6 ), o poeta mais popular de língua sueca, can-
tor da paisagem finlandesa e da vida dos suecos neste país glad gut" ("Um Bom Rapaz"). São contos à maneira de
então sob dominação russa. Faenrik Staals Saegner (As Auerbach, mas mais ingénuos, com toda a frescura do am-
Histórias do Alferes Staal), epopeia da guerra desesperada biente rústico norueguês, terra incógnita até então. É algo
dos fino-suecos contra os russos em 1809, tornou-se o poe- como um novo "escandinavismo", diferente do escandina-
ma nacional da Suécia. São baladas à maneira de Uhland; vismo dos pré-românticos pelo realismo da atitude; desco-
e será difícil dizer se elevam o sentimento patriótico ou bertas de novas regiões geográficas para a literatura ligam-
corrompem o gosto poético da mocidade escolar. Contri- se sempre a uma atitude pré-romântica; e a arte de Bjoerson
buem para os mesmos fins os contos populares, popularís- e dos seus contemporâneos terá realmente, na Europa, os
simos, de outro, fino-sueco, Topelius ( 8 7 ), contos históricos, feitos de um novo pré-romantismo. Mas Bjoernson já é
contos humorísticos e contos de fadas, produtos de um pós- um radical fervoroso entusiasmado pelo progresso.
romantismo despretensioso em que se formará a arte de
O idílio alemão-escandinavo sofreu o primeiro golpe
Selma Lagerloef. Do espírito do pós-romantismo alemão
em 1848, quando os liberais alemães tentaram demonstrar a
ainda nasceu a famosa novela Phantasterne, do dinamarquês
sua vocação nacionalista pelo ataque à província dinamar-
Hans Egede Schack ( 8 8 ), que se enquadra na literatura
quesa de Schleswig. Em 1864, a Prússia conseguiu con-
"provinciana" alemã, entre Raabe e Storm. Enfim, ao "ci-
quistar a província, arrancando deste modo à Dinamarca
clo alemão" ainda pertencem os primeiros contos rústicos
metade do seu território. Desde então, a Dinamarca virou
francamente germanófoba, acompanhada neste sentimento
pelos intelectuais noruegeuses e suecos; e a influência li-
86) Johan Ludwíg Runeberg, 1804 — 1877.
Dikter (1830/1843); Algskyttarne (1832); Julkvaellen (1841); terária e filosófica dos alemães, ainda defendida por certo
Faenrik Staals Saegner (1848/1860); Kungarne pá Salamis tempo pelos círculos conservadores, cedeu o lugar ao libe-
(1863). ralismo e radicalismo de origens inglesa e francesa. O
Edição por C. R. Nyblom, 2.B ed., 6 vols., Stockholm, 1907.
I. A. Heikel: Johan Ludwig Runeberg. 2 vols. Stockholm, 1926. porta-voz dessa mudança era o crítico Brandes. Em cir-
W. Soederhjelm: Johan Ludwíg Runeberg. 2.ft ed. 2 vols. Sto- cunstâncias normais, a sua atuação ter-se-ia limitado ao
ckholm, 1929.
R. Hedvall: Runeberg och hans diktning. Stockholm, 1931. Norte da Europa. Aconteceu, porém, que pelo mesmo tem-
Y. Hirn: Runébergkneten. Helsinki, 1935. po as literaturas escandinavas, até então provincianas, con-
87) Zakris Topelius, 1818 — 1898. quistaram de repente inesperada importância europeia; e
Ljuriblommer (1845/1854); Faltskaems Beraettelser (1859/1867);
Laesníng foer barn (1865/1896). Brandes tornou-se o profeta do naturalismo, crítico de re-
V. Vasenius: Zakris Topelius. 6 vols. Stockholm, 1921/1930. percussão universal.
P. B. Nyberg: Zakris Topelius. Stockholm, 1949.
88) Hans Egede Schack, 1820-1859.
Phantasterne (1857).
Edição por C. Roos, 2.a ed. Kjoebenhavn, 1951. 80) Cf. "A conversão do naturalismo", nota 10.
V. Vedei: Litteratur og Kritik. vol. II. Kjoebenhavn, 1890.
2374 OTTO M A M A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2375

Georg Brandes ( 00 ) pertenceu à burguesia judia de derna, espécie de "Origines de 1'Europe littéraire contem-
Copenhague; sempre revelou os traços característicos da poraine". Esses Hovedstroemninger — Tendências Princi-
sua origem, grande talento de análise lógica, um esprit pais na Literatura do Século XIX — não podem ser consi-
quase francês, e o liberalismo de autodefesa de uma mino- deradas como obra de historiografia exata; são antes um
ria ameaçada. Como crítico psicológico suporta a compa- romance histórico bem documentado, com tendência de um
ração com Sainte-Beuve; a revelação do espírito mórbido libelo contra todo e qualquer romantismo, que teria sido,
no poeta aparentemente clássico Tegnér é magistral. Como conforme Brandes, mera mistura de sonhos mórbidos e rea-
liberal, adotou as doutrinas de Mill, Buckle, Renan, Taine, Ção política. Essa obra de Brandes, encontrando-se com
tomando atitude acentuadamente anticristã. O seu ideal li- uma forte corrente europeia, foi traduzida para todas as
terário era o "naturalismo" — conceito em que confundiu línguas e teve repercussão enorme, tanto maior que o crí-
Balzac, Flaubert e Zola, enfim tudo o que tratava de assun- tico, em apoio da sua tese "modernista", era capaz de citar
tos modernos e se prestava para interpretações no sentido alguns nomes de poetas escandinavos tão grandes que a
do radicalismo, de modo que Bjoernson, Ibsen, Tolstói e propaganda de Brandes não encontrou dificuldades em con-
Dostoievski também lhe pareciam "naturalistas". Deste quistar-lhes a celebridade universal: Jacobsen, Bjoernson,
ponto de vista fêz o processo ao "aladinismo" romântico e Hamsun, Strindberg, e, em primeira linha, Ibsen. À vitória
irresponsável dos dinamarqueses, ao seu ver o culpado da europeia de Ibsen, dramaturgo provinciano de um país en-
derrota de 1864; com a mesma severidade julgou Kierke- tão quase fora da Europa, o nome de Brandes está indis-
gaard, ao passo que deu nova interpretação luminosa e en- soluvelmente ligado.
tusiasmada de Holberg, herói da "ilustração" na Dinamarca.
Brandes conservou-se sempre fiel ao liberalismo radi-
Observando que os seus patrícios, formados no espírito es-
cal. A última das suas grandes obras biográficas é uma
treito de uma província alemã, pouco conheciam os gran-
reabilitação de Voltaire. Repara-se nas últimas obras do
des nomes estrangeiros que citou em seu apoio, Brandes
crítico certa amargura, como de um solitário decepcionado
resolveu esboçar um panorama da literatura europeia mo-
pelo rumo que as coisas do mundo tomaram; e está em
relação com isso a única oscilação ideológica na vida de
Brandes: por volta de 1890, pareceu por um momento aban-
90) Georg Brandes, 1842-1927. donar a bandeira do radicalismo, proclamando-se nietzs-
Aestfietiske Studier (1868); Kritiker og Portraiter (1870); JDen
franske Aesthetik (1870); Hovedstroemninger i ãet 19 Aarhunáre- chiano — Nietzsche também é, aliás, uma revelação de
des Litteratur (1877/1898); Esaias Tegnér (1876); Danske Digtere Brandes ao mundo. Mas Brandes,, na realidade, não tinha
(1877); Benjamin Disraeli (1878); Soeren Kierkegard (1879);
Ferdinand Lassalle (1881); Mennesker og Vaerker (1883); Litãwig abandonado os seus; os seus discípulos dinamarqueses fo-
Holberg (1884); Essays (1889); Det moderne Gjennembruds Maend ram que abandonaram a ele.
(1891); Udenlandske Egne (1893); Heine (1897); Henrik Ibsen
(1898); Voltaire (1916/19Í7) etc. etc. O "naturalismo" dinamarquês, entre 1870 e 1890, é um
A. Ipsen: Georg Brandes. 3 vols. Kjoebenhavn, 1902/1903.
P. Rubow: Georg Brandes og Tuins laerare. Kjoebenhavn, 1927. movimento singular; desenfreou paixões literárias, polí-
P. Rubow: Georg Brandes og den kritiske tradition. Kjoebenhavn, ticas e pessoais tão fortes que até hoje não foi possível es-
1931.
P. Rubow: Georg Brandes' briller. Kjoebenhavn, 1932. crever uma história imparcial daqueles acontecimentos,
2376 OTTO MARIA. CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2377

existindo só grandes panfletos pró ou contra ( 0 1 ). Mas (c'a) cumpriu as duas exigências do mestre: era naturalis-
ta e livre-pensador. Atacou, em Uden Midtpunkt (Sem
assim como a pequena Dinamarca já serviu de limitado cam-
Centro), o esteticismo pálido dos últimos românticos; des-
po de observação para estudos o "Biedermeies" literário
creveu, em Smaafolk (Gente Desprezada), no estilo de Zola
na Europa, assim a evolução do naturalismo naquele pe-
e com emoção, a vida miserável das criadas; denunciou, em
queno país tem valor de exemplo.
Frigjort, as seitas protestantes, tão poderosas na Dinamar-
Quando Brandes apareceu, a geração nova apoiou-o, ca. Contudo, Schandorph mal pode ser citado como natu-
com entusiasmo, contra a resistência dura dos conservado- ralista. E r a um filólogo de grande erudição e maior curio-
res literários e políticos. E m 1871, quando começou a dar, sidade, versado em Rabelais e Gozzi; na descrição de "ca-
na Universidade de Copenhague, as aulas que constituem sos" modernos gostava da oportunidade de empregar ex-
a base dos Hovedstroemningei, a vitória estava obtida. E m pressões fortes, pitorescas, arcaicas. E r a um humorista no-
1877, as humilhações, que sofrera por parte dos conserva- tável, às vezes grosseiro, o que então parecia naturalista.
dores, fizeram-no preferir o exílio voluntário na Alemanha. Dos naturalistas autênticos distinguiu-se pelo otimismo cor-
Mas quando voltou, em 1883, para a Dinamarca, já famoso ei e-rosa, às vezes frívolo.
como figura europeia, viu-se abandonado por quase todos "Naturalismo" tinha outro sentido para Drachmann ("*),
os seus discípulos dinamarqueses. Conservou-se-lhe sem- o poeta lírico do movimento: pretexto para libertar to-
pre fiel só seu irmão Edvard Brandes ( 9 2 ), dramaturgo há- dos os instintos, nem sempre bons, da sua vitalidade e do
bil, tratando problemas ibsenianos, mas antes no espírito seu temperamento, sem os freios da convenção religiosa
da comédia francesa de Dumas F i l h o ; Et Besoeg (Uma ou burguesa. E r a um romântico rebelde, um pequeno-bur-
Visita) é mesmo uma peça muito boa. Edvard Brandes fêz guês com o gesto de Byron e o "helenismo" de Heine, in-
escândalo com romances nos quais recomendou o amor teiramente despreocupado com o próximo que costumava
sacrificar ao seu " E u " exigente. Os temas da sua poesia
l i v r e ; e toda a sua vida estava repleta de polemicas amar-
gas. E r a um excelente crítico de teatro e grande jornalis-
ta. E m 1884, fundou Politiken, o grande jornal da democra-
93) Sophus Schandorph, 1836 — 1901.
cia dinamarquesa, que venceu politicamente no momento Vden Midtpunkt (1878); Smaaflok (1880); Thomas Fri's Historie
em que o correspondente movimento literário acabou. En- (1881); Brigittes Skaebne (1888); Frigjort (1896) etc.
N. Kjaer: "Sophus Schandorph". (In: Borger of Billeder. Oslo,
tre todos os brandesianos dinamarqueses, só Schandorph 1898.)
94) Holger Drachmann, 1846 — 1908.
Med Kul og Kridt (1872); Digte (1872); Daempede Melodier
(1875); / Storm og Stille (1875); Ungt Blod (1876); Tannliaeuser
(1877); Sange ved Havet (1877); Ranker og Roser (1879); Oesten
91) J. Joergensen: Essays. Kjoebenhavn, 1906. jor Sol (1880); Puppe og Sommerfugl (1882); Strandby Folk
G. Brandes: Danmarlc, 3 vole. Kjoebenhavn, 1919. (1883); Fjeldsange og Aeventyr (1885); Kunstnere (1888); San-
J. Bomholt: Dansk Digtning fra den industrielle Revólution Hl genes Bog (1889); Forskrevet (1890); Voelund Smed (1894); Gurre
vore Dage. Kjoebenhavn, 1930. (1899), etc.
92) Edvard Brandes, 1857 — 1931. Edição (pelo autor), 12 vols., Kjoebenhavn, 1906/1909.
Kjaerlighed (1887); Overmagt (1888); Et Besoeg (1889); Det unge V. Vedei: Holger Drachmann. Kjoebenhavn, 1909.
Blot (1891); Muhammed (1895). P. Rubow: Holger Drachmann's Ungdom. Kjeobenhavn. 1940.
G. Brandes: "Edvard Brandes". (In: Skandinavische Persoenlich- P. Rubow: Holger Drachmann, 1878-1857. Kjoebenhavn, 1945.
keiten. Gesammelte Schriften, vol. IV. Muenchen, 1903.) P. Rubow: Holger Drachmann, Sidste Aar. Kjoebenhavn, 1950.
2378 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2379

são tão variados como esse egocentrismo despótico o per- uma das mais finas do fim do século XIX, e a sua presen-
m i t e : a mulher, em primeira linha; depois o vinho, de- ça entre os radicais positivistas de Brandes e os naturalistas
pois um gosto irresistível de caminhar, de vagabundear, a à maneira de Zola parece um erro da história. Jacobsen
paisagem dinamarquesa, os bosques, as dunas da praia, o escreveu uns poucos contos, muito delicados, e um roman-
mar — e tudo isso refletido em gritos de alegria, rebeldia, ce psicológico, Niels Lhyne, no mais intenso lirismo; um
ternura e lamento, sem outra disciplina do que certa estrei- romance histórico, Fru Marie Grubbe, que se compõe de
teza do horizonte intelctual. Mas Drachmann era um gran- uma série de quadros impressionistas; e algumas poesias
de músico da língua, o maior nessa língua musical que é a em verso livre. Em tudo parece pertencer ao simbolismo
dinamarquesa. Invadiu todos os géneros, romance, drama, para o qual o destinava a delicadeza do seu corpo, minado
mas ficou sempre lírico, o mais abundante da sua literatu- pela tuberculose, e do seu espírito lírico. Mas Jacobsen
ra e, nesse sentido, o poeta mais rico das literaturas nór- ignorava, como a Dinamarca do seu tempo, o simbolismo;
dicas. O que lhe faltava por completo é o conteúdo intelec- aderiu de todo o coração aos irmãos Brandes, que, ao seu
tual. O seu romantismo é, conforme as definições france- lado, parecem plebeus. Não apostasiou do movimento bran-
sas, expansão do "eu"; Drachmann devia apostasiar do mo- desiano, pois morreu antes da dissolução dele; e, apesar de
vimento de Brandes, não para aderir a outro grupo, mas só tudo o que se tem dito, não é provável que, se tivesse vivido
para ficar Holger Drachmann. O comentário prosaico da por mais tempo, tivesse apostasiado mais tarde. Ficou e
sua obra não são os seus próprios romances, mas os de E r i k sempre ficaria impedido de professar uma fé mais positiva,
Skram ( 0 5 ), propagandista do amor livre, que deve porém fosse mesmo a fé vaga do neo-romantismo, porque era um
sua permanência nas letras dinamarquesas ao fino roman- espírito irónico, descendente de um romantismo raro, des-
ce psicológico Gertrude Coldbjoernsen, situado entre Phan- trutivo sem eloquência, tão sem eloquência que parece o
tasterne, de H a n s Egede Schack, e as novelas de J e n s Peter mais anti-romântico — dos românticos.
Jacobsen.
Os biógrafos afirmam que Jacobsen perdeu cedo a fé;
Jens Peter Jacobsen ( 98 ) foi chamado o "Ariel do natu- talvez nunca a tivesse tido. Estudou botânico; tornou-se o
ralismo dinamarquês". Na verdade, é uma figura angélica, primeiro darwinista na Dinamarca, abraçando o radicalismo
anti-religioso do seu amigo Georg Brandes. A sua obra
95) Erik Skram, 1847 — 1923. principal, o romance Niels Lhyne, foi chamado "bíblia do
Qertrude Coldbjoernsen (1879); Agnes Vittrup (1897); Hellen
Vige (1898). ateísmo"; e, com efeito, o ateísmo é o único ponto firme em
G. Brandes: "Erik Skram" (In: Skandinavische Persoenlichkeiten. que se apoia Niels Lhyne, homem de natureza aristocráti-
Gesammelte Schriften, vol. IV. Muenchen, 1903.)
ca, ligeiramente decadente, abúlico, incapaz de exercer uma
96) Jens Peter Jacobsen, 1847 — 1885.
Mogens (1872); Fru Marte Grubbe (1876); Niels Lhyne (1880); profissão séria, caminhando por mil aventuras e desilusões
Mogens og andre Noveller (1882); Digte (1886). eróticas, até a morte na guerra de 1864, morte de ateísta
Edição por E. Brandes, 3. a ed., 5 vols., Kjoebenhavn, 1924/1929.
G. Brandes: "Jens Peter Jacobsen". (In: Mennesker og Vaerker. impenitente mas com o lirismo de um santo. Niels Lhyne
2* ed. Kjoebenhavn, 1903.) é mais uma novela que um romance; uma série de quadros
J. Jacobie: Jens Peter Jacobsen. Kjoebenhavn, 1911.
H. Bethge: Jens Peter Jacobsen. Berlin ,1920. impressionistas, lembrando a arte de Degas, que foi mal
G. Lukacs: Theorie des Romans. Berlin, 1920. compreendida então, como se fosse pendant da literatura
W. Rehm: Experimentum medietatis. Studien zur Geístes-und Li-
teraturgeschichte des 19. Jahrhunderts. Muenchen, 1947. naturalista. Quanto à técnica pictórica, a arte dos impres-
2380 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2381

sionistas francesas parece-nos, hoje, estar mais perto do que exerceu a maior influência no estrangeiro, não sobre
simbolismo; e com a arte verbal de Jacobsen acontece o os naturalistas e em função do seu ateísmo, mas sobre os
mesmo: é mesmo "arte verbal", o estilo mais elaborado, simbolistas, e isso em função da angústia secreta que treme
mais fino que se escreveu, no século XIX, em qualquer na "morte difícil" de Niels Lhyne e na resignação fatalista
língua. Às vezes, sobretudo nas pequenas novelas, a arte de Marie Grubbe. Só os simbolistas chegaram a apreciar
de Jacobsen aproxima-se de virtuosidades gongoristas. Mas os "états d'âme" desse Hamlet moderno, príncipe da litera-
o espírito da pintura dos impressionistas franceses é bem tura da Dinamarca. Só um Rilke chegará a compreender o
o naturalista: atomização das impressões subjetivas e obje- fundo metafísico da abulia do ateu Niels L h y n e : o "grande
tivação delas sob a pressão de uma força extra-subjetiva e enfado", com em Gontcharov mas teria Jacobsen previsto
puramente material: a luz, entendida como fenómeno da tudo isso? É preciso distinguir entre efeito e intenção.
física (seja ondular ou corpuscular). Nas descrições de O fato de Jacobsen ter exercido profunda impressão sobre
Jacobsen, a luz também desempenha grande papel, depen- Rilke — basta mencionar Os Cadernos de Malte Laurids
dendo das modificações da iluminação a própria "alma das Brígge — não é prova do seu simbolismo nem do seu mis-
coisas". À capacidade de observação do cientista especia- ticismo. Revela apenas a independência da sua arte de
lizado, Jacobsen juntou a sensibilidade aguda do doente, qualquer modificação do gosto literário; e revela a possibi-
vendo o que ninguém viu antes. O fundo do seu lirismo lidade de uma angústia quase kierkegaardiana se ter escon-
é tão triste como a fisiologia experimental de Zola; e sen- dido no fundo do chamado naturalismo dinamarquês.
do Jacobsen um grande artista da palavra, empregou a
Essa angústia tomou forma plenamente naturalista no
sua arte para objetivar em palavras a filosofia fatalista do
escritor mais poderoso da literatura dinamarquesa inteira,
naturalismo ateu. Não era romancista nato. E r a artista dos
em Pontoppidan ( 0 7 ). A crítica hesita em chamar "litera-
valores plásticos. O seu romance histórico Fru Marie Grub-
tura" ao conjunto imponente das suas obras; tanto parece
be é, por meio do artifício verbal de uma imitação perfeita
expressão espontânea do solo da Jutlândia, do espírito dos
da linguagem arcaica, uma reconstituição admirável da Di-
camponeses pobres e tenazes daquela terra. Com efeito,
namarca do fim do século X V I I ; mais uma vez, são quadros
Pontoppidan é de origem popular. Vem da "literatura dos
impressionistas que acompanhavam o caminho de vida, para
mestres-escolas", dos vigários e professores primários ju-
baixo, de uma mulher aristocrática, vítima dos seus instin-
tlandeses — Thyregod e os outros — que observavam de
tos. O fim é uma profissão de fé fatalista. Jacobsen não se
perto a sua gente e notaram as suas observações com rea-
entregou ao romantismo, apesar das muitas despedidas lí-
lismo despretensioso. Pontoppidan é da mesma família.
ricas das quais se compõe à sua obra; até a comovente des-
pedida no fim da sua última novela " F r u Foenss", que foi
a despedida definitiva do poeta.
97) Henrik Pontoppidan, 1857 — 1943.
Jacobsen deixou poesias em verso livre; não cultivou Sandice Menighed (1883); Fra Hytterne (1887); Folkelivsskil-
ãringer (1888/1890); Skyer (1889); Det Jorjaettede Land (1891/
muito o género, porque Brandes e êle mesmo acharam que 1895); Den gamle Adam (1894); Lykke Per (1898/1904; edição de-
o tempo da poesia lírica já acabara. Contudo, naquelas poe- finitiva, 1907); De Doedes Rige (1912/1915); Manda Himmerig
(1927).
sias, Jacobsen revela-se como precursor do simbolismo. É V. Andersen: Henrik Pontoppidan. Kjoebenhavn, 1917.
êle, com excecão de Kierkegaard, o escritor dinamarquês E. Thomsen: Henrik Pontoppidan. Kjoebenhavn, 1931.
C. M. Vevel: Henrik Pontoppidan. 2 vols. Kjoebenhavn. 1945.
2382 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2383
Apenas, os seus primeiros contos, já qualificados de "na-
contra os demagogos radicais, em cuja agitação descobre
turalistas", são mais amargos. Aqueles escritores popula-
as manobras da burguesia de Copenhague para mobilizar
res, embora sem muita formação literária, guardaram fiel-
a propriedade rural. Em Den gamle Adam (O Velho Adão)
mente os restos do romantismo, decaído para a subliteratu-
já tinha denunciado a propaganda do amor livre como novo
r a ; Pontoppidan é anti-romântico decidido; a sua natureza
romantismo; e Lykke Per, o novo Adam Homo, acaba na
de camponês sóbrio reage contra o lirismo idílico; não acre-
resignação fatalista; para êle e o seu criador não existia o
dita em enfeites artificiais desta vida dura; é hostil a todos conforto espiritual do cristianismo. Digna de nota é a com-
que pretendem falsificar a realidade, sobretudo aos sectá- posição de Lykke Per: a forma cíclica, a de Zola e vários
rios que prometem o céu aos pobres sob a condição de su- outros naturalistas, convinha tanto aos desígnios de Pon-
portarem sem resistência a opressão dos ricos e poderosos. toppidan que a empregou, mais uma vez, na terceira das
Contra a mais importante dessas seitas, os grundtvigianos, suas grandes obras, De Doedes Rige (O Reino de Morte),
lançou Pontoppidan a sua primeira grande obra, Det for- composição de cinco romances que apresentam, através das
jaettede Land (Terra de Promissão), composta de três ro- vidas de dois tipos representativos, o pensativo Forben e o
mances reunidos em ciclo: Mued, Det for jaettede Land e sonhador J y t t e , o romantismo de anteontem e o anti-ro-
Dommens Dag (Juízo Final). É um grande panorama da mantismo de ontem — e parece a Pontoppidan que ambos
vida nos campos da Dinamarca por volta de 1880, da luta tenham falido. A "terra de promissão" tornou-se "país dos
dos agitadores socialistas contra as classes conservadoras mortos".
que gozavam do apoio dos grundtvigianos. Aqueles mestres- Pontoppidan recebeu em 1917 o premio Nobel; nem
escolas eram luteranos ortodoxos. Pontoppidan é anticris- essa publicidade lhe granjeou a atenção universal que me-
tão resoluto, a sua filosofia é a dos radicais; e brandesiano recera. Talvez fosse responsável por isso seu niilismo des-
também é o seu anti-romantismo: "Sempre estávamos so- consolado. Os estrangeiros só chegaram a apreciar as finas
nhando, e nunca realizamos nada." A tendência é, como em descrições de paisagens nos seus contos. Ao mundo lá fora,
escritos contemporâneos de Brandes, dirigida contra o mito Pontoppidan parecia regionalista. Na própria Dinamarca,
nacional do "Aladdin" ao qual a sorte dá tudo de presente. só a literatura regionalista dos camponeses da Jutlândia o
Afastando-se de Brandes, Pontoppidan conservou-se acompanhou. Skjoldborg ( 0 8 ), cujos romances constituem
fiel ao seu anti-romantismo: mas a sinceridade incorrutí- o documento valioso da penetração do socialismo entre as
vel do camponês tinha reconhecido a parte de ilusionismo populações agrárias do Norte da E u r o p a ; e Soeiberg (° 9 ),
nas promessas dos radicais; e, para êle, pouco importava se cuja trilogia De levendes Land (O País dos Vivos) preten-
o "forjaettede Land", a "terra da promissão", prometido pe- de desmentir o "país dos mortos" de'Pontoppidan, opondo
los sectários cristãos ou pelos jornalistas radicais. Enten- ao falso cristianismo dos ricos o verdadeiro cristianismo
de-se assim a tendência da sua obra máxima, Lykke Per, dos pobres.
ciclo de oito romances breves em torno de Per Sidonius,
um Aladdin às avessas, derrotado pelo ambiente. A des- 98) Johan Skjoldborg, 1861 — 1936.
crição desse ambiente é uma das grandes sátiras da litera- En Stridsmand (1896); Kragehuset (1899); Qyldholm (1902);
Spillemandens Hjemkomst (1914.)
tura universal, sátira de um homem acima dos partidos, A. F. Schmidt: Johan Skjoldborg. Kjoebenhavn, 1938.
igualmente indignado contra os conservadores cristãos e 99) Harry Soeiberg, 1880.
De levendes Land (1916/1920).
2384 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2385

As angústias religiosas que Pontoppidan não confes- A derrota de Brandes prejudicou mais à literatura di-
sara, constituíram a base das reações mais fortes contra namarquesa do que ao seu crítico: separando-a do movi-
Brandes. Mas o caminho de volta para o cristianismo lute- mento europeu, causou-lhe um atraso estranho, novo pro-
rano dos antepassados estava definitivamente barrado, pelo vincianismo. A maioria dos escritores dinamarqueses, e não
menos aos intelectuais de Copenhague, entre os quais se só os piores entre eles, ficou vacilando entre a sátira na-
tentaram novas experiências espirituais. Gjellerup ( l 0 °), turalista de Schandorph e o lirismo pós-romântico de
que fora um dos naturalistas mais radicais, entregou-se, pri- Drachmann. Naturalista julgava-se Gustav Wied ( 1 0 2 ), na
meiro, ao mito germânico, interpretando-o à maneira de verdade um grande satírico, inimigo irritado de tudo o que
W a g n e r ; e através de W a g n e r e Schopenhauer chegou ao é feio e ridículo na sociedade moderna. Em Pastor Soeren-
budismo, escrevendo grandes romances, cientificamente do- sen & Co., zombou dos beatos; em Faedrene aede Druer,
cumentados, sobre "os oito caminhos de salvação" e a me- dos burgueses; em Slaegten, dos decadentistas, sempre com
tempsicose. Deram-lhe em 1917 metade do prémio Nobel a indignação amargurada e o cinismo pseudomaterialista
para contrabalançar o efeito da outra metade, dada a Pon- de um hipersensitivo; acabou no suicídio, que foi, em 1914,
toppidan; mas até na própria Dinamarca censurou-se a como sinal de fim de uma época. Os poetas que sucederam
inconveniência da homenagem ao escritor pretensioso e iná- a Drachmann, retiraram-se para um romantismo algo fácil,
bil, nem sequer dominando bem o idioma e lido só na Ale- como Blaumueller ( 1 0 3 ), considerado, aliás, o maior artista
manha, onde residia. A solução radical, embora a mais ines- do verso em língua dinamarquesa, e Holstein ( , 0 4 ) , que
perada de todas no Norte protestante, encontrou-a Johan- substituiu as paisagens impressionistas do mestre por idí-
nes Joergensen ( 1 0 1 ) : naturalista na prosa e simbolista na lios inofensivos, quadros bonitinhos que lembram a pintu-
poesia, converteu-se em Assisi ao catolicismo. A sua bio- ra do "Biedermeier" dinamarquês, Marstrand e Skovgaard,
grafia de São Francisco é uma das mais belas entre os inú- comparação que não pretende diminuir, mas, ao contrário,
meros livros sobre o santo; e a sua autobiografia Mit Livs indicar altas qualidades artísticas. Enfim, a poesia drach-
Legende (Lenda da Minha Vida) é o grande documento fi- manniana, tão revolucionária no seu tempo, chegou a hon-
nal do brandesianismo. Joergensen foi notável poeta lírico - ras oficiais em Roerdam ( 1 0 5 ), grande poeta num género
mas sua conversão quase o excluiu da vida literária do Nor menor, em idílios rurais, paisagens impressionistas, poesias
te da Europa, limitando-lhe a influência.

102) Gustav Weid, 1858-1914.


100) Karl Gjellerup, 1857-1919. Erotik (1896); Slaegten (1898); Livsens Ondskab (1899); Pastor
Oermanernes Laerling (1882); Brynhild (1884); Pilgrimmen Ka Soerensen & Co. (1901; Dansemus (1905); Ranhe vilje (1907);
manita (1906); Verdensvandrerne (1910). Faedrene aede Druer (1908); Circus mundi (1910).
P. A. Rosenberg: Karl Gjellerup. 2 vols. Kjoebenhavn, 1921 E. Holten-Nklsen: Gustav Wied. Kjoebenhavn, 1931. ,
1923. E. Salicoth: Omkring Gustav Weid. Kjoebenhavn, 1946.
101) Johannes Joergensen, 1866-1956. 103) Edvard Blaumueller, 1851-1911.
Den yderste Dag (1897); Digte (1898); Vor Frue af Damnar Agnete og Havmanden (1894).
(1900); Frans af Assisi (1907); Mit Lies Legende (1916/1923). 104) Ludvig Holstein, 1864-1943.
A. Walden: Der Dichterphilosoph Johannnes Joergensen. Muen Mo sog Muld (1917); Aebletld (1920).
chen, 1904.
E. Frederiksen: Johannes Joergensens Ungdom. Kjoebenhav K. Balslev: Ludvig Holstein og hans Lyrik. Kjoebenhavn, 1941.
1946. 105) Cf. "O Equilíbrio europeu", nota 78.
2386 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2387

patrióticas: o "Poet Laureate" do povo dinamarquês. A li- clarecer melhor as coisas, esboçando um panorama geográ-
teratura dinamarquesa já tinha deixado de exercer influên- fico da difusão do naturalismo, ou antes, dos diversos na-
cia na Europa. turalismos.
A derrota de Brandes na Dinamarca foi um caso de im- A fronteira corre, mais ou menos, pelo meridiano de
portância local. Nem na Noruega, cuja literatura encontra- Berlim. Ao oeste desta linha divisória, na França, Países
ra em Brandes o maior propangadista, se repetiu o caso. Baixos, Irlanda e Inglaterra, encontram-se os representan-
Porque só na Dinamarca a influência de Brandes era tão tes do "naturalismo europeu"; ao Leste, na Alemanha
grande que êle pôde pretender impor ao país o seu concei- Oriental, Escandinávia, países eslavos e sobretudo na Rús-
to do naturalismo, provocando, depois, a reação hostil. Evi- sia, estão os representantes de outros "naturalismos", dife-
dentemente há uma diferença essencial entre o naturalismo rentes, que hoje não nos parecem naturalistas. É o caso do
francês e europeu e o "naturalismo" escandinavo; mas Bran- realista norte-americano Howells (loo-A^ q U e s o f 0 j simpa-
des, intencionalmente ou por equívoco, os confundira. tizante do zolaísmo, ao passo que a obra de Stephen Cra-
"Tudo o que agora tem valor na Europa, milita sob a ban- ne (10<J-B) j a é uma ponte para o neonaturalismo posterior,
deira da liberdade e do progresso", declarara Brandes na- de Dreiser. Mas, sobretudo na Rússia, não houve natura-
quela famosa aula em Copenhague, continuando: "na I n - lismo propriamente dito, talvez porque toda a literatura
glaterra: Mill e Darwin, Spencer e Swinburne; na França: russa da época é naturalista, mas num sentido que nada tem
Taine e Renan, Zola, Flaubert e os Goncourts; na Alema- com o naturalismo de Zola. Um Rechetnikov (io«-°) ou um
Uspensk (10e-D) s ão anteriores a Zola; e o mais zolaísta dos
nha: Auerbach, Paul Heyse, e Gottfried Keller; na Itália:
russos, Kuprin ( ^ « - E ^ j a pertence ao século XX. Ha, mais,
Carducci; na Rússia: Turgeniev, Dostoievski e Tolstói."
algumas figuras atípicas, de origens geográficas muito di-
A lista de nomes não poderia ser mais heterogénea; a con-
versas, mas que revelam analogias evidentes: são Verga, na
fusão é completa. Mas essa confusão divulgou-se em toda
Itália; Pérez Galdós, na Espanha; Hardy, na Inglaterra. O
a parte onde a propaganda de Brandes exerceu influência.
caso menos típico de todos é o da Alemanha, na qual o natu-
Na introdução dum livro famoso ( 10e ) sobre as origens do
ralismo entrou muito tarde, não encontrando eco considerá-
naturalismo na Alemanha, citam-se como os representantes
vel na Renânia e no Sul, mas empolgando o Oeste: o jovem
principais do naturalismo europeu: Balzac, Flaubert, os
Hauptmann ("«-*) é da Silésia; Conradi ( 10 °-O), da Saxônia;
Goncourts, Zola, Tolstói, Dostoievski, Bjoernson e Ibsen. Holz (106-H) e Sudermann da Prússia oriental; Kretzer
É preciso esclarecer essas confusões. Os nomes, cuja pre-
sença naquela frase de Brandes causa a maior estranheza,
são os de Swinburne, Heyse e Carducci; Brandes escolheu- 106A) Cf. "Conversão do Naturalismo", nota 99.
os porque lhe pareciam anticristãos, pagãos. De maneira 106B) Cf. "Conversão do Naturalismo", nota 100.
ingénua, identificou o radicalismo ("liberdade e progres- 106C) Cf. "Conversão do Naturalismo", nota 39.
so") com o realismo e naturalismo literário. É possível es- 106D) Cf. "Conversão do Naturalismo", nota 40.
106E) Cf. "Conversão do Naturalismo", nota 44.
106F) Cf. "Conversão do Naturalismo", nota 25.
106) A. Soergel: Dichtung und Dichter der Zeit. Vol. I 19.B ed. Leip- 106G) Cf. "Conversão do Naturalismo", nota 21.
zig, 1928. 106H) Cf. "Conversão do Naturalismo", nota 24.
2388 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2389

(1"*"I)> da Posnânia. Os naturalistas alemães são da mes- proletários e descrevê-los implacàvelmente. Daí a presen-
ma origem como os pré-românticos do "Sturm und Drang", ça de "intermediárias", naturalistas à maneira ocidental, na
Hamann, Herder, Lenz. Comparáveis aos "Stuermer" de Europa oriental e na Escandinávia. Daí a importância de
1830, Grabbe e Georg Buechner, representam uma terceira Brandes, incorporando o "naturalismo" oriental ao movi-
voga pré-romântica na Alemanha; e todo o naturalismo es- mento ocidental, mas sem compreendê-lo e por isso derrota-
candinavo (e eslavo) revela as mesmas características pré- do, enfim, na sua própria terra.
românticas de interesse forte mas principalmente sentimen- O naturalismo propriamente dito, causador de tantas li-
tal pelos problemas sociais e de tentativas de fuga para bertações, limitações e equívocos, é o naturalismo francês:
um misticismo romântico. Assim a norueguesa Amalie é indispensável defini-lo melhor, em relação ao realismo
Skram ( 106 - J ) e o jovem Strindberg (loe-K) Esse sentimen- precedente (100-M)# Balzac observa os fatos sociais e jul-
to também é comum naquele grupo de italianos, os "veris- ga-os conforme a sua ideologia- Esta também lhe forne-
tas", aos quais convém associar o herético Pérez Galdós e o ce o esquema em que enquadra suas observações: um Uni-
maniqueu Hardy. O siciliano Verga e o espanhol Pérez verso social, fechado e estático, composto de classes mais
Galdós representam regiões de feudalismo decadente, antes ou menos rigidamente separadas. Os indivíduos só exis-
de se iniciar a industrialização; Hardy nasceu e viveu, em tem como membros de uma dessas classes. Destacam-se, no
seu ambiente, pelas paixões que os impulsionam, paixões ou
meio da Inglaterra altamente industrializada, numa região
até manias; os indivíduos de Balzac viram tipos, personifi-
agrária, atrasada. As experiências de 1770 e 1830, já ensi-
cações de ideias abstratas. Mas os indivíduos de Zola não
naram que pré-romantismo e revolução industrial corres-
são abstrações personificadas; são, ao contrário, "casos"
pondem. Por volta de 1880, a mesma situação reinava na
mais ou menos típicos, exemplificações de conceitos abstra-
Escandinávia e na Rússia. E na Alemanha, a Renânia já
tos. Não são maníacos, obsediados por determinada paixão.
muito industrializada e o Sul calmamente agrário não res-
Até pode acontecer que não tenham nenhum caráter defini-
pondem ao apelo do naturalismo, ao passo que a Alemanha
do. Quer dizer, a sociedade, que em Balzac manejava os in-
oriental, em processo de industrialização, se abre larga-
divíduos como se fossem títeres, já não exerce, em Zola,
mente às influências escandinavas e russas. Trata-se de um esse papel soberano. Pois o mundo de Zola já não é estáti-
novo "advento da burguesia". O conflito entre os ideais do co. Encontra-se em movimento, em evolução, conforme as
liberalismo e as realizações do capitalismo se repete na Eu- leis da biologia, do darwinismo, da hereditariedade. A mera
ropa oriental e setentrional; e Bjoernson e Ibsen, Tolstói e observação dos fatos sociais já não basta para dominá-los.
Dostoievski dirigem à burguesia as suas "perguntas" em- Precisa-se, para tanto, de uma teoria científica. É o deter-
baraçadoras. A coragem, porém, de "documentar" essas minismo de Claude Bernard: fornece as razões do compor-
"perguntas" foi fornecida pelo naturalismo ocidental, que tamento dos indivíduos. Mas, paradoxalmente, essa teoria
ensinou a descobrir os novos ambientes proletários e semi- não determina o comportamento ideológico do romancista,
que se coloca num plano superior ao determinismo: tem

1061) Cf. "Conversão do Naturalismo", nota 26.


106J) Cf. "Conversão do Naturalismo", nota 75. 106M) G. Lukacs: Theorie ães Romans. Berlin, 1920 .
106K) Cf. "Conversão do Naturalismo", nota 76. R. J. Humm: Der Gesellschaftsro?nan. Zuerlch, 1949.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2391
2390 OTTO M A R I A CABPEAUX

seus ideais; revelá-los-á no romance final do seu ciclo, no ticos da vanguarda chegam a afirmar que "Zola já não é
Docteur Pascal, e nos seus últimos romances, que se cha- lido". A afirmação não corresponde à verdade. Zola já não
mam, caracteristicamente, Evangelhos. é lido pelos "highbrows" das vanguardas literárias, que des-
Zola veio do "romantisme social" de H u g o ; e acabou frutam, no entanto, a liberdade conquistada por êle: a de
como socialista utópico, romântico. A industrialização ti- dizer tudo, e dizê-lo com franqueza; até um romancista tão
nha chegado ao fim da sua primeira fase; o livre-câmbio fino como Henry James, o modelo das vanguardas de hoje,
começou a ceder ao protecionismo. Em meio a uma grande festejou Zola como o libertador que arrancou o género às
prosperidade da burguesia industrial, de um "gilded age", mãos das damas, dos dois sexos, que escrevem "virginibus
conforme a expressão norte-americana, baixava o standard puerisope", excluindo qualquer experiência adulta. E Zola
de vida da pequena burguesia, já no caminho da proletari- continua lido. Mas, em numerosas edições e traduções bara-
zação. Daí o surto do radicalismo, falando a linguagem tas, a sua obra está circulando pelo mundo inteiro, consti-
revolucionária do século X V I I I , mas sem chegar ao socia- tuindo para inúmeros leitores a primeira iniciação e a inicia-
lismo marxista. Em vez disso, a descoberta dos novos am- ção definitiva na literatura. E n t r e estes inúmeros leitores
bientes proletários e semiproletários levou ao pessimismo e há tantos e tantos aos quais a leitura de Zola sugere a ideia
ao fatalismo mais desesperados, expressões literária do de- de escrever um romance sobre as suas próprias experiên-
terminismo económico, que é o fado dessa geração de ra- cias em ambientes profissionais ou nacionais que a literatu-
dicais. O grande poeta desse Destino moderno é Zola; ra ainda não descobriu e que se parecem com os ambientes
mas as suas origens são românticas, hugonianas, e isso dá descobertos pelo próprio Zola; o seu método é evidente-
à sua atividade literária, de início, um aspecto revolucioná- mente o indicado para alagrar os horizontes literários, não
rio. Em meio do parnasianismo, que tinha, conscientemen- na dimensão da profundidade, mas horizontalmente. Daí a
te, renunciado à função pública da arte, Zola renunciou à influência permanente que Zola exerce sobre os jovens ro-
qualidade de "artista", para reassumir a atitude de Hugo, mancistas da América latina e dos países coloniais. O mé-
de um vate da época e profeta do futuro. todo de Zola deixa entrar luz em lugares escondidos. Não
há nada de "misterioso" na sua obra nem na sua persona-
O nome de Zola ( 107 ) não costuma figurar nas discus-
sões sobre os problemas do romance moderno; e certos crí-
Edição por F. Bernouard, 50 vols., Paris, 1927/1936.
B. Bouvier: Uoeuvre de Zola. Genève, 1903.
H. Massis: Comment Zola composait ses romans. Paris, 1906.
107) Émile Zola, 1840 —1902. (cf. nota 78) e "A Conversão do Natu- E. Lepelletier: Émile Zola, sa vie, son oeuvre. Paris, 1908.
ralismo", nota 105). A. Baillot: Émile Zola, Uhomme, le penseur, le critique. Paris.
Thérèse Raquin (1867); Maáeleine Férat (1868); Les Rougon 1924.
— Macquart, histoire naturelle et sociale d'une famille sous le P. Louis: Les types sociaux chez Balzac et Zola. Paris, 1925.
second Empire (La Fortune des Rougon, 1871; La curée, 1871; M. Josephson: Zola and His Time. New York, 1928.
Le ventre de Paris, 1873; La conquête de Plassans, 1874; La faute M. Batilliat: Émile Zola. Paris, 1931.
de Vabbé Mouret, 1875; Son Excellence Eugène Rougon, 1876; A. Zévaès: Zola. Paris, 1945.
UAssommoir, 1877; Une page damour, 1878; Nana, 1880; Pot- G. Lukacs: Balzac, Stendhal, Zola. Berlin, 1946.
Bouille, 1882; Au Bonheur des Dames, 1883; La joeie de vivre, J. Castelnau: Zola. Paris, 1946.
1884; Germinal, 1885; UOeuvre, 1886; La Terre, 1887; Le Rêve, M. Bernard: Zola parlui-même. Paris, 1952.
1888; La bete humaine, 1890; UArgent, 1891; La Débácle, 1802; R. Guk: Êmile Zola. Príncipes et caracteres généraux de son
Le Docteur Pascal, 1893); Les Trois Villes (Lourdes, 1894; Rome, oeuvre. Paris, 1952.
1896; Paris, 1898); Les quatre Evangiles (Fécondité, 1899); Tra- Aungus Wilson: Êmile Zola. London, 1952.
vail, 1901; (Vérité, 1903); Le roman experimental (1880). F. W. J. Hemnúngs: Êmile Zola. Oxford, 1953.
2^<>:2 OTTO MARTA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2393

lidade de um pequeno burguês tímido e ambicioso, i h, o ciclo de Zola constitui u m panorama em movimen-
lhador assíduo, escritor profissional com desejos cot> um imenso romance histórico que não podia ser só um
sados de fazer publicidade e ganhar dinheiro. Zola t l H •nce porque compreendendo a sociedade inteira, e sim
muito de jornalista, de repórter; e, na qualidade de rc| ciclo de romances históricos, vindo do passado, como a
ter, descobriu o mundo moderno, ao qual, até então, a lit.««j inça das Origines de la France contemporaine de Taine,
ratura não prestara a atenção devida: em La curée, as i •ÉOrrendo para o futuro desastroso como a locomotiva em
coes entre a política e os altos negócios; em Son Excellm LA bete humaine. É — logo se notou isso — uma epopeia,
ce Eugène Rougon, a política e administração do país; em [ I única grande epopeia da literatura francesa, a "Legende
La Conquête de Plassans, o clero; em Nana, a socied je Vingt années" da França. O espírito hugoniano, no
dos novos-ricos e das suas prostitutas caras; em UArgvnt, Bltor dessa nova "Legende du siècle", é evidente. Um dos
a Bolsa; em Au Bonheur des Dames, o comércio; em Poi leus progressos em relação a Balzac é a adoção da lingua-
Bouille, o reverso sujo da vida b u r g u e s a ; em UOeuvre, o jem plebeia, autêntica, do povo na vida quotidiana, essa lin-
miséria dos artistas e intelectuais; em La bete humainc,\ h a g e m que assustou os contemporâneos e é uma das con-
a corrução da província; em Le ventre de Paris e L'Assom~ quistas mais sólidas, mais importantes de Zola. Em rela-
moir, a corrução do proletariado; em Germinal, a explora- flo a Flaubert, o progresso — enquanto há progresso na
ção dos mineiros; em La Terre, a bestificação dos campo- Irte — consiste na compreensão de que um romance não é
neses. É preciso notar a coragem enorme que se revela na •Hl poema e não suporta a elaboração pelos processos esti-
conquista desses novos continentes literários e na descober- lísticos flaubertianos, nem precisa disso. Em contradição
ta de aspectos inteiramente novos de assuntos mil vezes tra- com esse naturalismo estilístico está o romantismo secreto
tados, como em La Terre, "les Géorgiques de la crapule".
de Zola, o gosto de verbalismos descritivos, de símbolos
É preciso lembrar do tamanho desse monumento colossal,
eloquentes; é essa combinação que torna abominável — do
que são os 20 volumes dos Rougon-Macquart, para afirmar:
ponto de vista estético — o estilo de Zola e contribui para
na capacidade daquele pequeno-burguês modesto de erigir
diminuí-lo aos olhos das vanguardas literárias modernas.
esse monumento reside o "mistério" de Zola.
Não poderia haver coisa pior do que um Hugo da prosa; e
O problema dos Rougon-Macquart — isto é, o proble- Zola é isso. Mas é um Hugo às avessas. Sua desconfiança
ma de Zola que desaparece atrás da obra — reside na cons- contra os excessos da imaginação romântica inspirou-lhe o
trução, na composição. Até então conseguiu-se, quando materialismo, que só vê, na Natureza e na vida, fecundidade
muito, reunir vários romances, constituindo-se um pano- de criação e abundância da decomposição. Esta última tam-
rama coerente, como na Comédie humaine, de Balzac ou, bém é um dos grandes símbolos zolaescos. A origem psico-
em proporções menores, nos Barsetshire Chronicles, de lógica da sua literatura e do seu pessimismo é a decepção
Trollope. Zola fêz mais. Estabeleceu uma relação dinâmi- de 1848: a decomposição moral da França, seguida pela de-
ca entre os romances do seu ciclo. Assim como em Balzac, composição política e militar. Zola era, de início, um re-
os seus personagens voltam em romances diferentes, mas publicano desiludido, e, em vez de adotar a atitude de re-
não só para representar classes e sim para continuar a ação. sistência de Hugo, decidiu-se pela atitude de Flaubert, pelo
Do golpe de Estado de Napoleão I I I , em La Fortune des cbjetivismo realista como caminho da análise do desastre.
Rougon, até a catástrofe do Segundo Império, em La Dé-
2394 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2395
A influência de Flaubert sobre Zola foi decisiva. Até
sujeitas sem defesa a todas as pressões económicas e meso-
parece que pretendeu tornar-se o Flaubert da sua terra, do
lógicas. Aí está a grande originalidade de Zola. Nem Bal-
Sul da França. H á vestígios disso em La conquête de Plas-
zac nem Flaubert tomaram conhecimento do "quatrième
sans, em personagens que são edições sulinas dos persona-
état"; Zola descobriu o proletariado, erigindo-o em herói
gens de Madame Bovary; e, igualmente, na parte idílica da
anónimo da sua epopeia; é mesmo o primeiro que aplicou
Fortune des Rougon. As teorias psicofisiológicas de Clau-
os processos estilísticos da epopeia aos assuntos mais bai-
de Bernard, em vez de desviá-lo daquele caminho, oferece-
xos e mais vulgares, não para zombar deles — como acon-
ram-lhe um novo instrumento de análise para o fim precon-
tecera na epopeia herói-cômica — mas para elevá-los à digni-
cebido. Thérèse Raquin e Madeleine Férat são romances
dade épica. Se tinha um precursor nisso não é Hogo dos
flaubertianos, substituindo-se os imbecis por neuróticos. A
Misérables, e sim Eugène Sue, autor dos Mystères du Pel-
catástrofe de 1870, porém, abriu ao romancista os olhos com
ple ou Histoire d'une famille de proletaires à travers les
respeito à extensão da doença — verdadeira decadência psi-
ages. Zola transformou o romantismo plebeu de Sue em
cofísica da raça. Abandonou todo radicalismo: o radicalis-
realismo proletário, quer dizer, em naturalismo. E, para
mo romântico de Hugo e o radicalismo artístico de Flau-
esse fim, substituiu a documentação psicológica e mesoló-
bert. Tornou-se republicano conservador, pelo menos na li
gica de Flaubert por documentação sociológica, criando
teratura. Zola foi o único — ao que parece — que já então
grandes panoramas parciais da sociedade, movimentando-os
compreendeu o sentido da obra de Taine, a ponto de ante-
pelo poder de simbolização da poesia hugoniana. Não é
cipar o plano de Taine, concebendo o projeto de "Origines
pouco, tudo isso; e, contudo, Zola fêz algo mais. O seu
de la France actuelle". A tarefa foi: esclarecer os moti-
processo nòvelístico impediu-o de criar caracteres; nenhum
vos da decadência e apurar as responsabilidades. Foi então,
dos seus inúmeros personagen entrou na categoria dos
entre 1870 e 1871, que La Fortune des Rougon, romance
Hamlet, Fausto e Don Juan. Mas esse processo permitiu-
flaubertiano da corrução na província, se transformou' em
lhe criar tipos coletivos, o povo das "Halles", a rua dos
pedra fundamental do monumento da baixeza da França
operários parisienses, a comunidade das criadas em Pot-
moderna. O romance perdeu a permanência psicológica,
Bouille, a massa dos grevistas em Germinal, as bestas hu-
para receber, em compensação, a importância historiográ-
manas de La Terre, o exército correndo para a derrota em
fica de um documento tainiano. Mas enquanto Taine es-
La Debâcle. Em Zola há algo de Miguel Ângelo, assim
creveu e agiu como historiador, de grandes horizontes polí-
como no seu contemporâneo Daumier. Às vezes, os seus
ticos, aproximou-se Zola do mesmo objeto, da França, como
monumentos da baixeza são caricaturas grandiosas, das
moralista, e como moralista pequeno-burguês que êle sem-
quais uma, La Terre, chegou a -assustar os seus próprios
pre ficou, assustado, apavorado e aborrecido. Como fran-
discípulos. O "abismo" em Zola é o seu pessimismo social,
cês, sentiu-se corresponsável; e todo o seu esforço tem por
resultado da combinação entre o determinismo do realista
fim diminuir aquela responsabilidade coletiva. O meio para
proletário, discípulo de Sue, Flaubert e Taine, e o mora-
isso era a teoria da hereditariedade de Claude Bernard, o
lismo puritano do pequeno-burguês francês com o desejo
determinismo psicofisiológico ao qual ninguém pode fugir.
íntimo de voltar à terra. Um marxista, como Lukács, pode
Em nenhuma parte a força desse Fado moderno era maior
condenar essa mentalidade, como passiva e meio reacioná-
e mais evidente do que nas camadas baixas da população.
ría. Um típico radical francês, como Jules Romains, pode
2396 OTTO M A R I A CABPEAUX HISTÓRIA DA LITI-RATURA OCIDENTAL 2397
festejar Zola como "un saint de notre calendrier". E m Zola No começo, eles constituíram um grupo em torno do
ainda há bastante romantismo social. Zola venceu essa con- mestre, chamando-se "o grupo de Médan", conforme o lugar
tradição pelo romantismo hugoniaíio, que lhe permitiu perto de Paris, em que Zola costumava reuni-los, nos d o -
reassumir o papel público do escritor, renunciando às hon- mingos, em sua casa de campo. Em 1880, publicaram u m
ras de elite artística. O problema subsiste. Aparece, de volume de contos, Les Soirées de Médan ( l 0 ° ) ; é a data
novo, em toda a literatura naturalista de hoje, nos roman- máxima do naturalismo francês. Desses contos, um dos m e -
cistas neonaturalistas, ressentindo-se da contradição entre lhores, "Uattaque du moulin", foi de Zola; a obra-prima P
o objetivismo sociológico e moralismo da propaganda so- "Boule de suif", contribuiu para o flaubertiano Maupassant-
cial e política. Mas é uma contradição fecunda. Nela resi- Um terceiro colaborador, Huysmans, autor de "Sac au dos'*,
de a repercussão internacional e permanente de Zola. não tardará a apostasiar. Os três outros, fiéis ao mestre,
A repercussão de Zola na França só é permanente quan- Hennique, Alexis e Céard ( n o ) , eram sinceros, mas medío-
to a um elemento da sua obra: o estilo. O estilo parece o cres, exploradores do naturalismo como moda literária.
pior em Zola. Mas é notável o papel libertador que desem- Sete anos depois, no Figaro do 18 de agosto de 1887,
penhou, terminando a obra do romantismo, acabando com Bonnetain, Rosny, Descaves, Margeurite e Guiches pro-
os últimos restos das bienséances classicistas. Desde Zola, testaram publicamente contra a obra mais radical do seu
metade da literatura francesa fala a língua da vida real; a mestre, La Terre. Mais quatro anos, e Jules Huret publica-
outra metade continua, de qualquer maneira, parnasiana. rá no Echo de Paris o resultado da sua Enquête sur Vévo-
Em compensação, mal se pode falar de um romance natu- lution littéraire (1891) : o naturalismo já não existe. Quer
ralista na França ( 1 0 8 ). Maupassant é de outra estirpe e dizer, os naturalistas recusaram-se a acompanhar o mestre
Huysmans não foi o único que logo apostasiou. O roman- no caminho da crítica da sociedadede. Eram menos Zolaís-
ce naturalista francês, isto é: Zola e algumas mediocrida- tas do que goncourtianos. A maioria entre eles, amigos de
des. O motivo encontra-se naquela contradição. O objeti- Alphonse Daudet, integrarão a Académie Goucourt, futuro
vismo sociológico impediu a crítica social que é a razão d centro de reacionários políticos e sociais. H á poucas exce-
ser da literatura naturalista. Quando Zola venceu defin çoes, entre as quais não se encontram os irmãos Rosny ( m ) ,
tivamente a contradição, abraçando o socialismo (um soei
lismo neo-romântico, na verdade), já se revelara que os se
discípulos burgueses não o podiam acompanhar nesse c 109) Les Soirées de Médan (1880).
minho. A história do naturalismo francês é uma histór 5 Edição por L. Hennique, Paris, 1930.
de apostasias. B. Dumesnil: La publication des Soirées de Médan. Paris, 1933.
110) Léon Hennique, 1851-1935.
Benjamin Rozes (1882); Minnie Brandon (1899) etc.
Paul Alexis, 1847 — 1901.
108) B. Schmidt: Le groupe des romanciers naturalistes. Karlsr La Fin de Lucie Pellegrin (1880); Le Besoin d'aimer (1885) etc.
1903. Henry Céard, 1851 — 1924.
P. Martino: Le naturalisme français. Paris, 1923. Une belle journée (1881); Terrains à vendre au bord de la mer
L. Deffoux: Le naturalisme. Paris, 1929. (1905).
R. Dumesnil: Vépoque realiste et naturaliste. Paris, 1946.
Ch. Beuchat: Histoire du naturalisme français. 2 vols., Pax L. Deffoux e E. Zavier: Le Groupe de Médan. Paris, 1920.
1949. 111) Joseph-Henry Rosny, 185C-1940, e Justin Bosny, 1859-1948.
Le Bilateral (1887); Vamireh (1892); La Fauve (1899) etc. etc.
G. Cozella: Rosny. Bologna, 1907.
2398 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2399
desviados do naturalismo para uma atividade poligráfica,
de longe, é Vallès ( 1 1 5 ). Por motivos mesquinhos de rancor
fecunda mas de resultados efémeros. Zolaísta autêntico
político, esse grande jornalista-polemista e combatente da
é Descaves ( 1 1 2 ), cronista vigoroso das misérias da vida Commune de 1870 ficou, durante muito tempo, excluído
militar na paz, das violências e besteiras nos quartéis; aca- da história literária oficial. Hoje, os críticos comunistas
bará idealista, como Zola. Paul e Victor Marguerite ( n 3 ) costumam celebrá-lo como grande precursor; mas só tem
dão a crónica novelística, bastante forte, das "années ter- direito para tanto no mesmo sentido em que consideram
ribles" de 1870 e 1871; após a morte de Paul, Victor brilha- Les Misérables como romance pré-socialista. Vallès foi
rá com romances que provocam escândalo público. Paul autêntico romântico hugoniano — o que também se revela
Adam ( 1 1 4 ), que, pelo estilo, se parece com Zola e, pelo no seu estilo fortemente lírico — que as experiências de
"grande hálito épico", como Hugo, tornou-se o romancista uma vida dolorosa e ardente levaram a adotar processos li-
da epopeia napoleônica; fiel aos ideais jacobinos, Adam terários semelhantes aos do naturalismo. Sua trilogia de
era, enfim, espécie de bloco errático entre os traidores. romances, com o personagem autobiográfico de Jacques
Quanto a outros membros da Académie Goucourt, não con- Vingtras no centro, é um grandioso panorama da França
vém fazer-lhes a publicidade. de 1870, que impressionou o próprio Taine. O último desses
outsiders do naturalismo foi George Darien ( u e ) , que fez
"La Republique será naturaliste ou elle ne se será pas", escândalo com uma sátira contra o exército francês; seu
dissera Zola. Mas seus discípulos o desmentiram. Deixa- romance picaresco Le voleur, interessante documento de
ram de ser naturalistas; e a República continuou, embora sátira antiburguesa e anarquismo imoralista, só foi recen-
sendo oportunista, primeiro, e, depois, francamente reacio- temente desenterrado de um esquecimento injusto.
nária. Quando Zola se levantou em defesa de Dreyfus, já
Foram esses outsiders que continuaram a obra de crí-
encontrou oposição compacta dos intelectuais franceses. O
tica social do naturalismo. Costumava-se, na época, consi-
papel libertador do naturalismo, em sentido social, ficou
derar como naturalistas todos os que faziam crítica social,
reservado a alguns poucos outsiders. O maior entre eles, inclusive realistas como Alas ( 116_A ) e Eça de Queirós
( 116 " B ), e todos aqueles que faziam uso de linguagem fran-

112) Lucien Descaves. 1861 — 1949.


Les misères du sabre (1886); Sous offs (1889); La colonne (1901) 115) Jules Vallès, 1832-1885.
etc. Jacques Vingtras, Venfant (1879); Jacques Vingtras, bachelier
L. Deffoux e E. Zavier: Le Groupe de Médan. Paris, 1920. (1881); Jacques Vingtras, Vinsurgé (1886).
113) Paul Marguerite, 1860-1918, e Victor Marguerite, 1866 — 1942. A. Zévaès: Jules Vallès. Paris, 1932.
Le desastre (1898); Les tronçons du glaive (1901); Les braves U. Rouchon: La vie bruyante de Jules Vallès. 2 vols. Paris,
gens (1901); La commune (1940) etc. 1932/1938.
S. Barreaux: Paul et Victor Marguerite. Paris, 1901. O. Gille: Jules Vallès, ses revoltes, sa maltrise, son prestige.
Paris, 1914.
114) Paul Adam, 1862 — 1920. M. L. Hirsch: Jules Vallès, Vinsurgé. Paris, 1949.
L'année de Clarisse (1897); La Force (1899); Venfant d'Auster- 116) George Darien, 1862-1021.
litz (1902); La ruse (1903); Au soleil de JuUlet (1903); Le trust Biribi, discipline militaire (1890); Le voleur (1898).
(1910) etc. Re-edição do Voleur. Paris, 1955.
C. Mauclair: Paul Adam. Paris, 1921.
E. Jean-Desthieux: Le dernier des encyclopédistes. Paul Adam. 116A) Cf. "Advento da burguesia", nota 92.
Paris, 1928. 116B) Cf. nota 44.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2401
OTTO M A R I A CARPEAUX
2400
sociações que pretendem "combater o vício e promover a
ca, sem reticências, como Maupassant. Este último foi se-
moral pública". O escândalo repetiu-se quando George
guido, sem programa literário específico, pelos colaborado-
Moore ( 119 ) publicou os primeiros romances naturalistas
res literários dos semanários radicais, entre os quais merece
em língua inglesa, A Mummer's Wife, com descrições fran-
destaque o finlandês Aho ( m ) , então famosíssimo e tradu-
cas da vida das prostitutas, e sobretudo Esther Wateis, pa-
zido para todas as línguas, ironistas elegante como Eça de
norama impressionante da paixão do turfe entre as baixas
Queirós. Também descobriu um novo ambiente: a vida
camadas do povo inglês, com excursões pela vida das cria-
dos vigários luteranos no Interior selvagem da Finlândia.
das seduzidas, pela miséria dos hospitais e os comícios dos
Divorciado das correntes literárias europeias, escreveu,
sectários. Os admiradores franceses e alemães de Moore
mais tarde, os melhores romances históricos da literatura
procuraram neste excelente romance profundos motivos de
finlandesa. crítica moral e religiosa; mas o autor só se documentara bem
A função crítica da literatura naturalista degenerou, "pour épater le bourgeois"; tornou-se, pouco depois, um
enfim, em literatura de escândalo, e esse apelido até con- dos chefes do esteticismo simbolista.
vém a grande parte da produção do último Zolaísta, Mir-
A tendência pré-romântica do naturalismo revelasse
beau ( 1 1 8 ), excelente jornalista aliás, e bom crítico de artes
bem em alguns países ocidentais de industrialização relati-
plásticas, cujos romances já estariam esquecidos se não fos-
vamente recente, como na Bélgica. Lá surgiu um zolaísta
se a vida indestrutível da sua comédia vigorosa Les affaires
autêntico, Camille Lemonnier ( 1 2 0 ) : o seu Happe-chair,
sont les affaires, uma das últimas grandes peças do teatro
passando-se no ambiente dos mineiros belgas, é um pendant
francês realista. não indigno de Germinal. Lemonnier, o primeiro grande
Através de Taine entrou no naturalismo ocidental u m escritor da literatura belga de expressão francesa depois
elemento pré-romântico: o zelo de Herder, longínquo mes- de Charles de Coster, era um estilista formidável e um
t r e de Taine, em descobrir novas literaturas, novas socieda- grande coração. Dos seus muitos romances, mais fortes ou
des, novos ambientes e países. Deste modo, o naturalismo, mais fracos, nenhum é medíocre; e sempre há uma ou outra
tonificou literaturas sonolentas, descobriu classes desco- descrição impressionante, lembrando o génio pictórico da
nhecidas, alargou imensamente os horizontes da Europa
literária — quase sempre acompanhado da indignação dos
conservadores. Um dos grandes acontecimentos da h i s t ó - 119) George Moore, 1852-1933.
ria literária inglesa é a tradução dos Rougon-Macquart por A Mummerús Wife (1885); Confessions of a Young Man (1888);
Henry Zizetelly, que foi cruelmente perseguido pelas as- Esther Waters (1894).
Quanto às outras obras de Moore e à bibliografia, cf. "O sim-
bolismo", nota 42.
117) Juhanl Aho (pseudónimo de Juhani Brofeldt), 1861-1921. 120) Camille Lemonnier, 1844 — 1913.
Amor de solteirão (1883); A filha e a mulher do pastor (1885/ Vn Mâle (1881); Thérès Monique (1882); Happe-Chair (1884);
1893; Sstirsas (1891/1900); Panu (1897; Juha (1911). Le Possédé (1890); Claudine Lamour (1893); Adam et Ève
G. Castrén: Juhani Aho. 2 vols., Stockolm, 1922, (1899); Au Coeur frais de la forêt (1900); Le vent dans les mou-
I. Havu: Juhani Aho. Helslnkt, 1929 (em língua finlandesa). lins (1901) etc, etc.
118) Octave Mirbeau. 1848 — 1917. G. Rency: Camille Lemonnier. Bruxelles, 1922.
Sébastien Roch (1890); Le jardim, des supplices (1898); Journal H. Landau: Camille Lemonnier. Essai d'une interprétation de
d'une Jerme de chambre (1900); Les affaires sont les affaires 1'homme. Paris, 1936.
(1903). M. Gauchez: Camille Lemonnier. Bruxelles, 1943.
M. Revon: Octave Mirbeau. Paris, 1924.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2403
2402 OTTO M A B I A CABPEAUX

O mundo mediterrâneo, em que Zola nascera, recebeu


raça flamenga, A esta pertenceu, embora também escre-
o naturalismo com o entusiasmo habitual da gente sulina.
vendo em francês Georges Eekhoud ( m ) , cujos contos da
Até realistas de ideologia menos avançada como Matilde
vida camponesa nos Kempen, região rude perto de Antuér-
Sarao Scarfoglio ( 1 2 4 ), na Itália, e Emilia Pardo Bazán
pia, competem com La Tene pela franqueza brutal e supe-
( 1 2 °), na Espanha, usaram os processos naturalistas para
ram o romance de Zola pela intensa força dramática. O
revelar a miséria alegre de Nápoles e a rudeza da vida cam-
grande romance de Eekhoud, La Nouvelle Carthage, é o
ponesa na Galícia. Há algo do calor mediterrâneo das ruas
documento da evolução da velha Antuérpia provinciana
de Barcelona nos romances do catalão Oller ( 1 2 °), os quais
para porto mundial, centro de riquezas burguesas e misérias
Zola admirava ao ponto de promover traduções para o fran-
proletárias. E m língua flamenga descreveu Buâsse ( 122 ) a
cês, enquanto o contista catalão Ruyra ( 1 2 7 ), menos conhe-
vida dos camponeses, vagabundos e mendigos da proverbial
cido, resiste melhor ao tempo, pela severidade quase clás-
"Flandres pobre", "Arm Vlaanderen", com intenso senti-
sica do seu estilo rústico e pelo profundo sentimento huma-
mento humano — se a sua língua fosse mais divulgada, ele
no que já inspirou, a seu propósito, comparações com os
já seria reconhecido como um dos grandes romancistas rús-
grandes contistas russos. Em geral, os naturalistas medi-
ticos da literatura universal. E na Holanda, cujos purita-
terrâneos não renegam uma veia hugoniana de eloquência
nos não quiseram abrir a porta a Zola, descobriu Heyermans
torrencial e radicalismo romântico. O catalão Bertrana
( 123 ) um ambiente de todo desconhecido, o bairro dos dia-
( 128 ) agitou os seus patrícios menos pelo vigor descomunal
mantistas judeus em Amsterdã, que apresentou em roman-
do seu estilo do que pelas tendências heréticas em maté-
ces e sobretudo em peças teatrais de habilidade notável, em-
ria religiosa e m o r a l ; e o espanhol T r i g o ( 129 ) deveu gran-
bora superficial.
de sucesso de livraria à mistura hábil de erotismo desen-

121) Georges Eekhoud, 1854 —1927.


Kees Dorik (1883); Kermesses (1884); La Nouvelle Carthage 124) Cf. "Advento da burguesia", nota 95.
(1888).
H. Krains: "Georges Eekhoud". (In: Portraits d'écrivains belges. 125) Cf. "Advento da burguesia", nota 94.
Liège, 1930.) 126) Narcís Oller, 1846-1930.
G. Rency: Georges Eekhoud, Vhomme, Voeuvre. Bruxelles, 1942. La papallona (1883); De tots colors (1887); La febre d'or
122) Cyriel Buysse, 1859 — 1932. (1890).
Het Recht van den Sterkste (1893); Schoppenboer (1898); Uit Edição completa por G. Gili, 12 vols., Barcelona, 1928-1930.
Vlaanderen (1899); Van arme menschen (1902); Het leven van C. de Fortuny: "Narcís Oller". In: La novela catalana. Bar-
celona, 1912.)
Rozeke van Dalen (1905); Bolleken (1906); Het volle leven (1908); M. de Montoliú: Prólogo crítico da edição citada. Barcelona,
De Schandpaal (1928). 1928.
D. B. Steyns: De vlaamsche schrijyer Cyriel Buysse. Zijne
wereld en Zijne kunst. Antwerpen, 1911. 127) Joaquin Ruyra, 1858-1939.
H. Van Pulymbrouck: Buysse en zijn land. Antwerpen, 1929. La Parada (1919); Pinya de rosa (1920.)
A. Mussche: Cyriel Buysse. Antwerpen, 1929.
L. Van Deyssel: Verzameld opstellen. vol. V. 128) Prudenci Bertrana, 1867-1941.
S. L. Flaxman: The Dramatic Work of Herman Heyermans. Josa/at (1906); Jol (1925); Vhereu (1931).
New York, 1949. 129) Felipe Trigo, 1865-1915.
Las ingénuas (1901); La Altisima (1907); Las Evas dei Paraíso
123) Herman Hejennans, 1864-1924. (1910) etc.
Scsetsen (1897); Ghetto (1898); Het vevende Gebod (1900); Op M. Abril: Felipe Trigo. Exposición y glosa de su filosofia, su
Hoop van Zegen (1900); Oro et Labora (1903); Diamantstad moral, su arte, su estilo. Madrid, 1917.
(1904); Wereldstad (1908).
2404 OTTO M A R I A CARPEATJX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2405

freado, disfarçado de análises psicológicas, e anarquismo ce de uma prostituta, mereceu bem as traduções para várias
violento, vestido de frases nietzschianas. O cume desse na- línguas. Só recentemente dá-se a atenção devida ao chi-
turalismo sulino é representado pelo espanhol Blasco Iba- leno Baldomero Lillo ( 1 3 3 ), que denunciou as miseráveis
fiez ( 1 3 0 ), anarquista retórico em La Catedral e La Bodega, condições de vida nas minas de salitre. Enfim, são nume-
alcançando sucesso internacional com os efeitos brutais de rosos os naturalistas argentinos: o naturalismo revelou
Sangre y Arena e a propaganda política de Los cuatro jine- sempre gosto especial pelos quadros urbanos, e Buenos Ai-
tes dei Apocalipso. Desde então, a popularidade imensa res era a primeira grande cidade do Continente. Ali, Cam-
de Blasco Ibanes sofreu uma queda brusca e já há quem baceres ( 1 3 4 ), realista moderado, tinha que suportar os es-
lhe negasse todo valor literário. Mas Blasco Ibanes era cândalos devidos aos pioneiros. As obraB de Zola foram
escritor notável enquanto se conservou fiel ao zolaísmo traduzidas pelo jornalista Payró ( 13G ), um dos maiores es-
autêntico: Arroz y Tartana, La Barraca, Canas y barro são critores da Argentina, socialista militante, autor de contos
quadros bem pintados da vida proletária na região de Va- ""gauchescos" de valor permanente. O naturalismo argen-
lência, calor e miséria, superstição e anarquismo. tino alcançou — algo paradoxal — a maior importância nas
Não através da Espanha, mas diretamente da França obras dramáticas de um uruguaio, Florêncio Sánchez ( 1 3 0 ) ;
chegou o naturalismo à América latina, para ali exercer as suas "teses" já envelheceram — naquela época das com-
uma influência profunda e permanente até hoje. J á são na- panhias viajantes com repertório de Ibsen, todo dramatur-
turalistas os assuntos do mexicano Delgado (131)» embora go tinha que expor "teses" — mas não são artificiais: são
tratados com moderação e alguma poesia pós-romântica. O produtos da indignação de um escritor proletário, observan-
grande naturalista do México e o maior naturalista da Amé- do a realidade sul-americana. A técnica dramatúrgica de
rica espanhola foi Gamboa ( m ) , que compensou a franque- Sánchez é primitiva: faz teatro popular. Mas os seus ti-
za do estilo pelas ideias elevadas de reforma social em es- pos continuam vivos, os seus efeitos cénicos ainda empol-
pírito religioso, algo tolstoiano; o êxito de Santa, roman-

133) Baldomero Lillo, 1867-1923.


130) Vicente Blasco Ibafiez, 1867-1928. Sub terra (1904); Sub sole (1907).
Arroz y Tartana (1894); Flor de Mayo (1895); La Barraca
(1898); Entre Naranjos (1900); Canas y Barro (1902); La Ca- 134) Eugénio Cambaceres, 1843-1888.
tedral (1903); La Bodega (1905); La Horda (1905); La Maja Potpourri (1882); En la sangre (1887).
desnuda (1906); Sangre y Arena (1908); Los cuatro jinetes dei 135) Roberto Payró, 1867-1928.
• Apocalipso (1916); Maré Nostrum (1918.) El casamiento de Laucha (1906); Historia de Pago Chico (1908);
O. Pitollet: Vicente Blasco Ibafiez, ses romans et le roman de Las divertidas aventuras dei nieto de Juan Moreira (1910).
sa vie. Paris, 1921. R. Larra: Payró, el hombre y la obra. Buenos Aires, 1938.
J. A. Balseiro: Vicente Blasco Ibafiez, hombre de acción y de
letras. Puerto Rico, 1935. 136) Florêncio Sánchez, 1875-1910.
Whijo el âotor (1903); Canillita (1904); La pobre gente (1904);
131) Rafael Delgado, 1853-1914. La gringa (1904); En família (1905); Los muertos (1905); Barran-
La Calandria (1891); Angelina (1895); Los parientes ricos ca abajo (1905); Nuestros hijos (1907).
(1903). R. Giusti: Florêncio Sánchez, su vida y su obra. Buenos Aires,
132) Federíco Gamboa, 1864-1939. 1920.
Suprema Ley (1896); Metamorfosis (1899); Santa (1903). R. Richardson: Florêncio Sánchez and the Argentine Theatre.
E. Moore: "Bibliografia de obras y crítica de Federico Gamboa". New York, 1923.
(In: Revista iberoamericana, TL, 1940). F. Garcia Estebán: Vida de Florêncio Sánchez. Santiago de
M. Azuela: Cien anos de novela mexicana. México, 1947. Chile, 1939.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2407
2406 OTTO M A R I A CARPEAUX
coube ao romance Aves sin nido, da escritora peruana Matto
gam, a sua arte não é arte, mas verdade. Sánchez morreu de Turner ( 1 3 9 ), no qual se descreveu a opressão dos índios
cedo; as esperanças de um grande teatro argentino não se pelos senhores brancos. Ali estava indicado o futuro do ro-
realizaram. O naturalismo, no entanto, continua num escri- mance naturalista "indo-americano" r u r a l : será o romance
tor descuidado e superficial, mas vigoroso como Manuel de J o r g e Icaza e Ciro Alegria.
Gálvez ( m ) , cuja Maestra normal coloca um dos assuntos
Só para demonstrar a extensão enorme da influência
preferidos do naturalismo internacional no ambiente novo
de Zola, criador de uma nova literatura universal, lembra-
da província argentina; Gálvez foi menos bem sucedido em se o romance naturalista em regiões geograficamente opos-
romances "filosóficos"; mas é notável seu panorama histó- t a s : o tcheco Simácek ( 1 4 0 ), ainda meio realista e senti-
rico de guerra contra o Paraguai. mental, observador "filosófico" da vida burguesa da capi-
A prioridade no naturalismo latino-americano, quanto tal, e outro tcheco, Mrstik ( 1 4 1 ), zolaísta que deu as primei-
à cronologia e com respeito ao valor, cabe ao brasileiro ras descrições objetivas dos bairros históricos de P r a g a ;
Aluísio Azevedo ( 1 3 8 ) ; tem os defeitos de todos os natura- enfim o húngaro Bródy ( 1 4 2 ), que deveu, porém, certo re-
listas menores e é pouco original, um Zola ou antes um Mir- nome internacional às suas peças dramáticas, entre as quais
beau do Rio de Janeiro. Mas os seus romances sugerem a mais conhecida trata o caso, tão caro aos naturalistas, da
até hoje a impressão de "cheios de vida"; e o mérito de ter jovem professora seduzida.
descoberto a vida baixa na capital brasileira dá valor per-
manente a romances que já se transformaram em documen- Os naturalistas fizeram várias tentativas de apoderar-
tos da sociologia histórica. se do teatro. O próprio Zola dramatizou alguns dos seus
romances. No teatro, em que os conflitos ideológicos se
Sociologia histórica: porque as mudanças rápidas na
personificam, a literatura naturalistas parecia encontrar o
vida urbana dos países latino-americanos fizeram envelhe-
meio soberano para exercer a sua função de crítica social. O
cer todos aqueles romances naturalistas; e com efeito não
êxito, porém, ficou duvidoso. A técnica estava pronta: era
foi este o caminho pelo qual a influência de Zola se per-
a do teatro burguês de Augier e Dumas Filho. Mas, ao passo
petuou na América latina, e sim pelo caminho de um novo
que os "naturalistas" da outra "zona" do naturalismo, um
indianismo de tendências sociais. O papel de precursor
Bjoernson, um Ibsen, podiam empregar essa técnica para
criar um teatro moderno, os naturalistas franceses esta-
137) Manuel Gálvez, 1882. vam impedidos de seguir o mesmo caminho: para eles, a
La maestra normal (1914); La sombra dei convento (1917); Na-
cha Regules (1919); Escenas ãe la guerra dei Paraguay (.Los
caminos de Ia muerte, (1928); Humaitá, 1929; Jornadas de
agonia, 1929).
O. H. Green: Manei Gálvez. (in: Hispanic Review, XI/3-4, 1943, 139) Clorinda Matto de Turner, 1854-1909.
e XH/3, 1914). Aves sin nido (1889).
138) Aluízio Azevedo, 1857-1913. 140) Matej Anastas Simácek. 1860-1913.
O Mulato (1881); Casa ãe Pensão (1884); O Homem (1887); O Recordações do estudante Felip Korinek (1892-1896).
Cortiço (1890). 141) Vilém Mrstik, 1863-1912.
Edição por M. Nogueira da Silva, 14 vols., Rio de Janeiro, 1939- Santa Lúcia (1893); Conto de maio (1897).
1941. F. X. Salde: Alma e Obra. Praha, 1931. (em língua theca).
O. Montenegro: "Aluízio Azevedo". (In: O Romance Brasileiro. 142) Sandor Bródy, 1863-1924.
Rio de Janeiro, 1938.) Cabra de Ouro (1898); A Professora (1908); Lea Lyon (1916).
P. Dantas: Aluízio Azevedo. São Paulo, 1954.
Raimundo de Menezes: Aluízio Azevedo. São Paulo, 1958.
2108 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2409
técnica do teatro burguês estava comprometida, degenera-
da em "théâtre de boulevard" de Sardou. Tinham que fi- gou a apresentar um martiriológio humorístico da vida quo-
liar-se à tradição oposta, à da "comédie gaie" que zombou tidiana; e Bourbouroche, sua "grande" comédia, é como
das thèses da comédia burguesa "séria". O mestre da co- a suma de todas as suas experiências cómicas e bastante
média alegre fora Labiche ( 1 4 3 ), criador de cenas de comi- amargas. Courteline não era um "boulevardier" ligeiro. J á
cidade "endiablée", mas sem pensar em crítica social. Esta o compararam a Molière ou, antes, ao Alceste, de Molière.
aparece, como sátira, nos libretos que Meilhac e Halévy As suas situações cómicas resultam da eterna estupidez e
( 144 ) escreveram para as operetas de Jacques Offenbach, maldade inata do género humano. Courteline é pessimista,
paródias geniais do gosto e dos costumes do Segundo Im- incapaz de r i r ; só faz rir os outros, enquanto os seus per-
pério. A posteridade confundiu Offenbach com as fúteis sonagens se irritam e choram com ele.
ou sentimentais operetas vienenses, perdendo-se no esque- Um personagem de Courteline — eis a definição de
cimento o verdadeiro sentido dos textos de Meilhac e Ha- Henri Becque ( 1 4 6 ), tipo de um pequeno burocrata, pos-
lévy: são glosas marginais da obra de Zola; e a música de sesso durante trinta anos da "idée fixe" de se tornar dra-
Offenbach elevou-os ao nível de um delicioso Reino dos maturgo, sofrendo toda a espécie de contrariedades, defen-
Sonhos do Absurdo. A comédia alegre abandonou, depois, dendo-se em polémicas violentas e inúteis, acabando como
todas as ambições literárias, com a exceção singular de pequeno-burguês derrotado e ridículo. Esse Becque era um
Georges Courteline ( 1 4 5 ), conhecedor insuperável da vida grande dramaturgo, o maior da sua época, embora um gé-
burocrática nas repartições públicas, da gente nos tribu- nio malogrado. Les corbeaux, a comédia de negócios em
nais e em torno dos tribunais, dos comissários de polícia e torno das dívidas de um cadáver, seria digna de Ben Jon-
da vida nos quartéis. Courteline apresentou tudo isso em son; e La Parísienne é a única comédia de "triângulo eró-
pequeninas peças de comicidade extraordinária, colocando- tico" que resiste ao tempo: já se tornou um "clássico",
se no ponto de vista do pequeno-burguês parisiense, víti- como as comédias de Molière, porque Becque olha as coisas
ma das chicanas burocráticas por parte de outros pequeno- do amor adulterino nem como bonvivant alegre nem como
burgueses parisienses, investidos de poderes públicos. Che- moralista e propagandista de reformas radicais, e sim com
a serenidade do estóico, achando natural a perversidade do
que se passa no mundo. O pessimismo amargo de Becque
143) Eugène Labiche, 1815-1888.
é fruto das suas convicções dramatúrgicas. É o único na-
Le chapeaw de paille d'Italie (1851); Le voyage de M. Perrichon
(1860), etc. turalista autêntico na história do teatro. Pretendeu apre-
Ph. Soupanlet: Eugène Labiche. Sa vie, son oeuvre. Paris, 1945. sentar no palco as coisas da vida com a mesma franqueza
144) Henri Meihac, 1831-1897, e Ludovic Helévy, 1834-1908. e objetividade como Zola no romance; mas o que êle en-
La Belle Hélène (1865); La Grande Duchesse de Gerolstein
(1867); Périchole (1868); Froufrou (1869), etc.
F. Gaiffe: Le Rire et la scène française. Paris, 1932.
S. Kracauer: Jacques Offenbach und das Paris seiner Zeit. 148) Henri Becque, 1837 — 1899.
Amsterdam, 1947. Michel Pauper (1870); Les honnêtes femmes (1880); Les cor-
beaux (1882); La Parísienne (1885); Les Polichinelles (1900).
145) Georges Courteline, 1858-1929. Edição por J. Robaglia, 7 vols., Paris, 1924/1926.
Lidoire (1891); Messieurs les ronds-de-cuir (1893); Boubouro- A. Got: Henri Becque, sa vie et son oeuvre. Paris, 1920.
che (1893); Les gaites de Vescadron (1895); Un client sérieux A. Arnaoutovitch:vHenri Becque. 3 vols. Paris, 1927.
(1897), etc., etc. L. Iouvet: "La disgrâce de Becque". 'In: Réflexions du Come-
J. Portail: Georges Courteline, humoriste français. Paris, 1928. dien. Paris, 1938.)
A. Dubeux: La curiense vie de Georges Courteline. Paris, 1946.
2410 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2411

controu nos teatros de Paris, era a convenção dramatúrgi- numa convenção, mas por isso mesmo teatro autêntico. Bec-
ca de Scribe, Augier, Dumas fils, Sardou: as thèses insin- que fora inconvencional; um poeta em prosa.
ceras e triviais, as intrigas complicadas que não provam A contradição entre moralismo e determinismo que ha-
nada, mas tem que divertir ou assustar os espectadores, as via em Zola e que impediu à literatura naturalista desem-
"grandes cenas" inverossimeis, os desfechos retumbantes — penhar o seu papel de crítica radical, não podia deixar de
uma série de falsidades cénicas, falsificando a verdade dos gerar um pessimismo profundo, que marca as últimas e
"fatos". Becque pretendeu representar só os "fatos". P o r
maiores obras do naturalismo ocidental: expressões do de-
isso aboliu a thèse, aboliu a intriga, aboliu os desfechos,
sespero, da incapacidade de modificar os desígnios do Fado
deu só um "recorte dramatúrgico da vida real", apresenta-
biológico e económico. Primeiro, esse pessimismo se ex-
do no palco. O público parisiense não gostou; e com certa
prime numa "poetry of despair" — a expressão é usual
razão. Teatro não existe, não pode existir sem certas con-
venções, resultados de um compromisso tácito entre autor entre os críticos ingleses, e sendo essa poesia pessimista
e espectadores, baseado em convinções comuns quanto à contemporânea do decadentismo na literatura francesa e
vida e ao mundo. As convenções do teatro parisiense de em outras literaturas, convém, antes de tudo, distinguir as
1870 eram falsidades; mas eram convenções. Becque não duas correntes. A própria época já distinguiu bem, dando
sabia substituí-las por outras, não era capaz de criar u m ampla repercussão ao decadentismo de Verlaine, Samain e
teatro novo. À arte coletiva, que é o teatro, só deu expres- Rodenbach, e recusando a influência de Laforgue, cuja atua-
sões vigorosas da sua amargura particular, e isso não basta; ção sobre a poesia moderna não começou antes de 1910 ou
pelo menos, não basta no teatro. Talvez bastasse na poesia. 1920. O estilo dos decadentistas é o do simbolismo, ao qual
E foi isso mesmo. Atrás da inabilidade dramatúrgica de pertencem; foi uma evolução — embora os simbolistas o
poeta, revoltado contra a "poesia" falsa das convenções negassem — do estilo parnasiano, enquanto a "poetry of
teatrais. Por isso, as suas comédias não devem ser encara- despair" tem fontes românticas: em Byron, Heine e Scho-
das como sátiras contra a vida real — julgadas assim, se- penhauer, os três autores preferidos de Laforgue, e que
riam bastante triviais — mas como sátiras contra a vida também influíram nos outros "poetas desesperados". Gos-
teatral da época: Les corbeaux, contra a honestidade dos
tam eles de referir-se a Baudelaire, mas não à sua angústia
comerciantes de Augier; La Parisienne, contra o moralismo
religiosa, que ficou então despercebida, e sim ao seu sata-
boémio de Dumas Filho. Em Becque, filho de uma época
nismo e amoralismo. Pois os decadentistas são converti-
de prosa, havia uma saudade secreta de poesia, num teatro
dos ou ficam, pelo menos, às portas da Igreja, enquanto os
que não conhecia outra poesia do que a das peças históri-
cas de Sardou. A convenção teatral parisiense não era ca- ''desesperados" são irreligiosos, livres-pensadores, radicais,
paz de servir de fundamento de um teatro naturalista, por- pequenos-burgueses e intelectuais proletarizados. Os deca-
que se tornara, como já em Scribe, um ' T a r t pour 1'art". dentistas exprimirão a angústia de uma crise econômico-
Fora de Paris não existia essa idolatria da "pièce bien fai- social da burguesia no "fin du siècle". Os "desesperados"
te", da qual Sarcey era o pontífice. A mesma técnica pôde exprimem a angústia dos radicais proletarizados cuja von-
servir aos Bjoerson, Ibsen e Shaw para criar um teatro tade foi quebrada pelo Fado do determinismo; muitos entre
novo, mais artificial do que o de Becque, porque baseado- eles pertencem à boémia, o que revela mais uma vez as ori-
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2413
2412 OTTO M A R I A CARPEAUX
lume de poesias em língua castelhana bastava para um cri-
gens românticas da sua poesia. Os decadentistas consti- tico como Azorin lhe chamar "o maior poeta espanhol do
tuem grupos, "escolas"; os "desesperados" encontram-se século X I X " ; e afirma-se que a variedade inconvencional
num isolamento característico. dos seus metros e ritmos influenciou o nicaraguano Ruben
Quase todos ficaram despercebidos em vida; mas ondas Darío, o renovador da poesia espanhola moderna. Seria
posteriores da "poetry of despair" renovaram-lhes a memó- uma repercussão incrível da modesta poetisa regionalista
ria, reivindicando-os como precursores do desespero do dos Cantares galiegos, romântica da melancólica paisagem
século XX. Desse modo, o grande poeta modernista hún- da Galicia, da "saudade nacional", cantando
garo Ady, hostilizado como revolucionário contra as tradi-
"Qu' a gaita gallega
ções da poesia húngara, chamou a atenção para Vajda ( 1 4 7 ),
Non canta, que chora."
pós-romântico mórbido dos anos de 1870, para obter um
precursor, um ponto de referência no passado. Mas Vadja No fundo dessa poesia de tom popular, tão parecida com
era antes um epígono de Heine e de Byron, ao qual tomou os cantares galiegos de todos os tempos, residem as angús-
emprestada a técnica das novelas em verso; e seria só um tias da alma popular, resíduos de crenças arcaicas da raça
Baudelaire falsificado, se o romance meio doloroso, meio céltica —
grotesco que êle versificou, não tivesse sido a expressão
"Tenho medo d'unha cosa
sincera de uma experiência pessoal, irremediável.
Como um Ariel ao lado desse Caliban oriental aparece que vive e que non se ve" —
a poetisa gallega Rosália Castro ( 1 4 8 ), primeiro poeta da enquanto em En las orillas dei Sar, na língua espanhola,
pequena nação desde os dias da Idade Média, mas grande menos arcaica, o mesmo sentimento encontra expressão mo-
poeta que seria honra para qualquer literatura. O seu vo- derna:
"Inaplicable angustia,
147) Janos Vajda, 1827—1898. hondo dolor dei a l m a . . . "
O romance de Alfredo (1876); Encontros (1877).
M. Rubin: Janos Vajda, Budapest, 1922. (em língua húngara). Rosália Castro é "moderna" no sentido de ter sido con-
G. Foeldessy: "O grande precursor de Ady. Janos Vajda". In:
Novos ensaios sobre Ady. Budapest, 1927). (em língua hkngara). temporânea autêntica da "poetry of despair"; em outro sen-
148) Rosália Castro, 1837-1885. tido, ela é mais moderna do que todos esses "desesperados",
Cantares galiegos (1863); Folias novas (18B0); En las orillas dei porque a sua compaixão de mulher sensível e infeliz com a
Sar (1884).
miséria do seu povo a fêz descobrir os motivos sociais da-
Edição dos Cantares galiegos por F. Herrera y Garrido, 2.a ed.,
Buenos Aires, 1939. quela "inaplicable angustia" no país dos emigrantes e órfãos:
Edição das Folhas novas por F. Herrera y Garrido, Madrid, 1910.
Edição de En las orillas dei Sar por F. Herrera y Garrido, 2.a ed., "Este vaise y aquél vaise,
Buenos Aires, 1941. E todos, todos se van;
J. Vales Failde: Rosália de Castro. Madrid, 1916. Galicia, sin homes quedas
J. S. Prol Blas: Estúdio bibliográfico critico de las obras de Ro-
sália de Castro. Santiago de Compostela, 1917. Que te poidan trabalhar.
A. Santaella Murias: Rosália Castro. Su vida, su obra poética, Tés, en cambio, orfos e orfas
$u ambiente. Buenos Aires, 1940. E campos de s o l e d a d . . . "
L. Carnosa: .Rosália Castro. México, 1946.
L. Pimentel e outros: Siete ensayos sobre Rosália. Vigo, 1952.
J. L. Varela: Pérsia y restauración cultural de Galicia enel siglo
XIX. Madrid, 1960.
2414 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓBIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2415

O s versos brancos e ritmos irregulares de Rosália Cas- " E eu passo, tão calado como a Morte,
tro constituem uma revolução do estilo poético espanhol. Nesta velha cidade tão sombria."
No último livro, em castelhano, da humilde poetisa, cristã Sedu2Ído por Baudelaire — ao qual interpretava mal, assim
até não faltam outros motivos surpreendentes — como todos os seus contemporâneos — Cesário Verde co-
meçou a internar-se no lado feio da realidade, no
" . . . Que soy menos que un átomo leve
Perdido en el universo;
"bairro aonde miam gatas,
Nada, en f i n . . . , y que ai cabo en la nada
E o peixe podre gera os focos de infecção."
H a n de perderse mis restos" —
Mas atrás da fachada naturalista aparecem visões fantás-
revelando a contemporânea autêntica de Laforgue e Trom- ticas —
son B. V.
"Inflama-se um palácio em face de u m c a s e b r e . . . " —
E contemporâneo do seu meio patrício, o português Ce- observadas com rara sensibilidade colorística; sonho e rea-
sário Verde ( 14 °), cujas poesias só se publicaram depois da lidade misturam-se de maneira inextricável, a "velha cidade
sua m o r t e ; e que só em nossos dias encontram a compreen- sombria" transfigura-se em fanal apocalíptico, e o mundo
são devida ao seu génio malogrado. À primeira vista, ele acabaria se Cesário Verde não tivesse a inteligência céptica
também parece um saudosista de velha estirpe, perdido na de um grande prosador analítico que João Gaspar Simões
Lisboa moderna — lhe descobriu, não fosse o naturalista mais autêntico, entre
os poetas, talvez o maior poeta do naturalismo. Se alguém
"Nas nossas ruas, ao anoitecer, se lhe compara, é um poeta brasileiro, que êle influenciou:
H á tal soturnidade, h á tal melancolia, Augusto dos Anjos ( 1 6 0 ), o poeta da "angústia absurda e
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia tragicômica", prejudicado pela forma parnasiana e mais
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer." gravemente prejudicado pelo mau gosto da "linguagem
Mas Cesário Verde era naturalista consciente. Inimigo da científica" dos meiocultos que o provinciano adotou. Admi-
retórica romântica dos seus contemporâneos hugonianos, tindo-se tudo isso, ainda resta mais do que um melancólico
pretendeu cristalizar em versos parnasianos as coisas mais fúnebre, um pessimista furioso o autor de As Cismas do
triviais da vida quotidiana, "os carros d'aluguel" e os "mes- Destino e Último Credo é o poeta mais estranho e mais
tres carpinteiros", os "hotéis da moda", os "dentistas" e original da literatura brasileira.
"as burguesinhas do catolicismo." Acompanhou o gesto O satanismo, "naturalista" em todos os sentidos, do
de Baudelaire, nos Tableaux parisiens: verdadeiro ao falso, chegou a um .cume precoce, nunca su-

149) Cesário Verde, 1855 — 1886.


O livro de Cesário Verde (edlt. por M. J. Silva Pinto, 1901). 150) Augusto dos Anjos, 1884 — 1914.
Nova edição (por Luís de Montalvor). Lisboa, 1945. Eu (1912) .
M. J. Silva Pinto: Introdução da edição citada. Edição: Eu e Outros Poemas (com introdução de O. Soares e
J. G. Simões: "Introdução a Cesário "Verde". (In: O Mistério 29.» ed., Rio de Janeiro, 1963.
da Poesia. Coimbra, 1931). De Castro e Silva: Augusto dos Anjos, poeta da morte e da
L. Am. de Oliveira: Cesário Verde. Novos subsídios para o es- melancolia. Curitiba, 1945.
tudo da sua personalidade. Coimbra, 1944. J. Cretella Júnior: A poesia de Augusto dos Anjos. São Paulo,
C. Cunha: Cesário, poeta moderno. Braga, 1954. 1954.
2416 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2417

perado, nos Chants de Maldoror, de Lautréamont ( 151 )» em que "todo mundo" de Paris aceitou essa visão. "Gar-
pseudónimo de um desconhecido Ducase que acabou, com dez-vous de 1'impression pénible que (ma strophe) ne man-
vinte e quatro anos de idade, não se sabe em que vala comum quera pas de laisser, comme une flétrissure, dans vos imagi-
da Paris revolucionária de 1870. Começou a declamar, dian- nations troublées", advertira Lautréamont; mas já não se
te de um Universo vazio que não o ouviu: " J e me propose, precisava dessa advertência para as "imaginations trou-
sans être ému, de déclamer à grande voix la strophe sérieu- blées" de 1920, quando os dadaístas e, depois, os surrealis-
se et froide que vous allez entendre." Ninguém entendeu tas descobriram a "Epopeia do Mal" naquelas "associações
esse "monólogo frenético de um doido", ninguém prestou livres de u m demónio revoltado", comparando a "grandeur
atenção à sua advertência: "Si quelqu*un a du génie, on le infernale" de Lautréamont à "noche escura" da poesia mís-
fait passer pour un idiot." Parece que Gide foi o primeiro tica. O equívoco é evidente. O satanismo de Lautréamont,
que, por volta de 1905, leu com emoção essas "paroles in- origem romântica, já não tem nada de infernal: Lúcifer
sensées, quoique pleines d'une infernale grandeur", como o tornou-se lugar-comum pouco brilhante, aparecendo num
próprio Lautréamont definiu a sua estranha poesia em cenário de romance "gótico". O que fica é uma emoção pro-
prosa. O que Gide entendeu foi justamente aquilo que Lau- funda em forma não-tradicional, quer dizer, uma poesia su-
tréamont, fingindo-se "froid" e "sans être ému", não quise- bindo das profundidades "imoralistas" do subconsciente e
ra confessar: os motivos psicológicos, a revolta contra as não controlada pela "censura" da inteligência — o que será
convenções familiares, pervertida em revolta contra todas a delícia dos surrealistas. "J'avais entendu des craquements
as convenções e, enfim, contra a convenção da existência de chaines, et des gémissements douloureux"; isso é poesia
do mundo. "J'ai reçu la vie comme une b l e s s u r e . . . J e veux autêntica; mas como grande poesia sempre só será conside-
que le Créateur en contemple, à chaque heure de son éter- rado em tempos de "imaginations troublées". Por enquanto,
nité, la crevasse béante. C e s t le châtiment que je lui in- Lautréamont ainda é objeto de estudos psicanalíticos e te-
flige." Assim como o Ivan Karamasov de Dostoievski, Lau- ses existencialistas. Mas j á se pode prever o dia em que
tréamont não aceitou "o bilhete de ingresso para o mundo". será novamente esquecido; e ainda será, várias vezes, re-
Pretendeu destruir a criação por uma enchente de sarcas- descoberto.
mos fúnebres; e cinquenta anos mais tarde chegou o dia Também já foi redescoberto Tristan Corbière ( l w ) ,
"poete maudit" que começou como anti-romântico e evoluiu,
com coerência quase maníaca, para antipoético, negando o
151) Comte de Lautréamont (pseudónimo de Isidore Ducasse), 1846- lirismo e negando a própria literatura. Seu humorismo sel-
1870. vagem e blasfemo não esconde, antes "intensifica a emoção.
Les Chants de Maldoror (1869).
Edições por Ph. Soupault, Paris, 1927; por E. Jaloux, Paris, 1938;
A. Breton, Paris, 1938.
L. Pierre-Quint: Le comte de Lautréamont et Dieu. Paris, 1930.
E. Jaloux: Prefácio da edição citada. 152) Tristan Corbière, 1845-1875.
A. Breton: "Introdução" da edição citada. Les amours jaunes (1873; 6.a ed., Paris, 1951).
Q. Bachelard: Lautréamont. Paris, 1939. R. Martineau: Tristan Corbière, Essai de biographie et de bi-
Ph. Soupault: Lautréamont, Paris, 1946. bliographie. 2 ed., Paris, 1925.
M. Jean e A. Mezei: Maldoror. Essai sur Lautréamont et son A. Arnoux: Tristan Corbière. Paris, 1930.
oeuvre. Paris, 1947. J. Trigon: Tristan Corbière. Paris, 1950.
M. Blanchot: Lautréamont et Sade. Paris, 1949. J. Rousselot: Tristan Corbière. Paris, 1951.
2418 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2419

A expressão deliberadamente antiliterária aproxima-se da sistes" a preferência do melancólico moribundo pelas más-
fala coloquial, que foi, nos anos de 1920, o ideal da nova caras e fantasias do carnaval. Laforgue, muito influencia-
poesia inglesa. Com efeito, Corbière é mais considerado na do pelo lied alemão, sabia perfeitamente afrancesar e lati-
Inglaterra do que na França. O que também foi, por mo- nizar essa influência; depois, serão laforguianas as melan-
tivos semelhantes, o destino póstumo de Jules Laforgue cólicas tardes de domingo belgas de Georges Rodenbach e
( 1 5 3 ), certamente o maior dos "desesperados" e algo mais as máscaras de carnaval italianas de Gozzano e tantos ou-
do que isso. Porque existem pelo menos três Laforgues di- tros. Eis Laforgue, o sentimentalista irónico, o poeta me-
ferentes: o pessimista, o desesperado e o modernista. nor que impressionou profundamente o decadentismo eu-
ropeu. E às vezes, em UHiver qui vient, quando o pavor
"Un couchant des Cosmogonies! do doente diante do frio lhe arranca o verso —
A h ! que la vie est q u o t i d i e n n e . . . " " C e s t la saison. Oh déchirements! c'est la saison!" —
verso que lembra "la morte saison" de Villon, então o poeta
Nestes dois versos, os vários aspectos da poesia de Lafor- menor torna-se "maior", permanente. Enfim, há um tercei-
gue estão reunidos. No primeiro verso revela-se um últi- ro Laforgue; aquele que juntou as "Cosmogonies" e "la
mo byronista, que já leu muito Schopenhauer e mais Eduard vie quotidienne" em dois versos vizinhos. É o Laforgue que
von H a r t m a n n ; o Laforgue das visões apocalípticas de sabe ver os mistérios do mundo atrás das coisas triviais da
L'Impossible, dos filosofemas de VEternel Féminin e do vida quotidiana e falar dos "abimes" na linguagem coloquial
Hamlet. Um pós-parnasiano, pessimista como os parnasia- d e todos os dias. O discípulo de Eduard von Hartmann ale-
nos, superior a eles e ao próprio Lautréamont pela consciên- gou como fonte dessas inspirações o subconsciente; no so-
cia irónica, pelo humorismo. O segundo verso revela um nho aparece a mesma mistura. Assim, Laforgue falava na
grande poeta "menor", o "fantaisiste" entre os intelectuais língua simbólica do sonho, em alusões e associações livres,
proletarizados e tuberculosos. O poeta dos "dimanches", sem coerência lógica, chegando a quebrar a sintaxe e mé-
da melancolia dos domingos quando os deserdados da sort trica tradicionais, criando o verso livre e a linguagem poé-
sentem "toute la misère des grands centres"; o poeta do tica dos surrealistas, de T. S. Eliot e dos modernistas ame-
ressentimentos e invejas, ouvindo os "pianos qu'on enten ricanos.
dans les quartiers aisés". De Heine vem a sua maneira d A ambição da "poetry of despair" de transformar em
ironizar a doença que o minava; e será de todos os "fantai poesia a filosofia da época só foi plenamente realizada por
Eminescu (154)> o único poeta universal da literatura rume-
na. Tinha feito estudos extensos no .estrangeiro; desligou-
153) Jules Laforgue, 1860-1887. se da fraseologia liberal da qual os latifundiários, a classe
Les Complaintes (1885); Demiers vers (edit. por E. Duj dirigente da Rumânia, abusavam em seu próprio proveito;
e F. Fénéon, 1890) .
Edição por G. J. Aubry, 4 vols., Paris, 1924/1925.
O. Mauclair: Jules Laforgue. Paris, 1896.
F. Ruchon: Jules Laforgue, sa vie, son oeuvre. Paris, 1924. 154) Mihail Eminescu, 1850 — 1889.
J. Cusinier: Jules Laforgue. Paris, 1925. Poesii (1880, 1885, 1890); Prosa si versuri (1890).
L. Guichard: Jules Laforgue et ses poésies. Grenóble, 1950. J. Scurtu: Eminescus Leben und Prosaschriften. Leipzig, 1903.
W. Ramsey: Jules Laforgue and the ironic inheritance. Oxfo G. Ibraileanu: Prefácio da edição das poesias. Bucaresti, 1930.
1953. T. Viann: Poezia lui Eminescu. Bucaresti, 1930.
P. Reboul: Jules Laforgue. Paris, 1961. G. Calinescu: Mihail Eminescu. Bucuresti, 1932.
2420 OTTO MARIA CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 2421

aderiu, como jornalista, à "Junimea", o movimento dos in- pair": intelectual paupérrimo, sufocado pelo determinismo
telectuais oposicionistas, quer dizer, conservadores. O poe- económico e entregando-se ao determinismo biológico do
ta adquirira imensa cultura de autodidata, literária e filo- álcool. O seu grande poema The City of Dreadful Night,
sófica. Gostava muito de Heine e Gautier. O "seu" filó- expressão do pessimismo schopenhaueriano e do ateísmo
sofo era Schopenhauer, o que já basta para classificá-lo radical, sofreu as apreciações mais divergentes: seria mera
como "poet of despair". Conseguiu o que nenhum outro eloquência, vigorosa mas pseudof ilosóf ica, de um romântico
poeta europeu conseguiu: transformar em poesia pessoal perturbado, ou então um dos grandes poemas filosóficos
os termos do filósofo. Em Dionis transfigurou a ideia de da literatura inglesa, comparável ao Essay on Man de Pope,
que a vida é um momento de sonho perturbado entre as har- Excursion de Wodsworth, e Alastor de Shelley. Os admi-
monias da não-existência; o homem é criatura supérflua radores de Thomson gostam de elogiar a City of Dreadful
nessa fantasmagoria de universos imaginários e tem que Night às despesas do In Memoriam de T e n n y s o n ; os outros
desaparecer da face da terra condenada (Glosa). No deses- consideram-no, quando muito, como idilista rústico, popu-
pero extremo, o conservador Eminescu conservou só uma lar, errando nos labirintos de u m género falso. — A com-
fé: no valor da sua raça latina, embora também condenada paração com Hardy é evidente exagero.
a desaparecer num mundo hostil de eslavos (Rugaciunea O maior defeito de Thomson talvez seja a sua forma:
unui dac). Eminescu equivocou-se quanto às origens lati- a métrica tradicional, algo mecanicamente empregada. La-
nas do seu "racismo"; resíduos de crenças arcaicas eslavas forgue salvou-se pelo verso livre, aproximando-se da prosa;
ressuscitaram nas visões fantásticas do seu ocultismo fi- e Cesário Verde teria mesmo sido, conforme João Gaspar
losófico ; visões que o fizeram acabar na loucura. Na litera- Simões, u m espírito essencialmente prosaico. Assunto e
tura rumena, a figura impressionante de Eminescu sufocou, intenção da "poetry of despair" exigiram a prosa. Só na
por muito tempo, tudo o que não era pessimismo pós-român- prosa era possível exprimir exatamente o problema que an-
tico. Só decénios depois descobriu-se no arcaísmo rústico gustiava os "radicais": a contradição entre o radicalismo
da sua língua outra fonte de poesia moderna. das reivindicações e o determinismo das condições. Daí a
A repercussão europeia de Eminescu foi impedida, ape- importância do romance pessimista e até fatalista na época;
sar de muitas traduções, pela divulgação reduzida da sua e o aparecimento, ao mesmo tempo, de figuras tão extraor-
língua. Mas não foi só isso. A resistência instintiva do pú- dinárias como Verga, Pérez Galdós e Hardy. Nestes reve-
blico e da crítica contra toda poesia coerentemente pes- la-se com a maior nitidez a relação entre capitalismo e pes-
simista também se manifesta no destino do Eminescu in- simismo que é o fato fundamental da literatura de 1870.
glês, James Thomson ( 1 0 8 ), o mais típico dos "poets of des- O Fado moderno está presente, na obra de Zola, mas
não o fatalismo; o descendente de H u g o sempre conservou
155) James Thomsom 1834 — 1882. algo da confiança definitiva nos "grandes princípios" li-
The City of Dreadful Níght (1874); Poems (1880). bertadores; e acabará como profeta do otimismo social. O
Edição por B. Dobell, 2 vols., London, 1895.
S. T. Dobell: The Laureate of Pessimism. London, 1910. fatalismo surge da ausência de esperança da vida boémia,
H. S. Salt: The Life of James Thomson. 2.a ed. London, 1914. primeiro em Huysmans ( 1 5 6 ), cujos romances Les soeurs
I. Walker: James Thomson, B. V. a Criticai Study. Ithaca, 1950.
(Thomson é geralmente citado como Thomson B. V., conforme
o seu pseudónimo ocasional Bysshe Vanolis, para distingui-lo
do seu hormônimo, o poeta das Seasons, do século XV111). 156) Cf. "A conversão do naturalismo", nota 106.
2422 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2423

Vatard e A vau-Ieau pressagiam a mentalidade, se t e m não é estudado pelos especialistas em psicopatologia, como in-
a arte de Maupassant. teressante caso de alucinação angustiada. No resto, o nome
A nossos avós e pais, Maupassant ( 157 ) parecia o sím- de Maupassant já não consta das discussões literárias. "La
bolo da Paris de 1880: da cidade dos prazeres eróticos mais Maison Tellier", "Les Soeurs Rondoli", "Monsieur Parent",
requintados, do luxo da "jeuness edorée", dos divertimentos "Miss Harriet", " E n Famille", "Une partie de campagne",
escandalosos do Príncipe de Gales; saudade íntima dos bur- Sur Veau e t c , etc. — quantas obras-primas! — todos esses
gueses abastados de todos os países, de vacâncias matrimo- contos só são lidos, em edições baratas, por leitores menos
niais. As edições e traduções baratas de Maupassant — exigentes. A releitura surpreende, porém; eis um contista
nas ilustrações aparecem "élégants" de bigode, cartola e de mestria singular, talvez o maior desde Boccaccio e Cer-
bengala e senhoras do "demimonde" com cintura de vespa vantes. E aquele conto "Sur l'eau" revela um grande escri-
e chapéus enormes — perpetuam até hoje essas ilusões agra- tor trágico. Maupassant não é o miniaturista dos prazeres
dáveis de "bons velhos tempos". Quando o alegre e elegan- animais; agora, uma tristeza infinita irradia das suas pá-
te Maupassant morreu louco, os moralistas levantaram o ginas variadas, a monotonia do "post coitum omne animal
dedo da sabedoria, advertindo gravemente a mocidade; triste". Maupassant parece muito variado: tratando-se das
hoje, os seus contos "imorais", tendo perdido muito do an- aventuras cómicas ou tragicômicas da "jeunesse dorée",
tigo encanto de frutos proibidos, já são ousados como li- das misérias da boémia, da vida dos remadores ao ar livre,
ções de bom estilo francês para os colegiais do Sion; e da estupidez desgraçada dos burocratas e pequenos-burgue-
Maupassant afigura-se, a muitos, tão antiquado como aque- ses, da avareza e obstinação dos camponeses normandos —
les bigodes e chapéus. Um dos seus contos, o primeiro, "plus ça change, plus c'est la même chose". Maupassant é
aquele que mais ofende as bienséances burguesas, "Boule divertidíssimo, mas monótono. Não tem muita cultura. Sua
de suif", entrou no rol da sobras clássicas, com todas as inteligência está limitada pelos limites algo estreitos da sua
honras oficiais. Um dos seus últimos contos, "Le Horla", experiência humana. Por isso, prefere os personagens sim-
ples e simplistas, os motivos, mais evidentes, os enredos
157) Guy de Maupassant, 1850 — 1893. ligeiros. Dos seus defeitos construiu Maupassant a mestria
Boule de Suif (1880); Maison Tellier (1881); Une vie (1882); da sua técnica. Maupassant é o criador da "short story", ca-
Contes de la Bécasse (1883); Mile. Fifi (1883); Clair ãe lune
(1884); Au soleil (1884); Les soeurs Rondoli (1884); Yvette racterizada por uma ou duas viravoltas bruscas que dão o
(1885); M. Parent (1885); Contes âu jour et de la nuit (1885); efeito infalível. Nesta técnica, Maupassant é mestre inigua-
Bel-Ami (1885); La petite Roque (1886; Mont-Orlol (1887); Horla
(1887); Le rosier de Mme. Husson (1888); Sur Veau (1888); Pierre lado; e não é uma técnica mecânica. Não serve só para sur-
et Jean (1888); Fort comme la mort (1889); Notre coeur (1890); preender o leitor, mas também para irritar certos leitores.
Inutile beauté (1890).
Edição por L. Couard, 29 vols., Paris, 1908/1910. O boémio Maupassant pretende "épater le bourgeois", assim
E. Maynial: La vie et Voeuvre de Maupassant. Paris, 1919. como seu padrinho e mestre Flaubert. No seu primeiro con-
G. Lacaze-Duthiers: Guy de Maupassant. Paris, 1926.
R. Dumesnil: Guy de Maupassant. Paris, 1933. to, "Boule de Suif", os burgueses são, em face do inimiga
B. Croce: "Maupassant". (In: Poesia e non poesia. 2.a ed. Bari, invasor, os covardes, e a prostituta é a patriota heróica; e
1936.)
R. Dumesnil: Guy de Maupassant. Paris, 1947. logo depois, em "Maison Tellier", o bordel é o lugar "fashio-
Fr. Steegmuller: Maupassant. London, 1950. nable" da pequena cidade normanda e o ponto de encontro
K, Togeby: Voeuvre de Maupassant. Kjoebenhavn, 1954.
E. D. Sullivan: Maupassant the Novelist. Princeton, 1954. dos cidadãos mais honrados. Em Flaubert aprendeu Mau-
G. Halperin: Maupassant der Romancier. Zuerlch, 1961.
R. Barthès: Maupassant. Paris, 1961.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2425
2424 OTTO M A R I A CABPEAUX

Mas já se vê que Maupassant não é propriamente na-


passant — conforme a sua própria confissão — a observaç
turalista. É o mais "natural" dos realistas. É pessimista
exata dos fatos exteriores e a tradução exata das impressfi
porque é observador agudíssimo ao qual a realidade obser-
visuais para a língua. O seu naturalismo é uma teoria e pr
vada enche o espírito, a realidade toda, de todas as coisas
tica da superfície das coisas: sejam as superfícies epidénnl
e da existência humana inteira: observação de que não
cas de amores fáceis, seja o jogo das luzes na superfície â(fl
pode resultar outra filosofia. Mas a época ligava essa arte,
águas do Sena, seja a superfície psicológica de pequeno»,
paradoxalmente ao jornal humorístico. O nome de Mau-
burgueses parisienses ou camponeses normandos que s t passant está ligado à "Vie parisienne" que lhe perpetuou
compõem de um material homogéneo somente; estupidez ofl a maneira. Trabalho e êxito de Maupassant eram ou pare-
avareza. O materialismo de Maupassant não é, como o de ciam fáceis mas era preciso escrever muito para viver. A
Zola, uma filosofia, mas uma maneira espontânea de ver o elegância e os amores de Maupassant não foram pagos com
mundo, uma visão poética — Benedetto Croce chegou a con- dinheiro herdado. O boémio Maupassant só se deu ares de
siderar Maupassant como poeta. Daí a frescura dos seus qua 'jeunesse dorée"; na verdade, foi um pequeno intelectual,
dros, sobretudo quando se trata da vida puramente animal trabalhando duro, radical no materialismo da falsa elegân-
como dos remadores. O seu contemporâneo Matthew Ar- cia e no fatalismo desesperado.
nold, se tivesse tomado conhecimento do contista francês,
A relação entre boémia e radicalismo é evidente com
teria ficado horrorizado com a falta de "high seriousness",
respeito ao "verismo" italiano. Pela primeira vez na sua
que foi para êle o critério dos "clássicos". Justamente por
história literária, a Itália contou com uma boémia, por as-
isso é Maupassant o "clássico" do materialismo literário. O
sim dizer organizada: a famosa "Scapigliatura" ( 1 B 8 ), cír-
romântico desse materialismo seria o outro grande contista
culo de poetas, pintores e músicos na Milão de 1860 e 1870,
da literatura universal, Kipling: mesma espontaneidade,
imediatamente depois da libertação e unificação da Itália.
mesmo gozo do corpo ao ar livre — mas para Kipling é tudo
Milão era a primeira cidade moderna, burguesa e industrial,
isso uma disciplina a serviço de um ideal patriótico, en-
da península; a primeira na qual os artistas se viam redu-
quanto Maupassant não tem ideal algum; senão o ideal li-
zidos a uma condição fora da sociedade. Desilusão e deses-
terário de observar e reproduzir fielmente a realidade, que pero refugiaram-se numa vida irregular de deboche — qua-
é tão triste. Maupassant é profundo na superficialidade, se todos os membros da "Scapigliatura" acabaram alcoóli-
porque reconhece o "sem fundo" da superficialidade, o va- cos, tuberculosos ou suicidas. De um estilo comum não se
zio desta vida corporal, só prazer, sempre o mesmo prazer; pode falar, senão num pós-romantismo vago, entre Musset
e, enfim, a destruição fatal. A angústia do desfecho. Mau- e Laforgue. Uniu-os a aversão contra o classicismo retórico
passant sempre vira o fantasma do Nada atrás das luzes de Carducci e a hostilidade contra as condições políticas
impressionistas. Ê um dos escritores mais tristes da lite- e sociais do novo reino: tinham sonhado com uma Itália utó-
ratura universal: construtor de uma verdadeira "physique pica, paraíso da liberdade republicana e das artes como na
du "Matheur"; embora com uma secreta nostalgia de saú- Renascença; e encontraram-se numa sociedade de comer-
de mediterrânea o destino fê-lo adoecer e morrer justa-
mente na Riviera: o primeiro fatalista desesperado entre
os naturalistas.
158) P. Nardi: La Scapigliatura. Bologna, 1924.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2427
2426 OTTO M A R I A CARPEAUX

Quando Camerana se suicidara, sobreviveu só um, o úl-


ciantes e num Estado que se apoiava na polícia. O primei-
timo "scapigliato", perdido como um bloco errático no sé-
ro impulso dos boémios foi passadista: retrospectiva histó-
culo X X : Cario Dossi ( l c a ) . Com vinte e um anos de ida-
lica para compreender as causas da decepção. Foi o que
de, tirara a suma da sua existência literária malograda es-
empreendeu Rovani ( 1 5 a ), escrevendo nos Icento anni a
crevendo a autobiografia Vita di Alberto Pisani; desapare-
história de Milão entre 1750 e 1850. Mas a inquietação do
ceu, depois, no anonimato de uma honrosa carreira diplomá-
boémio prestava mal para realizar o que, nestes mesmos
tica, terminando a vida na solidão da aldeia de Dosso, sobre
anos, realizou com êxito maior o espírito tradicionalista do o lago de Como. Na literatura de voz alta de Carducci não
revolucionário Ippolito Nievo. A atmosfera da "Scapiglia- havia lugar para a prosa de surdina de Dossi, poesia inti-
tura" era lírica. Afirmam que o pintor Emilio Praga (1(5()) mista das mais finas e também das mais estranhas da lite-
teria sido um grande poeta lírico se o álcool não o tivesse ratura italiana: série de fragmentos de observações de um
destruído cedo; é sempre difícil verificar essa afirmação, desenhista — e caricaturista — de tipos populares, com um
tão frequente na história da literatura universal. Outro grande coração para com os humildes e as crianças. Dossi
"scapigliato", Tarchetti ( 1 0 1 ), morrendo de tuberculose com era, pelo menos no que escreveu, uma personalidade meio
vinte e oito anos de idade, deve a pálida fama a um soneto patológica. O seu exemplo iniciou a época do "fragmentis-
"Eli' era cosi fragile", que os moços decoraram, justamen- mo", da dissociação das obras e das personalidades literá-
te porque Carducci o estigmatizou como "cume de fraque- rias na Itália — há em Dossi algo de pirandellesco. Há
za moral e depravação estilística". Em compensação, mais quem o classificasse como precursor do futurismo. Outros
do que um soneto sobrevive de Giovanni Camerana ( 1 M ) , críticos, porém — Cario Linati dedicou-lhe páginas ines-
que sobreviveu, por sua vez, trinta anos à "Scapigliatura", quescíveis em Sulle orme di Renzo — adivinham na inquie-
saindo enfim de um mundo já diferente pelo suicídio. Ca- tação do solitário Dossi um eco da angústia do solitário
merana era um parnasiano autêntico; alguns dos seus so- Manzoni e no eremitério de Dosos sobre o lago de Como
netos eternizam com perfeição notável as cidades e paisa- um último asilo do autêntico espírito lombardo na época
gens do Piemonte. da industrialização brutal. Talvez todos os "scapigliati"
fossem pequenos intelectuais provincianos, perdidos na ci-
dade. Pelo menos explica isso a presença, entre eles, dos
159) Giuseppe Rovani, 1818 — 1814. futuros veristas sicilianos.
I cento anni (1859/1864).
B. Croce: "Giuseppe Rovani". (In: La Letteratura delia Nuova Os críticos estrangeiros sempre consideraram o "veris-
Itália. Vol. I. 3.a ed. Bari, 1929). mo" como a forma italiana do naturalismo, pouco mais do
160) Emílio Praga, 1839 — 1875.
Tavalazza (1B62); Penombre (1864); Poesia postume (1877).
A. Canilli: Uopera poética di Emilio Praga. Milano, 1907. 163) Cario Dossi (pseudónimo de Alberto Pisani Dossi), 1843-1910.
161) Iginio Ugo Tarchetti, 1841 — 1869. Vita di Alberto Pisani (1870); Ritratti umani (1879); Gocce
Disjecta (1879). ã'inchiostro (1879); Amori (1887).
B. Croce: "Iginio Ugo tt Tarchetti". (In: La Letteratura delia Edicáo por G. P. Lucinl, 2 vols., Milano, 1910/1911.
Nuova Itália. Vol. I. 3. ed. Bari, 1929.) G. P. Lucini: L'ora tópica di Cario Dosai. Varese, 1911.
162) Giovanni Camerana, 1845 — 1905. C. Linati: Sulle orme di Renzo. Roma, 1919.
Verst (1907). B. Croce: "Cario Dossi. (In: La Letteratura delia Nuova Itá-
B. Croce: "Giovanni Camerana". (In: La Letteratura delia lia. Vol. Hl. 3.» ed. Bari, 1929.)
Nuova Itália. Vol. I. 3.a ed. Bari, 1929).
2428 OTTO MARIA CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2429
que uma variedade ligeiramente diferente do zolaísmo: des- sição para a economia moderna, como campo de observação
crição minuciosa da vida nas províncias primitivas da Itá- do "romance experimental". 17 marchese di Roccaverdina
lia, com ênfase sobre cenas brutais da vida instintiva e am- seria, então, a obra máxima do verismo; mas é só o estudo
bições de análise psico-fisiológica e sociológica. Quando de um "caso" à maneira de Zola, estudo algo falsificado
uma das obras-primas do verismo, a novela "Cavalleria rus- pelas tendências de Capuana, democrata meio socialista,
ticana" de Verga, percorreu o mundo, como libreto da ópe- meio pacifista, como então todo mundo foi na Itália. Ca-
ra de Mascagni, admitiu-se mais um elemento característi- puana tornou-se muito popular na sua pátria; a sua litera-
co: certo romantismo exótico, mais ou menos à maneira tura correspondia ao gosto médio.
como mais tarde o cultivará Blasco Ibanez. Se fosse só Conservar-se fiel à objetividade exigida pela teoria ve-
isso, o verismo merecia a pouca atenção que o público e a rista foi a ambição de Verga ( lfl8 ), embora os seus come-
crítica europeias lhe dedicaram. Os críticos italianos, ad- ços não deixassem adivinhar aquele realismo severo. O jo-
mitindo a influência de Zola e da teoria científica ou psedo- vem Verga, estudante e literato em Milão, era "scapigliato",
científica do romance, reivindicaram, no entanto, uma po- cheio dum romantismo meio febrilmente erótico, meio sen-
sição singular do verismo (1C1) dentro da literatura natura- timental e decadente. Os seus primeiros romances são imi-
lista : salientaram que o naturalismo zolaísta é, por índole, tações — parece quase incrível — de Feuillct. Essa fase
urbano, enquanto o verismo é produto da Sicília, da paisa- de Verga nem será capaz de interessar os especialistas. Vol-
gem mais arcaica da Itália; e descobriram-lhe, distancian- tou, depois, para a ilha natal, tornando-se exemplo vivo da
do-o da falsidade romântica de Mascagni, traços de grande- teoria naturalista: recebeu as influências mesológicas como
za antiga. O ponto fraco dessa distinção é que ela não se um impacto, mudou completamente de estilo, escreveu os
aplica bem ao verismo em conjunto, senão nos aspectos primeiros contos realistas da vida sicillana. "Realistas",
exteriores. A grande exceção, de verdade, é Verga, que não porque a maneira de ver é antes a de Balzac do que a
pertence à região de Zola e sim à de Maupassant, Pérez Gal- de Zola; todos os grandes "fatalistas" do naturalismo reve-
dós e Hardy.
A teoria do verismo foi esboçada por Luigi Capuana
166) Giovanni Verga, 1840 — 1922.
( i e 5 ), teoria todo zolaísta na verdade: as condições espe- Una peccatrice (1866); Eva (1873); Primavera ed altri racconti
ciais da Sicília, província do feudalismo atrasado em tran- (1877); Vita dei campi (1880); / Malavoglia (1881); Novelle rua-
ticane (1883); Cavalleria rusticana (1884); Mastro don Gesualdo
(1888).
Edição por L. Russo, 12 vols., Bari, 1939/1953.
164) L. Russo: / narratori. Roma, 1923. L. Russo: Giovanni Verga. Napoli,. 1920. (.* ed. Bari, 1943).
P. Arrighi: Le vérisme ãans la prose narrative italienne. Paris, A. Momigliano: Giovanni Verga narratore. Palermo, 1923.
1937. B. Croce: "Giovanni Verga". (In: La Letteratura delia Nuova
N. Sapegno: Compendio di storia delia letterature italiana. Fi- Itália. Vol. m . 3.tt ed., Bari, 1929.)
rense, 1947. G. Ragonese: Giovanni Verga. Studio critico. Roma, 1931.
Th. Goddard-Bergin: Giovanni Verga. New Haven, 1931.
165) Luigi Capuana, 1839 — 1915. M. Fusco: Vopera di Giovanni Verga. Calunia, 1034.
Giacinta (1879); La sfinge (1897); II Marchese di Roccaver- M. Bontempelli: "Giovanni Verga". (In: Nuova Antologia,
dina (1901), etc. 1940, X.)
A. Pellizzari: II pensiero e Varte di Luigi Capuana. Napoli, E. De Michelis: L' Arte dei Verga. Firenze, 1941.
1919. D. Garrone: Giovanni Verga. Firenze, 1914.
P. Vetro: Luigi Capuana. La vita e le opere. Catania, 1922. N. Cappellani: Opera di Giovanni Verga. Firenze, 1948.
E. Scalla: Luigi Capuana anã his Times. New York, 1952. G. Santagelo: Storia delia critica verghiana. Firenze, 1956.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2431
2430 OTTO M A R I A CABPEAUX

Iam filiações pré-zolaianas: Verga e Pérez Galdós filiam- apiedando-se da miséria da "povera-gente", da qual virou o
se a Balzac, Maupassant a Flaubert, Hardy à tradição do trovatore estranho; cheio de compaixão e simpatia huma-
teatro elisabetano e ao realismo sensacionalista de W i l k i e na, como os grandes escritores russos; mas colocado acima.
Collins. Com Hardy, Verga tem em comum o regionalismo e Daí o realismo imperturbável, clássico. E também é "clás-
o pessimismo que vê nos instintos humanos, bestiais, a fonte sica" a tristeza infinita de Verga sob o céu da Sicília e em
de todos os males do mundo. Escreveu contos da vida rús- face do mar jónico: lembra antes a representação das tra-
tica, como os de Maupassant, mas a técnica é menos ele- gédias gregas nessa mesma paisagem, nos teatros de Sira-
gante e mais concisa: "Cavalleria rusticana", "La lupa", cusa e Taormina. Em todas as obras de Verga há a dialéti-
"Rosso Malpelo" lembram antes a Mérimée. Contudo, Ver- ca trágica entre a vontade humana e a fatalidade das coisas.
ga é superior aos franceses com respeito à análise socioló- Seu fatalismo é o estupor religioso do homem antigo pe-
gica do ambiente. Sobretudo no maior conto de Verga, rante o F a d o ; não importa o que esse Fado decreta — no
"Jeli il pastore", fica clara a relação entre a bestialidade caso, o fim do feudalismo e dos seus "heróis" sangrentos e
dos homens e o feudalismo decadente, que constitui o fun- sujos. Não é outro o assunto da O réstia: o Fado resolve
do dos dois grandes romances de Verga: / Malavoglia, his- acabar com a lei dos antepassados. Verga sabe que essa lei
tória da ruína económica de uma família de marinheiros; não era boa; e se a nova lei, a dos burgueses, não é melhor,
e Mastro don Gesualdo, história de um nouveau-riche ple- a culpa será do poeta? Ao fatalismo só resta uma solução:
beu, arruinado pelo casamento de sua filha com um aristo- contemplar calmamente os ricorsi da história. Deste modo,
crata. Esses romances dão testemunho de um pessimismo Verga contou suas histórias; e depois envolveu-se, durante
desesperado: o céu azul da Sicília parece tão negro como mais de trinta anos, num silêncio desdenhoso, até a morte.
a fumaça sobre os bulevares noturnos de Maupassant e a Em nossos dias, valor e glória de Verga não cessaram
neblina sobre a planície de Wessex de Hardy. Verga dis- de crescer: toda a ficção italiana moderna, o neo-realismo
tingue-se, porém, pela arte novelística, incomparavelmente dos Moravia e Vittorini, Berto e Brancati, Pratolini, Ber-
superior à de Maupassant e de Hardy. Verga é, entre os nari e Arfelli, é de origem "verghiana". Mas não o tinham
naturalistas, o maior artista, pela sobriedade do estilo, lapi- compreendido assim os contemporâneos daquele longo si-
dário e elíptico, e pelo rigor clássico da composição. Con- lêncio. Surgiram equívocos em torno da sua obra mal co-
siderando-se a substância grega, permanente desde dois mi- nhecida. Alguns teimaram em interpretá-la como mera aná-
lénios, da vida siciliana, o regionalista da Sicília não pode lise sociológica; outros só viram a superfície pitoresca do
deixar de ser um clássico. J á foi chamado de "Teócrito da assunto regionalista. Aquela interpretação prevaleceu na
decadência moderna" — o seu lirismo triste justificaria isso Itália, e levou Federico De Roberto ( lfl7 ) à tentativa, nos
— ou então "Homero da Sicília moderna", e à sua obra I vice-re, da apresentação novelística da história social da
"Odisseia dos plebeus". Nessa comparação com Homero e
nessa alusão aos plebeus reside, realmente, a particularida-
de de Verga. Não é, como Zola e outros naturalistas oci-
dentais, u m intelectual pequeno-burguês, colocado num 167) Federico De Roberto, 1866-1927.
1 vice-re (1893).
mundo proletarizado e recorrendo a experiências autobio- B. Croce: "Frederico De Roberto". (In: ha hetteratura delia Nuo-
gráficas. Verga é um gentiluomo, um aristocrata siciliano, va Itália. Vol, VI. Bari, 1940.
G. Mariani: Frederico De Roberto, narratore. Roma, 1950.
V. Spinazzola: Fredico De Roberto e il verismo. Milano, 1961.
2432 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2433

Sicília, obra que ficou durante muito tempo esquecida, mas trema velhice, a glória tardia de Hardy, feita pelos críticos
é agora reabilitada como poderoso romance épico. A segun- franceses e negado até hoje ao espanhol; e é preciso acres-
da interpretação, a regionalista, venceu no estrangeiro: con- centar que a sua fama nem de longe pode competir com a
fundiram Verga com os efeitos brutais, as canções e danças de Maupassant. Mas Pérez Galdós é o maior entre todos
pitorescas da Cavalleria Tusticana, de Mascagni. T u d o isso eles: reúne-lhes as características, inclusive o aparente re-
se encontrou bem e melhor nos romances e contos da es- gionalismo, e é ao mesmo tempo uma expressão tão com-
critora sarda Grazia Deledda ( 1 6 8 ), que ficou como a última pleta da nação espanhola q u e só Lope de Vega pode ser
coluna do verismo. Não há motivo para desprezar-lhe a mencionado ao seu l a d o ; comparação para a qual já o vo-
a r t e ; Elias Portolu e La madre são do melhor que o regio- lume imenso da sua obra — mais ou menos 70 romances
nalismo criou: obras de um realismo sério. Mas Deledda é — convida. Os próprios espanhóis nem sempre admitiram
decadente onde V e r g a fora trágico; no resto, compreende- isso. Os seus grandes sucessos por volta de 1880, e sobre-
se certa irritação injusta em face do fato de que Verga
não foi até hoje bastante apreciado no estrangeiro, apesar menos (1879); Zumalacárregui (1898); Mendizábal (1898); De
Quate a La Granai (1898); Luchana (1988); La campafla iel
dos esforços de D. H . Lawrence e outros, ao passo que Gra- Maestrazgo (1899); La estafeta romântica (1899); Vergara (1899);
zia Deledda recebeu o Premio Nobel. A literatura do gran- Montes de Oca (1900); Los Ayacuchos (1900); Bodas reales (1900);
de pessimismo encontrou sempre resistência obstinada. A Las tormentas dei 48 (1902); Narváez (1902); Los duendes de la
camarilla (1903); La revolución de julio (1904); 0'Donnell (1904);
relação entre capitalismo e pessimismo revela-se muito Carlos VI en la Rápita (1905); La vuélta ai mundo en la Nu-
bem no fato de que aquela "suprema distinção literária'*, maneia (1906); Prim (1906); La de los tristes destinos (1907);
Espaíía sin rey (1908); Espana trágica (1909); Amadeo I (1910);
o Prémio Nobel, instituída pelo grande capitalista, tam- La primera República (1911); De Cartago a Segunto (1912); Cà-
bém não foi conferida a Pérez Galdós nem a H a r d y , os dois novas (1912).
Romances: La Fontana de oro (1870); Dona Perfecta (1876);
pares d e Verga. Gloria (1876/1877); La família de León Roch (1879); El amigo
manso (1882); Fortunata y Jacinta (1886/1887) Mian (1888);
Pérez Galdós ( " • ) , embora algo mais conhecido no es- Realidad (1889); Angel Guerra (1890/1891); Tristana (1892);
Torquemada en la Roguera (1889); La Incógnita (1889);
trangeiro do que Verga, não conseguiu porém, nem na ex- Torquemada en la cruz (1893); Torquemada en el purgatório
(1894); Torquemada y San Pedro (1895); Nazarín (1895); Halma
(1895); El abuelo (1897); Misericórdia (1897).
168) Grazia Deledda. 1877-1936. Teatro: La loca de la casa (1893); Dona Perfecta (1896); Electra
Racconti sarai (1894); La via dei male (1896); Elias Portolo (1901); El abuelo (1904); Santa Juana de Castilla (1918).
(1903); Genere (1904); Nostalgie (1905); L'ombra dei passato Edição por Sáinz de Robles, 6 vols., Madrid, 1942-1945.
(1907); Cannes ai vento (1913); La madre (1820); L. Falchi: L. Alas: Galdós. Madrid, 1912.
L'opera di Grazia Deledda. Milano, 1937. R. Pérez de Ayala: "El liberalismo y La loca de la casa". (In:
E. De Michells: Grazia Deledda e il decadentismo. Firenze, 1938. Las Máscaras. Vol. I. Madrid, 1919.)
J. C. Romein-Hutscheler: Grazia Deledda. Haar gelstelijke en L. B. Walton: Gordos and the Spanisji Novel in the Nineteenth
artistieke ontwikkeling. Arnhem, 1951. Century. London, 1928.
169) Benito Pérez Galdós, 1843-1920. C. Vázquez Arjona: Introducción ai estúdio de la primera serie
Episódios nacionales: Tra)algar (1873); La corte de Carlos IV de los Episódios Nacionales de Pérez Galdós. Baltimore, 1933.
(1873); El 19 de marzo y el 2 de mayo (1873); Bailén (1873): E. Gutiérrez Camero: Caldos y su obra. c vols., Madrid, 1933/
Napoleón en Chamartin (1874); Zaragoza (1874); Gerona (1874); 1935.
Juan Martin el Empecinado (1874); La batalha de los Ara- J. L. Sánchez Trincado: Galdós. Madrid, 1934.
•piles (1875); El equipaje dei rey José (1875); Memórias de un J. Casalduero: Vida y obra de Galdós. Buenos Aires, 1942.
cortesano dei 1815 (1875); La gran casaca (1876); El grande H. C. Berkowitz: Benito Pérez Galdós; the Story o/ a Spanish
Oriente (1876); El 7 de julio (1876); Los cien mil hijos de Sam Man of Letters. New York, 1948.
Luis (1877); El terror de 1824 (1877); Un voluntário realista W. T. Pattison: Benito Pérez Galdós and the Creative Prooess.
(1878); Los apostólicos (1879); Un faccioso más y unos frailes Minneapolis, 1954.
2434 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2435
tudo a propósito da peça dramática Electra, em 1901, de- cujo patriotismo pessimista o próprio Galdós parece ante-
veram-se menos à compreensão literária do que ao pró e cipar. Não é isso, porém, inteiramente exato. Galdós era,
contra quanto à tendência anticlerical. Depois, houve uma por índole, incapaz de adotar pontos de vista estéticos; e
baixa evidente: os estetas que seguiram aos pioneiros da entre as influências germânicas que recebeu, falta o nome,
geração de 1898, censuraram asperamente o estilo de Galdós, tão importante para os de 1898, de Nietzsche. Para isso,
"estilo de jornalista", "estilo livresco, abaixo do péssimo", Galdós era liberal de mais, liberal no alto sentido da pala-
criticaram as atitudes burguesas do escritor que parecia um vra. E r a inimigo de fachadas bonitas, seja a da Espanha
"victoriano" tímido: republicano e até socialista, mas ini- barroca, seja a de uma Espanha superficialmente moderni-
migo da revolução; anticlerical, e cheio de respeito pelo zada. O seu conceito do liberalismo exigiu — e isso o li-
clero. As manifestações de amizade que os grandes escri- gou à geração seguinte — uma educação radical da nação
tores conservadores, Pereda e Menéndez y Pelayo, seus inteira para o futuro democrático. Para esse fim, conce-
inimigos ideológicos, lhe dedicaram, contribuíram para ali- beu a série dos Episódios nacionales, análise da história
mentar as suspeitas de que Galdós fosse um "burguês an- espanhola desde o começo do século XIX.
tiquado", removidas talvez só pelo desprezo oficial da parte
da ditadura falangista. No exílio, os intelectuais espanhóis Os 45 romances dos Episódios nacionales constiuem
voltaram a admitir a grandeza de Galdós, burguês liberal, uma empresa gigantesca, contudo menos imensa do que pa-
sim, mas cujo liberalismo não exclui, antes implica a gran- rece. Galdós não dá análises profundas ou vastos panora-
deza. mas. Limita-se principalmente à cidade de Madri, tratando
as províncias só subsidiariamente, colocando-se de propó-
Afinal, nem sempre foi Galdós um burguês de casaca sito no ponto de vista de um homem do povo ou antes de
e cartola. O seu conhecimento íntimo de todas as classes um jornalista popular, falando ao povo. Narra sem arte,
da sua cidade predileta de Madri — conhecimento do qual desdenha o brilho estilístico, pretende descrever a trans-
Fortunata y Jacinta é o monumento — provam o contrário. formação dos farrapos humanos que foram os antigos ser-
Galdós era filho da classe média. Mas a transferência defi- vos do Estado barroco, em burgueses e operários laboriosos,
nitiva do estudante, das ilhas canárias, sua terra natal, para que renunciarão aos fantasmas do Império castelhano, mi-
Madri, significou um deslocamento social, seguido de mui- litar e eclesiástico. Galdós iniciou a série quando a P r i -
tos anos de vida boémia entre estudantes, jornalistas, ar- meira República espanhola parecia, em 1873, iniciar a nova
tistas; na Fontana de oro descreveu esse ambiente. Os co- era; e interrompeu-a, quando a restauração da monarquia
meços de Galdós não são menos boémios do que os de Ver- lhe destruiu essa esperança. Mas nem toda a esperança.
ga e de todos os intelectuais radicais da época. Apenas, O burguês Galdós, já cansado dás frases demagógicas, va-
superou-os por um trabalho imenso, espécie de auto-educa- zias e impotentes, aderiu à Monarquia. Dentro do regime
ção de um espanhol de velha estirpe para a vida moderna, parlamentar acreditava possível a vitória dos novos valores,
processo paralelo da europeização da própria Espanha pe- pelos quais e contra o clericalismo intolerante lutou nos
las influências estrangeiras. Joaquín Casalduero, ao qual três grandes romances Dona Perfecta, Gloria e La famí-
devemos o melhor estudo da vida e obra de Galdós, salien- lia de León Roch. O estilo é o de Balzac; a ideologia é a
ta-lhe as relações com o grande educador e europeizador contrária. E foi essa discrepância que o levou a superar
Giner de los Rios, o mestre da geração de 1898, dos novos o realismo e chegar ao naturalismo de Zola.
HlSTÓBIA DA LlTERATUBA OCIDENTAL 2437
0 T T O MABIA CARPEAUX
2436 Não era acaso, isso. O teatro permitiu-lhe a confronta-
Como naturalista escreveu Galdós as suas obras-pri- ção mais intensa das contradições dialéticas. Galdós voltara
mas, os maiores romances modernos da literatura espanho- ao hegelianismo; mas agora como socialista militante. Em
la; sobretudo Fortunata y Jacinta, o romance de Madri, é 1898, com a perda das últimas colónias, a Espanha barroca
um dos maiores monumentos novelísticos já dedicados a desaparecera, a monarquia tinha perdido a razão de ser. No
uma cidade. A influência de Zola é inconfundível, mas não mesmo ano, Galdós recomeçou a série interrompida dos Epi-
exclusiva; as diferenças são evidentes. Os caracteres de sódios nacionales. Mas agora é diferente. Agora prevale-
Galdós são mais humanos, menos típicos; os enredos com- ce o pessimismo da atmosfera de 1898. As fraquezas da con-
plicados são dominados com a habilidade de um grande tinuação talvez se expliquem pela contradição entre a fi-
dramaturgo, acostumado a dirigir massas humanas no pal- losofia hegeliana da história, que Galdós adotara, e o pes-
simismo cada vez mais acentuado, do qual Misericórdia é
co. Às teses, nunca abandonadas, falta a agressividade. De
a prova emocionante. Galdós já não acreditava na vitória
um grande dramaturgo, Galdós também possui a imparcia-
das forças do bem; leu muito Schopenhauer, aproximando-
lidade serena que vive com todos os personagens igualmen-
se do fatalismo desesperado de Verga e Hardy. Mas não si-
te. É isso ao que Pérez de Ayala chamou "o liberalismo de
lenciou nem se retirou. "Para lutar não é preciso ter espe-
Pérez Galdós", comparando-o à imparcialidade do Criador rança", isso parecia o seu lema, aforismo estóico. O estoi-
para com as suas criaturas e à imparcialidade relativista do cismo foi a filosofia nacional dos espanhóis de todos os
humorista Cervantes. Apenas, Galdós europeizou e tradição tempos. E Pérez Galdós era um grande espanhol.
cervantina, libertando-a do provincialismo dos Valere e Pa-
lácio Valdês; além da influência de Balzac, nota-se a de Em Pérez Galdós manifesta-se bem claro a permanente
Dickens. O grande espanhol Galdós é um grande europeu. angústia religiosa, não alheia a Verga e também aparecen-
Galdós nunca foi materialista perfeito. Antes era he- do, por instantes, no Maupassant do "Horla". Evidente-
mente, uma religiosidade altamente herética, uma ortodoxia
geliano. Os quatro grandes romances, nos quais o persona-
às avessas; não pode deixar de ser assim entre os radicais.
gem principal é o avarento Torquemada, simbolizam a luta
Ê a religião anticristã ou pelo menos a cristã do fatalismo.
entre o espírito humano e a matéria bruta. Em Angel
Professando-a, Pontoppidan ( m ) também se caracteriza
Guerra, romance da Toledo mística, já prevalecem os pro-
como um desses grandes pessimistas. Em Hardy — a veia
blemas espirituais; e no fim dessa fase Galdós escreveu religiosa dos ingleses é muito marcada — essa religiosida-
Nazarín, o romance do verdadeiro sacerdote, visto pelos de herética chegou às expressões raais explícitas.
olhos de um Tolstói espanhol. Tendo superado o materia-
Thomas Hardy ( m ) , escritor infatigável, apesar de per-
lismo, Galdós perdeu o interesse pela análise novelística do
seguido pela indiferença ou hostilidade dos seus patrícios,
ambiente. Reduziu cada vez mais o elemento mesológico.
Chegou à eliminação completa das descrições e de qualquer
intervenção do romancista: eis o romance dialogado, do
170) Cf. nota 97.
qual El abuelo é o maior exemplo. Daí era só um passo 171) Thomas HardyN 1840-1928.
para o teatro, e Galdós deu esse passo: aproveitando-se da Vnder the Greenwood Tree (1872); Far from the Maáding Crowd
dramaticidade intensa de muitos romances seus, dramati- (1874); The Return of the Native (1878); The Trumpet Major
(1880); The Mayor of Casterbrldge (1886); The Wooãlanãers
zou-os. E com um drama, Electra, conseguiu o maior suces- (1887); Wessex Tales (1888); Tess of the DVrbervilles (1881);
so da sua carreira literária.
'-•

HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2437


2436 OTTO M A R I A CARPEAUX
Não era acaso, isso. O teatro permitiu-lhe a confronta-
Como naturalista escreveu Galdós as suas obras-pri- ção mais intensa das contradições dialéticas. Galdós voltara
mas, os maiores romances modernos da literatura espanho- ao hegelianismo; mas agora como socialista militante. E m
l a ; sobretudo Fortunata y Jacinta, o romance de Madri, é 1898, com a perda das últimas colónias, a Espanha barroca
um dos maiores monumentos novelísticos já dedicados a desaparecera, a monarquia tinha perdido a razão de ser. No
uma cidade. A influência de Zola é inconfundível, mas não mesmo ano, Galdós recomeçou a série interrompida dos Epi-
exclusiva; as diferenças são evidentes. Os caracteres de sódios nacionales. Mas agora é diferente. Agora prevale-
Galdós são mais humanos, menos típicos; os enredos com- ce o pessimismo da atmosfera de 1898. As fraquezas da con-
plicados são dominados com a habilidade de um grande tinuação talvez se expliquem pela contradição entre a fi-
dramaturgo, acostumado a dirigir massas humanas no pal- losofia hegeliana da história, que Galdós adotara, e o pes-
co. Às teses, nunca abandonadas, falta a agressividade. De simismo cada vez mais acentuado, do qual Misericórdia é
u m grande dramaturgo, Galdós também possui a imparcia- a prova emocionante. Galdós já não acreditava na vitória
lidade serena que vive com todos os personagens igualmen- das forças do bem; leu muito Schopenhauer, aproximando-
te. É isso ao que Pérez de Ayala chamou "o liberalismo de se do fatalismo desesperado de Verga e Hardy. Mas não si-
Pérez Galdós", comparando-o à imparcialidade do Criador lenciou nem se retirou. "Para lutar não é preciso ter espe-
para com as suas criaturas e à imparcialidade relativista do rança", isso parecia o seu lema, aforismo estóico. O estoi-
humorista Cervantes. Apenas, Galdós europeizou e tradição cismo foi a filosofia nacional dos espanhóis de todos os
cervantina, libertando-a do provincialismo dos Valere e Pa- tempos. E Pérez Galdós era um grande espanhol.
lácio Valdês; além da influência de Balzac, nota-se a de
Em Pérez Galdós manif esta-se bem claro a permanente
Dickens. O grande espanhol Galdós é um grande europeu.
angústia religiosa, não alheia a Verga e também aparecen-
Galdós nunca foi materialista perfeito. Antes era he~
do, por instantes, no Maupassant do "Horla". Evidente-
geliano. Os quatro grandes romances, nos quais o persona-
mente, uma religiosidade altamente herética, uma ortodoxia
gem principal é o avarento Torquemada, simbolizam a luta
às avessas; não pode deixar de ser assim entre os radicais.
entre o espírito humano e a matéria bruta. E m Angel
É a religião anticristã ou pelo menos a cristã do fatalismo.
Guerra, romance da Toledo mística, já prevalecem os pro-
Professando-a, Pontoppidan ( 170 ) também se caracteriza
blemas espirituais; e no fim dessa fase Galdós escreveu
como um desses grandes pessimistas. E m Hardy — a veia
Nazarín, o romance do verdadeiro sacerdote, visto pelos
religiosa dos ingleses é muito marcada — essa religiosida-
olhos de um Tolstói espanhol. Tendo superado o materia-
de herética chegou às expressões mais explícitas.
lismo, Galdós perdeu o interesse pela análise novelística do
ambiente. Reduziu cada vez mais o elemento mesológico. Thomas Hardy ( m ) , escritor infatigável, apesar de per-
Chegou à eliminação completa das descrições e de qualquer seguido pela indiferença ou hostilidade dos seus patrícios,
intervenção do romancista: eis o romance dialogado, do
qual El abuelo é o maior exemplo. Daí era só um passo
para o teatro, e Galdós deu esse passo: aproveitando-se da 170) Cf. nota 97.
dramaticidade intensa de muitos romances seus, dramati- 171) Thomas Hardy, 1840-1928.
Under the Greenwood Tree (1872); Far from the Madding Crowd
zou-os. E com um drama, Electra, conseguiu o maior suces- (1874); The Return of the Natlve (1878); The Trumpet Major
so da sua carreira literária. (1880); The Mayor of Casterbridge (1888); The Woodlanders
(1887); Wessex Tales (1888); Teas of the D'Urbervilles (1891);
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2439
243» OTTO M A R I A CARPEAUX

XX, ao lado de Yeats e Eliot. Aqueles versos esclareceram


alcançou pelo menos na extrema velhice a fama universal
bem, por interpretação minuciosa, o sentido do seu natu-
que mereceu, como um dos grandes escritores da maior das
ralismo. Hardy, que poderia ser o herdeiro de melhor tra-
literaturas. As homenagens de 1920, na Inglaterra, e as de
dição novelística inglesa, aprendeu em Zola a importância
1922, na França, eram comoventes. Desde então, houve li-
dos problemas sexuais e a coragem — inédita na Inglaterra
geiro declínio: gerações novas não gostaram, mais uma
— de falar com franqueza sobre esse tabu da época victo-
vez, do pessimista. Mas não sabem opor nada ao estoicismo
riana. Mas as razões de Hardy eram diferentes. Não o
viril de Hardy, estoicismo que o liga ao seu velho con-
interessavam os motivos fisiológicos dos atos e sim as con-
temporâneo Pérez Galdós:
sequências morais. E r a determinista como Taine e Claude
Bernard, e pessimista como Schopenhauer. Decididamente,
"Black is night's cope
não era cristão, porque não acreditava no amor de Deus.
But death will not appal
Contudo, tem algo de um "preacher" de seita, viajando de
One who, past doubtings ali,
aldeia para aldeia, advertindo os pecadores e consolando
W a i t s in unhope."
os infelizes. Quanto aos motivos, responsabilizou o De-
Hardy é um dos poetas mais densos de língua inglesa. miurgo que construíra tão mal o Universo; não responsa-
Um crítico americano de filiação muito diferente, Ranson, bilizou os homens pelos atos que cometem fatalmente, im-
coloca-o entre os três maiores poetas da língua no século pelidos pelos instintos inatos e punidos pela coletividade
estúpida. Mas sentia intensamente com as vítimas, sobre-
tudo com as mulheres, vítimas do instinto sexual do homem,
Life's Little Ironies (1894); Jude the Obscure (1895); Wessex
Poems (1898); Poems of the Past and the Present (1902); The e com os pequenos intelectuais, perdidos na incompreen-
Dynasts (1903/1908); Collected Poems (1919);. Edições: Wessex são do ambiente rústico — confirmam isso os seus persona-
Edition, 23 vols., London, 1912/1913; Mellstock Edition, 37 vols.,
London, 1912/1920. gens representativos, Tess e Jude. Naquela teoria pessi-
L. Abercrombie: Thomas Hardy, a Carttial Study. London, 1912. mista, schopenhaueriana, dos instintos reside o naturalismo
A. Stanton Whitfield: Thomas Hardy, the artist, the Man and de H a r d y ; adotou-o porque era, êle mesmo, um daqueles
The Disciple of Destiny. London, 1921.
J. W. Beach: The Techníque of Thomas Hardy. Chicago, 1922. pequenos intelectuais, passando a maior parte da vida como
A. Quiller-Couch: "Hardy's Poetry". (In: Studies in Literature. arquiteto na região de Wessex, na qual também se pas-
vol. I . Cambridge, 1924.) sam os seus romances. Região agrária em meio da Inglater-
S. C. Chew: Thomas Hardy, Poet and Novelist. New York, 1928. ra altamente industrializada, região meio feudal, atrasada,
Ch. Du Bos: "Quelque traits du visage de Hardy". (In: Appro-
ximations. Vol. IV. Paris, 1930.) assim como a Normandia de Maupassant, a Sicília de Ver-
H. C. Duffins: Thomas Hardy. 3. a ed. Manchester, 1937. ga e a Espanha de Pérez Galdós. Preso nessa paisagem
W. R. Butland: Thomas Hardy, a Study of His Writings and
Their Background. Oxford, 1938. arcaica, imóvel, Hardy é uma rara exceção entre os roman-
C. J. Weber: Hardy of Wessex. New York, 1940. cistas victorianos, só comparável, a esse respeito, a George
E. Blunden: Thomas Hardy. London, 1942.
D. Cecil: Hardy, the Novelist. London, 1943. E l i o t : um romancista rústico. Um dos seus primeiros ro-
H. C. Webster: On a Darkling Plain. The Ari and Thought of mances, Far from the Madding Crowd, tem como título um
Thomas Hardy. Chicago, 1947.
L. De Ridder: Le pessimisme de Thomas Hardy. Paris, 1948.
verso da EJegy in a Country Churchyard de Gray, aquele
A. J . Guérard: Thomas Hardy, the Novéis anã Stories. Cam- poema do século X V I I I no qual o bucolismo convencional
bridge, Mass., 1949.
D. Hawkins: Thomas Hardy. London, 1951.
Ev. Hardy: Thomas Hardy, a Criticai Biography. London, 1953.
^Dougl. Brown: Thomas Hardy. London, 1954.
2440 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2441

se converteu em lamento e acusação dissimulada. Hardy cassou nos seus intuitos ou que está fazendo mal às cria-
nunca deixará essa região de Wessex. Em The Return of turas, intencionalmente. "The President of the Immor-
the Native descreveu-a de maneira tão permanente como é tals... had ended his sport with T e s s . . . " — essa frase fi-
permanente essa campina primitiva. Nos contos, "Wessex nal de Tess of the D'Ubervilles lembra imediatamente os
Tales" e Life's Little Ironies", apresentou com realismo versos em King Lear:
bem inglês as pequenas complicações de vida da gente que
a habita. Os seus grandes romances, um crítico comparou- "As flies to wanton boys, are we to the gods;
os a uma viagem noturna do romancista pelos campos; a T h e y kill us for their sport."
lanterna na mão, caminha pelo nevoeiro, à direita e à es-
querda vê as cruzes dos que caíram na luta contra o Fado,
Hardy já foi chamado "pagão" e "pagão antigo". H á algo
de todos eles sabe a história, como um cronista da aldeia
de verdade nisso, mas não é exato. Assim como os drama-
que representa a humanidade.
turgos elisabetanos é# Hardy um maniqueu — definição que
As histórias que Hardy contou não constituem leitura dá, ao mesmo tempo, a justa medida do fatalismo de Verga
agradável. Sedução, assassinato e suicídio são temas habi- e do pessimismo final de Pérez Galdós. Um maniqueu mo-
tuais. O estilo é melodramático, às vezes falsamente "poé- derno, porém, não pode ser pagão; é um cristão herético.
tico". No ambiente rústico, aqueles enredos violentos tam- Hardy é o grande herético do cristianismo victoriano; é
bém têm algo de falsa teatralidade. Mas é o mesmo am- anticristão por sentimento cristão, responsabilizando a Deus
biente místico de Wintefs Tale; e se T. S. Eliot censura pela moral hipócrita dos cristãos. O crítico Daiches afir-
no romancista o masoquismo para consigo mesmo e o sa- ma que Hardy não compreendeu bem o seu próprio pes-
dismo para com os leitores, esqueceu que isso também é simismo, considerando a queda dos valores victorianos como
velha tradição inglesa: se bem não a dos "bien pensants" o fim apocalíptico do mundo. A contraprova seria Jude
respeitáveis, mas a dos dramaturgos elisabetanos, de Webs- the Obscure, a tragédia do pequeno intelectual no ambien-
ter, Ford, Tourneur e, sobretudo, de Middleton. Tess of te rústico — como H a r d y — que se suicida. Hardy, o estói-
the D'Urbervilles é uma tragédia elisabetiana, peça-compa- co que "waits in unhope", sobreviveu. Mas era existência
nheira do White Devil ou do Changeling, cheia de hor- sem saída. "A face on which time makes but little impres-
rores e com um patético apelo final ao Fado, em vez da sion", Du Bos aplicou essas palavras de Hardy sobre a pai-
catarse. Elogiou-se muito o grande poder construtivo de sagem de Wessex ao próprio romancista, que é como sem
Hardy — lembra-se a sua profissão de arquiteto. Outros evolução, sem possibilidades de evolução. Conjeturou-se
críticos censuram-lhe a técnica novelística antiquada e muito por que motivo Hardy, depois de Jude the Obscure,
mais o grande papel do acaso — assim como o acaso predo- abandonou o romance, dedicando-se só à poesia. A maneira
mina também nas tragédias elisabetanas, tão "inverossímeis" hostil com que aquele seu maior romance foi recebido, não
conforme Archer. Mas nisso havia intenção da parte do ro- pode ter sido o único motivo; nem a insatisfação com o
mancista que fala, êle mesmo, de "crass casualty". O pa- romance regionalista. Hardy não é regionalista, tampouco
pel do acaso na vida é, conforme Hardy, um dos sintomas como Verga; assim como esse não descende de poesia dia-
da má construção do Universo, obra de um demiurgo in- letal da Sicília, assim tem Hardy pouco em comum com a
ferior, como na doutrina dos gnósticos, u m deus que fra- poesia rústica de Crabbe e Wodsworth, a não ser certa
2442 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2443

tendência "populista"; seu Wessex é símbolo do Universo o título mais significativo: Bom in Exile. Gissing, meio
inteiro. Mas é um Universo imóvel, sem história, sem saída. esquecido hoje, foi um dos primeiros naturalistas da litera-
E Hardy não escreveu, depois, só poesia. Ao contrário: tura inglesa. Descobriu um novo ambiente — a miséria
compôs o enorme drama épico The Dynasts, traduzindo dos escritores profissionais. Grande admirador de Dickens,
para a História o seu assunto novelístico. Essa obra cósmi- que descobrira a miséria suburbana, tinha Gissing no en-
ca, tentativa de explicar, pelo exemplo do destino de Na- tanto a coragem de descrever de maneira diferente o mesmo
poleão, o Fado das pobres criaturas, representa dentro da ambiente, sem o mínimo raio de humor; e as novas quali-
obra de Hardy o que são os romances dialogados na obra dades não compensam por isso. Tudo é cinzento, triste, até
de Pérez Galdós. Mas Schopenhauer é mau guia no labirin- sujo, como nos romances naturalistas mais ortodoxos; mas
to da História. E Hardy só chegou ao resultado que con- a técnica novelística é a antiga, dickensiana, o que prejudi-
densou em forma epigramática, na poesia In Time o/ the cou a sobrevivência da obra. Só podia ser assim, porque
Breaking of Nations:
Gissing, o intelectual fracassado, era pobre sem ser propria-
mente proletário; não compreendeu bem os problemas so-
" . . . yet this will go onward the same ciais. Homem triste, cansado, não revelou nada de herói-
Though Dynasties pass." co; não possuía o senso trágico de Hardy, Tinha uma sau-
dade secreta do idílio e viu-o uma vez, numa viagem que
Desse naturalismo não havia saída. descreveu em By the Jonian Sea. O scholar inglês tinha
A verdade disso, experimentou-a amargamente George visto o mar de Verga.
Gissing ( 1 7 2 ), que é como um personagem de Hardy. A sua Assim como em Hardy, era grande em outros a tenta-
última obra, autobiográfica, The Private Papers oí Henry ção de cristalizar o desespero em versos tradicionais, "clás-
Ryecroft, revela uma personalidade altamente simpática, sicos". J o h n Davidson ( 1T3 ) fez essa tentativa em Fleet
um scholar nato, perdido no trabalho escravo para os edi- Street Eclogues — o título é como uma lembrança irónica
tores e jornais da Grub Street; os romances acompanham do Newgate Pastoral de Gay; o seu verso tem algo da mú-
com a fidelidade do naturalismo o caminho dessa vida, e os sica de Tennyson, mas é mais denso, como o dos classicis-
títulos já dizem o bastante: New Grub Street, Workers tas do século X V I I I . De outra maneira do que Gissing
in the Dawn, The Unclassed, The Nether World, e, enfim, estava Davidson também equivocado: a filosofia de Nietzs-
che, em vez de salvá-lo do pessimismo, perturbou-o até ele
se suicidar.
172) George Gissing. 1857-1903.
Workers in the Dawn (1880); The Unclassed (1884); Demos
(1886); The Nether World (1889); New Grub Street (1891); Bom
in Exile (1892); By the Jonian Sea (1901); The Private Papers of
Henry Ryecroft (1903). 173) John Davidson, 1857-1909.
M. Yates: George Gissing, an Appreciation. Manchester, 1922. Fleet Street Eclogues (1893/1895).
Seleçào de Poemas, ed. por M. Llndsay (com ensaio de H. Mac
F. Swinnerton: George Gissing, a Criticai Study. 2.a ed. Lon- Doarmid). London, 1961.
don, 1923. H. Fineman: John Davidson, a Study of the Relation of His
S. V. Gapp: George Gissing, Classicist. Philadelphia, 1936. Ideas to His Poetry. Philadelphia, 1916.
2411 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2445

O mais consciente de todos eles era Alfred Edward "These, in the day when heaven was falling,
Housman ( 1 7 4 ). A sua obra não oferece oportunidade para T h e hour when earth's foundations fled,
discutir grandes problemas, a não ser o sucesso surpreen- Followed their mercenary calling
dente dessa poesia pessimista, sucesso tão permanente que And took their wages and are dead.
Housman voltou, entre 1930 e 1940, a ser um dos poetas Their shoulders held the sky suspended;
mais lidos de língua inglesa. Esse scholar de Cambridge, They stood, and earth's foundations stay;
editor erudito de Lucano e Juvenal, é o porta-voz dos in- W h a t God abandon'd, these defended,
telectuais desesperados; e na suavfnibição mórbida, que o And saved the sum of things for pay.M
segregou, durante decénios, do JS&vit/iu dos homens, u m
tipo do spleen inglês. Deste modo, Housman parece antes Nestes versos memoráveis está claramente definida a
um "caso" psicológico do que um grande poeta, e o seu relação entre capitalismo e pessimismo; o poeta sabe e sabe
sucesso antes um problema sociológico do que literário. dizer por que "earth's foundations" tremeram; e do "natu-
Mas esse sucesso era e é devido a qualidades reais. Embora ralismo" mais franco, franco até ao paradoxo, surge a es-
influenciado por Heine e Fitzgerald, a sua poesia é origi- perança de salvar o mundo.
nal pela forma epigramática, como de epitáfios de uma
Housman, o scholar, é, por muito tempo, o último poe-
vida malograda e de uma civilização morta; como o rever-
ta europeu que se inspirou na Antiguidade. Começara um
so pessimista da Anthologia graeca. A poesia de Housman
novo ciclo na história da poesia: o simbolismo. Mas ele
é pouco original e algo monótona:
só podia vencer depois da "conversão" do naturalismo: con-
versão a novos ideais e a uma esperança.
" . . . In ali the endless road you tread
There's nothing but the night." —

mas o poeta desarma a crítica pela sinceridade absoluta;


e até a trivialidade ocasional desse pessimismo salva-se pela
atmosfera da paisagem inglesa — a paisagem de Hardy —
na qual o poeta de Shropshire se colocou. Não se pode
negar momentos de "irrelevance" da poesia de Housman.
Mas às vezes teve alta inspiração, como o "Epitaph on
an Army of Mercenaries":

174) Alfred Edward Housman, 1859-1936.


A Shropshire Lad (1896); Last Poems (1922); More Poems (1936).
Edição por L. Housman, London, 1940.
A. S. F. Gow: Alfred Edward Housman. Cambridge, 1936.
Gr. Richards: Housman. New York, 1942.
R. Hamilton: Housman, the Poet. Exeter, 1952.
I. Scott-Kilvert: Alfred Edward Housman. London, 1955.
CAPITULO III

A CONVERSÃO DO NATURALISMO

OR volta de 1880 experimentou a literatura europeia a


P maior ampliação das suas fronteiras desde a Idade Mé-
dia: apareceram, primeiro, as literaturas escandinavas; e,
depois, a literatura russa. "Apareceram" é uma maneira
de dizer. A literatura russa já tinha dado um Puchkin e um
Gogol: mas só os romances de Turgeniev foram recebidos
na Europa ocidental como sintomas da presença de proble-
mas sérios, urgentes, naquele mundo interessante, pitoresco,
meio oriental; e só a leitura de Tolstoi e Dostoievski ensi-
nou aos europeus considerar aqueles problemas como os
seus próprios. O terreno estava preparado para isso pelo
"aparecimento" anterior das literaturas escandinavas, que
são das mais antigas na Europa, e sugeriram, no entanto,
a impressão de algo de inédito e importantíssimo. As lite-
raturas dinamarquesa e sueca — apesar de terem produzido
um Holberg, Oehlesnchlaeger e Andersen, un Bellman,
Tegner e Stagnelius, só constituíram, até então, províncias
modestas da civilização alemã.. E a literatura norueguesa,
pelo seu ramo islandês a mais antiga das existentes na Eu-
ropa, não mereceu a menor atenção. Mas justamente da
Noruega veio a tempestade (*). Os grandes noruegueses

1) E. Gosse: Studies in the Literaturea 0/ Northern. Europe. Lon-


don, 1879.
B. Kahle: Henrik Ibsen, Bjoernstjerne Bjoernson und ihre Zeitge-
nossen. Leipzig, 1907.
2418 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2449

apareceram em momento oportuno e munidos de armas ade- e Inglaterra; enfim, introduziu os dois naturalismos no país
quadas: falaram da questão sexual, dos negócios e do ca- então mais fechado da Europa, na Alemanha, europeizan-
pitalismo, dos problemas sociais, e falaram de tudo isso na do-a. A base de todas as atividades de Brandes era, portan-
linguagem de todos os dias, sem enfeites românticos, com to, a identificação entre o naturalismo da França e o "na-
a maior franqueza, dir-se-ia com a indignação de provin- turalismo" da Noruega, identificação que equivalia a con-
cianos ingénuos, recém-chegados na grande cidade. Pare- fusão. Ibsen e Bjoernson eram mais velhos do que Zola;
ciam naturalistas como Zola. As soluções que propuseram criaram as suas doutrinas literárias e ideológicas fora do
não foram menos heréticas e revolucionárias do que as ambiente do naturalismo francês e mesmo antes. Seria
thèses do naturalismo francês e de todos os radicais euro- mais exato falar de um pré-naturalismo, que apenas chegou
peus. Mas o espírito era diferente. E m vez de se submeter mais tarde a influenciar o mundo ocidental do que o pró-
ao determinismo biológico e económico, chamaram as cons- prio naturalismo. Com efeito, esse pré-naturalismo escan-
ciências para se libertarem do fatalismo emasculante. De- dinavo de 1870 é análogo ao pré-romantismo germânico de
nunciaram esse fatalismo como consequência de uma tradi- 1770 e tinha repercussões semelhantes. A entrada de novas
ção da burguesia, que sacrificara ao seu predomínio eco- literaturas no concerto da literatura europeia não obedece
nómico os ideais libertadores que a tinham levado ao poder. a uma lei — não existem "leis" na história literária —
Atacando o fatalismo, os grandes escritores nórdicos des- mas sim a um certo ritmo. H á voltas periódicas do pré-ro-
mancharam o "compromisso victoriano"; e reabriu-se o con-
mantismo dos países industrialmente atrasados no Norte
flito de consciência da burguesia. O aparente naturalismo
e Oriente da Europa; e o efeito é sempre uma extensão
norueguês era, na verdade, uma tentativa de "converter",
das fronteiras literárias do Continente. Conforme a outro
moralmente, o naturalismo, que já denunciado como conse-
ritmo, o país que penetra primeiro é quase sempre o mais
quência e pendant do capitalismo. Por isso mesmo, os no-
atrasado; desta vez, a Noruega. Na verdade, foram quase
ruegueses pareciam, no primeiro momento, "naturalistas"
só noruegueses que Brandes tinha para apresentar à Ale-
no sentido da propaganda de Brandes: libertadores e ra-
manha e à Europa. A literatura sueca não começou a re-
dicais.
novar-se antes do fim da década de 1880. Os próprios dina-
Na repercussão da atividade crítica de Georg Bran- marqueses, por sua vez, foram os primeiros a revoltar-se
des ( 2 ) distinguem-se três resultados diferentes: Brandes, contra aquela confusão dos naturalismos, separando-se de
abrindo a Dinamarca germanizada às influências francesas, Brandes. Em compensação, a Noruega apresentou-se com
iniciou a propaganda do naturalismo ocidental no mundo uma equipe surpreendente: Ibsen, Bjoernson, Lie, Kiel-
germânico e, depois, no eslavo; e ao identificar o naturalis- land, E l s t e r ; e logo depois surgirão os Garborg, Amalie
mo ocidental com o outro "naturalismo", o escandinavo, Skram, Obstfelder e Hansun ( a ). Brandes colocou-os cal-
abriu a este as portas do Ocidente, divulgando-o na França mamente — ou, antes, apaixonadamente — ao lado dos seus
patrícios Jens Peter Jacobsen, Drachmann, Erik Skram,
Pontoppidan, Gjellerup, discípulos do romantismo ociden-
A. Bellessort: En Scandinavie. Paris, 1912.
H. G. Topsoe-Jensen: Scandinavian Literature from Brandes to
Our Day. London, 1929.
2) Cf. "Do Realismo ao Naturalismo", nota 90. 3) H. Jaeger: Illustreret Norsk Literraturhistorie. vol. n / 1 . Oslo, 1896.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2451
2450 OTTO MARIA CARPEAUX
de mocidade de Bjoernson c Ibsen. Descnvolveu-se um in-
tal que se tornaram adeptos do naturalismo ocidental. Foi
tenso nacionalismo, que ae chocou a outro obstáculo: em
a origem de uma série de confusões sem fim.
1814, a Noruega entrara em união dinástica com a Suécia,
A mais lamentável dessas confusões era aquela entre
ficando em vários sentido» dependendo do vizinho mais po-
Ibsen e Bjoernson. São os dois maiores nomes da litera-
deroso e avançado. Formaram-ne doía partidos: o partido
tura norueguesa; apareceram juntos no horizonte da Euro-
democrático, dos intelectual» pequeno-burgueees, sobretu-
pa; mantinham relações pessoais» primeiro como amigos
do dos professores primário», que ficaram em contato ínti-
íntimos, depois como inimigos íntimos, para só mais tarde
mo com os camponeses, reivindicando a plena independên-
se reconciliarem, e superficialmente. Além disso, Bjoern-
cia do país, contra a política sueca e contra a literatura di-
son, embora mais novo quatro anos, tinha exercido influên-
namarquesa; e o partido conservador, do» alto» funcioná-
cia evidente sobre o companheiro, de tal maneira que cada
rios públicos e dos grandes comerciante», fiei» ao rei em
passo decisivo de Ibsen fora precedido por passo análogo
Estocolmo e aos centros literário» em Copenhague, porque
de Bjoernson. A confusão inevitável chegou a impedir o
a "plena independência" da Noruega atrasada lhes parecia
reconhecimento da diferença dos valores. Hoje já não há
significar a separação da Europa, a ruina do comércio e a
dúvidas para ninguém: Bjoernson, apesar da muita glória
rebarbarização do país. No terreno literário, o chefe dos
e repercussão europeia, era só um grande poeta norueguês,
conservadores era Welhaven ( B ) e o chefe dos democratas
enquanto Ibsen pertence à literatura universal. Mas a dis-
Wergeland ( c ). No pequeno pais, de círculos intelectuais
tinção crítica não basta para realizar a separação histórica.
limitados e vida pública estagnada, a nação inteira estava
Na verdade, Bjoernson e Ibsen provêm de origens comuns,
envolvida na luta homérica entre os dois poetas, de modo
do romantismo escandinavo; mas evoluíram para direções
que Brandes falou, mais tarde, de "poetocracia norueguesa".
diferentes. Quer dizer, tudo girava em torno do problemas literários.
O fato fundamental é que a Noruega não era um país Bjoernson, como todos os moços, começou como "democra-
independente. Desde 1381 até 1814, o reino da Noruega ta"; e continuou assim durante a vida Inteira, enquanto
viveu em união dinástica com a Dinamarca; as classes cul- Ibsen se passou, mais tarde, para o lado "conservador".
tas abandonaram a língua "nórdica", adotando a dinamar- Deste modo, Ibsen é o sucessor de Welhaven, e Bjoernson
quesa. Toda a grande literatura norueguesa do século XIX o sucessor de Wergeland. Eram homens obstinados, esses
foi escrita num dinamarquês pouco diferente do da antiga noruegueses, incapazes de fazer concessões. O que mudou,
metrópole. A literatura norueguesa moderna começa pela porém, foi o ambiente em torno deles. Às influências do
adoção do romantismo dinamarquês de Oehlenschlaeger; romantismo dinamarquês e do romantismo alemão seguiu-se
as obras de mocidade de Bjoernson e de Ibsen sacrificaram uma fase de influências ocidentais: da literatura france-
a esse estilo. Outras influências românticas, de origem ale- sa, sobretudo no teatro, e do positivismo e espírito mercan-
mã, determinaram o interesse pelo folclore da pátria, reve- til ingleses. Em 1864, em consequência da guerra ignomi-
lado nas coleções de poesia popular e contos de fadas de
Asbjoernsen, Moe e Landstad ( 4 ), fontes de outras obras
5) Cí. "Romantismo de oposição", nota 80
6) Cf. "Romantismo de oposição", nota 81.
4) Cí. "Romantismo de evasão", nota 102.
2452 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2453

niosa da Prússia contra a Dinamarca, o prestígio alemão de- Bjoernson, empregando bela imagem poética, chamou a Lie
sapareceu de repente. Ao mesmo tempo, a neutralidade, co- "um gavião branco na névoa cinzenta do inverno nórdico".
mum e vergonhosa, da Noruega e Suécia nesse conflito Nem era tanto assim; Lie tinha a coragem de u m pré-ro-
contribuiu para eliminar, entre os intelectuais noruegueses, mantismo típico e a fé de um grande coração humano. Como
velhos ressentimentos contra a Dinamarca. A oposição en- pré-rornântico, descobriu novo» ambientei deaconhecidos:
tre os dois partidos perdeu o interesse literário, transfor- em Tremasteren Fremtiden (Navio de Tria Mastros), a
mando-se em luta política pró ou contra a união com a vida dos marinheiros noruegueaea; em Malatroem (Vór-
Suécia, Novos problemas, internos, surgiram: aburguesa- tice), o mundo dos comerciantea. N I o ignorava os aspectos
mento, questão social, igualdade de direitos dos sexos, ques- menos agradáveis da vida: Oaa paa deacreve a luta deses-
tão sexual, antipuritanismo e livre-pensamento, problemas perada de uma família de armadores contra a ruína, com
íntimos da consciência. Eis o ambiente em que Bjoernson uma força que lembra a Verga; < \llien paa Gilje,
e Ibsen, companheiros na mocidade, se defrontavam. Ain- (A Família em Gilje), que é a obfl prlmi d« Lie, ocupa-o
da hoje não é fácil compreender bem as influências recí-
"a vida não vivida" nas melancólica* faxenda* do interior
procas, amistosas e hostis, entre eles. Para esclarecê-los
da Noruega, assim como a teria VÍM • niev. "Vida não
melhor, convém estudar antes três outros noruegueses —
vivida" significa, para Lie, em prlmelm linha, a vida ma-
Lie, Kielland e Elster — grandes escritores, mas menos
trimonial na qual não se cumprem aa promeanas do amor
universais do que aqueles, de modo que deram importância
de mocidade: assim em uma da» aua» obrai mais caracte-
maior aos conflitos nacionais; as tendências ficam melhor
definidas. Os três eram mais moços do que Bjoernson e rísticas e mais conhecidas, Et Siw da de Casados).
Ibsen, de cinco até dezessete anos; mas quanto à fase prin- E o "otimista" tornou-se CÍKI.I lOmbrlo, apiedan-
cipal das suas atividades literárias, todos esses cinco escri- do-se dos seus personagens, mal sem faiar propaganda de
tores são exatamente contemporâneos. teses. E m Dyre Rein aparece o Fado doi "modernos" de
então e dos noruegueses em particular: a hereditariedade.
Jonas Lie ( 7 ) é um grande escritor que nunca recebeu Mas Lie venceu essa fase naturaliata e peaiimiita. Entre-
na Europa o apreço merecido. Eclipsaram-no os dois gran- gou-se, primeiro, ao misticismo, e n t l o moda maa aem som-
des concorrentes; — e êle era mais otimista do que os ou- bra de angústia. E justamente aa auaa obrai de velhice são
tros, numa época na qual todo mundo exigia cores negras. de uma frescura surpreendente, de um humorismo muito
vivo, quase mediterrâneo, de modo que um critico já falou
da transformação do "Turgeniev norueguêe" em "Daudet
7) Jonas Lie, 1833-1908. norueguês". Lie soubera fazer o aeu compromiiio com a vi-
Den Fremsynte (1870); Tremasteren Fremtiãen (1873); Rutland
(1880); Goa paa (1882); Livssklaven (1883); Familien paa Gilje da, uma espécie de "compromiaao vitoriano", também quanto
(1883); Malstroem (1884); Kommandoerens Doettre (1886); Et
Samlív (1888); Maisa Jons (1888); Onde Magter (1890); Naar sol à arte de caracterizar os personagens e fazer sentir, sem
gaar ned (1895); Dyre Rein (1896); Wulffie & Co. (1900); Naar intervenção subjetiva, a atmoafera. Lie é um "novelisfs
Jernteppet falder (1901).
Edição por V. Erichsen e P. Bergh, 10 vols., Oslo, 1920/1921. novelist", mais um motivo que explica o aeu rápido esque-
A. Garborg: Jonas Lie, en Udviklingshistorie. Oslo, 1893. cimento pelo público europeu. Na Noruega, Familien paa
E. Lie: Jonas Lie*s oplevelser. Oslo, 1908.
F. Paasche: Jonas Lie. Oslo, 1933. Gilje continua sendo considerado como obra clássica.
C. O. Bergstroem: Jonas Lies vaeg till Gilje. Stockholm, 1949.
2454 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATUBA OCIDENTAL 2155

O destino literário de Kielland ( 8 ) foi quase o contrá- ataque em Jacob, contra os "demagogos": pois Kielland
rio: continua lido, embora a crítica o tenha condenado já era do "partido dinamarquês", conservador apesar dos seus
faz muito tempo, aliás por motivos extraliterários. Quem instintos subversivos, em Arbeidsfolk (Operários) tentou
só lhe conhece os dois volumes de Novelletter, contos de excitar os operários, mas principalmente contra os poderes
técnica requintada e ironia cínica, pensará em Maupassant. públicos. Kielland, esteta indignado pela fealdade da vida
Na verdade, Kielland era o mais dinamarquês entre os es- provinciana, parecia um subversivo de profissão, um anar-
critores noruegueses, dono de língua e estilo impecáveis, quista. Num país em que os "democratas" não falaram em
dono também daquela ironia mordaz e algo leviana que se questão social e em que até os jornalistas mais "radicais"
atribui geralmente aos copenhaguenses. Kielland é meio não ousaram atacar a Igreja estatal — Bjoernson evitou
parisiense, revoltado contra o ambiente hipócrita e ordiná- sempre isso — Kielland era uma figura muito incómoda.
rio da sua província, sobretudo contra os pastores lutera- Resolveram esquecê-lo.
nos — substituam-se estes por padres portugueses e Kiel- Kielland é, no fundo, um grande-burguês, colocado fora
land seria um Eça de Queirós do Norte, sem dandismo, da sua classe pelo anarquismo que o seu caráter inquieto e
mas em compensação com tendência mais obstinada; tão quase maligno lhe inspirou. O ambiente social da Norue-
obstinada que o romancista parece às vezes diabòlicamente ga de 1880 reflete-se mais fielmente na obra do infeliz
destrutivo: "la tendance pour la tendance". O melhor dos Kristian Elster (°), estudante pobre de origem campone-
seus romances, Garman og Worse, é o primeiro em que o sa, depois intelectual revoltado. A sua aguda inteligência
mesmo ambiente de armadores e marinheiros que parecia literária criou pelo menos uma obra magistral, Farlige Folk
sorridente a Lie, se apresenta como um inferno de egoís- (Gente Duvidosa), história da tempestade contra a invasão
mos duros e exploração dos pobres pelos monopolistas do das ideias "modernas" numa pequena cidade da província
poder económico. Nenhum outro escritor europeu se pare- norueguesa. A oposição sistemática que Elster levantou ao
ce tanto com aquilo a que os russos chamavam "literatura seu ambiente, não era só intelectual. Havia nele a sensibili-
de acusação", com os Saltykov, Nekrassov, Korolenko, até dade nervosa dos homens do alto Norte que não conseguem
Andreiev. Nos outros romances, a tendência é sempre "an- dormir durante as longas semanas de verão nas quais o sol
ticlerical", enquanto esse adjetivo tem sentido em país pro- não se põe — o "sol de meia-noite" que ilumina tão fantasti-
testante: em Skipper Worse (Marinheiro Worse), contra camente os quadros de Edvard Munch. Em Solskyer descre-
a seita pietista dos haugianos; em Gift (Veneno) e Sne veu Elster com emoção profunda a vaga saudade, quase
(Neve), contra a educação religiosa. Causou surpresa o mística, dessa gente inquieta, desejando não sabem bem o
que — mais um tema permanente da literatura norueguesa,
pré-romântica.
8) Alexander Kielland, 1849-1906.
Novelletter (1879); Garman og Worse (1880); Nye Novelletter
(1880); Arbeidsjalk (1881); Skipper Worse (1882); Gift (1883); 9) Kristian Elster, 1841-1881.
Sne (1886); Professoren (1888); Jacob (1891). Tora Trondal (1877); Farlige Folk (1881); Solskyer (1881).
Edição pelo autor; 2.B ed., 12 vols., Oslo, 1949/1950. G. Brandes: "Kristian Elster". (In: Mennesker og Vaerker. Kjoe-
M. Schjoett: Alexander Kielland. Oslo, 1904. benhavn, 1883.)
G. Gran: Alexander Kielland og hans samtid. Oslo, 1922. Hj. Ohristensen: "Kristian Elster". (In: Nordiske Kunstnere.
F. Buli: Omkring Alexander Kielland. Oslo. 1949. Oslo, 1896.)
O. Storstein: Kielland pa ny. 2.a ed. Oslo, 1950. Kr. Elster Jr.: Fra tid til anden. Oslo, 1920.
2456 O I T O MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2457

Bjoernson e Ibsen, cada u m à sua maneira, resumem o tempo, Bjoernson foi mais ou menos assim como a
que Lie, Kielland e Elster realizaram parcialmente Bjoern- gente imagina u m romântico. O destino fê-lo nascer num
son, pré-rimântico e otimista como Lie, o é grande pioneiro país rústico e atrasado; e a raça dotou-o de um forte senso
literário da Noruegua; é tendencioso como Kielland, até de realidade, de modo que resultou uma espécie de pré-ro-
mântico, como o seu irmão no espírito, Jonas Lie, mas me-
propagandista apaixonado, mas de ideias opostas, do par-
nos retraído, mais corajoso. Como pré-romântico típico,
tido democrático. O que lhe falta é a sensibilidade psico-
Bjoernson fêz a sua entrada na literatura com contos místi-
lógica de Elster — como uma obra de arte à qual falta a
cos à maneira de Auerjiach, porém mais frescos e originais:
dimensão de profundidade. Ibsen é pessimista e anarquista
"Synnoeve Solbakken", " E n glad Gut". Sempre continuou
como Kielland; não tem nada de Lie. Mas em compensa-
realista no romantismo, romântico no realismo. Como rea-
ção possui, mais do que Elster, a "dimensão psicológica"
lista renovou o drama histórico que o romantismo dina-
que o fêz superar o intelectualismo dos "radicais" e o
marquês de Oehlenschlaeger lhe legara: substituiu o verso
tornou capaz, enfim, de desmentir os seus começos e, en-
pela prosa vigorosa, os personagens convencionais por ca-
trando em nova fase, iniciar uma nova época da literatura racteres rústicos, os vagos assuntos nórdicos por enredos
europeia. da história norueguesa medieval. Assim foi a sua primeira
Bjoernson ( 1 0 ), idealista sempre entusiasmado, religio- peça, Mellem Slagene (Entre as Batalhas), de um ato só,
so sem ortodoxia, democrata sem revolucionarismo, ficou mas um dos melhores "one-actplays" da literatura universal.
durante a vida inteira o que o título de um dos seus primei- E com a trilogia histórica Sigurd Slembe criou uma obra,
ros contos afirma: "Um Rapaz Alegre", moço até cora se- talvez não shakespeariana, mas digna de um Schiller. Ro-
tenta anos de idade. Sonhador e eloquente ao mesmo mântico êle também ficou em assuntos realistas, como no
drama burguês De Nygifte (Os Recém-Casados), resolven-
do o conflito entre os recém-casados por meio de um agra-
10) Bjoernstjerne Bjoernson, 1832-1910. (Cf. nota 61, e "O Natu- dável happy end. Então, Bjoernson, diretor de teatro, óti-
ralismo", nota 89.) mo conhecedor das necessidades práticas do palco, já se
Synnoeve Solbakken (1857); Ame (1858); Mellem Slagene (1858);
Halte-Hulda (1858); En Glad Gut (1859); Kong Sverre (1961); serviu da técnica francesa, de Augiar e Dumas Filho. J á
Sigurâ Slembe (1862); Maria Stuart (1864); De Nygifte (1965) J apresentou e resolveu thèses, transformando o teatro em
Fisjerjenten (1868); Digte of Sange (1870); Sigurd Jorsalfar
(1872); Bedaktoeren (1874); En Fallit 1975); Kongen (1877); tribuna na qual se discutiram problemas políticos, sociais,
Magnhild (1877); Kaptejn Mansana (1879); Leonardo. (1879); Det sexuais. Bjoernson era, no estilo literário e nas atividades
ny System (1879); En Hanske (1883); Over Aevne, I (1883); Det
flager i Byen og paa Havnen (1884); Geografi og Kjaerligfied reais, principalmente um grande orador. Durante a vida
(1885); Paa Guds Veje (1889); Nye Fortaellinger (1894); Over inteira lutou, e sempre por causas j u s t a s : pela independên-
Aevne, II (1895); Paul Lange og Tora Parsberg (1898); Laboremus
(1901); Paa Storhove (1902); Naar den ny Vin blombstrer (1909). cia e democratização da Noruega e em favor da reivindi-
Edição por F. Buli, Kjoebenhavn, 1919/1920. cação russa de u m porto sem gelo, pela liberdade dos fin-
H. Jaege: Norske Forfattere. Oslo, 1883.
G. Gran: Bjoernstjerne Bjoernson. Oslo, 1916. landeses e pelas minorias eslavas na Hungria, pela revisão
C. Collin: Bjoernstjerne Bjoernson. 2.a ed. 2 vols. Oslo, 1923. do processo de Dreyfus e pela arbitragem obrigatória dos
J. Marstrand: Bjoernstjerne Bjoernson. Kjoebenhavn, 1923.
C. Gierloeff: Bjoernstjerne Bjoernson. Oslo, 1932. conflitos internacionais. Sempre pela causa justa, sem mui-
J. Lescoffier: Bjoernson. La seconde jeunesse. Paris, 1932. ta consideração dos motivos e ideologias atrás das reivindi-
H. Larson: Bjoernstjerne Bjoernson. A Study in Norwegian Na-
tionalism. New York, 1944.
2458 OTTO M A B I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2459

cações — ele mesmo não tinha ideologia alguma. O femi- convencer. Esse filho e neto de pastores é pastor nato,
nismo devia entusiasmá-lo; doutro lado, a reivindicação apóstolo, tribuno, orador antes de tudo. Daí a superficiali-
do amor livre assustou o filho e neto de pastores. Tirou dade das suas soluções, o otimismo cativante dos seus happy
a conclusão de exigir dos homens a mesma pureza antes do ends. Na segunda parte de Over Aevne, Bjoernson ampliou
casamento que eles exigem das noivas. E i s a tese do Hans- o panorama puramente religioso e psicológico da primeira
ke (Luvas), que fez sensação e escândalo. Depois, Bjoern- peça, abordando a questão social, impressionando bastante
son preferiu discutir em romances a questão sexual: em pela representação simbólica da luta de classes entre o in-
Det flager i Byen og paa Havnen (Bandeiras na Cidade e dustrial e os operários; mas o revolucionário Elias Sang
no Porto) e Paa Guds Veje (Nos Caminhos de Deus) exi- aparece como anarquista e o industrial Holger como super-
giu educação sexual sem falsa hipocrisia, para combater homem, e Bjoernson acaba pedindo a reconciliação e n t r e
igualmente as consequências fatais da simulação burguesa, eles. É um idealista burguês. E m En Fallit, o grande co-
reveladas pela hereditariedade, e a anarquia sexual dos boé- merciante Tjaelde, culpado de falência fraudulenta, não é
mios. O escândalo foi grande. Mas Bjoernson não conhe- condenado, mas moralmente curado, pela intervenção de»
cia o medo. Em Redaktoeren (O Jornalista) atacara os mé- advogado filantrópico Berent, personagem como do bom
todos criminosos do jornalismo venal, e em En Fallit (Uma tio na comédia, para que tudo acabe bem. Afinal, a oposição
Falência), a mais famosa das suas peças, revelou os proces- de Bjoernson é moderada como a dos vitorianos. Daí a sua
sos fraudulentos do alto comércio. Tratou da mesma ma- obra envelheceu muito, e já não é comparada por ninguém
neira corajosa os problemas políticos, apresentando reis e à de Ibsen. Contudo, não convém precipitar um julgamen-
ministros no palco. Enfim, abordou o mais delicado dos to que a posteridade poderia, um dia, anular. Os noruegue-
problemas noruegueses, a fé dos sectários protestantes em ses continuam tendo em alto apreço a poesia lírica de
curas milagrosas e inspirações imediatas: Over Aevne Bjoernson, à qual as dificuldades da língua negam aos ou-
(Além das Nossas Forças) é, com efeito, o drama mais vi- tros europeus o acesso. Mas esse lirismo encontra-se difuso
goroso de Bjoernson; o equilíbrio admirável entre a psico- em toda a Obra de Bjoernson. O autor de Sigurd Slembe
logia compreensiva do misticismo e a explicação psico- e Over Aevne foi um grande poeta e uma natureza humana
fisiológíca dos fatos justifica o sucesso internacional da muito rica.
obra. A atmosfera da paróquia de aldeia no alto Norte é
representada de maneira impressionante; mas tudo é um Talvez a obra mais duradoura de Bjoernson fosse a
pouco claro de mais, como fortemente iluminado pelas lu- influência que exerceu sobre Ibsen, companheiro mais ve-
zes laterais do palco, sem a poesia íntima de um Elster. lho mas menos resoluto. Com efeito, em Bjoernson apren-
deu Ibsen a maneira realista de tratar os assuntos românti-
Como dramaturgo de ideias é Bjoernson o mestre do cos da história norueguesa; e depois, em Redaktoeren e
século X I X , pela segurança com a qual sabe ligá-las aos En Fallit, Bjoernson precedeu a Ibsen n o aproveitamento
efeitos cénicos. Esse equilíbrio dramatúrgico lembra Schil- da técnica francesa de Augier e Dumas Filho para apresen-
ler; como este, Bjoernson gosta de sacrificar a coerência tar os problemas mais sérios da sociedade. Salientar essa
ideológica às exigências do teatro. É tendencioso como influência significa definir a Ibsen como uma espécie de
Kielland, e várias vezes as tendências parecem afins; edição maior*e melhorada de Bjoernson; pois as diferen-
Bjoernson também é agressivo, mas não quer irritar e sim ças de partido entre eles já não interessam a nós outros;
2460 OTTO M A R I A C A R P E A U X HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2461

mas essa definição histórica é inconveniente: poderia ser- deza a fórmula feliz de "Shakespeare bourgeois". A fórmu-
vir para desatualizar e desvalorizar o maior e até hoje mais la é ambígua: admite dois acentos e duas interpretações.
"incomodo" dramaturgo do século X I X . Outra observação Durante os últimos trinta anos da vida de Ibsen, época da
histórica chama, porém, a atenção. É verdade que ambos, sua maior glória internacional, fêz-se o acento sobre o
Bjoernson e Ibsen, se aproveitaram da técnica de Augier "Shakespeare", ao qual o norueguês foi sempre comparado.
e Dumas Filho. Mas quando se trata dos pontos de vista Críticos e público importavam-se pouco com a primeira
ideológicos dos franceses, então os dois noruegueses agem fase, "romântica" e realmente shakespeariano, do poeta, en-
de maneira contrária, como revelam as atitudes respectivas contrando-lhe a grandeza na segunda fase, burguesa, das
quanto à questão sexual. O democrata Bjoernson exige a peças "à thèse". Depois, e até hoje, acentua-se o "bour-
pureza moral dos dois sexos para garantir a pureza da fa- geois": lamenta-se a conversão do grande romântico a um
mília: é esta, embora mais radical, a mesma atitude do realismo de importância só efémera. A transição do pas-
"honestíssimo" Augier. O conservador Ibsen, porém, exige, sadismo da primeira fase ao ant(passadismo da segunda te-
sem consideração da questão sexual, a pureza da consciên- ria sido uma traição à poesia. Mas essa censura serve bem
cia, para garantir a integridade do indivíduo: é, embora aos verdadeiros inimigos de Ibsen, burgueses impenitentes
coerente até o radicalismo, a mesma atitude de Dumas Fi-
lho ( 1X ). A árvore genealógica da dramaturgia de Bjoern-
(18886); Fruen fa Havet (1888); Hedda Qabler (1890); Bygmester
son não vai além de Scribe, teatrólogo da burguesia que exi- Solness (1892); Lille Eyolf (1894); John Gabriel Borkman (1896);
gira igualdade democrática para todos os negócios. A dra- Naar vi doede vaagner (1899).
Edição do Centenário por H. Koht, F. Buli e D. A. Belp, 20 vols.,
maturgia de Ibsen remonta, através de Scribe, ao drama Kjoebenhavn, 1928/1930.
burguês de Diderot, o jornalista-poeta do individualismo Edição por F. Buli, H. Koht, D. A. Belp, 21 vols. Oslo, 1068.
H. Jaeger: Henrik Ibsen. Oslo, 1888.
pré-romântico. Bjoernson luta pela ordem democrática da G. Brandes: Henrik Ibsen Kjoebenhavn, 1898.
sociedade. Ibsen quer a liberdade total do indivíduo. Bjo- P. Schlenther: Introduções às peou "modernas" nos vols. VI-IX
da edição alemã, Berlin, 1900/1902.
ernson representa o compromisso vitoriano da democracia E. Gosse: Henrik Ibsen. London, 1908.
com o liberalismo. Ibsen representa a última consequência, O. Brahm: Kritische Schriften. Vol. II, Berlin, 1914.
G. Gran: Ibsen. Liv og Verker. Oslo, 1918.
anarquista, do liberalismo. E i s a sua maneira, muito sin- R. Woerner: Ibsen Leben und Sohaffen. 3.» ed. 2 vols. Muen-
gular, de ser realista e romântico ao mesmo tempo. chen, 1923.
E. Reich: Henrik Ibsens Dratnen. 14.» ed. Borlln, 1925.
Ninguém ousa negar a grandeza de H e n r i k Ibsen ( 1 2 ) ; S. Hoest: Ibsen. 2.a ed. Oslo, 1927.
H. Koht: Henrik Ibsen, et dtkUtrltv, 2 vols. Oslo, 1928/1929.
e um crítico francês encontrou para a definição dessa gran- A. E. Zucker: Ibsen, the Master Bulder. New York, 1929.
P. G. La Chesnais: Brand, d'Ibsen. Parla, 1930.
K. T. R. Wais: Der Passatismus im Werke Ibsens. Muenchen,
1935.
11) T. Linge: La conception de Vamour dans le drame de Dumas fils M. Apollonio: Ibsen. MUano, 1944.
et d'Ibsen. Paris, 1935. U. Ellis-Fermor: The Frontiera of Drama. London, 1945.
12) Henrik Ibsen, 1828-1906. (Cf. nota 62). B. W. Downs: Ibsen, the Intcllectual Background. Cambridge, 1947,
M. Lamm: Det moderna dramat. Stockholm, 1948.
Catilina (1850); Fru Inger til Ostraat (1854); Gildet paa Solhaug P. F. D. Tennant: Ibsen's Dramatic Technique. Cambridge, 1948.
(1855); Haermaendene paa Helgeland (1858); Kjaerlighedens Ko- P. Rubow: Two Essays. Henrik Ibsen. The Sagas. Kjoebenhavn,
medie (1862); Kongsemnerne (1863); Braund (1865); Peer Gynt 1949.
(1867); De Unges Forbund (1869); Kejser og Galilaeer (1873); B. W. Downs: Six Plays of Ibsen. Cambridge, 1950.
Samfunãets Stoetter (1877); Et Dukkehjem (1879); Gengangere J. Northam: Ibsen's Dramatic Method. A Study of the Prose Dra-
<1881); En Folkefiende (1882); Vildanden (1884); Rosmersholm mas. London, 1952.
2462 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2463

e antiburgueses inconscientes, q u e gostam de afirmar a ina- rotando o céptico Skule que duvida profundamente de si
tualidade dos problemas ibsenianos. mesmo. Quanto à técnica teatral, é a peça mais perfeita de
O próprio Ibsen não admitiu "fases" na sua obra. Exi- Ibsen. Mas não o satisfez a vitória da "inconsciência", fos-
giu a leitura das suas obras em ordem cronológica, como se mesmo genial; foi preciso transformá-la em exigência
um conjunto coerente. Depois da primeira tentativa irregu- consciente da vontade segura. É isso o que faz Brand, o
lar e violenta — o Catilina do estudante — Ibsen seguiu os terrível pastor kierkegaardiano, sacrificando tudo à incon-
caminhos do romantismo oehlenschlaegeriano; Gildet paa dicionalidade da sua fé total. Mas tal veracidade absoluta
Solhaug é um quadro poético e côr-de-rosa da Idade Média não se encontra na Noruega nem no mundo inteiro. Por
norueguesa. Mas a tragédia sombria Fru Inger til Ostraat, isso sucumbe Peer Gynt às tentações, o "herói" moderno em
à qual a crítica moderna atribui importância especial, já que poesia romântica e mentira se identificam, permitindo-
revelara um realismo meio shakespeariano do conflito his- lhe combinar negócios e saudades meio eróticas, meio me-
t ó r i c o : é uma autêntica tragédia. Sobreveio a influência tafísicas; é, até hoje, a maior obra literária de conteúdo
do novo estilo de Bjoernson — peças históricas, mas rea- filosófico que se escreveu depois do Fausto. Só en passant,
lísticas, em prosa arcaica — e Ibsen, conforme a sua índo- Ibsen aplicou a lição à Noruega atual, na sua primeira co-
le, t i r o u logo a última consequência: Haermaendene paa média em prosa, De Unges Forbund (A A liança da Mocida-
Helgeland (Heróis em Helgeland), é a dramatização da ver- de), sátira holbergiana contra os demagogos do partido bjo-
são nórdica da saga dos Nibelungen, no estilo duro das ernsoniano, causando escândalo enorme e, em consequência,
p r ó p r i a s sagas: no centro n ã o está o heroísmo, mas o con- o exílio voluntário de Ibsen durante vinte anos. J á o ocupa-
flito entre homem e m u l h e r ; o leitor se lembra de Hebbel. va, então, a "bilogia" Kejser og Galilaeer (Imperador e
Não representa, portanto, nova "fase", quatro anos depois, Galileu), na qual a luta entre o imperador pagão Julião e
a Kjaerlighedens Komedie (Comédia do Amor), conflito o cristianismo abre a perspectiva dialétic» para um "Tercei-
entre homem e mulher em ambiente moderno, tanto menos ro Reino" da liberdade moral. Começa, imediatamente de-
que Ibsen, sempre prudente, não ousou adotar ali a prosa; pois, a série das peças realistas, "modernas"; e costuma-se
preferiu escrever essa comédia em versos e espirituosas ri- fazer ali a cesura entre as duas "fases". Na verdade, há
mas heinianas. Mas perante o desfecho quase revolucioná- uma cesura antes de Kejser og Galilaeer: è o último drama
rio — a heroína prefere o casamento com o comerciante histórico, mas o primeiro em que o passadismo é substituí-
rico, como melhor garantia de felicidade, ao amor do poeta do pelo "futurismo" revolucionário. Sobreveio, outra vez,
romântico — o público estava indignado. Os sucessos e as a influência de Bjoernson, consagrado pelo êxito de En
homenagens couberam ao amigo e rival Bjoernson, sempre Fallit. Em Samfundets Stoetter (As Colunas da Sociedade)
felizardo. Não se pode n e g a r : Ibsen estava ressentido. também trata-se de uma falência fraudulenta de um grande
Contudo, foi um sentimento muito superior ao ciúme or- burguês; mas a sátira é muito mais incisiva, atacando as
d i n á r i o que dá vida e intensidade à imponente tragédia his- próprias "colunas da sociedade"; e só o fim, ainda otimista,
tórica Kongsemnerne (Os Pretendentes da Coroa): graças exprime a fé nas classes não emancipadas: "As mulheres
às i n t r i g a s diabólicas do Bispo Niklas, ninguém saberá e os operários são as verdadeiras colunas da sociedade."
quem é o herdeiro legítimo da coroa norueguesa; mas Haa- Pela emancipação da mulher pretende Ibsen lutar em Et
kon vence pela genialidade inconsciente e espontânea, der- Dukkehjem (Casa de Bonecas): Nora, libertando-se, aban-
«

2464 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 2465

dona o marido e a família. O escândalo era, desta vez, t i o nick continua a armar navios bem segurados que não aguen-
grande como o sucesso. Mas se Nora tivesse ficado? En- tam o alto mar, e denunciando negócios patriótico-duvido-
tão, talvez tivesse sofrido o destino de H e l e n e Alving, em sos, continua a ser Stockmann, perseguido pela "maioria
Gengangere, (Espectros), sacrificando-se ao marido sifilí- compacta". No naturalismo moralista de Ibsen, o estilo de
tico e vendo o filho sucumbir à tara herdada. É uma tra- pensar e agir experimenta os terrores de uma confissão pe-
gédia clássica, obedecendo às três unidades aristotélicas. rante o juiz; e esse juiz é o poeta da própria b u r g u e s i a :
Mas a crítica e o público só notaram o assunto naturalista; o "Shakespeare bourgeois". O crítico alemão W a i s pre-
e gritaram contra o inmigo subversivo da sociedade. Res- tendeu renovar a tese das duas fases de Ibsen, caracterizan-
pondeu-lhes En Folkefiende (Um Inimigo do Povo), a do a primeira pelo "passadismo" e a segunda pelo "futuris-
acusação furiosa do idealista Stockmann contra a "maioria mo". Mas a "exigência moral" que Ibsen apresenta ao mun-
compacta", que se dá ares de democracia e vive das "fon- do é, por definição, supratemporal. A diferença entre o
tes envenenadas" dos seus negócios. passado e o futuro não importa: o conflito entre o cepti-
cismo e a necessidade de agir é o mesmo em Kongsemnerne
Em En Folkefiende Ibsen não apenas julgou a socieda- (Os Pretendentes da Coroa) e Vildanden (O Pato Selva-
d e ; julgou-se, mais uma vez, a si mesmo, examinando a gem); a vontade de endireitar moralmente este m u n d o en-
fundo o seu próprio idealismo da "exigência moral" que a contra o mesmo desastre em Brand e Inimigo do Povo; as
grande maioria dos homens não suporta. Vildanden (O consequências da irresponsabilidade são igualmente pseudo-
Pato Selvagem), sátira trágica, retrato de u m medíocre que poéticas e criminosas em Peer Gynt e Rosmersholm, As
precisa da mentira para viver, parece condenar a "exigên- teses de Ibsen não estão antiquadas. Até o problema de
cia moral" e tudo o que Ibsen dissera desde Brand. Mas é Nora não foi superado: pois não se trata, em Casa de Bo-
a conclusão rigorosamente lógica do Folkefiende e a base necas, da emancipação das mulheres, mas sim da obrigação
do que, em Rosmersholm, dirá o anarquista Ulrik Brendel, de cada um de assumir a responsabilidade pelos seus atos.
comentando a impossibilidade e as consequências crimino- Graças a essa permanência, Brand e Peer Gynt são obras
sas da absoluta liberdade moral dos heróis Rosmer e Re- gigantescas de uma nova poesia mitológica, realizando o
bekka. Deste modo, Ellida, a Fruen fra Havet (Senhora que Wagner pretendia realizar; mas a mesma permanência
do Mar), faz bem em não obedecer à sedução do misterioso também é atributo dos personagens e ideias nas peças da
estrangeiro e voltar à família burguesa. E i s um desfecho à "fase moderna", realizando o que Hebbel pretendia realizar.
maneira de L i e ; é a primeira incoerência de Ibsen, prepa- Ibsen é grande poeta. Além disso, é dono de uma habi-
rando sua próxima conversão a um outro estilo de pensar, lidade teatral quase diabólica. Nem em Sófocles nem em
embora sempre dentro do estilo realista. Shakespeare há nada que se possam comparar à quase infa-
Ibsen parece-se muito com Kielland; é um acusador sub- libilidade da composição dramatúrgica em Kongsemnerne
versivo. Do Catilina até o momento em que criou o perso- e Espectros. Mais do que nos casos de Shakespeare e Mo-
nagem Ulrik Brendel, sempre foi, na homogeneidade admi- lière, convém salientar que Ibsen foi, antes de tudo, um
rável da sua obra, um anarquista. E esse seu anarquismo é playwright profissional. T u d o em sua obra, as cenas, os
tanto mais terrível que é a conclusão rigorosamente lógica diálogos, os* incidentes, parece naturalíssimo, como na vida
do liberalismo. Daí a atualidade permanente dos proble- de todos os dias; mas é uma ilusão magistralmente criada,
mas ibsenianos, enquanto existe sociedade burguesa: Ber-
2466 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 2467

pois tudo aquilo está rigorosa e sabiamente subordinado Duse e Irma Grammatica, Novelli e Zacconi — viajaram
à construção dramatúrgica. Contudo, não é mera engenha- com as peças de Ibsen até a América e a Austrália.
ria teatral. Foi aquela sua "high seriousness" que o auto- Ibsen conseguiu conquistar o teatro mais conservador
rizou a julgar o mundo, porque o autor de Kongsemnerne do mundo, o de Paris. Em 1887 fundou André Antoine o
e Vildanden julgou continuamente a si mesmo, assim como "Théâtre Libre" ( 14 ) para representar as peças de Ibsen
êle confessou num pequeno poema epigramático: e dos ibsenianos franceses. Mas estes, presoi ao estilo cé-
nico de Augier e Dumas Filho, n a vizinhança perigosa da
"At leve er krig med trolde tradição de Scribe, não conseguiram manter a Beriedade
I hjertets og hjernens hvaelv; do modelo. Hervieu ( lfi ) substituiu apenas "thèsea" de Du-
At digte — det er at holde mas Filho por teses mais avançadas de "moral matrimo-
Dommedag over sig selv." nial", ficando um "Ibsen de Boulevard". Brieux ( l 0 ) ousou
apresentar no palco juízes corrutos, ilfllíttcoí hereditários
"Vida significa lutar com os fantasmas no próprio cérebro e outros personagens ibsenianos; pretendeu ensinar refor-
e coração; Poesia significa julga-se a si mesmo." P o r meio mas morais e acabou moralista ao gosto dl A. ndémie Gon-
de um naturalismo aparente, Ibsen conseguiu realizar o court. O mais sério era Curei ( 1 T ), dramatizando os grandes
programa do crítico burguês Matthew Arnold, conforme o problemas de ciência e fé, capital e trftbtlho felicidade in-
qual a poesia é um "criticism of life". O resultado foi a dividual e patriotismo. Dramaturgo de seriedade total e
inversão e conversão do naturalismo, porque Ibsen era um de notável inabilidade teatral, foi recebido na Académie
realista especificamente nórdico, um realista sonhador, um Française com todas as honras de estilo; este critico da bur-
pré-romântico. guesia foi êle mesmo um dos "fossiles", aristocrata ligado à
A arma desse novo pré-romantismo, precedendo o neo- grande indústria siderúrgica.
romantismo simbolista, era a técnica teatral dos franceses Ibsen criou o teatro moderno na Inglaterra, onde não
Augier e Dumas Filho. Contribuiu isso muito para a re- existia teatro sério havia séculos. Foi o grande critico tea-
percussão internacional da propaganda que Brandes fez
em favor de Ibsen e para as vitórias avassaladoras de Ibsen
no palco, tornando-se êle o dramaturgo mais representado 14) A. Thalasso: Le Théâtre Libre, esnal arltique, htatorique et do-
cumentaire. Paris, 1909.
do século, renovando completamente a arte cénica, pelo S. M. Waxman: Antoine and the Théâtre-Libre. New York
novo estilo de falar no palco a linguagem de todos os dias 15) Paul Hervieu, 1857-1915.
Les tenailles (1895); La loi de Vhomme (1807); La oourae du
e apresentar ao público o espelho da sua própria vida ( 1 3 ). flambeau (1901).
Colunas da Sociedade, Casa de Bonecas, Espectros domina- E. Esteve: Paul Hervieu. Parta, 1017.
ram todos os repertórios. Criaram-se novos teatros para re- 16) Eugène Brieux, 1858-1932.
presentar Ibsen. Os grandes atôres italianos — Eleonore La robe rouge (1900); Les remplaçantet (1001); Le» avaries (1901)
etc.
A. Presas: Brieux. Portraít Uttéralre. Paris, 1030.
17) François de Curei, 1854-1028.
13) J. Bab: Das Theater der Gegenwart. Geschichte der dramatischen Le Fossiles (1829); Lo Nouvelle Idole (1805); Le Repas du Lion
Buehne seit 1870. Leipzig, 1928. (1897); La Filie sauvage (1902); Le Coup d'aile (1906); La Danse
W. Archeer: The Old Drama and the New. New York, ,1929. devant le miroir (1914); Terre inhumanine (1922).
E. Pronier: La vie et 1'ouvre de François de Curei. Paris, 1934.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2469
2468 OTTO M A R I A CARPEAUX

cão rapidíssima, prosperidade inédita da burguesia, explo-


trai William Archer ( 18 ) que traduziu as peças de Ibsen,
ração inédita das massas operárias e absolutismo implacá-
organizou as primeiras representações, defendeu calorosa-
vel da administração prussiana, a literatura alemã encon-
mente os seus protegidos, os ibsenianos ingleses, chegan-
do até ao paradoxo de pretender demonstrar a superiorida- trava-se numa decadência escandalosa. Keller, Raabe e Con-
de dos Pinero, Jones e Shaw sobre os dramaturgos elisabe- rad Ferdinand Meyer, grandes escritores de um tempo já
tanos. Henry A r t h u r Jones não foi nunca grande coisa. passado, eram considerados como figuras marginais. Nin-
A r t h u r Pinero revelou pelo menos a coragem, em The Se- guém conhecia os nomes de Liliencron e Nietzsche. O mun-
cond Mrs. Tanqueray (1893), de apresentar um suicídio. do oficial admirava Wagner, os burgueses leram Heyse.
"Enfin Malherbe vint." Shaw ( 1 9 ), o autor da Quintessence Spielhagen passou por muito avançado. Revoltaram-se, en-
of Ibsenism, era socialista; e isso deu maior consistência às tão, os "jovens", ou como se dizia em analogia à "Jovem
suas teses. A representação de Widowers' Houses, em 1893, Alemanha", "a novíssima Alemanha". Começou uma luta
não é só uma data histórica do teatro inglês, como também homérica ( 2 0 ).
uma data na história da consciência inglesa: os gentlemen Em Munique abriu-se a primeira brecha. O romancista
na plateia ouviram que o seu standard de vida se baseava, Michael Georg Conrad fundou em 1885 a revista "Die Ge-
tantas vezes, em rendas, recebidas da miséria e do vício dos sellschaft", atacando os epígonos e fazendo a propaganda
slums. Depois já não surpreendeu Mrs. Warren's Profes- de Zola. Mas as críticas eram melhores do que as realiza-
sion, quer dizer, a profissão do lenocínio. O poeta românti- ções. Entre os "novíssimos alemães só surgiram por en-
co Marchbanks, em Cândida, ainda é um personagem ibse- quanto, mediocridades, com a única exceção de Conradi (- 1 ),
niano, um Hjalmar Ekdal pré-rafaelita; mas já se trata de espírito genial e malogrado, lembrando muito os "génios"
problemas sociais que serão os do século XX. E Arms and do "Sturm und Drang" de 1770. A Alemanha, em fase de
the Man é a primeira grande farsa de Shaw, primeira amos- industrialização, gera novo pré-romantismo. A poesia lí-
tra de um estilo seu e novo. rica de Conradi, romântica, musical e cheia de manchas
Enfim, afirmar que Ibsen criou o novo teatro alemão< de um mau gosto total, está muito perto do naturalismo
é a verdade; mas não é a verdade inteira. N a Alemanha, romântico de um Kristian Elster. Aos vinte e oito anos de
Ibsen desempenhou, por volta de 1880, exatamente o papel idade a morte salvou-o do suicídio quase certo. " . . . Ich
que Shakespeare desempenhara em 1770: criou uma nova aber werde bald vergessen", dissera numa dai suas poesias
época da literatura alemã. Naqueles dias de industrializa- mais comovidas, profetizando o seu próprio esquecimento

is) William Archer, 1856-1924.


The Theatrical World (1894/1898); The Olá Drama anã the New 20) A. Soergel: Dichtung und Dichter der Zett. Vol. I. 19* ed. Leip-
(1923; edição americana, 1929). zig, 1928.
19) George Bernard Shaw, 1856 — 1950. L. Fischer: Der Kampb um den Naturalismus. Borna, 1930.
The Quintessence of Ibsenism (1891); Dramatic Opinions and
Essays (1906); — Widowers' Houses (escr. 1885/1892; represent. 21) Hermann Conradi, 1862-1890.
(1893); Plays Pleasant and Unpleasant (Widower's Houses, The Lieder eines Suenders (1887); Adam Mensch (1889) etc.
Philanderer, Cândida, Mrs. Warren's Profession, Arms and the Man, Edição (com biografia) por P. Symank e G. W. Peters, 3 vols.,
The Man of Destiny, You Never Can Tell; (1898). Muenchen, 1911.
Quanto às outras obras e à bibliografia, cf. "O Equilíbrio europeu", K. Apfel: Hermann Conradi. Muenchen, 1922.
nota 183.
2470
OTTO M A R I A CAHPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2471

depois de terem aparecido poetas maiores. Mas estes vie- dias e comédias "naturalistas", sempre coroadas de suces-
ram em outra p a r t e : no teatro.
sos fáceis, Sudermann abusava evidentemente das fórmulas
A situação do teatro alemão era mais desesperada que e truques dramatúrgicos de Ibsen. Fora celebrado como um
a da literatura em geral. Nunca, é verdade, havia elencos renovador do teatro europeu; depois, a crítica séria tinha
tão coerentes de atôres de primeira ordem como então no
que trabalhar durante anos para destruir-lhe a falsa celebri-
Teatro Imperial (Burgtheater) de Viena e, em segundo lu-
dade, para abrir o caminho verdadeiro.
gar, no Teatro Lessing de Berlim. Mas Sonnenthal, Le-
winsky e Mitterwurzer, em Viena, Matkowsky e Haase, em O golpe decisivo contra a combinação "Schiller nos
Berlim, não encontraram repertório adequado. As repre- domingos, farsas nos dias úteis" foi dado pelos discípulos
sentações dos "clássicos", Shakespeare e Schiller, estavam alemães de B r a n d e s : os críticos Otto Brahm e Paul Schlen-
petrificadas num estilo de idealismo convencional para os ther em primeira linha. O teatro devia servir de brecha
domingos; e nos dias úteis representavam-se Augier, Du- para derrubar a muralha chinesa em torno do orgulho ale-
mas Filho e os seus miseráveis imitadores alemães. Os mão, para reeuropeizar a Alemanha pelo naturalismo euro-
"modernos" estavam rigorosamente excluídos, por serem peu. Mas o que veio por intermédio de Brandes não foi o
"indecentes". Quer dizer, Ibsen já era conhecido, mas só naturalismo materialista dos franceses e sim o "naturalis-
se admitiram Haermaendene paa Helgeland e Kongsemner- mo" pré-romântico dos escandinavos, encontrando-se com
ne nos teatros oficiais. A influência de Brandes, que viveu o pré-romantismo correspondente à industrialização da Ale-
então em Berlim, só se fêz sentir sobre os leitores jovens, manha setentrional e oriental. Da Prússia Oriental e da Si-
entusiasmados com as Colunas da Sociedade. A representa- lésia vieram, como em 1770, os renovadores, os Hauptmann
ção de Cengangere até foi proibida pela polícia. e Holz. Em 1889 fundou Brahm, em Berlim, a "Freie Bueh-
O primeiro grande sucesso de Ibsen na Alemanha foi . ne", sociedade de representações só para sócios da associa-
Et Dukkehjem, porque as maiores atrizes desejavam brilhar ção, o que impediu a intervenção da censura. As primeiras
no papel de Nora. Quer dizer, Ibsen foi entendido como peças representadas eram Espectros, de Ibsen, e Vor Sonne-
fabricante de peças de efeito retumbante, como um Sardou naufgang, de Hauptmann. Havia uma luta épica contra crí-
do Norte. Assim o entendeu Sudermann ( 2 2 ), autor de um
tica e público assustados (*•); o velho realista Fontane
excelente romance realista à maneira de Bjoernson, Frau
ajudou muito os jovens. Em 1894, Brahm já pôde fundar
Sorge; apresentou no palco, com habilidade técnica extraor-
o grande Deutsches Theater,.em que uma equipe de atôres
dinária, os círculos aristocráticos e burgueses da nova Ber-
extraordinários — Else Lehmann e Agnes Sorma, Rittner
lim, e, em Heimat (O Lar), criou o grande papel de Magda,
e Sauer — criaram o novo estilo de conseguir efeitos verda-
que levou a peça pelo mundo inteiro. E m inúmeras tragé-
deiramente trágicos sem falsa retórica, na linguagem da
vida quotidiana e até no dialeto dos camponeses silesianos.
22) Hermann Sudermann, 1857-1928.
Frau Sorge (1887); Der Katzensteg (1889); Ehre (1889); Sodoms
Ende (1890); Heimat (1893), et., etc.
K. Busse: Sudermann, sein Werk und sein Wesen. Berlin, 1927. 23) Heinr. Hart: Literarische Erínnerungen. Berlin, 1906.
2472 OTTO MARIA CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2473
Esse novo estilo era o mérito dos escritores, hoje quase
Hauptmann ( 25 ) era um jovem escultor e poeta diletan-
esquecidos, Holz e Schlaf ( 2 ' 1 ). Arno Holz era, por nature-
te, tipo de adolescente schilleriano, cheio de idealismo e de
za, um fino lírico pós-romântico, no estilo popular da poe-
uma vaga saudade do longínquo, do novo, mas preso no epi-
sia-alemã: em versos tradicionais proclamou, no Buch der
gonismo. Um pós-romântico que, de repente, se tornou
Zeit (O Livro da Época), o naturalismo e o socialismo, "es-
pré-romântico, quando conheceu Zola, Ibsen e "Bjarne P.
crevendo glosas vermelhas no livro preto dos pecados do
Holmsen". Estes inspiraram-lhe a coragem de escrever Vor
nosso tempo". Só mais tarde libertou-se da métrica tradi-
Sonnenaufgang (Antes da Aurora) tragédia de um jovem
cional, compondo o famoso volume Phantasus em versos
engenheiro socialista, incapaz de vencer a atmosfera pesa-
livres, whitmanianos. Schlaf era uma natureza profunda,
da de uma aldeia silesiana em plena industrialização: ope-
torturada por angústias religiosas. Só raramente conseguiu
rários e camponeses, bestificados pela exploração, o álcool
poesia pura, como no esplêndido idílio naturalístico Frueh-
e a sífilis. A peça é naturalista; representando sem enfei-
ling (Primavera); entre as suas obras, até uma tragédia na-
tes a verdade crua, imitando com exatidão fonográfica a
turalista como Meister Oelze dá a impressão de uma luta
linguagem daquela gente. Porém Hauptmann pretendeu ser
cósmica n a alma de u m pobre operário. E m colaboração,
naturalista, e não objetivo: o "élan vital" da sua criação
Holz e Schlaf escreveram os três pequenos contos dialoga-
foi e ficou sempre a imensa compaixão com a miséria do
dos do volume Papa Hamlet, imitando com observação agu-
povo, dos deserdados e desgraçados. Mas nunca se tornou
díssima a linguagem quotidiana, de frases incompletas, ca-
paz de produzir efeitos cómicos e trágicos, de sugerir pers-
pectivas e angústias. T ã o grande era então o prestígio dos
escandinavos que Holz e Schlaf publicaram o volumezinho 25) Gerhart Hauptamann, 1862-1946. (Of. nota 63.)
Promethiedenlos (1885); Bahnimerter Thlel (1887)j Vor Sonne-
sob o pseudónimo de Bjarne P. Holmsen; e a este poeta no- naufgang (1889); Das Friedensfest (1890); Einaame Menachen
(1891); Kollege Crampton (1892); Die Weber (1892); Der Biber-
rueguês imaginário dedicou Gerhart Hauptmann, "cheio pelz (1893); Hanneles Himmelfahrt (1893); Michael Kramer
de gratidão pelas sugestões decisivas que recebi", o seu pri- (1900); Florian Geyer (1895); Die versunkene Olocke (1896);
Fuhrmann Henschel (1898); Schluck und Jau (1900); Der arme
meiro drama: Vor Sonnenaufgang (Antes da Aurora). Heinrich (1902); Rose Bernd (1903); Elga (1905); Vnd Pippa tanzt
(1906); Die Jungfern von Bischofsberg (1907); Der Narr In Chris
Emanuel Quint (1910); Die Ratten (1911); Gabriel Schilltngs
Flucht (1912); Der Ketzer von Soana (1918); Dorothea Anger-
mann (1826); Vor Sonnenuntergang (1932), Iphigenie in Aulis
24) Arno Holz, 1863-1929, e Johannes Schlaf, 1862-1941. (1943), etc, etc.
Obras de Holz e Schlaf em colaboração: Papa Hamlet (1889); Edição (incompleta) pelo autor, 12 vols., Berlin, 1922.
Familie Selicke (1890). G. Witkowski: Hauptmanns Ndturalismus und das Drama. Ham
Obras de Holz: Buch der Zeit (1885); Phantasus (1899); Dafnislie- burg, 1906.
K. Hoffmann: Hauptmanns Symbolismus. Berlin, 1908.
der (1904), etc. P. Schlenther: Gerhart Hauptmann, Leben und Werke. 3.a ed.
Obras de Schlaf: Meister Oelze (1892); Fruehling (1894); Am Berlin, 1922.
toten Punkt (1909), etc. P. Fechter: Gerhart Hauptmann. Dresden, 1922.
H. W. Fischer: Arno Holz. Berlin, 1924. G. Vollmers-Schulte: Hauptman und die soziale Frage. Dort-
W. Milch: Arno Holiz, Theoretiker, Kaempfer, Dichter. Berlin, mund, 1923.
H. Spiero: Gerhart Hauptmann. 4.* ed. Berlin, 1925.
1933. W. Ziegenfuss: Gerhart Hauptmann. Dichtung und Gesellschaft-
K. Turley: Arno Holz. Berlin, 1935. sidee der Cuergerlichen Humanitaet. Berlin, 1949.
L. Baete e K. Meyer-Rotermund: Johannes Schlaf, Leben und H. F. Garten: Gerhart Hauptmann. New Haven, 1954.
Werk. Weimar, 1933.
2474- OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2475

membro do partido socialista nem aderiu à ideologia mar- um grande e algo confuso panorama histórico da revolução
xista; Hauptmann foi "socialista" num sentido muito vago camponesa do século X V I . O desfecho das tragédias de
da palavra: no fundo.j^im herdeiro das tradições humani- Hauptmann nunca é trágico, sempre só é triste. Mas salva-o
tárias de melhor porte da burguesia culta alemã; mais tarde, o lirismo intenso do seu coração. Nos Weber (Tecelões),
já velho, gostou da semelhança casual de sua cabeça com a um pequeno-burguês zomba dos impotentes gritos revolu-
do velho Goethe. Hauptmann não tinha ideologia própria cionários dos tecelões, mas um velho operário, que também
nem sequer ideias — o herói do seu drama "ideológico" desaprova a revolta, responde desculpando-os: "Meu Deus,
Einsame Menschen (Homens Solitários) é um livre-pensa- toda criatura tem uma saudade". Essa saudade fraca é a
dor sem força de vontade, caricatura de Rosmer. O drama- força do poeta Gerhart Hauptmann, coração humaníssimo.
turgo nunca foi grande intelectual. À falta de ideias, na É uma força lírica. A prosa de ficção não sabia imitá-
sua obra, corresponde a incoerência, até a inabilidade da la. Kretzer ( 2C ), o "Zola de Berlim", passou por renovador
composição dramatúrgica. Mas já grande artista pela ca- porque descreveu os slums; mas seu estilo é o de Spielha-
pacidade de criar atmosfera. Os seus melhores dramas pa- gen, e os enredos complicados lembram a S u e i Kretzer tam-
recem dramatização de baladas tristes assim como as can- pouco era socialista; acabou num vago tolstoianisrno. A
ta o povo. Assim a sua obra mais permanente, Die Weber atmosfera dos subúrbios respira-se antes em Das taegliche
(Os Tecelões): é sem enredo coerente, só um tableau da Brot (O Pão de Todos os Dias) (1900), de Clara Viebig,
revolta dos tecelões silesianos em 1840, desesperados pela romance de uma criada infeliz — tema predileto do natura-
vitória das máquinas e a fome. Revolta sem consequências, lismo. O mesmo tema, em língua holandesa, menos dura,
peça incoerente, sem outro herói do que a massa que não é se encontra em Geertje (1905), de Johan de Meester7 a
capaz de agir e se perde dolorosamente. Mas um canto obra mais lírica, mais "hauptmanesca", do naturalismo ho-
mais comovido do sofrimento humano nunca foi ouvido num landês.
teatro, senão em outra peça de Hauptmann: em Hanneles
Os elementos da arte de Hauptmann são o realismo
Himmelfahrt (Ascensão de Hanneíe); mais uma tragédia
pré-romântico e, doutro lado, a compaixão com as vítimas
"passiva", a de uma criança martirizada, morrendo entre
desgraçadas do capitalismo, vítimas do determinismo eco-
alucinações febris do Céu. Todos os "heróis" de Haupt-
nómico que se afigurou aos naturalistas como determinismo
mann são desgraçados abúlicos; Fuhrmann Henschel e Rose
biológico e mesológico. Dali era difícil chegar ao marxis-
Bernd, outras vítimas comoventes das condições sociais e
mo. Só chegaram a um "socialismo" vago, sem ideologia
da maldade dos mais fortes, acabam no suicídio. São tão
definida: é a variedade social da conversão do naturalis-
incapazes de ação como os tecelões, como o próprio Haupt-
mo. Encontra-se esse socialismo sentimental nas páginas
mann, vacilando perpetuamente entre os estilos. Tentou
de Descaves, Gissing e Pérez Galdós; com clareza maior,
tudo, e às vezes acertou: Der Biberpelz (A Pele de Castor)
na segunda parte de Over Aevne; e, já antes, no grande
é uma brilhante sátira contra a arrogância imbecil da admi-
nistração prussiana; é a única obra de Hauptmann na qual
se adivinha a verdadeira luta de classes, embora travada, 26) Max Kretzer, 1854 — 1941.
picarescamente por ladroes e receptadores: não a guerra, Die beiden Genossen (1879); Meister Timpe (1888); Die Bergpre-
mas a guerrilha do proletariado. Florian Geyer, enfim, é digt (1890); DerMillionenbauer (1891); Das Oesicht Christi (1897;
G. Kell: Max Kretzer, a Study in German Naturalism. New York.
1928.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2477
2476 OTTO M A R I A CARPEAUX

social. No maior dos seus poemas, Bergpsalm, exprimiu


lírico português Antero de Quental ( 2 7 ), que fora mem-
Dehmel de maneira simbólica a luta íntima; na negra flo-
bro da Primeira Internacional. Uma grande corrente
resta de pinheiros, perto de Berlim, assaltam-no todas as
de lirismo social, entre religioso e revolucionário, percor-
angústias do individualismo físico e moral, mas o panora-
reu então a Europa. Holz sacrificou-lhe no Buch der Zeit,
ma da imensa cidade lá em baixo, cheia de fumaça, trabalho
e a sua reforma da métrica tradicional veio intensificar a
e miséria comuns de todos, sacode-lhe a alma, chamando à
expressão da nova sensibilidade. Mas quanto à poesia ale-
ação consciente:
mã, o fato decisivo era a conquista, contra a resistência dos
epígonos, 4e uma nova sinceridade, capaz de produzir a " . . . Empor, lass' deine Sehnsucht Taten zeugen;
"atmosfera lírica", já restabelecida na poesia de Storm e Hinab, H e r z ! Auf, Oehirn! Hinauf! Hinab!"
Liliencron. O novo contato com o povo levou os líricos ale-
mães à fonte permanente da sua arte, à poesia popular. Um Em Der Arbeitsmann (O Operário), Dehmel exprimiu a
amigo do oficial Liliencron, mais tarde o editor das suas maior saudade do operário de entlo — dispor de mais tem-
obras, Richarfl Dehmel ( 2 8 ), tornou-se o maior poeta social po livre — com uma ameaça vaga no fim; e o Erntelied
da literatura alemã; pequeno intelectual, êle mesmo veio (Canção da Safra) já é um grandioso manifesto revolucio-
do povo. Mas o motivo fundamental do seu lirismo foi nário, profecia de uma "tempestade que limpará os campos,
erótico. Dehmel é o poeta erótico mais apaixonado, mais para que ninguém mais tenha fome":
violento, da poesia alemã, às vezes um poeta de orgias de-
senfreadas, às vezes o poeta das angústias sexuais que mar- " E s fegt der Sturm die Felder rein,
tirizam corpo e alma: Es wird kein Mensch mehr Hunger schrei'n,
Mahle, Muehle, mahle!"
" . . . O kaemst du doch!
Mas Dehmel também não foi socialista de convicções se-
Die Rosen leuchten immer noch."
guras. Perdeu-se novamente no erotismo romanesco do poe-
Erloesungen, "salvações", chamou-se o primeiro volume de ma épico Zwei Menschen. A rica produçfio de Dehmel pre-
Dehmel; e os versos só falavam de "salvações" físicas. O judicada pela forma impura e desleixada, e, depois, pelo
terceiro volume já se chama Weib und Welt, "Mulher e abandono daquela mentalidade sociallzante na Alemanha,
M u n d o " : o erotismo egocêntrico, superado pelo sentimento caiu quase em esquecimento; salvaram-se só umas poesias
de lirismo íntimo, como "Die stille Stadt" e "Im Maerz",
dignas de Liliencron.
27) Cf. "Advento da burguesia", nota 75. O que Dehmel foi para a Alemanha foi durante alguns
28) Richard Dehmel, 1863-1920.
Erloesungen (1891); Aber die Liébe (1893); Weib und Welt .1896); anos para o mundo inteiro a poetisa italiana Ada Negri ( 2 0 ),
Zwei Menschen (1903).
Edição pelo autor, 2.B ed., 3 vols. Berlin, 1913 (3.° ed., 1920). 29) Ada Negri, 1870-1945.
K. Kunze: Die Dichtung Richard Dehmels ais Ausdruck dez Zeit- Fatalità (1892); Tempeste (1898); Maternità (1908); Esilio (1914);
seele. Leipzig, 1914. Libro di Mara (1919); Stella Mattullna (1921).
J. Bab: Richard Dehemel. Leipzig, 1926. A. Frattini: Ada Negri. Mllano, 1921.
H. Slochower: Richard Dehmel, der Mensch und der Denker. A. Mannino: Ada Negri nella letteratura contemporânea. Roma,
Dresden, 1928. 1933.
P. v. Hazen: Richard Dehmel. Die dichterische Komposition sei- V. Schilirò: Itinerário spirituale di Ada Negri. Milano, 1938.
nes lyrischen Gesamtwerkes. Berlin, 1932.
2478 OTTO M A B I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2479

famosíssima então e hoje esquecida. Fatalità e Tempeste, O mais poderoso, de longe, entre todos esses poetas so-
os títulos dos seus primeiros volumes, exprimiram bem a ciais é o menos conhecido: o tcheco Petr Bezruc ( 3 1 ), por-
angústia da opressão e a vontade revolucionária da pequena ta-voz dos operários-minelros da Silésia então austríaca.
professora primária, perdida entre a miséria dos operários Essas indicações ainda n i o definem exatamente o autor
da rizicultura na Lombardia; e o vago socialismo sentimen- das Canções Silesianas. Bezruc viveu entre camponeses bru-
tal e humanitário que dominava então todos os intelectuais
talmente explorados pelos terrntenifíntva, qut tinham des-
italianos, esperando
coberto no subsolo dos seu* lai > o precioso carvão,
transformando aqueles c a m p o n o t »
" . . . che vinti non avrà nè vincitori,
talmente explorados. O socifllUmo d* Boitruc é
che non avrà nè servi nè padroni."
tico", vago, incluindo expressõta d« igreaslvo
Ada Negri nunca se cansou de procurar um estilo pessoal, contra os judeus e contra oa "• ale-
através das angústias íntimas da sua feminilidade: mães que oprimem os tcheco». Mim Bom. i>
"Madri noi siamo per Tangoscia e il pianto." generis: homem de uma finni-
Mas Ada Negri não possuía personalidade bastante forte. trícios vivem, misturados com .il< i - pol
Perdeu-se num decadentismo nervoso; e após o casamen- timo canto do país tcheco, "I id<
to com um fabricante rico abondonou todas as aspirações tepassados"; os imigrantes polonem
sociais. Dos seus versos pouco sobreviverá, talvez só a lem-
<o golpe de misericórdia àquela tribo
brança da paisagem lombarda:
Enfim, Bezruc não é operário. Vivi
cabana nas montanhas, Vlad'
"Nel paese di mia madre, quando il tramonto
<leiro nome, revelado só em 1937 - lho dum
s'insanguina obliquo sui p r a t i . . . "
clorista; e o seu livro é mesmo
Com Ada Negri parece-se muito a poetisa polonesa Marja «ções de uma emoção e de u
Konopnicka ( 3 0 ), cujo poema épico Senhor Baleei no Brasil ratura universal, e de toda a ali>
trata dos sofrimentos dos camponeses poloneses emigrados sia popular. Bezruc escreveu MÓ ÔM
para a América. A crítica achou que a tendência social pre- voz de uma raça, morrendo entra o
judicava os versos melodiosos, românticos, da poetisa; tal- industrial e da perseguição nacionallain A úl
vez o romantismo prejudicasse antes a tendência, inspirada popular que se escreveu na '
por mero sentimentalismo.

:31) Petr Bezruc (pseudónimo .!.• Vlu.iln.li- Vaaak), IM7 — 1968.


30) Marja Konopnicka, 1846-1910. Canções silesianas (1909).
O Senhor Balcer no Brasil (1892/1901); Itália (1901). V. Martinek: Petr Bezruo, MorftVftka Oatrava, 1037. (Em língua
J. Dickstein-Weilezynska: Marja Konopnicka. Warszawa, 1927. tcheca.)
(Em língua polonesa.) J. V. Sedlak: Petr Bezruc. Praha, 1831. (Em língua theca.)
J. Slomcynska: Marja Konopnicka. Lodz, 1946. (Em língua po- A. Cronia: Petr Bezruc. Romu, 1932.
lonesa.)
2480 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2481

Algo de semelhante só existe numa poesia isolada do reivindicações da gente na Rússia. A chefia coube, en-
romeno Cosbuc ( 8 2 ), poeta erudito, discípulo longínquo de tão, a Tchernichevski ( 8 5 ), cujo romance O Que Fazer? é
Mistral, tradutor de Homero, Virgílio e Dante. Mas a mi- o outro documento principal da "literatura de acusação".
séria infinita dos seus patrícios camponeses, servos dum Substituiu a filosofia alemã pelo positivismo anglo-saxôni-
feudalismo meio oriental, arrancou-lhe, uma vez, os versos co, estimulando o movimento dos "Narodniki", pequenos
revolucionários de "Noi vrem pamant", "Queremos terra!";,
intelectuais que "iam para o povo", isto é, passaram a viver
e essa canção foi o grito de batalha nas revoluções agrá-
nos subúrbios dos proletários e nas aldeias camponesas para
rias de 1895 e 1906, e não ficou esquecida em 1917 e mais
conhecer-lhes as necessidades e pregar a revolução. Aí se
tarde.
revela a razão de ser da "literatura de acusação" na Rússia
A prosa que acompanha essa poesia social, é "literatu- tzarista: num país sem imprensa livre, sem universidades
ra de acusação": denunciando as injustiças económicas e livres, até sem púlpido livre, o romance desempenhou as
sociais. H á muito disso em Zola e em todos que o imita- funções do jornal, da tribuna e da cátedra de sociologia.
ram. Em certo sentido é Kielland o mais característico dos A literatura de Saltykov-Chtchedrin ( 30 ) desempenhou to-
"acusadores", porque é individualista sem ideologia defini- das essas funções: apurar os fatos da vida na província,
da. Então, um romance intensamente egocêntrico como responsabilizar as autoridades, divulgar as acusações. Nes-
Fome (1890), de Hamsun ( 8 3 ), era capaz de ser considerado se sentido, a Intelligentzia interpretava o documento fun-
como peça de literatura socialista. O modelo dos "acusa- damental da literatura russa do século XIX, o Capote de
dores", a "literatura de acusação" russa, era mais radical, Gogol; e dessa interpretação saiu a poesia tendenciosa de
mas não melhor fundamentada; também se tratava de do- Nekrassov ( 3 7 ).
cumentos de uma revolta de intelectuais.
Explica-se assim o grande sucesso-popular de Nekras-
O primeiro documento da "literatura de acusação" rus- sov. Mas o instrumento próprio da "literatura de acusação"
sa fora o romance De Quem é a Culpa?, de Herzen ( 3 4 ) r é o romance; e aí o começo coube a Pissemski ( 8 8 ), injusta-
com cuja atividade jornalística começou a época da Intel- mente eclipsado, depois, por Saltykov e Tolstoi. É um ro-
ligentzia, quer dizer, dos intelectuais mais ou menos prole- mancista poderoso, observador agudíssimo da corrução bu-
tarizados que pretendiam traduzir as teorias subversivas, rocrática (Mil Almas) e da perturbação da vida agrária
importadas do Ocidente, em prática revolucionária. Para
isso era preciso estabelecer a relação entre a flosofia he-
geliana e as realidades sociais russas. Mas o exilado H e r - 35) Cf. "Advento da burguesia", nota 86.
zen, isolado da sua terra, só era hegeliano; mais exatamen- 36) Cf. "Advento da burguesia", nota 91. -
t e : "jovem hegeliano"; e perdeu, enfim, o contato com a s 37) Cf. "Advento da burguesia", nota 87.
38) Alexei Feofilaktovitch Pissemski, 1820-1881.
Mil Almas (1858); ATar Tempestuoso (1863); — Destino Amargo
32) Gheorghe Cosbuc, 1866-1918. 1859).
Baladas e idílios (1893); Noi vrem pamant (1895). Edição por P. Berkov e M. Kleman, 8 vols., Leningrad, 1932.
L. Santangelo: Gheorghe Cosbuc. Roma, 1934. S. A .Vengerov: Pissemski. Petersburgo, 1884. (Em língua russa.)
I. I. Ivanov: Alexei Feojilaktovitch Pissemski. Petersburgo, 1899.
33) Cf. "O Equilíbrio europeu", nota 99. (Em língua russa.)
34) Cf. "Advento da burguesia", nota 84. P. Berkov e M. Kleman: Introdução, vol. I, da edição citada.
2482 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2483

pela emancipação dos servos (Mar Tempestuoso), reunindo dre I I , em 1881. O movimento revelou assim as suas fra-
de maneira admirável a composição coerente, a objetivida- quezas ideológicas, o seu caráter meio anarquista; e dei-
de documentária e a sátira amarga, tão amarga como a de xou, como resíduo, um pessimismo amargo. Garchin ( 41 ) é
Saltykov. Retomou assuntos de Gogol, tratados sem hu- a expressão desse pessimismo. As suas "acusações" já se
morismo grotesco, mas com objetividade emocionada seu dirigem menos contra o regime do que contra as falhas dos
drama Destino Amargo é um "clássico" do teatro russo. próprios revolucionários, ou então contra males não espe-
O sucesso de Pissemski foi muito grande. Mas as suas cificamente russos mas gerais, inerentes à organização da
outras obras decepcionaram a critica pela tendência mode- sociedade em toda parte. Pelo menos interpretou-se assim
rada; e enfim Pissemski caiu, como já acontecera com Less- "Quatro Dias", um dos contos mais famosos da literatura
kov, no ostracismo. russa: descrição dos sofrimentos de um ferido, abandona-
Os outros "acusadores" não têm a força de Pissemski; do num campo de batalha da guerra turco-russa. O conto
mas recompensam pela documentação de primeira mão, so- foi comparado aos célebres quadors do pintor Verechtcha-
bre ambientes ainda não explorados; eram menos "narodni- gin e fêz impressão tremnda no movimento pacifista, que
k i " do que mesmo gente do povo, despertada pela propa- naquela época se iniciou. Garchin, porém, era mais artista
ganda. Rechetnikov ( 30 ) redescobriu a aldeia russa, depois do que propagandista; esse "Maupassant russo" é mestre na
das idealizações do romantismo; e a gente ficou horrorizada descrição do ambiente dos intelectuais russos, das suas es-
com a vida bestial dos camponeses da região do Kama, em peranças e angústias e, as mais das vezes dos seus fracassos.
Os Podlipovos, uma das obras mais brutais desse naturalis- Observou, com exatidão quase cruel, os movimentos psico-
mo russo, de valor só documentário. Revela-se maior "preo- lógicos em situações extraordinárias. Manifestou essa preo-
cupação humana" em Poder da Terra, de Uspenski ( 4 0 ), cupação no conto "A Flor Vermelha", análise magistral da
tratando o mesmo assunto. Mas a sua grande descoberta loucura, à qual êle mesmo devia sucumbir pouco mais tar-
está em outra obra, Os Costumes da Rua Perdida: a misé- de. Na sua especialidade, Garchin não tem pares na litera-
ria dos novos subúrbios, formados pelo êxodo das popula- tura russa, embora a atmosfera dos seus contos já seja a
ções rurais para as grandes cidades. dos contos de Tchekhov. Mas parece-se muito com êle um
escritor romeno — a literatura romena "russificou-se" de-
O movimento dos "narodniki" tornou-se depois de 1870 pois da guerra de 1876 — J o n Caragiale ( 4 a ) : Faclia de
violentamente revolucionário, agindo por meio de atentados
e sofrendo opressão cada vez mais rigorosa, até quase desa-
parecer nos dias da guerra contra a Turquia e voltar, depois, 41) Vsevolod Mikhailovitch Garchin. 1855-1888.
com violência redobrada, até o assassínio do tzar Alexan- Quatro Dias (1872); Os Artistas (1879); A Flor Vermelha (1883);
Nadeshda Nikolaivna (1885).'
Edição por A. Skabitchevski, Petersburgo, 1919.
E. Zelm: Studien ueber Qarchin. Berlin, 1938.
M. Belaiev: Garchin. Moscou, 1938. (Em ltngua rusBa.)
39) Fedor Mikhailovitch Rechetnikov, 1841-1871.
Os Podlipovos (1864). 42) Jon Caragiale, 1852-1912.
A. Desiatov: Biografia de Fedor Mikhailovitch Rechetnikov. Ka- Cuconul Leonida (1879); O scrisoarer pierduta (1884); Teatru
san, 1897. (1889); Faclia de Paste (1889); Napasta (1890); Pacat (1892.)
Edição por P. Zarlíopol, 3 vols., Bucurestl, 1930.
40) Gleb Ivanovitch Uspenski, 1840-1902. G. Ibraijeannu: Scritori st curente. Bucurestl, 1909.
Os Costumes da Rua Perdida (1866); O Poder da Terra (1882). B. Jordan e L. Predescu: Traaícul destin ai unui maré scriitor. Bu-
I. Kubljov: Uspenski, Moscou, 1925. (Em língua russa.) curestl, 1939.
2484 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2485
Paste (A Vela de Páscoa) é a história dum judeu romeno
supersticioso, vivendo em medo pânico de pogroms; e quan- tinha ficado, durante anos, no exílio, na Sibéria; e os seus
do um ladrão, na noite de Páscoa, lhe assalta a casa, preten- Contos Siberianos reuniram muito agradavelmente o en-
dendo arrombar a porta, o judeu prende-lhe a mão numa ar- canto da paisagem exótica, o interesse geográfico-antropo-
madilha, queimando-a lentamente, até a morte do "goj" lógico pelos povos estranhos daquelas regiões longínquas,
odiado; depois, encaminha-se ao rabino para expiar o crime a compaixão para com os exilados políticos e o horror do
de ter "acendido uma vela de Páscoa ao Cristo". É um dos regime tirânico que os exilara. E n t r e os leitores europeus,
contos mais impressionantes da literatura universal. Cara- Korolenko foi durante muitos anos mencionado ao lado de
giale foi um escritor genial, um autêntico "acusador", em- Tolstoi e Dostoievski, até esses grandes o eclipsarem, en-
bora de tendência diferente. Insatisfeito com o parlamenta- fim; o seu lugar foi ocupado, entlo, por Gorki, cujos pri-
rismo corruto dos latifundiários romenos que se deram ares meiros contos revelam conhecimento intimo do seu pre-
de liberalismo, aderiu, como Eminescu, ao movimento con- cursor: Korolenko é mesmo o precursor da literatura pro-
servador da "Junimea", e numa série de comédias extraor- letária; e os russos nunca lhe retiraram as simpatias. Pare-
dinariamente mordazes zombou da desproporção grotesca cia "radical", mas era, no entanto, antes um liberal sem
entre as instituições liberais e o ambiente meio oriental da grandes gestos revolucionários; cultivou a "literatura de
Roménia. Sobretudo Scrisarea pierduta (A Carta Perdida), acusação", mas sem brutalizar os leitores; parecia "natura-
sátira contra os costumes eleitorais, é uma obra-prima. lista", mas era antes um realista moderado, encontrando-se
com o gosto sentimental das grandes massas e escrevendo
A transição dos "narodniki" aos socialistas é só indire- num estilo cultivado, que agradou aos intelectuais. Nin-
ta. Na realidade, o movimento, sufocado depois de 1881, guém sabia colher os aplausos unanimes da Rússia como
apareceu de novo. Apenas na literatura há um intermediá- Korolenko o sabia; e quando o seu estilo literário saíra da
r i o : Korolenko ( 4 3 ). Foi um realista moderado, de simpatias moda, o escritor passou-se psra o socialismo militante; ti-
algo sentimentais para com os sofrimentos humanos, mas nha acertado, outra vez. O seu livro de memórias, Histó-
sem exacerbar a tendência, até atenuando-a pelo humorismo ria do meu Contemporâneo, i uma obra importante e lei-
delicado do estilo. Nenhum outro russo parece-se tanto com tura agradável ao mesmo tempo, o testamento de uma épo-
Dickens. Todas essas qualidades revelaram-se de maneira c a ; e assim será sempre lido.
magnífica no seu conto "O Sonho de Makar", que o tornou
logo famosísismo na Rússia e no estrangeiro. Korolenko Os defeitos de Korolenko slo a pouca compreensão dos
movimentos de transformação social e a incapacidade de
manejar formas mais extensas do que o conto, género em
43) Vladimir Galaktionovitch Korolenko, 1853-1921.
O Sonho de Makar (1885); Má Companhia (1886); A Floresta que não cabe a imensidade dos problemas suscitados. Esses
que Murmura (1886); O Vagabundo (1887); O Músico Cego (1888); defeitos aparecem superados nas obras muito menos conhe-
Contos Siberianos (1859); História do meu Contemporâneo (1909/
1922) etc. cidas de Mamin ( 4 8 _ A ), que usou, as mais das vezes, o pseu-
Edição Nacional, 24 vols., Kharkov, 1923/1929.
E. F. Nikitina: Vladimir Galaktionovitch Korolenko. Moscou, 1928.
4SA) Dmitri Narkisovitch Mamin-Siblriak, 1852-1912.
(Em língua russa.) Os Milhões de Privalov (1883); Ouro (1892), etc.
K. Haensler: Vladimir Korolenko und sein Werk. Koenlgsberg, Edição das Obras completas, 24 vols,, Petersburgo, 1951/1957.
1930.
G. A. Balli: Vladimir Galaktionovitch Korolenko. Moscou, 1949. M. Nevedomskl: "Dmitri Narkisovitch Mamin". (In: História da
(Em língua russa.) literatura russa no século XIX, edit. por D. N. Ovsianiko-Kulli-
kovski. Vol. V. Moscou, 1911. (Em língua russa.)
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dônimo "Sibiriak", porque seus romances se passam na re- se particular, os contos de Kuprin são muito superiores às
gião do Ural. Foi algo como o especialista da descriçãc novelas de Andreiev ( 4 5 ), nas quais a Europa de 1905 e
desse ambiente inteiramente novo: a destruição da socieda- 1910 reconheceu e admirava a "rer idade russa": os hor-
de arcaica daquela região pela descoberta das jazidas d< rores da guerra russo-japonêsa, a opressão policial, o martí-
ouro. Descreveu essa transformação económica com com- rio dos revolucionários. Mas faltava a Andreiev a paciên-
preensão admirável dos fatos sociais. Mas é mais admirá- cia necessária para retratar essa realidade. Sem dúvida, as
vel o grande sopro épico das suas obras: daí a relativo novelas de Andreiev são ainda hoje capazes de fazer forte
objetividade; mais importantes que as teses são os destinos impressão sobre leitores menos prevenidos; Os Sete En-
humanos. Por motivo dessa objetividade, Mamin só foi forcados, descrição das últimas horas de revolucionários
lido, na Rússia, como autor "interessante" e exótico; o pú- condenados à morte, é um golpe de mestre de virtuosidade
blico estrangeiro, esperando dos escritores russos outras literária. Andreiev é o representante russo da "tale of hor-
coisas, não tomou conhecimento dele. Só recentemente as ror". Sacrifica ao sensacionalismo mais crasso, irritando
obras de Mamin começam a ser traduzidas na Europa. os nervos dos leitores. O seu estilo impressionista, requin-
tado, já revela conhecimento dos truques do simbolismo.
O grande herdeiro da "literatura de acusação" será
Andreiev é um decadente, daí um pessimista, incapaz de
G o r k i ; mas este já é diferente, sendo poeta, o que os seus
compreender as esperanças revolucionárias, até incapaz de
predecessores prosaicos não eram, e sendo marxista, o que
compreender a própria revolução, cujas teses lhe serviram
tampouco eram. A "literatura de acusação" à maneira anti-
de pretextos para espetáculos literários. Andreiev ainda
ga, meio naturalista meio anarquista, continuou uma exis-
era capaz de lamentar as vítimas da revolução malograda de
tência anacrónica; e não foi por acaso que os seus últimos
1905, mas já incapaz de aderir à revolução vitoriosa de 1917.
representantes, frequentemente, não aderiram à revolução
E n t r e esses últimos "acusadores", só Veressaiev ( 40 ) pa-
comunista. Na Europa não se compreenderam bem essas dis-
rece ter conseguido isso: Gorki ainda estava mal conhecido
tinções sutis; os últimos "acusadores" foram considerados
quando Veressaiev impressionou a Europa com os Esbo-
como revolucionários autênticos, mesmo quando só se tra-
ços do Médico; e pouco antes da morte de Gorki o mesmo
tava de sensacionalistas crus; e exagerou-se-lhes muito o
Veressaiev, muito velho, apareceu entre os escritores sovié-
valor literário. Kuprin ( 4 4 ), o romancista dos bordéis e da
ticos. Como "último dos realistas e primeiro dos soviéti-
corrupção moral entre os oficiais do exército tzarista, foi
elogiado como um Zola russo. Mas esses romances já são
pouco lidos, hoje em dia. Kuprin não dominava a grande
forma. É excelente, porém, nos contos, em que a influência 45) Leonid Nikolaievitcn Andreiev, -1871-1919.
O Abismo (1902); Na Névoa (1902); O Riso Vermelho (1904);
de Maupassant é evidente. "Capitão Rybnikov", "Lama", Judas Isjariot (1907); Os Sete Enforcados (1908); Sachka Zegulov
"O Rio da Vida" são pequenas obras-primas, evocações de (1911), etc.
um ambiente especificamente russo, hoje desaparecido. Nes- V. Lvov-Rogatchevski: Leonid Andreiev. Moscou, 1923. (Em lín-
gua russa.)
A. Kaun: Leonid Andreiev, a Criticai Study. New York, 1924.
46) Vikenti Veressaiev, 1867-1946.
Os Esboços do Médico (1901); Irmãs (1933).
44) Alexei Ivanovitch Kuprin, 1870-1938. S. Brzosek: Vida e obra de Veressaiev. Leningrad, 1930. (Em lín
O Duelo (1905); A Fossa (1912) etc, etc. gua russa.)
Oh. Ledré: Trois romanciers russes. Paris, 1935.
2188 OTTO M A M A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2489

cos" festejou-se o excelente contista Zamiatin (* 7 ); mas Os grandes escritores da época pertenceram todos, mais
êle também acabou como anti-revolucionário; sua "utopia ou menos, àquele tipo que William James, estudando a psi-
às avessas", Nós, é uma vigorosa sátira contra o regime to- cologia da religião, denominou "twice b o m " : homens como
talitário, antecipando a antiutopia de Orwell (1984). Com Santo Agostinho, Lutero e Pascal, que "nasceram duas ve-
esse "acusador" contra-revolucionário fechou-se u m ciclo zes", iniciando nova vida depois de uma conversão às vezes
da literatura russa. violenta, sempre dolorosa. A presença dos "twice-born" é
característica da época da "conversão do naturalismo": Ib-
A "literatura de acusação" russa, por mais eficiente que
sen, Strindberg, Dostoievski experimentaram conversões as-
fosse como propaganda, tem algo de ineficaz como litera-
sim, embora de tendências diferentes; até Zola, entre La
t u r a ; envelheceu rapidamente. Aos "acusadores" faltava
Débâcle e os Quatre Evangiles. O "caso" de Tolstoi ( 40 )
inspiração para transfigurar as massas da documentação.
é este mesmo: foi êle ou não um "twice-born"? A biogra-
As acusações, por mais justificadas que tivessem sido, fica-
fia parece indicá-lo claramente. Depois da primeira crise
vam monótonas. Não é possível acusar continuamente. O
religiosa na meninice, o estudante e oficial entregou-se ao
aspecto muda, porém, quando a acusação se torna auto-
deboche usual da jeunesse dorée aristocrática; libertou-se
acusação; quando o acusador — De quem é a culpa? — en-
gradualmente, no Cáucaso, na guerra da Criméia, nas via-
contra a culpa em si mesmo. Então abrem-se outras pos-
gens europeias que lhe sacudiram pela primeira vez a cons-
sibilidades de transfiguração literária, sobretudo entre os
russos que, como todos os eslavos, se inclinam a certo ma-
soquismo. Mas os intelectuais proletarizados não tinham 49) Lev Nikolaievitch Tolstoi, 1828-19lu
Infância (1851); Meninice (1854); Scbastopol (1865); Mocidade
motivo para acusar-se a si mesmos. Tinham-no os latifun- (1856); Dois Hussarãos (1856); Tempestade de Neve (1856); Lu-
diários e outros proprietários aristocráticos de terras, acos- zem (1857); O Príncipe Nekliudov (1857); Três Mortes (1858);
O Fanqueiro (1861); Os Cossacos (1862); Polikuehka (1863); Ou
tumados a julgarem-se "homens inúteis", desde q u e a "li- ra e Paz (1869); Ana Karenmu iinvv»; Minha Confissão (1879);
teratura dos latifundiários" — "pendant" da "literatura de De Que os Homens Vivem (1881); Contos Populares (1881/1886);
Igreja e Estado (1882); Exegese Resumida dos Quatro Evangelh
acusação" — tinha criado os tipos de Eugénio Onegin e (1883); Em Que Consiste a minha fé (1884); O Que Devemos
Oblomov. No Diário de um homem supérfluo criara Turge- Fazer? (1885); O Reino das Trevas (1886); A Morte de Ivan Ilitch
(1886); A Sonata de Kreutzer (1886); Frutos da Cultura (1889);
niev ( 48 ) a expressão clássica desse sentimento da própria O Reino de Deus está dentro de Vós (1893); Cristianismo e Pa-
inutilidade, sentimento masoquista, bem eslavo, perto dos triotismo (1893); O Que é a Arte? (1897); Ressurreição (1809/
1900); O Cadáver Vivo (1900); Et Lux lucet in tenebris (1902);
misticismos primitivos da raça. Mas assim como os ro- Hadji Murat (1904); Não Posso Calar-me (1908).
mances de Turgeniev se inspiravam em Balzac e Flaubert, Edição da Editora do Estado, 15 vols, Moscou, 1928/1930.
assim toda a formação intelectual dos "latifundiários" era D. Mavejkovski: Tolstoi e Dostoievski. Petersburgo, 1902. (Em lín-
gua russa, várias traduções.)
de tendência "ocidentalista". O resultado devia ser uma in- R. Loewenfeld: Leo Tolstoi. Berlln, 1902.
terpretação ocidentalista, racionalista, daquele misticismo; A. Suares: Tolstoi vivant. Paris, 1911.
E. Garnett: Tolstoi. London, 1914.
e esta interpretação é o germe da obra de Tolstoi. G. R. Noyes: Tolstoi. New York, 1918.
P. Biriukov: Lev Nikolaievltch Tolstoi. 3* ed. 4 vols. Moscou,
1923. (Em língua russa.)
F. Gussev: Lev Tolstoi. 2 vols. Moscou, 1927. (Em língua russa.)
47) Jevgeni Ivanovitch Zamiatin, 1884-1937. B. Eichenbaum: Lev Tolstoi. 2 vols. Moscou, 1928/1930. (Em lín-
História do Distrito (1916); Nós (1922). gua russa.)
I. Deutscher: Heretics and Renegades. London, 1955. S. Balukatl e O. Plssemskala: Guia pela obra de Tolstoi. Moscou,
48) Cf. "Advento da burguesia", nota 90. 1928. (Em língua russa.)
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ciência social; encontrou o equilíbrio no casamento com foi menos o caso "vital" do que o caso moral, a conversão.
Sofia Bers, dedicou-se à vida de latifundiário e, ao mes- Na tragédia camponesa O Reino das Trevas, a conversão
mo tempo, grande escritor, até a decisiva crise religiosa de já constitui o próprio assunto, até aquela cena tão tipica-
1878, seguida da conversão ao cristianismo primitivo e ao mente eslava na qual Nikita confessa publicamente os seus
socialismo agrário; levando vida de camponês com os cam- pecados. "Arte pura" já não tem valor para o autor dessa
poneses em Jasnaia Poliana, rompendo com a família, re- cena — em O Que é a Arte?, Tolstoi renegará toda arte —
nunciando à arte, fazendo propaganda das suas ideias, até e até a própria vida, quando sem fins morais, perde o sen-
provocar, em 1901, a excomunhão pela Igreja, enquanto o tido : em A Morte de Ivan Ilitch, a teoria do "homem inú-
Estado tzarista já não ousava perseguir o grande profeta; til" de Turgenieve transforma-se em teoria da "inutilidade
enfim, em 1910, a tentativa de "fugir" de Jasnaia Poliana,
da vida", isto é, da vida do egoísmo sem finalidade supe-
e a morte do octogenário na estação da estrada de ferro de
rior : essa novela é uma das obras mais comoventes e mais
Astapovo.
pungentes da literatura universal, talvez a obra-prima de
Tolstoi foi, sem dúvida, um homem que durante a vida Tolstoi, a única em que a arte combina, sem resto, com a
inteira procurou, com zelo fanático, a Verdade. Daí tam- ideia propagandística: é preciso mudar de rumo, integral-
bém o caráter autobiográfico da sua obra que acompanha mente. Essa mudança de rumo é o tema de Ressurreição,
fielmente todas as vicissitudes da sua vida. J á na novela do romance da conversão moral do aristocrata inútil a pre-
Os Cossacos, aliás uma das mais intensas obras de Tolstoi, gador da verdade evangélica; não por acaso esse aristocra-
encontra-se o desejo do aristocrata de levar uma vida pri-
ta se chama Nekliudov assim como o herói das primeiras
mitiva e instintiva; Olenin já experimenta as desilusões
obras autobriográficas de Tolstoi, escritos na mocidade.
que o velho Tolstoi experimentará em Jasnaia Poliana.
Ressurreição impressionou vivamente a Europa de 1900, so-
Guerra e Paz, menos autobiográfico, é a mais objetiva das
bretudo pelas descrições vigorosas da opressão tzarista. Mas
obras de Tolstoi, mas isso também corresponde a uma fase
é menos um grande romance do que uma fortíssima obra
da biografia, à época feliz do casamento, da vida de grande
didática; do ponto de vista de Tolstoi, evidente abuso da
senhor rural e grande escritor. Ana Karenina é a última
arte literária que êle renegará. E por que continuou a es-
obra de arte "pura" de Tolstoi; mas o que lhe importava já
crever obras literárias que escondeu na gaveta, como en-
vergonhado, e que só postumamente se publicaram? —
Hadji Murat, O Cadáver Vivo e muitas outras. Aí se pode
Ph. Witkop: Leo Tolstoi. Muenchen, 1928.
Ch. Du Bos: "Vues sur Tolstoi". (In: Approximations. Vol. IV. duvidar da sinceridade de Tolstoi. Depois se soube que a
Paris, 1930.) sua própria vida de camponês fora meia mentira; que êle
A. Maude: The Life o/ Tolstoi. 2.a ed. 2 vols. London, 1931.
J. Bunin: A libertação de Tolstoi. Paris, 1937. (Em língua russa.) nunca se despojou efetivamente das suas propriedades, fin-
I. Lavrin: Tolstoi, an Approach. London, 1944. gindo a vida de "camponês evangélico", em conflito perma-
D. Leon: Tolstoi. New York, 1944.
N. Gouríinkel: Tolstoi sans tolstoisme. Paris, 1945.) nente com a esposa, até a "fuga definitiva" de 1910, que foi,
E. J. Simmons: Leo Tolstoi. Oxford, 1946. no fundo, a última de inúmeras fugas durante a vida in-
B. Metzel: Tolstoi. Paris, 1950.
G. Lukacs: Der russische Realismus in der Weltliteratur. Berlin,, teira. E deste modo a conversão de 1878 perderia o sei'
1950. significado. Tolstoi seria, antes, um caso psicológico.
M. I. Berlin: The Hedgehog and the Fox. An Essay on Tolstoi'»
Víerw of History. London, 1953.
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Depois de Merejkovski lhe ter lançado essa acusação, Soloviev demonstrou de maneira inequívoca a irreligiosi-
as pesquisas biográficas de Kallinikov, estudando a "tra- dade fundamental de Tolstoi, o caráter racionalista da sua
gédia sexual" de Tolstoi, fundamentaram cada vez mais a doutrina, pela incapacidade intelectual do escritor de sub-
hipótese de se tratar de um homem de sensualidade intensa meter-se ao dogma. O anarquismo e o pacifismo de Tolstoi
e de um artista nato, incapaz de impor-se a si mesmo a dis- exprimiria, em palavras eslavas, o radicalismo político e so-
ciplina moral à qual aspirava. Primeiro a arte, depois a cial do Ocidente; e, com efeito, inúmeros radicais e socia-
religião foram os seus caminhos para fugir da solidão de listas, na Rússia, e sobretudo na Europa, nâo encontraram
um anarquista egocêntrico. A mistura de sensualidade vio- dificuldades em aderir ao tolstoismo. O seu "cristianismo
lenta e ascetismo violento na Sonata de Kreutzer é o do- primitivo", sem dogmas, sem fé na divindade de Cristo, sem
cumento mais desagradável do "caso". O anarquismo ínti- sacramentos, sem organização eclesiástica, não é o cristia-
mo de Tolstoi é um fato. No terreno das doutrinas polí- nismo dos Evangelhos, como Tolstoi acreditava, mas é o
ticas, até se confessou anarquista, embora rejeitando a vio- que fica do cristianismo quando se lhe tira tudo aquilo de
lência. Mas existe nessas afirmações um equívoco. Uma que o anticlericalismo e a crítica biblica e histórica o des-
vez, "anarquismo" significa uma ideologia; outra vez é uma pojaram, da Reforma até aos protestantes alemães do século
expressão pejorativa, indicando o caos moral na alma do X I X . O cristianismo evangélico de Tolstoi é a religião
grande russo. A confusão foi alimentada por todos os ini- dos livres-pensadores protestantes, 6 um protestantismo ra-
migos de Tolstoi: pelos defensores da "ordem ocidental" dical, como o de Rousseau. O tolstoismo, quando bem ana-
e pelos defensores da Igreja russa. Os primeiros reconhe- lisado, é inaceitável. Mas também é inseparável da arte de
ceram em Tolstoi um segundo Rousseau, destruidor de to- Tolstoi que êle nos impõe, obrigando-nos a aceitá-la.
das as "disciplinas", agravando-se o caso pelo misticismo
Tolstoi era um radical. As suas diatribes violentas con-
eslavo, que é mesmo anarquismo espiritual. Tolstoi hosti-
tra o regime tzarista e o patriotismo oficial não deixam
lizou o Estado russo e todo e qualquer Estado em nome da
dúvidas a respeito. Assim como A Morte de Ivan Ilitch
liberdade do homem primitivo, do camponês evangélico,
é o cume da literatura do "homem inútil", assim O Reino
assim como os sectários russos que se separaram da Igreja.
das Trevas é um cume no movimento de revelar a terrível
O próprio Tolstoi reconheceu, com surpresa as suas dou-
corrução moral do homem russo; assim Ressurreição é o
trinas quando lhe deram para ler os escritos do místico
cume da "literatura de acusação" contra o sistema político
medieval tcheco Chelcicky, inimigo da Igreja estabelecida,
e social russo, contra "as colunas da sociedade" da Rússia.
porque organizada, e inimigo de toda organização estatal
Tolstoi foi o mais coerente dos "niilistas"; o seu anarquis-
e social, porque oprimindo os pobres e humildes. E n t r e os
mo é propriamente o niilismo de um filho apóstata da clas-
sectários, tão numerosos entre os camponeses russos, Tols-
se latifundiária. N a grande luta entre "ocidentalistas" e
toi encontrou os partidários mais fervorosos. Argumen-
"eslavófilos" que enche o século X I X russo, Tolstoi perten-
tando assim, os conservadores europeus pretenderam estig-
ce decididamente ao partido ocidentalista. É discípulo das
matizar Tolstoi como homem de outra raça e outro conti-
doutrinas racionalistas do Ocidente. Apenas o seu raciona-
nente espiritual, perigo para a ordem europeia. Levanta-
lismo tem forte côr romântica, como de uma utopia, porque
ram-se, porém, russos, defensores da Igreja espiritual do
Tolstoi não era capaz de realizar as suas doutrinas radicais:
Oriente eslavo, que o condenaram pelos motivos opostos.
impediu-o a sua condição social de latifundiário aristocrá-
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OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2495

tico. A obra de Tolstoi, sucessor maior de Turgeniev, é o as qualidades psicofisiológicas de Tolstoi, meio patológi-
cume da "literatura dos latifundiários": descobrindo a sua cas, vermes na carne de um gigante cheio de vida e de sede
consciência social, acusando-se a si mesmo, criando nova
de vida. Mas não é só isso. Competiram motivos sociais,
"literatura de acusação".
a contradição inextricável entre as reivindicações morais
Eis um ponto de partida para interpretar Ana Kareni- do "homem inútil" e a condição de latifundiário. Tal como
na. A heroína é vítima das desordenadas ambições e pai- o homem Tolstoi quase martirizado pela forte sensualidade
xões dos homens russos, assim como as heroínas de Turge- sentia medo intenso das dores corporais e da morte, assim
niev. Mas este fica no terreno estético da saudade vaga também o latifundiário Tolstoi erigiu-ae em inimigo radi-
onde Tolstoi exige a conversão. Ana Karenina já foi mui- calíssimo da sua classe, que agonizava economicamente des-
tas vezes comparado com Madame Bovaiy. Assim como de a emancipação dos camponeses, pregando a mais radical
Turgeniev, Flaubert é principalmente esteta; o seu anti- das soluções: tornando-se, êle mesmo, camponês. Mas não
romantismo começa na estética e acaba no cepticismo desi- foi possível despojar-se do culto do corpo — de um corpo
ludido. Tolstoi conheceu essa desilusão, já nos Cossacos;
de força indestrutível — nem dos livroa e de todas as pe-
o anti-romantismo de Ana Karenina é de natureza moral e
quenas e grandes coisas da civilização aristocrática, tão
social, é o anti-romantismo de um realista russo que não
odiada. A angústia de Tolstoi dizia respeito k decadência
se retirou da vida antes de tê-la experimentado profunda-
fisiológica e à decadência social, ambas inelutáveis. Só ha-
mente, com as possibilidades imensas de um aristocrata rico
via um meio — imaginário — de estabilizar, eternizar as
e vencedor na vida. Flaubert dizia que "Madame Bovary,
coisas desta vida: a arte. E Tolstoi era artista nato.
c'est moi". Com muito mais razão, Tolstoi podia dizer que
êle mesmo era Ana Karenina — e todos os outros persona- A grande arte de Tolstoi é o próprio resultado das
gens do romance ao mesmo tempo. Imaginou, com o ta- fraquezas de sua ideologia; uma coisa è 'inseparável da ou-
lento mímico de um grande ator, as reações dos seus per- tra. Sua arte é o fruto da contradição entre a afirmação
sonagens nas situações criadas conforme a sua teoria da biológica e a negação ética da vida de um grande senhor
vida. Eram situações existenciais. Tolstoi conhecia-as to- em situação social ameaçada. Por meio dessa arte conse-
das. J á se observou que Tolstoi sabe tudo e conhece tudo, guiu Tolstoi fugir da sua solidão de individualista egocên-
a guerra e as corridas de cavalos, os boudoiís das grandes trico, ampliando-se o indivíduo até se sentir membro da
damas e os quartos das prostitutas, os tribunais e as repar- família, das gerações, da classe inteira, da Rússia imensa; é
tições públicas, as cerimónias dos maçons, as prisões, Mos- este o fio secreto da evolução do enredo em Guerra e Paz;
cou, Petersburgo, a província, as cabanas dos camponeses e com isso coincide a composição da obra, interpretada por
e a Sibéria, sempre com a exatidão de um especialista; não Percy Lubbock como entrelaçamento da história particular
por meio de estudos e documentação como Zola, mas por de gerações de famílias na paz e da história pública na
meio de uma ilimitada experiência da vida, como Shakes- guerra: o "roman personnel" à maneira de Stendhal e o
peare. A obra de Tolstoi é uma poderosíssima afirmação romance político e social à maneira de Balzac, reunidos,
da vida pela arte. Mas esse mesmo Tolstoi renegou aspe- com extraordinária arte panorâmica, no palco das suas his-
ramente a arte, porque ela lhe parecia sedutora para a vida. tórias: o espaço infinito da Rússia. Essa grande arte tam-
Entre os motivos dessa contradição violenta encontram-se bém é fruto das fraquezas ideológicas de Tolstoi, assim
como, a respeito de Guerra e Paz, as analisou Isaiah Berlin:
2496 OTTO M A R I A CARPF.AUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2497

há, na visão da História, de Tolstoi, uma contradição inex- gem acertou; Bunin foi o último grande realista de estilo
tricável entre o cepticismo intelectual do anarquista, niilis- antigo, antes à maneira de Turgeniev do que à de Tolstoi.
ta e radical Tolstoi, que não pode acreditar em nada, e, Em Sukodol descreveu o fim dos latifúndios aristocráticos,
por outro lado, a necessidade íntima do homem moral e re- mais com a delicadeza de Turgeniev do que com a melanco-
ligioso Tolstoi, de descobrir uma lei, uma ordem no Uni-
lia de Tchekov. Talvez seja a sua obra mais característica
verso. Não a encontrando, criou-a. Fez história, pelo me-
o volume de poesias Novembro, já pelo título e pelo ano em
nos num livro. Mas isto mesmo é, a definição da epopeia.
que saiu: 1905, ano da revolução. Bunin represnta-se ali
Por isso é Guerra e Paz a única obra das literaturas moder-
nas que merece o lugar ao lado da epopeia homérica, entre- como homem velho, olhando pela janela da Casa Grande
laçamento semelhante de histórias particulares e públicas, para as estepes outonais, com melancolia nobre, sem morbi-
de paz e guerra, no espaço infinito do tempo lendário. Tols- dez nem desespero. O "homem velho" tinha então só trin-
toi é, entre os poetas identificáveis, o maior poeta épico. ta e cinco anos de idade; mas era velho como a sua classe.
E i s o resultado da sua vida, que êle viveu procurando com Não tinha nada de decadente nem de romântico. Era um
zelo fanático a Verdade. Não encontrou a verdade da sua "clássico", o último clássico russo do realismo objetivo, sem
vida, mas eternizou esta vida na arte. Isso não realiza o ilusões; e essa falta de ilusões tornou-o quase naturalista,
ideal dos "twice-born"; mas é um resultado definitivo. colocando-o ao lado de Tolstoi quando revelou, no grande
Comparada com a grande influência ideológica que * romance A Aldeia, a verdade nua sobre a vida e a condição
Tolstoi exerceu na Europa, sua influência literária na Rús- moral dos camponeses russos por volta de 1910: é maís o
sia é relativamente menor. A classe a que Tolstoi perten- "reino das trevas" do que o idílio de Jasnaia Poliana; dez
cia já perdera a importância social antes da catástrofe em anos mais tarde, os russos exilados acreditaram reconhe-
Astapovo; e a "literatura dos latifundiários" transformou-se cer em A Aldeia a previsão do comportamento dos campo-
em literatura de reminiscências, pouco depois em litera- neses durante a revolução comunista. Tendo sido pes-
tura de exilados, da qual Bunin ( 5 0 ) é a maior figura. De-
simista na Rússia e vivendo como exilado na Europa, Bu-
ram-lhe o premio Nobel talvez porque os representantes lir
nin não teve ilusões quanto ao sentido e destino da civili-
terários da burguesia pretenderam, desse modo, protestar
zação ocidental. Ao contrário, sabia condensar a sua ex-
contra o regime comunista que exilara o poeta. A homena-
periência — que é a experiência de sua e da nossa época —
no símbolo que constitui o conto "O Senhor de São Fran-
50) Ivan Alexeievitch Bunin, 1870-1953.
cisco": o milionário americano faz, com todo o luxo, a
Novembro (1905); A Aldeia (1910); Sukhodol (1912); O Senhor de viagem para Capri, para depois de uma vida de trabalho du-
S. Francisco (1917); O Grito (1921); O Amor de Mitia (1926); A
Vida de Arseniev (1927); A Arvore de Deus (1931). vidoso, gozar das delícias da civilização; morre de repente;
G. Struve: "The Art of Ivan Bunin". "In: Slavonic Review, XI, e volta, cadáver, no porão daquele mesmo navio de luxo;
1932/1933.)
A. Luther: "Ivan Bunin, Nobelpeistraeger". (In: Osteuropa, IX, viagem sem sentido. Mas a Rússia longínqua começou a
1933/1934.) transfigurar-se na memória do exilado. O Amor de Mitia
B. K. Saitzev: Ivan Alexeievitch Bunin. Vida e Obra. Berlin,
1934. (Em língua russa.) foi como uma reminiscência, aliás pouco romântica, da mo-
R. Poggioli: "L'arte di Ivan Bunin". (In: Pietre di parogone. Fi-
renze, 1939.) cidade; e na Vida de Arseniev escreveu Bunin a história
2498 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2499

dos seus dias de juventude. O "homem velho" de outrora coco. É o último descendente de Turgeniev; e já está per-
morreu velho, confortado pelo último raio de luz de uma to de Tchekov.
arte clássica, sempre jovem. A influência de Tolstoi fora da Rússia foi principal-
Bunin é muito diferente de Tolstoi: é pessimista pro- mente ideológica. Não podia haver "literatura de latifun-
fundo, sem a vitalidade vigorosa do velho gigante; e não diários" onde n8o havia latifundiários naquele sentido es-
faz arte contra a vontade, mas conscientemente: escreve ro- pecificamente russo. Mas a tentação de imitar a Tolstoi foi
mances e contos assim como se fazem poemas. Esse tipo de muito forte, sobretudo entre os eslavos. O romancista tche-
escritor é raro na literatura russa. Mas o título de "suces- co Alois Jírasek (BB) já foi lembrado entre os últimos des-
sor de Tolstoi" é tão ambicionado na Rússia que a crítica cendentes de Walter Scott. Mas acreditava imitar a gran-
não fez muita questão de diferenças mais ou menos sutis. de epopeia de Tolstoi, em que também admirava a "ideolo-
Tinha desprezado Bunin só por motivos políticos. Mas en- gia eslava", quer dizer o radicalismo do místico Chelcicky,
fim, no Segundo Congresso dos Escritores Soviéticos, em que era tcheco.
dezembro de 1954, o exilado que morrera um ano antes, re- Interprestação mais intelectualizada e tampouco certa
cebeu o perdão oficial, sendo proclamado como clássico. de Tolstoi encontra-se no grande romancista polonês Ze-
Foi a justiça. Bunin é um grande clássico. Mas não um romski ( B4 ). A sua condição de Intelectual sem pátria —
clássico tolstoiano. A crítica estrangeira, porém, equivo- a Polónia estava, no seu ti vidlda e sem personali-
cou-se muito mais: descobriu quantidade de novos Tolstois, * dade política — apresentava certas analogias com a dos últi-
confundindo realismo e objetividade, sentimentalismo e mos representantes da "literatura dos latifundiários"; no
simpatia humana. Um desses "falsos" Tolstois foi Chme- romance Gente sem Pátria Zeromski definiu essa situação,
liov ( M ), realista romântico e algo sentimental, sem obje- fazendo, depois, ingentes esforços para chegar a uma epo-
tividade alguma. Romances como O Garçon e O Copo peia nacional: em O Rio Fiel, descreveu a revolução polo-
sem Fundo são apreciáveis, embora à sinceridade do sen- nesa de 1863; e na trilogia A Luta contra o Estado, acredi-
timento humano não corresponda a arte da transfiguração. tava ter realizado esse objetivo. Mas êssos romances, por
Enquanto as obras de Chmeliov foram traduzidas para vá- mais respeitáveis que sejam, nlo têm bastante coerência;
rias línguas, viveu no exílio parisiense, quase incógnito, compõem-se de séries de grandes quadros. Zeromski, cujo
o muito mais fino Saitzev (B2), escritor profundamente lado forte é o intenso estilo lírico, era romântico por índole.
melancólico, descrevendo a vida de "homens inúteis" den-
tro e fora da Rússia com a delicadeza de um pintor do Ro-
53) Alois Jirasek, cf, "Romnntinmo de eva*ao", nota 44A.
54) Stefan Zeromski, 1804-1020.
Gente sem Pátria (1900); Cinta (1D04); Hittôria de um Pecado
(1906); O Rio fiel (1013); A luta contra o Estado (1910/1919);
51) Ivan Sergeievitch Chmeliov, 1873-1950. Antes da Aurora (1920).
O Garçon (1910); O Copo sem Fundo (1919); O Sol dos Mortos S. Brzozowski: Stefan Zaromiki. Warasawa, 1900. (Em língua
(1920); Amor na Criméia (1930); O Verão do Senhor (1933). polonesa.)
N. Koulmann e J. Legras: Chmeliov. (in: Monde slave, XII/3, E. Lo Gatto: Stefan Zeromski, Studio critico. Fircnze, 1928.
1933). W. Jampolski: Stefan ZaromtM, líder espiritual da raça. 2.» ed.
52) Boris Konstantinovitch Saitzev, 1881. .Lwów, 1930 (em língua polonesa).
O Caminho de Ouro (1925); A Casa em Passy (1935); A Viagem S. Zaleski: "Zeromski". <ln: Attitudes et destinées. Paris, 1932.)
àe Gleb (1937), etc. W. Borowy: Sobre Zeromski. Warszawa. 1980. (Em língua po-
G. Struve: "Boris Saitzev". (In: Slavonic Review, XII, 1938/1939.) lonesa.)
2500 Oiro MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2501

A História de um Pecado é um dos maiores romances ro- Influências semelhantes descobrem-se na poesia do polonês
mânticos da literatura moderna, em que cenas brutais à Kasprowicz ( 5 0 ), intelectual de descendência camponesa:
maneira de Zola servem para sugerir angústias desespera- revolta violenta do camponês contra a injustiça do mundo,
das. Zeromski é pessimista; só com respeito à angústia indignação crescendo até a revolta contra o Universo e o
psicofisiológica podia ser chamado tolstoiano. Apenas na Criador para curvar-se enfim perante o ideal da pobreza
sua última obra, Antes da Aurora, já escrita na Polónia franciscana. Kasprowicz tem algo de Dante, o tom majesto-
libertada, conseguiu aproximar-se do radicalismo tolstoia- so e apaixonado ao mesmo tempo; a literatura polonesa é
no, o que foi interpretado como simpatia para com o bol- a única entre as eslavas na qual Dante exerceu influência
chevismo, provocando uma tempestade de indignação pa- profunda, já em Mickiewicz e K r a i i m k i . Kasprowicz su-
triótica. Outros, porém, intelectuais da esquerda, reconhe-
porta a vizinhança desses nomes. Ê o maior poeta polonês
ceram em Zeromski o lutador contra o falso ocidentalismo
moderno. A eloquência veemente das suas acusações já foi
da aristocracia e celebraram-no como grande espírito eslavo
comparada a Verhaeren, enquanto outros, a propósito de
entre os poloneses.
hinos como "Salve Regina" (no volume Minha Canção da
A religiosidade democrática, que é outro elemento do Noite), se lembram de Claudel. Mas Kasprowics, apesar de
tolstoianismo, despertou a consciência de Cankar (5r>), o ser erudito enciclopédico, conhecedor e tradutor de tÔda a
maior talento literário da pequena literatura eslovaca. As- grande poesia do mundo, é um camponês eslavo, um radi-
sim como a sua nação de pobres camponeses, isolada entre cal religioso, uma natureza tolstolana. Nas literaturas oci-
alemães e italianos, passou os séculos em dependência da
dentais será difícil encontrar um tolstoiano assim; talvez
Áustria, assim Cankar passou a vida como intelectual pobre
fosse o novelísta português Raul B r a n d l o (° 7 ), que profes-
em Viena, em companhia dos seus patrícios emigrados, pau-
sava mesmo ideias tolstoianas; um grande poeta em prosa,
pérrimos. Em contos de grande penetração psicológica des-
contrastando de maneira impressionante as luzes multico-
creveu-lhes a vida como se fosse a sua própria vida. Tudo
o que Cankar escreveu está marcado pelo sofrimento e pelo lores da paisagem mediterrânea e a miséria da gente. Além
sentimento eslavo da co-responsabilidade geral: sejam as
histórias de proletários eslavos nos subúrbios de Viena, seja
a história de rudes camponeses nas montanhas de Eslová- 56) Jan Kasprowicz, 1860-192C.
Poesia (1884); Cristo (1801); A um Mundo Agonizante (1902);
quia. Lembrou-se, a seu respeito, o nome de Dostoievski; Minha Canção da Noite (1003); O Livro doa Pobre$ (1016); O Meu
mas o radicalismo do seu pensamento político e social ba- Mundo (1926).
Edição por St. Kolaczkowakl, 22 vola., Kraków, 1030.
seiam-se em lições de Tolstoi, enquanto a forma literária, Z. Wasilewski: Jan Kaeprowio*. WarHBuw», 1023. (Em língua po-
sugestiva e lírica, revela influências da poesia simbolista. lonesa.)
St. Kolaczkowskl: Jan Kasprowicz. Kraków, 1024. (Em llnzua po-
lonesa.)
J. Berger: Estudos sobre Kasprowicz. Kraków. 1048. (Em língua
polonesa.)
55) Ivan Cankar, 1876-1918. 57) Raul Brandão, 1800-1031.
A Casa de Mariahilf e Outros Contos (1904); O Criador Jernej A Farsa (1903); Os Pobres (1900); Húmus (1017); Os Pescadores
(1907), etc. (1923).
B. Vodusek: Ivan Cankar. Ljnbljana, 1937. (Em língua eslovena,) J. G. Simões: "Raul Brandão, Poeta". (In: O Mistério da Poesia.
M. Males: Ivan Cankar. Ljnbljana, 1945. (Em língua eslovena.) Coimbra, 1931.)
2502 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITKRATURA OCIDENTAL 2503

da pouca divulgação da sua língua no mundo, é o pessimis- intelectuais daquela época; não teria acontecido isso, se os
mo que impediu o reconhecimento geral do valor de Raul escritores tivessem seguido o caminho de Bjoernson, usan-
Brandão. do a arte como intrumento de propaganda do moralismo ra-
A influência ideológica de Tolstoi na Europa manifes- dical do Hanske (Luvas). Collin chagou a identificar o mo-
tou-se de maneira difusa, entre os "socialistas religiosos" ralismo de Bjoernson com o da Tolutoi. Por mais errada
igualmente como entre os radicais. No drama de Haupt- que fosse a tese, não se pode negar, entre oa eicritores es-
mann há reminiscências do "Confesso!" de Níkita, no Reino candinavos pós-ibsenianoa uma forte influência tolstoiana;
das Trevas; e o Nazarín, de Pérez Galdós, é mesmo uma fi- aqueles muitos colapsos de nervo* eram •intomae de uma
gura tolstoiana. O ascetismo da Sonata de Kreutzer refle- conversão moral, de transição do pfl 'tnantlimo * u m n e ° -
te-se no schopenhauerianismo do jovem filósofo vienense romantismo de colorido cstético-rtl
Otto Weininger, cuja obra Geschlecht und Charakter (Sexo O primeiro sintoma da excitaçlo pré-romântica dos ner-
e Caráter) (1903) deveu fama universal ao brilho do estilo vos fora a propaganda do a >iain desenfreado na
e ao suicídio do autor. Enfim, em Tolstoi aprendeu o poeta boémia de Oslo, que então ainda ao chamava Kristiania.
Rainer Maria Rilke a amar a Rússia, à qual dedicou algumas Contra o sexualismo mórbido da nl*-hohême de Hans
das mais belas poesias do Stundenbuch (Livro das Horas), Jaeger ( 58 ) dirigiu-se Bjoemnon com ae advertências sérias
breviário de um misticismo ateu. Em quase todos esses ca- de Paa Guds Veje e Nye Fortaêllingtl Mns a sua autorida-
sos, a influência de Tolstoi encontra-se com a dos escandi- de moral já não estava indil Il • nnpouco a de Ibsen,
navos; Rilke interpretou a angústia tolstoiana no sentido considerados, ambos, pela mocM»<l< • • beldc, como velhos
do ateísmo estético de Jens Peter Jacobsen, e Weininger, pastores. Aplaudiram-se as laj mordazes de Gunnar
no seu livro póstumo Ueber die Jetzten Dinge (Coisas Apo- Heiberg ( 0 0 ), que se propuaerti ibolll a "poetocracia" na
calípticas) (1904), baseou a sua filosofia numa intepreta- Noruega; logo em uma dai Kong Midas (Rei
ção de Peer Gynt. Havia muita confusão, naquela época Midas), zombou cruelmente da eloquência do velho Bjoern-
do decadentismo, e uma delas foi a identificação do Tolstoi son. Heiberg era uma natureza rática de esteta de-
da Sonata de Kreutzer e Ressurreição com o Ibsen de Lille siludido; mais tarde zombou «• dos boémios, e em
Eyolf e Naar vi doede vaagner (Quando Nós Mortos Des- Kjaerlighedens tragedie (Tragédia do Amor), cume da de-
pertamos) — este último título significa exatamente "Res- silusão, antecipou ideias da pticanálUe. Gunnar Heiberg
surreição". Mas o engano não foi tão grande assim. Havia foi, entre todos os escritorea da grande época da literatura
influência de Tolstoi na última fase de Ibsen, e não só em norueguesa, o mais independente. Sua oposição radical con-
Ibsen, mas em muitos escandinavos. tra a literatura moralizante encontrou-ao paradoxalmente
Um crítico conservador, hostil ao "naturalismo" norue-
guês, Christen Collin ( 5 8 ), inimigo do psicologismo e este-
ticismo na literatura, considerava como uma espécie de 59) Cf. "O Naturalismo", nota 67.
"punição por Deus" os muitos colapsos de nervos entre os 60) Gunnar Heiberg, 1867-1820.
Tante Ulrikke (1884); Kong Midai (1886); Kumtmre (1893); Bal-
konen (1894); Folkeraadet (1607); KjuerUghcd til Naeaten (1902);
Kjaerlighedens Tragedie (1904); etc.
58) Chr, Collin: Leo Tolstoi og nutidens kulturkrise. 3.a ed. Oslo, Edição pelo autor, 4 vota., Oulo, 1017/1918.
1920. E. Skavlan: Gunnar Heiberg. Oslo, 1960.
2504 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2505

com as teses do conservador Collin. Em quadros vivos, Hei- quando se abre a porta para deixar entrar um novo perso-
berg colocou no palco as personalidades e tendências da nagem, também entra um golpe de ar frio e salgado do mar
atualidade, chamando-as pelos nomes: realizou algo como nórdico, como abrindo perspectivas e horizontes mais am-
uma comédia aristofônica moderna. E, como Aristófanes, plos, universais. FunçSo semelhante têm, nas peças realis-
era poeta: suas últimas peças são íntimas e trágicas. tas de Ibsen, os móveis no palco: é o mobiliário abundante
Contra esse novo amoralismo levantou-se, mais uma vez, das casas burguesas de 1880, enchendo os quartos de sofás,
o velho Bjoernson ( c l ) : na primeira parte de Over Aevne mesinhas, cortinas e o resto. Mes as luzes d» ribalta não
tratara o problema religioso, antecipando correntes do "fin iluminam tudo igualmente: ficam cantos escuros, miste-
du siècle" escandinavo; na segunda parte, ampliou o ter- riosos, simbólicos — e é na "terceira fase" que sai desses
reno, identificando os motivos sociais da angústia, apresen- cantos misteriosos a velha "exigência moral", embora em
tando uma solução da questão social pela fraternidade reli- nova versão à base de uma nova interpretação psicológica
giosa. Ali a influência de Tolstoi é inequívoca. Mais uma da natureza humana. Isto já se manifestara na sátira de
vez,Bjoernson precedera assim a uma conversão estilística Ibsen contra o seu próprio moralismo, em Vildanden (Pato
e ideológica de Ibsen. Selvagem). Agora destruiu em Hedda Gabler a imagem
Já em Fruen fia Havet (A Senhora do Mar) preparara- idealista da mulher, apresentando a histérica, que se tor-
se uma modificação do individualismo moralista de Ibsen nará, depois, personagem predUeta dos "neo-românticos"
( 6 2 ) : Ellida Wangel não obedece à sedução do misterioso escandinavos. E em Bygmester Solness (Construtor Sol-
"estrangeiro", voltando à família, aos deveres sociais; mas ness) declara francamente a falência do seu idealismo, abdi-
o encanto da peça reside justamente no mistério vago em
cando em favor da nova geraçlo, Nesta peça Ibsen já nSo é,
torno do "estrangeiro", elemento poético, quase mágico, até
evidentemente, realista; não fora jamais realista. Os símbo-
então desconhecido na obra de Ibsen. A atmosfera da peça
los, que sempre usava — sobretudo em Vildanden (Pato
lembra os últimos contos de Elster, que fora um precursor
Selvagem) e Rosmersholm — substituem os acontecimen-
dos chamados "neo-românticos" noruegueses. A carreira
literária de Ibsen interpreta-se geralmente pela distinção tos reais; o diálogo continua imitando fonogrificamente a
de três fases: o romantismo, dos começos até Kejser og linguagem de todos os dias, mas torna-se cheio de alusões
Galilaeei; o realismo, de Colunas da Sociedade até Hedda a um "segundo sentido" pelo qual se revelam as intenções
Gabler; e o neo-romantismo místico das últimas peças. Mas psicológicas dos personagens. N l o há nisso misticismo nem
já se demonstrou a homogeneidade das duas primeiras fa- romantismo; mas só assim foi possível introduzir a nova
ses; e a terceira tampouco é radicalmente nova. Ibsen, psicologia na técnica do teatro burguês. Sofreu, com isso,
quando realista, parecia escritor provinciano: aquelas pe- a eficiência dramatúrgica. Mas Ibsen já não escreveu para
ças passam-se na pequena Noruega, em pequenas cidades impressionar os espectadores, e sim para "julgar-se a si
de província, em pequenas casas e quartos fechados; só mesmo":

" . . . holde
61) Cf. nota 10.
62) Cf. nota 12. Dommedag over sig selv."
2506 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2507

John Gabriel Borkman é um grande e terrível julgamento Se Hauptmann não fosse um poeta sincero, poder-se-ia
de Ibsen sobre o seu próprio individualismo; contudo, o fim falar em oportunismo literário. E a imitação da última fase
é uma cena de perdão, uma cena tolstoiana. Tolstoianas são de Ibsen produziu muitos oportunistas, quase sempre bas-
as ideias morais de Lille Eyolf, em que até aparecem re- tante hábeis, como o sueco Tor Hedberg (° 4 ), ibseniano à
miniscências da Sonata de Kreutzer; e na sua última peça, maneira psicológica; ou aquele outro tueco, Geljerstam ( 6 5 ),
Naar vi doede vaagner (Quando Nós Mortos Despertamos), que sabia escrever romances policiais, naturalistas e senti-
pronuncia Ibsen uma sentença final contra a sua arte é mentais com a mesma facilidade de um narrador nato, e
contra toda a arte. Convertendo-se, o "naturalismo" mo- cujo choroso Boken om lillebror (O Livro do Irmãozinho)
ralista do autor de Brand reencontrou-se a si mesmo. conseguiu fama universal, considerado como triunfo do
"novo romantismo". A única obra realmente Importante
A última fase de Ibsen foi interpretada como neo-ro-
desse escritor fácil foi o romance M rd unas huvud (A Ca-
mantismo pelos decadentistas e simbolistas da época. Os
beça de Medusa), vidas comparadss de doii IntsltCtUlLs dos
antigos naturalistas entre os íbsenianos caíram no mesmo
quais um traiu a vocação para obter o sucesso, enquanto o
erro; mas não eram capazes de se tornarem realmente ro-
outro, o sincero, se perde, fulminado pela "cabaça de Me-
mânticos. Hauptmann ( 6 3 ), na Die versunkene Glocke, (Si-
dusa" da vida. O livro, começando quase COOIO um roman-
nos Submergidos), povoou as aldeias siiesianas de fadas e
ce policial, é na verdade um profunde estudo psicológico e
demónios em torno do destino fatal de um artista malogra-
um julgamento cruel de Geijerstam sobra si mesmo, histó-
do. Nem de longe, está essa peça "poética" à altura da*
ria de uma conversão moral que só se realizou no terreno
poesia de Hanneles Himmelfahrt (Ascensão de Hannele),
imaginário.
mas o público gostou muito da aparente profundidade sem
pensamento claro; os símbolos mais significativos e alta- Todo o movimento "neo-escandlnavo" é um movimento
mente poéticos de Und Pippa tanzt (Pippa Dançando) já de conversão de naturalistas. Os primeiros exemplos ti-
não agradaram tanto, e isso em pleno neo-romantismo. A nham dado os dinamarqueses que apostasiararn de Brandes:
poesia do segundo estilo de Hauptmann é menos autêntica Gjellerup ( C6 ), tornando-se wagneriano e depois budista;
que nas peças da sua fase realista. Só se tratava de tenta- Joergensen ( 6 7 ), convertendo-se ao catolicismo. Esses mo-
tivas de evasão, interrompidas por muitas recidivas: du- vimentos refletem-se como num espelho côncavo, através
rante anos, Hauptmann escreveu alternadametne uma peça
realista e uma peça "poética"; só nos últimos anos de sua
longa vida, em tragédias de assunto e estilo grego, superou 64) Tor Hedberg, 1862-1931.
Hauptmann essas vacilações. Mas até nas peças fracas ou Johannes Karr (1885); Judas (1880); Gêrhard Grim (1897): Johan
malogradas sempre ocorrem às vezes certos versos e frases, Ulfstjerna (1907).
reminiscências saudosas daquela poesia antiga — "Todo ho- H. Ahlenius: Tor Hedberg, Stoolcholm, 1936.
mem tem, afinal, uma saudade" — que garante à memória de 65) Gustaf af Geijerstam, 1868-1909.
Erik Grane (1885); Pastor llalliii 11887); Meduaa$ huvud (1896)
Hauptmann o prestígio merecido. Boken om lille-bror (1900); Nila Tufvenaon (1902); Broedcrne
Moerk (1906), etc.
F. Duesel: Gustaf af Geijeratam. Muenohen, 1912.
M. Johnsson: Geijerstam. En attitalist. Btockholm, 1934.
66) Cf." "O Naturalismo", nota 100.
63) Cf. nota 25. 67) Cf. "O Naturalismo", nota 101.
2508 OTTO M A B I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2509

da hipersensibilidade do sueco Hansson ( 0 8 ), cujos primei- rias, então muito lidas, que produziram a impressão errada
ros contos e poesias exprimiram um nervosismo extremo, de êle sacrificar ao estilo simbolista da época. Bang per-
junto com acessos de hiperestesia sexual; depois, caiu numa
maneceu sempre realista, embora no terreno da psicologia.
espécie de megalomania nietzschiana, para sofrer colapso
Mas assim como o seu mestre Jacobsen, viu e ouviu mais
de nervos e converter-se ao catolicismo. Hansson foi um es-
critor de grande talento, quase genial; não se realizou, pela do que os homens comuns. No romance meio autobiográfi-
constituição mórbida, comum de tantos neo-escandinavos. co De und Fadreland (Os Sem-pátria), história de um mú-
Hansson estava perto do decadentismo francês e inter- sico famoso que nasceu numa ilha deserta, terra de ninguém,
nacional da época, ao ponto de ser confundido com êle. E simbolizou o seu próprio destino de artista; cheio de melan-
isso mesmo aconteceu fatalmente a Hermann Bang ( 6 9 ), colia, mas sem sentimentalismo nem esteticismo.
tanto mais que a sua formação era francesa, como a de todos A identificação errada desses "decadentistas" nórdicos
os dinamarqueses pós-brandesianos. Haabloese Slaegter, o
com o decadentismo internacional, sobretudo dos simbolis-
romance da aristocracia dinamarquesa, requintada e deca-
tas ou antes dos pseudo-simbolistas franceses e belgas, ba-
dente, já impressionou pelo t í t u l o : Famílias sem Esperan-
ça. Mas o modelo de Bang, do seu estilo altamente cultiva- seia-se num equívoco quanto aos caracteres nacionais. Os
do e da sua melancolia nervosa, não era nenhum francês, e escandinavos nunca foram sentimentais como Samain, nem
sim Jens Peter Jacobsen, poeta, êle também, dos finos ho- esteticistas mórbidos como Rodenbach. Em compensação,
mens aristocráticos condenados a perecer, mas sem roman- são quase sempre duma sensibilidade extremamente ner-
tismo saudosista. Assim como em Jacobsen, a melancolia vosa, como os personagens nos quadros de Edvard Munch.
de Bang tinha motivos psicofisiológicos. Como criança de A arte aparentemente simbolista da falar em alusões, que
sete anos de idade experimentara, na ocasião da guerra de apreenderam nas peças da última fase de Ibsen, — e que é,
1864, o assalto dos soldados prussianos à casa paterna, e a
no fundo, resíduo da expressão lacónica das "sagas" —
angústia daquela noite pavorosa nunca o abandonou; em
serve-lhes à ambição de revelar abismos desconhecidos da
Tine descreveu-a com admirável poder de introspecção e
reconstituição. Bang, homem finíssimo que tinha de fazer alma. São, quase todos eles, mestres da introspecção psico-
jornalismo e dar conferências perante públicos triviais para lógica, mas ficando, exteriormente, no terreno do realismo:
ganhar a vida, escreveu muito; e são essas obras secundá- Combinação de estilos que lembra, de longe, a Dostoievski.
Com efeito, esses pré-romântlcos autênticos receberam in-
fluência russa; mas antes a de Tolstoi que lhes ensinou a
68) Ola Hansson, 1860-1925. autocrítica moral e os ajudou a "converter-se". São, todos
Sensitiva Amorosa (1887); Parias (1890); Skaebnenoveller (1890);
Unff Ofegs Visor (1892), etc. eles, "twice-born"; e continuam, como Tolstoi, artistas con-
J. Mortensen: Fran Roeda Rummet til sekelskiftel. Stotckholm,
tra a própria vontade. A Europa, já então meio tolstoiana,
1919.
E. Ek: Ola Hansson. Stockholm, 1925. entendeu melhor esses escandinavos do que os próprios rus-
69) Herman Bang, 1857-1912. sos, que sempre conservaram algo de exótico, estranho.
Haabloese Slaegter (1880); Foedra (1883); Excentriske Noveller
(1885); Stille Eksistenzer (1886); Tine (1889); Ludvigsbakke (1896) Mais do que a época anterior de Jacobsen, Bjoernson e
Det hvide Hus (1898); Mikael (1905); De uden Fadreland (1906). Ibsen, são os anos entre 1890 e 1900 o tempo da maior ir.-
P. A. Rosenberg: Hermann Bang. Kjoebenhavn, 1912.
2510 OTTO MARIA» CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2511

fluência escandinava na Europa e a idade áurea da litera- O pessimismo de Obstfelder como que continua nos
tura norueguesa ( 7 0 ). romances de Thomas Krag ( 7 a ), histórias líricas de exis-
A fama da maior parte desses escritores não resistiu ao tências fracassadas no ambiente estreito da província no-
tempo, porque a moda literária mudou rapidamente; a mui- rueguesa. Mais explícito é Tryggve Andersen ( 7 a ), espí-
tos observadores parece haver um intervalo vazio entre Bjo- rito mórbido, neurastênico, que sabia, porém, dominar-se
ernson-Ibsen e Hamsun-Kinck. É extremamente injusto artisticamente; em vários sentidos lembra a Jens Peter Ja-
isso. Obstfelder, Garborg e Amalie Skram são escritores cobsen, na ideia de reconstituir e revlvlficar uma época
de primeira ordem; e a influência do seu "tolstoianismo es- histórica por meio do estilo arcaizantt: / Cancelliraadens
candinavo" na Europa foi tão grande como a influência dage (Nos Tempos da Velha Chancelaria) é menos um ro-
efémera de Hansson e Bang, hoje também meio esquecidos. mance do que uma série de quadros brilhantes, mas um pa-
Obstfelder ( 71 ) é o Bang norueguês, o representante prin- norama inesquecível da Noruega de 1810. O outro romance,
cipal do que foi considerado como decadentismo nórdico: Mod Kvaed (Para a Tarde), é a história das alucinações
em prosa intensa, lírica como a dos simbolistas, apresentou de um indivíduo patológico, experimentando até uma gran-
uma espécie de erotismo místico, do qual Korset (A Cruz) de visão do apocalipse do Universo. Mas tudo isso está nar-
é a expressão máxima: história de uma paixão infeliz que rado em língua disciplinada, quase clássica; Tryggve An-
pelos ciúmes se torna martírio; uma das novelas mais im- dersen talvez seja o maior prosador da literatura norue-
pressionantes da literatura universal. A conclusão filosó- guesa.
fica, Obstfelder tirou-a na novela publicada depois de sua Para terreno além dessa literatura da neurastenia só
morte, Em praests dagbog (Diário de um Pároco): notas chegou Arne Garborg ( 7 4 ), a maior personalidade entre to-
de diário de um pároco luterano no alto Norte, abraçando dos eles. A sua vida é um exemplo. Era filho de campo-
a doutrina budista de que a vida é uma doença e a morte a neses pobres e pietistas. Em Bondaatudontar (Estudantes
redenção. Obstfelder era tolstoiano. Mas o colorido da Rurais) descreveu a vida proletária dos estudantes de ori-
sua obra é intensamente nacional: o drama lírico De roede gem camponesa na capital, a corruçio lenta e inevitável
draaber (Gotas Vermelhas) eterniza o tipo do sonhador ner- pelo espírito da boémia; e em Mannfolk (Machoa) explodiu
voso e abúlico. Obstfelder também deixou um volume de
poesias: numa nação pouco dada à poesia metrificada e
numa época de prosa, é êle o primeiro grande poeta lírico 72) Thomas Krag, 1868-1913.
da literatura norueguesa. Jon Graeft (1891); Ensomme MenMiher (1803); Kobbêrslangen
(1895); Ada Wilde (1896); Tubal (1909): Maolm (IMO).
73) Tryggve Andersen, 1866-1920.
I Cancelliraadens dage (1897); -Mod Kvaed (1900); Qamlê folk
(1904); Hjemfaerd (1913).
70) C. Naerup: Ilustreret Norsk Literaturhistorie. Siste Tidsrum, H. Kinck: Mange slags kunnt. Oilo, 1021.
1890-1904. Oslo, 1905.
74) Arne Garborg, 1851-1924.
71) Sigbjoern Obstfelder, 1866-1902. Bondestudentar (1883); Mannfolt (1880); JCoIbotuorc (1890);
Digte (1893); To novelletter (1895); Korset (1896); De roede Tratte Maend (1891); Fred (1802); Haugtuna (1800); Laeraren
draaber (1897); En praests dagbog (1903). (1896); Der burtkomne Faderen (1800); J Helhclm (1001); Fjell-
Edição por Ohr. Claussen, 2 vols., Oslo, 1917. Luft (1903); Knudaheibrev (1904); Jesus Messias (1906); Heim-
Chr. Claussen: Sigbjoern Obstfelder. Oslo, 1924. komin Son (1908).
T. Grelff: Sigbjorn Obstfelder. Oslo, 1945. E. Lie: Arne Qarborg. Oslo, 1914.
R. Thesen: Arne Qarborg. 3 volu. Oslo, 1933/1936.
2 5 1 2
OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2513

numa glorificação desesperada do amor livre, do sexualis- ( 7 5 ), um dos grandes romancistas do Norte e, contudo, quase
mo como libertação ilusória. O livro fêz escândalo enor- esquecida. O seu Forraadt (Traição) é considerado o ro-
me, Garborg foi demitido do serviço público; tornou-se o mance mais sombrio da literatura norueguesa, e isso não
chefe do niilismo literário e político mais radical. Mais ra- quer dizer pouca coisa; mas explica a resistência do público
dical, porém, do que todos os outros, lançou-se contra a contra o pessimismo extremo de Amalie Skram, cuja obra
sempre foi apreciada só pelos conhecedores. A trilogia
própria civilização urbana, fugiu para as montanhas da sua
Hellemyrsfolket é uma epopeia de homens brutais e mu-
terra, vivendo lá como selvagem, assim como viverá o Te-
lheres frias, arruinados todos pelo álcool e a hereditarieda-
nente Glahn em Pan, de Hamsun. Na natureza livre expe- de. Do naturalismo comum, Amalie Skram se distingue
rimentou o típico colapso de nervos. Fred (Paz) e Laera- pela profundidade da introspecção psicológica: os roman-
ren (O Professor) são documentos de uma conversão. Den ces Professor Hieronimus e Pau Sot. Joergon n l o são ape-
burtkomne faderen já é profissão de fé dum cristianismo nas documentos das experiências pessoais da romancista
tolstoiano, sem dogma, religião dos camponeses livres com nos manicômios da época, mas também obras de arte psico-
lógica, se bem que leitura torturante. Amalie Skram era
os quais Garborg se identificou, a ponto de adotar a língua
naturalista da variedade escandinava: a sua documentação
rude deles, lutando pelo reconhecimento público do "Lands-
não se constituía de coisas observadas mas de coisas vividas.
mal", do dialeto camponês, como língua oficial da Noruega, Vítima do naturalismo foi a maior personalidade li-
em vez da língua dinamarquesa dos cultos. Com efeito, o terária que a Europa, fora da Rússia, possuía no fim do
"Landsmal" venceu; e desse modo inicia-se com Garborg século X I X : o sueco August Strindbsrg (™). A sua obra,
uma nova época da literatura norueguesa, a da plena inde-
pendência. Os últimos anos, Garborg passou-os traduzindo
75) Amalie Skram, 1847-1905.
a Odisseia para aquela língua. O estilo poético de Garborg, Constance Ring (1885); HtUêmjfl i»lket (8iur Gabriel, 1887; To
espécie de prosa ritmada, condenou muito da sua obra à Venner, 1888; S. G. Myre, 1889); Fru lues (liiol); Forraadt (1892);
Professor Hieronimus (1895); Paa Sot, Joergen (1895); Afkom
ilegibilidade. Mas Garborg era uma grande figura; um (18898); Julehelg (1900).
A. Tiberg: Amalie Skram som kunatner og menneake, OBIO, 1910.
dos poucos que conseguiu salvar-se do naufrágio men-
76) August Strindberg, 1849-1912, (Cf. iuit.ii um
tal do naturalismo. Master Olof (1878); Roeda Hummet (1879); Qllleta hemlighet
(1880); Herr Bengts hustru (1882): Svenaka oeden ooh aeven-
O naturalismo pré-romântico dos escandinavos não en- tyr (1882/1891); Giftas (1883/1888); Utopier i verkllgheten (1885);
Tjenstequvinmans son (1886/1887); Faúren (1887); Hcmsoeborna
controu o caminho para libertar-se do determinismo ineren- (1887); PUUdoyer â'un fou (1887/1888); Froeken Julie (1888);
Skaerkarsliv (1888); Tsehandala (1889); Bland franska boender
te da doutrina por meio de um romantismo autêntico; por (1889); Creãitorer (1889); / hafabandet (1800); Flimmelsrikets
nycklar (1892); Bandet (1893); Inferno (1897); Negender 1898);
isso mesmo não haverá neo-romantismo nem simbolismo na Ttll Damaskus (1898/1904); Advcnt (1899); Brott och brott (1889);
Noruega. A revolta antifatalista era uma reação de nervos Folkungasagm (1899); Gustaf Vasa (1H09); Erik XIV (1899);
Gustaf Adolf (1900); Pask dOOD; Doedsdansen (1901); Mid-
excitados; as conversões dos naturalistas nórdicos parecem- sommar (1901); Engelbrekt (1901); Cari XII (1901); Dro-
emspelen (1902); Svanevit (1902); Kronbruden (1902); Ensam
se muito com colapsos; e caíram várias vítimas ilustres, (1903); Historiska miniatyrer (1903); Drottning Kristina (1903);
Gustaf III (1903); Goetiska rummen (1904); Svarta fanor (1904);
nem sempre devidamente lamentadas. Assim Amalie Skram Nattergallen i Wittenberg (1904); Spoeksonaten (1907); Ovaeder
2514 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2515

imensa não só pelo tamanho de mais de cinquenta volumes, já duvidaram, por isso, do valor literário da obra de Strind-
é uma verdadeira Suma da época: Strindberg, cujas primei- berg, considerando-a só como grandioso "document hu-
ras obras de mocidade estavam marcadas pelo idealismo main". Mas assim como nos estudos químicos, meio loucos,
pós-romântico dos epígonos, tornou-se logo naturalista, de Strindberg sobre o peso do ar se antecipou a descoberta
convertendo-se depois ao "simbolismo" do último Ibsen, dos chamados "gases raros", feita poucos anos depois por
chegando enfim a um estilo inteiramente novo, que será o Rutheford, assim as obras literárias de Strindberg encer-
do expressionismo. Essas mudanças estilísticas foram raram grandes lições para o futuro, e a sua força germina-
acompanhadas das correspondentes mudanças ideológicas: tiva ainda não acabou.
Strindberg foi idealista, depois radical, socialista, nitzschia-
no, ocultista, chegando a um cristianismo livre à maneira de Strindberg explicou, êle mesmo, a sua Índole a maneira
Tolstoi ou, antes, à maneira de Strindberg: porque a obra determinista da época: filho de um burguês falido e de
inteira de Strindberg — os seus inúmeros dramas, roman- uma criada das camadas mais baixas do povo. Depois, a
ces, contos, poemas, ensaios, escritos sociológicos, históri- educação pietista martirizando-o, mas incapaz de dominar-
cos, sobre química e filosofia — é toda ela uma confissão lhe os instintos selvagens. Strindberg, estudante proleta-
pessoal, acompanhando-lhe a vida e explicando-a com fi- rizado, fracassou na Universidade, como ator, como jorna-
delidade ainda maior do que nos casos semelhantes de Goe- lista; e, contra a sociedade que não o acolhera, lançou o seu
the e Tolstoi. A obra de Strindberg é o espelho da sua primeiro romance Roeda Rummet (O Quarto Vvrnwlho),
personalidade: anarquista apaixonado e sonhador abúlico, uma das maiores obras do naturalismo europeu, panfleto
megalómano furioso, egocentrista patético. E m suma, uma vigoroso de um anarquista, que logo depois casou com a
personalidade pouco simpática, um caos. Muitos críticos aristocrata Siri von Essen, e escreverá dramas históricos,
lembrando a Almquist pela combinação de enredos fantásti-
cos e teses provocadoras. Acentua-se cada vez mais, arn
(1907); Braenda tomten (1907); En bla bok (1907); Sista Riãdaren
(1908); Abu Casems tofflor (1908); Riksfoerestandaren (1909); Strindberg, o espírito de agressividade. No volume de con-
Stora landsvagen (1909); Bla bok, II (1912). tos, Giftas (Casamentos), lança ataques violentos contra o
Edição por J. Landquist, 2.° ed., 55 vols., Stockholm, 1921/1927. feminismo ibseniano como fenómeno de apoio a uma moral
H. Esswein: Strindberg im Lichte seines Lébens und seiner Werke.
Muenchen, 1909.
obsoleta; denuncia a educação pietista, que tanto o preju-
K. D. Marcus: Strindbergs Dramatik. Stockholm, 1918. dicara, exigindo liberdade sexual para os meninos a aboli-
J. Mortensen: Fr a Roeda Rummet till sekelskiftet. Stockholm, ção da instrução religiosa. O promotor público denuncia
1919. o autor por blasfémia; e Strindberg foge para a Suiça, onde
N. Erdmann: Strindberg. 2 vols. Stockholm, 1920.
K. Jaspers: Strindberg und Van Gogh. Leipzig, 1922. escreve os contos do volume Utopier i verkUghcttrn (Uto-
M. Lamm: Strindberg's dramer. 2 vols. Stockholm, 1924-1926. pias na Realidade), de um socialismo muito pessoal, tols-
B. Dlebold: "Strindberg". 'In: Die Anarchie im Drama. 3.* ed.
Frankfurt, 1925.) toiano, mas nada pacífico. O fim dos sonhos revolucioná-
A. Hedén: Strindberg. 2.a ed. Stockholm, 1926. rios era o divórcio. É muito possível que Siri von Essen
A. Jolivet: Le théâtre de Strindberg. Paris, 1931. tenha realmente reagido contra o antifeminismo violento
M. Lamm: August Strindberg. B vols. Stockholm, 1940/1942.
W. A. Berendsohn: Strindbergs problemer. Stockholm, 1947. do marido; mas ela não era a bruxa terrível que Strindberg
G. Ollén: Strindberg's dramatik. Stockholm, 1948. apresentou na obra autobiográfica, escrita em francês, Plai-
E. Diem: August Strindberg. Heídelberg, 1949.
B. M. Mortensen e B. W. Downs: Strindberg. London, 1949. doyer d'un fou. Infelizmente por esse livro confuso e ran-
M. Gravier: Strindberg et le théâtre moãerne. Lyon, 1949.
G. Brandell: Strindberg's infernokris. Stockholm, 1950.
2516 OTTO M A B I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2517
coroso é que Strindberg se tornou conhecido no mundo,
do com leituras de Swedenborg. Rebenta, enfim, a paro-
eternizando-se nas memórias como o maior dos misóginos.
nóia, a plena loucura. O grande psicólogo tinha, no entan-
Contudo, a classificação não estava de todo errada: a mi-
soginia era a "idée fixe" de Strindberg, aparecendo como to, a força de descrever a sua própria doença, com todos
tema principal ou ocasionalmente em todas as suas obras; os pormenores psiquiátricos, em inferno. Nesta época,
e é preciso notar que "idée fixe" já então tinha, com res- Strindberg acreditava-se curado do seu egocentrismo anár-
peito a Strindberg, o pleno sentido de "patológico". Nem quico, ínternando-se numa filosofia meio cristã, meio bu-
o curou disso o segundo casamento com a austríaca Frieda dista, enfim, tolstoiana. Na verdade, Strindberg foi um caso
Uhl, que conheceu durante os anos de boémia em Berlim. irremediável. Nunca se soube com certeza se foi indivíduo
É desse tempo uma série de peças em um ato, todas anti- anti-social ou bárbaro de força primitiva; se sua obra foi
feministas, de técnica dialética de efeitos inéditos, culmi- a autobiografia de um caso singular ou expressão completa
nando na grande peça Fadren (O Pai), a tragédia torturan- da sua época. Por enquanto Strindberg continuou mesmo
te do homem ao qual a própria esposa transforma em louco, depois da conversão seu caminho sombrio como um perso-
acabando ele em camisa-de-fôrça. O naturalismo biológico nagem de J o h n W e b s t e r :
chega nessas obras às últimas consequências — foi o destino
de Strindberg tirar últimas conclusões e consequências. Mas "My soul, like to a ship in a black storm,
assim conseguiu vencê-las. J á então, Strindberg não é pro- Is driven, I know not w h i t h e r . . . "
priamente naturalista; apesar do seu materialismo, é antes
de tudo psicólogo. Os caracteres revelam-se nos diálogos de
A evolução posterior de Strindberg devia estar cheia de
amor e ódio com uma força que não raramente lembra a
Shakespeare; e em Froeken Julie (Senhorita Júlia) che- surpresas, e acontecerá assim. Esse homem tinha a força
gou a uma admirável imparcialidade na análise psicológica, para renovar-se. Foi um autêntico "twice bom".
opondo à moça aristocrática que se perde pela excitação O colapso de Strindberg foi o mais terrível dos muitos
nervosa dos instintos decadentes, o sedutor, um plebeu for- colapsos da época — Amalie Skram, Obstfclder, Oarborg,
te, violento, ambicioso e covarde: um auto-retrato dos mais Garchin; nestes mesmos anos enlouqueceram Maupassant e
terríveis. Nesse tempo, Brandes iniciou-o na leitura de Nietzsche e dera-se o caso de Huysmans. São casos tão psi-
Nietzsche; e Strindberg entendeu o filósofo como profeta copatológicos como biopatológicos. A combinação do ma-
do anarquismo. Tirou logo as últimas consequências, re- terialismo biológico de Darwin e do determinismo psico-
tratando-se no romance I hafsbandet (Em Alto Mar) como lógico de Taine — que estava na base do naturalismo —
super-homem; ao qual prediz, aliás, o fim na loucura e no chegou a justificar o fatalismo'dos pessimistas extremos.
suicídio. A realidade esforçou-se para verificar a profecia. A redenção antifatalista, antideterminista, veio da Rús-
Começou, então, na vida de Strindberg, aquela fase vertigi- sia: não de Tolstoi só, mas também de Dostoievski, que
nosa que êle mesmo transfigurará mais tarde na trilogia fora até então interpretado como espécie de Tolstoi de se-
dramática TUI Damaskus: (Para Damasco) a tentativa de gunda classe, psicólogo de esperanças meio revolucionárias,
conseguir poder sôbre-humano pela alquimia, os experimen- meio espiritualistas. Essa interpretação falsa não teria
tos químicos mais loucos, e pelo estudo da magia, combina- sido possível se a Europa não estivesse preparada pela evo-
lução do romance psicológico.
2518 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2519
Por volta de 1880, Stendhal começou a ser lido, exata-
mente como ele mesmo o profetizara. O fenómeno é expli- "professeur d'énergie nationale", empregando a ambição
cado sociologicamente, observando-se de perto os primei- de Julien Sorel a serviço do nacionalismo francês. Mas
ros neo-stendhalianos. Eram filhos da burguesia antiga e Taine fora, ao mesmo tempo, o doutrinador do naturalismo;
culta, encontrando fechadas as portas da vida na qual o ca- os neo-stendhalianos, embora rejeitando o fisiologismo de
pitalismo industrial só precisava de técnicos e vendedores; Zola, encontraram a forma para a expressão do seu psicolo-
repetiu-se a situação de Julien Sorel, filho da época napo- gismo no romance dos realistas Balzac, Flaubcrt, Maupas-
leôníca, encontrando fechadas as portas pela restauração sant, Turgeniev; mas não em Dostoievski, que foi consi-
monárquica. Assim como Julien Sorel vestiu a batina para derado, por volta de 1880, como naturalista aem os excessos
fazer carreira, assim os neo-stendhalianos gostavam de dis- materialistas de Zola. Urge portanto dlatinguir o romance
farces religiosos e até de ideologias reacionárias, das quais psicológico de 1880 do romance psicológico moderno: Dos-
o criador do romance psicológico não sonhara: o persona- toiveski não é elemento comum doa dois, mas eatá entre
gem de Stendhal acabou no patíbulo, e os neo-stendhalianos eles, como marca divisória. O romance psicológico moderno
na confissão da própria impotência, da decadência. O ro- revela no estilo que os seus adeptos passaram pela escola
mance psicológico tinha origens revolucionárias, no Rous- do simbolismo; os neo-stendhalianos de 1880, enquanto não
seau das Confessions ( 77 ). Mas já no Adolphe de Constant ignoraram o simbolismo, hostilizaram-no. Bourget hostili-
a auto-análise serviu aos fins de um individualismo consu- zou-o durante a vida inteira. O romance psicológico mo-
mado; no Dominique, do pintor-escritor Fromentin ( 78 ), derno é determinista; pretende revelar leia desconhecidas
serviu ao evasionismo; e é mais uma vez um genebrino, do subconsciente, confiando-se aos instintos, mergulhando
Amiel ( 70 ), em que o diário auto-analítico se torna decla- em angústias. O romance psicológico de 1880 revela o seu
ração da abulia, da decadência. O elemento ativista, rous- caráter pré-dostoievskiano pelo associacionismo da sua psi-
seauiano do género encontrar-se-á em outra parte. Afinal, cologia, que ignora o subconsciente; e por certo realismo
o redescobridor de Stendhal fora Taine ( 80 ), que mais tarde "antiquado" da maneira de narrar. Dostoievski é para os
denunciará a decadência francesa, explicando-a pela anar- neo-stendhalianos, enquanto já o conhecem, não o poeta de
quia revolucionária e o despotismo centralizador de Napo- angústias, mas um revolucionário meio perigoso. O roman-
leão, justificando assim, implicitamente, o ancien regime; ce psicológico de 1880, inimigo do naturalismo de Zola, é
mais do que um dos discípulos do stendhaliano, Taine será antideterminista; por isso, Bourget revoltou-se contra o
seu mestre Taine.
Bourget ( 8 I ), por volta de 1900 tSo lido e admirado
77) J. Merlant: Le roman personnel, de Rousseau à Fromentin. Pa- como hoje Mauriac, está esquecido, ou antes desprezado;
ris, 1905.
78) Eugène Fromentin, 1820-1876.
Un été dans le Saltara (1857); Dominique (1863); Les maitres
á'autrefois (1876). 81) Paul Bourget, 1852-1935.
Edição de Dominique por Ch. Navarre, Paris, 1933. Essais de psychologie contemporaine (1883/1085); Cruelle enigme
C. Raynaud: La génese de Dominique. Grenoble, 1937.
V. Giraud: Fromentin. Paris, 1945. (1885); Un crime d'amour (1886); André Cornélia (1887); Men-
songes (1888); Le dlsciple (1889); La Terre promise (1892); Cos-
79) Cf. "Advento da burguesia", nota 76. mopolis (1893); Une idylle tragique (1896); Uétape (1903); Uii
80) Cf. "O Naturalismo", nota 75. divorce (1904); Vémigré (1907); Pages d ecritique et de doctrine
(1912); Le démon du midi (1914); Le sens de la mort (1915); Ano'
maltes (1920); Nos actes nous suivent (1927).
2520 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2521

por enquanto não parece que o futuro revisará o processo. importância histórica do Disciple é grande: marcou o fim
Mas isso não diminui a posição histórica de B o u r g e t : Le do naturalismo, do literário e do ideológico. Bourget tor-
disciple é um dos grandes acontecimentos literários de nou-se famosíssimo. Hoje, 6 pouco lido. A grande arte da
século X I X . O destino reservou e impôs a esse escritor, que composição que ainda Jaloux celebrou em Bourget, parece-
certamente não foi de primeira ordem, várias tarefas difí- nos mera habilidade, rotina, embora pelo menos Le démon
ceis de oposição à época. É preciso notar que Bourget não du midi seja realmente um romance de valor. Bourget des-
só reagiu contra Taine, o pensador mais poderoso do seu moralizou-se pela aplicação mecânica da sua psicologia, já
tempo, mas também contra o romancista mais lido, contra impossível depois de Dostoievskí, e pelo mundanismo su-
Zola. Os primeiros romances de Bourget — André Corne- perficial dos personagens e enredos. Inspira desgosto o
lis ou Mensoges — são do tipo de Feuillet, e contudo obras emprego desse esnobismo a serviço dos ideais políticos de
"revolucionárias": na época de Zola, precisava-se de cora- Bourget, do catolicismo em Cosmopolis, do antidemocratis-
gem para escolher os personagens entre aristocratas e gran- mo em Uétape. É um admirador da gente rica e elegante
des damas, "gens du monde", bem penteados e bem educa- â qual perdoa os pequenos adultérios, conquanto se conser-
dos. Bourget, julgando-se "idealista" porque desprezando ve a tradição monárquico-católica. Bourget foi um esnobe,
os ambientes sujos do romance naturalista, tinha formação mas coerente no seu tradicionalismo: começou a combater
meio inglesa, tendo aprendido na ilha a veneração supersti- ' a decadência de indivíduos, e chegou a combater a deca-
ciosa dos títulos hereditários, o esnobismo. Preocupou-o, dência de uma classe, à qual êle, como intelectual, só su-
porém, a decadência manifesta dessa alta sociedade, sobre- perficialmente estava ligado. É a mesma relação que liga
tudo na França republicana; e a esse assunto dedicara os H e n r y James aos milionários americanos, heróis preferi-
Essais de psychologie contemporaine, u m dos livros de crí- dos dos seus romances. Parece blasfémia a aproximação
tica literária mais importantes do século X I X : além de re- entre Bourget e um dos maiores artistas do romance mo-
velar o nome de Stendhal ao grande público, Bourget criou d e r n o ; mas não se trata do valor, e sim de situações histó-
o conceito da "décadence" como fenómeno moral. Esses ricas, que são perfeitamente comparáveis.
dois motivos encontram-se novamente no Disciple: Robert H e n r y James ( 8 2 ) revela várias analogias BUperficiais
Greslou é uma reedição de Julien Sorel, e o romance intei- com Bourget. Quase todos os seus romances se passam na
r o uma duplicata de Le Rouge et le Noir; a decadência
moral é explicada como fruto da psicologia determinista de FFG.:J.5/*
Taine, que aparece no romance como velho filósofo Adrien .82) Henry James, 1843-1916.
A Passíonate Pilgrim (1875); Roderlck Hudaon (1870); The Ame-
Sixte, mestre do perverso sedutor e arrivista Greslou. A rican (1877); The Europeans (1878.); Daiay Miller (1870); Wash-
ington Square (1881); The Portrait of a Ladp (1881); The Bos-
tonians (1886); The Princesa Caaamaaaima (1880); The Aspem
Papers (1888); The Lesson of the Maater (1882); The Coxon Fund
(1894); The Altar of the Dead (1898); The Figure in the Carpet
E. Jaloux: "Paul Bourget", romancier. (In: De Pascal à Barres. (1896); The Turn of the Screw (1888); The Awkward Age (1899);
Paris. 1927.) The Wings of the Dove (1002); The Ambaaaadors (1903); The
A. Autin: Le Disciple, de Paul Bourget. Paris, 1930. Golden Bowl (1904), eto.
V. Giraud: Paul Bourget. Essai de psychologie contemporaine. Edição pelo autor, 26 vola., New York, 1006/1817.
Paris, 1934. J. W. Beach: The Method of Henry James. New Haven, 1918.
A. FeuiUerat: Paul Bourget, histoire d'un esprit sous la Troisième S. B. Liljegren: American and European in the Works of Henry
James. Lund, 1920.
Republique. Paris, 1937.
W. T. Secor: Paul Bourget and the Novel. New York, 1948.
2522 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2523
mesma sociedade de aristocratas e milionários, no mesmo
O crítico inglês F. R. Leavis bate-se, porém, pela superiori-
ambiente dos grandes hotéis internacionais na França e
dade da fase precedente: de Daisy Miller, The Portrait of
Itália, e o esnobismo é tão mais chocante que metade dos
a Lady, The Bostonians. Quanto aos valores, que nos pare-
heróis e heroínas são americanos, ricos mas menos cultos ou
cem igualmente altos, não convém continuar discussões es-
artificialmente supercultivados, que pretendem a todo custo
téreis. Mas a mera existência das duas fases diferentes é
conquistar consideração e pé de igualdade nos círculos no-
fato que ainda não foi analisado a fundo. Seria James tam-
bres do velho Continente. Assim nos romances de James
bém u m "twice-born"? É pouco conhecido o fato de o r o -
da primeira fase, em The American, The Europaens, Daisy
mancista aristocrático ter escrito um ensaio altamente elo-
Miller, The Portrait of a Lady. Mas até numa das suas úl-
gioso sobre Zola. E no meio daquelas duas fases situa-se o>
timas obras-primas, The Golden Bowl, trata-se do "grande
romance The Princess Casamassima, no qual esse aparente
problema": a americana Maggie Verver conquistará real-
esnobe revela compreensão surpreendente dos problemas so-
mente ou não seu marido, um príncipe italiano de família
ciais e inclinações manifestas para o socialismo. É só um
empobrecida? E enquanto Bourget está preocupado com a
instante na longa vida literária de James, mas significativo
decadência da alta sociedade europeia, o americano J a m e s
de sua posição ambígua. Henry James é, ao mesmo tempo,
considera como "alta sociedade" o velho Continente intei-
antiquado e moderníssimo. Vários importantes romances
ro, "the great distributing heart of our traditional life".
seus foram escritos antes de Bourget ter publicado uma li-
James é conservador, também na arte. Os seus primeiros e
nha; e as suas últimas obras coincidem com modernismo e
permanentes modelos foram Turgeniev e George Eliot, aos
expressionismo; James julgava-se realista, mas a sua técni-
quais dedicou admiráveis estudos críticos. Mas, sendo as-
ca podia servir de modelo a Conrad e Gide, dois dos seus
sim, pode Henry James ser classificado como um dos repre-
admiradores incondicionais; e a sua psicologia do "flux of
sentantes literários da época que presenciou a conversão do
conscience" aproxima-o de Freud e Joyce. Por consequên-
naturalismo?
cia, tudo o que James afirma é ambíguo, tem um sentido
A carreira literária de James conheceu pelo menos duas para o seu próprio tempo, e outro sentido para os leitores
fases. Desde os estudos de Matthiessen estamos acostuma- de hoje; e como se James fosse consciente disso, acentuou
dos a considerar como a "major phase" a última: a de The a ambiguidade, servindo-se de um estilo de alusão e de
Wings of the Dove, The Ambassadors, The Golden Bowl. uma técnica de narração indireta. Do ponto de vista de
1880, são sintomas do esteticismo esnobístico de James, vi-
vendo numa atmosfera artificial de grã-finos mais ou me-
P. Edgar: Henry James, Man and Author. Boston, 1927.
L. Edel: Henry James. Les années dramatiques. Paris, 1931. nos legítimos, fingindo "cultura" à maneira dos admirado-
F. O. Matthiessen: Henry James. The Major Phase. New York, res de Robert Browning, enquanto não revelam a própria
1944.
E. Stevenson: The Crooked Corridor. A Study of Henry James. insignificância, oferecendo então ao romancista oportunida-
London, 1949. de para sátiras delicadas à maneira de Jane Austen. De um
F. R. Leavis: The Great Tradition London, 1949.
O. Andreaa: Henry James and the Expanãing Horizon. Seattle, 1949. ponto de vista moderno, os artifícios de James aludem à
F. W. Dupee: Henry James. New York, 1951. condição social, à sua própria e à das suas personagens.
M. Bewley: The Complexe Fate. London, 1952.
L. Edel: Henry James. Vol. I. Philadelphia, 1953. São, todos eles, "homens inúteis", como os heróis do seu
D. Krook: The Ordeal of Consctonsness in Henry James. Cam- querido Turgeniev. The American e Ambassadors são t i -
bridge, 1962.
2524 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2525

tulos significativos. São "homens inúteis" na América in- narração indireta, do qual The Golden Bowl é o resulta-
dustrializada da "gilded a g e " ; mas são ricos, exilados para do definitivo, o modelo de Conrad e Gide: os enredos apa-
a Europa admirada como o próprio James. Este revela sim- recem através do reflexo dos acontecimentos na consciên-
patias marcadas para com as filhas bem educadas e formadas cia dos personagens. É um método eminentemente dramáti-
dos rudes milionários americanos, conquistando príncipes co, assim como o dramaturgo, em vez de intervir no palco,
italianos decadentes pelo seu dinheiro e pela sua mentali- deixa pensar, agir e representar os próprios personagens,
dade naturalmente aristocrática. O esnobismo romântico de ficando ele mesmo em imparcialidade soberana. A narração
J a m e s está cheio de saudades pela "tradição" europeia, indireta é a arma de James para conquistar a imparcialida-
"heart of our traditional life". Daí o aparente esteticismo de, que parece moralmente ambígua, de fazer j u s aos inte-
de J a m e s , que é, na verdade, um moralismo severo; o ro- ligentes e aos insignificantes, aos ingénuos e aos pérfidos.
mance The Ambassadors, que é possível de uma interpreta- A imparcialidade dramática que é a suprema virtude do li-
ção imoralista, é na verdade expressão do sonho de uma beralismo inglês e do seu romancista onisciente Flelding.
moralidade superior, em que o Belo e Bom se encontram
James amava a Inglaterra, berço da civilizaçlo aristocrática
reunidos na compostura aristocrática, que também é aces-
e liberal; acabou naturalizando-se cidadio inglês, em 1915,
sível aos não-aristocratas, conquanto sejam almas "naturalis-
no momento quando a ilha estava ameaçada como nunca.
t a s " aristocráticas. Compostura é tudo. Daí o caráter "cor-
- Pouco antes da sua morte, em 1916, James exprimiu preo-
tesão' dos romances, lembrando os romances pastorais e da cupações de um desastre apocalíptico da civilização que
fora a sua e que ele pretendera fixar em obras de arte. O
cavalaria, a Astrée de D'urfé; e a famosa "anemia" de Ta-
seu sentimento de decadência estava justificado; mas a sua
mes, a falta de paixão e vontade nos seus heróis. Correspon-
arte de artista altíssimo não pertencia a esse seu tempo;
de a isso o estilo sutil e artificial, transformando os acon- revelou sua verdadeira si|, lo só em nosso tempo e
tecimentos mais triviais em motivos de discussão profunda;
o romancista diz muito e parece falar demais, porque tem pertence a todos os tempos.
de dizer coisas difíceis, inefáveis. O próprio James estava Um dos poucos rebentos americanos da arte de Henry
consciente das qualidades altamente artísticas do seu esti- James é a obra de E d i t h Whnrton (""), a brilhante roman-
l o : fala de "centers", "mirrors", "lighters" pelos quais pre- cista da classe rica de Nova Iorque, observadora inteligen-
tende iluminar os enredos, conferindo-lhes nova dimensão tíssima das imbecilidades elegantes e das tragédias doB ina-
em profundidade. Pretende tornar diáfanos os personagens daptados a esse meio; uma vez, saindo desse ambiente, ela
criou mesmo um legítimo romance trágico, Ethan Frome.
como se fossem bonecos de vidro, observando-se neles o
"flux of conscience", os menores movimentos do "rio psico-
83) Edith Wharton, 1862-1937.
lógico"; e o movimento desse rio não acaba ("no endings in The Greater Incltnatíona (1809); Crucial Inatances (1001); The
life"). Evidentemente, isso não é a psicologia nem a téc- Valley of Decision (1902); The Deacent of Man (1004); The House
of Mirth (1905); The Fruit of tha Tree (1007); Ethan Frome
nica de Bourget. A este agradam os romances bem cons- (1911); The Custom of the Country (1013); The Age of innocence
truídos como máquinas psicológicas, com começo, meio e (1917) ; Ohosts (1937) ,
K. F. Gerould: Edith Wfwrton, a Criticai Study. New York, 1922.
fim. James, o realista, nunca revela todos os segredos nem C. K. Brown: Edith Wharton. Etude critique. Paria, 1938.
constrói máquinas novelísticas. Ou antes, inventou nova Edm. Wilson:B "Justice to Edith Wharton". (In: The Woundand
the Bow. 6. ed. Cambridge, Mass., 1041.)
máquina novelística, de complexidade inédita, o método de B. Nevius: Edith Wharton. A Study of her Fiction. Berkeiey, 1943.
2526 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2527
Certos críticos modernos censuraram asperamente o artifi- soes práticas. É um intelectual, mero observador. Escre-
cialismo elegante de Edith Wharton, o elemento parnasia- veu a história dos Estados Unidos na época de Jefferson
no, evasionista, na sua arte, a falta de vida, paixão, tragédia e Madison, para descobrir na raiz as causas dos males. É
como num Henry James menor. Outros defenderam o rea- historiografia puramente politica a administrativa. Assim
lismo sincero da sua psicologia, num ambiente que não su- como os seus personagens parecem menos inteligentes do
portava decisões definitivas. Testemunha dessa verdade se- que são, Henry Adams, muito bem educado, sabia dissimu-
ria Henry Adams ( 8 4 ), filho daquele mesmo ambiente e a lar na companhia dos seus parca a desilusão profunda de
maior figura intelectual da América no fim do século X I X . um poeta, preferindo parecer um pesquisador de arquivos.
Descendia de uma grande família: um determinismo, ine- A o lado da torre de Babel dos negócios de trustes e da
lutável como a fé dos seus antepassados puritanos na pre- política imperialista, Adams construiu a sua torre parti-
destinação divina, destinara-o a terminar um capítulo da cular que parecia a de um parnasiano. Aconteceu que a
história americana. O bisavô John Adams, puritano e li- torre de Henry Adams se levantou t i o alta e até mais alta
beral de Massachusetts, fora um dos pais da Independên- do que os arranha-céus de Nova Iorque: 'e do alto dela
cia e da Constituição dos Estados Unidos. O avô, J o h n abriu-se um panorama tão vasto da história humana que o
Quincy Adams, fora o último presidente liberal desses E s - Oceano Atlântico lá em baixo desapareceu como se fosse
tados Unidos, antes de se iniciar a era da democracia de- um lago insignificante, e do outro lado apareceu a Europa
magógica de Andrew Jackson. O pai já era embaixador na que os seus antepassados puritanos tinham deixado, e no
Europa, frequentando círculos que constituirão o ambien- fim do horizonte outras torres, as das catedrais góticas,
te nos romances de Henry James. Enfim, Henry James, o monumentos de uma civilização de harmonia entre a arte e
último, volta para a pátria, e já não a reconhece, esse país a religião, negada aos filhos da América. Em visão apoca-
de milionários incultos e políticos corrutos que se servem líptica, Adams viu os arranha-céus americanos condenados
de slogans democráticos para explorar as massas amorfas. a tornar-se, um dia, ruínas da uma civilização feia e falsa.
A primeira reação de Henry Adams foi o romance Demo- Tudo o que tinham feito os seus pais estava errado. É pre-
cracy, publicado sob anonimato; panfleto que poderia ser ciso voltar para a Europa, do d inumo para a Virgem, a ci-
igualmente interpretado como pré-marxista ou pré-fascista. vilização do século X I I I , de Mont-Suint-Michel and Char-
Mas Henry Adams não foi e nunca será homem das deci- tres.

O medievalismo do americano Henry Adams não era


mero evasionismo; não sendo homem de decisões, não aca-
84) Henry Adams, 1838-1918.
Democracy (1880); History of the United States during the Admi- bou convertendo-se ao catolicismo, mas construindo uma
nistrations of fefferson and Madison (1889/1891); Mont-Saint-Mi- filosofia céptica da História, na qual a ordem é um sonho
chel anã Chartres (1904; publ. 1913); The Eãucation of Henry
Adams (1906; publ. 1918). vão; pois sempre é vencedor o caos dos instintos, desses
P. E. More: "Henry Adams". (In: Shelburne Essays. Vol. XI. instintos que os puritanos nlo conseguiram extirpar.
Princeton, 1921.)
J. T. Adams: The Adams Family. New York, 1930. Adams há muito que exige um estudo psicanalítico. Mas
E. Samuel: Young Henry Adams. Cambridge, Mass, 1948. êle mesmo continuou filho de gerações de puritanos, acre-
M. J. Baym: The French Education of Henry Adams. New York,
1951. ditando na onipotência da educação; era a sua maneira de
E. Stevenson: Henry Adams. A Biography. New York, 1955. opor-se ao determinismo. Assim escreveu The Education
2528 OTTO MARIA CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2529

of Henry Adams, q u e é — d e p o i s d o Scarlet Letter, e não


n i é (86) : Uempreinte ainda era determinista, desesperando
se l e v a n d o e m c o n t a a o b r a d o a n g l i c i z a d o H e n r y J a m e s —
da possibilidade d e libertar-se dos resultados da "educação"
o maior romance psicológico da literatura americana. A d a m s
desta vez da " e m p r e i n t e " dos j e s u í t a s ; desde a Ascension
é anti-romântico, na política antidemocrática e no estilo ri- de M. Baslèvre, E s t a u n i é é o romancista das libertações an-
gorosamente clássico. Será o P a d r e da I g r e j a do neo-huma- t i d e t e r m i n i s t a s , d a l i b e r d a d e í n t i m a da alma. M a s n ã o é
nismo anti-rousseauiano de Irving Babbitt e Paul Elmer uma liberdade alegre. E m toda a literatura do romance
M o r e . M a s n ã o p e r t e n c i a a e l e s . A s r a í z e s da s u a a r t e e s - psicológico reina a atmosfera cinzenta de frustração e do
tão n o próprio Rousseau. " H e n r y A d a m s não conseguiu f r a c a s s o . T a l v e z e m p a r t e n e n h u m a essa d e p r e s s ã o seja t ã o
educar H e n r y A d a m s " . E r a utopista incorrigível não con- e v i d e n t e c o m o n o r o m a n c e Nagelaten bekentenis (Confissão
seguiu educar Henry Adams". E r a utopista incorrigível; Póstuma), do holandês E m a n t s (87), que tinha começado
e em certos momentos aproximou-se do marxismo. Mais d o como poeta ateísta; em versos sugestivos que pressagiam o
q u e p o e t a e e s t i l i s t a , foi A d a m s u m m e r o o b s e r v a d o r i n t e - simbolismo. E m u d e c e u , depois, por completo. Naquele tem-
p o , n ã o se f u g i u à d e c a d ê n c i a .
lectual; não tirou conclusões definitivas. Foi u m Tolstoi
sem tragédia. D e n t r o da l i t e r a t u r a d o "fin d u siècle" burguês, o ro-
m a n c e p s i c o l ó g i c o é f a t a l m e n t e p e s s i m i s t a e, m a i s d e u m a
Não por acaso se citou o nome d o russo, que também vez, r e a c i o n á r i o . M a s e s t á c o n s t i t u í d o d e e l e m e n t o s c o n t r a -
q u i s c r e r s e m c a p a c i d a d e d e t e r fé. R o u s s e a u t a m b é m é o ditórios — realismo, naturalismo, dissociação psicológica,
t e r m o m é d i o e n t r e o r o u s s e a u i a n o r u s s o T o l s t o i e os cria- moralismo tolstoiano — q u e em o u t r a m i s t u r a se p r e s t a m
dores suíços do romance psicológico, Constant e Amiel, e para servir à ideologia radical dos intelectuais proletariza-
os p u r i t a n o s f r a c a s s a d o s c o m o H e n r y A d a m s . O g é n e r o d o dos. Talvez o maior r o m a n c e psicológico da época sejam os
r o m a n c e p s i c o l ó g i c o o f e r e c e a o s m o r a l i s t a s p r o t e s t a n t e s ou- sete volumes da autobiografia de Strindberg, análise lúcida
de um espírito confuso como de um personagem de Dostoie-
tras perspectivas do que o tradicionalismo pseudocatólico
v s k i . E s t e i n f l u i u , s e m d ú v i d a , em S t r i n d b e r g ; o u a n t e s
d e B o u r g e t . H á os r o m a n c e s p s i c o l ó g i c o s d e E d o u a r d R o d
influiu a imagem bastante deformada de Dostoievski que a
(86), suíço, protestante, moralista e tolstoiano. A análise época criara p a r a o seu p r ó p r i o uso. M a s havia, para exer-
torna-se mais penetrante quando auxiliada pelas experiên-
cias d e c o n f e s s i o n á r i o d e u m a n t i g o c a t ó l i c o c o m o E s t a u -
86) Édouard Estaunié 1803-1942
BSTTlíw)mLL LU
1
i ? r lai r0Ute
í e (1908)
<1S22
- ascension de M.
85) Èdouard Rod, 1857-1910. camvaane JUMDJ
cajnpagne (1925) ,• Tels
?J* qu'ils
t ,
furcrit (1927).> • Lc slle™ dans la
La vie privée de Michel Tessier (1892); Le ménage du pasteur O C é a r E a r £ « S T * contemporains. Estaunié. Paria, 1932.
Naudié (1893); L'inutile e/fort (1903); Uombre s"étend sur la R o Hok ÊdnZ Í°T!B d Ed
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d Eataunié The
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V. Giraud: "Édouard Rod". (In: Maitres de VHeure, essais d'histoire 87) Marcellus Emants, 1848-1923

a894^(XL?d?sfsr (l883): Een naamten hek


morale contemporaine. Vol, II. Paris, 1914).
Ch. Beuchat: Édouard Rod et le cosmopolitisme. Paris, 1931.
C. Delhorbe: Édouard Rod. Paris, 1938.
Sms^rdà^ig^136 levens
°™houwing van Marcellus Emants.
2530
OTTO M A H I A CARPEAUX HlSTÓBIA DA LlTERATUIlA OCIDENTAL 2531
cer-se tal influência, motivos bem certos: Dostoievski tam- vitch Katkov fundara a Gazeta de Moscou, que se tornará
bém foi intelectual proletarizado e radical; se fosse euro- órgão oficial do pan-eslavismo. N a i colunas deste jornal
peu ocidental, ele talvez tivesse de libertar-se do "tainis- se pediu a russificação d a i populações não-russas do Impé-
mo", como o "discípulo" de Bourget; seria figura familiar. rio pela força, o monopólio eclesiástico da Igreja oficial,
Mas é diferente. Então, atribuiu-se a singularidade de Dos- o fortalecimento da autocracia t u r i s t a , a guerra contra a
toievski ao exotismo do ambiente russo; e até isso estava Turquia para libertar os Irmloi eslavos. Enfim, houve tal
certo, porque o radicalismo e as teorias mesológicas assumi- guerra, em 1876, e entre os propagandistas mais apaixona-
ram na Rússia uma feição especial. dos estava Dostoievski, partidário incondicional do progra-
Na Rússia, Taine era o guia dos radicais; nem então ma pan-eslavista.
nem mais tarde alguém pensava em reivindicá-lo como mes- Dostoievski (0O) apareceu aos europeus ao lado de Tur-
tre do nacionalismo. Nem era preciso. A teoria mesológica geniev e Tolstoi; e nada mais natn nslo
de Taine veio de Herder, cora cujo pensamento os russos «ntre eles: as traduções medíocres a infiel nflo permiti-
tinham relações especiais, desde os dias do eslavofilismo. ram descobrir a imensa diferença doa •
Enquanto os "ocidentalistas", formados na filosofia de He- ignoravam as diferenças da con
gel, reconheceram em Taine o determinista histórico, con- Tolstoi eram grandes senhores rurais; DOM mu in-
servavam-se os eslavófilos fiéis à teoria de Herder, revela-
SO) Fedor Míkhailovitch Dostoievski, 1821-1881.
dora de um grande futuro da raça eslava. E enquanto as Gente Pobre (1845); O Sósia (1846); A Fa*
reformas políticas e sociais do tzar Alexandre I I só leva- (1859); Recordação da Casa dos Morto
Ofendidos (1862); Notas do Subterrâneo iUI
ram ao aburguesamento económico da Rússia, lançando os tigo (1866); O Jogador (1867); O Idiota
intelectuais radicais na aventura do niilismo e do terroris- rido (1871); Os Demónios (1871) ; (
de um Escritor (1876/1877); Os Irmãos Kara
mo, fortaleceu-se o eslavofilismo, antigamente tão literário Edição da Editora do Estado, 13 vols., Mosc<>
e pacífico, transformando-se em programa político, impe- A. L. Volynski: O Reino dos Karamasoi ltioI u m
língua russa.)
rialista; em pan-eslavismo ( 8 8 ). O grande teórico eslavófilo D. Merejkovski: Tolstoi e Dostoievski. Ptu Ifl (Sm Un
Khomiakov (80) já tinha reunido os elementos para tirar gua russa.)
V.a V. Rosanov: A lenda do Grande inquiridor, de tio*ta\ev*kl.
as conclusões políticas, embora sem tirá-las; tampouco seu 3. ed. Petersburgo, 1906. (Em língua russa,)
amigo Konstantin Sergeievitch Aksakov. Mas o irmão des- A. L. Volynski: Dostoievski. Peteroburgo,
A. Suares: Trois hommens. Pascal, ih ;, iM, Paris,
te último, Ivan Sergeievitch Aksakov, já era pan-eslavista, 1919.
J. Lavrin: Dostoievski and Ms Creation. I
falando em direito e dever da Rússia de "proteger" todos L. P. Grossman: A Obra de DostoieviM. Odesnii, 1091. (Sm língua
os eslavos e no monopólio espiritual da Igreja russa no russa.)
J. Tynlanov: Dostoievski e Qogol MOIOOU, 1011. (Sm língua
Oriente próximo inteiro; e Nikolai Jakovlevitch Danilevs- russa.)
ki lançou, em Rússia e Europa (1859), as bases do imperia- L. P. Grossman: Seminário nobre Dostoievtki, MosOOU, 1033. (Em
língua russa.)
lismo tzarista. Três anos antes, em 1856, Mikail Nikiforo- O. Kans: Dostoievski und aein Sohtokial. Borlin, 1993.
A. Glde: Dostoievski. Paris, 1933,
L. P. Grossman: o Caminho do Dostoievski. Lsningrodo, 1924.
(Em língua russa.)
88) Cf. "Romantismo de evasão", nota 115. L. P. Grossman: A poética de Doitoieviki. Monoou, 1924. (Em lín-
89) Cf. "Romantismo de evasão", nota 116. gua russa.)
J. M. Murry: Fedor Dostoievski, a Criticai Study. London 1924.
2532
OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2533
telectual pequeno-burguês, homem da cidade. Contudo, no-
tou-se logo uma divergência. Aqueles pertenciam à "litera- cionário: adorava a autocracia tzarista, abraçando firme-
tura dos latifundiários", de auto-acusação. Dostoievski, po- mente o credo da Igreja ortodoxa. Por volta de 1890, na
rém, parecia pertencer à "literatura de acusação"; o seu Europa, explicava-se essa sua atitude como consequência
ponto de partida não seria Eugênio Onegin, mas O Capote, dos sofrimentos que se seguiram à prisão do jovem revo-
de Gogol, assim como os radicais o interpretavam. Com lucionário em 1849: depois da condenação à morte, o per-
efeito, a primeira novela de Dostoievski, Gente Pobre, é dão só no último momento, já no patíbulo; cinco anos de
uma obra gogoliana; e Bielinski, o grande crítico radical, trabalhos forçados na Sibéria; mais cinco anos de exílio; e,
não estava equivocado, ao celebrar a estreia do jovem es- depois, uma "vita nuova", mas de proletário da pena. Um
critor que frequentava então os círculos revolucionários. crítico daquela época chegou a dizer que Dostoievski foi
Mas Dostoievski não continuou no realismo; e muito me- doutrinado na sua filosofia político-religiosa pelo chicote.
nos acompanhou a evolução para o naturalismo determinis- Mas essa explicação considera Dostoievski como caso pa-
ta, conforme a doutrina de Taine. Ao contrário, a sua obra tológico; teríamos que eliminar e esquecer aquela filosofia
inteira é um protesto apaixonado contra o determinismo que para poder aceitar e apreciar os valores literários que Dos-
lhe parecia o fundamento do materialismo ateu; Dostoievs- toievski criou. Até hoje, alguns críticos fazem tentativas
ki, porém, é espiritualista, proclamando a liberdade da alma desesperadas de abstrair da filosofi.' i e religiosa que
humana, seja para o bem ou seja para o mal; e essa liber- Dostoievski proclama em voz alta, t t é com gritos; por mais
dade parecia-lhe inextricâvelmente ligada ao Evangelho e que admirem o romancista e o psicólogo Dostoievski, sen-
à fé na divindade de Jesus Cristo. Qualquer outra liberda- tem aversão invencível contra seu credo exótico. Mas não
de degeneraria fatalmente em nova tirania, fosse a tirania adianta. O credo e os valores literários, em Dostoievski,
económica dos liberais, fosse a tirania política dos socialis- são absolutamente inseparáveis. N l o apreciaremos bem
tas. Por isso, Dostoievski tornou-se deliberadamente rea- estes sem compreender aquele. A primeira chave, embora
não a explicação definitiva, é a consideração das condições
V. L. Komarovitch: Dostoievski. Problemas modernos da interpre- sociais. O intelectual proletarlaado, Dostoievski não pôde
tação literária e histórica. Leningrado, 1925. (Em língua russa.) acompanhar o liberalismo dos grandes senhores Turgeniev
J. Meler-Graeíe: Dostoievski, der Dichter. Berlin, 1926. e Tolstoi, em que diagnosticou com agudeza o anarquismo,
D. Tchichevski: Dostoievski-Studien. Reichenberg, 1931.
L. Chestov: Dostoievski e Nietzsche. Berlin, 1931. (Em língua russa.) a conclusão paradoxal mas coerente do liberalismo burguês.
N. A. Berdiaiev: Dostoievski. An Interpretation (trad. do russo). Mas também reconheceu o mesmo anarquismo no terroris-
New York, 1934.
E. J. Simmons: Dostoievski. The Making of a Novelist. Oxford. mo-niilismo dos radicais russos, que estavam então muito
1940. (2.R ed., 1950).
longe ainda do socialismo marxista. Nos Demónios, identi-
J. Roe: The Breath of Corruption. An Interpretation of Dostoievs-
ki. London, 1946. ficou o liberalismo dos pais e o anarquismo dos filhos. Op-
J. A. Th. Lloyd: Fedor Dostoievski. New York, 1947. (Em lín- tou contra o passadismo determinista de Taine, em favor
gua russa.)
V. J. Kirpotin: Fedor Michailovitch Dostoievski. Moscou, 1947. do racismo espiritualista dos eilavófilos. Mas já não exis-
(Em língua russa.) tia, em seu tempo, o eslavofllismo romântico e pacífico;
R. Lauth: DostoievskVs Philosophie. Muenchen, 1950. já estava transformado em pan-eslavismo reacionário e vio-
R. Curie: Characters of Dostoievski. London, 1950.
C. Cappello: La coscienza mor ale neWopera letteraria di Fedor lento; de tal modo que a política de Dostoievski parece, às
Dostoievski. Torino, 1951. vezes, antecipar o fascismo. Mas teria o escritor realmen-
E. De Michelis: Dostoievski. Firenze, 1951.
2534 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA[ LITERATURA OCIDENTAL 2535

te sido tão terrivelmente reacionário? Suas proclamações e do movimento revolucionário". Ora, nem é preciso dar aten-
gritos não deixam de ser ambíguos. Por mais categorica- ção às declarações ideológicas de Chatov para reconhecer
mente que afirmasse as doutrinas do pan-eslavismo, nunca em Stavrogin, Piotr Verkhovenski e Kirilov caricaturas
foi capaz de renegar inteiramente as suas origens revolu- grotescas e grandiosas do socialismo, pelo menos daquele
cionárias, nem na análise psicológica que o levou para perto socialismo fourierista e bakunista que Dostoievski só co-
do anarquismo, nem na análise moral que o levou para perto nhecia: Os Demónios são, por excelência, o romance da
do imoralísmo; é reveladora a cena, nos Demónios, na qual contra-revolução. A figura ideal em oposição a esses demó-
Chatov, porta-voz do romancista, confessa acreditar em to- nios é o "idiota" Mychkin, o "Don Quijote" do cristianismo
dos os dogmas políticos e religiosos da Rússia, menos em Mas a Rússia dessas obras não é o inferno dos revolucioná-
Deus. Mas o criador de Chatov acreditava em Cristo, com rios nem o céu dos santos: é o lugar em que todos os per-
o fervor de um Agostinho, um Lutero, um Pascal. Como sonagens infernais e celestes do pandemônio dostoievskia-
todos os grandes da época, Dostoievski era um "twice- no têm de viver juntos, uma grande família, dividida por
born"; como em todos eles, a sua conversão também ficou ódios fratricidas. A imagem e o símbolo dessa convivência
incompleta, duvidosa. Daí a ambiguidade de Dostoievski, é a família dos irmãos Karamasov: a família do povo russo.
angustiosa para êle mesmo e assustadora para os outros. E É, para Dostoievski, o povo eleito e o povo condenado, ao
daí a multiplicidade das interpretações contraditórias. mesmo tempo. Como salvá-lo? A Igreja russa ignora o
dogma da existência do Purgatório. Mas o misticismo es-
A história das interpretações de Dostoievski ( 0 1 ) está lavo admite estranho caminho da salvação: através do pe-
cheia de erros trágicos e equívocos grotescos. Mas cada cado. E isso explica as profundidades do imoralismo no
um desses erros e equívocos serviu para revelar um pedaço cristianismo de Dostoievski.
do mistério. Quando Dostoievski se tornou conhecido na
Europa, Crime e Castigo, a sua primeira obra traduzida, foi Essa interpretação cristã de Dostoievski é hoje a mais
saudado como grandioso romance policial no ambiente rus- divulgada. Não se trata, evidentemente, da religião cristã
so, tão exótico, tão interessante. Os críticos radicais, da devidamente atenuada dos bien pensants. O cristianismo de
família de Brandes, chamaram a atenção para a corrução Dostoievski é radical: é a religião "existencial" de u m an-
dessa gente pelo despotismo tzarista, para os horrores da gustiado que vê aberto, aos seus pés, o abismo da anarquia
inquisição policial e a miséria dos estudantes entre os quais e da danação eterna. Essa angústia de Dostoievski também
Raskolnikov surge como um herói revolucionário. O livro é incomensuràvelmente mais radical que a angústia de se-
parecia o produto natural das experiências de Dostoievski melhantes espíritos europeus, que sempre guardam um res-
no presídio siberiano, na Recordações da Casa dos Mortos; e to de disciplina humanista; pois Dostoievski é místico es-
até u m título como o do romance Humilhados e Ofendidos lavo. Mas é um místico impuro. Conhece as profundidades
confirmava a interpretação como "literatura de acusação". do Céu e do Inferno; e nesta Terra só conhece o pan-esla-
Houve até quem chamasse aos Demónios "o maior romance vismo tzarista-ortodoxo.
Não é possível esquecer ou eliminar por um golpe de
mágica da crítica literária o pan-eslavismo fanático e agres-
91) Th. Kampmann: Dostoievski in Deutschland. Muenster, 1931. sivo do qual os quatro volumes do Diário de um Escritor
F. W. J. Hemmings: The Russian Novel in France, 1884-1914. Ox- são o documento.
ford, 1950.
25
36 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2537
Esse credo não é aceitável para europeus. Ainda há
quem insista na interpretação "revolucionária" de Dostoie- foi escrita, assim como os Irmãos Karamasov terminam com
vski, perguntando: não será possível empregar as energias a promessa de uma continuação: perspectiva ampla e vaga.
desenfreadas pelo grande russo para fins subversivos, des- Dostoievski é um utopista cristão — utopísta, acrescenta
trutivos? E i s a interpretação de Dostoievski por Gíde: Kaus, porque então só havia utopias para opô-las à reali-
psicologia do subconsciente, imoralismo anarquista, des- dade russa. Mas esta já não era a da Rússia antiga, do tza-
truição de todas as ordens estabelecidas. É o Dostoievski rismo meio medieval, meio oriental, e sim a da Rússia de-
das Notas do Subterrâneo: mistura do Dostoievski nietzs- pois da abolição da servidão, em pleno aburguesamento.
chiano, de Chestov, e do Dostoievski apocalíptico, de Me- Dostoievski teria rejeitado o socialismo porque conhecia só
rejkovski, com alguns ingredientes psicanalíticos. Não há o de Bakunin e dos terroristas-utopistas; mas teria sauda-
dúvida: na alma caótica de Dostoievski existiam essas pos- do, talvez, a revolução do marxismo. É uma das interpreta-
sibilidades, êle mesmo as admitiu: e com a lucidez deste- ções mais sutis, esta de Kaus, empregando novas armas dia-
mida que o distingue, revelou-as nas teorias e na prática léticas, para voltar à primeira interpretação de Dostoievski
de Raskolnikov. Mas só para condená-las da maneira mais como revolucionário.
convincente. Crime e Castigo não pode nem deve ser in- Todas essas tentativas de interpretação, por mais du-
terpretado no sentido de que Raskolnikov, julgando-se gé- vidosos que fossem os resultados, não eram inúteis. São
nio e colocado acima das leis morais, a confissão teria sido fases da luta do espírito ocidental para apoderar-se do gran-
o colapso de nervos de um fraco. Não é esse o pensamento de estrangeiro. Só de uma maneira de interpretar Dostoie-
de Dostoievski. Se fosse teria fracassado porque só foi um \ vski ninguém se lembrava: da literária: Meier-Graefe cha-
ambicioso megalómano; Raskolnikov teria tido o direito de mou, em primeiro lugar, a atenção para os problemas de
matar, conquanto que fosse realmente um Napoleão. Mas composição no menos conhecido dos cinco grandes roman-
Dostoievski nega esse direito a todos: aos génios aos mega- ces: O Adolescente, e os "formalistas" russos, Grossman
lómanos e aos medíocres. Perigos mortais ameaçam a quem sobretudo, renovaram do mesmo ponto de vista a crítica
pretende renegar as experiências mais antigas e mais se- dostoievskiana. Os modelos literários do romancista foram
guras da tradição cristã. Teoricamente, Raskolnikov não George Sand e Sue; intervieram influências de Balzac e
pode ser refutado: a velha prestamista, criatura horrorosa Schiller, ideológicas mas também formais. Os romances de
e inútil, não tem o direito de viver. Mas quem tem o direito Dostoievski são vastos panoramas sociais de composição in-
de matá-la? Praticamente Raskolnikov fracassa; porque coerente, mas compostos de concisas cenaa dramáticas nas
nem sequer o indivíduo soberano ou genial é capaz de pre- quais os conflitos ideológicos se condensam. O escritor só
ver todas as consequências do seu ato no entrelaçamento adotou o sensacionalismo novelística à maneira de Sue para
complicado das relações sociais. Dostoievski é, conforme colocar seus personagens em condições extremas e chegar a
Foerster, o visionário de uma sociologia cristã, regeneração soluções extremistas. Os problemas sfio tipicamente esla-
d a sociedade pela tradição evangélica. O resultado das dis- vos: o Direito humano e A Graça divina (daí o elemento
cussões dialéticas em Crime e Castigo é uma nova e arqui- dantesco em Dostoievski) ; a Liberdade e a Anarquia; o Es-
velha ciência da moral. Pelo menos, teria sido assim a con- tado e a Igreja; o Pecado e a Redenção: mas a psicologia
clusão na prometida segunda parte do romance, que nunca de profundidade de Dostoievski confere-lhes o sentido ge-
ral e a importância geralmente humana. Pela análise psico-
2538
OTTO M A R I A CARPEAUX

HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2539


lógica, os conflitos ideológicos em Dostoievski viram con-
flitos dramáticos. É o único escritor da Literatura univer-
acusação", aproximando-a da Ressurreição, de Tolstoi. Bem
sal, depois de Dante, cuja arte gira apaixonadamente, dir-
observa Wladimir Weidlc que os europeus não leram bem
se-ia freneticamente, em torno de ideias. A base da arte dra-
Tolstoi nem Dostoievski, mas um produto de sua imagi-
mática de Dostoievski é uma antropologia, uma teoria filo-
nação o "grande escritor revolucionário e cristão Tolstoie-
sófica da natureza humana. Essa antropologia parece a
vski". O cristianismo angustiado de Dostoievski foi inter-
mesma de Gogol: d'O Capote provém o cristianismo revo-
pretado como socialismo cristão. A psicologia de Dostoie-
lucionário de Dostoievski. A resposta ao "reino dos mor-
vski deu a dimensão de profundidade ao socialismo religio-
tos" das Almas Mortas é o "reino dos vivos" dos Irmãos
so de Tolstoi, que continuou sendo a maior influência es-
Karamasov (a aproximação é do crítico russo Volynski).
piritual da época.
Os personagens de Dostoievski são atôres num grande dra-
ma da salvação, da qual os romances apenas são o "Prólogo O naturalismo, nos seus inícios, parecia destinado a fi-
na T e r r a " : só de longe se vêem, da Cidade dos Karamasov, car insensível à qucstnY licá-lo para guardar
as douradas cúpulas bizantinas do convento e do outro a objetividade exigida pela <"•> ince experimen-
mundo. tal." Quando saiu VAsaommoir, i Imprensa republicana, na
França, censurou o rou n<> ao proletariado
Dostoievski é o mais russo dos russos; por isso, ou ape- parisiense. A "conversão aofi.il" do listno realizou-se
sar disso, não importa, é ele o mais universal dos russos. sob a influência de Tolstoi, lf( IIIKI.I
Das suas contradições díaléticas, que se refletem nas inter-
kin e Martins. O naturalist.1 HlUptmann já passa por so-
pretações contraditórias, nasceu uma grande poesia, grande
cialista. No mesmo tempo. 11 escreveu Daa Gesicht
e terrível. Ao terminar a "época da prosa", do romance
Christi (A Face do Cri qua o Cristo de Tolstoi apa-
realista-naturalista, é Dostoievski o primeiro grande poeta,
rece entre os proletários dou subúrbios de Berlim, apiedan-
embora poeta no género "romance". Por isso, todo roman-
do-se dos pobres. E muito Tolstoi ainda haverá no socia-
ce pré-dostoievskiano tem hoje algo de antiquado, pré-his-
lismo de Romain Rolland. * n-se partidos políti-
tórico. Dostoievski insuflou ao género prosaico a poesia
cos do socialismo cristão, como o do pastor P r i t d r i c h Nau-
das paixões intelectuais, a poesia das discussões ideológicas,
mann na Alemanha. No Hohu.il.! mn esteta como Prederik
a poesia das análises psicológicas; até a poesia da grande
Van Eeden ( 0 2 ), o romancista da alma infantil no Kleine
cidade começa com a Petersburgo fantástica do Dostoievski,
Johannes, (O Pequeno I i), depois, poeta do idealis-
iniciando-se com êle uma nova época da história da litera-
tura universal, época que ainda não acabou.
Aos contemporâneos europeus faltava a perspectiva 92) Frederlk Van Eeden, UM0-1P33.
para perceber tudo isso. A ideologia, reacionária e revolu- De Kleine Jofiaw Kllen (1801); Johannes Viator (1892);
cionária ao mesmo tempo, não foi compreendida: os rea- De Broeders (180-1 :iohijn en Wezen (1895, 1910.
1922); Van de Koele Mteren dê» Dooda (1900); De Idealisten
cionários do romance psicológico europeu assustaram-se (1909); Sirius en Sideriua (1012/1824); De Hek$ van Haarlem
(1015); Jesus'Leer (1019); Literatuur en Leven (1920), etc.
diante de Dostoievski em vez de aceitá-lo; assim o autor L. J. M. Feber: Fredertk Van Eeden»'» ontwikkelingsgang. Haarlem,
de Gente Pobre foi aceito pelos radicais, que interpretaram 1922.
as Recordações da Casa dos Mortos como "literatura de G. Kalff jr: Frederik Van Eeden, Psychologie van den TacMiger.
Groningen, 1927.
H. W. van Trlcht: Frederik van Eeden. Amsterdam, 1934.
A. Verwy: Het leven van Frederick van Eeden. Amsterdam, 1939.
y

H I S T Ó R I A DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 2541
2540 OTTO MARIA CARPEAUX

E s t e s v e r s o s e n c o n t r a m - s e , n o s E s t a d o s U n i d o s , em t o d o s
m o ético, fundou perto de B u s s u m a colónia de socialistas
os l i v r o s e s c o l a r e s e c o l e ç õ e s d e c â n t i c o s r e l i g i o s o s ; t a l -
religiosos à qual deu o nome de " W a l d e n " — Rousseau é o
v e z p o r isso n i n g u é m p e n s a s s e em a p r o x i m á - l o s d e c e r t o s
elemento comum de T h o r e a u e T o l s t o i ; V a n E e d e n também
versos do maior poeta americano, W a l t W h i t m a n : tinha
t r a d u z i u as p o e s i a s d o " T o l s t o i d a í n d i a " , d e T a g o r e . M a i s
s e r v i d o n a G u e r r a d a S e c e s s ã o , q u e l h e i n s p i r o u , aliás, a
coerente do que muitos outros, Van Eeden abandonou de-
mais bela das suas canções: " O Capitain! m y c a p t a m ! "
p o i s t o d a a r e l i g i o s i d a d e i n d i v i d u a l i s t a , c o n v e r t e n d o - s e ao
O verso de W a l t W h i t m a n (°4) parece o elemento m a i s
catolicismo; o seu socialismo religioso sobreviverá nos
r e v o l u c i o n á r i o d a s u a obra. J á a n t e s m u i t o s t i n h a m c a n t a -
grandes poetas holandeses Herman Gorter e Henriette Ro-
do a d e m o c r a c i a , as m a s s a s , o p r o g r e s s o i n f i n i t o d a h u m a -
l a n d - H o l s t . U m caso p a r a l e l o n a A m é r i c a é H o w e l l s , t o l s -
nidade, ninguém com força maior do que Victor H u g o , do
toiano que simpatiza com o m a r x i s m o ; e Howells é a figura
qual W h i t m a n é a edição americana. Mas n i n g u é m em ver-
central da evolução literária americana entre W h i t m a n e o
sos a s s i m , v e r s o s b r a n c o s , d e e x t e n s ã o e n o r m e , q u a s e i l i m i -
começo da influência de W h i t m a n .
tada, enchendo a página inteira de linhas que parecem pro-
O a n o d e c i s i v o é 1865: f i m da G u e r r a d e S e c e s s ã o , c o m s a aos o l h o s e se r e v e l a m p o e s i a q u a n d o p r o n u n c i a d a s ou,
a v i t ó r i a do N o r t e i n d u s t r i a l s o b r e o S u l a g r á r i o , a r r u i n a - a i n d a m e l h o r , c a n t a d a s em voz a l t a , a s s i m c o m o o t e x t o b í -
do pela abolição. A civilização aristocrática dos escravocra- blico, q u e é p r o s a q u a n d o l i d o e p o e s i a q u a n d o c a n t a d o no
tas s u l i n o s d e s a p a r e c e u . A c i v i l i z a ç ã o n ã o m e n o s a r i s t o - s e r v i ç o r e l i g i o s o . O s " v e r s o s " d e W h i t m a n são i m e n s o s v e r -
crática dos "brâmanes" da Nova Inglaterra retirou-se para s í c u l o s b í b l i c o s , a s s i m c o m o os v e r s o s d o Battle-Hymn of
as t o r r e s d e m a r f i m d a " g e n t e e l t r a d i t i o n " , os c l u b e s l i t e - the Republic. A d i f e r e n ç a r e s i d e só, " s ó " , na i n s p i r a ç ã o .
r á r i o s d e B o s t o n e C a m b r i d g e . O i d e a l i s m o l i b e r t a d o r dos Diferença como entre u m poetastro, que tem uma vez na
p u r i t a n o s , d e t a n t a i n f l u ê n c i a n a s l u t a s p e l a abolição, j á
p a r e c i a t e r p r o f e r i d o s u a ú l t i m a p a l a v r a n o s v e r s o s d o Bat-
tle-Hymn of the Republic, que uma típica "reformadora",
94) Walt Whitman, 1819-1892.
J ú l i a W a r d H o w e ( 9 3 ) , d e d i c a r a em 1862 a o s s o l d a d o s da Leaves of Grass (1855, 1856, 1860/1861, 1867, 1871, 1876, 1881, 1882);
G u e r r a Civil, v e r s o s q u e se g r a v a r a m n a m e m ó r i a da n a ç ã o : Democratic Vistas (1871).
Edição das obras completas (Camdcn Editlon) por R. M. Buck,
H. L. Traubel e O. L. Trlggs, 10 vol;, Now York, 1902.
M i n e e y e s h a v e s e e n t h e g l o r y of t h e c o m i n g of t h e Edição das poesias e prosa escolhldus por E. Holloway, New York,
1938.
[Lord: B. De Selincourt: Wall, Whitman, a Criticai Stuãy. London,
H e is t r a m p l i n g out t h e vintage w h e r e t h e grapes 1914.
J. Bailey: Walt Whíhnan. London, 1926.
[of w r a t h a r e s t o r e d ; E. Holloway: Whitman. An Interpretativo in Narrative. New
York, 1926.
H e h a t h b o o s e d t h e f a t e f u l l i g h t n i n g of h i s t e r r i b l e E. Shepherd: Walt Whitman'a Poaé. New York, 1938.
[swift s w o r d ; N. Arvin: Whitman. New York, 1938,
A. Stovall: Whitman, 3." cd. Nrw York. 1939.
H i s t r u t h is m a r c h i n g o n e . . . " H. A. Fauset: Wall Whitman, Poet of Democracy. Newhaven, 1942.
H. S. Oanby: Walt Whitman, Ofl Amniran. Boston, 1943.
R. Chase: Walt Whitman Unonsidercd. New York, 1954.
93) Júlia Ward Howe, 1819-1910. R. Asselineau: Vévolution de Walt Whitman. Paris, 1955.
Poems (1894); Poems Old and New (1898). G. W. Allen: The Solitary Singer. A Criticai Biography of Walt
E. L. Richards, M. H. Elliott, F. H. Hall: Júlia Ward Howe. 2 vols. Whitman. New York, 1955.
M. Hindus: Leaves of Grass One Hunáred Years After. Stanford,
Boston, 1915.
1955.
2542 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2513

vida a sorte de encontrar um grande verso, e o poeta cuja


" T h e Past — the dark unfathom'd retrospect í
inspiração abundante derrama milhares de versos, dos quais
T h e teeming gulf — the sleepers and the shadows!"
muitos podem ser retóricos, vazios, ocos, de mau gosto —
mas duzentos desses versos gravam-se na memória da hu-
Parece desprezar soberanamente toda a literatura do pas-
manidade, reconhecendo-se o poeta autêntico.
sado. Mas logo no próximo verso reconhece:
W h i t m a n é, em geral, considerado como o maior poe-
ta da América. É difícil divergir dessa opinião; porque Poe
" T h e past — the infinite greatness of the past!
foi pela crítica anti-romântica; e Emily Dickínson, mais
For what is the present after ali but a growth
original do que todos os outros poetas americanos, é por
out of the p a s t ? "
isso mesmo um "caso" singular, o que dificulta o reconhe-
cimento geral. Frost é um grande epígono; T. S. Eliot
A pergunta do poeta estava justificada. E m frente à folha
anglicizou-se; e os modernistas ainda não podem ser histo-
de rosto da primeira edição das Leaves of Grass, Whitman
ricamente apreciados. Apesar da riqueza admirável da lite-
mandou gravar o seu r e t r a t o : um homem barbado em man-
ratura norte-americana em poetas notáveis de segunda or-
gas de camisa e chapéu de palha ordinário, um popular ile-
dem, é preciso considerar a falta de uma tradição poética,
trado. Mas W h i t m a n não era iletrado. Além da Bíblia pu-
própria, nos Estados Unidos. Whitman é menos o maior
ritana conheceu muito bem Shakespeare, tinha mesmo algo
poeta americano do que o próprio mito da poesia americana,
da exuberância vital dos elisabetanos. Lera, não importa
e foi êle mesmo que criou o m i t o :
em que tradução, H o m e r o ; e tornar-se o Homero da Amé-
rica não teria sido contrário às suas ambições. Conheceu
" I celebrate myself, and sing myself,
muita literatura moderna, europeia, sobretudo Hugo e Geor-
And what I assume you shall a s s u m e . . . "
ge Sand, cuja reivindicação da "emancipação da carne" ecoa,
conforme a observação de Shepherd, nas exclamações do
Nesse "pan-egocentrismo" reconhece-se logo aquele "sub-
•"poet of the B o d y " :
jetivismo egoísta" que os críticos reacionários censuram no
romantismo francês. Mas em vez de engolir o mundo no
seu "eu" soberano, W h i t m a n estendeu a soberania do seu "Through me forbidden voices,
"eu" poético pelo Continente afora, identificando-se com a Voices of sexes and lusts, voices veil'd and I
grande massa do povo americano — remove the veil,
Voices indecent by me clarified and transfigur'd."
"One's self I sing, a simple separate person,
Yet utter the word Democratic, the word En- Assim se apresenta Whitman, americano, filho da grande
[Masse..."— cidade de Nova Iorque:

c perante os olhos do vate abriu-se o horizonte ilimitado " W a l t Whitman, a kosmos, of Manhattan the son,
das Democratic Vistas. Whitman estava bêbedo de Améri- Turbulent, fleshy, sensual, eating, drinking and
ca porque o Novo Continente lhe incarnava a Democracia [breeding,
« o Futuro. Whitman detestava o Passado: No sentimentalist..."
2544 OTTO M A R I A CABPEAUX
HISTÓBIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2545
Não pode haver nada de mais antipuritano; e o escândalo
da primeira edição do livro foi grande, sendo Whitman solve a questão da permanência dos valores poéticos de
demitido do seu modesto emprego público e a sua obra alvo Whitman. J á foi festejado mutios, mas nem sempre nem
de perseguições policiais. Assim é Whitman o descendente por todos; e é possível que tempos futuros venham a re-
digno de Godwin e Paine, com algo do otimismo de Emer- duzir a mais justas proporções o entusiasmo da crítica de
son e muito do romantismo exuberante de Hugo. Whitman 1920. A lástima são os imitadores. A poesia de Whitman
é o Hugo americano, no que tem de bom e no que tem de não suporta imitação. É personalíssima. "This is no book;
mal, no domínio soberano do seu "verbo" e na eloquência, who touches this book, touches a man", disse o próprio
muitas vezes falsa eloquência, desse verbo: Whitman sobre seu livro; e esse "man" é um homem sem
autocrítica.
"Poets to come! orators, singers, musicians to
[come!"
"I believe a leaf of grass is no less than
Sobretudo é êle orador, quando pretende ser filósofo. Su-
cumbe ao lugar-comum. Proclama o progressismo mais tri- the jorney-work of the a t a r a . . . " —;
vial, celebrando o Pacífic-Railway como Passage to índia:
e nas Leaves of Grass reuniu Whitman o trabalho e as es-
" . . . O farther, farther sail I trelas, os prosaísmos mais triviais e os hinos mais inspira-
O daring joy, but safe! are they not ali the seas of dos. Com respeito a nenhum poeta da literatura universal é
tão urgente como no caso de W h i t m a n a exigência crítica
[God? de Benedetto Croce de separar "poesia e non poesia". O
O farther, farther, farther sail!"
poeta cantou salmos do Futuro.
Aí os "versículos" convêm: pois o fim desse progresso é, o
"reino de Deus", traduzido para termos materiais, de que — "Of Life immense in pasison, pulse, and
sonharam os antepassados puritanos. Whitman não é uma [power...";
velha tia puritana como Júlia W a r d H o w e ; mas o "god grey
old man" também é um "reformer", um idealista. No Hugo e em Passage to índia explica:
americano há muito de um Tolstoi americano; assim como
o panfletário de Cristianismo e Patriotismo renovou o so- í Singin my days,
nho democrático de Chelcícky e dos místicos eslavos, assim Singing the great achievements of the prosent,
o "Mystic Trumpeter" da Democracia teria renovado o so- Singing the strong light works of engineers,
nho democrático dos puritanos da Mayflower e de Jeffer- Our modem w o n d e r s . . . "
son, sonho falsificado depois pela evolução económica. Mas
subsistem algumas dúvidas quanto aos sentimentos demo- Whitman canta as maravilhas do corpo e da alma. Também
cráticos dos puritanos; e a poesia de Whitman não basta canta os milagres da técnica industrial e do capitalismo.
para silenciar todas as dúvidas. Democrata sim, mas não popular. Julgava-se "Poeta do
Santayana, embaixador do espírito europeu na Améri- Povq", mas nunca foi lido nem querido pelo povo, que não
ca, chamou Whitman de "bárbaro". Essa crítica não re- gosta do verso livre e da "melodia permanente"; e da mes-
ma maneira enganaram-se todos os seus imitadores. Seja

I
H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 2547
2546 OTTO M A R I A CARPEAUX

se em face do humorismo vulgar e barulhento dessa "litera-


porque o povo teima em adorar a métrica tradicional, seja
tura em mangaa de camisa", desse bárbaro do vale do Mis-
por qualquer outro motivo que a sociologia da história li-
sissipi, ignorando de todo a boa tradição inglesa, escreven-
terária terá que esclarecer, o "poeta da democracia" ficou
do em gíria. Mark Twain não era, porém, inculto, mas au-
um "poet's poet", assim como Verhaeren, Claudel, Romains
todidata; as experiências que colheu numa vida de tipógra-
e todos os inúmeros whitmaníanos hispano-americanos.
fo, piloto, mineiro, repórter, jornalista serviram-lhe me-
lhor para oa aeua fine de improvisador inesgotável do que
"Not today is to justify me and answer what I am as leituraa literáriaa que desprezava intimamente. Não sa-
[for...", bia bem a diferença entre um museu italiano e um show
ambulante de - ides. Da herança europeia, Mark
cantara W h i t m a n ; e, mais uma vez, profetizara bem. "I Twain estava li lente de uma maneira quase escan-
accept Reality and dare not question i t " ; mas a Realidade dalosa. Dai a ii• de ingenuidade e sentimento de su-
não o aceitou. O destino da obra de Whitman — nova em perioridade i|u< IOU capaz de criticar sem qualquer
1855, admirada em 1900, reconhecida só em 1920 — é sinto- precono ido na coisas do velho Continente.
ma do grande atraso que o progresso capitalista, a indus- Riu-se todi> i| americanos continuavam a rir
trialização rápida depois de 1865, impôs à civilização es- quando ««ria de Mark Twain se lançou
piritual americana. Começara a "Gilded Age", a "Idade igualmente 'lUldadee da vida americana. Mark
Áurea" dos pioneiros da Bolsa e piratas da indústria. Os Twain veio do MUsIeslpl, «i"or dizer, de uma região na
próprios "brâmanes" recuaram; Boston perdeu a importân- qual a incln rclalização então ainda não
cia. Não se tolerava resistência à incultura da "Gilded avançaram Ai. itonteira" da civilização, re-
Age", senão a resistência disfarçada do "humorismo" tri- gião de pioni li ' wain fêz passar diverti-
vial, do clown ao qual até os reis permitem dizer verdades. dos romaiK i capaz de dar voz literária,
O clown dos reis de carvão e aço, petróleo, estradas de por assim dizer, h< pulares contra a "gente
ferro e trigo era Mark Twain.
culta". Escrevi ia dos popularea, no slaug —
Mark Twain (° 5 ), cujos contos e conferências fizeram e eis o ponto em qu i<>it&ncla ultrapassa os limi-
rir os dois hemisférios, não cessou, desde então, de subir, tes do humorii
até hoje ser celebrado como um clássico da literatura ame- Mark T • ritor americano que não
ricana. Os "brâmanes" da "genteel tradition" assustaram- quis obedecer A lês literário. A sua façanha

95) Mark Twain (pseudónimo de Samuel Langhorne Clemens), • i Mark Twain. New York, 1920.
1835-1910. Anwioa. New York, 1032.
The Innocents Abroad (1869); The Gilded Age (com Ch. D. War- • >n o/ Mlnnouri. Chapei Hill, 193
ner; 1873); Sketches New and Old (1875); Adventures o/ Tom ./In, th§ Man and Hin Work. Newha-
Sawyer (1876); Life on the Mississippi (1883); Adventures of von, i
Huckleberry Finn (1884); A Connecticut Yankee in King Ar^hufs
Court (1889); The Man That Corrupted Hadleyburg (1899) etc. O, ( rtoain o« a Uterary Arttst. Norman, Okla,
— Autobriography (1924). R . AMMMI" Hê Utêrary Repéntation o/ Mark Twain from
Edição por A. B. Paine, 35 vols., New York, 1922. uno tf mão, Parti, 1054.
A. B. Paine: Mark Twain, a Biography. 3 vols. New York, 1912.
2518 OTTO M A R I A CABPEAUX 2549
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL

linguística de empregar o slang em todos os géneros da ex- lística nos Estados Unidoi. O grande inimigo da "Gilded
pressão escrita foi de importância tão grande para toda a li-
Age" era mesmo um homem da "Gilded Age".
teratura americana posterior como a conquista da língua
O peso do impacto da evolução económica, naquela épo-
popular russa por Leskov. Assim como este descobriu os
ca, explica bastante a timidei e a frustração das tentativas
comerciantes meio asiáticos e sectários místicos nas cida-
de resistência; e a derrota dot Uios não diz nada a
des e aldeias da região do Volga, assim Mark Twain desco-
briu os ladrões e pícaros e os metodistas, batistas e adven- respeito dos valores reais que deixaram. Diste modo, não
tistas nas cidades e aldeias da região do Mississipi. Críti- há razão por que não apreciar, embora sem exagero o gran-
cos modernos chegam a chamá-lo de "Homero do Missis- de talento de Lanier (1MI), admitindo-se que a sua Influência
sipi" e "bardo da vida americana". De Mark Twain data sobre o futuro foi mínima. Lanier, como poeta em metros
a independência literária dos Estados Unidos; e neste sen- tradicionais, conhecedor e crítico admirável da poesia in-
tido também se interpretam suas sátiras anti-européias como glesa, parece-se com os poetas da "genteel traditlon", de
A Connecticut Yankee in King Arthur's Court. São, porém Boston. Até cantando paisagens e gente americanas conti-
antes sátiras contra a imitação de costumes aristocráticos, nua poeta inglês ou nôvo-inglês, algo mais romântico, mais
europeus, pelos nouveaux-riches americanos; Mark Twain pré-rafaelita do que os bostonianos. E r a um músico dn Ufl
é o anti-Henry James. Estava, em sentido oposto ao gran- gua; cultivou mesmo a música; e isso não é nôvo-lnglês.
de romancista, independente do espírito do "Gilded A g e " ; Com efeito, Lanier veio de outra região: é, depois d l guer-
e lembra-se que êle mesmo criara esta expressão, escreven- ra civil, a primeira voz do Sul vencido. Daí o seu romantis-
do, em colaboração com Charles Dudley Warner, o ro-
mo, e daí a resistência contra o espírito mercantil, aproxi-
mance The Gilded Age, já em 1873, quando a época mal
mando-se Lanier de um "socialismo estético" à maneira de
começara. Lembrando-se desse fato meio esquecido, a crí-
Ruskin e Morris. Mas só era um "poet's poet", no l i n t i d o
tica descobriu a amargura na obra de Mark Twain. The
menor da expressão.
Man That Corrupted Hadleyburg reconheceu-se como gran-
de sátira anticorrucionista e anticapitalista. Os críticos Além do Sul, a outra região sacrificada era o Oeste
acompanharam-lhe a evolução até um pessimismo quase agrário, invadido pelos industrializadores e especuladores,
swiftiano; com efeito, Mark Twain fora leitor assíduo de enquanto puritanismo e sectarismo, dominando despotica-
Schopenhauer. Na Autobiography, só postumamente publi- mente os costumes das pequenas cidades e aldeias, quebra-
cada, revelou-se um Mark Twain diferente, vítima quase ram a vitalidade dos antigos pioneiros. A literatura da
psicopatológica do puritanismo e da "Gilde A g e " : um gran- "genteel tradition" ignorava solenemente este "Interior".
de "caso". Há certo exagero nisso. Mark Twain foi, sem Mas lá havia gente, vivendo no maior isolamento intelectual
dúvida, um génio literário sui generis, mas limitado a esse e informada, no entanto, das coisas lá fora, no mundo. Quan-
seu "gennus". E r a um self-made man, um "rei do humo-
rismo" assim como eram "reis" os do carvão, do petróleo
e do trigo daquela época. E não era êle "rei" só do humo- 98) Bklney Lanier, 1834-1881.
rismo popular: criou a grande reportagem, o livro de via- Poema (1884).
Edlçfto por M. D. Lanier. 8.* ed., New York, 1908.
gens e outros géneros, menores, típicos da literatura jorna- A. H. Sfcarke: Sidney Lanitr. Chapei Hlll. 1933.
R. Wobb e O. R. Ooulson: Sidney Lanier, Poet and Prosodist.
Athena, Os., 1041.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2551
2550 OTTO MARIA CARPEAUX
1930, tem ali sua origem. Howe, porém, era um dos escrito-
do Eggleston ( 97 ) publicou, em 1871, The Hoosier School-
res, bastante numerosos entre os naturalistas, que colocam
master, o romance parecia só um quadro menos agradável
toda a sua experiência amarga em um livro só, emudecendo
de costumes bárbaros, obra de um Mark Twain mal-humo-
rado, cronista amargurado do Estado de Indiana. Mas depois para sempre.
Eggleston acompanhou o romance com um manifesto lite- O trabalho sistemático coube a Howells ( 0 0 ), também
rário, em que citou Taine e reivindicou uma arte novelísti- natural do Oeste, do Estado de Ohio, cujos primeiros tra-
ca americana: o romancista devia só tratar ambientes do balhos já foram apreciados como contribuições do Oeste a
seu conhecimento e experiência pessoais, tratando-os rea- literatura nacional quando ainda nfto st f i z jus a Eggleston
listicamente e sem deformação de verdades desagradáveis e e H o w e ; porque Howells possuía cultura mais europeiza-
até empregando a linguagem da região descrita. Foi um da e estava em casa nos círculos grá-finos de Boston e New
programa de naturalismo regionalista, aparecendo cedo de- York. Era — e ficou sempre — amigo íntimo de Henry
mais; nos romances posteriores, o antipuritano Eggleston J a m e s ; e o seu primeiro sucesso, o romance The Lady of
limitou-se a um problema só, a influência nefasta das seitas the Aroostook, história das aventuras de amor de uma in-
protestantes e das suas superstições. génua moça americana no estrangeiro, mistura de maneira
muito agradável personagens do Oeste com os ambientes
Menos ligado a uma região especial e, contudo, expres- típicos de James. Howells é um escritor sempre agradável
são fiel do Oeste foi E. W. Howe ( 9 8 ), nascido em Indiana, e nunca medíocre; em expressões urbanas, quase da "gen-
criado em Missuri, passando a maior parte da vida em Kan- teel tradition", sabia sugerir ao leitor americano, acostuma-
sas, onde se tornou jornalista de grande influência. Mas do a ligeiras leituras de divertimento, conceitos mais sérios
foi necessária muita ajuda da parte dos amigos Mark Twain do que devia ser a arte literária. Como crítico prestigioso
e Howells para conseguir a publicação e divulgação do ro- do Harper's Magazine fêz muita propaganda em favor do
mance The Story of a Country Town, que é uma obra ca- romance realista, Flaubert, Turgeniev, Tolstoi, desaprovan-
pital da literatura americana, menos pelo valor intrínseco do, porém, as brutalidades de Zola. Como americano da
do que pela importância histórica. Pela primeira vez, a sua época, insistia nos fins morais da a r t e ; e essa tendên-
vida numa pequena cidade do interior dos Estados Unidos cia espiritualista, acentuando-se com o tempo, não excluiu,
foi apresentada com toda a sinceridade crua do naturalis- antes implicou em crítica séria do estilo de vida, dos ame-
mo europeu, menos com a objetividade que a teoria exigia.
The Story of a Country Town é um livro revolucionário.
Toda a "literatura de acusação" americana, de 1910, 1920, 99) William Dean Howells, 1837-1920.
The Lady of the Aroostook (1879);' The Undiscovered Country
(1880); A Modem JnttUTlO* (1881); The Riso of Silas Lapham
(1884); Inãian Summer (1888); Annie Kilbum (1888); A Hazard
97) Edward Eggleston, 1837-1902. of New Fortunea (1890); The World of d m ; A Traveler
The Hoosier Schoolmaster (1871); The Mystery of Metropolisville in Alturia (1894); The Landlard ai Uonn Hccad (1897); The
(1873), etc. Keutons (1902); The Leatherwoord Qod (1910), etc.
G. C. Eggleston: The First of the Hoosiers. Philadelphla, 1903. A. Harvey: William Dean Hmoells. New York, 1917.
W. P. Randel: Edward Eggleston, Autlwr of the "Hoosier School. D. Q. Oookc: William Dean Howells, a Criticai Study. New York,
Martes". New York, 1948. 1922.
98) Edgar Watson Howe, 1853-1937. O. W. FirkhiH:" William Dean Howells. Cambridge, Mass., 1924.
The Story of a Country Town (1883). E. Cárter: Howells and the Age of Realism. New York, 1954.
C. Van Doren: "E. W. Howe". (In: Many Minds. New York, 1924.) C. H. Cady: William Den Howel. 2 vols. New York, 1959.
2552 OTTO MARIA CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2553
ricanos. Assim a crítica do egoísmo em A Modern Instan-
ce, talvez o melhor romance de Howells. A sua obra mais A influência de Howells è um fato histórico; ia até
famosa é The Rise of Silas Lapham, história de um self- mais longe do que ele desejava: seus discípulos tornaram-
made man inescrupuloso, cuja ascensão moral começa com se adeptos do naturalismo de Zola. Stephen Crane ( 10 °)
a perda da sua fortuna; ao mesmo tempo, é um panorama foi o primeiro naturalista americano: o seu romance de es-
impressionante do desprezo recíproco entre os intelectuais treia, Maggie, a Girl of the Strtêt, f é i escândalo. Depois,
da velha tradição e os comerciantes novos-ricos na cidade de The Red Badge of Courage teve grande sucesso, porque na
Boston. Howells é um fino psicólogo, um realista minucio- descrição da guerra do ponto de vista do soldado raso ao
so dos ambientes sociais, um inimigo irreconciliável da de- adivinhou uma tendência pacifista. Mas Crane pretendeu
formação pseudo-romântica da realidade. A isso ele cha- mesmo fazer escândalo. O seu negócio era desmascarar a
mou "naturalismo". Mas não era naturalista; assim como realidade brutal para refutar as mentiras românticas sobre
os "vitorianos", evitava cuidadosamente as questões sexuais; o amor e o heroísmo da gente bem educada. Quis impressio.
e às soluções trágicas preferia o otimismo do happy end. nar; para isso compôs os seus livros de uma suma enorme
Deveu a isso o sucesso entre os leitores americanos, que es- de observações "impressionistas" dl WD i aportar nato, en-
tavam, porém, algo equivocados: o moralismo otimista de chendo de vida tudo o que escreveu. Crane é o poeta entro
Howells significava esperança de revoluções morais na vida os naturalistas, dono de uma poesia intensa e violenta. Era
americana; e essas esperanças iam longe. Howells era gran- artista. Tinha bastante consciência artística para reco
de admirador de Tolstoi. A Traveler in Altruria apresenta cer que o seu método impressionista não dava para grandes
a utopia de um socialismo idealista; e nos últimos anos da romances. Concentrou-se, escreveu contos» dos quais pelo
sua longa vida, o velho admirável tinha a coragem de apro- menos dois, "The Blue Hotel" e "The Bride Comes to
ximar-se do marxismo. Deste modo, estava mais avançado Yellow Sky", são magistrais. A morte prematura de Stt-
do que os revolucionários sexuais e niilistas de 1920 que só phen Crane foi uma das maiores perdas da literatura ame-
sabiam zombar da "covardia moralista" de Howells. Os ricana, que, quase ao mesmo tempo, perdeu o outro jovem
seus romances foram considerados mera leitura de diverti- campeão do naturalismo, Frank Norris ( m ) i xolaista orto-
mento, de trivialidade insuportável. A crítica moderna tam- doxo, com o gosto do mestre pela "epopeia da vida moder-
pouco é capaz de entusiasmar-se por Howells. Mas aquela
trivialidade, às vezes inegável, é resultado da descrição rea- 100) Stephen Crane, 1871-1900.
lista da vida americana de então, que foi mesmo trivial. Maggie, a Girl of the Street (1HD2); The Red /t« trage
(1895); The Monater and Other Storte» (1800); WMlomville
Os romances de Howells talvez não sejam obras-primas Stories (1900) cto.
eternas, mas revelam o melhor gosto literário; e quanto à Edição por W. Follett, ia v..i. . u,m v..iii. 1925-1020.
T. Beer: Stephen Cruv- 1028,
atitude ideológica, tão avançada, da parte de um homem de J. c. Bunhnmn: Thr >phen Crane and i$t Critloi.
instintos aristocráticos, só pode ser classificada como no- Urbana, 111., 1944.
J. Berryman: Stephen Grani. London, 1951.
bre. Isso Howells era. Enfim, aprecia-se hoje a eficiência
101) Frank NOIIIH, 1870
do seu trabalho crítico: ninguém fez mais para moderni- Mo Teague (1890); The Oatoptu (1901); The PU (1903); Van-
zar a literatura americana do que o velho "antiquado". doner and the ttrute (publ. WI4>.
F. Walker: Frank Norrln Now York, 1033.
E. Murchand: Frank Norrii. A Study. Stanford, 1942.
L. Ahnebrlnk: The influenoe of Zola on Frank Norris. Upaal».
1947.
II, miwA I>A LlTBRÀTUBA OCIDENTAL 2555
2554 OTTO MARIA CARPEAUX

jornalista de LM Rue (1867), Le Peuplc (1869), Le Cri du


na". As possibilidades não inteiramente realizadas de Nor-
PeupJe (1871). OB nomes desses jornais dizem tudo: eis
ris revelaram-se antes em Mc Teague, romance de peque-
um filho do jacobinismo de 1793, transformado em anar-
nos-burgueses detestáveis — todos os críticos reconhecem
quista apaixonado que se julga socialista. Mas é digno de
em Norris o romantismo secreto — do que nos grandes ro-
nota o fato de que esse combatente da Comuna de 1871 nun-
mances épicos: The Octopus, a luta dos lavradores calif or-
ca aderiu ao partido socialista, continuando franco-atirador
nianos contra o poder monopolista das estradas de ferro;
da esquerda. Afinal, era mais anarquista do que qualquer
The Pit, as especulações gigantescas na Bolsa de Trigo de
outra coisa; e sua obra principal, egocêntrica como um ro-
Chicago. Norris não tinha o tempo para continuar o ciclo
mance de Stendhal, é a autobiografia romanceada Jacques
projetado, talvez nem sequer o talento; a Dreiser coube a
Vingtras, um dos grandes documentos da literatura france-
sua herança.
sa. Taine, numa famosa página das Origines, definiu Vallès
A morte prematura de Crane e Norris, comparada com como filho de camponeses desarraigado, escritor da pro-
a vida octogenária dos realistas Howe e Howells, tem algo víncia esmagada pela centralização.
de simbólico: aqueles chegaram antes do tempo. O mesmo
Esse pronvincianismo será o estigma de Jules Renard
pode-se afirmar com respeito a todo o naturalismo de ten-
( 1 0 4 ), cuja memória se perpetua como de um naturalista vi-
dência socialista. Os anos de 1880 e 1890 assistiram a uma
goroso da vida provinciana. Bucoliques é o título irónico
renovação total do movimento operário europeu; só então
de um dos seus livros. Mas, embora obedecendo ao lema
desapareceram — menos em certos grupos franceses — os
horaciano "Beatus ille qui proeul negotiis...", e vivendo
últimos resíduos do socialismo utópico-romântico; o anar-
numa aldeia, Renard não se tornou muito "beatus", nem no
quismo, ainda poderoso na Espanha, Itália e Áustria, foi
sentido de "feliz" nem, ainda menos, no sentido de "beato".
vencido pelos novos partidos social-democráticos. Só então
Estava tão cheio de ressentimentos como Vallès, com o
a influência de Marx ( 102 ) começou a fazer-se sentir em
qual tinha em comum a extrema aversão à sociedade bur-
círculos mais amplos; sob os auspícios do marxismo fun-
guesa: L'Écornifleur é o documento disso, romance que,
dou-se, em 1889, a Segunda Internacional, celebrando-se no
pelo ponto de vista — indignação do intelectual proletariza-
dia 1 de maio de 1890 a primeira festa internacional do tra-
do — lembraria Gissing, se Renard não fosse mais frio,
balho. Muitos entre os naturalistas acompanharam esse mo-
mais controlado, quase parnasiano. Desse modo Renard
vimento com as mais vivas simpatias. Mas o naturalismo
conseguiu condensar, cristalizar as suas observações de do-
de filiação zolaísta não foi capaz de uma conversão. Só
pouquíssimos tornaram-se socialistas militantes. Não eram
proletários, e sim intelectuais pequenos-burgueses, falando
a linguagem da Revolução Francesa. Não conseguiram criar 104) Jules Renard, 1864/1910.
VÉcorniJleur (1802); Poil de Carolte (1804); NUiloirtt naturelle
um estilo naturalista-socialista; e a evolução literária pos- (1886/1904); Le plalnlr de rompre (1807); UueoUque» (1898); P
terior, cometendo grave injustiça, condenou-os ao esqueci- de Carotte (oomcdla) (1900); Ragotte (1908); Journal (1927).
Edição por H. Bachelin, 18 vota., Pariu, 1928/1034.
mento. Foi assim o destino de Jules Vallès ( 1 0 S ), o grande EL Bachelin: Julet Renard, Par IH, 1982.
1.. Ouichard: Uoeuvre et 1'âme de Julet Renard. 2 vota. Paris
1916,
102) Cf. "O fim do romantismo", nota 58. P. Nardln: La langue et le style de Jules Renard. Parta, 1942.
103) Of. "Do Realismo ao Naturalismo", nota 115. A. Bis»: La vle et Voeuvre de Jule» Renard. Flrenze, 1983.
L. Ouichard: Renard. Parta, 1961.
2556 OTTO M A R I A CARPEAUX
HlBTÓRXA DA LmSRAtURA OCIDENTAL 255?
cumentacão moral e psicológica, objetivas mas sempre ins- sicas, feitas na torre de marfim de Chitry-les-Mines para
piradas por um ressentimento mais ou menos oculto. Daí destruir em segredo os representantes da literatura en-
a implacabilidade fria de Renard, a sua ironia cruel de ca- tão "moderna" — os amigos de Renard. Nada pode ha-
ricaturista; um crítico falou em "notation directe, romancée ver de mais desumano do que esse «Btilo clássico a servi-
par la déformation des types". Em Poil de Carotte essa ço da mesquinhez. Renard é o parnasiano do naturalis-
arte estranha, algo comparável à de Daumier, chegou a mo. É o último naturalista, menos no sentido cronológi-
tal perfeição que se prestava para cristalização maior, para co do que demonstrando que o naturalismo não era capaz
ser transformada em peça teatral; e é a única obra dramá- de produzir um estilo próprio. Renard nunca se "conver-
tica de sucesso permanente que o naturalismo francês pro- teu" de maneira alguma. A substituição do determinismo
duziu. Renard realizou aquilo de que Becque sonhara; e biológico pelo determinismo económico não modificou o
com este tem o novelista vários pontos de contato. Assim fatalismo da literatura naturalista.
como Becque pretendeu abolir a intriga, as complicações ar-
Enfim, o próprio Zola (" ,r '). evoluindo cada vez mais
tificiais do enredo, enfim o próprio enredo, para represen-
para o socialismo, fez uma tentativa quase desesperada de
tar no palco só um pedaço da vida real, assim Renard ima-
se libertar do fatalismo. Em La Débâcle alcançara o nadir
ginava o romance como mero pedaço observado da vida, sem
do pessimismo de romântico hugoniano desiludido. No úl-
intervenção romântica do "eu" do autor, sem deformações
timo romance da série dos Rougon-Macquart fêz a viravol-
arbitrárias, romanescas. Deste modo Renard aboliu o pró-
ta completa: Le doçteur Pascal abre a perspectiva de sair
prio romance: escreveu só novelas, depois contos, depois
do círculo vicioso da hereditariedade. Depois, os indivíduos
anotou só enredos de contos, fábulas, enfim só a moral das
fábulas, os aforismos maliciosos do seu Journal. Renard, se perderam nas massas humanas, nas "mises-en-scène" me-
grande aforista-misantropo, já foi comparado a La Roche- ticulosamente elaboradas de Lourdes, Rome, Paris; e enfim
foucauld e outros moralistas clássicos da Literatura france- Zola mostrou, como numa fantasmagoria, os ideais tuópicos
sa. Com respeito a La Rochefoucauld, a comparação acer- do futuro socialista da humanidade: Fécondité, Travai!,
t a : Renard também era revolucionário desiludido, se bem Vérité — o romance final do ciclo dos Quatre Evangiles,
que não fosse aristocrático, como o duque. Foi amigo de Justice, não foi escrito. Essa última literatura de Zola não
Jaurès, membro militante do partido socialista, se bem que tem, nem de longe, o valor das obras precedentes. Docteur
militasse em círculo restrito: como maire da sua aldeia Pascal também já fora o romance mais fraco da série dos
de Chitry-les-Mines, terra de Poil de Carotte, desempe- Rougon-Macquart. Zola não era capaz e ninguém teria
nhou o papel de um M. Homais rural, livre-pensador ja sido capaz de reconciliar o determinismo e o moralismo, a
cobino — não há nada de mais típico francês do que ess teoria e o fim da sua obra. O resultado da "conversão" <!<•
figura. Seu génio está na malícia, no poder de caricatu Zola foi apenas uma figura retórica, um positivismo utópi-
rista, enfim no pessimismo misantrópico que destrói tudo, cofantástico sem base na realidade. Base assim talvez hou-
até as esperanças revolucionárias. Assim como o pessimis- vesse para Justice, pois Zola passara pelas vicissitudes do
ta La Rochefoucauld — os pessimistas costumam gostar "affaire Dreyfus". Mas por Isso mssmo Justice n3o foi
do estilo clássico — Renard tinha a preocupação do "mot
juste". O seu Journal é uma grande coleção de frases clás-
105) Cf. "Do Realismo no Nutu^iimn QQtS 107,
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2559
2558 OTTO M A R I A CABPEAUX
tada curiosidade estética, participou do movimento natu-
escrito; Zola já a tinha vivido. A "Affaire" foi o motor da ralista pelos romances Les soeurs Vatard e A vau-1'eau,
conversão de Zola, que não se realizou tanto na literatura como que fazendo um experimento literário, chegando aos
dos seus últimos anos quanto no seu gesto corajoso peran- extremos do pessimismo cinzento, da inanidade absoluta
te o tribunal e perante a nação. da vida. Um caminho de evasão abriu-se-lhe nas artes plás-
Pela força desse gesto tornou-se Zola o "régent" lite- ticas — "todos os belgas são pintores natos" — no impres-
rário da Terceira República que lhe concederá, depois, os sionismo, depois na arte mística de Gustave Moreau, nas ex-
funerais solenes no Panteão: Zola será, postumamente, o periências estéticas dos decadentistas; seguiram-se estu-
autor oficial da era Combes-Juarès, das maiorias esquerdis- dos de ocultismo, e logo depois a grave perturbação mental,
tas, das grandes greves, da agitação antimilitarista, da se- que lembra muito as experiências patológicas de Strind-
paração de Estado e Igreja. A memória de Zola acompa- berg: Huysmans, iniciado nos mistérios diabólicos do sa-
nhou permanentemente o outro "Poet Laureate" da Repú- tanismo, da "messe noire", acreditava-se perseguido pelos
blica, seu ex-inimigo Anatole France. Mas este, cujo so- chefes poderosos de sociedades secretas de sacerdotes após-
cialismo estava em contradição com as suas atitudes de tatas, chegando a acusar, publicamente, de satanismo um
parnasiano céptico, já não era o "chefe" indiscutido da li- inofensivo cónego de Bruges, que conhecera por acaso. De-
teratura francesa. As "elites", para libertarem-se do pesa- pois do colapso completo chegou o momento em que Huys-
delo fatalista da "decadência", já tinham realizado a vira- mans bateu à porta do convento dos beneditinos para en-
volta, iniciada com o Disciple: continuaram as conversões trar como oblato. Na trilogia de romances A Rebours, Là-
— desta vez conversões em sentido literal, ao catolicismo — bas, En route, descreveu Huysmans esse caminho fantásti-
de Brunetière e tantos outros. As elites francesas, liberais co, e de maneira fantástica: cenas sexuais do naturalismo
ou radicais no século XIX, serão católicas e reacionárias no mais brutal, digressões eruditas sobre literatura latina da
século XX. O único naturalista que se converteu foi Huys- decadência, psicopatologia sexual da Idade Média, ocultis-
mans; mas — e isso justifica a tese da inconversibilidade do mo antigo e moderno, trechos da maior elevação religiosa
naturalismo zolaísta — não foi uma conversão literária. e do satanismo mais perverso. As obras da fase católica
Huysmans ( 30,! ). parisiense de origem belga, intelectual de Huysmans não pertencem, como seria possível presumir,
pequeno-burguês cujo radicalismo se exprimia numa ilimi- ao estilo simbolista. As descrições arquitetônicas em La
Cathédrale, a procissão dos doentes e aleijados em Les fou-
les de Lourdes são trechos magistrais no estilo de Zola.
106) Joris-Karl Huysmans, 1848-1907. (Cf. "Do Realismo ao Natura- Huysmans tinha sensibilidade'mais fina, mais requintada
lismo", nota 156).
Les soeurs Vatard (1879); A vau-l'eau (1882); A Rebours (1884); do que os outros naturalistas: a inquietação insaciável do
Là-bas (1891); £"7i routs (1895); La Cathéãrale (1898); Sainte rato parisiense juntou o talento pictórico e a angústia
Lydwne de Schiedam (1901); L'oblat (1903); Les foules de Lour-
des (1906). religiosa, heranças da raça flamenga. Era um artista dos
Edição por L. Descaves, 25 vols., Paris. 1928/1938. nervos, sempre interessantíssimo, nunca se realizando em
A Thérive: Joris-Karl Huysmans, son oeuvre. Paris, 1924. obra definitiva. A sua "decadência" n l o ara a dos simbolis-
H. Bachelin: Joris-Karl Haysmans. Du naturalisme littcmire
au naturalisme mystique. Paris, 1926. tas, e sim a decadência do naturalismo, incapaz de "conver-
E. Seillière: Joris-Karl Huysmans. Paris, 1931.
G. Vanwelkenhuyzen: Joris-Karl Huysmans et la Belaique. Pa- são" literária. Leu fouha 09 Lourdes s l o apresentadas no
ris, 1935.
R. Baldick: The Li/e of Joris-Karl Huysmans. Oxford, 1955.
2560 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2561

mesmo estilo como os boémios satonistas da Là-bas. O ho- nha da Suécia rcparam-se, porém, como nas outras peças
mem Huysmans era capaz de converter-se; o naturalista, dessa fase, traços inconfundíveis da misoginia violenta de
não. Strindberg, da qual nem o terceiro casamento com a atriz
O colapso de Huysmans é um sintoma da época. Gar- Harriet Bosse foi capaz de curá-lo. Também é digno de
chin, Maupassant, Amalie Skram, Obstfelder, Garborg, nota de que uma dessas peças, Gustaf Adolf, retoma o tema
Hansson, Johannes Schlaf sofreram a mesma experiência. de Master Olof, que foi a primeira obra séria da mocidade
E Strindberg ( 1 0 7 ). O mundo das suas obras naturalistas — de Strindberg. Como para documentar a unidade da sua
Roeda Rummet, Giftas, Fadren, Froeken Julie, Plaidoyer obra em conjunto, também escreveu, em meio das peças his-
d'u.n fou — afundou-se-lhe nas névoas da alquimia e do tóricas e fantásticas a tragédia naturalista Doedsdansen
ocultismo, do acesso de loucura paranóica em P a r i s ; depois, (Dança Macabra), a mais fanática das suas denúncias da
a reconvalescença no sanatório de Lund, a conversão a um incompatibilidade absoluta entre homem e mulher. E em
cristianismo livre, meio tolstoiano, meio swedenborgiano. todas as peças, até no "mistério'* Pask (Páscoa), uma das
Strindberg é o "twice born" mais autêntico do fim do sé- suas criações mais esperançosas e mais puras, e em Spoek-
culo; o homem de 1900 que, quebradas todas as tradições do sonaten (Sonata Fantástica), sua obra mais profunda, apa-
passado, pretende começar uma "vita nuova": mais de uma recem com abundância alusões sinistras à sua sinistra vida
vez o autor dos diários do Bla bok (Livro Azul), lembra- passada, só compreensíveis aos conhecedores da sua auto-
se de Dante que também passara pelo Inferno. Desde en- biografia. O fato de Strindberg ter escrito, depois da "con-
tão, Strindberg acreditava na Providência divina, substi- versão", essa série enorme de obras admiráveis é um verda-
tuindo por ela os determinismos científicos do fatalismo deiro milagre, caso único nos anais da psiquiatria. Porque
desesperado. Acreditava reconhecer o dedo de Deus nas a paranóia é incurável; e Strindberg não foi curado. A sua
vicissitudes da História Universal e nas vicissitudes da sua fé na Providência Divina, que intervém em tudo, nas gran-
própria vida. Na trilogia Till Damaskus (Para Damasco), des crises históricas e nas coisas mais mesquinhas da vida
autobiografia dramatizada, representou o abismo materia- quotidiana, foi uma máscara sutil da monomania de reco-
lista da sua vida, a passagem pelo Inferno e a conversão, nhecer cm tudo um sentido secreto e funesto. A conversão
tudo em forma esquemática, repetindo-se as cenas do des- de Strindberg foi só aparente. O niilismo naturalista sub-
censo em ordem inversa na ascensão. Em NattergalJen i sistia dentro da fé. Droemspelen (Peça de Sonho), a mais
Wittenberg (O Rouxinol de Wittemberg) e Gustaf Adolf fantástica dai suas obras, é uma recapitulação mais concisa
dramatizou de maneira semelhante fases decisivas da his- de Till Damaakua, acabando, porém, em desespero absoluto,
tória universal; e enfim escreveu uma grande série de pe- cm budismo niiliata.
ças admiráveis, tiradas da história sueca, das quais pelo me-
Droamipêhn, BNMUI «num rui Dumuskus e Spoakaona-
nos quatro (Folkungersag, Gustaf Wasa, Erik XIV e Drot-
"•n, alo dramas naturalistas aó na aparência: apresentam
tning Kristina (Rainha Cristina), merecem o apelido de
shakespearianas. Na representação da grande e infeliz rai- •onagens, motivos t linguagem da vida quotidiana, com
•luaõei do profundo niilismo. Mas o estilo da compo-
sição dramática é inteiramente novo. As cenas não se se-
guem • a lógica da vida real, e sim conforme a lógi-
107) çf. nota 7G, ca das associações no aonho; e assim como no sonho o am-
OTTO M A R I A CARPEAUX
/
bíente, os objetos, toma parte nos acontecimentos; assim
na nova dramaturgia de Strindberg os cenários, as decora-
ções têm funções simbólicas, chegando a intervir na ação
dramática. O diálogo tem dois sentidos, o real e mais ou-
tro, espiritual e oculto. Strindberg cria na imaginação dra-
mática um novo mundo. A literatura de 1900 e 1910 não to-
mou conhecimento disso; e não há melhor prova de que o
"decadente" Strindberg não tem nada que ver com o deca-
dentismo simbolista. O naturalismo não foi realmente con-
ÍNDICE DO VOLUME V
vertido, tampouco como o próprio Strindberg, cujo génio
PARTE VIII
patológico antecipou evoluções posteriores: seu teatro
exercerá a mais forte influência no expressionismo e no A É P O C A DA C L A S S E M É D I A
surrealismo ( J 0 8 ). O naturalismo acabou porque não era ca-
paz de criar um novo estilo; isso será a tarefa do simbo- Capítulo I
lismo.
Literatura Burguesa 2 111

108) C. E. W. A. Dahlsíroem: Strinãberg's Dramatic Expressionism. Capítulo 11


Ann Arbor, 1929.
< i Naturalismo 2 261

a lo III

A ('mivtriio do Naturalismo 2 447

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