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ip ie SEMANTICA ESTRUTURAL A. J. Greimas © problema da significacio, objeto de estudo da Semantica, constitu uma das preocupacdes nucleares das Cigncias Hu. manas, Neste livro, um pesquisador que se vem destacando Por suas contribuiges na drea da teoria semantica e da and- lise} da narrativa oferece ao leitor wuiversitério um panorama dos problemas © métodos da Semdntica Estrutural, focalizando uestées essenciais como condigées de uma semantica cien- ‘fies, estrutura elementar da signficacdo, linguagem e dis. Guo, organizacio do universo semantic, descricio da sign. Fieacio, modelos atuacionais ¢ de transformaglo, ¢ outros 16. picos de igual importéncia, EDITORA CULTRIX EDITORA DA UNIVERS ‘Semantica estrutural Ru, SEMANTICA ESTRUTURAL A. J. Greimas Ninguém ignora que © problema da significe ‘slo constitui hoje uma das preocupagies. mu ‘leares das Cigncias Humanas, de vez que um fato 8 pode ser considerado “humano” na me- ddida em que signifique algo. E para abordar ‘0 estudo da significagio, nenhuma cigncia esté ‘melhor qualificada do que a Lingistica, em 1 io do rigor © formalizacio de seus métodos. Todavia, a provincia da Lingifstica a quem in- ccombe tal estado, a Semintica, € paradoxalmente ‘4 menos desenvolvida das disciplinas lingisticas. Esse atraso histérico se explica, sobretudo, pela ‘complexidade do seu objeto de estudo, que 56 agora comeza a ser delimitado abordado com ‘spirito verdadeiramente cientifico. Tlustzativa desse espirito € esta obra que, em tradugio dos Profs. Haquira Osakabe € Tzidoro Biikstein, a Cultrix ora entrega 20 pablico uni- versitirio brasileiro numa coedicio com a Edi- tora da Universidade de Sio Paulo, SemAntica Estaurvrat € notével tanto pela atvalidade do ‘seu empenho — a aplicagio de métodos estrutu- nis 20 estudo da significagio — quanto pela clarcea de suas formulagSes, que procuram con- ‘liar © rigor terminolépico exigido pelos Isgicos ¢ Vigicos matemiticos com 0 amplo sistema de referéncias culturais do estudioso de Cigncias Humanas. Neste livo, o Prof. A. J. Greimas, docente da “Ecole pratique des hautes études”, que se vem destacando por suas pesquisas na feea da teoria semintica e da andlise da narra. tiva, oferece a0 leitor um panorama dos proble- ‘mas € métodos da seméntica estrutural, abordan- do questées essenciais como condigées de uma ‘semintica cientifica estratura clementar da signi ficacio, linguagem’e discurso, organizacio do ‘universo semiintico, descricio da significaga0, mo- elos atuacionais ¢ de transformasio, € outros Aépicos de igual importincia. ie a, I SEMANTICA ESTRUTURAL Obra publicada com a colaboragio da oe UNIVERSIDADE DE SAO PAULO. oa Reitor: Prof. Dr. Orlando Marques de Paiva EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO. Presidente: Prof. Dr. Mario Guimaraes Ferri Comissao Editorial: Presidente: Prof. Dr. Mario Guimaraes Ferri (Instituto de Biociéncias). Membros: Prof. Dr. Antonio Brito da Cunha (Instituto de Biociéncias), Prof. Dr, Carlos da Silva Lacaz (Faculdade de Medicina), Prof. Dr. Pérsio de Souza Santos (Escola Politécnica) e Prof. Dr. Roque Spencer Maciel de Barros (Faculdade de Educacdo) mre A.-J. GREIMAS (diretor de estudos da “Ecole pratique des hautes études” de Paris) SEMANTICA ESTRUTURAL Pesquisa de Método Tradugio de ‘Haguira Osaxane. (da Universidade Estadual de Campinas, SP) Teporo Burxsrem (a “~*wttnde de Sio Paulo) EDITORA CULTRIX io PAULO. EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO Titulo do original: SEMANTIQUE STRUCTURALE — RECHERCHE DE METHODE © 1966 — Librairie Larousse, Paris. 2: edicio MCMLXXVI Direitos de tradusio para a lingua portuguesa adquitidos om excluividade pela EDITORA CULTRIX LTDA. Rus Conselheizo Furtado, 648, fone 2784811, S. Paulo, que se reserva a propriedade literdria desta traducio, Impresso no Brasil Printed in Brazit INDICE CONDIGOES DE UMA SEMANTICA CIENTIFICA At Sitwasio da semantica 4) A significagio e as ciéncias humanas _ 6) Um parenie pobre: a semintica 22 A signifcagio da. pereepgio = 4) Primeira escolha epistemolégica 4) Uma descrigio qualtativa €) Primeiros conceitos operacionais 3+ Conjuntos significantes e lnguas naturals 4) Classificagio dos significantes ©) Gorrelagio entre significantes e significados ©) SignifcagSes “naturais” e signficagSes artfcsis 4) Estatuto privilegiado das linguas naturais 42 Niveis hierérquicos da Hioguagem 4) Fechamento do conjunto Lingifstico 5) Niveis l6gicos da_signficasso €) Semintica enquanto linguagem 4) Nivel epistemolégico @) Notagio simbélica ESTRUTURA ELEMENTAR DA SIGNIFICAGAO Continuidades e descontinuidedes Primeita concepcio da estrutura + Conjungio ¢ disjungio * Estruturas elementares u rT 2 is 16 7 7 7 18 19 9 a 2 REN BESSBBS B SIGNIFICAGKO MANIFESTADA, 2) Unidades de comunicagdo ¢ unidade de significagio 5) O lexema: uma constelagio estilistica ¢) Definigao do semema A figura nuclear 2) Primeiro nicleo de “téte": extremidade 1) Segundo nicleo de “téte”: esfericidade ¢) Nicleo sémico comum 4) Figuras simples e complexas ¢) Em ditegio 20 nivel semiolégico do conteido Os classemas 2) Semas contextuais 6) Lexemas ¢ sememas €) Definigéo dos classemas 4) Em diresio a0 nivel seméntico da linguagem Conceitos instrumentais NIVEL SEMIOLOGICO Notas prévias © aproximagdes 2) Autonomia do semiol6gi 6) Lexematismo antropocéntrico €) © Lingiistico e 0 imaginério Estatuto do Semiolégico 4) O simbélico e 0 semiolégico 4) O protosemantismo de P. Guiraud €) © semiolégico e 0 bioanagégico Possibilidades da descrigio semiolégica b b 2p 2 B 2) Construgio das Tinguagens em lingiifstica aplicada 1) Niveis de generalidade €) Procedimento descritivo ISOTOPIA DO DISCURSO 12 Heterogeneidade do. discurso 42) Tsotopia da_mensagem 1) Variagies das isotopias ¢) Dimensies dos contexts isot6picos 22 Funcionamento metalingistico do discurso 4) Expansio © definigio 4) Condensacio e denominacio ¢) Denominagio translativa 5 4) Dupla funcio dos classemas 2) Andlise das denominasées figurativas f) Andlise das denominagoes translativas 2) Andlise definicional 4) Construgio dos sememas 1) Tsomorfisme das figuras 32 CondigSes para _o estabelecimento de isotopia 4) Definigio obliqua 5) Conceitos sobre 0 mundo ¢) O fechamento do texto 4) Do texto individual 20 corpus coletivo €) Tsotopia ¢ vatiagio 42 O discurso plurlvoco 2) Manifestagio de uma_isotopia complexa 4) A ambivaléncia simbélica em literature €) Tsotopias ¢ sua leitura ORGANIZAGAO DO UNIVERSO SEMANTICO 1s Universo da significacio 2) Dupla diresio epistemolégica ) Indugio e dedugio €) A consideracio emplrica do universo imanente 4) ‘Sistemas e morfemas 2° O universo manifestado da significagio 4) Comeiido 6) A combinatéria €) Facotha extratégion 4) Abertura do corpus dos sememas 103 106 107 109 110 114 116 47 7 121 122 125 126 128 128 130 BL 136 136 136 138 19 4a at 143 45 45, c oF ar ar “i €) Sememas abstratos © concretos 1) As incompatibilidades © discurso 4@) Lexicaizagio © gramaticalizacio 5) As separactes da expressio © as identidades do contedido ©) A comunicagio 4) Orgenizacio das _mensagens DESCRICAO DA SIGNIFICAGAO Manifestacio © discurso 2) Dicotomia do universo. manifestado 4) Tsotopias fundamentais €) A combinatéria sintética 4) A afsbulacio © © “radotage” ‘A Manifestacio. discursiva 4) As bases. prazmfticas: da organizacio 5) Mods de presenca da manifestacio discursiva €) Os microuniversos. seminticos 4) Tinologia dos micro-universos €) Predicatos ¢ atuantes 1) Catesorias atuscionais 2) Sintaxe Waica e sintaxe semintica ‘bY O caréter modal das catesorias.stuscionais 4) Uma epistemologia lingiifstica Manifestacio figurativa e manifestacio nfo figurativa 4) Um exemnto: a comunicacio pottica 5) O imolicito © © explicito €) O nfo fieurativo 4) Em directo a uma metalinguarem cientifica ¢) A vetificagio dos modelos de descrigio PROCEDIMENTOS DE DESCRICKO Constituicio do corpus 4) Obietivos e procedimentos 5) O corpus €) 0 texto 4) Eliminacio ou extragio €) Os inventérios 1). Tnventérios individuais e coletivos 2) Estratos © Duragdes A normalizagio 44) Homogencidade da descricio 146 49 149 150 152 154 137 157 159 159 162 163 163 155 167 172 185 185 187 190 191 192 193 195 1 2 4) Objetivagio do’ texto €) Sintaxe elementar da descrigfo 4) A lexemftica da descrigio A construcio: 4) Construgio do modelo: redugio e estruturagio 6) Redugies simples ¢) Redugées complexas 4) O semintico e o estilistico e) A estruturagio 1) Homoiogasio © geragio i &) Conteidos instituidos © sua organizacio REFLEXOES SOBRE OS MODELOS ATUACIONAIS Dois niveis de descrisio Os atuantes em fingiistica Os atuantes do conto popular russo Os atuantes do teatro A categoria atuacional “Sujeito” vs “Objeto” ‘A categoria atuacional “destinador” vs “destinatirio” ‘A categoria atuacional " Aqjuvante” vs “Oponente” © moaeio atuacional mitico A invesucura tematica © iinvestumento economico Atuantes € atores © energetismo dos atuantes Q modeio aruacional € a critica psicanalitica Os modelos atuscionais psicanaliticos PESQUISA DOS MODELOS DE TRANSFORMAGAO, Reduglo e estruturagio 2) Organizagio das fungées 8) Inventério das fungies ¢) Acasalamento das fungies 4) Contrato €) Prova f) Auséncia do herdi 4) Alicnagio € reintegracio 4) Provas e suas conseqiitncias 4) Resultados da redugio Interpretacées € definigdes 44) Elementos sctOnicos ¢ dincr6nicos da narrativa 4) O estaruto discrdaico da prova Bee Bee 2 27 218 RS 270 273 25 am a i 29 43 Fane de poor a CONDICGES DE UMA SEMANTICA CIENTIFICA e) Realizacio da prova 282 4) © problema do reconhecimento e da recompensa 284 4) Manifestagio figurativa do modelo 286 3) Alcance do modelo transformacional 286 ° SITUAGAO DA SEMANTICA AMOSTRA DE DESCRIGAO. Bas aa 9) A significacdo © as ciéncias humanas. 3 ad ee. ae AA Bernanos = __ O problema da significacio esté bem no centro das preocupa- Fy Soe ieeeed Pa Ses atuais. Para transformar o inventério dos comportamentos ipaq aa em antropologia e as séries de acontecimentos em Histéria, ndo * eae a El cme Se) —> 53 diremos que a figura nuclear & complexa. ) Em diregao ao nivel semiolégico do contetido. Nao é initil observar que os semas que constituem as figuras que acabamos de estudar remetem todos a uma concepcio geral do espaco © fazem parte, por isso, de um sistema sémico mais vasto. Em outras palavras, a hipétese segundo a qual uma anilise de contetido em unidades constitutivas minimas faz aparecer sis- temas sémicos subjacentes, recobrindo um grande nimero de manifestagées lexemiticas, se confirma aqui, uma vez mais. Dire- mos pois, introduzindo assim um novo conceite operatério, que 65 semas que, na manifestacio, sio formadores de figuras nucleares remetem a sistemas sémicos de uma natureza particular, cujo conjunto constitui 0 nivel semiolégico do universo significante. 3° OS CLASSEMAS a) Os semas contextuais. No inicio deste capitulo, definimos provisoriamente 0 semema como a combinagio do niicleo sémico e dos semas contextuais. Tentando precisar melhor essa definicio, procuramos em seguida compreender melhor 0 niicleo semAntico, ao qual acabamos de denominar figura nuclear. Resta-nos ainda precisar 0 estatuto dos elementos do contexto que entram na constitui¢ao do semema. Bastard um exemplo para mostrar a complexidade do pro- blema. Tomemos uma seqiiéncia de discurso bem simples, como le chien aboie (0 c&o late). Segundo o procedimento jé utilizado, a anilise contextual de “aboie”, permitindo a depreensio do nucleo sémico, que vamos designar por Ns; (e que nfo procuraremos analisar, jA que esse nfo € 0 objetivo perseguido, lembrando apenas quanto a seu contetido que se refere a uma “espécie de grito”), nos revela a existéncia de duas classes contextuais “sujeitos", que se podem combinar com aboie. De um lado, a classe dos animais: le chien (cio) le renard (raposa) le chacal (chacal) ete., e, de outro, a classe dos human Thomme (homem) Diogine (Didgenes) cet ambiticux (este ambicioso) ete. Diremos que essas duas classes so caracterizadas cada uma pela presenga de um sema comum & classe intelra: no primeiro caso, trata-se do sema “animal” (Cs,), no segundo, do sema “hu- mano” (Cs:). Dependendo da manifestagio de um ou de outro desses semas, com 0 auxilio de um de seus contextos-ocorréncias, no Aiscurso, sua combinagio com 0 micleo Ns; constitui dois sememas diferentes: Sm, = Ns; + Cs; (grito animal) Sm: = Ns; + Cse (grito humano). Tomando, por sua vez, o lexema chien (e simplificando bas- tante), podemos dizer que 0 encontramos igualmente no interior de dois tipos de contextos diferentes. Como a primeira classe de contextos-ocorréncias permite construir, com 0 nmitcleo Nsz, 0 semema Sms: le chien aboie (0 cio late) gronde (grunhe) ‘mord (morde) ete., depreende 0 sema comum “animal” (Cs:). A segunda classe de contextos que manifestam “efeitos de sentida” semémicas: “espé- cie de arpio”, “instrumento de toneleiro”, “vagoneta de mina” obrigam a postular um sema comum “objeto” (Css). b) Lexemas e sememas. Os resultados desse tipo de anélise podem ser formulados de duas maneiras levemente diferentes. Podemos, tomando as_fi- guras de cada lexema e considerando-as como invariantes, jun- tarthes todos os semas contextuais com os quais elas so capazes de se combinar. Teremos assim, para os lexemas aboie e chien, duas formulagées diferentes: Li = Ni + C (s:/s2) La = Na + C (s1/ss). Os semas contextuals assim tratados se encontram reunidos pela relagio de disjuncio, em categorias s¢micas do tipo: animais vs humanos animais vs objetos esgotando dessa forma, antes mesmo de sua manifestacdo no dis- curso, todos os empregos possfveis dos lexemas analisados. Vemos que essa primeira formulacio permite afiancar nossas definig&es do lexema, que aparece assim como um modelo virtual que abrange o funcionamento inteiro de uma figura de significagao recoberta por um dado formante, mas anterior a qualquer mani- festacio no discurso, que s6 pode produzir sememas particulares. Nao acreditamos trair o pensamento de B. Pottier dizendo que € provavelmente essa concepcio de lexema que ele colocou em evidéncia nas suas pesquisas, que so paralelas As nossas. £ pos- sivel que um dicionério de lexemas formulados em termos. de modelos virtuais traga uma contribuicdo nio negligencidvel A so- lugéo de problemas semanticos colocados pela tradugo mecfinica. Uma semfntica lexemitica nfo fica, entretanto, para nés, muito ligada ainda as articulagées do plano da expressio para que possa resolver o problema capital da sinonimia, tornando definiti- vamente possivel uma verdadeira anélise do contetido. Se, ao contrério, em vez de formular cada lexema separada- mente, consideramos a seqiiéncia do discurso em questo como encontro de dois sememas, situamo-nos de uma s6 vez sobre 0 plano da significacio manifestada, onde a escolha dos semas a realizar jé esté efetuada. Assim, aboie, para se constituir semema, elegeu no prdprio momento da realizacéo do discurso o sema s; 70 contido no contexto chien; e, inversamente, a presenca do contexto abole significa a escolha obrigatéria do sema s, para a aparigio do semema “chien-animal”. A seqiiéncia em questio nfo mani- festa, portanto, apenas os semas contextuais s,, excluindo os semas $2 € %, € sua Winica combinagio semémica possivel & Sq = [Nz + Cs:] + [Na + Csi], onde cada miicleo se combina teoricamente com 0 sema contextual pertencente ao lexema vizinho. Dizemos “teoricamente”, pois os dois semas contextuais so na realidade idénticos, e essa busca do dado sema no seu vizinho, quando jé 0 possuimos nele mesmo, pode parecer facilmente desprovida de fundamento. Com efeito, substituindo um dos lexemas da seqiiéncia para obter Le commissaire aboig (0 comissdrio ladra) percebemos que, com o novo contexto de aboie, que manifesta desta vez, 0 sema &2, 0 sema contextual do novo micleo Ns (commissaire) serd necessariamente 0 sema 2: Sqi = [Na + Css] + [Ni + Coz]. Esses exercicios elementares nos permitem jé formular, a titulo provisdrio, um certo ntimero de constatagoes de ordem geral, que nos caberd provar em seguida. ©) Definigdo dos classemas. A partir de agora, podemos nos dar conta do papel que desem- penha 0 contexto, considerado como unidade do discurso superior ao lexema: constitui um nivel original de uma nova articulacdo do plano do contetido. Com efeito, o contexto, no instante mesmo ‘em que se realiza no discurso, funciona como um sistema de compa- tibilidades e de incompatibilidades entre as figuras sémicas que ele aceita ou nao reunir, j4 que a compatibilidade reside no fato de que dois micleos sémicos podem combinat-se com um mesmo sema contextual. Considerando 0 mesmo fenémeno sob um Angulo um pouco diferente, constatamos, por outro lado, que a manifestacio no discurso de mais de um niicleo sémico provoca automaticamente a manifestagao iterativa de um ou varios semas contextuais. Conse- 7 qiientemente, a seqiiéncia do discurso (Ie) chien aboie, que descre- vemos anteriormente como a combinacao de dois sememas, pode ser muito bem formulada de maneira ligeiramente diferente: Sq = (Nz + Ni) Csi. Essa nova apresentagio nos permite ver melhor que se uma determinada seqiiéncia contextual comporta duas figuras sémi- cas, no compreende senio um sema contextual; em outras pala- vras, 0s semas contextuais correspondem a unidades de comunica- ‘G40, sintagmas ou proposicées, mais amplas que os lexemas, den- tro dos quais se manifestam, grosso modo, os niicleos sémicos. Esse fato apenas bastaria para postular que os semas contextuais devem ser estudados de maneira independente, separadamente das figuras sémicas. Entretanto, 0 termo sema contextual, que vimos, pode revelar- se ambiguo quanto ao uso. Assim, a anilise 4 qual procedemos no inicio desse capitulo colocou em evidéncia semas que, embora sendo “contextuais” em relacio ao micleo considerado, pertencem, entretanto, ao micleo contiguo, ¢ nfo ao contexto iterativo, tal como procuramos defini-lo. Por oposico aos semas nucleares, propomos, conseqiientemente considerar como classemas os semas contextuais propriamente ditos. Observasao: Como o sema, tomamos também a B. Pottier © termo classema. d) Em direcéo ao nivel seméntico de linguagom. Nossa tentativa de depreender uma classe auténoma de semas, que tenham as fungées originais na organizacio do discurso, corres- ponde a uma dupla necessidade. De fato, teremos de mostrar que tal concepcio dos classemas, caracterizados pela sua iteratividade, pode ter um valor explicativo certo, nem que seja para permitir a compreensio do conceito ainda muito vago e entretanto necessirio de totalidade de significacao, postulado a uma mensagem ou a uma lexia no sentido de Hjelmslev. A partir de agora, estamos em condisées de afirmar que uma mentagem ou umé seqiiéncia qual- juer_do_discurso_s6 podem ser_consideradas como 72 se possufrem um ou varios classemas em comum, Mais do que isso: ultrapassando 0 quadro estreito da mensagem, Thatdieiige avec. trar, gracas a esse conceito de isotopia, como textos inteiros se encontram situados em niveis semnticos homogéneos, como o signi- ficado global de um conjunto significante, em vez de (como o propée Hjelmslev) ser postulado a priori, pode ser interpretado como uma realidade estrutural da manifestagio lingiiistica. Por outro lado, a autonomia dos classemas em relacio_aos semas nucleares que ndo é, nessa situacdo, mais que uma hipdtese estimuladora da reflexao, recebe um comeco de confirmagio se olharmos rapidamente os poucos classemas j4 reconhecidos ao acaso, gracas aos exemplos utilizados. Vemos que os classemas, objeto vs animal vs humano parecem poder ser articulados em um sistema sémico, que seria talvez mais explicito se © apresentéssemos da seguinte maneira: inanimado vs animado animal vs humano A generalizago que queremos propor a partir de agora seria a seguinte: se as figuras sémicas, simples ou complexas, dependem do nivel semiolégico global, dos quais sio simples articulacées particulares prontas a se investir no discurso, os classemas, de seu lado, se constituem sistemas de cardter diferente e pertencem ao nivel semantico global, cuja manifestagéo garante a isotopia das mensagens e dos textos, 4° CONCEITOS INSTRUMENTAIS Parece-nos titi] resumir aqui, antes de prosseguir, os resultados de um primeiro esforco de conceitualizagio que tinha como meta a colocacio de unidades de construcao indispensdveis a qualquer descricho da significaséo. O quadtv abaixo, coutém os termus defi- nidos, com certo rigor, nas discusses anteriores e que consideramos titeis serem retidos. 73 O NIVEL SEMIOLOGICO NOTAS PREVIAS E APROXIMACGOES a) Autonomia do semiolégico. No transcorrer do capitulo anterior, tentamos depreender dois niveis autdnomos da linguagem, o nivel semioldgico e o nivel semin- tleo, dots conjuntos arquiteténicos de conteiido cujos elementos, encontréveis no discurso, constitufam unidades de manifestacio de dimensGes diferentes e estabeleciam, de uma sé vez, a manifes- tagio da prdpria significacdo. E tempo de considerar agora esses dois niveis lingiifsticos separadamente, nao para descrevé-los, mas para precisar, na medida do possivel, 0 seu modo de existéncia, e acima de tudo, para tentar tracar — 0 que parece talvez mais tealista_no estado atual das pesquisas seminticas — os seus contornos e significagdes. Introduzindo, na divisio do universo significante, dois ni- veis de significacao, queremos sobretudo sublinhar sua autono- mia miitua. Mas fica entendido que os dois niveis, considerados em conjunto, constituem o universo imanente da_significacdo, anterior por direito & manifestacio de seus elementos constitu tivos no discurso. Essa oposi¢io do sistema ao processo, que "parece clara para muitos lingiiistas, esta longe de ser reconhecida | por todos. Além disso, como o dominio semiolégico serve atual- _ mente de lugar de encontro a varias disciplinas humanistas, pare- ce-nos ‘itil insistir a0 mesmo tempo sobre a anterioridade légica € sobre a autonomia da estrutura semiolégica, a fim de precisar as posigdes de uma seméntica estrutural em relacio sobretudo as Pesquisas que se insiram numa psicologia fenomenoldgica ou genética e parecem muitas vezes paralelas is nossas. Pensamos 75 nos diversos trabalhos sobre 0 simbolismo, sua natureza e suas origens, e mais particularmente nesse esforgo de sfntese que constituem les Structures anthropologiques de Timaginaire, de Gilbert Durand; este, estudando um grande ntimero de problemas gue nos sio comuns, utiliza métodos e propte solugées opostas As nossas. E assim’ que a classificagio do simbolismo, que & grande preocupa: do Autor, repousa sobre trios de ordem genética. Ela se apéia sobre a reflexdo bechtereviana e sobre a distingao fundamental das trés dominantes reflexas: postural, di- gestiva. copulativa. Esse nivel reflexoldgico, considerado como ‘ontogeneticamente primeiro, originaria uma aparéncia de sistema- tizacio dos gestos do corpo, que, segundo G. Durand, ostdo em “estreita concomitancia” com as representagées simbdlicas. A par- tir desse nivel, que iio é simbélico, mas que fundamenta tanto © préprio simbolismo como sua classificagéo, torna-se possivel © desenvolvimento do imagindrio em “esquemas” e “arqui Apenas os gestos — porque podem e devem ser considerados como primeiros — merecem o nome de esquemas, que vio en- gendrar por sua vez os arquétipos: assim, 0 gesto da verticaliza- G0, repousando sobre a dominfincia postural, engendra os arqué- tipos epitetos “alto” vs “baixo”, da mesma forma que o gesto da deglutic&io, da descida, correspondente & dominante digestiva, produz, prolongando-se, os arquétipos “continente” vs “contet- do”. Os mesmos esquemas dao origem, por outro lado, a arqué- tipos substantivos, tals como a “luz” ou as “trevas”, de um lado, ou a “cor”, o “recipiente”, a “forma” e a “substdncia”, de outro. Terlamos muito a dizer sobre essa obra que contém ao mesmo tempo as qualidades e os defeitos do ecletismo. Se falamos dela, € por ser bastante representativa, por suas manipulagdes meto- dolégicas de um estado de espfrito que nio € compativel com a atitude lingiifstica. 1. Para nés, a descricio do simbolismo nio pode ser em- preendida postulando-se como critérios da descrigio — mesmo que fossem algo distinto de puras hipéteses — as distingdes ope- radas a0 nivel extralingiiistico da realidade. O semioidgico é, como a linguagem em geral, aproensivel dentro da percepcio ¢ deve apenas, as anticulagdes'dstntvas ‘de. sentidos negativos & exterior, que af se manifesta enquanto forma da ex- reali pressio, 76 2. Nem a explicagio genética de uma complexidade cres- cente ‘do simbolismo, nem o raciocinio pseudocausal (= a deglu- tigdo “se prolonga” e cria o “contetido”) podem ser assimiladas A geracio das figuras nucleares do discurso a partir dos sistemas sémicos. Uma classificagao que ‘delimite, por exemplo, duas gran- des configuragses do simbolismo, disjuntando, por razdes nio lingiifsticas, a oposigao “subida” vs “descida” ndo pode preten- der-se estruturalista, apesar do abuso desse termo. Somente 0 postulado da anterioridade das estruturas sémicas em suas millti- plas manifestagSes semémicas no discurso torna possivel a andlise estrutural do contetido. Tal concep¢ao, por mais simples que pareca, néo é menos contrério a nossos habitos de pensamento profundamente estabelecidos. b) © lexematismo antropocéntrico. ‘Assim, uma longa tradicao lexicogrdfica nos impde nao so- resentagéo lexemitica dos diciondrios, mas também uma hicrarquizacio dos “sentidos” da palavra; o “sentido” relativo 20 homem, ao meio humano, ao mundo do senso comum é sem- pre considerado como primeiro e, por conseguinte, implicita- mente original. Uma “parte do corpo” é efetivamente o sentido ‘natural’, de certo modo, da palavra téte, como prendre (tomar, colher, beber) significa inicialmente “‘apoderar-se de alguma coisa”. © niicleo sémico de prendre, tal como aparece com seu sema “expansio” em: Cet arbre prend bien (Esta érvore esté bem firme) Le bois prend (A madeira pega fogo) ou com o seu sema “‘contragéo” em: La rioire a pris (O tlo congelou) Le lait prend (0 leite coalha) (*) é simplesmente a manifestacio de uma das numerosas possibili: dades estilisticas da palavra; o sentido “préprio” e, evidentemente, (*) Observe'se em portugués 0 verbo engrossar nos dois casos: 4) com 0 sema expansio: “a enxurtada engrossou” b) com o sema contrasio: “a calda engrossou”, (N, de T.) aquele segundo o qual tomamos alguma coisa “com a mio”. Do mesmo modo, s6 se morde verdadelramente “com os dentes”, € G. Durand, falando do esquema ‘mordicant” (corrosive, mordaz) rompe com a tradigSo estabelecida; um esquema 6, como se vé, algo diferente do sema. i Essa tendéncia em admitir implicitamente como fundamental € prioritério o nivel de significagSes recortadas segundo a escala humana caracteriza igualmente as pesquisas referentes a outros dominios “insdlitos” da linguagem: simbolismos mitolégicos, poé- ticos, onfricos. Assim, as primeiras descricdes das diferentes formas do simbolismo, iniciadas no estilo de “Chaves dos sonhos” pela enumeracio dos objetos simbélicos, e prosseguidas sob forma de classificacGes sumérias pela distincio das epifanias cosmolégicas (Mircea Eliade), agrupamentos pouco coerentes de simbolos celes- tes, terrestres, etc., consideram sempre os simbolos — que podem indiferentemente ser tanto lexemas quanto objetos materiais — como unidades descritivas compactas. A tentativa de descricio do simbolismo da matéria feita por Gaston Bachelard, e que repousava, como o sabemos, na distingio quase universal, feita pela fisica qualitativa, dos quatro elementos: terra, ar, fogo, égua, surgiu como uma inovacdo. Entretanto, o autor percebeu que os elementos classificatérios dessa matéria nao eram nem simples nem unfvocos, © que, dentro da matéria terrestre, a moleza da terra propria a0 plantio (glébe) se opunha A “dureza da rocha”; quanto a matéria aquatica, 0 simbolismo da 4gua calma se situava af em oposicio 20 das Aguas revoltosas. Essa constatago conduz Bachelard aos umbrais da anélise sémica tal como nés a concebemos, onde as oposigées Moleza vs dureza Estatico vs dinamico se acham pressupostas, anteriores aos lexemas-simbolos da terra e da dgua. Serd necessirio, entretanto, esperar a aparicao da Poétique de Espace para encontrar os primeiros elementos de uma descricio sémica consciente e uma concep¢io da comuni- cacdo poética que fizesse uso do nivel semiolégico da linguagem. 78 c) Um dominio reservado: o simbolismo, A mesma inversio da problemitica da linguagem se en- contra agravada nas especulagées referentes natureza simbélica da poesia, do sonho e do inconsciente: essa espécie de encan- tamento diante da ambigiidade dos simbolos, a hipdstase dessa ambigiiidade considerada como conceito explicativo e a afirma- cio do carater “inefével” da linguagem poética, da riqueza inesgo- tavel do simbolismo mitico, levam as pessoas tio precavidas como . Lacan ou G. Durand a introduzir na descrigio da significagio julgamentos de valor e a estabelecer distingSes entre a fala ver- dadeira e a fala social, entre um semantismo auténtico e um: semiologia vulgar. A semAntica, que se pretende uma ciencia humana, procura descrever valores ¢ nao postuld-los. A questo nao poderia nem mesmo se colocar nesses termos, se em vez de indagarmos por que tal palavra tem varios sentidos, ou como uma palavra pode significar uma coisa e seu contrario (tanto os gramdticos quanto 0s filésofos arabes se interrogaram prolongadamente sobre a existéncia dos addad, palavras que sig- nifieam ao mesmo tempo “uma coisa e seu contrario"), partissemos de uma descricio semiolégica para estudar em seguida suas mani- festagdes miltiplas. Veremos entio que um simbolo eminentemente poético nio é muito diferente, nem funciona de modo diferente, de-um lexema qualquer de uma lingua natural qualquer, como 0 € 0 caso de téte. Em outeas palavras, reconheceriamos essa ver- Gade do bom senso de que tudo.o que é do dominio da linguagem & lingiifstico, isto & possui uma estrutura lingiit léntica ou comparavel e se manifesta gracas ao estabelecimento de conexdes lingiifsticas determinaveis e, em larga medida, determinadas. Che- gariamos talvez a “desmistificar” A custa disso o mito analdgico moderno segundo o qual hé na linguagem zonas de mistério ¢ zonas de clareza. E possivel — trata-se de uma‘ questio filosdfica e nio mais lingiiistica — que o fendmeno da linguagem enquanto tal seja misterioso, no entanto; nao hé mistérios na linguagem. © “pedago de cera” de Descartes no & menos misterioso que © simbolo da lua. O que nao impede que a quimica tenha chegado fa dar conta de sua composicio clementar. E a uma andlise desse género que deve proceder a semantica estrutural. Os efeitos de sentido persistem bem, é verdade, nos dois casos, mas 0 novo 79 plano analitico da realidade — quer se trate da quimica ou da semiologia — nao & menos legitimo. d) O lingiiistico © o imaginério. A Altima objecio, que & preciso eliminar, esté na escolha es- tratégica do plano tinico da descrigio do simbolismo e, mais geral- mente. do que se convencionou chamar “imaginério”. O plano lin- Ziiistico é o tinico plano de descri¢ao possivel? £ o melhor do ponto de vista operacional? Outros planos de descricio paralelos ao plano de linguagem nao podem ser utilizados para levar a resultados com- pardveis? Quanto ao simbolismo poético, as coisas parecem ser claras: a poesia é uma linguagem ou, para ser mais preciso, situa-se dentro Ga linguagem. Toda descri¢io nio lingiiistica da poesia seria necessariamente uma traducio initil, talvez impossivel. O mesmo Mia oeorre com o simbolismo mitaidgica, onde os objetas @ as comportamentos “naturais” parecem possuir as mesmas fungoes simbélicas que os lexemas ou as seqiiéncias discursivas, e sio subs- Uituiveis uns pelos outros. Isso cria inevitavelmente uma certa con- fusio, sobretudo se nao se coloca — como ocorre muito freqiiente- mente — a questio da homogeneidade do plano da descri ‘Tomemos um exemplo banal, 0 do simbolismo filico. Sabemos que. desde Freud. na psicanilise como na mitologia, quase tudo pode ser simbolo filico: partes do corpo humano, o corpo na sua totalidade, plantas, arvores, peixes, objetos manufaturados, ete. A metéfora félica surge assim como uma classe aberta, preenchida por uma espécie de “bric-a-brac”, cujo tertio comparationis cons- titulo tinico elemento permanente. Entretanto, pouco importa, que as ocorréncias que compoem esta classe sticos, visuais ou naturais; a relacao, isto é, © elemento comum a toda a classe e que a constitui justamente enquanto classe, niio é mais um objeto significante, mas uma articulagao sémica ou, mais ainda, uma figura nuclear que respeita & ordem do significado. Do mundo das coisas, do qual toma- mos emprestado nossos objetos de estudo, passamos assim automa- ticamente ao mundo da significacdo, e esta se presta entiio aos pro- cedimentos de descricao elaborados pela lingiiistica. er N&o queremos pretender com isso que 0 carter simbélico dos objetos falicos provenha sempre do discurso mantido acerca desses objetos, e que lhes forneceria o contexto indispens4vel & manifes- tacdo da significagio simbélica, embora esse seja provavelmente o caso mais freqiiente. Existem comportamentos rituais simbélicos que constituem outros tantos contextos naturais. © exemplo escolhido mostra, entretanto, de maneira concreta, 0 que sustenta- mos desde 0 inicio, isto & que a significacio é indiferente 20 significante utilizado: 0 fato de o significante ser constituido de objetos “naturais” ou de combinagées de fonemas ou de grafemas em nada modifica os procedimentos da andlise da significagio. * Uma anilise do contetido que repouse sobre os objetos que constituem 0 mundo do senso comum, tomado como significante, é teoricamente legitima, e talvez mesmo possivel. A grande supe- rioridade do plano lingitistico provém do fato de que qualquer outra linguagem — e, conseqiientemente, a dos objetos simbélicos — pode ser traduzida numa lingua natural qualquer, enquanto © inverso nao € sempre verdadeiro: nio vemos como um poema de Mallarmé possa ser traduzido numa linguagem das coisas. (Isso aparece muito claramente na elaboracéo dos métodos audi visuais para o ensino das linguas, quando se trata de construir um significante visual equivalente do significante oral das Iinguas na- turais: se a tela se presta relativamente bem para a representacio dos atuantes, os problemas da expressio visual dos predicados e das telagées so mal esbocados e nao foram até agora resolvidos.) Por outro lado, as Iinguas naturais possuem um significante relativa- mente simples, e em parte j4 analisado, que permite a elaboracao de técnicas cada vez mais seguras e cada vez mais numerosas de verificacao das separagies de significacao, mesmo que as estruturas icagio sejam postuladas inicialmente como resultados hipo- téticos dos procedimentos légicos. O valor dessas técnicas — ainda que em sua aplicagio & andlise do contetido estejamos nos primeiros passos — é compardvel, para as ciéncias humanas, & formalizacio algébrica das ciéncias da natureza, e é ai que reside, parece-no: ‘a superioridade metodolégica da lingiifstica estrutural em relacio 4s intuigdes, muitas vezes geniais, mas que nao possuem procedi- mentos de verificacdo, das demais pesquisas humanistas. 81 2° © ESTATUTO DO SEMIOLOGICO a) O simbilico e o semiolégico. ‘Até aqui, nés nos esforgamos por mostrar que o simbolismo, qualquer que seja a forma pela qual apareca, nfo se distinguia, por sua propria natureza, das outras manifestagées da significacio e que sua descticéo dependia da mesma metodologia. Teriamos errado se, a0 contrario, o assimiléssemos sem mais ao modo de existéncia das estruturas semiolégicas, embora se aproxime dela em vdrios aspectos. Se, para funcionar como tal, o simbolismo deve ‘apoiar-se no nivel semioldgico, ele é, no entanto, sempre uma refe- réncia a outra coisa, a um nivel da linguagem distinto do nivel semioldgico. Péderfamos dizer que o semiolégico constitui uma espécie de significante que articula o significado simbdlico ¢ o constitui num feixe de significagdes diferenciadas. Assim como o plano da expres- sio articulada é necessario para que o plano do conteiido seja algo distinto de uma “grande nebulosa” saussuriana, a articulagio da forma do contetdo chama para a vida, diferenciando-a, a substancia deste. Por outro lado, 0 dominio da estruturacio semiolgica é mais amplo que qualquer simbolismo particular; em outros termos, ndo existe adequacio entre tal espaco semiolégico e tal simbolismo: 0 semioldgico é indiferente ao simbolismo que o toma em considera- cio; um s5 e mesmo nivel semiolgico pode servir e serve para articular diferentes simbolismos. Assim, retornando a0 exemplo das imagens félicas, vemos bem que o que permite reduzir inumer4- veis variagbes estil{sticas a uma sé invariante simbdlica é 0 fato de que um nivel de significagio tinica, o da sexualidade, foi postulado no plano semiolégico, do qual uma figura nuclear relativamente simples serve de conector a todas as ocorréncias contextuais. A escolha desse significado é legitima, como o sio as dos outros sig- nificados. Como 0 demonstrou j4 Hjelmslev (Essais linguistiques), a categoria do género gramatical repousa sobre a oposicio sémica ‘expansdo vs condensacdo. © par fémea vs macho nao 6, conseaiientemente, senio uma manifestacao parficular dessa oposigao semioldgica; obtida pela combinagao do niicleo sémico com o classema “animado”. 82 A desericio do nivel semiolgico constitui, pols, uma tarefa auténoma, que deve ser conduzida sem nos prender a esse ou Aquele simbolismo particular. b) © “proto-semantismo” de P. Guiraud. A comparacio entre o simbélico e 0 semiolégico nos permitiu entrever os primeiros elementos de uma definicio possivel do nivel semiolégico, que seria a forma do contetido que tornasse possivel, gracas & postulacio de um nivel anagégico qualquer, a aparigao deste ou daquele simbolismo. Os conceitos do semio. légico e da forma do contetido nfo so entretanto coextensivos; se tudo o que é semiolégico pertence necessariamente A forma do contetido, 0 inverso nao & verdadeiro: os classemas e 0 nivel seméntico da linguagem por eles constituidos (e que é a fonte das isotopias anagégicas) participam igualmente da forma do contetido. O conceito hjelmsleviano da forma do contetido, embora re- voluciondrio na medida em que significou a morte do formalismo, nao é utilizavel para fundamentar as distingdes reais dos nfveis da linguagem, sobretudo quando se quer manter — como & 0 nosso caso — a concepeao saussuriana da linguagem considerada como ‘uma forma, cuja manifestacao por si s6 tem como resultado provo- cat a aparicao dos efeitos de sentido assimilaveis & substincia do contetido. A fronteira que é preciso tracar é, portanto, aquela que separaria 0 semiolgico do semAntico, e nio a forma da substancia. Parece oportuno retornar, uma vez mais, a exemplos con- cretos. As pesquisas empreendidas, desde algum tempo, por P. Guiraud, sobre o que ele chama campos morfo-semdnticos, sio, sob esse ponto de vista, particularmente instrutivas. Num de seus estudos recentes (Bulletin de la Société de linguistique, t. LVI, fase. 7), P. Guiraud destaca a existéncia de matrizes de va- tiagées fonolégicas, que tém as dimensdes de lexemas, aos quais correspondem modelos, paralelos e nao isomérficos, de articulagdes sémicas. Apoiado no inventério de uns 400 sememas, 0 estudo engloba um campo semdntico recoberto pela raiz com’ base con- sonantica (t-k) que caracteriza o sentido muclear frapper (gol- pear). Resumamos inicialmente os resultados desse estudo, in- teressante sob varios pontos de vista. 83 As variedades de “sentido” que esta ralz recobre podem ser agrupadas em duas categorias distintas: 1. As primeiras estdo ligadas 4s variacdes do formante. Assim, As variacdes vocdlicas da matriz em [tik] vs [tok] vs [tak] correspondem as variantes sémicas de coup (golpe): petit (pequeno) vs gros (grande) vs plat (plano). A matriz fonoldgica pode comportar outras variagdes, desta feita de cardter consondntico, &s quais corresponderao novas arti- culagées sémicas no plano do conteddo. Assim, a insergio do infixo (-r-): acrescenta ao modelo 0 sema suplementar “freqiientativo”; do mesmo modo, a variante [f] substituivel & [k], constitui a opcéo sémica (coup) amorti “amortecido” vs (coup) net “nitido”, 2. © modelo semiintico comporta, por outro lado, articula- goes stmicas independentes das variages da matriz fonolégica. O proto-semantismo, como o chama P. Guiraud, recobre quer os verbos quer os substantivos e produz tanto sememas do tipo frapper como do tipo coup. £ de igual modo que o mesmo formante para designar os objetos com os quais se golpeia (pelles fourgons “esborralhadores”, maillets “magos”) como tam- bém os objetos sobre os quais se golpeia (diversas espécies de placas e plaquetas). Enfim, ele ajuda a constituir, de maneira insdlita A primeira vista, os sememas que significam tache (mancha), macule (mécula), croiite (crosta), bem como diferentes afeccoes cutdneas, Vamos verificar inicialmente que as articulagdes sémicas reu- nidas num sé modelo se dividem claramente em dois tipos, e isso segundo um eritério que diz respeito ao plano da expresso e nao do contetido, 1. Certas variagSes esto em correlagio com as da matriz fonoldgica. Elas constituem dois estratos hierarquicamente dis- tintos: a) O micleo de ordem téctil attouchement “toque”, que corresponde & base consondntica (t-k) e que no é analisado por P. Guiraud; b) As variagdes sémicas de ordens sensoriais diversas e que correspondem aos elementos comutdveis do formante. Assim, a oposigao petit (coup) vs gros (coup) poderia ser interpretado como a polarizagdo do eixo de intensivi- dade, ao passo que o terceiro termo evidenciado por P. Guiraud ‘se oporia aos dois primeiros do ponto de vista da superficie tocada, como superficie vs ‘ponto. Quanto ao infix (+); assim como quanto & variante [J}. estes introduzem, por sua vez, determinages aspectuais complementares. Assim, 0 modelo semiolégico comporta as categorias sémicas ue correspondem as diversas ordens de percepeio: Lic, espacial, aspectual. Observagao: Fomos levados a introduzir aqui uma classi- ficacdo pragmitica do nfvel semiolégico em ordens sensoriais, isto &, segundo critérios extralingiiisticos. Tal classificacio é operacional e sé poderé ser justificada (e portanto funda- mentada), apés a descricio dos sistemas sémicos constitu tivos desse nivel de linguagem. 2. Outras variagGes sémicas so, em compensagio, indepen- dentes, sem relacdo de concomitancia com as do formante. Assim, a oposigio substantivo vs verbo parece secundaria em relagio as articulagdes nucleares. © mesmo corre com a oposicio destinador vs destinatério (nomes de objetos com (nomes de objetos sobre ‘os quais se golpeia) 0s quais se golpeia) Observacdo: Contentemo-nos com assinalar esta iltima ‘oposicao observando que ela jé esclarece um pouco 0 pro- 85 blema tratado longamente por G. Durand, em continuacio as classificagdes de Leroi-Gourhan, e relativo & denominagio dos instrumentos que “prolongam” os gestos. ‘As pesquisas de P. Guiraud nos parecem importantes por diversas raz6es. Primeiramente, porque levaram seu autor, que enquanto promotor dos métodos estatisticos, estava, no entanto, habituado a manipular as unidades lexemiticas, a efetuar uma andlise sémica bastante rigorosa. Em segundo lugar, porque elas mostram bem que os estudos etimolégicos se acomodam_perfei- tamente a esse tipo de andlise, que pode mesmo facilité-los. E finalmente — aliés, € a isso que o exemplo devia servir — a concomitincia observada entre as variagSes da matriz fonoldgica e as dos elementos semiolégicos, de um lado, e a auséncia de uma outra concomitancia quando se trata de variagoes classemé- ticas, de outro, nos permitem entrever o tracado que separa os semas nucleares dos classemas, 0 nivel semiolégico do nivel se- mntico da linguagem. Go: Seria fora de propésito levantar aqui 0 pro- blema das origens da linguagem. Notamos, entretanto, que 0 reconhecimento das variagGes concomitantes dos modelos fono- Idgico e semiolégico traz elementos novos as discussio con- siderada até agora inatual. ¢) © semiolégico e 0 bio-anagégico. Todas essas variagSes nfo impedem a persisténcia de um duplo niicleo: fonolégico, sob a forma do esquema consonantico (t-k), e semiolégico, com 0 “proto-semantismo” de frapper. Esse nticleo sémico, que Littré define em seu verbete sobre tic, como “movimento convulsivo”, aparece muito claramente como uma articulagio do termo complexo, que manifesta, segundo as idades e 0s dialetos do francés, um dos dois semas da oposicio contato agressivo vs reacio convulsiva. Sem levar em consideragio as combinaghes sAmicas ulteriores, poderlamos facilmente pretender que tal figura represente a arti- 86 culagio da significacdo, conotando os comportamentos mal diferen- ciados, situados ao nivel biolégico — o estimulo exterior e a reacdo da célula viva — e nao, como o desejaria G. Durand, a0 nivel onto- génico do ser humano. (Os sememas tache, macule, croiite, com todo acompanhamento de teigne (tinge), rogne (sana), gale (sar- na), ¢ lépre (lepra), se explicam provavelmente, nesse nivel, pela reagio da superficie atingida.) O fato de postular nesse nivel um significado global — como o propée, por exemplo, Roland Barthes, para quem 0 “estilo” individual nao seria sendo “a voz decorativa da carne” — a fim de dar conta da articulagio semio- légica da personalidade humana e de conceber esta como “um sistema de atracdes ¢ repulstes” organicas, parece-nos certamente mais legitimo do que classificar o ‘simbolismo segundo hipotéticas dominantes reflexas. Tal interpretacio entretanto, se é valida simbolicamente, isto &, na medida em que 0 nivel biolégico é postulado como signifi- cado profundo, nio 0 & semiologicamente: com efeito, a exis- téncia dos sememas do tipo plaquette mostra que a figura sémica, para poder produzir, pela combinacio com os classemas apropria- dos, 0 semema plaquette (plaqueta), nao deve compreender o 1a “‘matéria orginica” e que a oposicéo “orginica” vs “inorga- nica” (cf. “animado” vs “inanimado”) se situa fora do nfvel sémico, talvez mesmo fora do nivel semiolégico. Somos forgados portanto fa abstrair, de certa forma, a figura nuclear de seu meio organico e de consideré-la como uma percep¢ao pura, como uma categoria sémica que faz parte da articulacdo sistemitica da tactilidade, ho sentido nao antropocéntrico dessa palavra, da mesma forma que remetemos 0 miicleo sémico téte & articulacio da espacia- lidade. ‘Assim, parece-nos que o modo de existéncia do nivel semio- légico se encontra um pouco mais preciso: € um conjunto de categorias e de sistemas sémicos situados e apreensiveis ao nivel da percepcio, compardveis, em suma, a essas percepcées visuais esquematizadas dos pissaros evocadas por Raymond Ruyer, @ que permitem-lhes reconhecer seus inimigos segundo as opo- sigdes: pescoco longo /cauda curta vs pescoco curto / cauda longa. Situados no proceso da percep¢ao, as categorias semiolégicas representam, por assim dizer, sua face externa, a contribuigio do 87 mundo exterior ao nascimento do sentido. Consideradas sob esse Angulo, elas parecem isomérficas As qualidades do mundo sensivel e compardveis, por exemplo, aos morfo-fonemas de que se compie a linguagem gestual. O que, aliés, nada tem de espantoso, se se lembrar que tentamos conceber uma semantica independente da segunda articulacéo do significante. Seja como for, isso nos parece suficiente para justificar a denominagéo de semioldégico que atri- buimos a esse nivel da linguagem. 3° POSSIBILIDADES DA DESCRIGAO SEMIOLOGICA 2) Construgao de linguagens om lingiiistica aplicada. A anilise sémica do nivel semiolgico da linguagem surge como a primeira tarefa da semdntica estrutural. Uma vez em- preendida por ela mesma, nio somente permitiria melhor com- preensio do. funcionamento das diferentes simbolismos ineren- tes a toda lingua natural, como prestaria grandes servicos as diferentes operagdes da lingiiistica aplicada, & tradugdo automatica, 4s voltas com dificuldades enormes na medida em que se propée aintiogir; com’ grande fidelidade, a construglo de linguagens documentais também, tornando mais fécil a delimitagao das uni- dades constitutivas da linguagem e fazendo apreender melhor os modos de sua imbricacdo. Isso porque esses diversos dominios nao so tao distantes como pode parecer & primeira vista; a ordem de urgéncia em suas des- crigdes, infelizmente muito fragmentadas, é também a mesma em todas as areas. Se nossas reflexdes sobre o nivel semiolégico da linguagem aparecem, & primeira vista, centradas em problemas do simbolismo, basta dar uma olhada nas preocupagées atuais em matéria de traducdo mecanica para percebermos que os esfor- G03, que, nesse dom{nio, tendem a sair do impasse em que se viu cercada por ter escolhido, de saida, o nivel lexematico do discurso, desembocam freqiientemente nas mesmas conclusées. A nova dire- do que um pesquisador to cauteloso como B. Pottier deseja im- primir & traducao automatica é sintomatica sob esse ponto de vista. O mesmo ocorre com a tentativa de Ross Quillian, que propde des- crever-se 0 universo semAntico traduzindo-o numa linguagem intei- ramente construida, cujos elementos, constitutivos das escalas de graduacao, parecem muitissimo com os nossos semas. Podemos ter uma idéia deles referindo-nos ao resumo de sua teoria, contido no Semantic Problems in Language, que sintetiza o coliquio seman- tico de Cambridge em 1961, e caracteristico do estado de espirito que domina, desde bem pouco tempo, os meios lingiiisticos inte- ressados nos problemas da traducao mecfnica. Num quadro (p. 196) que indica, a titulo exploratério, as dimensées provaveis dessa linguagem, vamos encontrar, a0 lado das sensa¢Ses proprioceptivas € interoceptivas, sobre as quais Quillian nfo ousa pronunciar-se ainda, e para as quais reserva uns 25 semas para construir ulterior- mente, uma lista de escalas extroceptivas, que reproduzimos fiel: mente: a) The Five Abstract Scales: “Number” (the real number continuun), “Correlation” (in the statistical sense), “Mé tion of whole-to-part or whole-to-aspect), “Similarit tive” (in the mathematical sense); b) Visual Scales: hue, brightness, saturation; ¢) Temporal Scales: time, length (with subscripts); d) Degree of Existence, degree of awareness; e) Auditory Scales: pitch, loudness; f) Gustatory Scales: sweetness, souriness, saltiness and bit- terness: g) Olfactory Scales: not yet determined h) Cutaneous Scales: not yet determined | say, 25 max. Observagao: Esta classificago, que nem tentamos traduzir i que cada termo, extraido de seu contexto, parece am- biguo e admite interpretacées miltiplas —, nio nos interessa por suas articulagdes, mas unicamente pelas razGes que o fizeram propor. E um exemplo revelador de um estado de espirito que domina implicitamente as pesquisas seminticas. Tal enumeragio mostra jd as grandes linhas do projeto: ex- ceto por a) que comporta confusamente quase toda a axiomé- tica da anilise lingiifstica, e de d) que confessamos nio entender muito bem, a descricao semAntica, tal como a concebe Ross Quillian, parece consistir, na sua primeira discussio, num quadro aprioris- tico da totalidade de lexemas dentro de uma escala de cardter 89 perceptivo; esta primeira inscricko deverd em seguida ser comple- tada por sobredeterminagSes pertencentes &s ordens de sensacbes “proprioceptivas” e “interoceptivas”, sem que o niimero de elemen- tos utilizados pela descri¢fo em seu conjunto venha a ultrapassar — segundo o autor — uma centena, E igualmente no ntimero de 100 classificadores seménticos — alusio nostélgica, provavelmente, ao niimero reduzido dos elemen- tos quimicos — que se detém Margaret Masterman (ibid. pp. 6-14) para a construgio de sua interlingua: seus classificadores nio sio, entretanto, unidades de significacdo minimas (eis algumas delas, escolhidas ao acaso: air, cold, give, laugh, one, sign, went, body, eat, how, more, re-, yes, you, etc.), e se mencionamos aqui esta outra ten- tativa, é, de um lado, para assinalar a conviccio intima de muitos lingitistas de que o niimero de unidades de descricao semintica € ou deve ser muito limitado, e, por outro lado, sublinhar o perigo de arbitrariedade ao qual nos expomos quando aceitamos um pouco exageradamente ao pé da letra a legitimidade da construgdo aprio- ristica da linguagem descritiva. b) Niveis de generalidade. Para nés, 0 fato de admitir que qualquer descrigio é constru- ‘cdo, € seguramente, em primeiro lugar, o reconhecimento de uma necessidade; mas a descrico comporta também a exigéncia de cer- ta ética cientifica. Assim como existe o uso correto da liberdade, a utilizagdo da construgio aprioristica nfo deve também ser arbitra- ria: a dimensio lingiilstica de nossa existéncia é uma realidade social, e sua descricio nio deve visar sendo a construir uma lin- guagem adequada A lingua natural que se deve descrever. Em ‘outras palavras, a liberdade adequada & lingua natural acha-se limitada pela existéncia das separacies diferenciadoras do signi eante que qualquer descricéo deve levar em consideracio, uti procedimentos de cardter indutivo — testes de comutacio, anilises de distribuigdes —, seja antes da construcio sistematizante, seja numa fase de verificacdo que sucede necessariamente & des- crigio légica. ‘Um exemplo permitira precisar melhor nosso pensamento. Sejam dois lexemas: donner “dar” e prendre “tomar”, para os quais pro- 90 pusemos niicleos sémicos que parecem poder ser formulados como ‘uma-oposigao: expansio vs expansio + contragio. Nessa fase da anélise, enquanto o inventério permanece limita- do a dois lexemas, no temos nenhuma razio em considerar que “contragio” nao sejam semas, isto é, unidades minimas Se em compensagio quiséssemos dilatar esse inven- io introduzindo af o lexema tenir (segurar, reter), iriamos per- ceber que: 1. © sema “contracio”, que parece caracterizar_ao mesmo tempo os niicleos de prendre e tenir, deve ser completado por uma outta oposigao sémica: prendre contragio ++ incoatividade tenir ~ contracio + duratividade 2. © sema “contrago” parece manifestar-se, no primei aso, sob seu aspecto dindmico, no segundo, sob 0 aspecto esté- tico. Portanto, “contragio” pode decompor-se ainda em clois semas: “solide” (“dindmico” vs “estitico”), e a oposigio dos niicleos sémi- e0s de prendre e de tenir apareceré como prendre (expansio) + solidez + dindmico + incoatividade tenir solidez + estdtico + duratividade Mesmo chegando a esse estagio, ainda no estamos seguros de "que nossa anilise tenha atingido o nivel das unidades minimas de significacio, nem que ela seja correta (“dinimico” e “incoativo” nio _ so, nesse caso, redundantes?): uma nova ampliagio do inventério ndo nos obriga a novos reajustes? Esta anillise, que deixamos suspensa, parece precisar o lugar que é preciso atribuir & construcio légica na descrigao semintica: na medida em que esta parte de uma dada lingua natural e opera ¢om inventérios limitados, seu papel consiste em aprofundar a and- "lise generalizando-a. Do mesmo modo, 0 que é valido quando da dilatacdo do inventério, on da comparagio de varios inventdrios dentro de uma sé lingua analisada, o € mais ainda quando se 91 trata de proceder — como & 0 caso para a traduco ou documenta- cao mecinica — a descrigao paralela de varias linguas naturais vi- sando A constituigio de uma linguagem intermedidria. obedece, pois, a dois princfpios simultaneamente presentes e contraditérios: é indutiva em seu desejo de dar conta fielmente da realidade por ela descrita; é dedutiva em virtude da necessidade de manter a coeréncia do modelo em construgao e de atingir & generalidade, coextensiva do corpus submetido a des- cricio. Tal concepgio do procedimento descritivo, fundamen- tada sobre a busca do compromisso, seria desencorajante se ndo fosse ela o tributo natural de toda descrigao cientifica. ©) © procedimento cientifico. A ambigio de descrever o nivel semiolégico no seu con- junto, per mais excessiva que pareca A primeira vista, se situa entretanto na escala humana. Qualquer que seja 0 corpus que se escolha para esse caso — 0 Trésor de ta langue frungaise ou ‘© Dictionnaire de Littré —, os resultados deveriam, em principio, ‘aparecer sob a forma de um niimero limitado de semas. Nao vamos esquecer que toda construgéo da linguagem, na medida em que, dilatando 0 corpus a ser descrito, aprofunda e faz descobrir unidades de significacio sempre cada vez menores, diminui 20 mesmo tempo, pela maior generalidade atingida, o numero destas. ‘Os procedimentos da descri¢ao sero estudados & parte, num capitulo que Ihes seré consagrado. Bastard notar doravante que a descrigio, para passar das figuras aos sistemas sémicos e, dai, is ordens semiolégicas, deve tomar de empréstimo os procedi- mentos prdprios a qualquer anélise e constituidos pelas etapas sucessivas de inventirio, redugio e estruturacao. ISOTOPIA DO DISCURSO 1° HETEROGENEIDADE DO DISCURSO @) Isotopia da mensagem. Para melhor situar os problemas relativos ao nivel i do contetido, é necessdrio retornar & manifestacdo da sigilcagis af procurar as condicées estruturais da funcionamento do dis- curso. Este contém, efetivamente, no momento em que se tenta pee elementos aparentemente contraditérios. Nao nos € possivel aceitar uma explicagio que dé conta organizacio das mensagens, cuja seqiiéncia constitul o Seen pelo poder predicativo do espirito humano ou, sob uma formula. cdo talvez mais moderna, pela intencionalidade do locutor; isso nio tanto por receio do’ mentalismo, mas simplesmente porque tal interpretagao se situa ao nivel da emissio de mensagens € milo de sua recepcéo ou de sua transmissio. Desse tiltimo ponto de vista, o discurso nos parece, em seu desenvolvimento e apesar de seu cardter linear, como uma sucessio de determinagées, e, por isso, criador de uma hierarquia sintatica. a ‘Como, a partir dai, explicar o fato de um conjunto hierdrqui das significasces produzit uma mensagem ‘sotopiea? "De Tato, uma coisa & certa: quer comecemos a anilise do discurso pelo alto, isto é, partindo de uma lexia, definida como uma unidade "de: sentido, quer empreendamos 0 agenciamento das unidades sintéticas maiores a partir das unidades constitutivas mini mstitutivas mfnimas, problema da unidade da mensagem, indiscutivelmente apreendido “am ae todo de significagio, se coloca inevitavelmente. lingiiistica dinamarquesa obs bem o " ervou bem o problema ao Propor fundamentar a isotopia da mensagem na redundancia das 93 categorias morfoldgicas. Efetivamente, as unidades sintdticas, que so de natureza hierdrquica, servem ao mesmo tempo de quadros dentro dos quais se situam as iteracSes das estruturas morfolé- gicas: homoelementares, elas definem, por sua repeticao, o que chamamos tradicionalmente concorddncia; homocategéricas, elas dao conta da receao. Tal redundincia gramatical pode jé servir de modelo para compreender a isotopia semintica da mensagem. & necessirio ndo esquecer entretanto que as categorias morfoldgicas nao cons- tituem, do ponto de vista do plano do conteido, sen’o um agru- pamento limitado de classemas, e que, por outro lado, mesmo se, numa certa medida, so constitutivas da isotopia de mensa- gens sintaticamente delimitadas, tais categorias no sio suficientes para dar conta nem da isotopia, nem das variages isotépicas das grandes unidades estilisticas do discurso, nem do discurso em sua totalidade. E, pois, recorrendo as categorias classemiticas, quaisquer que sejam elas — e nfo necessariamente As categorias morfolégicas —, € considerando, inicialmente, essas variagies das isotopias que nao se encontram fechadas nas fronteiras sintdticas, que estaremos em condigdes de avaliar as dificuldades que encon- tramos e as soluces que podemos considerar para dar conta da existéncia das isotopias amplas. Bem curiosamente, é ao dominio das frases de espirito, a esse género literario que alardeia voluntariamente os procedimentos lin- fsticos que utiliza, que acreditamos ser util tomar os exemplos de variages e de permanéncias isotdpicas. b) Varlagées das isotopias. Tomemos uma “histéria” das mais comuns: *Cest une brillante soirée mondaine, trds chic, avec des invi- tés triés sur le volet. A un moment, deux convives vont prendre un peu Cair sur la terrasse: — Ah! fait l'un d'un ton satisfait, belle soirée, hein? Repas mag- nifique... et puis jolies toilettes, hein? — Ga, dit autre, je n'en sais rien. — Comment ga? = Non, je n'y suis pas allé!” (Point de vue, 23 fév. 1962.) 4 “f uma brilhante noitada mundana, muito chique, com con- vidados selecionadissimos. Num dado momento, dois convivas vio tomar um pouco de ar no terra — Ab! diz um deles em tom satisfeito, que bela noitada, hein? Jantar magnifico... e, depois, belas “toilettes”, heim? — Isso no posso saber. — Como assim? — Nao fui 14.” A histéria, como milhares de outras do mesmo género, possui um certo mimero de tragos formais constantes: 1. Ela comporta obrigatoriamente duas partes: a narrativa- -apresentacéo e a dialogacao; 2. A apresentacdo prepara a histéria: € uma breve narra- ho, que estabelece um plano’ de significagéo homogéneo, uma primeira isotopia; 8. O didlogo & 0 procedimento que dramatiza a histéria e rompe sua unidade, opondo bruscamente A primeira uma segunda isotopia; 4, As duas isotopias esto ligadas entre si pelo termo conec- tor comum. Nos casos mais simples (jogos de palavras, palavras ambiguas, etc,), a identidade, ou mesmo a simples semelhanca do formante, basta para conectar as duas isotopias (no ha necessidade de perguntar se o formante “toilletes”, que recobre dois sememas di- ferentes, possui uma figura sémica comum ou nao); 5. O prazer “espirituoso” reside na descoberta de duas iso- topias diferentes dentro de uma narrativa supostamente homogénea. Vemos, conseqiientemente, que a anedota, considerada como género literdrio, eleva ao nivel da consciéncia as variagées das isotopias do discurso, variagdes que se finge camuflar, ao mesmo tempo, pela presenca do termo conector. Um outro critério, a escola dos atuantes que participam dessas comédias miniaturizadas constitui o procedimento comple- mentar que sublinha a heterogeneidade das isotopias que confron- tamos. De fato, uma primeira classificacio superficial mostra a preferéncia das anedotas pelas oposicées do tipo: adultos vs criancas majoritérios vs minoritérios normais vs loucos humanos vs animais ou coisas, etc. A confrontagéo das duas isotopias coloca em oposicio, nesse caso, no mais apenas duas seqiiéncias que possuem cada uma um cariter isotdpico: essas facgdes do discurso so consideradas, do ponto de vista de seu contetido, como representativas de men- talidades heterogéneas. Vemos que a descrigao do contetido dessas thistérias" poderia constituir uma tipologia das representacdes cole- tivas das classes sociais. Mas isso jé 6 outra histori c) Dimensées dos contextos isotépicos. uso fregiiente que fazem as anedotas das narrativas-apresen- tages mostra j& a necessidade que tem o narrador de acalmar seu. auditério, estabelecendo solidamente 0 plano isotépico do discurso, colocando inicialmente 0 contexto mais amplo, dentro do qual pode introduzir, em seguida, uma nova isotopia. O fato que as pessoas sérias sabem sempre, ou eréem saber, do que falam; a conversacio espirituosa é, a0 contrétio, caracterizada pela ttilizagéo paralela e sucessiva de varias isotopias a0 mesmo tempo. Vemos, pois, que 0 problema da separacio das isotopias e do reconhecimento das dimensdes dos contextos isotépicos é importante; ele constitui uma das dificuldades ainda nao resolvidas no dominio da tradugio mecinica. Isso porque, se a isotopia de contextos tais como: Le chien aboie (0 eo ladra) Le commissaire aboie (o comissério ladra) pode ser garantida no quadro de um enunciado elementar, nio podemos dizer 0 mesmo d Le chien du commissaire aboie (0 cXo do comissirio ladra), j& que a seqiiéncia-enunciado pode manifestar tanto o classema ‘animal” quanto o classema “humano”; somente um contexto mais amplo poderé decidir se se trata, na ocorréncia dada, do cio ou do comissério. ‘A andlise semantica, procutando critérios discriminatérios, com vistas ao estabelecimento das isotopias, acha-se forcada a utili- zat 0 conceito de hierarquia dos contextos que se imbricam uns nos ‘outros. Assim, o sintagma, que retine ao menos duas figuras sémi- cas pode ser considerado como 0 contexto minimo que permite estabelecer uma isotopia; o enunciado permite testar a isotopia dos sintagmas que o constituem; este, por sua vez, deverd ser inserido na frase. A descrigdo se acha, até ai, privilegiada pela existéncia de unidades sintéticas com dimensdes conhecidas, compardveis e comu- taveis. A dificuldade aumenta, em compensacéo, quando ultrapas- samos as dimensGes da frase. Existem, certamente, tentativas de defi- nigao das unidades ndo sintéticas do discurso mais amplas que a frase: 0s pardgrafos, as “‘passagens” (narrativas, quadros, didlo- gos, etc.), capitulos enfim. Mas os procedimentos de comutacao nfo podem mais ser empregados af com rigor, e os critérios for- mais que possamos descobrir sdo inteiramente insuficientes. Visto que essas unidades nfo sintiticas ndo deixam de ser unidades do contetido, temos direito de perguntar se a investigacio semintica no pode trazer outros elementos de apreciagio que permitam 0 reconhecimento de continuidades isotdpicas. 2.° FUNCIONAMENTO METALINGUISTICO DO DISCURSO @) Expansio e definicao. ‘A lingiifstica moderna conheceu novas diregées a partir do momento em que conseguiu reconhecer e integrar no corpo de seus conceitos instrumentais um dos aspectos importantes do fun- cionamento das Iinguas naturais: a expansdo. Pouco import: alids, o nome que se dé a esse fendmeno: ele se resume na consta- tacdo de que 0 discurso, concebido como uma hierarquia de uni dades de comunicacio que se encaixam umas nas outras, contém ‘em si mesmo a negacao dessa hierarquia, pelo fato de as unidades de comunicagéo de dimensdes diferentes poderem ao mesmo tempo ser reconhecidas como equivalentes. principio de equivaléncia de unidades desiguais, quando utilizado na comparacio das linguas naturais entre si (notadamente na traducio automética, onde o inglés potato corresponde a pomme de terre, “batata”), faz ressaltar 0 carter idiomAtico de cada uma elas; quando aplicado. aos fatos situades dentro de uma lingua, evidencia o aspecto metalingiifstico do funcionamento do discurso, oT que parece, por coriseguinte, ser nio menos importante que 0 seu aspecto propriamente lingiiistico. Expresso de maneira ingénua, esse principio quer simplesmente dizer que uma coisa pode ser apresentada tanto de modo simples, como de modo complicado; que uma palavra simples pode ser explicada por uma seqiiéncia mais ampla, e que, inversamente, uma s6 palavra pode ser freqiien- temente tomada para designar 0 que se concebeu sob uma forma desenvolvida., A expansio nao é, pois, esta propriedade sintética do discurso que permite a adjuncao de determinacées sucessiv: gragas aos termos manifestados uns apés outros: isso & proprio do funcionamento normal do discurso. Ela sé ganha toda sua sig- nificacdo quando uma seqiiéncia em expansio é reconhecida como © equivalente de uma unidade de comunicasio sintaticamente mais simples que ela. £ essa equivaléncia teoricamente sempre possivel — embora nao se manifeste sempre lexicalmente — que constitui o desvio estrutural definidor do funcionamento metalin- gitistico do discurso. & assim que a expansdo, se nos calacamas do ponto de vista geral nao mais lingiiistico, mas unicamente seméntico, encontra sua expressio, na medida em que est circunscrita no quadro das uni dades sintéticas que nao ultrapassam os limites da frase, na definigao latu sensu dessa palavra, no que poderiamos talvez chamar, para itar qualquer equivoco. a defini¢ao discursiva. De fato, a lexi- cografia consiste, de modo geral, em procurar-substituir por um Jexema catalisador, uma ou varias seqiiéncias — segundo o niimero de sememas por ele recobertos —, seqiiéncias essas equivalentes, mas sintaticamente mais amplas que o lexema que se quer defini Assim, qualquer diciondrio fornece intimeros exemplos do funciona- mento desses sistemas de equivaléncias: “entamer avec les dents” “toucher (2 une chose intacte) en lui portant la premiére atteinte” foucher+ ~ “entrer en contact avec quelqu'un ou quelque chose”; ete. mordre entamer (Dictionnaire Général), correspondentes mais ou menos aos verbetes em portugués: morder =’ “‘comprimir ou apertar com os dentes; ferir com os dentes” comprimir ~ “reduzir a menor volum apertar. ~~ “comprimir; estreitar” (Pequeno Dicionério da Lingua Portuguesa). + apertar” Vemos que as seqiiéncias definidoras sio: 1. Sintagmas em expansio tendo a mesma fungio sintética que 0 termo a ser definido (aqui: sintagmas com uso predicativo previstvel). 2, Seqiiéncias que so geralmente compostas de um primeiro termo, que situa a equivaléncia, e de um segundo, que determina © primeiro. A definigao discursiva se aproxima assim, sem entretanto se identificar com ela, da definigéo légica, que se faz, como sabemos, per genus proximum et differentiam specificam. Sé que, ao invés de ser limitativa e univoca como esta ultima, ela é livre e aproxi- mativa. Nao estabelece identidade entre os segmentos situados nos dois planos lingifsticos, mas sim uma equivaléncia proviséria, as vezes até efémera, fundada na existéncia de um ou varios semas comuns aos dois segmentos justapostos. Observacao: O conceito de equivaléncia, geralmente utili- zado — alids de maneira mais ou menos’ implicita — em Lingiifstica, no é quase nunca definido. Essa definicio de- pende do nivel da metalinguagem epistemolégica: nfo nos ‘propomos aqui senfo levantar seus primeiros elementos. Se a definicao lexicogréfica parece ainda relativamente préxi- ‘ma da definigio légica, cuja formulagio ela imita quase sempre, a definigdo das palavras cruzadas, em compensacio, pode nos dar uma visio mais exata do funcionamento “normal” de um lingua natural. Um problema de palavras cruzadas dos mais vulgares, escolhido no France-Soir, nos prope ao acaso as seguin- tes definigdes; Compétition “competico” =“prova esportiva’ Tanitre “toca, covil” = “habitacao miserével” Ballet “balé” =“danga figurativa” Désir % “desej “vontade nem sempre satisfeita” = “mar” “extensio de Agua”. Vemos que a seqiiéncia em expansio, que se pretende equi- valente do semema que ela define, nio esgota jamais 0 inventério sémico deste, mesmo que comporte um certo mimero de semas ‘em comum com ele, b) Condensagéo © denominasao. ‘Ao falar das palavras cruzadas, invertemos voluntariamente os termos: de fato, se o lexicégrafo-cruciverbista que prepara as palavras cruzadas parte de um semema dado e lhe procura uma definicéo, o problema, tal como se apresenta a0 leitor (isto 6, ao nivel da recepcio) € composto de um corpus de definicdes a ‘partir das quais tem-se que achar os termos definidos. Em outras palavras, se reconhecemos na expansio um dos modos do funcio- namento metalingiiistico do discurso, ela tem como corolirio a condensacao, que deve ser compreendida como uma espécie de decodificacéo compressiva das mensagens em expansio. “Se bem entendi, voce queria dizer que...”; & assim que o interlocutor condensard sempre uma exposicio mais longa. Também, da mesma forma que a expansio possui uma formulagio sintaticamente deli- que & a definigio (e cujos prolongamentos légico-cient 0s sio considerdveis), assim também o esforco de condensacio desemboca muito freqiientemente na denominacao. Basta ouvir 03 didlogos quotidianos numa loja especializada, como uma de ferragens por exemplo, para aprender ao natural o procedimento da denominagio; as definigées livres do comprador que busca: un machin pour (um negécio para...) une sorte de (uma espécie de...) une chose dont on se sert (uma coisa que se usa para. une espéce de truc qui (uma espécie de trem que...) ‘un bidule (um troco), ete, correspondem As denominagSes, bs vezes adequadas, as veves so- mente exploratérias, do yendedor. 100 Esse funcionamento metalingiifstico de um discurso que gira perpetuamente em torno de si mesmo, passando sucessivamente de um nivel a outro, faz pensar no movimento oscilatério entre a ‘expansio e a condensacao, a definicio e a denominagio. Num sis- tema lingiifstico inteiramente fechado (onde, além’ de tudo, os lexemas se identificariam com os sememas, e um gato se chamaria sempre um gato), esse jogo metalingiiistico seria desigual, desequi- librado: de fato, se o sistema é definido pelo niimero N de termos que 0 constituem, as possibilidades combinatérias da definicao, por pouco elevado que seja o mimero dado de termos, seriam con- siderdveis, a0 passo que a operacdo inversa — a denominacio — levaria as definigdes sempre aos mesmos termos. E assim, alids, que concebemos freqiientemente, segundo a tradigao_pseudo-saus- suriana, a liberdade da fala, por oposicio & limitagio da lingua. Esta tltima, entretanto, nao é um sistema fechado, e a denomi- nac&o bem como a definigdo se exercem af a todo instante e gra- as a diversos e numerosos procedimentos. Nio € este o lugar adequado para tentar uma descri¢ao desses procedimentos, nem de apresentar o resumo de um “Tratado da formacdo (ou da transformacio) das palavras” que entretanto deve ser completamente refeito sobre novas bases. Isso porque uma andlise da denominagio nao depende unicamente, como se cré muitas vezes, da lingiiistica diacrdnica — o que explica talvez 0 abandono telativo das pesquisas nesse dominio — mas, também, e sobretudo, do funcionamento da lingua em sincronia. Para ter-se uma visio da amplitude do fenémeno, bastard indicar suas principais formas. 1. Alguns desses procedimentos so facilmente reconhectveis, pois que sio formais e funcionais; em outras palavras, porque ser- vem essencialmente & denominacio. a) Assim ocorre com a derivado, que constitui, em boa parte, um sistema de classificaco e, a0 mesmo tempo, os quadros da denominacdo simples. & assim, por exemplo, que se elabora em francés, no século XVIII, todo um léxico de atividades tecnolégicas: a partir tanto do nome de um instrumento, como do da matéria trabalhada, o sistema denominativo oferece os quadros vazios proprios para designar o produtor, a atividade produtora, 0 pro- ‘cess0, 6, enfim, o lugar de producao. J. Dubois, numa obra recente, observou bem'o problema, ¢ qualquer insisténcia de nossa parte seria redundante, 101 b)_O mesmo ocorre com a utilizacio acidental do empréstimo, mas sobretudo do procedimento que funciona universalmente e sem interrupedo, e que consiste na utilizagdo de elementos lexe- miticos pertencentes ao patrimOnio greco-latino, comum a todas as comunidades lingiifsticas da civilizacao ocidental: as possibili- dades sémicas relativamente simples que oferecem esses elementos, estabilizados pelas definicées univocas das linguagens cientificas, sio intensamente exploradas para a composi¢ao dos sememas deno- minadores, constitutivos das terminologias cientificas modernas. As dificuldades em aprender e determinar a passagem da com- posigéo A derivacdo, que foram estudadas por J. Dubois, se expli- cam pela simplicidade relativa do contetido sémico das raizes componentes que as aproxima dos derivativos. 2. Um procedimento particular se situa a meio termo entre denominagées que utilizam os formantes discretos, que acabamos de indicar, e aquelas que nao recorrem a tais formantes: trat do procedimento de identificacao da definicao com a denominacio, ‘ou melhor, da consideracao da definicao pelo plano denominativo da linguagem. Os exemplos desses procedimentos sio numerosos: se planalto, ferro velho, dcido acético apresentam diferentes graus de amél- gama sintagmitico, eles se interpretam todos da mesma forma. De fato, quer seja pela expansfo da figura nuclear que retine dois ‘ou varios nticleos sémicos em um sé, ou pelo enquadramento clas- semitico nico que é acompanhado pela suspensio de um certo ntimero de semas (a denominacdo em relacdo A definico é sempre um empobrecimento sémico), a definicio discursiva se transforma em denominacio e exige, por sua vez, uma nova definigio. 8. Mas os procedimentos que nos interessam mais particul: mente sio aqueles que, utilizando 0 corpo lexemitico existente — € entretanto nao sistematizado ao nivel gramatical, como 0 sio os derivados —, produzem novas unidades de comunicagao de cariter denominativo. a) O primeiro desses procedimentos poderia ser designado como denominardo figurativa. Vimos, de fato, que uma figura nuclear — como 0 nécleo sémico de téte, por exemplo — funcionava na lingua francesa como um modelo sémico denominativo de cardter geral e recobria, enquanto protétipo, uma classe de deri- vagio aberta; téte d'un clou (cabeca de um prego), d'une épingle 102 (de um alfinete), d'un mat (de um mastro), d'un compas (de um compasso), d'un’ marteau (de um martelo), téte de pavot (dor- mideira), d'artichaut (de alcachofra), d’oignon (de cebola), etc. Vemos que a figura nuclear funciona af como um verdadeiro derivativo que ela $6 se distingue deste, A primeira vista, pelo comportamento sintitico de seu formante. Olhando um pouco mais de perto, percebemos, entretanto, que ela se distingue dele também do ponto de vista’de sua composicdo sémica: se o deri- ivo gramatical € formado, em principio, de classemas, 0 deri- vativo de cariter figurative é um modelo sémico que depende. do nivel semiolégico do conteiido. P. Guiraud, em suas pesquisas sobre os campos morfo-semdn- ticos, que surgem assim como preliminares de um inventério desses modelos figuratives, propés um-bom nimero de exemplos para apoiar essa concepcao das classes semiolégicas de derivacio. Nao vamos nos deter, portanto, nesta questo. Lb) Se a denominasto figurativa pode ser comparada & deri- vacéo, um outro procedimento, que consiste na transferéncia de uma seqiiéncia do discurso, responsdvel por todas suas caracteris- ticas nucleares e classematicas, de uma isotopia a outra, e isso diante da denominacio, lembra, em compensacéo, 0 procedi- mento de empréstimo. ) Denominagéo translativa. Na lista dos exemplos de definigao de palavras cruzadas que demos anteriormente, omitimos voluntariamente um: & definigio grain de chapelet (ao pé da letra, semente de rosério, isto é, figuradamente, “conta de rosdrio”) correspondia a resposta deno- minativa ave (“ave-maria"). B evidente que essa espécie de denominagio nio corresponde as condicées gerais que determinam a relagio de equivaléncia entre a denominacio e a definigio: ha equivaléncia entre grain (“grao”, objeto do mundo exterior) € ave (“ave-maria’, uma espécie de prece), tal como aparece, por exemplo em taniére ~ “habitacio” ou ballet = “danga”. Tal denominagao niio entra mais, do ponto de i mento formal, em nenhuma das classes denom mos de passar em revista. Somos forcados, pois, a coi como uma espécie de empréstimo interior, como a transferéneia de 103 ‘um segmento do discurso (lexema ou sintagma) de um dominio semfntico a outro relativamente distanclado. "As denominacées translativas — é assim que nos propomos a chamé-las — so entretanto muito numerosas. Basta retorar ao yerbete téte do diciondrio Littré para encontrar ai: téte de loup = téte de ture = “espécie de bigorna” téte de négre = . tee dtéte | = aos quais podemos acrescentar uns bons cingiienta nomes de plan- tas, moluscos, peixes, aves, do tipo: téte de coq téte d'éne téte de serpent ] tate d'araignée { téte d'ane téte de lidere téte de chien téte noire } nomes de plantas nomes de moluscos i nomes de peixes } nomes de serpentes, etc. * A designacio de denominagao translativa parece convir a esse tipo de procedimento na medida em que a pressuposigio légica (*). Vejase processo semelhante em portugués: cabesadecavalo: cano de madcira que leva dgua 20s cubos das rodas dos engenhos copeiros. caberade prego: ...pequeno abcesso, espinha ‘eabegade lobo: osso da parte dianteira dos animais. ou ainda: epee } omes de plantas ariel saee, } omes de aves aceicel nomes de peixes (N de T.) constitui aqui o primeiro elemento de sua explicagio: téte de ndgre como “parte do corpo humano” & com efeito anterior a téte de ndgre enquanto cor. Mas, por outro lado, a expressio denominacao semémica, por oposicio & denominacao figurativa, seria também adequada: 6 enquanto “parte do corpo humano”, isto é, enquanto sintagma constituido de dois nticleos sémicos (ou de uma s6 figura em expansio) e sobretudo da totalidade dos classemas tais como puderam ser depreendidos pela anélise contextual anterior, que téte de ndgre passou a ser utilizado para designar uma certa cor morena ou cinza —o que nfo é de maneira alguma o caso de téte de canal. Embora tendo ainda que precisar em que condicées téte de négre pode funcionar metalingiiisticamente, isto é, pode-se colocar como equivalente de uma certa cor, nfo h& divida de que, nos casos desse tipo, é no semema e nfo na figura que preciso situar o termo a quo do procedimento de transferéncia. Observacdo: Esta distingao entre denominagdes figuratioas © denominagSes translativas ajuda a esclarecer um problema que, embora secundério, nao deixa de inquietar os etimolo- gistas: se a denominacio figurativa vai do concreto para 0 abstrato, a denominacio translativa pode ser orientada no sentido oposto (cf. ave “prece” > ave, “conta de rosério”). Se, em vez de considerar o funcionamento metalingiiistico do discurso ao nivel da transmissio, adotarmos 0 ponto de vista da recepcio das mensagens e da anilise do texto transmitido, cons- tatamos que: 1. £0 novo contexto no qual se integra o seméma transferido que Ihe fornece seus novos classemas (C; s 2. O semema original, aquele que é invocado para servir de denominador, constitui, com seus semas nucleares e seus classemas, uma nova figura para 0 novo semema denominativo: (Ns + Cs) =Nis Conseqiientemente, 0 semema denominativo transferido, pode ser representado pela seguinte férmula: Sm (t) = (Ns + Cs) Gs Observacao: Nao é iniitil precisar que essa colocacio entre parénteses dos semas origindrios do semema transferido pro- 105 ‘voca perturbacSes importantes no dispositive: certos semas somente serio utilizados nessa funcio metalingiifstica; outros, ao contrério, sero “‘suspensos”. Mas sua suspensao nio sig- nifica seu desaparecimento: sem seu reaparecimento em certas condigSes determinadas, o funcionamento plurilinear do discurso seria incompreensivel. O iiltimo problema que se coloca, finalmente, é o da existéncia de dominios seménticos suficientemente autdnomos para justificar a nocdo de transferéncia que acabamos de utilizar. Sé uma re- flexdo mais aprofundada sobre a natureza e o papel dos classemas poderd esclarecer um pouco a questo. 4) A dupla fungio dos classemas. ‘Num dos capitulos precedentes, tentamos det pelo seu carter iterative ¢ por sua extensio mais ampla que a dos lexemas, dava conta da linearidade seman- tica, relativamente homogénea, do discurso. Nossa reflexio atual busca precisar um outro aspecto do discurso, sua “elasticidade” que, reconhecivel gragas As manifestagSes conjugadas da expansio e da condensacio, faz aparecer pouco @ pouco um novo papel atribuivel aos classemas: 0 de constituir 0 quadro da organizacio do universo semfntico. Vimos que, na medida em que dois seg- mentos do discurso, de extensio desigual, podem ser considerados um como a defini¢do, e outro como a denominacéo de uma s6 unidade de contetido, esse fato nao podia ser interpretado sendo pela existéncia em comum de varios semas idénticos. E. aqui que aparece uma nova fungio, classificatéria, de uma determinada espécie de semas. O exemplo que vamos escolher para evidenciar esta nova fun- ¢40 nos foi fornecido por A. Martin, que, sintetizando num recente coléquio as pesquisas do Centro de Nancy sobre os problemas da sinonimia, se serviu do campo sinonimico de fatigué (cansado, fatigado)' para ilustré-los. £ esse material — 0 lexema fatigué comporta em francés moderno uns cingiienta sindnimos, ou melhor, para-sinénimos — que vamos utilizar. ‘106 ) Anélise das denominagées figurativas. A primeira subclasse do inventério se apresentar& como o re- sultado de uma pré-anilise, referente, ao mesmo tempo, aos con- textos ¢ as figuras dos lexemas que a constituem: brisé rompu éreinté |, is échiné [romper roué esquinté anné “sacudir” lessivé “esfregar” broyé moulu eidé crevé pompé (cf. coup de pompe) épuisé “esvaziar” (0 que est cheio) &poumoné claqué (associado a0 rufdo de explosio) () freqiientativo “triturar” Tal inventério — e a subclasse que dele extraimos — sé pode set evidentemente aproximativo: por razées claras no plano pré- tico, mas que nio se justificam teoricamente, os limites desse Observesse, em portugués, que em relasio a “fatigado” temos, entre cre ogee poets = ‘arrebentado esborrackado } “romper” estourado moldo —' “tzirarar” sae } “esvanar” (N. de T.). 107 estudo nfo permitem proceder a cada momento a exemplificacées fundadas em andlises exaustivas. Para ser completo, o inventdrio deveria se apresentar como o resultado de um duplo procedimento analitico conduzido exaustivamente da seguinte forma: 1. De um lado, ele pressupse a anilise distribucional que permite consideré-lo como uma classe de lexemas comutiveis, si- tuzdos dentro de um contexto-invariante (ou eventualmente de varios contextos complementares). Essa andlise visa ao registro de um certo nimero de classemas que tomam poss{vel a consti- tuigao do semema, que é, como sabemos, resultado da combinacio dos semas recobertos pelo lexema com aquelas que extraimos do seu contexto. Assim, no caso preciso de fatigué, um contexto como: Aprds une journée de travail, je me sens... (apés um dia de trabalho, eu me sinto...) permite levantar os classemas que, sendo comuns & subclasse in- Yelra, sdo ao mesmo tempo Isotdpicos em relactio ao contexto: slo os classemas “animado” (vs “‘inanimado”) e “causado” (vs “causante”). A isotopia de “animado” é confirmada pela presenca redundante desse sema no sujeito je (eu) e em travail (trabalho); a de “causado”, pelo flexivo do participio passado e pela prepo- siglo aprés (apés). Observagao: Algumas dessas ocorréncias exigitiam prova- velmente uma anilise classematica mais aprofundada: assim, creoé (estourar, vazar) necesita da depreensio da oposi¢ao classemética “animal” vs “humano”. 2. Por outro lado, a extracio de uma subclasse do inventério pressupée uma anilise semiolégica dos nticleos de cada um dos lexemas tomados separadamente. Uma outra forma de anilise distribucional se encontra assim subentendida: consiste em consi- derar todos os contextos possiveis de cada lexema como varidveis e visa a extrair para cada um dos lexemas um nicleo invariante. E somente a comparacao dos nticleos assim obtidos que vai per- mitir constatar que as figuras nucleares possuem um ou varios semas em comum. Sao esses semas comuns, quase hipotéticos, que ‘acabamos de inscrever, a fim de ordend-los um pouco, 4 margem do inventério: “romper” e “esvaziar” parecem, assim, fazer parte 108 de um niimero relativamente elevado de figuras; outros niicleos parecem, ao contrario, caracterizados pela presenca comum de um sema relativamente secundério na economia da figura nuclear, 0 da ~“iteratividade”. Entretanto, um sema comuth a toda subslasse se depreende, apesar de tudo, embora sé o seja devido ao emprego inconsciente da forma verbal para designar os semas que queremos sublinhar: assim, todas as figuras inventariadas se apresentam sob seu aspecto dindmico e no estatico. Designamos, por prudéncia — j4 que nio sabemos muito bem qual é exatamente 0 sema que caracteriza a classe do verbo —, com o nome tradicional de processo esse cariter dinimico das figuras ) Andlise das denominasées translativas. Dispomos, assim, de um certo numero de classemas: processo + animado + causado, que vamos considerar, até prova em contrério, como constituindo ‘a base classemdtica comum a todas as ocorréncias do invent: Essa base classematica nos permite, efetivamente, introduzir e examinar novas subclasses do inventétio. Permite sobretudo compreender melhor 0 procedimento da denominacéo translativa. ‘Assim, uma nova parcela de ocorréncias: 2 plat (“estendido” ou “esticado”) sur Te flanc (“estirado” ou “acamado”) sur les genoux (‘de joelhos, “prostrado...”) sur les rotules, (“de joelhos”) (*) constitui uma subclasse de denominacées translativas somente se admitirmos que 0 dispositive de enquadramento classematico jd esta instalado, anteriormente ao procedimento da propria de- nominacio. ‘As formas citadas em francts nfo cortespondem (sobremdo ss duss pprimeirss), em termos classeméticos, & tradusio em portugues. Vejase a inexis- téncia nos’ exemplos em francés do. sufixo de participio passado. Um exemplo forrente no portugues que poderia ilustrar o problems levantado pelo autor feria a expressio (estar) de quatro” quando utilizada no sentido de “estar extenuado”.(N. de T.) 109 Observamos depois, por outro lado, 0 papel particular que desempenha, na constituicio dessa subelasse, 0 classema “cau- sado”; presente, no inventério precedente, sob a forma do flexivo do participio passado, isto & na sua manifestagio classemftica por exceléncia, ele surge aqui, ao contrério, como o denominador comum de todas as figuras nucleares secundérias da subclasse. Duas observagées, de cardter mais geral, decorrem dai: 1. A funcio particular assumida pelo classema “causado” esclarece até certo ponto a organizacio interna da base classemé- tica que acabamos de estabelecer. O classema “causado” é, de fato, 0 termo que pressupde esta base, cujo classema “processo” enquanto “‘causante” € 0 termo pressuposto: assim, as figuras nucleares invocadas para servir de denominadores e reunidas pelo classema “causado” pressupdem, efetivamente, 0 sema “processo” a0 qual corresponde, no nivel nuclear, uma figura sémica carac- terizada pelo sema “prostrar” (esté-se 2 plét ou sur les genoux somente apds um processo pressuposto de “‘prostracio”). 2. O papel desempenhado, nessa iiltima subclasse, pelo clas- sema “causado” nao & tio diferente daquele desempenhado pelo classema “processo” na primeira: ambos servem para classificar as figuras nucleares, introduzindo, assim, no dominio semiolégico 6s elementos de uma taxonomia. g) Anélise definicional. O inventétio “sinonimico” proposto por A. Martin comporta lexemas que dificilmente se submetem aos procedimentos de andlise propostos. Se a andlise contextual, que permite o registro dos classemas, parece fécil e apenas confirma os resultados j4 obtidos, a anilise semioligica e a explicacdo dos nticleos sémicos nio séo muito claras. E verdade que poderfamos considerar, com razio, como negligencidvel, a dimensio diacrénica e remontar a0 latim’ para procurar af a etimologia, reveladora do micleo sémico original de fatigare. Mas isto consistiria em afirmar, gratuitamente fe sem apoio em prova alguma, a permanéncia das figuras nuclea- res, que nos parecem histéricas e no acrdnicas, como o queria Jung e seus seguidores. Dois procedimentos sucossives podoriam scr considerados em casos desse tipo: 0 1, Na medida em que a descricio se preocupa unicamente com 0 estabelecimento da isotopia do discurso em vista de sua anilise semémica, a redugéo do inventirio pode ser obtida aceitando-se 0 procedimento lexicogrifico que substitui pelo enun- ciado das sinonimias a pesquisa das definigées, Assim, quando o Dictionnaire général brinca de esconde-esconde, propondo as defi- nigSes que se seguem: rendu ~ “fatigué, harassé", “fatigado, extenuado” fourbu ~ ‘harassé*, “extenuiado” recru = “harassé de fatigue”, etc., “extenuado de fadiga” estamos autorizados, no quadro da anilise tal como a delimitamos, a considerar que o inventério, de 5 lexemas, se acha reduzido a 2: fatigué harassé; 2. Para deserever uma subclasse assim reduzida, podemos propor um novo procedimento, que consistiré numa andlise das denominacées por suas definigdes. Um duplo resultado pode ser atingido dessa forma: a) Dada a equivaléncia da denominagio ¢ da definigio, caracterizada pela presenca de um certo niimero de semas comuns As duas formulagdes sintagmaticas, podemos admitir que a anélise das definicdes nos informard sobre a natureza dos semas (se nio de todos, pelo menos de um certo mimero deles) implicitamente contidos ‘na denominacao. Como, de outro lado, a composi¢io da base classemitica das duas espécies de ocorréncias ja nos é, em principio, conhecida, o interesse da anilise das definigdes consiste sobretudo nas possibilidades de desvendamento das figu- tas nucleares das denominacdes ndo motivadas, consideradas como “abstratas”, isto , desprovidas de contetido semioldgico; b) Tal exploragdo dos definidores nos permite — ¢ isso tem ecorréncias — dilatar o inventério e introduzit nele, segundo 0 prinefpio de equivaléncia, todas as definig&es possiveis das ocor- réncias lexemiticas compreendidas no inventério. A aplicagio desse principio de equivaléncia entre os definidos € 05 definidores, contanto que nao levante dificuldades técnicas intransponiveis, poderia talvez resolver bom mimero de problemas deixados em suspenso no dominio da documentacéo mecfnica 1 Retomando ao exemplo dado por J. C. Gardin, poderiam ser re- gistrados, sob 0 termo denominativo de “inibicio", todas as seqiién- cias definicionais (do tipo arrét provoqué par — parada provo- cada por) reconhecidas como tais gracas a uma codificagio sémic: prévia das denominagies. Mas retornemos & anilise definicional dessa ultima classe re- duzida do inventério. O esquema abaixo dard conta, de maneira mais econdmica, dos passos que esse procedimento implica: Denominaséo “fatiguer” (“fatigar”) APLICAGOES disptndio de forsa Definiglo dos sce- mentos da primeira definigio virios golpes) “atividade alguém que esté ‘causante” ide pe Observagdo: Para poder citar diretamente o Dictionnaire ‘général, apresentamos aqui a andlise da forma infinitiva, e no da forma participial. A flexio participio apenas acres- centa, uma vez mais, o sema redundante “causado”. Essa amostra de anilise permitiré no somente encontrar na definigio todos os classemas — 0 que confirma a isotopia redun- dante do discurso — mas também os elementos da figura nuclear. fato de que ela se acha caracterizada pelo mesmo sema “pros- trar” de uma das subclasses estudadas anteriormente_nio é, talvez, devido ao acaso; a possibilidade da descoberta dos elementos mucleares nos parece satisfatéria. Uma vez estabelecido 0 procedimento, podemos prosseguir esta mesma anilise integrando nela novas ocorréncias do inventério. ‘A apresentagio dos resultados pode também ser simplificada: DENOMINAGEES. perNigbes exceder de fadiga Equivadncias caused micas fadiga (uma montatia)| 2 , de |fazendoa caminhar Denominaso “haraaser” ("ertosuar") mais depressa ou por mais tempo rroceonesros | notacagées além do limite ea | derrobar | de fadiga (cf. esquema anterior) oo /“transgressio (de uma norma)"|“causado”|“processo” + “animado”’ Definigio dos seg| fazer sucum| eerubar alguém dispEndio reer rime! bir sob peso| que esté de pé] POF de forca Observagéo: o classema “causado”, quando no esta lexi- radefinigio calizado na definicao, aparecerd nas formas do participio spessado. Equivaléncias speaetna stmicas Vemos que a anflise dessa nova parcela nfo traz nada de novo com excecio do sema aspectual “transgressio” (de uma norma), tinico indice da participagio do nfvel semiolgico na elaboracio da articulac’o do discurso. Tal como est, ocupa, ug us entretanto, na economia geral do semema, 0 lugar que corres- ponde as figuras nucleares. ‘b) Construgao dos sememas. ‘A andlise desse inventério, embora pudesse parecer muito longa quanto A finalidade que Ihe havia sido atribuida inicial- mente, nos pareceu titil na medida em que exemplificava, ao mesmo tempo, 0s procedimentos de denominagio e precisava as condigces de integragio das definigdes no inventério inicialmente lexemitico. Ela mostrou sobretudo como uma classe de ocorréncias relativamente extensa poderia ser reduzida a um s6 semema, que podiamos chamar “semema construido” para distingui-lo dos se- memas ocorrenciais. progresso metodolégico obtido assim na conceitualizacio se- mintica nos parece nao negligencidvel. O conceito de ‘“semema canstrifde” libera assim a desericia do contetida das tiltimos vinculos que esse iltimo poderia ter com a manifestacio discursiva: © semema assim concebido é uma unidade de contetido, inde- pendente de sua cobertura lexemtica e de seu contorno contextual. Por outro lado, 0 duplo estatuto das categorias classemiticas, 20 mesmo tempo do nivel semantico da linguagem, se coloca em evidencia quando se parte de tal concepcio do semema: elas fundam, de um lado, a isotopia sintagmética da manifestagio da significagio; constituem, por outro lado, 0 quadro paradigmatico geral da classificagio do universo significante. © esquema abaixo precisard melhor a articulacdo interna do semema construido: ‘MODO DE PRESENGA ae ae SEMEMA constRUfo0 [Denominagio + [base classemética figura nuclear Definigto elementos genéricos clementos expecfices |“processo” + “animado”” + “eausado” /Exemplo: inventério| eal fatigul us _ denominador ‘A interpretagio desse esquema permite sublinhar certo niimero de pontos: 1. As bases classemdticas das denominagées, que se identi- ficam com os elementos genéricos das definicdes, constituem qua- dros gerais, nos quais podem ser lancadas numerosas unidades de comunicacao, de dimensies sintdticas desiguais, e permitem considerar com menos inquietacao a possibilidade de andlise dos textos caracterizados por oscilacées metalingiiisticas do discurso; 2. Os sememas construfdos, em compensacio, sé se identifi- cam parcialmente com os sememas-ocorréncias. Se 0 semema cons- truido esgota em principio todos os classemas, ele se satisfaz, a0 contrério, com 0 nimero mfnimo, mas suficiente, dos semas, Presentes 20 mesmo tempo como elementos especificos das de- finigbes e como elementos cénstitutivos das figuras nucleares. Vemos assim surgir a direcio assumida necessariamente pela andlise semantica, que tende a valorizar a organizacdo classemé- tica do universo significante As custas de uma perda de subs- tAncia semioldgica; 8. Precisa-se igualmente o papel dos elementos semiolégicos: estes tém por funcdo reduzir a excessiva generalidade do quadro classemético, servindo de especificadores de classe, de subclasse finalmente de cada ocorréncia semémica. Se a especificacio mé- xima, devido & consideragio em que se leva a figura nuclear in- tteira, dé conta da unicidade de cada semema, novos elementos de ordem se manifestam j4, sob a forma de semas comuns a varias denominacdes ou a varias definigdes, para constituir, como vimos, agrupamentos de niicleos. Uma nova forma de: anilise, esta de ordem estilistica, pode por conseguinte, ser tentada: procuraria ela estabelecer ‘isotopias semiolégicas @ constituir classes de figuras nucleares. Embora recusemos enveredar, no momento, nessa directo, temos, no entanto, que indagar se nio existe um mum a toda classe de elementos especificos que permitem justificar a escolha dos niicleos A primeira vista hete- réclitos, chamados a desempenhar 0 mesmo papel no semema construido. us 1D Isomorfismo das figuras, Tal denominador comum existe efetivamente: € 0 sema de um tipo particular que deve ser considerado como um dos termos da categoria sémica: euforia vs disforia. De fato, parece que os elementos semioldgicos, tais como “romper” “esvaziar” “transgredir (uma norma)” (cf. 0 advérbio francés trop, excessivamente) sé vém especificar a defini¢ao, ou enriquecer, pela transferéncia denominativa, a classe de equi- valéncia do semema inventariado, porque sio todos apreendidos como disféricos. Dirfamos que tudo se passa como se, a0 nivel da percepcio onde situamos essas figuras, uma categoria sub- jetiva, proprioceptiva, viesse a seu encontro para binarizi-las numa espécie de a priori integrado na propria percepcio. Quaisquer que sojam essas especulagies epistemolégicas, um exemplo toma do do francés corrente e muito préximo de certos nticleos sémicos estudados, a oposicio gonflé (inchado) vs dégonflé (desinchado), mostra bem 0 cardter dicotmico da categoria da qual apenas 0 sema “disférico” se manifesta no semema fatigué. Vemos que os dois sememas de nosso tiltimo exemplo, que possuem, gracas 20 dispositivo classémitico diferente, um conteddo distinto de fatigué, se articulam, entretanto, ‘segundo a categoria “euforia” vs “disforia”. A importdncia dessa categoria proprioceptiva na organizacao dos microuniversos significantes valorizados nao ne- cessita ser salientada. Observacdo: O carter incompleto da anilise que com- porta apenas procedimento de redugio, nfo permite dizer se a base classematica, determinada unicamente pelo sema “di férico” e que poderfamos traduzir como “resultado desagra- davel de uma atividade” sem levar em conta a implicagao propriamente semioldgica, é suficiente por si mesma para dar conta do semema fatigué em seu conjunto. 6 q 8° CONDICSES PARA O ESTABELECIMENTO DA ISOTOPIA a) Definicéo obliqua. Nossas preocupagées caracterizaram-se até agora pela pes- quisa das equivaléncias entre as seqiiéncias de dimensdes de- siguais do discurso: os procedimentos que acabamos de propor devem permitir enfrentar as dificuldades bastante numerosas rela- tivas A existncia, no discurso, de todas as espécies de locucées ¢ de circunlocugdes “figuradas” e perifristicas, conduzindo todas elas a um plano isotépico de- significagées. ‘Entretanto, outrds tipos de expansio e, por isso mesmo, de definicio, ainda nio estudados, so possiveis: eles tomam ‘mais dificil o estabeleci- mento das equivaléncias, talvez até impossivel. 1. Tomemos como exemplo o perfodo bem conhecido de Bossuet: Celui qui rdgno dans les cieux de qui relévent tous les empires, & qui seul appartient la gloire, la majesté et Tindépendance, i se glorifie de faire la lot aux rois (qui se glorifie) de leur donner, quand i Iut plait, de grandes e de terribles lecons. Te seul que reina nos céus de quem provém todos os impérios, a quem s6 pertencem a gléria, a majestade e a independéncia, que se glorifiea fazendo a lei aos reis (que se glorifica) por dar-lhes, quando lhe apraz, grandes e terriveis ligées. £ fiicil dizer que esta definicio — j4 que se trata de uma defini- — pode ser condensada sob a forma da denominagio Dieu {Bes Mas tal condensacao sé é evidente para nés na medida em que pressupSe 0 conhecimento, anterior & descri¢ao, de uma 7 certa civilizacio cristi mondrquica, em outras palavras, de um “universo semAntico armazenado”.'Tais nao so, entretanto, as condigées normais da descrigio do contetido, e os diversos pro- cedimentos da anilise so, por definicio, destinados a prescindir do saber inato. 3 ‘A seqiiéncia escolhida, considerada em si mesma, fornece as seguintes informagies: a) De um lado, propée indices genéricos de equivaléncia que sao celui (aquele) e le seul (0 tnico). Eles nos permitem registrar os classemas “atuante” e “unicidade” que sao, como podemos observar, de cariter demasiado geral para que se possa Postular uma denominagao a esta definicio, 1b) De outro lado, ela é composta de uma série de epitetos Ber gipansie, que b> eapie espoclicarem os clecentos yeuscicrs pela atribuicéo de um certo nimero de qualificagées. Diremos que tal definicao é obliqua, porque pressupie a pos- sibilidade de estabelecer a equivaléncia com a denominagio, sendo a base classemdtica insuficiente, a partir dos elementos especf- ficos apenas (ou quase apenas). 2. Um segundo exemplo, por se apresentar em condigées conde qualquer cultura semantica anterior est4 ausente, precisard melhor a natureza da dificuldade. Seja uma definigio de pala- vras cruzadas: Un coup de langue lui fait clore un bavardage parfois familier. (Uma cahinia o faz encerrar uma fala As vezes familiar). A questo prévia que se coloca & a seguinte: podemos analisar tal definicéo e chegar a encontrar o termo denominador que a con- densa? Se nfo, quais sio as razdes de sua ilegibilidade? Para responder a isso, tentemos uma anilise formal ,dessa definicio. Esta se apresenta como uma proposi¢io que comporta: a fungio F: fait clore (fazer, encerrar) e X: lui (ele, forma obliqua) Y: un bavardage parfois familier, (uma fala as eS Z: un coup de langue (uma caliinia) trés atuantes 18 a) para colocar em evidéncia o tipo estrutural da definicéo, procedamos inicialmente a certas translormagées. © elemento genérico, incumbido de estabelecer a equivalén- cia com a denominagio, esté presente na definicio sob a forma do anaférico lui e comporta apenas o classema “atuante”. Dado que a fungio fait clore comporta o sema “factitivo”, podemos transformar X, que é um falso destinatrio, em um destinador- -sujeito. Obtemos, assim, o enunciado incompleto: X clot (encerra) Y. Mas a transformagio da fungio F, de factitivo em nfo fac- titivo, s6 & possivel se, a0 mesmo tempo, transformarmos o atuan- te Z, presente como sujeito, em circunstante-adjuvante. O enun- ciado completo tomaré entio a forma seguinte: X clét ¥ a Paide de Z (X conclui ¥ com a ajuda de Z). Observagéo: 0 interesse do exemplo é bem limitado para que nos autorize a lancar-nos na formulagio de regras de transformacao. Nés o deixamos, pois, de bom grado, em sua forma ingénua. Vemos que a definigao assim transformada apresenta muito mais claramente uma nova variante da definigio oblfqua: a base classemética, insuficiente, e ai especificada, nio mais por qualifi- cago, mas pela predicacao. b) Independentemente de seu caréter obliquo, a definigio proposta apresenta uma outra particularidade: nenhum de seus elementos é @ priori univoco. Sem falar de X, que esta ainda para ser encontrado, tanto Y e Z como F sio suscetfveis de per- tencer a varias isotopias ao mesmo tempo. Assim, un coup de langue e un bavardage parfois familier podem ser simples sintag- mas em expansio, quer das denominagées translativas, quer enfim, das definiges de segundo grau. Clore, por sua vez, pode sig: " nifiear tanto “parar” (clore le bavardage — “parar” a conversa) como “fechar” (clore le bec = “fechar” 0 bico). ‘As dificuldades de leitura de tal seqiiéncia so pols de duas espécies: 9 a. A definigéo, enquanto contexto, nfo 6 isotdpica: nio podemos postular 0 esto do emunciado como invariante em rela- 0 a nenhum dos elementos constitutives do enunciado tomado ‘como varidvel. O registro dos classemas reconhecidos, geralmente, racas a sua redundancia, tornou-se pois impossivel. 8. Nenhum procedimento de pesquisa de equivaléncias po- deria ser aplicado. Supondo que o termo Z seja assegurado em sua univocidade, entraria na definicao: X clot Y (un bavardage parfois familier) aVaide d'un coup de langue, X encerra Y (uma conversa As vezes familiar) com a ajuda de uma calinia, que permaneceria ainda predicativa, isto 6, obliqua. Supondo somente que a definicao de Y nos desvenda o termo denominador da “conversa is vezes familiar” (bavardage parfois familier) que & carta (lettre), a definigao obliqua: X cl6t la lettre a aide d'un coup de langue (X encerra a carta com a ajuda de uma calinia) nos liberaria provavelmente seu segredo. Observacdo: Podemos facilmente objetar que esse tipo de definicdes é excessivamente particular, representative de uma técnica pouco divulgada, a das palavras cruzadas, e caracteriza o funcionamento normal do discurso. Se, no entanto, escolhemos esse exemplo, é porque o considera- mos, a0 contrario, normal; 0s microuniversos poéticos, mito- légicos, onfricos, ete., manifestam muito freqiientemente de maneira obliqua suas significagées. Pareceu-nos mais im- portante evidenciar as dificuldades do que escamoted-las. A técnica das palavras cruzadas, consciente dessas dificuldades, vem. de fato, em auxilio do leitor, oferecendo-lhe um procedimento suplementar, que consiste na possibilidade da descoberta progres: siva dos grafemas que recobrem a denominagio procurada, e isso Bragas ao cruzamento de conjunto dos tetmos denominadores num quadro onisciente, construldo a priori. Este quadro corresponde, pelos servigos que presta no nivel do significante, a0 universo semfintico armazenado, no nivel do significado, pressuposto pela leitura da frase de Bossuet. E& este quadro, entretanto, e sua constituicéo progressiva que resumem metaforicamente o essencial do procedimento descritivo. b) Conceitos sobre o mundo, A necessidade de uma selecao cultural para resolver as dificul- ‘dades relativas 4 pesquisa da isotopia do discurso, e que aparecem claramente quando se tenta encarar as definicGes obliquas, rec: loca em questio a propria possibilidade da anilise semintica obj tiva. Isso porque o fato de que tal selecio seja, no estado atual de nossos conhecimentos, dificil-de ser imaginada para as necessi- dades da anilise mecinica, significa que a propria descri¢ao depende ainda largamente da apreciacio subjetiva do analista. Aleuns especialistas, e os mais eminentes — pensamos sobretudo em Bar-Hillel —, chegam ao ponto de afirmar que, por nao poder- mos registrar nas memérias eletrénicas a totalidade dos conceitos sobre o mundo, nfo chegaremos jamais a obter uma traducio mecfnica de grande fidelidade. © mesmo problema se observa no dom{nio da construcao das linguagens documentais: M. Coyaud por exemplo, em sua recente tese sobre as Linguagens Documentais, evidencia a contradicao interna & qual no escapam as melhores linguagens atualmente construfdas. Sua construgio obedece efetivamente a dois princfpios que parecem se excluir e que se manifestam pela dosagem desigual de dois procedimentos, um dos quais consiste em dotar a meméria de uma taxonomia inata, que representa a selecio cultural ou cien- tifica do_universo escolhido, e 0 outro em imaginar os procedi- mentos de auto-enriquecimento da meméria pela integracio das definicées, e mais particularmente das definicSes obliquas. Resulta disso, quase sempre, uma metalinguagem documental capenga, caracterizada pela redundéncia conceitual, 0 encavalamento das classes seminticas, enfim, pela auséncia de coeréncia légica. Esse estado de coisas parece dever-se a0 modo de funcior mento do prdprio discurso, que procede tanto por constatagies de equivaléncias, como por aproximagées obliquas. De fato, se um semema qualquer se define como uma colegio sémica susce- 121 tivel de adicdes semiol6gicas que lhe variam a expresso, ele se earacteriza também pela totalidade de suas determinagées possi- veis, isto é quer pelo conjunto de qualificagSes que podemos atribuir-Ihe, quer pelo conjunto de predicagées que admite. Neste segundo caso, 0s conceitos sobre os objetos simbélicos do mundo sio praticamente em nimero infinito. Uma definigdo de palavras cruzadas do tipo “pode-se aplicar a Nero” remete, se ‘0 quisermos, & qualificagdo tirano, como pode corresponder a numerosos epite- tos: quantas coisas podem ser aplicadas a Nero! Mas 0 que se situa no limite do estabelecimento da equiva- léncia obliqua é 0 que poderiamos designar como definicdo-acon- tecimento. Se a lembranca nervaliana do lugar “onde o pampano a rosa se alia” (oi le pampre @ Ia rose s‘allie) pode ser salva pelo englobamento desta definicio no nivel simbélico que Ihe € pos- tulado e onde seu caréter de acontecimento &:hipostasiado como “anicidade” no tempo e no lugar de um acontecimento do qual se ignora tudo, como adivinhar se “quem passeia hoje pelo Hyde Park, com um ovo de avestruz na mio” 6 efetivamente Bar-Hillel, e no uma outra pessoa dentre os 9 milhdes de londrinos? ¢) A limitagdo do texto. Vistas nessa perspectiva, ndo apenas a andlise mec4nica, mas qualquer descrigo de conteiido pareceriam impossiveis. As defi- igdes, felizmente, nio se apresentam jamais (4 excecio de alguns tipos formais particulares, como palavras cruzadas, enigmas, etc.) isoladas, mas integradas num texto, e 0s acontecimentos af rela- tados sio provavelmente as vezes imprevistos, mas jamais gra- tuitos. Um exemplo de Freud (Mots d’Esprit) nos dard de uma s6 vez a medida das dificuldades e as indicagSes quanto & diregio pela qual sua solugdo deveria ser procurada: “Um tratador de cavalos oferece a seu cliente um cavalo de sela: — Se o Sr. tomar esse cavalo e partir as quatro horas da manha, 0 Sr, estard ds seis e meia em Presbourg. — E 0 que é que eu vou fazer em Presbourg as seis ¢ meia da manha? Nessa histéria, a segunda isotopia, quase literal, pressupde evidentemente — e isto é a propria condicdo do impacto es tuoso — a existéncia de uma primeira isotopia nio literal. Efet vamente, todo ouvinte “médio cultivado” (Rifaterre) — na 122 medida em que aceite as regras formals do jogo — procuraré aprender, e apreenderd espontaneamente, esta primeira isotopia. Ela comporta, entretanto, certos elementos fatuais que lhe so desconhecidos. Podemos ignorar, por exemplo, que Pres- bourg € 0 antigo nome de ‘Bratislava, ou desconhecer tanto um quanto outro. Do mesmo modo, o lugar onde se acham o tra- tador e seu cliente, no momento da suposta troca de mensagens, élhe absolutamente desconhecido, e com mais razio, conseqiien- temente, a distancia que separa os dois lugares. Isso nao impede que o ouvinte apreenda imediatamente que esta distdncia & longa que o cavalo que a percorre em duas horas e meia deve ser yeloz. Todo esse conhecimento “espontineo”, entretanto, que nio esta de maneira alguma implicado nos fatos contidos na seqiiéncia questo, nao lhe pode vir — e insistimos nisso — do conheci- mento dos acontecimentos, mas unicamente do contexto global, mesmo se este nfo Ihe é dado senio por uma breve apresentacio: Un maquignon offre a son client un cheval de selle... © contexto anuncia efetivamente pela soma de informacées que contém e pela utilizacao de um grafema sintatico (:) (ou de um fonema supra- segmental, no caso da comunicasio oral), e com uma probabili- dade elevada: a) uma mensagem ulterior b) cujo falante seré o tratador, ¢) cujo sujeito-propésito sera 0 cavalo de sela 4) e cujo predicado comportard a atribuicio de qualquer qualidade positiva ao sujeito do enunciado a ser emitido. Vemos que a informacio esperada & em boa parte, prede- terminada pela isotopia do contexto: consistiré na das variiveis dentro da classe das qualidades positivas possfveis de um cavalo de sela. Entretanto, a mensagem realmente mani festada pela presenca dos termos “partida” e “chegada” nfo atri Dui ao cavalo senio o predicado “deslocamento”, A verdadeira funco dessa mensagem se mostra, por conseguinte, claramente: consiste unicamente em selecionar, em especificar, com 0 auxilio do predicado “deslocamento”, o termo genérico, compat{vel com ele, dentro do paradigma das qualidades do cavalo, e toda a se- qiiéncia de acontecimento & apenas a definicéo obliqua de cavalo: “o cavalo & (um cavalo) répido”. 123 c ‘Compreendemos melhor agora 0 procedimento do pensamento cognoscente, que, por ser dedutivo (j4 que o cavalo é répido, a distancia que terd de percorrer deve ser longa), nos dispensa do conhecimento real dos acontecimentos relatados. Nao é demais, por conseguinte, sublinhar a importéncia metodolégica desse fato para a descricéo semfntica, que se acha assim liberta de um de seus mais sérios “handicaps”: ela comeca pelo estabelecimento de uma isotopia assegurada, sobre a qual se situardo as mais estranhas e inesperadas figuras. As definigdes, mesmo que sejam de acontecimentos, podem, conseqiientemente, ser denominadas, com a condigao, entretanto, de que se encontram situadas dentro de um texto isotrépico, sufi- cientemente denso e longo, isto 6, comportando a informacao neces- siria a0 enquadramento classemtico das seqiiéncias nao isotépicas. © estudo de Tahsin Yiicel sobre o Imaginério de Bernanos nos mostra, por outro lado, que o niimero de epitetos que determinam © lexema morte e que lhe sio, pois, compativeis, se reduz rapida- mente & Icitura dos textos e que 0 inventario em pouco tempo se acha definitivamente fechado. Podemos, portanto, comecar uma nova operago: por pouco que os epitetos aparecam como redundantes em outros lugares do texto ou que tendam a se subs: tituirem ai um aos outros, eles permitem descobrir, gracas a este con- tomo contextual estavel, novas denominagées de morte, tais como boue (barro), ennui (tédio, fastio) ou solitude (solidao). Pro- cedimentos de estabelecimento da isotopia cada vez mais seguros poderio, pois, ser elaborados progressivamente. As possibilidades que nos oferecem, para exploracio do uni- verso semfntico, o carater isotdpico do texto e sua tendéncia a se fechar em si mesmo se acham confirmadas pelas observacies de Jean Dubois a respeito do desenvolvimento do discurso nos afisicos. Em sua comunicagio no Coléquio Intemacional de Lingiiistica Aplicada de Nancy (1964), ele insiste, ao falar da polissemia sintagmética, numa particularidade observada do texto continuo: prolongando-se, 0 texto torna-se nio somente cada vez mais redundante ¢ introduz, cada vez menos, informagio, mas, por causa das redundancias das estruturas preferenciais, ele desen- volve a9 mesmo tempo um subcddigo auténomo. Essa limitacdo do texto pelo esgotamento da informacio lhe confere seu cardter idioletal: efetivamente, as denominagées conti- das no texto so determinadas pelas definig5es que estiio presentes nele, e unicamente por elas, de tal modo que o texto constitu um microuniverso semantico fechado em si mesmo. Essa propriedade semintica do discurso torna legitimas as descrigdes parciais, estabe- lecendo uma espécie de equagio entre os textos finitos e 0s universos significantes fechados. Ela n&o oferece, entretanto, solucio defi- nitiva para a descric&o dos universos semfnticos abertos, caracteri- zados pelo afluxo continuo de informacées. d) Do texto individual ao corpus coletivo, © cardter idioletal dos textos individuais nfo nos permite ‘esquecer 0 aspecto eminentemente social da comunicagao humana. £ preciso, pois, ampliar o problema colocando como principio que um certo nimero de textos individuais, com a condigéo de serem escolhidos segundo critérios nio lingiiisticos que garantam sua homogeneidade, podem ser constituidos em corpus e que este ‘corpus podera ser considerado como sulicientemente isotépico. Para termos uma idéia do que pode ser tal isotopia coletiva, tomemos como exemplo um corpus em miniatura, constituido de “ respostas dos estudantes de filologia francesa na Faculdade de Poitiers (1963) dadas aos inicios das frases a serem completadas do teste projetivo de Stein. Sendo a seqiiéncia indutora: Mon destin est... (Meu destino 6. ) as respostas, complementos definicionais de destino, se distribuem, segundo os classemas: bom (10) vs mau (11) determinado (9) vs nem determinado nem indeterminado (4) vs nio determinado (9). Observacao: 0 resto das respostas.(7) se apresentam tanto como definigdes de acontecimentos do tipo: ensinar filologia, viver na Franca 125 quanto como respostas “originals”: ser diabélico, preencher testes idiotas, etc. que seriam ficeis de classificar, mas que deixamos de lado para melhor clareza de nossa exposigio. ‘Uma outra seqiiéncia indutora, situada com intervalo de quin- ze questées, era formulada de maneira um pouco diferente: Jean pensait que son avenir (Jean pensava que seu futuro. ) Recebeu ela respostas faceis de serem classificadas em: bom (12) ys_mau (25) determinado (9) vs nao determinado (6). Observacéo: Por sua vez, “determinado” pode ainda ser analisado “dependente de si mesmo” ys. “dependente dos outros”. Notemos também que avenir, ao contrario de destino, nao provoca respostas “originais”. e) Isotopia e variacées. Vemos bem o que cumpre entender, nesse caso preciso, por homogeneidade ndo lingiitstica do corpus; 0 que permite reunir ‘umas cingiienta respostas individuais em corpus coletivo é um con- junto de caracteres comuns aos testados: o fato de pertencerem & mesma comunidade lingiifstiea, A mesma faixa de idade; é tam- bém o mesmo nivel cultural, a mesma “situacio de testados”. No plano lingiifstico, em compensagio, o que permite depois reunir a totalidade das respostas e considera-las como as definigdes que fazem parte de uma classe isotdpica, é a existéncia, na se- qiiéneia indutora, dos classemas “futuro” e “julgamento” que pode- mos depreender do termo denominador (destin ou avenir) e do terma pradicativo (est ou pense). Vemos que o classema “futuro” abre, de certa forma, o paradigma seletivo ‘“determinado” vs “nao 126 55 San — determinado”, 20 passo que o classema “julgamento” implica a resposta “bom” vs “mau”. Pouco importa que 0 procedimento considerado aqui seja o que vai do denominador 20 definidor, e nao inversamente, como ocorria nos procedimentos de solugio dos problemas de palavras cruzadas estudados anteriormente. Vemos’aliés que, partindo dos denominadores, 0 autor de palavras cruzadas poderia facilmente fabricar um niimero igual de definigées: “pode ser bom ou mau”, “6 freqiientemente impenetravel” sio definigées de palavras cru- zadas tipicas de destino. Isso posto, as variagdes individuais dentro de uma isotopia coletiva constituem um certo ntimero de escolhas, que se escalonam hierarquicamente: 1. Dentro de base classemética: a) escolha da categoria classemitica entre: determinado/néo determinado vs bom/mau b) escolha, na categoria j& selecionada, entre os classemas que articulam: Positivo vs neutro vs negativo 2. Dentro de um semema construido, caracterizado por tal classema ou tal grupo de classemas, possibilidade de escolher esse ‘ou aquele semema-ocorréncia. Assim, a decisio de classificar 0 futuro como “mau” pode ser manifestado por sememas especificos: compromis “comprometido” (15 respostas) gdché = “arruinado” ~— (1) brisé “destrogado” (1) sombre ——“sombrio” () sans joie “sem alegria” (1). Esse exemplo nos permite considerar a possibilidade de con- ciliar a exigéncia da isotopia do corpus, de um lado, e as varia- Ges, individuais ou coletivas das mensagens, de outro. Tais variagies se situam, finalmente, em dois nfveis que nos so co- nhecidos: 0 nfvel seméntico e 0 semioldgico. 127 1. As variagdes ao nivel seméntico. O grupo de classemas, tal como aparece nesse exemplo preciso, se é constituido de duas categorias classemiticas distintas, isto é, pertencentes, dentro do nivel semintico, a sistemas classeméticos diferentes, nio deixa de se apresentar, por esse fato, como um feixe classemitico hierir- quico, capaz de gerar unidades de manifestagao: sé podemos, efe- tivamente, prejulgar 0 cardter bom ou mau do futuro na medida em que € considerado como determinado ou indetermindvel. Assim, a base classematica surge, ao final das contas, como uma estrutura hipotatica: determinado vs nio determinado 1 bom vs mau Isso nos permite, por conseguinte, precisar o que é necessirio entender por isotopia de um texto: é a permantncia de uma base classematica hierarquizada, que permite, gragas a abertura dos paradigmas que sio as categorias classemiticas, as variagées das tunidades de manifestacio, variagSes que, em vez de destruir a isotopia, ao contrério a confirmam. 2. As variagdes ao nivel semiolégico. A possibilidade de manifestar esse ou aquele semema no lugar que lhe esta reservado no texto, é condicionada pela assungio seletiva desta ou daquela figura sémica. Vimos igualmente em que medida (depreensio dos semas comuns de uma classe de figuras, assuncao dessas figuras pela categoria proprioceptiva) a especificidade dos elementos se- miologicos podia ser ultrapassada tendo em vista uma andlise iso- tépica do contetido. Mas as variagdes semioldgicas colocam jé 0 problema da existéncia de outra isotopia, esta semioldgi e que daria conta da escolha das figuras sémicas de um texto. 4° © DISCURSO PLURIVOCO a) Manifestagéo de uma isotopia complexa, ‘Até 0 presente, preocupamo-nos em buscar, através das dis- torgies miiltiplas do discurso, o plano isotépico de sua_manifes- taco. Essa pesquisa, por mais necesséria que seja, niio deve, 128 no entanto, fazer-nos esquecer que a comunicagio humana nio é, como o pretendem alguns, univoca nem unilateral. Assim, reto- mando o exemplo jé utilizado: Te chien du commissaire aboie, se 0 contexto mais amplo no qual se inscreve esta seqiitncia der sempre conta, por disjungao, do carter “animal” ou “humano” do chien du commissaire, integrando-o em uma ou outra das duas isotopias previsiveis, uma terceira solucdo é igualmente possivel podemos, de fato, facilmente representar-nos uma narrativa mais ou menos longa onde a auséncia de escolha entre chien e secrétaire seria mantida. ‘ Tais ambigiiidades — e pensamos imediatamente entre outras, no “Nez” de Gogol —, se se mostram, na medida em que sio in- tencionais, como procedimentos retéricos, nao _deixam de ser por isso caracterfsticas do funcionamento normal das Iinguas naturais. Assim, uma mensagem do tipo: Cet homme est un lion (este homem € um ledo) petmanece, no nosso contexto social, univoca, e lion manifesta af, pela isotopia caracterizada pela redundancia do classema “hu- mano”, apenas os valores sémicos de “coragem”. Em compensacio, numa sociedade de homens-lebes, a seqiiéncia em questéo apenas confirmaria a equivaléncia do homem e do leo, e 0 contexto amplo revelaria ai a repeti¢do dos semas que se referem tanto & existéncia humana quanto A existéncia leonina. Seria falso acreditar que esse tipo de bivaléncia seja proprio apenas dos discursos mantidos nas sociedades ‘ditas “arcaicas”: © mitico difuso que transborda a todo instante, em fortes doses = como o mostrou bem Roland Barthes (nfo comemos apenas “filé com fritas”, absorvemos a0 mesmo tempo parcelas de “fran- cesismo”) — de nossa comunicacSo social quotidiana possui segu- ramente um contetido diferente do discurso primitivo; sua presenca incontestével apenas confirma o caréter sempre plurilinear da manifestacio. Por conseguinte, 0 que conta objetivamente, para a anélise do contetido, é a necessidade de reconhecer a existéncia, em certos casos, de varios planos isotépicos num mesmo discurso. E depois a obrigacdo de explicar estruturalmente essa bivaléncia. Esta nos parece ser essencialmente devida recusa de desajuntar, quando 129 de sua manifestaco no discurso, os termos de uma ou de virias eategorias classemiticas. Levando em consideracao, como de cos- tume. apenas 0 caso mais simples, poderfamos defini-la como a manifestacio, com intervalos irregulares, das articulacbes complexas de uma categoria classemitica, (do tipo “ou humano ou animal”, por exemplo) que permite o desenvolvimento, nesses intervalos, dos planos auténomos que dependem quer de uma quer de outra das duas isotopias, realizando tanto 0 termo positive como o termo negative da categoria classemitica em questéo. Se um texto qualquer satisfaz a essas condigdes, diremos que manifesta uma isotopia complexa. b) Ambivaléncia simbélica em literatura. Essa conjuncdo sinerética dos termos normalmente disjuntos, erigida em procedimento retérico, caracteriza As vezes certos gé- neros literdrios. Assim, Baudelaire, quando pretende ser: “...un vioux boudoir plein de roses fanées, Oa git tout un fouillis de modes surannées, Oa les pastels plaintifs et le pales Boucher, Seuls, respirent lodeur d'un flacon débouché,” "Sou um yelho camarim em que um bugut descora / E em que estio « nos de outrora, / Em que um vago Boucher e algum pastel magoado, / Sé, rate oe | a on wa Do en al apenas conjunta, estabelecendo sua equivaléncia, os dois termos da categoria classemética: (conteido) exterior vs (contedido) interior. © discurso que se desenvolveri em seguida a tal assuncio sera biisotépico, e o leitor procurara, mais ou menos consciente- mente, extrair da descricao “fisica” do salfo todos os semas que podem manter e desenvolver a segunda isotopia, posta desde 0 inicio, aquela do espaco interior do poeta. O mesmo ocorrerd no caso de narrativas mais longas, em ver- $0 ou prosa. Quer se trate de Moise de Vigny, este inventor dos mitos liter4rios modernos, ou da Peste de Camus, o aparecimento, em certos lugares privilegiados da narrativa, de articulagoes com- plexas, bivalentes, provocaré uma leitura situada em varios planos isotdpicos de uma s6 vez. 130 Um problema, embora nio totalmente lingiifstico, pode ser levantado a esse propésito. Parece evidente que Baudelaire nfo é um boudoir (salio) nem Rimbaud un bateau ivre (barco embria- gado) da mesma maneira que o guerteiro simba é lion (leo) ou que um residente de um manicdmio 6 Napoledo. & facil opor a organizagio desejada de isotopias complexas ao funcionamento inconseiente do discurso, investido de mitos sociais ou individuais, e conceber a literatura como jogos de consciéncia, incumbidos de nos obter o prazer estético pelo desvendamento das isotopias ocul- tas. £ verdade que certos géneros literdrios, mesmo certas “es- critas” que recobrem vastos periodos histéricos, se prestam facil- mente a tal interpretacio. Podemos nos perguntar, entretanto, mesmo considerando esses casos-limite, onde a chave da leitura biisotdpica 6 claramente indicada pela formulacdo explicita das articulagdes complexas das categorias classemiticas, se os semas imprevistos que aparecem sobre a linha da nova isotopia assim construida nao escapam ao controle consciente do escritor bem como do leitor. £ possivel que, além das distingSes da consciéncia e do inconsciente, a comunicacao poética seja essencialmente uma comunicac&o assumida, de uma certa forma, tanto pelo destina- tério como pelo destinador. ¢) As isotopias e sua leftura. Em nada altera a propria estrutura de sua manifestagio o fato de a isotopia complera do discurso ser provocada pela intengio consciente do leitor, ou de achar-se instalada ai sem que este o saiba. Ao contririo, a existéncia de construgdes intencionais de planos isotépicos superpostos pode ajudar-nos, gracas ao aumento attificial dos procedimentos, a compreender melhor 0 fendmeno lin- giiistico como tal. A anilise freudiana, continuada pela Tiefpsychologie, habituou- -nos a procurar distinguir em toda comunicacéo dois planos de transmissao das mensagens, um dos quais seria manifesto e 0 outro latente, Esta distingio, na medida em que conceme a0 discurso apreendido em seu funcionamento, no nos parece valida. De um lado, tudo é manifesto no discurso, contanto que o alocutério ‘seja 20 mesmo tempo o destinatério da mensagem. Por outro lado, tudo nele é latente, isto é imanente, no sentido de que o discurso 131 est& sempre cifrado, de que a operagio de descodificagio corres- ponde inteiramente ao receptor. Se, abandonando a evidéncia secular da linguagem considera- da como um cédigo acabado, comum ao locutor e ao alocutério, debrucamo-nos sobre a comunicagao oral quotidiana, percebemos ue ela 6, mesmo nas melhores condigées, dificil e incompleta. Nada ha de espantoso, por conseguinte, em o individuo que sonha nao chegar a descodificar seu proprio discurso onirico. Nao € ne- cessirio em absoluto, para explicar seu malogro, recorrer_& exis- téncia de um plano latente: muitos lingitistas reconhecerdo, pelo menos privadamente, a dificuldade que encontraram em pros- seguir, de maneira ininterrupta, a leitura dos Prolegomena de Louis Hielmslev, que dificilmente pode ser acusado de ter_desejado inserir ai uma segunda dimensao anagégica da significacio. Tanto num como noutro caso, a principal dificuldade da leitura consiste em descobrir a isotopia do texto e em poder manter-se nela. Se, entretanto, parecesse oportuno tomar mais seccionada, por uma insisténcla terminolégica, » vposigio entre as duas isotopias simultineas do discurso, sio 0s termos de tetto e metatexto que proporfamos como menos comprometedores que os de plano ma- nifesto e plano latente, Esta distingao entre texto e metatexto seria somente operacional, e sé se apoiaria, ao menos no inicio, no simples bom senso e na apreciacio “mediana” da comunicacéo: de fato, desse ponto de vista, 0 texto onirico surge ao indivi- duo sonhador a0 mesmo tempo como legivel e insdlito, se do absurdo, ao passo que o metatexto permanece ilegivel, mas se mostrara sensato depois de sua anilise-leitura. Assim, um texto como: le soleil noir de la mélancolie (o sol negro da melancolia) é legivel e absurdo; seu alter ego, o metatexto, é a0 contririo, ilegi- vel e claro. O carater operacional dessa distincao surgiré imediata- mente, desde que substituamos o leitor racional por um leitor imagi- nario, um mistico, um alquimista ou qualquer outro iniciado, que inverteria necessariamente os termos definicionais. Vemos aqui uma das principais razGes que nos impedem de seguir Freud em sua defi- nigio dos planos latente e manifesta do discurso: é a personalidade do descodificador (que é uma varivel individual) que é escolhida 182 como critério para estatuir as propriedades de um texto cuja exis- téncia é objetiva porque lingiiistica. __ Foi procurando explicitar as propriedades estruturais do préprio discurso que propusemos definir sua biisotopia pela manifestacao, ao longo de seu curso, dos termos complexos das categorias clas- semiticas. A isotopia complexa é pois um carter formal distintivo de uma classe de discursos possiveis. Cada discurso-ocorréncia, analisado, explicaré 0 contetido sémico de seus termos e as duas isotopias que manifesta. No exemplo do chien du commis- saire utilizado anteriormente, 0 classema “animal” estabelecerd a isotopia positiva que se manifesta gracas ao texto, 20 passo que © classema “humano” estabeleceré a isotopia negativa que se manifesta no metatexto. Por poderem ser determinados em cada caso dado, os conceitos de texto e de metatexto, embora perma- necendo operacionais, deixardo de ser arbitrarios, isto é, subme- tidos & apreciacio subjetiva do leitor. __Essas precisGes permitem sugerir a definicio lingiifstiea dos diversos modos de presenca das isotopias complexas no discutso. Sabemos que Viggo Brendal , formulando sua concepcio do sis- tema lingiifstico elementar, introduz, a0 lado do termo complexo, duas outras denominages: 0 complexo-positivo e 0 complexo-ne- gativo, caracterizados pela dominancia de um ou de outro dos termos na articulagao global. £ dificil dizer, no estado atual das pesquisas seminticas, em que medida as articulagées complementares da estrutura elemen- tar, 0s termos complexo-positivo e complexo-negativo, podem ser considerados como suficientemente fundados: sua integragdo parece, de qualquer forma, poder constituir 0 quadro dilatado que permite a interpretagio lingtifstica da nocio de assun¢ao, utilizada pelo Dr. Lacan em psicandlise e cuja importincia nio pode ser esquecida por ninguém. Assim, a concepgao bréndaliana oferece a possibilidade de distinguir estruturalmente trés modos de fun- cionamento da isotopia complexa no discurso: 1. Os dois termos constitutivos da isotopia complexa se acham em equilibrio: 0 locutor e o alocutdrio “assumem” nesse aso plenamente as duas isotopias, Retomando o exemplo dos guerreiros simba: homem positive leao negative 133 Tratase de uma isotopia complexa em equilibria. 2. O termo positive complexo domina: os dois participantes ao discurso “assumem” completamente a isotopia positiva e parcial- mente a isotopia negativa: Rimbaud Positivo bateau tore ——_negativo™ ‘A isotopia complexa, & nesse caso, positica; 8. © termo negativo da isotopia domina: o locutor “as- sume” plenamente a isotopia negativa e parcialmente a isotopia positiva. No caso de M. Dupont que se considera um lustre, por exemplo: M.Dupont _ positivo lustre Negativo A isotopia complexa serd dita negativa. Observasio: £ evidente que os termos “positivo” © “ne- gativo” nfo implicam nenhum julgamento de valor. Podé- ‘riamos inclusive inverté-los, Aqueles para quem a obra de Bréndal é familiar sabem o papel que cle atribuia as estruturas elementares — apreendidas entretanto por ele no nivel do sistema lingiiistico, ¢ nao, como o opomos nesse momento, no nivel da manifestagdo — no estabe- fecimento da tipologia das linguas naturais, que considerava como representativas das mentalidades coletivas. Assim, as linguas ditas primitives sio caracterizadas, por ele, pela utilizacio freqiiente Gas estruturas complexas, a0 paso que 0s progressos da civilizagio traduzem-se pela transformacio dessas estruturas complexas em es- truturas bindrias ldgicas. Temos consciéncia, atualmente, do que hA de simplista e de excessivo em tal interpretacdo, que pretende definir globalmente, com a ajuda desse tinico critério, comunidades Iingiifsticas internas, endo zonas superestruturais particulares que se podem constituir em qualquer contexto histérico. Parece ine- gavel que certas metalinguagens coletivas sio cafacterizadas pela preferéncia que elas atribuem as estruturas complexas: as coinci- Ist déncias dos contrérios ou_a essas estruturas de mediacdo colo- cadas em evidéncia por C. Lévi-Strauss. Mas a andlise de um pequeno niimero de figuras sémicas do francés, escolhidas ao ‘acaso, nos mostrou bem que tais estruturas complexas podem estar presentes em qualquer universo significante (ex: as ldgicas plurivalentes atuais), que apenas a exploragio que dela fazem esta ou aquela comunidade lingiiistica pode ser diferente. © cardter simples ou complexo das isotopias do discurso depende, alids, das variagées individuais. Do ponto de vista do locutor, a maior ou menor complexidade isotdpica de seu discurso & funcao da estrutura idioletal de sua personalidade. Do ponto de vista do alocutdrio também, o problema da receptividade, isto é, da capacidade de descodificacio simultinea de duas mensagens, pode ser colocado. Uma experiéncia pessoal — a casualidade do encontro de um velho amigo no préprio instante em que este, apés uma hemorragia cerebral localizada, havia perdido a capaci- dade de aprender a significacdo postica ostentada como uma segunda isotopia, embora retendo a lembranca e a consciéncia aguda, para nao dizer trégica, da existéncia desse metatexto tor- nado inapreensivel — nos deu claramente a impressio de que as pesquisas neurolingiiisticas deveriam poder confirmar a existén- cia de uma comunicacio biisotépica, cujos dois niveis seriam a0 mesmo tempo auténomos e concomitantes, e determinar com precisio as condigSes de sua conjuncio e de sua disjungio. 135 ORGANIZACAO DO UNIVERSO SEMANTICO 1° UNIVERSO IMANENTE DA SIGNIFICAGAO 3) Uma dupla aproximagéo epistemolégica. Apés ter colocado em evidéncia o carter metalingiifstico de toda descrigao e, a fortiori, de toda construgio da teoria semin- tica, tentamos resumir, inicialmente, um pequeno mtimero de con- ceitos de base que permitissem constmir as unidades m{nimas (os constituintes tiltimos) constitutivas da significacao. A partir daf, procuramos observar o agenciamento desses elementos, em ima- néncia bem como em manifestagio, propondo, sempre que pos- sivel. novas definigées que dessem conta dessas unidades mais amplas. Chegamos agora a uma nova fase de nossa reflexio — apés explorar 0 dominio da significacio a partir de seus elementos iit mos, é preciso fazé-lo na perspectiva oposta, considerando o uni verso significante na sua totalidade, para tentar, desta vez, a colocagio de novos conceitos, coextensivos das’ articulagées & distingSes fundamentais desse universo. Esses dois procedimentos consecutivos, um de construgio, outro de divisio, deveriam se juntar para constituir uma teoria da descrigao lingiifstica do contetido, Mas tal teoria no é, pre- sentemente, sendo uma projecio de nossas necessidades e de nossas esperancas — as andlises parciais, que confirmam ou infir- mam as proposicées, quase sempre hipotéticas, sio ainda falhas. Bb) IndugGo e deducao. ‘A primeira dicotomia que propusemos, e que & preciso re- tomar nessa nova perspectiva, é a dos niveis fundamentais da 136 linguagem. Distinguimos, efetivamente, duas espécies de semas, os semas nucleares e os classemas, que remetem a dois nive autdnomos da linguagem, o nfvel semiolégico e 0 nivel seméntico. Apesar de certas abordagens teéricas j4 encaminhadas, esta distin- ao repousa ainda em grande parte sobre extrapolacoes de carter indutivo — de fato, definimos os semas nucleares e os classemas pelo seu modo de manifestacao no discurso. Os primeiros servem para constituir-lhe as figuras sémicas, e os encontramos dentro das unidades sintdticas chamadas lexemas; os ultimos, ao contrario, se manifestam nas unidades sintaticas mais amplas, que comportam a juncao de, no minimo, dois lexemas. Dois procedimentos, apli: cdveis As seqiiéncias do discurso de dimensées desiguais, e, portanto, hierarquicamente distintas, devem ser previstos para a extracio dessas duas espécies de semas. Tal definicao, embora valida, ainda nao est completa. Inicial- mente, ela define 0 que € anterior & manifestacao pelo seu modo de manifestacéo. A seguir, na medida em que mantém seu cardter indutivo, ela ‘se acha submetida ao acaso das descricées parciais que podem infirmé-la, Isso quer dizer que, para poder definir © semema como combinagao manifestada de semas nucleares e de classemas, e a manifestacio como a reuniéo de dois niveis da linguagem, semiolégico e semfntico, é preciso, sem recusar nada das definigées precedentes, colocar francamente, no plano episte- moldgico da linguagem, as categorias constitutivas dessas defini- es, garantir assim, pelo seu cardter aprioristico, os fundamentos da construgdo considerada. Colocado dessa maneira o problema, percebemos que antes de estatuir a existéncia de dois niveis distintos — semiolégico vs _semfintico — da linguagem, devemos nos assegurar, pelo menos no principio. dos fundamentos do conceito de linguagem, da oposi¢io entre imanéncia_e manifestagio nela mantida, bem como do con- ceito de nivel. Ao longo dos capitulos precedentes, niantivemos a distingao cOmoda, que j4 se tomou praticamente clissica, entre a lingua concebida como sistema imanente e a lingua apreendida como processo manifestado. ‘Trata-se agora de precisar o sentido que 187 podemos conservar para essa oposiciio na economia geral de uma teoria propriamente semifintica da linguagem. © centro de toda nossa reflexio tedrica est4 na hipdtese in- géma de que, partindo da unidade minima de significagao, pode- mos chegar a descrever e a organizar os conjuntos sempre mais vastos de significagio. Entretanto, essa unidade minima, que denominamos sema, nao tem existéncia prépria, e sé pode ser ima- ginada ou descrita em relagdo a alguma coisa que nio é ela, e sé na medida em que faz parte de uma estrutura de significagio. Situando, portanto, o sema dentro da percepcio, num lugar onde se constituem as significagdes, nés nos apercebemos de que ele recebia af uma espécie de existéncia gracas & sua participacio em dois conjuntos significantes ao mesmo tempo: 0 sema efeti- vamente se afirma, por disjuncao, dentro da categoria sémica; ele se confirma, por jun¢ao com outros semas, dentro de agrupa- mentos sémicos, que chamamos figuras e bases sémicas. ‘© sema depende ao mesmo tempo, pois, de dois universos significantes, que podemos designar operacionalmente como o universo da imanéncia e 0 universo da manifestacdo, e que sio simplesmente dois modos de existéncia diferentes da significacao. Considerando que a significagio sé pode se manifestar se for inicialmente articulada em estruturas disjuntivas, e que, por outro lado, sé podemos dizer algo da significagio na medida em que é manifestada, a relacio entre os dois universos — imanente e mani- festado — & a da pressuposi¢ao reciproca. Assim ligados, eles constituem 0 que podemos agora chamar de universo seméntico, expressio que podemos sem diivida substituir pelo termo de linguagem, que se tornou ambfguo por sua utilizacdo abusiva em filosofia e em literatura. Essas_precisGes preliminares vao-nos permitir agora penetrar mais fundo no universo semfntico para af procurar novos ele- mentos definicionais. ¢) A abordagem empirica do universo imanente. Os semas, dizlamos, sé podem ser considerados como elemen- tos de significacso na medida em que fazem parte das categorias sémicas, e, portanto, na medida em que se agenciem em estru- 138 turas elementares da significacdo. Podemos dizer entio que essas categorias sémicas constituem um conjunto: 0 conceito de nivel que utilizamos sé faz constatar a dicotomia desse conjunto em dois subconjuntos, designados respectivamente como niveis semio- légico © semantico. O termo conjunto nao nos compromete em nada e tio-s mente remete, de certa forma, & constatagdo de nossa ignordncia, Efetivamente, no sabemos se as categorias sémicas sio todas organizadas em sistemas sémicos, nem se estes iiltimos sio coexten- sivos em relacéo as ordens (as ordens olfativa, tictil, ete, do nivel semiolégico, por exemplo), nem, finalmente, se as ordens constituem ou nao o sistema dos sistemas; & por isso que dizemos que a ordem sémica é um conjunto de sistemas e que o nivel semiolégico constitui-se de um conjunto de ordens sémicas, que indicam, gracas_a esses termos “ordem” e “nivel”, os escalies hierdrquicos onde supomos se situarem os sistemas’ sémicos. As anilise sémicas ulteriores permitirdo por si s6 decidir 0 modo de articulagdo estrutural das ordens e dos niveis. ‘Tal poderia ser a solucio proviséria do problema da organiza- gio interna dos niveis do universo imanente. Aproveitamos, entre- tanto, a ocasido que se apresenta, para colocar de sobreaviso os semanticistas contra essa nocio de conjunto, que se parece bene- ficiar, no presente, do beneplécito de certos meios lingiifsticos. Sem negar seu valor operacional, seria preciso no entanto subli- thar seu carter de formulacio provisdria, no procedimento global da anilise: 0 conceito de inventério, por exemplo, que & apenas uma sua variante terminolégica, se 6 titil para delimitar uma classe cuja anilise se propée antes de sua reducdo ao sistema (ou a varios sistemas), pode tornar-se petigoso se sua constituiggo for considerada como a ultima ratio da descrigio. O mesmo poderiamos dizer das estruturas concretas, que por vezes nos com- prazemos em opor, em sociologia, As estruturas abstratas, isto é, sisteméticas. d) Sistemas © morfemas. Mas poderiamos também retomar 0 problema no plano episte molégico, no nivel onde se acha elaborado o préprio conceito de 189 estrutura, tentando reintroduzir os termos abandonados pela légica clissica: divisdo e particdo. A estrutura é, efetivamente, uma tota- lidade considerada como um eixo divisivel em semas; as relacées que caracterizam sua organizagio interna sao tanto antonimicas (as de conjungio e de disjungio) quanto hiponimicas. Vimos que essas relacées eram suscetiveis de se manifestar de maneira independente: chegamos mesmo a designar como “hipotaticas” as relagées de ca- iter hiponimico, mas que servem para ligar entre si os elementos heterocategéricos. Esse lembrete permite considerar que as relagSes esto aptas a constituir duas espécies de estruturas: sistemas e morfemas. As primeiras sio constitufdas de articulagSes que, partindo de um eixo totalizante comum, sé utilizam os elementos de significacio homogéneos, onde uma categoria sémica esta ‘em relacio hipero- nimica com seus prdprios semas e em relagdo hiponimica com a categoria hierarquicamente superior, da qual ela constitui um dos semas. As segundas, ao contrario, sio constitufdas de elementos de significagdo dos quais sé o eixo totalizante comum e a organi- zacio hipotética estio assegurados, mas cujos elementos perten- cem tanto a sistemas, quanto a ordens heterogéneas. No primeiro caso, trata-se da divisio da totalidade considerada como cixo; no segundo caso, a particio da mesma totalidade. Retomando as reflexdes sobre imanéncia e manifestagio, podemes dizer que todo sema participa, 20 mesmo tempo, das duas estruturas diferentes: as estruturas sistemiticas e as estru- turas morfeméticas. Observacdo: Estariamos enganados se deduzissemos que a caracteristica dos sistemas .é serem imanentes — embora esse seja 0 caso mais freqiiente — e que a manilestacio é sempre morfemitica: a estrutura dos atuantes no enunciado & como veremos, a projecio do sistemitico sobre 0 morfe- mitico; e, inversamente, a utilizagdo taxinémica freqiiente do morfema corpo, por exemplo (cf. Lévi-Strauss), nos obriga a consideré-lo como um modelo imanente. Essas considerac6es permitem formular de maneira um pouco diferente a definicao dos niveis constitutivos do universo imanente: 1400 aguardando um melhor conhecimento de sua organizacio estru- tural, eles devem ser considerados como estruturas morfemiticas, constituidas de categorias e de sistemas stmicos. O universo imanente é, por isso, dividido em dois nfveis: — semiolégico e semintico — cujos eixos constitutivos, que definem cada nivel em sua totalidade, se identificam com um dos dois termos da catego- ria meta-sémica articulada em exteroceptividade vs interoceptividade. 2° UNIVERSO MANIFESTADO DA SIGNIFICACAO a) © conteido. £ sedutor (nds j& tentamos fazé-lo) aplicar & oposicio dos niveis semiolgico e seméntico que acabamos de operar, a dis- tingio hjelmsleviana entre a forma e a substancia do conteiido, embora conscientes de seu cariter relativo e, por isso, operacional. Situando-nos no plano epistemoldgico, poderiamos entéo dizer que a substdncia do conteiido constitui esse pano de fundo, articulado em um pequeno mimero de categorias do espirito humano, sobre 0 qual se vém juntar elementos de percepcao do mundo exterior para manifestar a significacio. Tal “concepcio do mundo” nio & absolutamente necessiria & construcio da linguagem descritiva. Bastard dizer que a reunido dos nfveis imanentes, semiolégico e seméntico, constitui a manifestagao do conteiido como tal. Entre- tanto, para que tal manifestacio seja plenamente acabada, é preciso que sejam superadas duas etapas e preenchidas duas condigies: 1. _& preciso que haja reunido dos dois niveis, isto é, que uma relacio se estabeleca entre um minimo de semas pertencentes aos nfveis diferentes, produzindo assim a combinacio de elementos heterogéneos. Reservamos a esta jungio 0 termo manifestacao, restringindo assim seu contetido; 2. & preciso também que as combinagdes de contetido assim obtidas se encontrem com o plano da expresso, para achar af combi- nacées paralelas e nao isomorfas da expresso, constituindo assim por sua pressuposigio reofproca, a manifestacdo lingiifstica pro- priamente dita, Diremos que se trata entio da manifestacdo da 141 significagio sob forma de discurso, que faz 0 contedo mostrar-se ‘como uma sucessio de efeitos de sentido. ‘Observagio: Parece-nos que a descri¢&o paralela do plano da expressio, que 0 conceberia como a jungao da forma e da substincia da expressio, no exigindo, por isso, nenhuma realizacio fisioldgica dos fonemas e nfo produzindo nenhum “efeito de sentido” auditivo, daria conta, de maneira satis- fatéria, da linguagem dita interior. Somos assim levados a considerar separadamente as duas condigses necessérias da manifestacdo da significacio. 1. A articulagdo simulténea dos planos do conteiido e da ex- pressio, constitutiva do discurso, considerada como uma aquisicao definitiva, nao levanta problemas tedricos. Bastard, pois, deixar para mais tarde 0 exame de conjunto das conclusses de ordem semintica que convém extrair. 2. A manifestacio, definida como combinacao de semas hete- rogéneos coloca o problema mais geral das relacées intersémicas. a) Parece normal considerar que a relagio que funda, pela reunido dos niveis semiolégico e semfntico, a manifestacio do contetido seja a de sua pressuposi¢ao recfproca. Na realidade, a questio se complica pela existéncia de relagées lexicalizadas, tais como as encontramos em francés, por exemplo, sob a forma de conjungdes (et, ou, “e”, “ou”) ou de advérbios relacionais (plus ou moins “mais ou menos”) ete., aos quais é preciso acres- centar todas as lexicalizagies realizadas ou possiveis de classemas (conjungao, substantivo, etc.) ou de grupos de classemas. Em outras palavras, a manifestacéo de metassemas ou de classemas nao implica necessariamente a presenca de elementos semiolégicos. Somos pois obrigados a reconhecer a existéncia de duas espécies de unidades manifestas: sememas, produzidos pela jungao dos semas de niveis heterogéneos, e metassememas que manifestam apenas as. combinagées classematicas. Esse reconhecimento de dois tipos estruturais de sememas, ‘em vez de destruir, apenas confirma o postulado’ da pressuposi- Ho recfproca dos semas nucleares e dos classemas no processo da manifestacdo. Os sememas constituem, efetivamente, o plano 142 fundamental da manifestagdo, que podemos identificar com a Iin- gua-objeto dos Idgicos. Os meta-sememas nao se situam nesse plano: eles o pressupdem, ao contrério, pressupondo ao mesmo tempo o nivel semioldgico. Diremos, pois, que a relacio que se estabelece, no momento da manifestacdo, entre os niveis semantico e semiolégico, é a da pressuposicao recfproca, condi¢ao necessiria da constituicio do plano fundamental da significaco. Os planos secundédrios, pelo proprio fato de pressupor a existéncia do plano fundamental, comportar unidades que manifestam apenas as combina- bes classemiticas. b) A natureza das relagdes entre semas que pertencem a um mesmo nfvel imanente coloca um outro problema. Das trés relagSes fundamentais que reconhecemos, parece — e certo nimero de analises parciais 0 confirmaram — que s6 a relagio hipotética pode ser retida para a interpretacgdo da organizacdo interna dos sememas. A relacio de conjuncio efetivamente se manifesta, como vimos, estabelecendo-se as equivaléncias, totais ou parciais, entre sememas e classes de sememas, e dA conta do funcionamento metalingiifstico do discurso. A relacio de disjun- Go deve, também, ser exclufda do instrumental ‘descritive do semema: somente a disjuncio sémica permite explicar a dif renca de sentido entre dois sememas cuja organizacio sémica seria, por outro lado, idéntica. Admitindo sua existéncia dentro do seme- ma, serlamos obrigados a renunciar & andlise semémica do texto e voltar ao procedimento lexemitico que jé recusamos. O lexema 6, efetivamente, um modelo de funcionamento, e ndo uma unidade descritiva do contetido. b) A combinatéria, A simples oposicio de imanéncia e de manifestacio nao basta, como vemos, para definir os dois aspectos complementares do universo semAntico. Desde que deixemos de identificar a manifestacio com o discurso e de consideré-la como “encarnada” nas seqiiéncias fdnicas ou grificas, o universo imanente e 0 universo manifestado aparecem como dais madelos compardveis, dando conta, de duas maneiras diferentes, do mesmo fendmeno. i Os dois modelos sio bem caracterizados por sua organizacio interna diferente; isso nao impede que eles constituam uma espé- cie de vasos comunicantes: 0 universo imanente se deixa recons- truir a partir da manifestacdo; esta, por sua vez, deve poder ser deduzida do modelo imanente. As regras de construgdo do uni- verso imanente devem corresponder regras de geragio do universo manifestado. Efetivamente, se considerarmos 0 universo imanente como um conjunto de categorias sémicas, a manifestagio toma a forma da combinatéria de suas articulagdes. Se o agenciamento das cate- gorias sémicas é de ordem sistemitica, as combinagdes semémicas de suas articulagdes serio de ordem morfemitica. ‘As regras de construgdo dessa combinatéria, que j& pratica- mente estabelecemos, introduzindo progressivamente uma série de restrigdes, poderiam ser assim resumidas: 1. 0 conjunto das categorias sémicas est dividido em dois subconjuntos: um subconjunto E, constituido de semas nucleares, e um subconjunto I, constituido’ de classemas; 2. toda unidade de manifestacio deve comportar ao menos dois semas; 8. duas espécies de unidades de manifestagio podem ser combinadas: os sememas e 0s metassememas: a) a combinatéria deduzida apenas a partir do subconjun- to I se constitui em um corpus de metassememas; b) a combinatéria que utiliza os dois subconjuntos I e E constitui 0 corpus de sememas. Os sememas devem ser combi- nados de tal forma que 20 menos um termo de cada subconjunto esteja presente em cada um dos sememas. 4. Cada um dos subconjuntos 6 constitufdo de categorias semicas binérias, quando da manifestacéo: entretanto, cada cate- goria bindria, por suas possiveis articulagdes, provoca 0 apareci- mento de seis termos diferentes. Conseqiientemente, a uma cate- goria binéria do universo imanente correspondem ‘seis possiveis sememas diferenciados da manifestacao. ©) A escolha estratégica. Tal concep¢o do universo semAntico, para chegar A praxis da anilise do conteido, pressupze uma descricao prévia, a0 menos parcial, dos niveis semiolégico e semantico imanentes. Esta, por sua vez, antes de ser empreendida, deve-se fundar sobre consi- deracées concementes & escolha estratégica do escalio de profun- didade stima a ser dado A descricio. Pudemos observar, quando das reflexdes precedentes, que 0 escalio escolhido para a construgio dos semas é funcao das dimensGes do corpus a ser descrito: contrariamente a0 que pode- ramos pensar & primeira vista, a cada ampliacio do corpus cor- responde uma maior generalidade dos semas, e conseqiiente- mente, a diminuic’o de seu nimero. © mimero de categorias sémicas serd, portanto, mais elevado se sé nos preocuparmos com ‘a descricdo ‘de uma tinica lingua natural ou de um sé estado sinerénico dessa lingua. Ao contrétio, ele diminuiré, se bem que em proporgces bastante reduzidas, ‘se decidirmos’ postular um universo imanente que dé conta de um grande mimero de linguas naturais ou de varios estados diacrénicos de uma mesma lingue. Se h4, portanto, interesse em situar a descri¢io sémica num plano de generalidade elevada, e em situar ao mesmo tempo, pelo menos teoricamente, o problema da comparabilidade das lin- guas — problema capital para todos os ramos da lingiifstica apli- cada —, ¢ preciso, da mesma forma, levar em conta dificuldades que provavelmente aparecam ao nivel da manifestagio semémica A simplicidade do universo imanente corresponde a complexidade do universo manifestado, articulado'em sememas: quanto menos combindveis sio os semas, mais complexa e fastidiosa apareceré a estrutura morfemitica de cada semema. @) Abertura do corpus dos sememas. Uma outra particularidade do universo manifestado merece ser fixada: & a lacuna que separa o contetido realizivel do con- tetido efetivamente realizado, nesta ou naquela lingua natural. O célculo, mesmo aproximativo, mostra bem que um conjunto de semas relatlvamente reduzido ¢ capaz de produzir um udmero consideravel de sememas, contabilizados facilmente em milhares 145 e em milhées de exemplares. £ evidente que nenbuma Mngua ‘esgota sua combinatdria tedrica, e que ela deixa uma margem de liberdade mais que suficientes manifestacdes ulteriores da histéria. C. Lévi-Strauss observou bem que tal concepcio do universo semfntico pode eliminar a contradicio aparente entre a reclusao das estruturas sociais, limitadas em numero, e a abertura da histéria da qual elas participam. De um modo geral, pois, podemos dizer que, se o modelo sémico de um universo semintico € fechado, seu corpus de sememas é, em compensacio, ampla- mente aberto. Observaséo: Vamos notar, entretanto, que o carter par- cial de todo corpus de sememas realizados nfo tem nenhuma incidéncia sobre as dimensdes do conjunto sémico neces- sirio A sua descricio. A dispersio dos sememas realizados dentro do campo da combindtoria teérica deve ser tal que no se possa tentar nenhuma reducao do mimero das cate- gorias, muito pelo contrario: 0 carter incompleto dos inven- tarios pode aumentar o mimero dessas categorias. ©) Os sememas abstratos e os sememas concretos. ‘Um dos caracteres evidentes das combinacées sémicas que constituem os sememas é sua densidade desigual: efetivamente, ‘a combinatéria pode produzir sememas caracterizados pela pre- senga de duas articulagdes sémicas somente, como pode engendrar sememas que realizam, em seu interior, termos que representam uma articulacdo qualquer de cada uma das categorias sémicas. A densidade sémica dos sememas se escalona, portanto, entre dois pélos, 0 primeiro dos quais comporta um minimo de dois semas, e 0 segundo, o nimero de semas correspondentes & soma das categorias sémicas bindrias utilizadas para descricfo do uni- verso. A densidade, considerada como uma categoria quantitativa, pode, conseqiientemente, servir de critério de apreciacéo do caréter mais ou menos abstrato ou concreto dos sememas. Assim, indepen- dentemente da natureza semiolégica dos semas que os constituem, os sememas relagio ou velocidade serio julgados abstratos, ao [Passo que sememas como chua ou estrutura aparecerio como coneretos. 146 A possibilidade de avaliar 0 grau de abstracio dos sememas nos interessa na medida em que as variagSes de densidade carac- terizam todo o desenrolar do discurso e conclusdes priticas podem hediafamente ser tiradas daf. Dir-se-& talvez que esse apenas um ponto de vista tedrico sobre 0 funcionamento do dis- curso, mas énos dificil imaginar um destinatrio que descodifique e que procure apreender simultaneamente por um sé semema uma estrutura morfemitica de uns vinte semas. A abstracio, isto & 0 esforco que despende o destinat4rio para selecionar os dados trans- mitidos, para reter apenas o estritamento necessitio, caracteriza, em nossa opinio, o funcionamento do,discurso em todos os niveis: & por ela, qualquer que seja alids, 0 nome que se Ihe dé, que R. Jakobson, nas primeiras paginas dos Fundamentals of Language, explica o funcionamento econdmico do cédigo e o carter elitico da transmissio fonolégica. A abstracdo € certamente um empobrecimento do contetido, mas é ao mesmo tempo o preco imposto pela comunicagao para garanlir a pertinéucia da significagao transmitida. Ao invés de deploré-la, como o fazem certos filosdfos concretos, & preciso que ‘a aceitemos como uma necessidade; apés té-la constatado, nao nos resta senfo nos alegrarmos por ela tornar possfvel a construcio de filosofias, mesmo “concretas”. Pouco importa que os sememas sejam jé lexicalizados com seu contetido abstrato, ou que sejam abstrafdos, isto é que sejam despojados, pela suspensio de certos semas, da densidade exces- sivamente forte de suas determinagies. Esse traco essencial da comunicacio torna legitimo o procedimento da simplificagio sémica, ja estudada quando da constitui¢io dos sememas construfdos: esta aparece como a simulacio da atividade lingiifstica quando do processo da comunicacao. Ao procedimento de simplificagio, devemos opor 0 nao menos necessirio da complicacio. Apercebemo-nos, efetivamente, que 0s .microuniversos semnticos muito abstratos, como a linguagem matematica, nao lexicalizam, na manifestacao, um niimero suficiente de sememas, e que os subentendidos implicitos do diseurso matema- tico ndo permitem passar diretamente As operacdes lingiifsticas mecanizadas. As linguagens-m4quina, como o Algol lingiifstico, tiveram de ser elaboradas para nutrir, “encatalisar” 0 discurso. Os matematicos russos encarregados de construir a linguagem do- 147 cumental adequada chegaram as: mesmas conclusées. O procedi- mento de complicacao, aplicado ao discurso abstrato, elabora assim uma metalinguagem que se aproxima da formalizagao de qualquer “semintica”, no sentido que os Iégicos atribuem a esse termo. A formalizacao pode pois exigir tanto procedimentos de simpli- ficacdo como de complicacao. Ela nao se identifica totalmente nem com uma nem com outra. ) As incompatibilidades. Se a combinatéria realizada nesta ou naquela lingua natural no esgota, pelas razSes que jé invocamos, as possibilidades tedricas que ela contém, sua manifestacdo se acha, além disso, limitada por um jogo de incompatibilidades que eliminam um nimero impor- tante de combinagées semémicas. Essas incompatibilidades pode- riam ser de duas espécies: formais e substanciais. 1. Incompatibilidades formais Lembraremos que Brandal procedendo & combinatéria dos 6 termos de seu sistema lingiiis- tico elementar, para ver qual é 0 nimero possivel de estruturas distintas, chegou 4 conclusio de que, sobre uns 144 sistemas teo- ricamente combindveis, apenas 64 combinacées eram de fato com- pativeis. Isso s6 nos da, na realidade, indicagdes concernentes & ‘ordem de importincia das eliminagées devidas &s incompatibili- dades: situamo-nos evidentemente num ponto de vista diferente do de Brendal , considerando essas mesmas estruturas nio mais em imanéncia, mas em manifestaco. Também nos parece dificil propor por enquanto regras de construgio em funcdo das incompa- tibilidades. A titulo de indicagio, podemos entretanto notar que a manifestacao, por exemplo, de um semema que comporte o termo neutro de uma categoria sémica s6 é possivel se 0 semema em questdo contiver jd, na qualidade de sema, o eixo constitutivo da categoria considerada. Igualmente, a’ manifestacdo de um termo complexo pressupde a existéncia dos sememas distintos que com- portam os termos “positivo” e “negativo” isolados, ete. Esses exemplos mostram que as incompatibilidades nio concernem a este ou Aquele semema particular, mas que, ao contrdrio, elas se encadeiam umas com as outras. 2. Incompatibilidades substanciais. Sua denominagao coloca dificuldades empiricas e nfo problemas tedricos, Sua solucio sé 1468 poderd ser esbocada no momento em que as descric6es s¢micas, mesmo parciais, sejam efetuadas, permitindo julgar nao somente fa agramaticalidade, ou a alexicalidade das combinagées sémicas, mas primeiramente sua assemanticidade. 3° © DISCURSO @) Lexicalizagéo @ gramaticalizagao. Distinguimos anteriormente os conceitos de manifestacdo e de discurso, aos quais correspondem duas fases reconheciveis na pas- sagem do universo imanente A sua realizacio: a manifestacdo semémica dos semas se acompanha necessariamente da “colocacao” dos sememas no discurso, durante a qual estes se unem as articula- Ses compardveis do plano da expressio. Gostariamos de dar a esse proceso 0 nome de lexicalizacao, se pudéssemos aceitar, como o faz ainda um bom nimero de Tingiiistas, que a integragdo normal dos dois planos da linguagem se opera pela juncio do formante, combinacio fonemitica, e do semema, combinacio sémica constitutiva do lexema (ou signo lingiifstico). Infelizmente nio & esse 0 caso: os procedimentos modernos de descrigao do cédigo lingiiistico, obrigados a decom- por a anilise em miltiplas séries de subprogramacies, cada ‘vez mais corhplicadas, dio j4 uma idéia da complexidade da codi- ficagao do discurso. 1. No melhor dos casos, 0 formante nao recobre 0 semema, mas unicamente seu nmiicleo sémico,-garantindo-lhe, por sua opo- sigéio a outros formantes comparaveis, seu sentido negativo e, indiretamente, sua especificidade figurativa. E possivel, como ‘acontece no caso dos metassememas ou dos sememas pertencen- tes as taxinomias, que o lexema univoco se aproxime do tinico semema que recobre — mesmo nesse caso, os elementos classifi- catérios que ele contém ultrapassam necessariamente o quadro lexemitico. 2. Vimos que a base classemdtica se une a dimensdes sin- titicas mais amplas que os lexemas, e que os classemas sé podem ser reconhecidos gracas a constatagtes de diferengas de formantes lexematicos contiguos, eles priprios redutivels a classes de for- 9 mantes. E preciso, pois, entender por lexicalizagio nfio a recon- versio do semema em a, mas sua reconversio no que As ‘yezes chamamos palavra em contexto. 8. Enfim, 0 semema, em sua realizacio, pode ligarse a varios lexemas ao mesmo tempo, quer pela expanso de sua fi- gura nuclear, quer porque se manifesta sob as diversas formas de denominagies ou de definigées. Por isso, 0 processo de lexica- lizagio se confunde com o de gramaticalizacao. Lexicalizacao e gramaticalizacio so, portanto, dois conceitos operacionais de ma- nejo aparentemente simples, os quais, embora teoricamente distin tos, se confundem, pelo emaranhamento de seus procedimentos, no processo de comunicagao que engendra o discurso. b) Diferencas de expresso e identidades do contetdo. A auséncia de isomorfismo entre as unidades de manifestagio @ as unidades de comunieagio recoloca o antiga problema da sinonimia. Enquanto foi possivel considerar a lingua como um sistema de signos e esses signos — isto é, na nossa terminologia, ‘os lexermas — como a reunio de um formante e de um semema, o problema parecia simples: uma vez que toda diferenciagio fono- Wégica do formante acarreta uma diferenciacio inevitdvel na sig- nificacao, a sinonimia é exclufda por definicéo. E no dominio morfolégico que esse principio inicialmente muito absoluto, ou talvez mal formulado, viu-se abalado pela primeira vez: analisando as categorias morfoldgicas, tivemos de reconhecer que as marcas diferentes (-s e -t dos plurais fran- ceses, por exemplo) podem recobrir elementos de conteddo idén- ticos, com a condicéo, entretanto, de possuirem distribuiges contextuais diferentes. Basta, conseqiientemente, que uma marca seja realizada duas vezes, em dois niveis estruturais diferentes — a primeira vez, sob a forma de oposicao de fonemas; a segunda, sob forma de oposicao de segmentos fonematicos — para que o efeito diferen- ciador da primeira marca seja anulado pelo aparecimento de uma segunda separacio diferencial. Assim, em certas condicées, duas marcas, combinando-se, podem neutralizar-se z+(—2)=0, 150 @ uma variacio redundante do plano da expresso no provocou desvio de significacio. A sinonimia é, portanto, possivel. Vemos que tal ampliagio da nogio de desvio diferencial do significante introduz uma liberdade de manobra apreciével na anilise do conteédo. Com a condigio de situar as articulagSes diferenciadoras do significante em niveis distintos — 0 nivel lin- Zilistico, de um lado, e o nivel metalingiiistico, de outro — pode- mos sustentar, sem trair, por isso, os proprios fundamentos da lingiiistica estrutural, que 0 definidor légico pode ser idéntico ao termo definido. A ‘afirmacio da impossibilidade da sinon{mig, ‘conseqiiéncia légica da necessidade de dar conta do aparecimento da significagio gracas As articulagdes diferenciadoras do signifi- cante, no é mais incompativel, portanto, com a atividade meta- lingiifstica, que visa, além da multiplicidade das articulagbes, & descoberta das identidades, coridicao necessdria para a ordenagéo do universo semintico. Quem pode com o mais pode com 0 menos. Se temos direito de postular como possivel a identidade semémica, as condicées de aparecimento da equivaléncia semémica, isto é, da identidade de um certo nimero de semas manifestados nos sememas em outra parte diferentes, podem ser precisadas mais facilmente. Consideremos, por exemplo, sob esse Angulo, 0 procedimento do verificagzo dos classemas extrafdos dos contextos lexeméticos. A unidade de comunicacio, submetida A anélise, comporta, por um lado, o lexema cujo niicleo se procurard extrair, e, por outro, ‘uma classe de contextos compativeis com esse lexema. Quando pretendemos que uma subelasse desses contextos possua um clas- sema em comum, postulamos, de fato, uma certa invatidncia do contetido apesar das variagdes da expressao, uma identidade sé- mica através dos desvios de significante. Para que tal pretensio seja legitima, é preciso que um novo desvio diferencial, que anule 0 efeito das variagées observadas, possa ser registrado em ‘outro nivel. Esse outro nivel parece ser a unidade de comuni- cacio toda, e no mais somente a subclasse de varidveis con- textuais. Ela esta constituida de dois formantes discretos — da cobertura fonemitica do lexema e da subclasse fechada de for- mantes contextuais. O caréter discreto e definido desses dois formantes permite considerar sua combinasiio como criadora do desvio de significante; a substituicdo do lexema estudado por 151 um lexema qualquer (a nfo ser que se trate, também nesse caso, de uma classe comutavel) produziré um desvio de significacio. Encontramo-nos assim na presenca de dois desvios de signi- ficante, de duas marcas, em suma, que se anulam mutuamente, autorizando-nos a dizer que a identidade sémica, postulada a priori para a subclasse escolhida de contextos, é possfvel. Efetivamente, as anilises do plano de expresso néo nos informam nada a. respeite do classema postulado, e tampouco nos permitem dizer se -s ou -x sio marcas de plural, e os paladinos de formalismo em lingiiistica fazem seméntica, ' maneira de Monsieur Jourdan, sem o saber. ° Essa insisténcia sobre as repercussOes, & primeira vista im- previsiveis, que provoca, no plano da expressio, a afirmacio da existéncia de unidades no plano do contetdo, pode parecer initil a alguns. Para nés, porém, tratava-se da introdugao do princfpio da identidade na teflexo lingiifstica (sensibilizada apenas pelo principio das diferengas, seguindo nisso um dos postulados mais conhecidos de Saussure), principio este sem o qual nenhuma anilise de conteiido seria possivel. Tratava-se para nés de mostrar que nada, no plano da expressio, se opunha a existéncia de con- tetidos idénticos, formulados de maneira diferente. Assim se acha consolidado 0 conceito de equivaléncia, que, definida como idén- tidade sémica parcial, dé conta do funcionamento metalingiifstico do discurso e autoriza a prdpria andlise semintica. ©) A comunicagéo, Ligado intimamente ao fendmeno da lexicalizagio, como mos, acha-se o da gramaticalizacao. O discurso, efetivamente, & nfo somente o lugar da manifestagio da significagio, mas a0 mesmo tempo o seu meio de transmissio. O estudo da manifesta- Go jd nos permitiu entrever os dispositivos que tormam possivel a comunicagio. Esses so essencialmente de cardter iterativo. Pu- demos assim observar como a mostra de um certo tipo de classe- mas tinha por resultado a constituicdo das seqiiéncias isotdpicas do discurso; pudemos ver o papel desempenhado pelas redun- dancias sémicas que estabelecem as ligagdes A distdncia. Nessa perspectiva, podemos muito bem compreender que certo miimero de elementos do contetido seja sacrificado, em vista 152 eer apenas da manutengio da comunicagao, ou do preenchimento dessa funcdo fética, explicitada por R. Jakobson, e que poderfamos iden- tificar com a funciio gramatical no seu conjunto. Basta, efetivamente, que, apés uma escolha operada entre as categorias sémicas constitulivas de uma lingua natural, e cujos critérios nfo se mostram de maneira evidente, se organize um sistema segundo, caracterizado por um modo de funcionamento particular e por uma redundancia excessiva, para que a significacio manifestada no discurso seja liberada, em parte pelo menos, das tarefas de manutencao da comunicacao. Considerar que a estrutura gramatical é um sistema segundo em relacio & manifestagio do contetido nao quer dizer que ela constitua um universo ou um nivel imanente autdnomo: as cate- gorias sémicas que a compdem nao tém nada de original ¢ se realizam em todas as espécies de sememas. Ela 6, ao contririo, rela- tivamente auténoma no nivel da manifestacdo, onde um certo niimern de sememas, caracterizados por uma densidade stmica relativamente fraca e dotados de formantes especiais, consti- tuem morfemas gramaticais incumbidos de funcoes translativas. Essa nogao de translacao, tomada de Tesniére, explica bem 0 papel desempenhado pelos morfemas gramaticais, que englobam lexemas, e tratando-os como termos-objetos de uma sublinguagem, transmitem-nos (tal como o futebolista que passa a bola a seu companheiro), com a ajuda da redundancia gramatical, até o fim ‘iltimo que é'0 destinatidrio. A gramaticalizagio da manifestacio seria uma coisa excelente se as fungdes de significacio ¢ as da comunicagio fossem nitidamente distintas. Infelizmente, as estru- turas de comunicagio, queiram ou no certas pessoas, significam, ¢ as estruturas de significacio, como vimos, se ordenam para comuni- car: dai resultam as distorgdes continuas do discurso. ‘A estrutura gramatical assim compreendida é duplamente redundante. Ela o € pela repeticao de suas categorias morfoldgicas, pela isotopia devida a iteratividade das classes gramaticais, que funcionam em leque no discurso. Ela o é também pela retomada continua dos mesmos esquemas elementares nos quais se acham moldadas as mensagens. No entanto, pelo fato de ser a estrutura gramatical, ao mesmo tempo, uma estrutura significante, ela é criadora, no seu funciona- 153 mento, de redundancias de um tipo diferente, Ela 6 redundante pela existéncia dos mesmos semas nos lexemas e nos translativos (a presenga de categorias aspectuais ou modais tématizadas nas ralzes e nos flexivos, por exemplo), pela presenca dos indices, que sobredeterminam, uma vez mais, as classes gramaticais, ainda pelo seu sistema de derivagio, que retoma e reutiliza os classemas defi- nidores das classes gramaticais j4 situadas (os sufixos substanti- vais que indicam os processos verbais, por exemplo). Esse tipo de redundincia constitui o preco relativamente elevado do tributo pago pela humanidade para estar constantemente a par dos acon- tecimentos do mundo. A eliminaco dessas redundancias abusivas constitui uma das primeiras tarefas da anélise do contetido, mais delicada pelo fato de a elaboracao da linguagem descritiva situar-se entre 0s dois extremos a serem evitados: a simplificagio e a com- plexificagio. A escolha do nfvel estratégico para uma descricio Stima se impSe, af como em qualquer parte, como uma exigéncia pratica. @) Organizagéo da mensagem Seria pouco sério resumir em algumas linhas a maneira de ser ¢ 0 funcionamento das estruturas gramaticais. Também nao pre- tendemos aprender objetivamente a realidade gramatical com- plexa, mas lancar sobre ela o olhar embaracado de um semanticista que procura o meio mais simples de demolir as construgées barro- cas da gramitica, para melhor observar o desenrolar da significa- Gio que af se acha codificada. Desse ponto de vista, 0 edificio sintdtico aparece como uma construgio sem plano nem mira bem claros, como um emaranhamen- to de estagios e de escalées: os derivativos abarcam as classes de raizes, as “fung6es” sintéticas transformam as classes gramaticais fazendo-as desempenhar um papel aos quais no sio apropriadas: as proposigées inteiras sio diminuidas e chamadas a se comportar como simples advérbios. Através dessas translages miltiplas, a tarefa da anélise é de encontrar 0 fio condutor do discurso, de reduzir essas hierarquias a um plano isotépico da comunicagio. Isso porque a sintaxe, apesar desce hricabraqne aparente, as- sume uma fungio essencial: ela opera uma nova combinatéria, 154 a partir dos elementos constitutivos, que serio, desta vez, seme- mas, uma combinatéria que produz mensagens que permitem formular conceitos sobre 0 mundo em mimero praticamente in- finito, Dados os elementos da combinatéria, a tarefa da sintaxe consiste em propor um pequeno mimero de regras de construgao gracas aos quais os sememas se difundem por alguns esquemas sintiticos elementares. O jogo sintdtico que consiste em repro- duzir cada yez, em milhdes de exemplares, um mesmo pequeno espetdculo, que comporta um processo, alguns atores e uma situa- Go mais ou menos circunstanciada, talvez seja falseado e néo corresponda A maneira de ser das coisas no mundo “real”. Iss6 nio impede que o que desenrolamos diante de nés pelas regras sintéticas seja nossa visio de mundo e nossa maneira de organizd-lo — tinicas possiveis; isso gragas ao simbolismo fonético. problema que se coloca ao analista é saber como construir sua propria sintaxe seméntica, que refletiria, sob forma de inva- riantes, 0 conjunto dos jogos sintdticos que sao representados, como outras tantas varidveis, sobre escaldes hierdrquicas diferentes. Issa porque essa sintaxe permaneceré sempre seméntica, apesar das ilusGes dos légicos, que pensam poder operar com formas sem significagio, Estamos definitivamente fechados no nosso universo semfintico, e 0 melhor que podemos fazer é ainda tomar cons- ciéncia da visio do mundo que ai se acha implicada, ao mesmo tempo, como significacio e como condicao dessa significacao. A sintaxe semfntica é, pois, imanente & atividade lingiifstica e sua sé aplicacdo progressiva pode permitir a situacéo dos mo- delos da descrigio do contetido, na medida em que esse conteido visa A mensagem, isto é, conceito sobre 0 mundo ou relato dos acontecimentos do mundo, exterior ou interior. Poderfamos tentar tracar a partir deste momento suas grandes linhas: 1. A atividade lingiifstica, construtora de mensagens, apa- rece inicialmente com o estabelecimento de relagées hipotiticas entre um pequeno mimero de sememas: as funcSes, os atuantes, 0s circunstantes. Ela é pois essencialmente morfemitica e apre- senta séries de mensagens como algoritmos. Entretanto, uma estrutura sistemitica — a distribuicdo dos papéis aos atuantes — se superpie a essa hipotaxe e constitui a mensagem como uma projecto objetivante, simuladora de um mundo de onde o desti- nador € o destinatdrio da comunicacdo seriam exclufdos; 155 2. A atividade metalingiifstica aparece, por seu lado, como a pesquisa e 0 estabelecimento das equivaléncias e, pot conse- guinte, como a manifestagao das relagces de conjuncio. Com 0 auxilio de equivaléncias, isto é, de identidades sémicas, ela constréi mensagens como complementos de informac’o sobre o mundo, de tal forma que estas deixam de ser simples redundin- clas e servem, ao contririo, para construir os objetos lingiiisticos, com a ajuda de novas determinagies e novas definigées. A ati- vidade metalingiiistica, sistematica em seus procedimentos, conseqiientemente, a criagdo de objetos, que sio, em definitivo, estruturas morfemiticas. ‘Vistos nessa perspectiva, os esquemas aos quais obedece nossa atividade sint aparecem como modelos imanentes, colocados 4 nossa disposicfo para conceber e organizar os contetidos, sobre- tudo sob sua forma semémica. 156 DESCRIGAO DA SIGNIFICACAO 1° MANIFESTAGAO E DISCURSO @) Dicotomia do universo manifestado. Apés ter proposto no capitulo precedente 0 quadro de uma concepgio geral do universo seméntico que nos pareceu poder ser apicendide sucessivamente como universo virtual, como sua combinatéria manifestada, e, finalmente, como discurso, perce- Bbemos que a manifestacio discursiva devia, por sua vez, ser in- terpretada como uma combinatéria de segundo grau, geradora de mensagens. Precisamos deter-nos agora nesse novo aspecto de organizacao da significacao. Parece necessério, no entanto, introduzir inicialmente, ao nivel da manifestacio, uma divisio dicotémica do universo semantico igual Aquela que j4 operamos dentro do universo imanente, utilizando a categoria “exteroceptividade” vs “interoceptividade”. ‘As duas operag6es nfo sao, no entanto, idénticas. Atribuindo A categoria dicotomizante seu estatuto de metas- sema, podemos classificar os semas segundo sua origem presu- mida e distinguir, assim, dois niveis sémicos dentro do universo jimanente. Preocupados neste momento com a classificagio dos sememas e no mais com os semas, nio podemos mais considerar a categoria em questio como metassémica: j4 que organizam a imanifestacio em sememas, os termos da categoria utilizada sé podem ser classemas. A categoria classemitica, que serve assim para distinguir duas dimensdes fundamentais da manifestacio, sera estabelecida, jigo, como universal: se todo semema tem necessidade 157 de no minimo um classema para se manifestar, esse classema seré fu 0 termo I, ow 0 termo E da categoria fundamental. ‘Assim, embora utilizando a mesma categoria sémica, mas aplicando-a cada vez com um estatuto diferente, obtemos uma dupla classificacéo, que nio é nem paralela, nem contraditéria, Para exemplificar, o sema pesado (supondo que pesado seja um sema simples) & em imanéncia, um sema nuclear, isto é, pertence ao nivel semiolégico definido pelo termo E; manifestado nos dois contextos diferentes: um saco pesado, uma consciéncia pesada, fo. sema nuclear pesado se combinard, no primeiro caso, com 0 classema E, e no segundo, com o classema I. Retomando a terminologia estabelecida antigamente por Am- pére, podemos designar com o nome de dimensdo cosmoldgica Uma’ Ibotupia ou ui inventério de sememas que comportem o classema E. Paralelamente, 0 nome de dimensao noolégica pode ser aplicado a uma isotopia ou a um inventério de sememas caracterizados pela presenca do classema I. Toda descrigéo deverd, portanto, visar quer dimensio cos- molégica, quer & dimensio nooldgica do contetido. A descri¢io acabada da dimensao cosmolégica constituiria a cosmologia, que esgota 0 conhecimento do mundo exterior. A descri¢io completa da dimensao nooldgica constituiria, nas mesmas condicdes, a noolo- gia, que da conta inteiramente do mundo interior. Dada a imen- sidio do universo semantico, a manifestacao de uma dimensio, cosmoldgica ou noologica, e @ fortiori, sua descricao, s6 podem ser parciais. Diremos pois que 0 universo semintico é divisivel em microuniversos, cujas manifestacdes correspondem a corpus limi- tados de descricio. A manifestacio parcial da dimensio cosmols- gica sera dita manifestacdo prética, e a manifestacio parcial da dimensio noolégica, manifestacéo mitica. Como, além disso, o corpus a ser descrito pressupde ou um locutor individual ou um locutor coletivo, as proprias manifestacSes parciais serio consi- deradas tanto individuais como coletivas. 158 b) Isotopias fundamentais. Introduzindo na manifestagdo esta nova divisio, nao fazemos sendo complicar, & primeira vista, o deciframento do discurso, que, Jogomaquico pela polissemia de seus Iexemas e da confusio de universos causada pelo emaranhado das estruturas gramaticais, se mostraré, além disso, como uma sucessio desordenada de seqiiéncias prdticas ou miticas. Na realidade, a instituigio dessas dimensdes exclusivas sig- nifica o estabelecimento da isotopia fundamental, a partir da qual se fario as escolhas das isotopias segundas, que determinam as manifestacdes priticas ou miticas dos microuniversos. Assim, por exemplo, o sistema topolégico inteiro, tal como € lexicalizado nas preposigbes, nos advérbios, ete., e que organiza as diferentes déixis da dimensio, se acha transposto, pela simples substituicao de termos categéricos, a um espaco “simbédlico” (ilustrado, de maneira pe- remptoria, pela nossa reflexo sobre nfveis, dimensdes e isotopias). ©) A combinatéria sintética. Preocupado, até o presente, em definir a manifestacio como uma combinatéria de sememas, deixamos de lado o problema de sua delimitacio. No vendo na atividade lingiiistica stricto sensu senio um desenrolar de relagdes hipotiticas, no dispomos, por enquanto, de nenhum critério para estabelecer as fronteiras entre ‘os sememas. Tendo, por outro lado, notado a possibilidade de expansio das figuras nucleares, que ultrapassam facilmente os limi- tes “naturais” oferecidos pelos lexemas (ex. téte d'un canal); tendo facentuado em seguida a equivaléncia das denominacdes e das definicdes, tivemos de renunciar Aquela base de apreciacio rela- tivamente estével que era o niicleo sémico ligado ao lexema. Levantar a questo da delimitagao das unidades de manifesta- cao nao é retomar somente, como um subterfigio, os problemas ja antigos da atualizacao do discurso e da constituicio do mundo dos objetos, em relacio aos quais os lingiiistas tém sempre mani- festado uma desconfianca muitas vezes justificada. Definir 0 se- mema como unidade de manifestacdo é também langar as bases de uma nova cumbinatéria sintdtica, das quais essas unidades seriam os elementos combindveis. 159 Mas dizer que tal semema particular deva ser considerado como uma unidade nao é somente atribuir-lhe um classema su- plementar, o da “unidade”, que transformaria uma_ hicrarquia s¢mica qualquer, denominada “'semema”, em uma estrutura morfe- mitica possuidora de um eixo comum que da conta de sua apre- ensio total; € também instituir 0 semema como classe, conside- rando © corpus de todos os sememas manifestados como consti- tuindo apenas uma classe denominada “semema”. Diremos, pois, que 0 universo manifestado, em seu conjunto, constitui uma classe. definivel pela categoria da “totalidade”; que esta categoria, que nds propomos conceber, seguindo Brsndal, como articulando-se em discrigéo «vs _ integridade divide o universo manifestado, realizando, no momento da manifesta- ‘so, um de seus termos sémicos em duas subclasses, constituidas, no primeiro caso, de unidades discretas, e no segundo, de unidades integradas. Situando-nos ao nivel da manifestacdo das ocorréncias, vemos que todo semema, sobredeterminado pela presenca, em seu terior, do classema “discrigio”, se coloca como um objeto uni- tério, € produz, enquanto “efeito de sentido”, a idéia de “subs- tincia” — pouco importa o nome que se Ihe dé mais tarde — apés a adjungio de novas determinagées classemiticas: “coisa”, “pessoa”, “imagem”, “simbolo”, ete. Vemos, por outro lado, que todo semema que ‘comporte o classema “integridade” se apre- senta como um conjunto integrado de determinagées sémicas. Se 0 universo semintico, manifestado sob a forma de sememas, for considerado como a classe das classes, aparecerd assim como um universo sintatico imanente, capaz de gerar unidades de ma- nifestacio sintaticas maiores. Propomos fixar 0 nome de atuante para designar a subclasse de sememas definidos como unidades discretas, ¢ 0 de predicado para denominar os sememas conside- rados como unidades integradas. A combinagao de um predicado € de a0 menos um atuante constituira, assim, uma unidade maior, A qual podemos reservar 0 nome de mensagem (que precisaremos, sempre que necessirio, como sendo uma mensagem semdntica). ‘A manifestacdo sintética, que se organiza assim em mensagens, aparece como uma nova combinatéria muito simples, cujas regras 160 de construcio vamos tratar de precisar agora. A primeira vista, poderiamos dizer que 0 funcionamento da mensagem consiste em ‘estabelecer inicialmente objetos discretos, para fornecer em guida informacGes sobre esses objetos, com o auxilio de determi- flagdes mais ou menos integradas, aplicdveis a tais objetos. Assim 0 ponto de vista da légica tradicional, assim poderia.ser também a representacao da atividade sintética, apreendida ao vivo, no seu funcionamento hic et nunc. Entretanto, a perspectiva muda desde que deixemos de considerar a mensagem isolada e nos inter- Toguemos sobre a significacio de uma série de mensagens, e per- cebamos que a atividade sintética, situada no interior de um corpus, consiste, ao contrario, em instituit os objetos a partir de propésitos formulados sobre os acontecimentos, ou os estados do mundo. Diremos, pois, que @ priori, no quadro do universo semantico tomado em seu conjunto, 0 predieado pressupée o atuante, mas que @ posteriori, no interior de um microuniverso, um inventirio exaus- tivo de predicados constitui o atuante. ‘ Complicando um pouco a manifestacdo sintética, devemos in- troduzir a divisdo da classe dos predicados, postulando uma nova categoria classemitica, aquela que realiza a oposigio “estatismo’ ys “dinamismo”. Os semas predicativos sio capazes de fornecer informagGes quer sobre os estados, quer sobre os processos que concernem 0s atuantes na medida em que comportem o sema “estatismo” ou o sema “dinamismo”. Assim, anteriormente a qual- quer gramaticalizacdo, 0 semema predicativo, tal como se realiza no discurso, recoberto pelo lexema aller (ir) em: Cette robe lui va bien (este vestido Ihe cai bem) Cet enfant va 2 Vécole (este menino vai & escola) comportaré, no primeiro caso, 0 classema “estatismo” e, no se- gundo caso, 0 classema ‘“dinamismo’ Fixaremos 0 termo funcdo para designar o predicado “din&mico” © 0 de qualificagdo para 0 predicado “estético” e diremos que a mensagem, enquanto combinatéria de sememas, deve comportar, de um lado, uma funcao ou qualificacdo, e, de outro, um némero limitado de atuantes; a totalidade das mensagens constitui a manifestacio sintética da significagdo. 161 Observacaor O problema da articulagio dos atuantes, par- ticularmente complexo, seré retomado mais adiante no seu conjunto. @) A afabulacao © 0 “radotage” (*). © estabelecimento desses poucos conceitos relatives & orga- nizacdo da manifestacao permite j4 entrever os primeiros proce- dimentos da descricdo: a escolha da isotopia — prética ou mitica — a descrever, os procedimentos de delimitagio dos sememas e da construc&o das mensagens a serem aplicadas. Parece evidente que essa descodificacdo semintica deverd ser seguida da separa- a0 operacional das mensagens dinimicas e das mensagens es ticas. A isotopia de um texto a ser descrito tomard, assim, a forma de um duplo inventdrio de mensagens. Os predicados funcionais introduzem na organizacio da nificagio_a dimenséo dindmica, fazendo aparecer os microun ‘versus semanticos constitufdos por séries de mudancas que afetam os atuantes. Mas, colocados & parte o imperative e 0 vocativo, que podem aparecer como instrumentos lingiiisticos de ago sobre ¢ mundo, os outros predicados sao na realidade apenas simulagdes de ages, apénas narrativas dos acontecimentos do mundo. Como, por outro lado, nao sabemos, por enquanto, nada a propésito dessas narrativas, e como ignoramos mesmo se elas so logicamente orientadas, bastard considerd-las como afabulagSes. Diremos, as- sim, que um inventdrio de mensagens dinfmicas, descodificadas a partir de uma isotopia cosmolégica, constitui uma afabulacao prética, e que inversamente, a afabulacio sera mitica se a isotopia utilizada para a construgio das mensagens € nooldgica. Quanto a0 inventério das menségens caracterizadas pela pre- senga dos sememas qualificativos, vemos que o microuniverso assim pressuposto aparece como 0 universo do hébito e da per- manéncia. O papel dessas mensagens sé pode consistir em au- mentar, por determinagGes sucessivas, 0 ser dos atuantes aos quais eles remetem, Seu inventario & constituido, no fundo, de con- ceitos descosidos sobre coisas e pessoas mais ou menos familiares (*) Radotage: natrativa disparateda. (N. de T) 162 — niio é de espantar se nos propomos a designar com o nome de | “tadotage” esse inventdrio de mensagens estiticas. Como as afa- bulagées, os “radotages” podem, segundo a isotopia escolhida, ser ou praticos ou miticos. Vemos, pois, que a manifestacdo sintética, seja ela concebida como uma afabulacdo ou como um “radotage”, constitui, gracas As suas unidades, que sio as mensagens, esquemas estereotipados nos quais se difunde nosso saber, concemente ao fazer ou ao ser dos “objetos simbélicos” que sio os atuantes. 2° A MANIFESTACAO DISCURSIVA a) As bases pragméticas da organizacao. Basta observar a afabulacdo pratica cotidiana para af distinguir as linhas gerais pelas quais se opera a organizacio da significado no discurso, Se a uma série de comportamentos reais corresponde, no plano lingiifstico, uma série paralela de fung6es que os simu- lam, conotando assim um certo “fazer” nio lingiifstico, um_s6 semema, tal como “broder” (bordar) por exemplo, pode englobar todo um algoritmo de fungSes, aparecendo como a denominacao de um savoirfaire. Num dominio inteiramente diferente, o *radotage” mitico de um La Bruyére, englobado com a ajuda de um nome proprio de origem grega e, conseqiientemente, vazio de contetido, se revela, a partir da soma das qualificacdes, obediente ‘a. um princfpio de ordem, capaz de gerar um “carter”. A mani- festaco discursiva chega, pois, a produzir, partindo ou de séries funcionais ou de inventdrios qualificativos, conjuntos organizados que ultrapassam largamente os limites impostos pela sintaxe, e que, apenas pelo fato de serem suscetiveis de ser denominados, se apresentam como totalidades, isto é, estruturas que parecem ser de ordem morfemitica, no primeiro caso, e de ordem sistemé- tica, no segundo. Pouco importa que essas estruturas sejam denominadas de hé muito (broder) ou que as denominemos no préprio momento em que ‘a seqiiéncia discursiva se ache manifestada (Iphis): elas poderiam perfeitamente permanecer implicitas como possibilidades de de- nominacdo. Basta-nos, por enquanto, poder registrar a existéncia, 163 ‘no seio da manifestacio discursiva, dos elementos de organizacio do universo semfntico e notar que, caracterizados pelas deno- minagies, estes dependem do funcionamento metalingiifstico da significagdo, e si, ou podem ser, por isso, pressupostos pelo discurso. Um principio de ordem’ pode ser, conseqiientemente, imanente ao que designamos como simples cfabulardes ou rado- tages: na manifestacio discursiva, cujas unidades constitutivas s4o mensagens, pode ser, em principio, admitido um universo de imanéncia’ onde estariam situados os modelos que presidem a esta manifestacio e que a descrigio semAntica teria por tarefa explicitar. b) Modos de presenca da manifestacio discursiva. A manifestacZo discursiva parece, & primeira vista e de mia- neira geral, ser caracterizada por diferentes modos de presenca esses modelos de organizacio e por diferentes graus de sua explicitagao. 1. Em casos favordveis, a afabulacio pode se apresentar como 0 algoritmo acabado de um savoir-faire pratico ou mitico, e 0 radotage como uma nomenclatura, resultado de um saber pratico ou miftico organizado. 2. Na maioria das vezes, a afabulacio se manifesta de uma maneira elitica e s6 apresenta seqiiéncias algoritmicas incomple- tas de uma técnica ou de um mito; 0 radotage, por sua vez, é freqiientemente litético e aparece sob a forma de sistemas taxo- némicos parciais. A descrigio tem, nesse caso, como finalidade, junté-los subordinando-os a modelos que déem conta do conjunto dessas manifestacées parciais. 3. A afabulacio, como 0 radotage, podem finalmente aparecer sob a forma de mensagens isoladas, de carter mitico, dentro de uma manifestacao pratica, ou inversamente. Diremos que se trata, nese caso, ou de um mitico difuso na manifestacio pratica, ou do prético difuso na manifestacio mitica. Vemos assim, uma vez mais, que 0 equilibrio da manifesta- cdo discursiva é precdrio e que o funcionamento de uma biiso- topia, por exemplo, onde cada mensagem poderia ser lida a0 mesmo tempo como prética © mitica, 6 apenas um caso pal 164 ticular que se encontra, é verdade, em certos tipos de afabu- lacdo, como o conto popular. Na maioria das vezes, a manifestagio complexa est4 em desequilibrio — ela é tanto positiva como negativa. Assim, na manifestagéo quotidiana, o mitico sé se mani- festa sob a sua forma difusa, cedendo o primeiro lugar as preo- cupagées priticas. Em compensacao, nos casos do sonho e da poesia, a pritica se ressente do desenvolvimento excessivo do Tnitico e se contenta com uma manifestacao difusa (ex.: a elaboracéo secundéria de Freud). Estarfamos enganados se inferfssemos da insuficiéncia da ma- 0 a inexisténcia de modelos. As manifestagdes parciais icas ou eliticas — no deixam de pressupor modelos aca- bados, e teremos ocasiio de trazer mais tarde exemplos que 0 confirmam. Pode ser, por outro lado, que tal modo de presenca esteja em relacio direta com a preferéncia que o locutor — indi- vidual ou coletivo — tem em relacio a esse ou Aquele tipo de modelo; entretanto, & prematuro falar disso. Finalmente, ndo ser4 inttil notar, embora isso pareca natural, que a distingio das dimensves noolégica e cosmoldgica é de caréter muito geral, e que a manifestacio discursiva, tanto pré- tica como mitica, s¢ divide em microuniversos manifestados mil- tiplos. E preciso prevé-lo para tomar precaugées no plano opera- cional: dado que varias técnicas ou varias taxonomias po. estar implicadas ao mesmo tempo num sé texto, a descri¢ao nfo deve procurar construir, por exemplo, partindo do mitico difuso na comunicagio pratica, um modelo tinico que abrangeria sua fungao. ) Os microuniversos semanticos. ‘Antes de avancar a reflexio a respeito da manifestacdo discur- siva, sera Util pararmos um pouco para tentar resumir os resultados ‘obtidos. A descricéo do universo semAntico que empreendemos fez ‘com que este aparecesse como passivel de ser interpretado com 0 au- xilio de dois modelos de carater geral, dos quais 0 primeiro dé conta da manifestagio do contetido, e 0 segundo da organizacio do con- tetido manifestado. 1. O universo imanente —- 6 0 nome que demos a esse pri- meiro modelo — do qual s6 é proposta a axiomitica, mas cujas ‘165 articulagées sémicas devem ainda ser descritas; foi ele apresentado como capaz de dar conta do universo manifestado. O contetido assim manifestado, pelo seu modo de existéncia, 6 uma combina- téria de sememas; pelo seu modo de aparéncia, constitui 0 mundo das qualidades, essa espécie de tela opaca sobre a qual vém-se refletir intimeros efeitos de sentido. 2. O universo manifestado 6, por sua vez, submetido a um modelo que Ihe organiza o funcionamento combinando os seme- mas em mensagens: uma sintaxe imanente deve, conseqiient. mente, ser postulada para dar conta, gragas a uma combinatéria muito ‘simples, de uma tipologia de mensagens manifestadas. Contrariamente a0 primero modelo que, constituido de ca- tegorias da significagio, fornece a investidura sémica a cada semema particular, 0 modelo sintatico, construido com a ajuda de categorias metassémicas, nio opera com os sememas-ocorrén- cias, mas com sememas considerados como classes, independen- temente do contetido propriamente dito que neles s¢ encontra in- vestido. ‘A manifestagéo da significagio, que depende, assim, de dois modelos de interpretacio, situados em niveis hierdrquicos dist tos, possui, conseqiientemente, uma dupla articulagao e se acha submetida ‘a dois tipos de anilise, 0 primeiro que dé conta das investiduras sémicas, realizadas nos sememas, o segundo da orga- nizagéo dos contetidos investidos. Vemos que é tal reflexao sobre as condiges desse segundo tipo de anilise e a pesquisa de mo- delos que pudessem justifica-lo que nos preocupa no presente. $6 dispomos, de inicio, do modelo sintético para nos dar uma primeira idéia da maneira pela qual & preciso conceber a orga- nizagio dos contetidos dentro do universo manifestado. O modelo sintatico nos espanta inicialmente por sua simplicidade, isto é, ‘20 mesmo tempo pelo pequeno mimero de elementos consti- tutives da mensagem e pelas dimensdes muito limitadas atribuf- das A mensagem no desenrolar do discurso: assim, quando coloca- mos a questio ingenuamente, nio compreendemos por que a frase & a seqiiéncia maxima do discurso dentro da qual se exerce a atividade organizadora propriamente lingiiistica do contetido, quando se trata de uma manifcstagdo cujas dimensécs temporais nao sio impostas previamente. Olhando mais de perto, s6 temos 166 uma resposta_possivel da atividade sintética 6 pode provir das condicdes que Ihe impée objetivamente a re- cepcio da significagdo. Embora a mensagem se apresente & recepcdo como uma sucesso articulada de significagdes, isto é, com seu estatuto diacrdnico, a recepcdo s6 pode efetuar-se pela transformacio da sucessio em simultaneidade e da pseudo-dia- eronia em. sincronia. A percepedo sincrdnica, se acreditamos em Br¢gndal, s6 pode apreender um maximo de seis termos de cada vez. Se 0 colocamos assim, como condi¢o primeira, o principio de apreensio simultanea da significagio, aplicével a todos os niveis da manifestagio, ndo somente a mensagem nos aparece como uma unidade de manifestacdo acrénica, mas toda organizagao da manifestagio, isto é no sentido lato dessa palavra, toda a sintaxe imanente, deve ser concebida como um agenciamento do con- tetido visando 4 sua percepcio. O universo semfntico se frag- menta assim em microuniversos, que sio os tinicos que podem ser pervebidos, memorizados e “vividos”. Efetivamente, se pen- samos algo a propésito de algo projetamos esse algo diante de nds como uma estrutura de significagio simples que comporta apenas um pequeno nimero de termos. O fato de podermos depois aprofundar nossa reflexio, fixando apenas uma categoria, ‘ou um 36 termo, e desenvolver assim estruturas hipotiticas da signifi naéo muda em nada essa captagao primeira. Isso. explica a introdugao, nesta etapa da reflexio metodo- ogica, do conceito de microuniverso: diremos que ele se apre- senta como um modelo imanente, constituide, de um lado, de uum pequeno ntimero de categorias sémicas apreensiveis simulta- heamente como uma estrutura, e como podendo dar conta, de outro lado, gracas As suas articulagbes hipotiticas, do contevido manifestado sob a forma de texto isot6pico. d) Tipologia dos microuniversos. Deixando provisoriamente de lado os problemas concernentes A estrutura interna dos microuniversos, podemos jé utilizar, neste estagio. as informacées relativas as diferentes formas de mani- festacdo de que dispomos, para propor uma primeira classificagio 167 desses universos, fundada sobre os critérios de manifestacao. Assim, vimos que as mensagens, situadas sobre uma isotopia qualquer, deviam ser classificadas em dois inventérios separados — as mensagens funcionais e as mensagens qualificativas. Dire- mos que o primeiro inventério constitui a manifestagio discursiva do microuniverso que depende de um modelo funcional, e cha- maremos andlise funcional & andlise que d4 conta desse modo de organizacio. O mesmo ocorre com 0 segundo inventério de mensagens: enquanto manifestagao discursiva de um microuni- verso, pode ser interpretado com a ajuda de um modelo qualifi- cativo, e os procedimentos de descricao utilizados para esse efeito tomarao o nome de andlise qualificativa. Podemos precisar, em seguida, que a anélise que visa a explicitar 0s modelos funcionais, quando feita a partir da ma- nifestacio pratica, dard conta dos microuniversos. tecnolégicos; quando procurar descrever a manifestacio mitica, fard aparecer 0s microuniversos ideolgicos. Por outro lado, os modelos qua- lificativos, na medida em que sustentam a manifestagio pritica, dio conta dos microuniversos cientificos; operando a partir da manifestagao mitica, explicitam 0s microuniversos axiolégicos. Assim, considerando os microuniversos semanticos, tanto como imanentes' quanto como manifestados, ¢ distinguindo dois tipos principais da manifestacio e duas formas previsiveis de sua orga- nizacio, podemos sugerit uma primeira tipologia dos microuni- versos seminticos: foncionais qualificativos MANIFESTAGIO teenolbgicos cientificos smitica ideol6gicos axiolégicos ) Predicados © atuantes. Até o presente, consideramos as mensagens e os inventdrios de mensagens apenas de um ponto de vista simplificado e parcial, 168 36 levando em consideraco seus predicados. Dessa forma, um inventério de mensagens funcionais apareceu-nos como um algo- ritmo de fungées, isto é como uma sucessio de fungdes possui- doras de sentido; do mesmo modo, um inventirio de mensa- gens qualificativas pareceu. ser constitutive de uma classe de determinagées que, embora sucessivas na aparéncia, obedeciam a um principio de ordem que podia transformé-las em taxono- mias. Propusemos, a seguir, admitir a existéncia de modelos — dos quais apenas a simplicidade estrutural parece estar assegu- rada e que devem ser explicitados por andlises ulteriores — carac- terizados por dois tipos de agenciamento distintos: uns sio de ordem algoritmica e implicam, por essa raziio, uma consecucio de fungées; outros, de ordem classificatéria, estio fundados sobre as relagées de conjungio e de.disjuncio. Tal hipdtese constitui_o quadro, provisdrio talvez, que permite empreender a descri¢io dos conteiidos no interior de um microuniverso semantico dado A simplificagio do problema est4, no entanto, na colocagio entre parénteses dos atuantes de mensagens. De fato, uma su- cessio de mensagens pode ser considerada como um algoritmo apenas se as fungées que af se manifestam so atribuidas a um 56 atuante. O mesmo ocorre com mensagens qualificativas, que 36 se constituem em classe enquanto comportem as determina- ces de um atuante iinico. E preciso, consegtientemente, retomar 6 problema, levando em conta a complicacao introduzida nas mensagens © nos inventarios de mensagens pela pluralidade dos atuantes. A telacéo entre atuantes e predicados, observada por um momento no estudo da construgéo da mensagem, nos pareceu ambigu: Se, de fato, a0 nivel das mensagens tomadas individual- mente, as fungées e as qualificagdes parecem ser atribuidas aos atuantes, 0 contrario se produz ao nivel da manifestacao discur- siva: vemos que as fungdes ai, bem como as qualificagées, sio riadoras de atuantes, e que os atuantes sio convocados a uma vida metalingiiistica por serem representativos, dirfamos mesmo ‘compreensivos, das classes de predicados. Resulta disso que os modelos funcionais e qualificativos, tais como os admitimos, 169 so, por sua vez, dominados pelos modelos de organizagio de uum nivel hierarquico superior, que sao os modelos atuacionais. Precisaremos, portanto, da seguinte forma o duplo estatuto dos atuantes: enquanto contetidos investidos, os atuantes sio, de fato, instituidos por predicados dentro de cada microuniverso dado; enquanto subclasses sintaticas, séo entretanto, por -direito, anteriores aos predicados, consistindo a atividade discursiva, como vimos, na atribuicao de propriedades as entidades. £, pois, necessdria a categorizacao dos atuantes, isto é, a divisio da classe “atuantes” em subclasses de atuantes, que déem conta de sua plu- ralidade; uma vez constituidos em categorias, eles poderdo for- necer os quadros estruturais que permitem organizar os con- tetidos depreendidos gracas a anélise predicativa efetuada no interior dos microuniversos manifestados. ) Categorias atuacionais. Seria presungo, no estado atual das pesquisas, tentar dizer algo de preciso sobre as categorias que organizam, tanto no plano da mensagem discursiva quanto no interior dos microuni- versos, a representacio do mundo das significacées sob a forma de oposigses e de conjuncées de atuantes. Nos dois dominios onde é levantado — basta pensar nas construcées das sintaxes lingiiisticas e légicas —, 0 problema nao recebeu solucio satis- fatoria. Tratar-se-4, pois, para nds, apenas de abrir um dossié para nele lancar algumas sugestées e preformulagées. As anilises parciais que serio esbocadas nos tiltimos capitulos constituem apenas sbordagens pragmiticas do mesmo problema. A. pesquisa sintética francesa, na medida em que tem a coragem de atribuir um contetido semantico aos atuantes (Tes- niére, Martinet), propde apenas uma solugio empirica sob forma de um inventério de trés atuantes agente vs paciente vs beneficidrio sem cuidar de sua articulagio categérica, sem se inquietar, por exemplo, com 0 fato de que o “beneficiério” néo pressupte um “agente” mas um “benfeitor”. 170 Assim, nossa primeira sugestfo consistiria em. articular os atuantes em duas categorias distintas: sujeito vs. objeto destinador vs destinatario interpretando, quando se fizer necessério, pelo sincretismo cate- gorico, toda acumulacdo eventual de atuantes. Assim no enunciado Eva dé uma maga a Addo © sujeito Eva 6 0 ponto de partida de uma dupla relacio — a primeira se estabelece entre Eva e mar e a segunda entre Eva e Addo, sendo Eva ao mesmo tempo atuante-sujeito e atuante- =destinador. Uma outra sugestdo concerne A distingao que & preciso neces- sariamente estabelecer entre os atuantes sintaticos propriamente ditos e os atuantes semanticos. Nos enunciados: Eva dé umé maga a Addo Adio recebe de Eva uma maca as substituig6es sintéticas dos atuantes nfo altera nada em sua distribuigdo semantica, que nao varia, Além disso, poderlamos dizer que esse jogo de substituigdes sintticas serve de ponto de partida a um perspectivismo estilistico (isto é & utilizacio dos paradigmas de organizacio de narrativas em funcio dos atuantes sintaticamente favorecidos pelo escritor) que constitui uma das dimensGes estilisticas freqiientemente exploradas pelos movimentos literdrios das uiltimas décadas. Um fenémeno bem sensfvel, que merece ser sublinhado a par- tir deste momento, é a concomitancia das substituicées: um desti- natério 6 pode ser transformado em destinador na medida em que uma substituicio paralela é efetuada ao nivel das funges anula os efeitos da primeira. Isso quer dizer que a distingao categérica que articula os atuantes so manifesta em dois lugares diferentes da mensagem, e pode ser estabelecida tanto no nivel dos atuantes quanto no das funcées. J71 g) Sintaxe légica e sintaxe soméntica. £ essa tiltima solucio que parece ter sido escolhida pela sin- taxe légica, que situa no nivel das fungdes © problema de sua orientacao. Para dar conta das relagées entre os atuantes, é confe- rido 4s fung6es um certo contetido sémico conceitualizado sob nome de orientacao; assim, nas proposig6es do tipo x esté sob y & a funcdo (qualquer que seja sua notacéo simbélica) que esté encarregada de determinar 0 estatuto déitico dos dois atuantes. A sintaxe, uma vez orientada deste modo, permite fazer abstracio da investidura semantica dos atuantes (isto é, dos “nomes préprios"), mas multiplica as dificuldades no nivel das fungdes e as transfere para o nivel do célculo das proposigées. A via assim escolhida r ela & sintagmética e nao taxonémica, e aparece como uma algebra incumbida de controlar v mundo das significaydes, na medida em que este se. manifesta sob a forma de fato e de evento. Uma seméntica que buscasse imitar os modelos da sintaxe légica chegaria rapidamente a um impasse. Nao tendo fungdes de controle, ela se perderia na descri¢io da infinidade de ‘as- sergGes possiveis sobre os acontecimentos do mundo. Vimos com Bar-Hillel que nenhuma meméria é capaz de armazenar todos 0s conceitos sobre 0 mundo; nenhuma ciéncia devidamente constituida se livra do inventério dos acontecimentos; alids, con- digdes objetivas nas quais se efetuam muito provavelmente a recepcio ea conservacao da significacao nela se opdem. Em vez de dar a forma do desenvolvimento sintdtico aos contetidos se- minticos, precisamos, conseqiientemente, encontrar os meios de teduzir a sintaxe A semintica, e os acontecimentos as estruturas. Somos, assim, obrigados a assumir uma atitude de reserva em relacio A sintaxe Idgica, que nos ofereceria, entretanto, uma me- todologia j4 elaborada.' Assim, encontrando-nos em face de dois ‘enunciado: = esté sob y e y esté sobre x 179 preocupamo-nos nfo somente com a necessidade de formular as regras de transformacio que permitem reduzir as duas pro- posigdes a uma sé mensagem semfntica, mas também com a necessidade de fixar, ao nivel dos atuantes, 0 conteiido sémico das fungSes. Efetivamente, podemos dizer que, de um modo geral, as mesmas categorias sémicas se manifestam’ tanto nos atuantes quanto nos predicados, Assim, dois atuantes, tais como: grenier vs cave (sdtho) ——(pordo) ‘possuem as propriedades sémicas “estar no alto” e “estar em baixo” que dio conta, enquanto predicados lexicalizados, de suas rela- ‘goes topoldgicas reciprocas, Uma dupla formulagio — topolégica e déitica — de um mesmo contetido ¢ apenas a ilustracio de um modo de ser geral da significacio manifestada, Na medida em que a anilise funcional ou qualificativa institui os atuantes, ela nio faz senfo transferir, de certa forma, os conteiidos se- mAnticos da classe dos predicados & dos atuantes. Se cxistem, conseqiientemente, categorias atuacionais de cardter muito geral e se elas se manifesta, como vimos, tanto no nivel das fungées, quanto no dos atuantes, parece-nos necessirio dar-lhe uma for- mulacdo atuacional e nio funcional: 0 contetdo de um micro- universo semintico, previamente descrito, podera assim se apre- sentar, sob esta forma, como um “espetdculo” e nio mais como uma série de acontecimentos. h) © caréter modal das categorias atuacionais. fato mais chocante no funcionamento das categorias atua- cionais nos pareceu ser seu caréter redundante: cada categoria se manifesta, efetivamente, ao menos duas vezes dentro de uma mensagem. Numa primeira vez, ela se apresenta, por um sé de seus termos, em cada um dos atuantes; numa segunda vez, ela se encontra, com seus dois termos de uma sé vez, na fungio que interliga os dois atuantes. Assim, 0 enun¢iado Pierre bat Paul (Pedro espanca Paulo) Is ; i } manifesta a categoria S, com os seus termos # ¢ nfo s, da seguinte maneira: Ai (s) + F (s + no s) + Ae (nio s). ‘Vemos que temos aqui um caso de uma relacio morfossinté- tica que se estabelece entre a fungio € os atuantes “sujeito” € “objeto” e que & uma relacio homocategérica (ou, se quisermos, segundo nossa prépria terminologia, hiperon{mica): ela aparece como a repetigio da categoria manifestada tanto na sua totali- dade como em um de seus termos. Vista sob esse Angulo, a mensagem 6, definitivamente, apenas a projecio da estrutura elementar da significagio sobre os con- tetidos j& organizados em classes de atuantes e de predicados, isto é, de uma estrutura que é hierarquicamente superior as clas- ses de sememas. Se os atuantes, que definimos anteriormente como classe de sememas discretos, recebem assim determinacées suplementares, sob a forma de metassemas que os constituem em sujeltos, objetos, destinadores ou destinatérios, as fungoes, por sua vez, que concebemos como contetidos sémicos integrados, se acham abarcadas por categorias que decidem sobre seu estatuto em relacio aos atuantes e que constituem a mensagem enquanto acontecimento ‘significante, isto é, enquanto espetéculo do acon- tecimento. As categorias que chamamos “atuacionais”, por pa- recer ser constitutivas dos papéis particulares atribuidos aos atuan- tes, parecem ser, ao mesmo tempo, categorias modais, de maneira a atribuir um estatuto proprio a’ cada mensagem-espetéculo. A tarefa da semintica nesse nivel de reflexio metodolégica se torna precisa: lhe necessirio estabelecer, com a utilizagio dessas categorias modais, uma tipologia dos modos de existéncia,. sob a forma de estruturas atuacionais simples, dos microuniversos se- manticos, cujos contetidos, descritos gracas aos procedimentos da anilise funcional ou da anélise qualificativa (ou das duas ao mes- mo tempo), nio constituem senao vi ) Uma epistemologia lngilistica. Situar nesse- nivel o princfpio da existéncid de modelos de organizacio da significagio nos leva mais longe do que pensé- vamos de inicio: consiste, efetivamente, em asseverar a existéncia Wi de condigées lingiifsticas do conhecimento do mundo, e conse- qiientemente, em considerar a possibilidade de uma epistemologia lingiifstica. Ja anteriormente, com a introdugio da categoria de “totali- dade”, que nos pareceu necessiria para dar conta da constituicio das combinacées sémicas manifestadas em unidades de signi cacio — em atuantes, objetos linglifsticos discretos, e em predi- cados, totalidades sémicas integradas —, confundimos consciente- mente a lingiifstica e a epistemologia. Isso nos pareceu legitimo ‘na medida em que toda teoria da linguagem pode ser considerada como uma construcdo metalingiiistica e onde todo conceito meta- lingiifstico nao analisado pode, por esse fato, ser lancado no inventério epistemolégico hierarquicamente superior. A anilise da estrutura da mensagem nos obriga a colocar 0 problema de maneira um pouco diferente. Dizer que uma cate- goria modal engloba o conteiido da mensagem e 0 organiza, estabelecendo um tipo determinado de relacio entre os objetos Tinguisticos constituidos, significa que se reconhece que a es- trutura da mensagem impGe uma certa visio do mundo, Assim, a categoria de “transitividade” nos forca, por assim dizer, a conceber um certo tipo de relacéo entre os atuantes, coloca diante de nés um atuante como investido de poder de agir e um outro atuante investido de inércia. O mesmo ocorre com a rela- do entre destinador e destinatério, que parece nio somente fundar a troca, mas também instituir, face a face, objetos dos quais um seré a causa 0 outro o efeito, etc. Supondo agora que (© ntimero dessas categorias que organizam a’ significacio seja reduzido e que uma tipologia dos espetaculos assim institufdos seja possivel, tal tipologia, fundada sobre uma descricio exaustiva das estruturas da mensagem, constituiria 0 quadro objetivo dentro do qual a representacao dos contetdos, que se identificam com microuniversos seminticos, seria a tinica variével. As condi- ‘Ges lingiifsticas do conhecimento do mundo se encontrariam dese modo formuladas. Diremos que tal maneira de ver tem poucas conseqiiéncias Ptiticas para a descri¢ao das significagées cosmologicas. O mes- mo no ocorre, entretanto, quando se trata das manifestacdes miticas. extremamente variadas, cnjas andlises, praticadas por dife- rentes disciplinas humanistas, parecem pouco seguras, isto porque 175 se seus resultados nfo séo isomorfos, néo sio comparivels. As categorias modais 36 se referem aos predicados, e af seu papel permanece limitado & formulacio e a0 controle dos julgamentos: a coisa serd diferente se as concebermos como constitutivas dos modelos ao mesmo tempo predicativos e atuacionais, segundo os quais se organizam, inevitavelmente, os microuniversos seman- ticos. O dom{nio das categorias modais é t4o pouco explorado que nfo possuimos mais que amostras — nem mesmo inventérios — dos verbos ditos “modais", amostras que naturalmente variam de uma gramética a outra. Também, tudo 0 que dissés- semos a esse respeito s6 poderia ser recebido, com razio, pruden- ‘temente. Nossa primeira impressio é de que das duas categorias atuacionais que extrapolamos partindo da sintaxe francesa, e que se exprimem pelas oposicées: sujeito vs __ objeto destinador vs destinatirio a primeira é de ordem teleolégica, a segunda é de ordem etio- Iégica: a primeira seria uma modulagio do poder; a segunda, do saber. ObservagGo: Um par de circunstantes “adjuvante” vs “oponente” apareceré, mais tarde, vindo de uma anilise concreta do conto popular. E-nos bastante tentador conside- ré-lo como uma modulagio do querer. 9° MANIFESTACAO FIGURATIVA E MANIFESTACAO NAO FIGURATIVA a) Um exemplo: a comunicagao poética. ‘A énfase que fomos levados a dar as mensagens funcio- nais, que nos permitiram explicitar as categorias atuacionais, € de propé-las como modelos de organizacao de microuniversos, nao deve, no entanto, fazer-nos perder de vista a existéncia de mensagens qualificativas. Podemos muito bem’ imaginar que os inventirios de tais mensagens, constituidos a partir de uma ma- 176 nifestagio discursiva, sé servem para descrever os conteddos sé- micos dos atuantes que eles constituem desse modo, e que a organizacao atuacional propriamente dita no poderé ser deter- minada seno tomando em consideracdo as mensagens funcionais imbricadas na mesma manifestacdo. Feita apenas de mensagens qualificativas, a manifestacdo discursiva parece impossivel: um discurso desse tipo no faria senio girar sobre si mesmo, subme- tido a todo instante aos riscos de esgotamento, ameacado de uma limitacdo, Vemos aqui, talvez, uma das razdes que levaram int ‘meras lingiiistas a identificar, mais ou menos conscientemente, 0 discurso com o plano sintagmético da linguagem. A questio que se coloca é a de saber se existe uma manifestacio puramente qualificativa, e quais so, nesse caso, as condigées que tornam possivel sua transmissio e que a constituem em comunicacao. © caso-limite desse tipo de manifestacio, se colocamos & parte os aspectos patoldgicos da atividade lingiifstica, parece ser ropresentado pelo que chamamos “poesia moderna”. Esta, ofeti- vamente, no somente visa muitas vezes a “abolir a sintaxe”, isto & a diminuir 0 mais possivel o ntimero de mensagens funcionais, ‘mas aparece também, em algumas de sua realizagies, como um bom exemplo de manifestacio complexa com domintincia da iso- topia negativa. Devido A reducio da isotopia pratica ao minimo indispensavel somente, ela pode, & primeira vista, definir-se como manifestacio mitica e qualificativa ao mesmo tempo. Efetivamente, a debilidade do supoite pratico se acha af com- pensada pelo desenvolvimento da manifestacio mitica. Assim, 0 recorte da manifestagio em sememas se opera em proveito do plano mitico, e os sememas poéticos — imagens, simbolos, sintag- mas e definicdes metaféricas — aparecem, conseqiientemente, como figuras negativas cujas fronteiras no correspondem mais Aquelas dos sememas positives do plano pratico. Se A expressiio sememas negativos nds preferimos o termo figuras, isso nao "se deve somente ao fato de seus critérios demarcativos. parecerem mais flexiveis, mas também porque, contrariamente ao que se passa quando da manifestacio complexa equilibrada, onde o semema de certa maneira colocado inicialmente e serve 20s usos priticos e miticos, na manifestagdo negativa os nticleos dos Sememas aparecem quase como acidentes, como esses “materiais de bricolagem” de que fala C. Lévi-Strauss, empregados unica- 7 mente porque ali estavam para servir a outra coisa, Esta “outra coisa” é, de fato, a propria comunicagéo: potica, isto 6, a iteragio de um certo ntimero de categorias sémicas que, com- binando-se com os classemas interoceptivo e proprioceptivo, cons- tituem a isotopia poética. © papel das figuras, nesse tipo de manifestacio mitica, é BULGE Ae cut lado! Sigs conten 04 vetiss constitativos a toils postica; de outro lado, servem de relés sémicos, isto é, de lugares onde se efetuam as substituigses de certos semas por outros. ‘As equivaléncias que assim_se estabelecem transformam em clas- ‘ses homologadas as categorias sémicas elementares, encarregadas, desde 0 inicio da comunicacao, da transmissio redundante das mensagens poéticas (v. infra, cap. seg.). As figuras, efetiva- mente, so hierarquias sémicas: 0 céu, por exemplo, traz em si, entre outros, os elementos sémicos de “verticalidade”, de “lumi- nosidade”, de “fluidez”, etc. As relacées hipotiticas entre semas que 03 constituem em sememas se acham aparentemente trans formadas em relagées de equivaléncia: é um fendmeno observado ‘e descrito tanto por Lévi-Strauss como por G. Durand, que 0 designa, aliés, com 0 nome de isomorfismo. Tal transformacio, ‘entretanto, parece inconcebivel dentro de um semema: ela ni pode explicar-se senfio se considerarmos a homologacio das eategorias sémicas como o fato primeiro e a estrutura semémica desse tipo de manifestacio como secundéria, ou entio se reco- nhecermos que a comunicacio poética é essencialmente a trans- missio dos contetidos sémicos, que se serve de sememas, como por exemplo, num outro nivel, o discurso quotidiano se serve da estrutura gramatical para a manifestagdo do contetido. A descri- co da manifestaczo mitica, como vemos, esté longe de ser a descricao do simbolismo “encarnado” nos sememas. Mas reconhecer assim a existéncia dos semas, extrafdos de seu contexto semémico, que se pode organizar em classes de semas redundantes constitutivos da isotopia negativa, significa considerar as categorias sémicas em questéo como outros tantos critérios para uma classificacio de figuras, inventariadas dentro de um metatexto dado. £ afirmar que a comunicacdo pottica é, na realidade, apenas a manifestagio discursiva de uma taxonomia. Vemos que a descricéo dos microuniversos, assim manifesta- dos, que colocam em evidéncia uma logica postica, pode tanto se 178 Dastar a si mesma como cair na construgio de um modelo quali- ficativo, cujos atuantes-sememas serio. constitufdos, a partir de certas figuras iterativas, de atribuigSes sucessivas das determina- Bes sémicas. A anélise qualificativa acaba assim por tornar evi- dente a descrigao de uma certa hierarquia, cuja articulagio (com a condicio de que se coloque entre parénteses a categoria proprio- coptiva “euforia” vs “disforia” que Ihe confere seu carter axio- légico, e conquanto se opere a comutacéo classemitica, transfor- mando a dimensio nooldgica em cosmolégica) nao se distingue estruturalmente de modo algum das taxinomias cientificas — Bo- tncias ou zoolégicas — analisadas por C. Lévi-Strauss no Pensée Sauvage, e que séo imanentes, do mesmo modo, no plano da _ manifestagio pratica. b) O implicito e o explicito. E ovidente que © que permite a descrigéo, sob a forma de taxinomias, de tais manifestacdes figurativas, 6 a existéncia de categoria sémicas gerais, que as sustentam e as enquadram, embora permanecendo implicitas na manifestago. A descricao consiste, pois, em primeiro lugar, na sua explicitagio e chega a tornar evidente uma “légica concreta” (Lévi-Strauss) que sustenta @ manifestacao figurativa. O termo ldgica, compreendido como “maneira de raciocinar, tal como se exerce de fato” (Lalande), The convém melhor, alids, pelo fato de seu cariter mais geral, que 0 termo poético proposto por G. Bachelard, quando este ‘empreende a descrigio das categorias sémicas espaciais utilizadas como elementos taxonémicos da manifestagio poética. £ na mesma perspectiva, reduzidas as preocupagdes proprii “mente lingiiisticas, que podemos citar os trabalhos de Roland Barthes e de Jean-Pierre Richard. Fato.caracteristico, Charles Mauron critica J-P. Richard, autor de [Univers Imaginaire de Mallarmé, pela confusio dos planos da poesia e da metalisica. Sem o querer, ele concede A anilise de Richard um atestado de ‘eficécia: é normal, efetivamente, que a descricio da manifestacio mitica permita extrair, nesse nivel, os elementos de uma axiologia cexplicita. Produz-se, pois, pela descricio, uma tradugio dos dados im- - plicitos da manifestacio figurativa em um modelo explicito for- 179 mulado numa linguagem diferente. Essas traducSes podem ser naturais, isto 6, realizar-se dentro de uma mesma comunidade lingiifstica, seja no quadro de uma sincronia: passando de um microuniverso manifestado (poético) a um outro (critica lite- ritia); seja no de uma diacronia: j4 utilizamos, anteriormente, o exemplo, muito aproximativo, da filosofia pré-socrdtica, que se incumbiu de traduzir as mitologias anteriores em “ideologias”. Mas as tradugSes podem igualmente ser artificiais, isto é, descri- tivas, saidas de uma vontade metodoldgica de explicitacio. O problema do modo de presenca dos modelos de organizacio 6, pois, ao mesmo tempo, o da hierarquia dos niveis metalingiiisticos. Esses niveis, do ponto de vista da descricao, seriam os seguint. 1. Nivel implicito: toda manifestacio, mitica ou prética, na medida em que se desenvolve como um discurso, comporta, implicitamente, seus proprios modelos de organizacio; 2. Nivel parcialmente explicitado: tal ¢ 0 caso das tradu- Ges naturais, dessas ideologias e metafisicas que, embora formuladas de maneira muitas vezes ndo figurativa ao nivel da manifestacdo semémica, conservam no entanto implicitos os mo- delos aos quais se acha subordinada a manifestagio discursiva; 8. Nivel explicitado, que é visado pela descricio semn- tica da manifestagao. E evidente que a formulagio dos modelos, quaisquer que sejam 0 nfvel de sua apreensio e o grau de sua abstracio, cons- titui novas manifestagdes, tanto semémicas quanto discursivas, ¢ ‘as integra no mesmo universo seméntico. ©) O néo figurative. A atividade metalingilfstica, apreendida a0 nfvel do funcio- namento do discurso, consiste, como vimos, no vaivém das d Ses e das denominagdes. O mesmo sucede com a atividade cien- Iifiea, que, considerada sob o Angulo lingiilstico, comporta inces- santes procedimentos de denominacio. Construindo um modelo, a descricio semfntica néo procede de maneira diferente: ela utiliza o material lingiifstico disponfvel ou cria novos lexemas para denominar os focos de convergéncia definicionais descober- (180 tos, © constréi assim, para si, os termos da metalinguagem des- ‘critiva. A quéstio é saber como caracterizar esses termos denomi- nadores, distinguindo-os dos sememas ordinérios. A dificuldade de defini-los, assim como de precisar 0 estatuto da manifestacio terminolégica no seu conjunto, nao é préprio da lingiifstica: a exemplo da arte que se diz abstrata — e que, guar- dadas todas as proporgdes, se acha & mesma distincia da ma- nifestacdo pictérica figurativa que a nossa terminologia descritiva | da manifestagio antropomorfa —, estamos tentados a definir os seme- mas descritivos pela sua fraca densidade e a consider4-los como abstratos. Entretanto, o conceito de abstracio nao recobre todos os sememas considerados; se as funcées e as qualificagses da metalinguagem descritiva sao freqiientemente abstratas, os atuan- tes, pelo fato de serem constituidos com o auxflio das determina- g6es predicativas miltiplas, s40, ao contrério, concretos. Uma outra possibilidade consistiria em considerélos como concretos, nio somente seguindo C. Lévi-Strauss, que utiliza, como © vimos, 0 conceito de “logica concreta”, mas também — e talvez pelas mesmas razSes — porque, muito freqiientemente, os semas a partir dos quais a denominacdo se constrdi dependem do mundo "das qualidades sensfveis. Mas isso seria introduzir um novo critério = aquele que utilizamos para a delimitagZo do nivel semiolégico — ao lado da densidade sémica, para definir a oposicio do concreto e do abstrato. Uma nova confusio poderia ocorrer, além disso: tomamos cuidado em distinguir a prdpria manifesta- co dos modelos que ela contém implicitamente: é a manifesta- 0 que poderiamos, a rigor, considerar como concreta, € nio a ‘terminologia que registra os elementos metalingiilsticos extrafdos. f ainda a expressio de semema néo figurativo que parece “ser mais conveniente. Efetivamente, a passagem de um a outro nivel da manifestagio nio se efetua unicamente pela rarefacdo sémica no interior dos sememas, mas também pela dissolucao das figuras nucleares. A denominaco semfntica, que ela opera a partir dos sememas figurativos ou de configuracées contidas nas definicSes, consiste em reter, por sua extracdo, apenas semas per- tinentes, tendo em vista a construgZo de modelos. Assim, a des- cricao da manifestacio poética abandonard por exemplo as figuras de grenicr (sétio) e de cave (porio), para reter, apenas, os semas “alto” e “baixo”, vteis para a construgéo dos sememas 181 axiolégicos — 0s quais nfo “denominamos” — como por exemplo euforia de altitude e disforia das profundezas. Vemos aqui as razbes da preferéncia das linguagens cientificas pelas rafzes greco- -latinas: seu emprego permite atribuir aos lexemas, construidos através delas, contetidos stmicos nio motivados, estabelecidos quase que exclusivamente sobre as definigSes anteriores. Considerando apenas a composigéo dos sememas, diremos, de maneira empirica, que a manifestacio € nfo figurativa se ela se caracteriza pela presenca de um grande niimero de sememas nio figurativos. @) Em direcéo a uma melalinguagem cientifica, Entre a manifestacdo nfo figurativa e a metalinguagem cien- tifica na qual ela ser4 finalmente traduzida, resta um certo niimero de etapas a transpor. 1. A supressio do discurso: sendo complexa toda _manifes- a descri¢io procura eliminar uma de suas dimensées, para 86 deixar subsistir a isotopia simples. A dificuldade desta tarefa & bem demonstrada pelo simples fato de que toda exposigio cientifi- a, oral ou escrita, por mais depurada que seja, comporta sempre uma certa quantidade tanto de rufdo, necessério para fazer passar ‘a informagao, quanto, ao contrdtio, de elementos eliticos, de subentendidos cuja amplitude nao é jamais precisa nem uniforme. Resulta dai que a certeza de uma isotopia simples sé pode ser obtida pela supressio do discurso: nao basta que os sememas sejam despojados de seus micleos figurativos, é preciso também que 0 discurso seja transformado em uma manifestagio discursiva, isto é, em um inventério de mensagens. Vemos que uma escrita branca sé pode ser realizada pela abolicdo do discurso, e também, que tal desejo, muito explicito em certas formas de poesia, em vez de chegar A isotopia simples, provoca, ao contrério, 0 apare- cimento da manifestagdo complexa negativa, isto é, fortemente camuflada. 2. O inventério das seqiiéncias discursivas. A manifestacdo discursiva, figurativa ou nio, pode comportar, e comporta fre- qiientemente, dentro de um $6 texto, varios modelos imanentes ‘a0 mesmo tempo. A descricéo consiste, pois, muitas vezes no 182 desdobramento do discurso linear, que se acha assim segmentado ‘em ,tantos inventérios de mensagens quantos forem os modelos descritos. A manifestacio discursiva de um microuniverso semin- tico é transformada, assim, segundo a descric¢io, em uma hierar- quia de modelos. © discurso, cujo cardter linear deixaria prever A primeira vista a formulagéo algébrica, uma vez descrito, mais “evoca uma visualizagéo geométrica pluridimensional. 3. A formalizagao. A descricdo deve visar, de outro lado, & formalizacio dos seus sememas. O conceito de formalizacdo estd mal definido e & compreendido de diferentes modos. Aplicado a descrig&o semAntica, 0 esforgo de formalizacéo compreenderd _ essencialmente: a) _uma anflise que procura reduzir os predicados, na medi- da do possfvel, ao estado de semas tinicos, sendo entendido que ‘sua manifestacio em linguagem descritiva os transformard em ‘sememas abstratos, compreendendo, além do sema descrito, apenas “a base classemética minima, onde serdo representadas as categorias que pertencem ao inventério axiomético da descricio; b) constituigao dos atuantes em conceitos, entendendo por “conceito” um semema nfo figurativo conereto, definido por se- -memas abstratos, c) dado que a prépria descricio escolhe o nivel de genera- “lidade onde ela constréi seus semas e define seus conceitos, 0 valor da nova manifestagao semantica assim formalizada s6 po- deri ser determinado segundo dois critérios que sao intrinsecos ‘ao sistema: a descrigfo deve ser coextensiva em relacio A axiomé- ‘tica que a tornou posstvel; 0 corpo das denominacées descritivas deve ter uma coeréncia interna. e) A verificagdo dos modelos de descricéo. A desigualdade do desenvolvimento das ciéncias da natureza e das ciéncias do homem, visivel em todas as etapas da constru- 40 da metalinguagem cientffica, se mostra, assim, com uma clareza particular quando se trata de aferir as possibilidades de verifica- Gio da descrigio. A eficdcia das ciéncias cosmoldgicas consiste, como sabemos, na possibilidade, que alids est4 longe de ser abso- luta, de instituir a comunicago entre os modelos cientificos e os 183 modelos tecnolégicos, e de verificar assim o valor dos primeiros pela solidez dos tltimos, gracas A supressio da orientacio, permi- tindo estabelecer a equivaléncia entre o que chamamos categorias teleolégica e etiolégica, de um lado, e as estruturas atuacionais de outro Tado. © problema, que podemos apenas lembrar aqui, é o da possi- bilidade de retomo, a partir dos modelos axiolégicos conhecidos e descritos, aos modelos ideoldgicos: 0 estabelecimento das regras de transformago que autorizam essa passagem acrescentaria ao da coeréncia um segundo critério da verdade dos modelos noolé- gicos. Mas, a0 mesmo tempo que a da verificacao, também pode- tia ser considerada a possibilidade de uma terapia social e individual. Supondo que os principais modelos axiolégicos de nosso universo sejam analisados e descritos; supondo também que conhecamos suficientemente bem os paradigmas de variagies e as regras de transformagio dos modelos ideolégicos, poderiamos prever um dia a possihilidada de construcio e colocacio dos modelos funcionais, capazes de desviar os individuos e as coletividades Giregdo de novas estruturagSes axiolégicas. Uma ciéncia do homem eficaz poderia assim se substituir aos tateamentos atuais das terapéuticas psicoldgicas e socioldgicas. 184 PROCEDIMENTOS DE DESCRICAO 1° CONSTITUIGAO DO CORPUS a) Objetivos © procedimentos. Prosseguindo em nosso esforgo de compreensao das estruturas apreensio dos elementos da significacio, e ainda em nossas xxes sobre ox mados de existéncia e de manifestagio do “universo seméntico, poderiamos chegar a crer que a semintica visa & descricao dos vastos conjuntos significantes recobertos pelas Jinguas naturais. .E nisso estarfamos enganados. Inicialmente, “porque a descricdo das significagdes contidas nas Minguas naturais € 0 objetivo das ciéncias humanas e nisso a lingiilstica nao deria substitui-las. E além disso, porque a lingiifstica, mesmo em suas aplicagées, leva em consideragio tal descricdo, nao pode proceder de outra forma que nao seja dividir o universo para af procurar principios de organizagao. A ambicio da semAn- tica poderia, no maximo, consistir em estabelecer os fundamentos uma metalinguagem descritiva, em inventariar e em unificar, ‘sobre bases comuns, 0s procedimentos da descricio da significacao. Ela se pretende ao mesmo tempo doadora e receptora. A compartimentacao atual das ciéncias humanas faz-nos fre- jientemente esquecer que elas so todas ciéncias da significagio; distanciamento dos microuniversos dos quais clas deveriam ‘ocupar-se nem sempre permite perceber que eles possuem, ou no plano de sua manifestagdo bruta ou no nivel dos modelos que as disciplinas particulares elaboram para deles dar conta, um ‘grande mimero de propriedades estruturais e funcionais comuns. ‘0 semanticista, por sua vez, tendo renunciado A ficgao, mantida 185 por muito tempo, de vocabulérios fundados e delimitados gracas ‘a critérios nfo lingiiisticos e, ao mesmo tempo, & possibilidade de descrevé-los como lericologias, se volta para os dominios de signi- ficagio aparentemente mais heterogéneos: afirmando sua natu- reza lingifstica comum, est’ em condigbes de examinar 0 estabe- lecimento de correlacées, mais ou menos negligenciadas ou des- percebidas, entre elementos, sistemas, e algoritmos reconhecidos ‘em diferentes microuniversos seminticos, que autorizam a formu- Jaco de hipéteses e a constituigiio de modelos de descrigio a partir das concomitancias estruturais parciais. Esse estado de fato confere & semfntica sou carter aberto, préprio para aproveitar-se das aquisigées j& registradas ou das descrigies faceis de realizar nos diferentes dominios, mas quase sempre inacessiveis por falta de um minimo de linguagem comum. E por isso que o cuidado que transparecerd nas paginas seguintes nao sera o de levar tio longe quanto possivel, como o exigiria © estatuto de disciplina auto-suficiente, 0 esforco de formalizacio da linguagem semantica deseritiva, mas ao contrério, 0 de formu- lar os procedimentos de descricio mais gerais, utiliziveis, pelo menos no estado inicial, no maior miimero possivel de dominios. Tal concepgio dos procedimentos de descoberta e de descrigao s duas palavras sio praticamente sindnimas —, considerados como um savoirfaire, permite a colocacao de algumas questdes ingénuas do tipo: O que é preciso buscar? Por onde comecar? Como proceder? Sabemos por experiéncia que estas so as ques- tes mais dificeis de responder, e que, no entanto, & assim que elas se colocam ao pesquisador. Isto porque hé, muitas vezes, uma disténcia considerdvel entre 0s procedimentos praticos da’ linguagem interior em busca do objetivo e do método de pesquisa e a apresentacio definitive dos resultados obtidos, Sem negligenciar essa ultima, que cons- titul por si mesma uma etapa importante que leva & formalizacio, nossa desconfiana nunca seré exagerada em relacdo &s formula- Ges muito apressadas ou muito gerais, as quais se impdem tanto mais facilmente quanto mais funcionar miticamente 0 carter de sua apresentagio, como um procedimento de conotacao aterrori- zante. Assim, dando um exemplo anédino, nao nos esqueceremos to cedo de nossa surpresa ao encontrar tio poucd de lingitistica, e uma lingiiistica tio fragmentéria, nos fundamentos da légica 186 simbélica, fundamentos que so, no entanto, altamente prociama- dos como lingiifsticos. = Uma iiltima precisio, finalmente: 0s procedimentos de des- coberta, no estégio atual das pesquisas, mantém ainda inteira- mente seu cardter de hipéteses, aplicdveis a diferentes fases da descricao. Faltalhes a garantia do rendimento operatério, que somente pode ser dada por descrigées parciais numerosas, b) O corpus, _ Podemos definir © corpus como um conjunto de mensagens cuja constituicio visa A descrigio de um modelo lingiiistico. Esta definicao, entretanto, é simples apenas na aparéncia. De fato, vimos que so podemos descrever um modelo quando estiver implicita- mente contido na manifestacéo discursiva de um microuniverso seméntico. Constituir um corpus nio significa, Pportanto, simples- mente preparar-se para a descricio, pois dessa escolha prévia depende, em definitive, v valor da descrigo, e, inversamente, nio se pode aferir o valor do corpus seno quando terminada a _ descrigio. A sobriedade e o rigor légico da definicdo, em suma, apenas ocultam o cardter intuitive das decisbes que 0 descritor ‘seré levado a tomar em cada etapa da anilise. Certo ntimero de precaugées e de conselhos préticos devem, pois, cercar essa escclha, a fim de reduzir, tanto quanto possivel, a parte de subjetividade que af se manifesta. Diremos que um corpus, para set bem constituido, deve satisfazer a trés condigdes: set repre- sentativo, exaustivo, e homogéneo. 1 A representatividade pode ser definida como a relacdo hipotitica que vai da parte que & 0 corpus & totalidade do dis- ‘curso por ele subentendido, efetivamente realizado ou simples. “mnente possivel. A questo da representatividade se coloca tanto Para os corpus individuais como para os corpus coletivos. Assim, © conjunto dos escritos conhecidos de Baudelaire sé constitui uma parte infima da totalidade das falas efetivamente promunciadas ou “pensadas” por Baudelaire. Supondo mesmo que possamos reunir todos os documentos conservados relativos & sensibilidade coletiva da sociedade francesa do século XV, teremos que nos indagar em que medida tal corpus representa tod i tedagar em que me rpus representa todas as expresses 187 corpus é, portanto, apenas parcial, e terfamos de renunciar A descricao se procuréssemos assimilar, sem mais, a idéia de sua representatividade aquela da totalidade da manifestacio. O que per- mite sustentar que 0 corpus, embora permanecendo parcial, pode ser representativo, sio 0s tracos fundamentais do funcionamento do discurso, retidos sob os nomes de redunddncia e de limitacao. Vimos que toda manifestacio é iterativa, que o discurso tende muito rapidamente a se fechar em si mesmo: em outras pa- lavras, a maneira de ser do discurso leva em si mesma as condigdes de sua representatividade. Dificilmente poderemos en- melhor exemplo de representatividade que aquele das condigses do aparecimento do Michelet de Roland Barthes, anterior em alguns anos & edicio completa do Journal Intime. Sem recorrer as confidéncias de Michelet, sua temdtica pessoal se mostrou to evidente ao descritor e foi tio inesperada para os eruditos que Lucien Febvre, depositirio do Journal, foi levado a garantir a representatividade do corpus parcial utilizado para a descri¢ao, rs 2. A exaustividade do corpus deve, por sua vez, ser concebida como adequacio do modelo a ser construido A totalidade de seus elementos implicitamente contidos no corpus. © principio de exaustividade foi considerado, a0 longo do século XIX — € é ainda muitas vezes hoje — como a condi¢ao sine qua non de toda a pesquisa humanista. A imagem do per- feito erudito é alids associada a ele e conhecemos suficientemente bem 0s prejuiizos que tal principio trouxe, quando se trata de instituir esse monstro que € a “tese de uma vida”, para que nao nos creiamos obrigados a admiti-lo sem criticas prévias. L. Hjelms- lev o inscreveu, é verdade, entre os imperativos que condicionam a deserigio, mas o fez num espirito totalmente diferente, a fim de sublinhar a necessidade de equilibrio entre o cardter dedutivo ¢ 0 cariter indutivo da andlise lingifstica. Nao é de espantar que nos perguntemos hoje, de maneira generalizada, se nao existem meios mais econdmicos que permitam obter as mesmas garantias de fidelidade da descri¢ao ao corpus que aquelas que parece oferecer a exaustividade. © procedimen- to breve que poderiamos propor consistiria em dividir a operagio de descrigao em duas fases distintas: 188 a) Na primeira fase, a descricio se faria utilizando-se apenas tum segmento do corpus, considerado representativo, e construindo, a partir desse segmento, um modelo que sé tenha valor opera. cional; b) A segunda fase seria a da verificagio desse modelo pro- visério. Dois procedimentos de verificacio nao contraditérios, cuja escolha depende, sobreiudo, da natureza do corpus a descrever, podem entao ser distinguidos: : a) A verificacdo por saturacéo do modelo (Propp, Lévi- Strauss) que consiste em comecar.com a segunda parte do corpus € prosseguir sistematicamente a comparagio entre 0 modelo e as ocorréncias sucessivas da manifestacio; isso até o esgotamento definitive das variagdes estruturais; 8) A cerificaczo por sonddgens (J. Dubois) que consis Fin eeciiten, mails oF prosetiaeetne eotlatce pgs statist cos (R. Moreau) um certo mimero de porgées representativas da segunda parte do corpus e em observar o comportamento do modelo aplicado a essas porgées de manifestacio. O modelo pode, assim, ser confirmado, infirmado ou completado. Nas duas iltimas eventualidades, deve ser considerada a retomada total da andlise, e a operacdo, no seu conjunto, sera conduzida até a confirmacéo do bem-fundado do modelo operacional. 3. A homogeneidade do corpus parece depen: imei vista — sobretudo quando se ane ae conpes ea Souza conjunto de condigdes nao lingiiisticas, de um pardmetro de situa- ¢o relativo as variagdes apreensiveis, quer ao nivel dos locutores, quer ao nivel do volume da comunicagio. J. Dubois, que se preo- cupou com isso, acredita que a homogereidade insuficiente do corpus pode ser corrigida por procedimentos de ponderagio (v. Terminologie linguistique, por J. Dubois e P. Marcie, no Fran- Gais moderne, janeiro, 1985). Se podemos admitir com ele que 9 crescimento do volume das comunicag6es produz uma “bana- _ lizacdo das estruturas”, nfo vemos em que essa transformacdo quantitativa em efeitos qualitativos poderia atrapalhar a homo- geneidade do corpus “banal”: a manifestacio difusa do mitico acarreta provavelmente a neutralizacio de um certo niimero de categorias sémicas do modelo — isso estd ainda para ser demons- trado — sem transformar, entretanto, a propria estrutura, © 0 problema nio parece se situar no nivel da constituicéo do corpus, 189 ‘mas no da escolha dos procedimentos de extracao das informacies. Quanto As variagées devidas ao locutor da comunicagio, os pro- Blemas das distincias diacrénicas (classes de idade) ou de tipos de manifestacao (nfveis culturais, etc.), que parece no serem lin- giifsticos quando se trata de corpus coletivos, se acham tais e quais no interior do corpus individual: a manifestacio discursiva de um sé locutor se desenrola necessariamente sobre 0 eixo dia- erdnico; ela pode tomar a forma figurativa (poesia) ou nio figu- rativa (teorias estéticas). Na medida em que a descricio visa, qualquer que seja a forma da manifestacio do microuniverso, & Construgio de um modelo no figurativo e conceitual, o proprio ‘modelo imanente deve ser considerado como indiferente aos modos da manifestacio. O problema das variag6es diacrdnicas, que, pela estabilidade relativa das estruturas sociais, poderia bem ser resol- vido pelo procedimento da ponderacZo quando se trata dos corpus coletivos, € mais complexo, ao contririo, no nivel dos corpus indi- viduais: voltaremos a esse ponto mais tarde. <) O texto. © procedimento que, logicamente, segue a constituicio do corpus Consiste na transformagio do corpus em texto. O corpus, de fato, é uma seqiiéncia delimitada do discurso, e, como tal, $6 pode ser uma manifestacéo logoméquica, da qual é preciso reter apenas uma das isotopias escolhidas. Entendemos, pois, por texto (e também por metatexto) o conjunto dos elementos de significa- go que esto situados na isotopia escolhida e estio cereados dentro. dos limites do corpus. ‘Assim entendido, 0 procedimento da transformagio do corpus em texto se mostra sob dois aspectos complementares: 1. Um aspecto positivo, que reside na escolha da isotopia. Essa escolha, embora logicamente posterior 4 constitui¢ao do corpus, se situa, na verdade, no interior da praxis descritiva: se é verdade que a descricio exige a transformacio do corpus em texto, nfo & menos verdade que a escolha do corpus se faz quasé sempre em fungio do texto que se procura descrever. 2. Um aspecto negative, que consiste na eliminacio dos elementos pertencentes a outras isotopias contidas no corpus. Essa 190 necessidade parece to evidente que mereceria apenas uma sim- ples niencio se a pedagogia do ensino litersrio nio tivesse convertido “a explicacio de texto” em instituigdo nacional. O “texto” a expli- ‘car s6 excepcionalmente corresponde a um corpus representativo, ‘0s modelos que nele se manifestam implicitamente quase nunca so completos, e a explicagio do texto se transforma. inevita- velmente em um pretexto que dé lugar & explicitagdo dos elemen- tos de significacdo situados em todas as isotopias do texto ao mesmo tempo. A preparagio de um texto — nfo & preciso dizer que um 86 corpus pode conter virios textos analisados sucessivamente — compreende nfo somente a eliminagio de uma dimensio da manifestacio em proveito de outra, mas também a de todas as ‘outras isotopias da mesma dimensio consideradas como nio per- ‘tinentes para a descrico visada. Assim, o mito de Edipo, na anilise feita por Lévi-Strauss, se acha situado, pelo fato de ser concebido como a explicagao das origens do homem, na isotopia de cardter etiolégico; outro texto, postulado para o mesmo milo, teria. sem duvida ai encontrado os elementos de uma interpretagio teleolégica da organizacio social. d) Eliminagao ou extragdo? No momento da preparagio do texto, pode ser ttil perguntar se a climinagio dos elementos do corpus pertencentes 4s isotopias _ nao interessantes nao € excessivamente custosa, se a extracdo somente dos elementos que interessam a descricdo ndo seré mais econdmica. Os dois conceitos de eliminagdo e de extracao sio, como vimos, de cariter puramente operacional. Efetivamente, se a parte restante do corpus é quantitativamente mais importante que a parte a ser excluida, diremos que 0 procedimento a ser adotado é 0 da eliminacao dos elementos nao pertinentes do corpus, em vista do estabelecimento- do texto. Em compensacio, se a parte a ser exclufda é mais importante que a que deve ser conservada, 0 procedimento a ser empregado serd o da extracio, a partir do corpus dado, dos elementos pertinentes da descricio. ‘A questio de saber em que condicées um ou outro dos procedimentos deve ser empregado é de ordem pritica: parece que em presenca de uma manifestacio difusa, mftica ou pritica, a 191 extragio dos elementos pertinentes se mostra mais econdmica e, inversamente, que toda manifestagio concentrada impord natural: mente 0 procedimento de eliminagdo das seqiiéncias nao pertinen- tes. Assim, o método adotado por Roland Barthes em sua anilise da “temitica existencial” de Michelet parece ter sido o da extra- G0, como aquele preconizado por Riffaterre em suas pesquisas sobre os “efeitos estilisticos” — ao qual podemos, entretanto, reprovar a indiferenca quanto & escolha prévia da isotopia; ao contririo, 0 procedimento utilizado por Lévi-Strauss em sua des- crigio do mito de Edipo é certamente a eliminagio dos elementos nfo pertinentes. Isso nao impede que a extracio pareca, & primeira vista, mais sujeita & apreciacdo subjetiva do descritor. Nesse caso, é normal exigir que esse cariter subjetivo seja corrigido pela intervencio mais fundada do conjunto dos procedimentos nas diferentes fases da anilise, e, mais particularmente, no nivel da construgio do modelo. onde a pesquisa de equivaléncias e de oposicées se presta A constatacao de lacunas e de omissdes. Essas omissdes, inevitdveis apesar da redundancia dos elementos a serem descritas, poderio ser recuperadas por retroandlises, por retornos reiterados. e) Os inventérios. © corpus depurado tomaré, portanto, a forma de um texto isotépico. Este, para nfo ser mais um discurso logomfquico, deverd apresentar-se como uma manifestacio discursiva deslexica- lizada e desgramaticalizada: uma etapa importante desse procedi- mento, 0 da normalizagio da manifestacao, deve pois ser prevista. Entretanto, deixando para mais tarde seu exame. é preciso que permanecamos ainda por algum tempo no nivel da reflexio mais geral, a fim de esgotar nele, 20 mesmo tempo e num sé lugar, o conjunto dos problemas relatives & constituicio do corpus. E facil imaginar que 0 texto isotépico, aliviado de todos (05 elementos parasitérios da comunicacio, se mostraré como um inventério de mensagens, isto &, de proposicées seminticas pro- tocolares. cujo arranjo ulterior equivaleré A construcdo de modelos. Entretanto, se os modelos descritivos se constroem a partir de inventérios de mensagens, nfo & menos legitimo conceber um texto, que, em vez de set composto de mensagens, ser j4 um 192 " Inyentério de modelos, implicitos ou explicitos. Assim, a descri- co do corpus dos contos populares russos deverd operar, nesse estégio da andlise, tanto a partir de um texto constituido de um inventério de contos, isto é, de, modelos ocorrenciais implicitos, como a partir de um inventério de modelos explicitos, j4 des- critos numa anilise anterior. Que a descricdo proceda a sae anflise separada de cada conto-ocorréncia, ou que ela opere pela comparacio dos modelos implicitos contidos nos exemplares ‘ainda no descritos, isso j4 depende do procedimento de estrutu- taco. Parece-nos importante dilatar aqui o conceito de texto, a fim de liquidar a idéia um pouco simplista segundo a qual os corpus de descricio sé séo constituidos de “fatos” € os textos nao sao, em princfpio, sendo inventdrios de ocorréncias. Isto porque, se um inventério de modelos é uma etapa em directo & construco de um género de modelos, a descricéo pode muito bem visar ao estabelecimento de um texto que seria um inyentirio de géneros. Na medida em que se consiga, por exem- plo, definir 0 conto popular como um género, 0 inventério de todos os géneros compardveis pode dar lugar & descricio de um metagénero comum, que seria a narrativa, considerada em sua generalidade, ou um subconjunto qualquer de narrativas. O que queremos sublinhar aqui néo & somente a possibilidade de situar ‘a descricio em niveis de generalidades diferentes, e ao mesmo tempo, a eventualidade da constituigéo dos corpus que correspon- dam aos diferentes objetivos de descrigao, mas também a neces- sidade de conceber uma hierarquia de modelos que estio imbri- cados uns nos outros porque uns participam da elaboracio dos outros. ) Inventérios individuais e coletivos. Tal concepeao hierdrquica dos modelos deve permitir esclare- cer o dificil problema das relagées entre os inventdrios individuais € 05 inventérios coletivos, e 0 da comparabilidade dos modelos resultantes dessas duas espécies de manifestagio. A primeira vista, ‘os procedimentos permitidos pela descricdo dos contos populares Tussos parecem paralelos Aqueles que o descritor teria que empre- ender na totalidade dos romances de Bernanos, por exemplo. Com uma diferenga, apenas: 0 corpus dos contos populares era sustentado por um locutor coletive, ao passo que os romances de 193 Bernanos tém um locutor individual. Mais ainda, locator indivi- dual, que € Bernanos, é apreensivel na totalidade de suas falas, representada pelo corpus de todos scus escritos, e podemos falar do “universo de Bernanos” que contém em si 0s microuniversos seminticos que sio seus romances, quase nos mesmos termos que do universo do conto popular russo, de que. os contos particulares ndo passam de emanagies. Por outro lado, vemos que o universo de Bernanos serve 20 mesmo tempo de mediador entre o Journal d'un curé de campagne e 0 universo imagindrio da sociedade francesa da primeira metade do século XX. A questio pritica assim proposta é saber qual significagio é preciso atribuir respec- tivamente aos tres corpus possfveis: © corpus que tem as dimen- ses de um romance, 0 corpus da totalidade dos escritos de Bernanos, e. finalmente, 0 corpus de todos os romances de uma sociedade e de um perfodo histérico dados, e quais as correla- des estruturais que podemos razoavelmente esperar encontrar entre os modelos que possamos explicitar a partir de tais corpus. Uma apresentagao esquematica talvez permita enxergar me- Ihor 0 problema. eénero “estilo da sstnero “romance do ‘Século XX" le Journal d'un curé de cempagne smetagénero “X” la Condition buntaine les Faux-Monneyeurs As flechas verticais do esquema indicam que. de um lado, 0s corpus constituides por romances-ocorréncias devem ser consi- derados como inventérios de modelos implicitos que permitem a construgio do género “romance do século XX"; que, de outro lado, s corpus feitos de totalidades representativas de falas individuais constituem outras tantas manifestagdes que podem servir A cons- Lrugéo do género designado sumariamente como “estilo da perso- nalidade”: de fato, cada comunidade cultural atribui aos indivi- duos os “caracteres” axioldgicos de seu ser e os algoritmos ideo- Légicos da seu comportamento (mesmo que os conceba as vezes como a negacio de papéis de comportamentos socialmente orga- do nizados e exalte 0 no conformismo do individuo — o que é apenas uma outra maneira de conceber o modelo “estilistico”, utilizando a inversio dos signos). A flecha horizontal indica, assim, a possibilidade de constituir um inventirio de géneros caracteristicos de uma comunidade lingiifstica ou cultural dada, visando A descri¢io de um metagénero. Entretanto, 0 esquema coloca igualmente em evidéncia a situacio particular de um romance-ocorréncia, 0 Journal d'un curé de campagne, que se acha situado no cruzamento de dois eixos, e é sucetivel de entrar simultaneamente em dois corpus diferentes e de ser submetido a duas anélises com objetivos divergentes. Tomando a titulo de exemplo a andlise atuacional vemos que as personagens desse romance poderio ser consideradas como va- ridveis de uma estrutura atuacional romanesca propria da litera- tura do século XX, mas que participardo, ao mesmo tempo, como encamagies especificas, da estrutura atuacional prdpria de Ber- nanos. As personagens do Journal se mostram, pois, coma fi- guras particulares e tinicas; elas se acham convocadas para a vida, manifestadas pela convergéncia de duas estruturas atuacionais isomérficas, mas no isotépicas. Considerada como principio de explicacdo, a convergéncia estrutural daria conta da constituicao dos fatos histéricos: a manifestacio convergente dos modelos necessdrios faria, assim, surgir fatos contingentes. A etimologia, nessa perspectiva — P. ‘Guiraud observou bem isso —, nao & mais uma busca de étimos, mas sim uma identificagdo de modelos etimoldgicos ¢ 0 cdlculo probabilistico de suas convergéncias. g) Estratos e duracées. ‘A escolha da estrutura atuacional para ilustrar a convergéncia dos modelos heterogéneos nos permitiu nio levar em conta 0 carter diacrdnico de todo corpus. Tivemos jé a ocasifo de su- blinhar esse paradoxo: o fato de uma manifestacdo de fala se achar separada, no tempo, de uma manifestagdo por um intervalo de 8 segundos ou por um intervalo de 300 anos nfo muda em nada a natureza diacrénica de sua relacdo. Assim, tudo é diacrénico na manifestacio da significacio, salvo a prépria significacio, condicionada pela nossa aptidio de aprender acro- nicamente, como totalidades, estruturas de significagio muito sim- 195 ples. Em outras palavras, 0 que nos permite apreender um conto popular ou um romance de Bernanos como algo possuidor de sentido & a permanéncia, ao longo da narrativa, de um pequeno niimero de categorias de significacio. Todo texto, conseqiiente- mente & ao mesmo tempo, permanéncia e diacronia: ele manifesta sua permanéncia gracas a'um pequeno mimero de estruturas, damentais redundantes; € diacrénico pela articulagao hipotat das estruturas secundérias em relacio as estruturas fundamentais e assim por diante. Todo corpus diacrinico, seja ele coletivo ou individual, seja representativo da “histéria da lingua francesa” ou da “vida de Mallarmé”, poderia ser descrito como uma construcio hierarquica constituida de camadas estruturais sobre- postas, de baixo para cima, segundo sua maior ou menor perma- néncia. Um corpus diacrOnico qualquer, estendido sobre 0 eixo horizontal indicado por uma flecha, simbolo do irreparabile tempus, poderia, por sua vez, ser dividido em duragSes mais ou menos longas. Uma correlago aparentemente simples se estabe- lece, assim, entre os estratos hierfrquicos das estruturas e sua duragio, Corpus Diacrénico eee DURAGOES médias O esquema distingue, assim, no interior de um corpus dia- crdnico, trés estratos hicrdrquicos de estruturas: fundamentais, historicos e estilisticos, e trés espécies de duragées: longas, médias ¢ curtas, reconhecidas ha algum tempo por F. Braudel. A corre- laco consiste em postular, para cada tipo de estrutura, sua pré- pra duracio relativa: as éstruturas se acham, assim, situadas no tempo, ¢ a histéria resulta “estruturalizada”. J& que o proprio 196 prinefpio dessa interpretagio ¢ tomado de um historiador, os exemplos dos corpus coletivos diacrdnicos que podem ilustré-lo supérfluos. Transpondo esse esquema para o plano da téria individual, poderfamos estabelecer correspondéncias entre ‘as estruturas fundamentais e as categorias constitutivas, por exem- plo, da concepsio clissica da “natureza humana”, entre as estru- turas histéricas e a modulacio diacrOnica da “histéria de uma vida”, ao passo que as estruturas estilfsticas dariam conta das variagdes devidas as “‘situacGes de tensio” que tém repercussdes estruturais. A questio a ser resolvida & a das relagdes entre as estruturas assim hierarquizadas e 0 corpus que se julga conté-las A apresen- taco do esquema subentende implicitamente ser o corpus, cole- tivo ou individual, compreendido como uma sucessio descontinua de elementos de significacio que podem ser submetidos ao que ‘chamamos, em Historia, a periodizacdo, e que é para nés o recorte do discurso em seqiiéncias. Entretanto, desde que tentemos com- parar qualquer corpus assim “periodizado” com a mancira de manifestacdo de estruturas histéricas, no tempo, percebemos que 9 recorte “periodizante” nZo corresponde inteiramente A apresen- tagio das estruturas. Assim, tomando um exemplo banal, e sem nenhuma garantia de “verdade” na histéria da literatura francesa, © recorte vertical corresponderé, no préximo esquema, aos “pe- rfodos” histéricos, ao passo que as separagées diagonais dario conta da apresentacio, no corpus diacrdnico, das estruturas de média duragio. 1650 1850 “romintico”| 1550 1750 Esta constatacio comporta duas conseqiiéncias priticas que concernem diretamente aos procedimentos de descrigio: 1. A andlise que busca explicitar as transformagies dia erénicas das estruturas nao deve utilizar o recorte do texto em 197 trechos que correspondam as “plenas” realizagSes das estruturas, mas operar, ao contrério, uma divisio do texto em. seqiiéncias sobrepostas, que compreendam cada vez, dos dois lados da zona livre, duas zonas de emaranhamento onde as estruturas sobrevi- = coexistam com as estruturas de substituico novamente ela- radas; 2. Na medida em que a descricdo esteja interessada nas trans- formagées diacrdnicas manifestadas no corpus, as zonas de ema- ranhamento constituirio, para ela, seqiiéncias de texto privilegiadas. Embora a distingio dos trés estratos estruturais, que introduz uma nova dimensio, em profundidade, na existéncia dos universos seminticos, e, sobretudo, que reintegra a diacronia na descricao estrutural, ‘néo possua no momento sendo um valor operacional, no nos parece impossivel que ela seja, um dia, consolidada com © auxilio de critérios estruturais e funcionais. A partir daqui propomos reservar a expressio transformacdes diacrénicas apenas As mudancas situadas num dos trés estratos estruturais reconhe- cidos, distinguindo-as, assim, do funcionamento normal — no entanto diacrénico — de uma sincronia, quer se manifeste por variagées paradigméticas quer por jogos de equivaléncias, devidos As expansGes e condensagdes sucessivas. Ela conceme, em todo caso, mais particularmente & descri¢ao de certas estruturas histéricas — sejam individuais (ex.: uma cura psicanalitica) ou coletivas (ex.: as mudancas no interior dos sis- temas de valores sociais) — para as quais 0 reconhecimento das transformagées diacrdnicas & tio importante quanto a anélise das sincronias estruturais. Certos fatos, entretanto, chamam, a partir de agora, nossa atencio e nos obrigam a interrogar a natureza das rela- Ses existentes entre as estruturas situadas sobre estratos dife- rentes, Tememos que nossa apresentacio hierdrquica das estru- turas se refira um tanto exclusivamente aos modelos qualificativos e atuacionais, cuja natureza hierdrquica se presta & estratificacio. © mesmo nao se dé quando se trata de modelos funcionais: seu cariter algoritmico tora mais incOmoda a interpretacso das in- terferéncias hierérquicas entre os modelos pertencentes aos dife- rentes estratos. Além disso, os fatos a partir dos quais tal interpre- tacdo pode ser tentada sio pouco numerosos. Assim, uma série de narrativas’ psicodramiticas, registradas por M. Safouan e das 198 quais falaremos mais adiante, parecem constituir seqiiéncias de corpus de curta duragio, que podem ser descritos sob forma de modelos ideolégicos e que constituem 0 estrato estilistico. Uma ‘anélise semantica mais aprofundada nos permitiu observar que esses modelos estilisticos se integravam, sob forma de seqiiéncias algoritmicas parciais, num modelo ideolégico mais geral, realizan- do-o, finalmente, por retoques sucessivos devidos aos progressos da cura, até acabé-lo. Esse exemplo, de cujo caréter ocorrencial temos conseiéneia e que precisa ser confirmado por outras andlises do mesmo género, no se limita a dar uma interpretacao lingi tica de determinada terapéutica: ‘dé conta da maneira pela qual poderfamos interpretar a integraco dos modelos funcionais esti- Hsticos nos modelos histéricos hierarquicamente superiores, mas que possuam o mesmo estatuto estrutural. Um outro exemplo que merece ser tomado em consideragio nos vem da anilise, dita temdtica, de J-P. Richard, aparentemente muito distanciada, por seus objetivos e métodos, da ante. rior. Tentando descrever a historia pessoal de Mallarmé, J-P. Ri- chard chega a considerd-la, se fizermos abstracdo das preocupagies ede uma terminologia diferentes das nossas, como um modelo fun- cional fundamental tinico, do qual os diversos poemas, ou talvez classes de poemas, que possuem em todo caso uma duragio “vi- vida” média — e que interpretamos como suscetfveis de serem descritos com 0 auxilio dos modelos histéricos —, nao seriam senao manifestagdes parciais, que esgotam progressivamente o modelo fundamental no seu conjunto. Encontramo-nos, assim, de posse de uma segunda andlise, sem relagdo com a primeira, e que dA conta do mesmo modo de integracdo dos modelos funcionais, situados desta vez, 0 que é uma vantagem para nés, nos estratos estruturais, histérico e fundamental. 5 dois exemplos referem-se, & verdade, & histéria individual: nio permite, por si sés, justificar uma extrapolagio em direcao A histéria coletiva, que estarfamos tentados a empreender. Isto porque a historia das comunidades sécio-culturais se mostra, & imagem da histéria individual, como algo que pode ter um sen- tido, como algo que realiza, gracas As estruturas histéricas par- ciais, um modelo fundamental cuja economia global (bem como as variagSes) seria previsivel: haveria, assim, histdrias tragicas ou resignadas como a de Mallarmé, e histérias doentes, obsessivas ou 199 fébicas como as que M. Safouan induziu criancas a narrar. Tal extrapolacdo é, por enquanto, prematura. 2° A NORMALIZACAO a) Homogeneidade da descrig&o. Depois dessa longa divagacio, que nos parece justificada pela importincia do fendmeno diacrénico na constituicio do corpus e de sua andlise ulterior, retornamos aos procedimentos de des- cri¢ao propriamente ditos para abordar aquele a que designaremos com 0 nome de normalizacdo. Tendo procurado definir, até o presente, as condicbes de homogeneidade do texto a ser descrito, teremos de precisar, sob a rubrica de “normalizacio”, os meios préprios para garantir a homogeneidade da prdpria’ descricao. Esse novo procedimento, como ja indicamos, nao é necessariamente consecutivo ao primeiro; ele 6, antes, paralelo a este. Consiste ‘em transformar o discurso, que se acha em estado bruto no corpus, em manifestacao discursiva, e compreende trés operagées distintas: 1. objetivagéo do texto: entendemos por isso a eliminagdo no texto em preparaco de categorias lingiifsticas referentes & situagio nao lingiifstica do discurso; 2. instituic¢éo de uma sintaxe elementar da descrigao, que consis- tird em situar, com a introdugio de uma notacio simbélica muito elementar, classes de sememas, que ja definimos, e em tornar uniforme a expresso de um pequeno niimero de regras de combinacao dessas classes em mensagens, construf- das a partir dos enunciados do discurso; 3. instituigao de uma lexemética da descrig&o, que tem por fina- lidade normalizar a expressio de sememas denominados, isto &, mais uma vez lexicalizados, mas j4 dentro da linguagem descritiva. 1) Objetivacéo do texto, Todo discurso pressupSe, como sabemos, uma situagio nao Tingiifstica de comunicagéo. Esta situagio é recoberta por um 200 certo mimero de categorias morfoldgicas que explicitam lingiiis- ticamente mas que introduzem ao mesmo tempo, na manifesta: um pardmetro de subjetividade, no pertinente para a descri e que & preciso, portanto, eliminar do texto (a nao ser que a anilise tenha escolhido esse pardmetro como objeto de des- crigéo). As categorias a serem eliminadas so principalmente as se- guintes: 1. A categoria da pessoa. A eliminagio dessa categoria terd como conseqiiéncia a homogeneizacao do texto, o qual conservard a forma que marca a nao participacéo no discurso, isto & a 3. pessoa. Todos os pronomes pessoais (eu, ele, nds, vés, se) serio assim substituidos por atuantes convencionais, tais como locutot ou escritor, alocutirio ou leitor, da mesma forma com que, no lugar dos anaféricos colocaremos os atuantes aos quais eles remetem. Uma vez que 0 procedimento nao é destinado apenas A “desgramaticalizacdo” do discurso, o descritor deverd estar atento As mil artimanhas que permitem ao locutor intervir ou permanecer, disfarcado, no texto; 2. A categoria do tempo. A eliminagio concerne a todas 4s indicagdes temporais relativas ao nunc da mensagem. O texto conservaré, entretanto, o sistema de nao concomitancia temporal, construfdo sobre um entdo sem relagdo direta com a mensagem. Os dois sistemas temporais devem ser distinguidos cuidadosamente, pois o tempo nao subjetivo é utilizado pela andlise funcional; 8. A categoria da déiris. Todos os déiticos espaciais — determinados, pronomes ou advérbios —, na medida em que comportem a apre subjetiva do locutor, serao excluidos do texto. Apenas a déixis espacial objetiva, construfda a partir de um alhures, deverd ser mantida; 4. Todos os elementos féticos em geral. Tomando de R. Jakobson 0 conceit de funcao fética e estendendo-o ao conjunto de elementos e dos procedimentos lingitisticos colocados a servico da comunicacio, devemos entender por eliminacio dos elementos faticos no somente a supressdo das seqiiéncias do tipo: “Ald, vocé esti me ouvindo?”, mas a eliminacao de toda redundancia gramatical ou lexical. Isto porque se a redundancia, tomada como tal, pode significar “permanéncia” (ou “obsessio”), a descricao 201 visa a reconhecer ¢ registrar o que & redundante © nfo a con- tabilizar as redundancias. O procedimento de normalizagio cruza, assim, com o de redugio. ©) Sintaxe elementar da descric&o. As grandes linhas dessa sintaxe so jd conhecidas; no se tratard, pois, aqui, de proceder A sua codificacio. A construgo de uma sintaxe semfntica, independente da lingua natural em- pregada, corresponde a certo mimero de necessidades. Trata-se, notadamente: 1. de suprimir o emprego redundante e 0 emaranhado das classes morfolégicas e das classes sintéticas; 2. de eliminar a sinon{mia sintética que resulta das formu- laces lexemiticas diferentes dos mesmos sememas; 8. de construir uma linguagem descritiva que permita a comparagio dos modelos descritos a partir das manifestagdes for- muladas ‘nas diferentes linguas naturais. Quanto & prdpria sintaxe, ela consiste, como jé vimos, na divisio dos sememas em duas classes: Atuantes vs Predicados, sendo os predicados, por sua vez, divididos em Fungées vs Qualificagées. Diremos, pois, que toda mensagem seméntica pertence neces- sariamente a uma das duas classes de mensagens posstveis: F/A/ ou QUA/- Dentro. das classes das fungdes, podemos distinguir uma subelasse de modalidades, cuja descric4o, nas diversas linguas naturais, esta inteiramente por ser feita. Diremos, numa primeira aproximacio, que ndo nos compromete, que elas sio caracterizadas pela sua relacao hiperotdtica para com o predicado. Assim, nas seqtiéncias: 202 Jodo gosta de tocar violdo A Terra parece redonda gosta e parece sfo modalidades que, logicamente anteriores aos predicados, constituem o quadro de sua modificacio, a qual a descricéo, de acordo com seu préprio objetivo, deverd levar em conta, AS mensagens construidas a partir das duas proposigtes dadas poderio ser formuladas assim: F(m)/A/ e Q(m)/A/. Dentro da classe das qualificagSes, podemos distinguir igual- mente uma subclasse de “aspectos”,’ definidos pela sua relacio hipotética para com 0 predicado. Assim, nas proposigies: Pedro saiu precipitadamente O caminho era muito longo precipitadamente ¢ muito podem ser considerados como aspee- tos: constitufdos numa classe de varidveis, eles modificam hipo- taticamente os predicados. Pouco conhecidos, muitas vezes confundidos com as moda- lidades, os aspectos podem tanto entrar na construgio do semema predicativo quanto se constituirem em classes de varidveis, faci tando certos tipos de anilise interessados nos predicados. A dis- tingio de uma subclasse de aspectos mantém, pois, inteiramente seu carter operacional. Nés s6 0 introduzimos aqui para mostrar tuma das diregées possiveis da ampliacao, com auxilio de articula- gées hiponimicas novas, da sintaxe semantica. As proposic&es naturais se transcrevem entio em mensagens semAnticas da forma F(a)/A/ © Q(a)/A/. Diremos que as modalidades e 0s aspectos sio operadores dos predicados. Quanto aos atuantes, j fixamos provisoriamente seus pay © seu nimero. Aos quatro atuantes acrescentaremos ainda circunstantes, dos quais trataremos mais tarde: para simplificar a notago, vamos designé-los igualmente por AA maitisculos, nume- rando todos os atuantes © os circunstantes de 1 a 6: 203 Sujelto pith gooytinyi wens sah Aa Objeto’ ss. rege bate cy ms Beta: Destino 2. sae 1s. os ay Destinatério A ‘Adjuvants eS gS A Oponente. 2 2. ke A. visio desta sintaxe, que pretendemos elementar, estard completa se precisarmos, além disso, que: _ 1. As maifisculas so reservadas apenas aos atuantes ¢ pre- dicados (fungGes e qualificag6es), ao passo que as mintisculas denotam as outras articulagdes hipotiticas que poderiamos ser levados a introduzir; 2. Os colchetes servem para reconhecer os atuantes, os parénteses os operadores, a0 passo que os predicados sio assina- lados pela auséncia de sinais de inclusio; 3. As relages entre unidades sintaticas sio indicadas assim: a) uma relagio hipotitica qualquer: auséncia de sinal; b) uma relagio cuja indicagio nio é pertinente para a des- crigio: (;}; ©) disjungéo: (/); _ 4. A ordem sintagmética convencional adotada para a trans- crigéo das mensagens inteiras é a seguint. F/Q (m; a) [Aus Ass 43 Ass Aci]. Observagao I: Alguns outros sinais, de carter muito geral, foram também utilizados. Sua defini¢io foi voluntariamente deixada de lado, pois, por razbes diditicas, por precaucio ou ignordncia, ndo insistimos em sua natureza. Assim: a) % indica correlagio ou equivaléncia (ou desejo de pre- cisar tais relagdes); b) vs indica a oposi¢ao em geral (que se trata de precisar); ¢) —> indica a pressuposicao ou a implicagio, Th: A indicag&o das relagées entre unidades ‘fo sintéticas no entra no quadro desse estudo. Precisamos entretanto que: 1) Os semas sio indicados por mintisculas, para distingui-los, ‘20 mesmo tempo, das categorias sémicas e dos sememas, mareados por maitisculas; b) as relagdes nao precisadas, mas hipotaticas mais fre- qiientemente, entre os semas sio marcadas com o sinal +. Insistimos em que o contexto precisa a cada vez a relacio postulada, Observagao Ill: Dada a existéncia de numerosos sistemas de notacao simbélica, fonte freqiiente de confusio, procuramos reduzir a0 minimo indispensdvel o ntimero de sinais utilizados. £ pelas mesmas razdes que s6 apresentamos aqui rudimentos de uma sintaxe, que cada descritor — a menos que adote seu proprio sistema de notacéo — poderd ampliar segundo suas préprias necessidades. Assim, nem mesmo mencionamos 0s qualificadores (“um” vs “todo”; “pequena quantidade” vs “grande quantidade”), que podem ser considerados como operadores que modificam os atuantes, e dos quais a légica no se pode privar. Seu papel, na descrigfo semAntica, nos pareceu muito mais restrito. @) A lexemética da descrigao. Todo esforgo de explicagio de um semema qualquer leva, como sabemos, & denominagio e, conseqiientemente, A criacio de um novo Iexema. Incapaz de operar de outra forma, a normalizacio deve visar a cumprir essa denominacio da maneira mais econdmica possivel. Assim, os lexemas da linguagem descritiva devem ser, na medida do possivel, univocos, isto &, recobrir, seguindo nisso © exemplo dos Iéxicos cientificos, apenas um semema. E evidente ‘que, a nao ser que se utilizem formantes estranhos ou combinacSes grafematicas novas — portanto, ilegiveis —, nao conseguimos isso tio facilmente. £ preciso, conseqiientemente, procurar atingir um ‘optimum de denominacao que se situa entre a auséncia de uuoti- vagdo e 0 risco de confusio, remetendo ao procedimento de 205 estruturaco 0 culdado de analisar os lexemas descritivos e de consolidé-los com o auxilio de definicbes de cardter sémico. Observacio: Os aficcionados da linguagem correta con tinuardo nio aceitando esses neologismos, muitas vezes bar- rocos e absurdos: nfo tém consciéncia do fato de que os lexemas denominativos nfo fazem parte da linguagem na- tural, mas da linguagem descritiva segunda, e que eles nfo ‘so mais idiométicos que os sinais algébricos, por exemplo. Sabemos que as linguas naturais possuem, em geral, dois sistemas caracterizados de lexicalizagio: 0 primeiro, consiste em lancar os sememas. nas classes gramaticais (verbos, adjeti- vos, ete.); 0 segundo procede por derivacio. Assim, todo se- mema funcional pode, em princfpio, ser lexicalizado, quer como verbo — resolver, caminhar, mudar, etc. — quer como subs- tantivo deverbal — solucéo, caminhada, mudanca, etc. Da mesma forma, todo semema qualificativo pode-se apresentar tanto como adjetivo — largo, certo, intransitivo, ete. — quanto como subs- tantivo derivado — largura, certeza, intransitividade, ete. Essa redundancia natural s6.pode ser motivo de hesitagdo na pritica da descricdo. Sem falar da dificuldade freqiiente de estabelecer a distincdo entre predicados e atuantes, é dificil & anélise reconhecer os diferentes atuantes. Assim, nos enunciados do tipo: a solugio do problema a solugio do professor F/Ad/, F/Ai/, dois atuantes distintos tém uma formacio gramatical idéntica. Diante de tais ambigiiidades, parece mais econdmico eliminar um dos procedimentos de denominagio, excluindo a lexicalizagao por classes gramaticais, e adotar um procedimento tnico, que conserve a motivacio lexical das classes de sememas s6 por meio de derivacdo sufixal. A operacio consiste: 1. _Em atribuir a todos os sememas a forma substantiva — como nio sobrardo outras classes gramaticais 4s quais possa ser oposto. 0 substantivo, enquanto classe, se achard assim neutralizado; 2. Em lexicalizar os sememas pela adjungao apenas dos sufixos substantivais apropriades -mento, -agem, -cao, zero, etc. — 206 quando se tratar de funcdes e -dade, -éncia, ~Ancia, etc., para lexicalizar as qualificagdes. Nos casos em que faltem meios derivatl- vos, os procedimentos perifristicos do tipo o fato de... poderio ser a solugio. A descricio sistemitica dos classificadores (ou dos defi- nidores) utilizados pela lexicografia, e que so sindnimos ou equi- valentes, no nivel das definicées, dos sufixos empregados no nivel da denominacio, poderia ser, nesse estégio, de uma grande utili- dade. Aliés, é inttil, no momento, entrar ‘nos pormenores desse procedimento, cujo princfpio deveria ser explicitado — ele é, efe- tivamente, embora de maneira empfrica, comumente empregado ha ja algum tempo. Essa proposicao, tendendo a organizar uma lexemética des- critiva aut8noma, sé constitui, a bem dizer, um episddio da luta que 0 lingiiistas empreendem de maneira’mais ou menos cons- cliente para suprimir a heterogencidade bésica que existe, nas Iinguas naturais, entre as classes morfoldgicas € as classes sintd- ticas. Nossa maneira de conduzi-la consiste, de um lado, na redu- Gio dos atuantes sintéticos aos atuantes semanticos e, de outro, na supressio das classes morfolégicas no nivel da linguagem des- critiva, Observagdo: A notaco simbélica, que nfio chegamos nem mesmo a mencionar aqui, s6 poderd, por razdes praticas evi dentes, ser introduzida mais tarde, quando, apés a redugio, © mimero dos lexemas descritivos tiver diminuido o suficiente. 3° A CONSTRUGAO a) Construgao do modelo: redugiio e estruturagao. Sob 0 nome de normalizacdo, acabamos efetivamente de propor os primeiros elementos de uma sintaxe e de uma lexemd- tica da linguagem semintica, isto , os quadros metalingiiisticos ‘nos quais poderemos lancar ‘os contetidos manifestos dos corpus a serem descritos. Este procedimento constitui uma garantia suple- mentar da homogeneidade do texto; auxilia também a aprender mais facilmente suas redundancias e suas articulacées estruturais. Isto porque a fase da descri¢éo que & assim anunciada sé pode consistir na construgfo do modelo que englobe o texto, em 207 outras palavras, na transformagio do inventério de mensagens em estrutura. De fato, todo inventério é uma lista de ocorréncias, cuja dimensio depende das particularidades do texto; 0 modelo & simples e sé pode comportar um ntimero limitado de termos. A transformacio do inventério em estrutura comportard, pols, ‘em primeiro lugar, 0 procedimento de reducao. Por outro lado, mesmo que seja concebido como uma sucessio ou como um catilogo, o inventdrio é sempre uma justaposicao; 0 modelo, em cempensacio, é uma estrutura, isto 6, a colocacio em evidéncia dos prineipios de organizacdo relacional da significagio. A cons- trucio implica, pois, em segundo lugar, o procedimento de estru- turagio. Observagdo: Se evitamos a utilizagdo aproximativa, bana- lizada, do termo estruturagdo, € porque queremos reservé-lo para designar um procedimento determinado de descricio, que, operando com inventérios reduzidos, visa A construcdo do préprio modelo. Os dois procedimentos de redugdo e de estruturacdo serio agora considerados sucessivamente. As redugdes podem ser simples ou complexas. b) RedugSes simples. ‘A reducio se mostra, na sua forma mais simples, como a supressio da redundancia. Efetivamente, vimos que 0 texto, ins- taurado na temporalidade do discurso, sé pode ser apreendido como permanéncia, isto é em suma, como significagdo global, na medida em que os elementos fundamentais desta se manifestem iterativamente. A redundincia, no entanto, nfo é apenas um fenémeno quantitativo, pois a repetic’o implica, muito freqiien- temente, variagdes notiveis da forma do contetido. Consegiiente- mente, a redugio da redundincia sé se pode fazer As custas de um certo empobrecimento da significagdo: uma vez escolhido o nivel de generalidade, a descricéo sé pode se manifestar como selegia dos elementos de conteiido pertinentes e como rejeicao (ou suspensio provisdria) de outros elementos, considerados esti- listicos e nao pertinentes para a construcio do modelo. Esses 208 elementos estilisticos, como veremos mais tarde, podem ser reto- mados em vista de uma nova anilise, que tenha objetivo diferente. __A redugio consiste, pois, em reconhecer a equivaléncia entre vrios sememas ou varias mensagens e em registrar com a ajuda de uma denominagio comum toda classe de ocorréncias jelgadas equivalentes. Como é muito dificil, se ndo impossivel, reconhecer de uma sé vez todas as equivaléncias, 0 procedimento consistird quase sempre em praticar uma série de redugies, que constituem etapas de aproximacio sucessivas. £ ao descritor, conseqiiente- mente, que cabe decidir, diante de seu inventatio, em qual etapa da reducdo ser mais rendoso introduzir a normalizasso, € em que momento os sememas em construgéo poderai . minados de maneira definitiva. apps preninesors Distinguiremos trés tipos diferentes de redugées simples: _ 1. Redugéo dos elementos idénticos: Muitas ocorréncias cujos formantes e contetidos so idénticos podem ser reduzidas e consideradas como uma sé unidade de conteddo. do teste projetivo de Stein ja utilizado, se o inicio da frase: A vida de uma pessoa... provoca 10 respostas idénticas: ...€ 0 que mais conta, diremos que bastard reter, para as necessidades de anélise (nesse caso, com vistas & normalizagao), uma s6 ccorréncia é 0 que mais conta. Duas observagées sio necessérias a esse propésito: _. 8) Apesar das préticas comuns da lingiiistica estatistica, a identidade dos tormantes no 6, em si, um critério suficiente para efetuar a redugao: ela indica, ao contrério, a equivaléncia dos contetidos, que sé pode ser assegurada, no caso da reducao dos elementos idénticos, pela comparagio dos contextos constitutivos dos sememas. b) A descrigdo semantica considera a repeticdo, e, is mesmo a freqiéncia relativa dos elementos iteratives do eontedco, ‘como um fendmeno normal, e ndo como algo investido de um estatuto particular. A freqiiéncia, num texto dado, de elementos com formantes idénticos é um indice itil, revelador de redundan. cias camufladas provaveis, e seu papel uo plano pritico nio é negligencidvel. 2. A redugéo das equivaléncias sintéticus. As equivaléncias desse tipo, ilustradas pelo exemplo bem conhecido: 209 A destréi B Destruigéo de B por A Agdo destruidora de A sobre B nao sio, entretanto, nem inteiramente sintiticas, nem tao formais como pretendem alguns. Sio, antes de tudo, equivaléncias de contetido; elas comportam, além disso, variagées lexicais de impor- tancia desigual. Assim, na fonte de exemplos ja citada, a qualifica- do da vida de uma pessoa pelas ocorréncias: +. mais importante que tudo -+-Importa mais que todo o resto ++ 0 que hé de mais importante no mundo apresenta variagves lexicais na expressio da superlatividade que ‘nos fazem considerar essas construcSes como equivalentes e nao como idénticas. As pretendidas identidades sintiticas nao sio, o mais das vezes, senfio equivaléncias muita faceis de reconhecer. 8. Reducao das equivaléncias semémicas: Quando os lexemas considerados como eventuais niicleos sémicos constitutivos dos sememas nio sio recobertos por formantes idénticos, sua redugio exige uma anilise sémica prévia. Tal anilise das ocorréncias, con- sideradas como transformaveis em sememas, pode utilizar os pro- cedimentos ja descritos, indo da simples comparacio de suas defi- nigdes até a colocacio em evidéncia de suas figuras. Ela visa a explicitar um nimero suficiente de elementos genéricos comuns a todas as ocorréncias, que permitem reduzi-las a um s6 semema, © mesmo teste de Stein oferece, para julgar a vida de uma pessoa, 20 lado da qualificacdo importante, outras séries de ocorréncias: 4 0 que hé de mais precioso (6 ocorréncias) vale mais que tudo (10 ocorréncias) vale mais que todo 0 ouro do mundo (4 ocorréncias).. Essas 20 ocorréncias se acham inicialmente reduzidas, gracas a numerosas identidades de expresso, a um inventério constituido de 8 exemplares. Cada uma das acorréncias pode, em seguida, ser dividida em dois segmentos. Os primeiros segmentos: 210 qualifieacio (conferindo-the, na ocasiai © que hé de mais mais que tudo mais que todo ouro do mundo, | aparecem como varisvels estiisticas de um sé elemento de signi- ficacio (nio se tem, a esse nivel de andlise, de perguntar se se trata de um sema ou de uma combinagio sémica), que podemos traduzir como “superlatividade”, Os dois segmentos: & ...precioso conta vale, sio, por sua vez, compardveis, pela proximidade de suas definicées e comportam todos em comum um contetido sémico “estima” (sem que uma anilise sémica mais aprofundada seja necessdria nesse nivel de redugio). Bastard, a seguir, transformar 0 contetido s¢mico extraido em forma normalizada), € considerar 0 elemento sémico ‘‘superlatividade” como um aspecto da qualificacio: apés esta reducao, 0 semema qualificativo pode ser registrado e transferido na linguagem semfntica sob a forma: Q “estimabilidade” (a: “‘superlatividade”). Be) RedugSen complexas. Os trés tipos de redugées simples comportam tracos estru- turais comuns: a redugio af se opera pela comparagio e pela colocacio em evidéncia das identidades sémicas, estas acompa- nhadas, se possivel, da suspensio dos elementos nio idénticos. Estruturalmente, o ‘procedimento repousa sobre a utilizacio das relagées de conjuncio e sobre a neutralizagao das de disjuncio. Reservaremos 0 nome de reduces complexas aos procedi- mentos que colocam em jogo principalmente as relacées hipo- taticas ou hiperotiticas. A reducdo nao se detém, pois, no est: helecimento das classes de equivaléneias, mas busca reunir em uma s6 classe todos os elementos do contetido cujas relagées com 21 a fsotopia do texto podem ser definidas em termos de relacées estruturais elementares. ‘Como para as redugdes simples, distinguiremos varios tipos de redugtes complexas; por ser a manifestaco seméntica sempre plu- rivoca, € dificil escolher exemplos simples. Assim ocorre com os que vamos propor aqui sucessivamente; cada um deles comporta quase todas as propriedades estruturais que queremos distinguir e analisar separadamente. O esclarecimento contard mais que 0 valor do objeto esclarecido. 1. Redugao do figurativo. Utilizando 0 comeco de frase do teste de Stein: Quando Frank viu seu chefe chegar..., obti- vemos de nossos alunos respostas de dois tipos. De um lado, respostas do tipo: ele teve medo (3 ocorréncias) ele sentiu medo (3 ocorréncias) que. apés as reducdes simples. dao lugar & formulacdo da men- sagem: Q (medo) [Ar (Frank); Az (chefe)}. Outras respostas, como: “empalideceu se apresentam, em compensacio, como manifestagdes figur: do mesmo medo. Dada a isotopia nooldgica escolhida para a des- cricdo, e 0 fato de que os atores da mensagem manifestam os atuantes “inferior” e “superior”, pode-se admitir que a redugio deve partir do comportamento pritico, como 0 empalidecimento, para reduzi-lo A sua significagdo mitica “medo” e nao inversa- mente. Mas vemos, ao mesmo tempo, que os predicados praticos desse tipo sao hipotiticos e se apresentam como definicées — acontecimentos de “medo”, que abrem um paradigma de variacbes estilisticas em ntimero indefinido. Logo, a classe ocorrencial de ‘equivalentes hipotiticos pode ser ampliada s respostas do género: ++-Salu correndo .. -escondeu-se 212 - giiéns | stico desejado por Volt: ~ que os abarque & conseqiientemente, necesséria, e 0 emunciado ++ -camuflou-se atrés do tronco da éreore ++.dobrou a esquina, ete., podendo as seqiiéncias definicionais, como vimos, ser integradas na classe das denominagées. 2. Reducao hipotética e reducao hiperotética. Seja uma se- de discurso tirada das Lettres philosophiques (“Primeira Carta sobre os Quakers”) de Voltaire: “(et lorsque apras de batailles gagnées) tout Londres brille d’illuminations, |" que.le Ciel est enflammé de fusées, | Que Pair retentit du bruit des actions de grdces. des cloches. des [orgues, des canons, (nous gémissons en silence sur ces meurtres qui causent la publi- [que allégresse)”. “(e vencidas as batalhas) Londres inteira resplandece em luzes, (© Céu incandesce em fogos, _ © ar retumba ao rufdo das ac6es de gracas, dos sinos. dos érafios, [dos canhées, _ (Gememos em siléncio pelas chacinas que causam a_piblica [alegria)”. © segmento que isolamos, colocando entre parénteses o res- " tante da seqiiéncla, se apresenta sob a forma de trés proposigées, que poderfamos traduzir em tres mensagens semAnticas. Vemos, " entretanto, que as trés proposicées (como alids a enumeracio das determinagses de “‘rufdo”) constituem de fato um recurso esti- ire — sua reducho a uma sé proposicio aproximativo — “Londres celebra a vitéria”, por exemplo, é equi- valente ao segmento intelro, anterior a qualquer normalizacio, que daria qualquer coisa como: F (regozifo) [As (ndo quaker); quantificador (todos)]. © problema, apresentado assim num quadro retérico, parece simples. Na realidade, ele se liga ao funcionamento morfemitico 213 da linguagem, de que as figuras de elipse ou de litotes sé dio conta parcialmente. Toda fungdo lingiiistica que corresponda a um comportamento dito “real” pode ser considerada como hipero- titica — ela compreende uma série virtual posstvel de funcdes parciais, que recobrem comportamentos mais pormenorizados; pode também ser vista como hipotética: ela remete efetivamente, ou pode remeter, a uma funcdo denominativa, que designa todo um algoritmo de fungdes parciais. Considerado numa perspec- tiva de denominagéo e aplicado a unidades de discurso mais amplas, 0 mesmo problema é encontrado em documentacio, onde sob 0 nome de condensacdo, implica 0 procedimento complexo ¢ mal estudado da confeccio de resumos (= abstracts). O proce mento inverso, a expansio, pode ser reconhecido no modelo dis- cursivo do ensino francés que é a dissertacdo, fixada na forma que Ihe foi legada pela retérica classica, antes de seu adormeci- mento. Os dois procedimentos complementares reclamam a ela- boraco das regras de reducao e de produgao que poderiam cons- titui-los em técnicas de descrigio e de descoberta. Se a formulacao de tais regras nfo parece imposs(vel, uma dificuldade, tanto tedrica como pritica, merece ser assinalada: ela concerne ao nivel dtimo a que deve visar a redugio, O problema nao é de ordem quantitativa, nao se trata de saber quantas fungSes deverd comportar cada algoritmo, nem quais sio as dimensdes do algoritmo denomindvel. A mamutencao da isotopia do texto ao longo da descricéo, operando sucessivamente conden- sagbes e expansdes das fungées, € um problema de ponderacao que introduz incdmodos elementos subjetivos de apreciacdo. O éxito da_anilise funcional depende notadamente desse fator: no capi- tulo consagrado, em parte, a andlise do conto popular, fomos levados a remanejar um pouco o inventério das fungdes estabele- cido por Propp, para tornar mais equilibrada a estrutura da narra- tiva. O leitor vera, gracas a esse exemplo, que além da isotopia, que & um conceito fundamental da descric¢ao, a redugio deve levar em conta a economia geral da narrativa, isto é, a coeréncia interna do modelo. Vista ‘sob esse Angulo, a reducdo se mostra como algo que pode tomar tanto a forma de condensagao, isto 6, da denominagio das fungdes hiperotaticas, quanto da forma da expansao, isto é, da particio de uma funcdo muito geral em fungées hipotdticas, a4 “embora estas nfo estejam sempre explicitamente presentes na manifestacio. 8. Reducdo das fungdes as qualificagées: Dois problemas istintos, mas que na pritica se confundem quase sempre, devem ser considerados sob essa rubrica: trata-se, de um lado, da difi- culdade de reconhecer com seguranca, quando do procedimento de normalizacdo, os sememas qualificativos e de distingui-los dos sememas funcionais; trata-se, por outro lado, quando do procedi- mento de reducao, de considerar os sememas funcionais reconheci- dos e registrados como tais e de Iancé-los, separadamente ou en- quanto classe, no inventdrio dos sememas qualificativos. a) O primeiro desses casos se acha ilustrado, e em parte escla- recido, pelas provas semAnticas elaboradas por Mme L. Irigaray, &s quais foram submetidos dementes senis hospitalizados em Sainte-Anne. Assim, convidados a escolher entre trés seqiiéncias ~ aquela que seria equivalente & denominacao doutor: © doutor & 0 que conserta carros? O doutor & 0 que dirige trens? O doutor é 0 que cuida dos doentes? 0s sujeitos testados provaram dificuldades considerdveis em distin- guir entre a seqiiéncia que exprime a qualificacio do doutor e aquelas que The atribuem fungées. Nao parece duvidoso tratar-se ai de uma fronteira estrutural que marca 0 enfraquecimento ou ‘© cessar, nos doentes observados, da atividade que reconhecemos como metalingiifstica. No entanto, nio se trata apenas disso. O que interveio em parte aqui, e o que se pode reproduzir, na presenca de distingdes ‘menos evidentes, em qualquer andlise, é o fato de todas as seqiién- cias a serem interpretadas possuirem fungSes que comportam o aspecto iterativo. No caso, a iteratividade se acha manifestada pela combinagao do presente, que comporta hipotaticamente a categoria aspectual “imperfectivo” vs. “perfectivo”, sincretizada, com o plural dos atuantes-objetivos. Basta, conseqiientemente, que 0 aspecto, iterativo ou durativo, seja apreendido antes da funcio para que esta, degradada em figura especffica da defini- fo, apareca como uma qualificagio, isto 6 como um atributo Permanente do atuante. O mesmo ocorre, aliés, quando as fun- 215 des comportam modalidades tais como “saber” ou “poder”, que 0s transformam em qualidades permanentes. A enumeracio nao para ai: no exemplo que demos de redugio da manifestago figurativa a0 nivel nio figurative, 0 que permite transformar a funcao perfectiva de “ele saiu correndo” em qualificacio “medo” é a iteratividade das respostas, isto 6, a inscrigéo de uma ocorrén- cia no corpus coletivo. A natureza das relagées entre qualificacées e funcSes j4 pa- rece estar precisada. Supondo que a descri¢ao dependa, a partir de um corpus representativo, da totalidade das fungdes atribuf- das a um atuante qualquer, seu inventdrio poderd nos oferecer, no maximo, a esfera de atividade do atuante. A anilise ulterior poder acentuar apenas as funces redundantes, e 0 modelo elaborado nio dara conta sendo da estrutura dos comportamen- tos caracteristicos. Tal tratamento das fungées, embora legitimo, corre o risco de fazé-las aparecer a todo instante, quer tomadas separadamente, no nivel dos inventdrios parciais, ou, entio, em estado de modelo constituide, como hipotéticas em’ relagio As qualificagées, aos inventérios ou ao modelos qualificativos. Assim sendo, sio teoricamente possiveis procedimentos de transforma- go das fungdes em qualificagées e, efetivamente, vamos tentar, no momento certo, sua demonstracdo. Tais tratamentos das fun- gSes, entretanto, ndo devem ser confundidos com a descricio dos modelos funcionais propriamente ditos: vemos por conse- guinte. que todo inventario de fungdes nao é implicitamente subordinado a um modelo de caréter funcional, e que este pres- supée a existéncia de uma programagao minima entre fungdes, que as transforme em consecugao. Evidencia-se assim uma dupla vocagdo da anélise funcional: na medida em que ela considera apenas as relacGes existentes entre as func6es e os atuantes, seus modelos sio compariveis e, em certas condicdes, hipotéticos, em relagio aos modelos qualifi- cativos; na medida em que ela se interesse pelas relacdes entre fungdes, é capaz de explicitar modelos que dao conta nao mais dos modos de existéncia, mas dos modos de transformagao dos microuniversos semanticos. 216 as vari dar conta dos tipos de relagdes que definem d) © semantic e o estilistico. ‘A reflexo sobre os procedimentos de descrigio jd considerados mostra que cada passo adiante consiste ao mesmo tempo na ‘selecdo e na eliminagio dos elementos de significacdo. O procedi- ‘mento descritivo se mostra, no seu conjunto, como uma busca de constantes do contetido as custas de suas varidveis, progres- sivamente abandonadas, como uma valorizaco da substdncia do conteddo pela colocac&o entre parénteses dos elementos de sua forma. Diremos pois que a descri¢fo de um corpus qualquer & semin- tica na medida em que, partindo das oeorréncias, ela as transforma em inventérios, e estes em classes e, eventualmente, em classes de classes, para chegar & coristrugéo do modelo que dé conta do _ modo de existéncia do microuniverso semintico manifestado pelo corpus. Mas este procedimento ascendente da descri¢ao pode e ‘algumas vezes deve ser completado pelo procedimento descen- dente, que terd por tarefa, patindo do modelo-invariante, reunir wveis abandonadas em cada etapa e constituf-las em estru- turas sistemiticas ou morfemiticas, espécies de submodelos que dio conta do funcionamento e da produtividade das estruturas hierarquicamente superiores. Chamaremos estilistica este procedi- mento descendente da descricao. Podemos distinguir dois modos de investigagao estilistica. © primeiro, correspondente a0 nivel da redugdo complexa, j& reconhecido, seré de natureza hipotitica (metonimica) e procurard distancia que separa os sememas construfdos quando da primeira reducio da isotopia definitivamente estabelecida.. Tratar-se-4 a{ do que pode- ramos chamar estilistica semémica, Embora situada num nivel de generalidade mais alto, ela corresponde, grasso modo, aos tipos de relagdes estudados desde h4 muito sob o nome de figuras & tropos. O segundo modo de descricio estilistica deverd retomar as varidveis deixadas de lado quando da redugio simples: deverd, conseqiientemente, ocupar-se das relagdes de natureza disjuntiva (metaférica) e promover a anilise sémica das ocorréncias que se | deixam construir em sememas descritivos. Tratar-se-d, nesse caso, ae uma estilistica sémica. Ela corresponderia, por suas preocupa- ‘gdes, a uma disciplina lingiifstica um tanto negligenciada, a forma- a7 40 das palavras, que as tendéncias atuais da lingiiistica nio tar- dardo a recuperar. As descrigoes de J. Dul sando a explicitar © que considera como microssistemas (cf. via ~ caminho. = estra- da, etc.) poderiam servir de modelo a esse tipo de pesquisa. Observag&o: Estamos conscientes da polissemia termi- nolégica que aqui introduzimos. Assim, o procedimento: se- mintico da descricio, nio é semantico senfo em seu objetivo: © modelo a que deve chegar sera construido com o auxilio de categorias sémicas que dependem, em principio, do nivel se- mAntico imanente. Quanto ao procedimento estilistico, ele sé se identifica parcialmente com o estrato estilistico estrutural, deixando de lado o problema das relagées entre os estratos fundamental e histérico. Melhor que elaborar uma terminologia pletérica, procuraremos reunir inicialmente as condigées de uma ter- minologia. Se os dois procedimentos, seméntico e estilistico, sio apenas duas fases de uma mesma descri¢éo, 0 segundo procedimento supée, no entanto, o primeiro: s6 podemos falar de anilise esti- listica na medida em que a descrigdo semAntica jé estiver acabada, isto é, sd a partir do momento em que um estrato isotdpico do contetido for estabelecido na sua invaridncia, para que a procura de suas varidveis tenha um sentido, Sem isso, tudo, na lingua- gem, corre 0 risco — e isso ocorre muito freqiientemente — de se evidenciar como estilistico, e 0 mal-entendido subjacente a toda controvérsia entre os partidarios da aproximagio literdria € 0s lingiiistas s6 tende a generalizar-se. ©) A estruturagao. © termo estruturacao é reservado para designar 0 procedi- mento de descrigio complementar do da redugao. Ele parece ser Util, pelo seu sentido literal de “‘colocagdo em estrutura”, aplicado aos elementos de significagio obtidos pela redugao. A constatagdo de que 0s procedimentos de reducdo e de es- truturacio sio complementares coloca em questéo, uma vez mais, 218 o estatuto diacr6nico da descricdo considerada comb procedimento. De fato, se os resultados da descricio — ou a exposi¢&io do trajeto a seguir que fazemos nesse instante — tendem a fazer aparecer os dois termos como definidores das fases sucessin terizam duas operacées distintas, a propria descricio nao pode ser concebida como diacrénica. Um inventério das ocorréncias 36 pode ser reduzido a uma classe e denominado por um se- mema tinico na medida em que um outro inventério, diametral- mente oposto, seja ao mesmo tempo constituido e denominado. Expliquemo-nos: a reducgdo de um inventério, tomado isolada- mente, a um semema construido, é sempre poss{vel, e j& 0 pro- vamos, por exemplo, operando a reducdo das equivaléncias da classe fatigué. Mas tal reducio nfo ser necessariamente perti- nente se nao for operada no quadro de um corpus dado com vistas a uma descrico isotépica: toda manifestacdo discursiva fechada est4 submetida a uma estrutura que lhe & propria, e 05 inventdrios de equivaléncia sio suscetiveis de variar de um corpus a outro. Isso quer dizer que a reducao, nesse caso, pres- supée a representacao, mesmo hipotética, das estruturas a serem descritas, mas que por sua vez a estruturacdo, para ser efetuada com éxito, pressupde as redugies acabadas. A pressuposic&o ree{proca caracteriza, como sabemos, a articula- co complexa da estrutura elementar da significagdo. Podemos, pois, dizer no sé que a descricio, concebida como metalingua, possui sua estruturacio propria, mas também que seu funciona. mento, isto é no futuro, a pesquisa descritiva, implica a apreensio simultanea dos procedimentos dos quais ela é constituida. Os procedimentos cujos termos fazem parte de uma estrutura com- plexa estdtica sio ditos complementares, quando so apreendidos no momento do funcionamento da mesma estrutura, sem que, no entanto, o estatuto sincrénico da estrutura possa ser colocado em questio. A descricdo é, pois, uma praxis metalingiifstica, no curso da qual todos os procedimentos, cujo conjunto constitui 0 modelo, estdo simultaneamente presentes e atuantes. Os procedimentos de descricao, so sob esse prisma, apenas regras de funcionamento da estrutura que é a descri¢io, exatamente como as Tegras gra- maticais dao conta do funcionamento da estrutura gramatical. © corpus a ser doscrito pode ser simples e satisfazer-se com uma 96 estrutura; pode ser mais complexo ¢ exigir varias: a descrigéo 219 se dividiré nesse caso, numa série de descrigbes parciais inde- pendentes, que se encaixam hierarquicamente umas, nas outras. O que é preciso reter é que cada descrico parcial sé pode orga- nizar os contetidos semémicos, obtidos pelas reduces, como arti- culagées da estrutura elementar. ) Homclogasiio © generalizacao. Para melhor compreender a complementaridade dos proce- dimentos de reducio e de estruturacio, gostarfamos de introduzir aqui o conceito de homologacéo. Segundo 0 Vocabuldrio Filo- séfico de Lalande, num sistema de relacées do ti A vs B A’ vs B’ Ae A’ sio ditos homélogos em relaco a B eB’. Mais particular- mento, “cm matemitica, as partes correspondentes de duas fi- guras ‘semelhantes, ou, mais geralmente, correlativas, sio ditas homélogas”. Restringindo, para adaptar as nossas necessidades ime- diatas, a definicio desse conceito, diremos que $ (s) vs nfo S (nao s), 8’ (s) vs nao S’ (nao 8), © que significa: dois sememas $ e S’ serdo ditos homélogos em telacao 20 nfo Se ndo S’ se possuirem em comum um con- tetido sémico s (isto é a0 menos um sema), que, considerado como termo positive, esté presente ao mesmo tempo, sob sua forma negativa de ndo s, nos sememas nio S e nao S’. Em outras palavras, a redugdo dos sememas-ocorréncias $e S’ a um 36 semema descritivo sé & pertinente se 0 contedido sémico idéntico que permite essa reducio estiver igualmente presente, sob a forma categdrica negativa, no inventério paralelo das ocorréncias ndo S endo S’, redutivel também, ¢, a0 mesmo tempo, a um outro semema descritivo, que é homélogo em relacéo ao primeiro. A homologacio assim entendida engloba, conseqiientemente, a0 mesmo tempo a reducio e a estruturagio. Vemos entio que 0 que caracteriza as redugies simples 6 a identificagio dos contetidos sémicos de um inventério de ocor- 220 réncias dado, ¢ que esta exige a presenca “estruturante” isto 6, disjuntante, dos termos negativos das categorias sémicas cujos termos positivos se procura identificar. As redugdes complexas implicam, além da base, geralmente classemdtica, comum a todas as ocorréncias, a presenca dos contetidos sémicos cuja equiva- Iencia sé pode ser estabelecida gracas as relacdes hipotitica: ‘A homologacio, considerada até o presente como bindria, pode ser ampliada até as dimensbes da estrutura elementar arti- culada em seis termos. Se admitimos que uma categoria bindria pode manifestar-so em seis sememas-ocorréncias, constituindo desvios de significagao suficientes, nao se exclui a possibilidade de uma homologagio que possa operar a reducio dentro do quadro estrutural articulado do mesmo modo. O conceito de homologacdo nos ajuda igualmente a avancar em direcio & compreensio das transformagées estruturais que situamos nas zonas de emaranhamento do corpus de cardter dia- crdnico. Roman Jakobson, que foi um dos primeiros a se inte- tessar_por isso, propos interpreté-los no quadro da sobredeter- minacao dos elementos estruturais. Assim, o desaparecimento da declinagio do antigo francés pode explicar-se situando-se_previa- mente a ordem sintagmética dos elementos do enunciado, que, pela redundancia, libera em seguida os formantes desinenciais autoriza sua queda. Esse exemplo sé da suficientemente conta, & bem verdade, da substituigio dos formantes: a categoria atua- cional “sujeito” vs. “objeto” expressa de maneira redundante, durante um perfodo de emaranhamento dos significantes, sai ilesa da prova. Mas podemos muito bem conceber tais sobredeterminactes no plano do contetido: uma estrutura binéria homologada, fun- cionando como uma permanéncia e produzindo de maneira redun- dante sememas de substituicdo homologados: S’, S”, S”, etc., em relacio de disjungéo com os sememas: nio S’, nfo $”, néo S”, de pér-se a gerar, num dado momento, ndo mais ‘sememas indrios mas uma estrutura semémica terndria_ comportando, além dos sememas polarizados, um terceiro semema que articula‘o ter- mo complexo. Por pouco que persista o engendramento das ‘ocorréncias em trés termos, uma zona de emaranhamento, que comporta 20 mesmo tempo as estruturas bindrias e as estruturas terndrias, acha-se constituida, e s6 deixa subsistir, depois, apenas 221 a estrutura terniria, Esse tipo de transforinagao estrutural foi descrito por Lévi-Strauss (Anthropologie Structurale, p. 248), que mostra como uma estrutura bindria homologada tal como S (vida) vs Nio $ (morte) S; (agricultura) vs Nao S; (guerra) 6 apropriada para gerar um terceiro termo complexo ou mediador: Agricultura = Caca = Guerra (positive) *S (complexo) YS (negativo) Observagao: De fato, 0 problema é, como sempre, mais complexo do que possa parecer A primeira vista: ndo vemos por que a substituicio efetuada ao nivel da variagio das ccorréncias afcta, num dado momento, a prépria estrutura. A iaterpretagao tradicional da mudanga pela usura histérica no parece satisfatdria. Retomamos o problema mais adiante, analisando a estrutura Vida vs Morte em Bernanos. ‘Ao engendramento de novos termos estrutura a degeneracio das estruturas, simplificadas por em sentido inverso. Bastara lembrar aqui a concepgio de Brgndal para quem o progresso do espirito humano se identifica com a simplificagio que tende a binarizar as estruturas, isto é, que no fundo se identifica com a degeneracio das estruturas. Entenda-se que a interpretacao valorizante de Brendal — que nossa termino- Togia deixa de lado — continua estranha As preocupacées lin- giifsticas. g) Os conteiidos instituides e sua organizacéo. Com a homologacio, que resume os diferentes procedimentos de redugio, subordinando-os & exigéncia de uma colocagio em estrutura’ correlativa, encerram-se a enumeragio e a formulagio dos procedimentos ‘gerais. de-descri¢o dos microuniversos se- mintigos, que partem do corpus de manifesto fechado. Os procedimentos ites leriamos pri concerneri: JET vergantzacto. dos modelos particulares. ier 222 De fato, os procedimentos mantém seu caréter geral enquanto se trate da descricio do conteido propriamente dito, isto é, do contetido instituido dentro de uma manifestagio fechada e re- dundante pela atividade predicativa do discurso, e deserito, conse- qiientemente, a partir dos inventirios de mensagens. A anilise das classes dos predicados, qualificativos ou funcionais, institui, Ge fato, separadamente ou em conjunto (com o auxilio de perequa- ‘es cujas regras devem ser precisadas), os atuantes semdnticos: ‘apés a descrigao do contetido, cujos procedimentos acabamos de estudar, estaremos entio, em principio, na presenca de tantas struturas simples homologadas quantos forem os atuantes. Deverd ser considerada, portanto, nova etapa da descrigo, consa- grada a uma nova estruturacio dos atuantes, a seu reconheclmento e ao estabelecimento de uma constituicéo do microuniverso des- crito. : Mas uma outra saida é igualmente possivel. A andlise pre- dicativa, tendo transformado o inventério’ das mensagens funcionais num pequeno mimero de estrnturas de contetido homologadas, em vez de atribuir as estruturas aos atuantes, pode, ao contririo, interessar-se pelas relagdes entre as classes de funcdes e considerar 05 contetidos homologados como constitutivos dessas classes, ¢ nao 0s atuantes. Vimos, ao estabelecer as funcdes, que a andli- se funcional propriamente dita so pode ser concebida se as funcées — que estarao, na etapa da descricio a que che- gamos, investidas de contetdos analisados e homologados — ‘apresentarem entre si relagdes de consecucio e manifestarem uma diacronia, um “antes” e um “depois” logicos. Uma etapa descritiva diferente da construcdo atuacional, que organize as fungdes inves- tidas de contetidos em uma seqiiéncia transformacional, deverd ser prevista. Esta iiltima etapa de estruturagio, consagrada & organizacio dos contetidos institufdos e investidos, quer nos atuantes quer nas fungées, deve acabar a descrigio. Na sua fase institucional prevista, esta permaneceu essencialmente taxindmica, organizando 8 significagges em contetidos hierarquicos disponiveis. Os modelos que € preciso procurar descrever a partir daf devem particula- Fizi-los: seu modo de existéncia € 0 do microuniverso descrito. Mas, 20 mesmo tempo, cles sio mais gerais que 0s contetidos particulares e aparecem como invariantes, como tipos de organt- 223 zacao da significagdo em microunivers i i Firvedtidos io\ sho washe yaciheilajies Sees ne Encontramo-nos, como vemos, no dominio das conje toda formulacio de hipdteses parece prematura. Allateraae também, titubeando: os trés capitulos que se seguem constituem amostras de reflexes e de anilises parciais, explorando dominios Particulares. As generalizacées As quais estas podem prestar-se 86 terao, evidentemente, um valor hipotético. constituir 0 que podemos designar como divindade. Deis niveis de descrigao. Quando um mitdlogo como, por exemplo, Georges Dumézil, se propée a descrever uma populacio divina analisando um por um todos os seus representantes, 0 procedimento utilizado percorre - duas vias distintas: 1. Escolhendo uma divindade qualquer, ele constitui, com 0 auxilio de todos os textos sagrados, mitoldgicas, foleléricos, ete., um corpus de proposiges nas quais o deus em questio entra como atuante. A partir do inventério das mensagens funcionais, fas reduces sucessivas, seguidas da homologacio, Ihe permitem cofera de atividade da 2. Constituindo um corpus paralelo — que contém a totalidade das qualificacées dessa divindade, tais como as encontramos sob fa forma de cognomes, de epitetos esterectipados, de atributos divinos, ou entéo, em sintagmas em expansio que comportam consideraces de carter teoldgico — cuja andlise permite estabele- cer a fisionomia moral da divindade considerada, Resultam dai duas definigSes possiveis do mesmo deus: a primeira, que parte do principio de que um deus é reconhecido pelo que faz, mas que, considerando mitica sua atividade, inscre- ‘ye-o como um dos atuantes de um universo ideolégico; a segunda, que 0 situa como um dos atuantes com o auxilio dos quais se conceitualiza uma axiologia coletiva. [As coisas nao se passam de outra forma aqui na terra: assim, quando por exemplo, apés ter escolhido, para a descrigéo do universo raciniano, a andlise funcional, R. Barthes diz que a tra- 225 gédia raciniana nfo é psicolégica, suas afirmagées s6 podem chocat 08 defensores das explicacées qualificativas tradicionais. Vimos que nesse nivel de descrigdo, as duas andlises predi- cativas — funcional e qualificativa —, longe de serem contradi térias, podiam, ao contrério, em certas condicées, ser consideradas como complementares e seus resultados como convertiveis de um modelo a outro: a divindade poderia agir conforme sua prépria moral; seus comportamentos iterativos, julgados tipicos, podiam ser integrados igualmente como qualidades. © problema da dis- juncao dos processos descritivos s6 se coloca mais tarde, quando, uma vez instituidos tais atuantes, isto &, investidos de contetidos, formos tentar a descrigaéo do microuniverso dentro do qual eles existem ou agem. Esta nova descricio, situada num nivel supe- rior, 6 sera possivel se dispusermos para seu empreendimento ao menos de um certo mimero de hipéteses concernentes a seu objetivo. Mas, para constitui-las, & preciso tentar responder inicial- mente a dois tipos de questdes: ‘a) quais slo as relagées rec{procas € 0 modo de existéncia em camnm das atuantes de um micro- universo? b) qual € 0 sentido, muito geral, da atividade que satiation Ko ee, ie que consiste tal “atividade”, e se el transformadoré jual oh A tam ‘a, qual € 0 quadro estrutural dessas ‘trans- ‘Vamos tentar responder inicialmente & pris ives primeira das duas 2° Os atuantes em lingiiistica, ~ Como jé dissemos, ficamos impressionados com uma observa- io de Tesnidre — que ele pretendia, provavelmente, fosse apenas didatica — onde ele compara o enunciado elementar a um espeté- culo. Se lembrarmos o que chamamos fungdes segundo a sintaxe tra- dicional, vamos ver que se trata de papéis desempenhados por pala- vras —, 0 sujeito af & “alguém que faz a ago”; o objeto “alguém que sofre a aco”, etc. A proposicao, em tal concepcao, é, efetiva- mente, apenas um espetéculo que dé a si mesmo 0 homo loquens. O espetaculo tem, entretanto, algo de particular: ser permanente: 9 contetido das agdes muda o tempo todo, os atores variam, mas 0 enunciado-espeticulo permanece sempre 0 mesmo, pois sua per- manéncia esté garantida pela distribuicdo tinica dos papéis. 296 _ Fsta permanéneia da distribuico de um pequeno niimero de ypéis, dizlamos, nao pode ser fortuita; vimos que o ntimero de ‘atuantes era determinado por condigées aprioristicas da percep¢io ‘significacdo. Quanto & natureza dos papéis distribuidos, foi-nos ~ mais dificil pronunciar-nos: pareceu-nos ao menos indispensdvel corrigir a formulacdo ternéria, defeituosa, substituindo-a por duas eategorias atuacionais, sob a forma de oposigées: sujeito vs _ objeto destinador vs destinatdrio. ‘A partir daf, conseguimos empreender a seguinte extrapolacio: jd que o discurso “natural” ndo pode nem aumentar o nimero dos atuantes nem dilatar a apreensio sintética da significado para além da frase, 0 mesmo deve ocorrer dentro de todo microuni- verso; ou melhor, uo contrario, 0 microuniverso semantico s6 pode set definido como universo, isto é, como um todo de significacio, na medida em que lhe € possivel surgir a qualquer momento diante de nés como um espeticulo simples, como uma estrutura atuacional. Duas tarefas de ordem pritica foram necessdrias para ajustar esse modelo atuacional, tomado de empréstimo a sintaxe, a0 seu novo estatuto seméintico e As novas dimensées do microuniverso ‘considerar, de um lado, a redugio dos atuantes sintaticos a seu esta- tuto semaintico (Maria, receba ou seja-Ihe enviada uma carta, é sem- pre “destinatiria”); reunir, por outro lado, todas as funcGes manifes- tadas num corpus e atribuidas, qualquer que seja a sua dispersio, ‘a.um sé atuante semintico, a fim de que‘cada atuante manifestado traga, atrés de si, sua investidura seméntica e a fim de que possamos dizer que 0 conjunto dos atuantes reconhecidos, quais- quer que sejam as relagdes entre eles, é representative de toda a manifestacao. Eis até onde chega a hipdtese de um modelo atuacional, visto ‘como um dos prineipios possiveis da organizaco do universo semintico, excessivamente considerdvel para ser apreendido, na sua totalidade, em microuniversos acessiveis ao homem. E neces- sério agora que as descricdes concretas dos dominios delimitados ‘on pelo menos das observagées de carater geral, as quais, sem serem apoiadas em andlises expressivas, incidem sobre 0 conjunto de 2 significantes vastos e diversificados, venham confirmar estas extra- polagées lingiifsticas, trazendo, ao mesmo tempo, informacdes sobre a significagio e as articulagSes possfveis das categorias atuacionais. 9° Os atuantes do conto popular russo. Uma primeira confirmacio dessa hipétese foi-nos dada por V. Propp em sua Morfologia do Conto Popular Russo, cuja tra- ducio americana relativamente recente s6 hd pouco tempo foi conhecida pelos franceses. Apés ter definido 0 conto popular como uma extensio de suas $1 funcées sobre a linha temporal, Propp se coloca a questio dos atuantes, ou dos dramatis personae, como ele os chama. Sua concepcao dos atuantes é funcional: as personagens se definem, segundo ele, por “esferas de acio” das quais participam, sendo estas constitufdas por feixes de fian- gdes que Ihes so atribuidas. A invariancia que podemos obser- var comparando todos os contos-ocorréncias do corpus é a das “esferas de acdo” que sio atribuidas &s personagens (as quais pre- ferimos chamar atores), varidveis de um conto a outro. Tlustrando isso com auxilio de um esquema simples (v. abaixo), vemos que, se definirmos as fungies Fy, Fs, Fs como constituindo a esfera de atividade de um certo atuante A;, a invaridncia dessa esfera de atividade de um conto a outro permite-nos considerar os atores 1, 2, ag, Como expressdes ocorrenciais de um sé e mesmo atuante definido pela mesma esfera de atividade. Resulta daf que, se os atores podem ser instituidos dentro de um conto-ocorréncia, os atuantes, que sfo classes de atores, nio podem sé-lo senéo a partir do corpus de todos’ os contos: uma articulacéo de atores constitui um conto particular; uma estrutura de atuantes, um género. Os atuantes possuem, pois, um estatuto metalingiifstico em relacio aos atores; pressupdem acabada, além disso; a anilise funcional, isto é, a constituicio de esferas. _ Esse duplo procedimento, a instituigo dos atores pela descri- fd de suas fungies e a redugio das classes de atores & das atuantes do género, permite a Propp estabelecer um inventario definitivo dos atuantes, que sao: 19 the villain; 2° the donor (provider); B° the helper; 42 the sought-for person (and her father); 5° the dispatcher; 6° the hero; 7° the false hero. Esse Inveutdrio nos autoriza a dar uma definiczo atuacional do conto popular russo como sendo uma narrativa de 7 perso- nagens. 4° Os ctuantes do Teatro. No ponto exato onde Propp termina a sua anélise, encontra- ‘mos um outro inventério, bastante semelhante, no catilogo das funcies dramiticas apresentado por E. Souriau em sua obra 200000 Situations dramatiques. A reflexio de Souriau, embora subjetiva e nfo tendo apoio sobre nenhuma andlise concreta, nio muito distanciada da descri¢ao de Propp; alids, prolonga-a de certa forma. £ pouco provavel que Souriau tenha conhecido a obra de Propp. Isso nfo chega a ser pertinente. O interesse do pensamento de Souriau consiste no fato de ter ele mostrado que a interpretagio atuacional podia se aplicar a um tipo de narrativas — as obras teatrais — bem diferente do conto popular e que seus resultados podiam ser compariveis aos primeiros. Encontramos af, embora expressas em outros termos, as mesmas distingdes entre histéria-acontecimento (que nao é para ele senao uma seqiiéncia de “temas dramiticos”), e 0 nivel da descri¢io semintica (que se faz a partir de “situacdes” de componiveis em processos dos atuantes). Encontramos af, finalmente, um in- ventirio limitativo dos atuantes (que ele batiza, segundo a termi- nologia sintdtica tradicional, com 0 nome de fungées). Por infe- licidade, apés ter hesitado algum tempo entre 6 e 7 funcoes dra- mitticas, Souriau decidiu-se, finalmente, a limitar o nimero em 6 (niimero contestado, alids, por Guy Michaud, em seu Techni- ques de T'eeuvre, que pretendia restabelecer a 7 funcio, aquela do viléo): terlamos assim obtido definigées paralelas de dois géneros diferentes — conto popular e peca de teatro —, que, cada um dos autores, separadamente, teria pretendido que fossem narrativas com sete personagens. O inventério de Souriau se apresenta da seguinte forma: Lefo Sol .... a Forca temitica orientada; © Representante do Bem desejado, do valor orientado; Terra ..... © Obtenedor virtual desse Bem (aquele para © qual trabalha o Ledo); Marte ..... 0 Oponente; Balanga . Wie 23535 0 Arbitro, atribuidor do Bem; © Auxflio, reduplicagio de uma das forcas pre- cedentes. io hd razao para nos desencorajarmos com carater energético e a0 mesmo tempo astrologico ‘da terminologia de Souriau: esta nfo chega a ocultar uma reflexio coerente. 5° A categoria atuacional “Sujeito” vs “Objeto”. As definig6es de Propp e de Souriau confirmam nossa interpre- tagdo sobre um ponto importante: um mimero restrito de termos atuacionais basta para dar conta de um microuniverso. Sua insuficiéncia est4 no cardter a0 mesmo tempo excessivo € insu- ficientemente formal que se pretendeu dar a tais definigdes: definir um género apenas pelo mimero de atuantes, fazendo abstra- sho de todo 0 contetdo, é situat a definiggo num nivel formal excessivamente elevado; apresentar os atuantes sob a forma de um simples inventério, sem se interrogar sobre as relagdes possi- 230 “vels entre eles, é renunciar muito cedo A anélise, delxando a 4 parte da definicio, seus tragos espectficos, num nivel de formalizacao insuficiente. Uma categorizacio do inventério dos fatuantes parece, pois, necessiria: vamos tenté-la, comparando, num primeiro passo, os trés inventdrios de que dispomos: os de Propp e de Souriau, e aquele mais restrito, j que comporta apenas duas categorias atuacionais, que conseguimos tirar das consideragies sobre o funcionamento sintético do discurso. Uma primeira observacio permite encontrar e identificar, nos dois inventdrios de Propp e de Souriau, os dois atuantes sii- taticos, constitutivos da categoria “Sujeito” e “Objeto”. E im- pressionante, importa noté-lo agora, ver como a relacdo entre sujeito e objeto, que obtivemos com tanta dificuldade, sem pleno resultado, aparece aqui com a‘mesma investidura semintica nos dois inventirios: a do “desejo”. Parece possivel conceber que a transitividade, ou a relacdo teleolégica, como sugerimos chamé-la, situada na dimensio mitica da manifestacdo, apareca, apds esta ‘combinacio sémica, como um semema que realiza o eleito de sentido ‘desejo”. Se isso ocorre, os dois microuniversos, 0 género “conto popular” e 0 género “espeticulo dramético”, definidos por uma primeira categoria atuacional, articulada segundo o desejo, sio capazes de produzir narrativas-ocorréncias onde o desejo serd manifestado sob sua forma ao mesmo tempo pritica e mitica de “procura”. ~ © quadro das equivaléncias dessa primeira categoria seré 0 seguinte: Sintaxe | Sujeito vs Objeto Propp | Hero vs sought-for person Fora temitica Representante do Bem de- orientada Souris 7 en sejado, do valor orientador 6° A categoria atuacional “destinador” vs “destinatério”. A pesquisa do que poderia corresponder, nas intengies de Propp e de Souriau, a esta segunda categoria atuacional nao deixa 231 de apresentar uma certa dificuldade, por causa da manifestagio sincrética freqiiente dos atuantes — jé encontrada no nivel da sintaxe —, do acimulo, j4 muitas vezes constatado, de dois atuan- ted, presentes sob a forma de um sé ator. Por exemplo, numa narrativa que seria simplesmente uma banal histéria de amor, terminando, sem a intervengio dos pais, com 0 casamento, 0 sujeito € ao mesmo tempo o destinatdrio, 20 ‘paso que o objeto é ao mesmo tempo o destinador do amor: Ele _ Sujeito + Destinatario Ela Objeto + Destinador No caso, os quatro atuantes sao simétricos e invertidos, mas sin- eretizados sob a forma de dois atores. Mas vemos também — e a copla de Michel Legrand, can- tada nos Guarda-Chuvas de Cherbourg, mostra isso numa sin- tese impressionante: “Un homme, une femme, Une pomme, un drame” (“Um homem, uma mulher, ‘Uma maga, um drama”) — com que facilidade a disjungio do objeto e do destinador pode produzir um modelo com trés atuantes. Numa narrativa do tipo da Procura do Santo Graal, a0 con- tririo, os quatro atuantes, bem distintos, so articulados em duas categorias: Sujeito Herd Objeto. Santo Graal Destinador Deus Destinatario ~ Humanidade’ [A descrigao de Souriau nio oferece dificuldades. A categoria destinador vs destinatirio ai é francamente marcada, como a oposi¢ao entre 282 co Arbitro, atribuidor do bem vs 0 Obtenedor virtual desse Bem. on ____Na anilise de Propp, em compensacio, o destinatdrio parece estar articulado em dois atores, 0 primeiro dos quais é muito in- genuamente confundido com 0 objeto do desejo: (the sought-for person and) her father, ‘a0 passo que 0 segundo aparece, como se poderia esperar, sob 0 nome de dispatcher (mandante). Nas ocorténcias, de fato, sio o Tei ou o pai — confundidos ou nao em um s6 ator — que incumbem © herdi de uma missio. Podemos, pois, sem grandes problemas, e sem 0 auxilio da psicanilise, reunir 0 pai da pessoa desejada a0 mandante, considerando-os, quando se apresentam separada- mente, como dois “atores” de um mesmo atuante. Quanto ao destinatétio, parece que, no conto popular russo, seu campo de atividade se funde completamente com o do sujelto- -herdi, Uma questdo tedrica que se pode propor a respeito, e com que vamos nos defrontar mais tarde, é saber se tais fusdes podem ser consideradas como critérios pertinentes para as divisces de um género em subgéneros. Vemos que as duas categorias atuacionais parecem, até o momento, constituir um modelo simples, fundado inteiramente sobre © Objeto, que é a0 mesmo tempo objeto de desejo e objeto de comunicacio. 72 Categoria atuacional “Adjuvante” vs “Oponente”. E mais dificil assegurar a articulagio categérica dos outros atuantes, a nio ser que nos falte 0 modelo sintitico. Reconhece- mos, entretanto, sem dificuldade duas esferas de atividade e, den- tro destas, duas espécies de fungées bastante distintas: 1. As primeiras, que consistem em trazer auxilio, agindo no sentido do desejo, ou facilitando sua comunicacio; 2. E outras que, ao contrério, consistem em criar obstculos, opondo-se quer 2 realizagio do desejo, quer 4 comunteagho do objeto. 233 _ Esses dois feixes de fungdes podem ser atribufdos a dois atuantes distintos, que designaremos com os nomes de adjuvante vs oponente. Esta distingZo corresponde & formulacao de Souriau, de quem tomamos emprestado o termo oponente; preferimos 0 termo adju- ante, introduzido por Guy Michaud, a auxilio de Souriau. Quanto & formulagdo de Propp, encontramos af 0 oponente, denominado pejorativamente villain (= vilio) ao passo que o adju- vante, no caso, recobre duas personagens, 0 helper e 0 donor idade de andlise pode surpreender primeira vista. No entanto, é preciso no esquecer que os atuantes sio insti- tuidos por Propp, sem falar de Souriau, a partir de suas esferas de acto, isto & com o auxilio apenas da redugio das fungées e sem levar em conta a homologagio indispensivel. Nao preten- demos fazer aqui a critica de Propp, cujo papel de precursor é considervel, mas registramos simplesmente os progressos realiza- dos, durante estes iiltimos trinta anos, com a generalizagio dos procedimentos estruturalistas. £ preciso também levar em conta que é mais fécil operar quando se dispde de dois inventérios com- parados, em vez de apenas um. Podemos nos perguntar a que corresponde no universo mitico, cuja estratura atuacional queremos explicitar, esta oposicao entre © adjuvante e 0 oponente. A primeira vista, tudo se passa como se, ao lado dos principais interessados, aparecessem agora, no espetéculo projetado numa tela axiolégica, atuantes que repre- sentam, de maneira esquemftica, as forcas benfazejas e malfazejas do mundo, encarnagées do anjo da guarda e do disbo do drama da Idade Média. © que espanta também é 0 cariter secundario desses dois liltimos atuantes. Brincando um pouco com as palavras, pode- rlamos dizer, pensando na forma participial pela qual os desig- namos, que se trata de “participantes” circunstanciais, e nao de yerdadeiros atuantes do espetdculo. Os participios nio sio, de fato, sendo adjetivos, que determinam os substantivos na mesma medida que os advérbios determinam os verbos. 234 Quando, no transcorrer do procedimento de normalizacio, atribuir um status formal aos advérbios, nds os desig- amos como aspectos que constituem uma subclasse hipotitica de fungées. Existe em francés, dentro da classe mal definida dos _ adyérbios, um inventério muito restrito de advérbios de qualidade, que se apresentam sob a forma de dois pares de oposigio: volontiers vs néanmoins (de bom grado vs nao obstante) bien vs mal (bem vs mal iy que poderiam justamente ser cansiderados como categorias aspec- tuais, cuja interpretacZo semintica parece dificil: a primeira ca- tegoria indicaria, no processo de que se acha investida a fungio, a participacao da vontade, com ou sem previsio da resisténcia; fa segunda constituiria a projegio sobre a funcio da apreciagao que 0 sujeito faz incidir sobre seu proprio proceso (quando o sujeito se identifica com o locutor). J& se pode ver onde queremos chegar: na medida em que as fungdes so consideradas como constitutivas dos atuantes, no vemos razio em nio admitir que as categorias aspectuais possam constituir-se em circunstantes, que seriam formulagdes hipo- téticas do atuante-sujeito. Na manifestagio mitica, que nos preo- cupa, entendemos que o adjuvante e 0 oponente nao so senio projecdes da vontade de agir e resisténcias imagindrias do proprio sujeito, julgadas benéficas ou maléficas em relacio ao seu desejo. Esta interpretacdo vale o que é. Tenta explicar o aparecimento nos dois inventarios, ao lado de verdadeiros atuantes, dos circuns- tantes e dar conta de seu estatuto sintético e semintico, ao mesmo tempo. 8° © modelo atuacionel mitico. Induzido a partir dos inventérios, que continua suspeitos, apesar de tudo, construido levando-se em conta a estrutura sin. tatica das linguas naturais, esse modelo parece possuir, por sua simplicidade, um certo valor operacional para a anilise de manifestacées miticas somente. Sua simplicidade est4 no fato de que ele é um todo inteiramente fundado sobre 0 objeto do desejo do sujeito e situado, como objeto de comunicagéo, entre o desti- 235 nador ¢ 0 destinatério, sendo 0 desejo do sujelto, por seu lado, modulado em projegSes do adjuvante e do oponente: Destinador-» [ objeto ] > Destinatrio Adjuvante— [sujeito ] < Oponente ° A investidura “temética”. Se quiséssemos indagar a respeito da possibilidade de utili- zacio, a titulo de hipétese estruturante, desse modelo que consi- deramos operacional, deverfamos comecar por esta observacio: © fato de ter desejado comparar as categorias sintéticas aos inven- térios de Propp e de Souriau nos obrigou a considerar a relacao entre 0 sujeito e 0 objeto — que nos pareceu inicialmente ser, em linhas gerais, uma relacio de ordem teleoldgica, isto é, uma moda- lidade de “poder fazer” que, ao nivel da manifestacio das fungées, teria encontrado um “fazer” prético ou mitico — como uma rela- cao mais especializada, comportando uma investidura sé mais pesada, de “desejo”, e transformando-se, ao nivel das funcées mani- festadas em “procura”. Dirlamos assim que as particularizagies eventuais do modelo deveriam incidir inicialmente sobre a rela- Gao entre os atuantes “Sujeito” vs “Objeto", e manifesta-se como uma classe de variéveis constitufda de investiduras suplementares. Assim, simplificando bastante, poderfamos dizer que, para um sibio filésofo da época clissica, sendo precisada a relacao do desejo por uma investidura sémica como 0 desejo de conhecer, 0s atuantes de seu espetéculo de conhecimento se distribuiriam mais ou menos da maneira seguinte: Sujeito . Filésofo Objeto . Mundo Destinador . . Deus Humanidade Matérid Espirito Destinatario Oponente Adjuvante Da mesma forma, a ideologia marsista, no nfvel da militfncia, ser distribufda, gracas a0 desejo de ajudar o homem, smaheira paralel: Sujeito . Homem Objeto . « Sociedade sem classes Destinador . . Histéria Destinatario . Humanidade Oponente « Classe burguesa Adjuvante ....sseeesee Classe operdria E esta via que parece ter inspirado Souriau quando propés (op. cit. pp. 258-259) um inventério das principais “forcas tem4- ticas” que, embora “empfrico e insuficiente”, como o confessa 0 proprio autor, pode dar-nos uma idéia da amplitude das variagbes a considerar. Principais forcas teméticas — amor (sexual ou familial, ou de amizade — acrescendo-se a isso a admiracio, responsabilidade moral, encargo espiritual); — fanatismo religioso e politico; — cupidez, avareza, desejo das riquezas, do luxo, do prazer, da beleza ambiente, de honras, de autoridade, de diversses, de orgulho; — inveja, citime; = raiva, desejo de vinganca; — curlosidade (concreta, vital ou metafisica); — patriotismo; — desejo de um certo tipo de trabalho e vocagio (religiosa, cien- tifica, artistica, de viagem, de homem de negécios, de vida militar ou politica); —necessidade de repouso, de paz, de asilo, de entrega, de li- berdade; as - 7 — necessidade de Outra Coisa, ¢ de Outros Lugares; —necessidade de exaltacio, de acio, qualquer que soja esta; —necessidade do centirce vivo, de realizar-se, de oumprir-so; — vertigem de todos os abismos do mal, ou da experiencia; 237 — todos os temores: medo da morte, do pecado, do remorso, da dor, da miséria, da feitira ambiente, da doenca, do tédio, da perda do amor, temor da infelicidade dos semelhantes, de seu sofrimento ou de sua morte, de suas maculas morais, de seu aviltamento; temor ou esperanca das coisas do Além (?). Nao se pode criticar nesta enumeragio o que o Autor nio buscou colocar nela: sua caréncia de exaustividade ou auséncia de qualquer classificacdo. Podemos, em compensacio, salientar af uma distin¢do importante, que, de outra forma, teria talvez nos escapado: a oposicio dos desejos e das necessidades, de um lado, e de “todos os temores”, de outro. Vemos que o modelo atuacional proposto, fundado sobre a relacéo de “desejo", é suscetivel de transformagio negativa, e que a substituicdo dos termos dentro da categoria obsessio vs fobia deveria, em prinefpio, ter repercussées profundas sobre a articula- G0 do conjunto dos termos do modelo. Mas 0 defeito principal da hipétese que acabamos de emitir, e que é a possibilidade da particularizagio do modelo pela inves: tidura progressiva e varidvel de sua relacio de objeto, se mostra aqui com clareza: as investiduras poss{veis enumeradas por Sou- riau nfo interessam ao modelo propriamente dito, mas dependem do contetido semintico quer do atuante-sujeito, quer do atuante- -objeto, que pode ser-lhes atribuido por outros procedimentos, notadamente pela anilise qualificativa, anterior & construcio do modelo atuacional. 10.° © investimento econdmico. Falando em Investir, é diffctl no dar um exemplo de manifes- taco mitica ‘contemporinea com uma estrutura atuacional de 238 acordo, em suas linhas gerais, com 0 modelo operacional proposto, mim dominio onde sé poderia ser situada uma manifestacao pré- tica: a dos investimentos de empresas. A documentagio a esse respeito foi-nos fornecida por F. e J. Margot-Duclot, em Une ‘enquéte clinique sur les comportements d'investissements, que deve ser publicado numa obra coletiva — L’Economique et les scien- ces humaines. Os resultados desta pesquisa, feita sob a forma de entrevistas nio diretivas, podem, facilmente, ser analisados no qua- dro de um modelo atuacional, que o chefe da empresa desenvolve Giante do pesquisador a0 querer descrever sua prépria atividade econdmica e transformé-la de fato num corpus de comportamentos moralizados, isto é miticos, revelando uma estrutura atuacional implicita. O sujeito-heréi é, naturalmente, 0 investidor, que, querendo descrever uma sucessio de comportamentos econémicos, prova a necessidade de dar conta de seu préprio papel € o valoriza. O objeto, idealdgicn, do investimento é a salvacio da empresa, sua protege: acontece ao herdi falar estilisticamente dela, como de uma crianca que é preciso proteger das ameacas do mundo exterior. © oponente se apresenta sob a forma do progresso cientifico e ténico que ameaca 0 equilibrio estabelecido. O adjuvante, de inicio evidentemente, sio os estudos prepara- térios, anteriores ao investimento: pesquisa de mercado, quadros de rentabilidade, pesquisas de econometria e pesquisas operacio- nais; mas tudo isso, apesar da amplitude da desenvoltura oraté- ria A qual o sujeito se presta, no é nada, no fundo, em compara- fo com a urgéncia, ne momento decisivo, da argicia e da intuicio, dessa forca’ magica e “revigorante” que transforma o presidente-diretor geral em herdi mitico. (O destinador 6 0 sistema econdmico que confia ao heréi, apés um contrato implicito, a missio de salvar, pelo exercicio de exaltagdo da liberdade individual, o futuro da empresa. O destinatério, contrariamente ao que se passa no conto po- pular russo, onde ele se confunde com o sujeito, é aqui a prépria ‘empresa, ator sinerético que abarca o atuante-objeto e o atuante- -destinatario: isso porque o herdi é desinteressado, e a recompensa 239 nio € a filha do Rei confiada a Ivan-Bobo-da-Aldeia, mas sim a fentabilidade da empresa. Pareceu-nos interessante salientar esse exemplo, nio tanto para colocar em evidéncia a existéncia dos modelos mifticos com © auxilio dos quais o homem contemporaneo interpreta sua ativi- dade aparentemente racionalizada — as observagées de um Roland Barthes nos instrufram suficientemente sobre isso —, mas sobre- tudo para ilustrar 0 carter complexo — a0 mesmo tempo positivo e negativo, pratico e mitico — da manifestacio discursiva, que a descrig&o deve, a todo instante, levar em conta. 112 Atuantes © atores. procedimento da investidura temitica da relacio de objeto, pelo simples fato de correr o risco de fazer confundir, a todo instante, a descricfo do modelo atuacional com a andlise quali cativa, mesmo supondo-se gue le, cia valido, nio & suficiente para dar conta da variagio dos modelos e promover sua tipologia. S6 nos resta, pois, retornar aos prdprios atuantes, para ver em que medida os esquemas de distribuicdo dos atuantes, de um lado, e 0 tipos de relacies estilisticas entre atuantes e atores, de outro, poderiam servir de critérios a uma particularizagio “tipologizante” dos modelos atuacionais. © primeiro critério tipolégico desse tipo poderia ser o sincre- tismo, freqiientemente registrado, dos atuantes; poderlamos, assim, subdividir os modelos em géneros, segundo a natureza dos atuantes que se deixam sincretizar — no conto popular, como vimos, sio © sujeito € o destinatério que se constituem em arquiatuante; no modelo de investimento econdmico, em compensacio, 0 arqui- atuante é realizado pelo sincretismo do objeto e do destinaté- rio, ete. Tomado num dominio nao axiolégico, 0 exemplo poderia set mais esclarecedor: assim, a rainha no jogo de xadrez é a arqui- atuante sincrética do bispo e da torre. Para o segundo critério, o sincretismo deve ser distinguido da divisio analitica dos atuantes em atores hiponimicos ou hipo- taticos, que corresponde & distribuicgo complementar de suas func6es. E assim que Propp tenton — de mancira bastante infeliz, parece-nos — defipir 0 destinador como the sought-for person and 240 her father, pretendendo provavelmente salvar a dignidade humana da mulher-objeto. As andlises de Lévi-Strauss mostraram que a mitologia, para dar conta, no nivel dos atores, das distribuicées complementares das funcées, manifesta freqiientemente uma pre- feréncia para as denominagées atuacionais proprias as estruturas de parentesco. Os atuantes se agrupam freqiientemente em grupos de atores, tais como: marido e mulher, pai e filho, avé e neto, gémeos, ete. (Trata-se ainda, subsidiariamente, de fazer distincao entre as oposigbes categéricas, que refletem as distribuicées com- plementares de fungdes, e os desdobramentos retéricos, procedi- mentos que podem logo torar-se estereotipados.) £ ‘aqui que podemos colocar a questio de saber a que correspondem exata- mente os modelos de parentesco utilizados pela psicandlise para a descricao das estruturas atuacionais individuais: devem eles ser situados no nivel da distribui¢do dos atuantes em atores, ou apés uma generalizacio que A primeira vista pareceria abusiva, repre- sentam formulacSes metaforicas das categorias atuacionais? 0 terceiro critério tipoldgico poderla eventualmente ser o da auséncia de um ou varios atuantes. As discusses tedricas nio permitem considerar sendo com muito ceticismo tal possibilidade. Os exemplos de auséncia de atuantes citados por Souriau se interpretam todos como efeitos dramiticos produzidos pela es- pera da manifestacdo de um atuante, que nfo é a mesma coisa que auséncia, mas sim muito mais 0 seu contrério: assim, a auséncia de Tartufo nos dois primeiros atos da comédia ou a espera dos salvadores na histéria de Barba-Azul apenas tornam mais aguda a presenca do atuante ainda nfo manifestada na economia da ‘estrutura atuacional. Do ponto de vista operacional, e sem levantar o problema da realidade de tal ou tal distribuigio de atuantes, podemos consi- derar redutivel o modelo atuacional proposto como um 6timo de descricdo, a uma estrutura arquiatuacional mais simples, mas também extensfvel (em limites dificeis de precisar, & primeira vista, mas que ndo sio certamente considerdveis), dada a articula- Ho possivel dos atuantes em estruturas hipotéticas simples. Uma questo totalmente diferente 61a da denominagio dos atuantes, que é relevante apenas para uma pequena parte da analise funcional a partir da qual, seguindo Propp, tentamos cons- truir o modelo atuacional, embora nao vejamos razio que o impega 241 de articular os contetidos descritos gracas & andlise qualificativa. A denominacao dos atuantes, que, por esse fato, tomam a aparéncia de atores, néo pode, na maioria das vezes, ser interpretada senio no quadro de uma descricéo taxonémica: os atuantes ai pare- cem sob a forma de sememas construidos, como lugares de fixacio dentro da rede axiolégica, e a denominacio de tais sememas — vimos isso por ocasiéo da andlise do semema que denominamos arbitrariamente fatigué (fatigado) —, se nao € contingente, de- pende do nivel estilistico e sé pode, conseqiientemente, ser jus- tificada apés a anilise qualificativa exaustiva. Embora estando de acordo, em principio, com Lévi-Strauss quando diz, a propésito da anilise de Propp, que a descri¢ao do universo do conto popular nio pode ser completa, dada nossa ignordncia em relagdo & rede axioldgica cultural que a sustenta, nado pensamos que isso constitua © obsticulo maior para a descri¢ao, que, embora permanecendc incompleta, pode ser pertinente. Assim, a partir de seqiiéncia: comparivels, tomadas emprestadas dos diferentes contos-ocorrén clas tals como: Un arbre montre le chemin (Uma érvore aponta 0 caminho) Une grue fait don d'un coursier (Uma grua dé de presente um cavalo) Un oiseau espionne (Um péssaro vigia) podemos reduzir os predicados a uma funcio comum de “ajuda” e postular para os trés atores um atuante adjuvante que os englobe — somos incapazes de encontrar, sem o auxilio de uma descricio axiolégica, impossivel nesse caso,'0 porqué das denominagées par- ticularizantes dos atores. __ Entretanto, os primeiros elementos de uma estilistica atua- cional talvez nio sejam impossiveis de formular se partirmos apenas da andlise funcional. 12° © energetismo dos atuantes, Nao se pode esquecer, de fato, que o modelo atuacional é em primeiro lugar a extrapolacdo da estrutura sintética. O atuante 242 & nfo somente a denominac&o de um contetido axiolégico, mas também uma base classemitica, que © institui como uma possi- bilidade de processo: é de seu estatuto modal que lhe vem seu carter de forca de inércia, que 0 opde a fungao, definida como um dinamismo descrito. Por conseguinte, compreendemos melhor as razGes que teriam eonduzido E. Souriau a dar aos atuantes nomes de planetas de signos do zodfaco. O simbolismo astrolgico exprime, nos seus termos, esta constelacio de “forcas” que é a estrutura atuacional, capaz de exercer “influéncias” e de agir sobre as “destinadas”. Considerando-a sob esse Angulo, compreendemos também uma das razGes da formulagao energética, pulsiva, da psicanilise freu- diana, cuja conceitualizagio repousa, em grande parte, sobre a pesquisa de um modelo atuacional suscetivel de dar conta do comportamento humano. Propp se pergunta, nao sem razio, se 0 modelo do género, convenientemente descrito, nio permitira a composi¢aio mecnica de novas ocorréncias, como o faz a vidente que, de posse de um modelo astroldgico, é capaz de gerar um ntimero relativamente elevado de horéscopos. Esse cardter particular dos atuantes, que os faz aparecer, no nivel dos efeitos de sentido, como inércias, poderia servir de ponto de partida a uma certa estilistica atuacional, que daria conta dos procedimentos de personificagio, de coisificagio, de alegoria, talvez mesmo de certos tipos de figuragao, ete. Espanta-nos, com efeito, a facilidade com a qual as ideologias mais “abstratas” in- cidem no nivel quase figurative da manifestagdo: como o auxilio do gosto romintico das maitisculas, as grandes figuras ideologicas da Liberdade, da Histéria e do Eterno Feminino encontram outros atores, mas de estatuto lingiifstico compardvel, tal como Dangier, Bonne Nouvelle e Merencolie de um Charles d'Orléans. Observamos, igualmente, que se o atuante-sujeito est pronto para personificar os sememas que compreende, e produz efeitos de sentido tais como: Le crayon écrit mal... (O ldpis escreve mal), Le journal se demande... (O jornal se pergunta), o atuante-objeto atribui antes, por ser 20 mesmo tempo “paciente” © “ator”, 0 cfcito de sentido dito “simbélico” aos objets hipo- taticos, tais como: 243 la pomme d’Eve (a magi de Eva) ou le feu de Prométhée (0 fogo de Prometeu). ‘Vemos que tal estilistica teria por tarefa interpretar os efeitos de sentido devidos aos sincretismos que resultam do carter ener- gético de todos os atuantes e das articulagées préprias a cada um dentre eles. Uma teoria explicativa da denominacio, reunindo parte da pesquisa etimolégica, deveria levar em conta essas pre- isposigGes atuacionais, que, somadas as redes taxindmicas cons- 1s do contetido propriamente dito, formariam um inventério Weis, a partir do qual as probabilidades de aparecimento de denominagSes-acontecimentos poderiam ser calculadas. 18° © modelo atuacional e a critica psicanalitica. E impossivel. neste estégio, nao falar da psicanilise: 0 modelo atuacional, na medida em que poderia pretender recobrir toda manifestagao mitica, sé pode ser compardvel, ou entrar em con- flito, com os modelos que a psicandlise elaborou. Assim, o desejo, encontrado tanto em Propp como em Souriau, parece-se com a Libido freudiana que estabelece a relacdo de objeto, objeto difuso na origem e cuja investidura semfntica particulariza o universo simbélico do sujeito. A distribuicio dos outros papéis, em com- pensacio, evidencia tanto as similitudes como as divergéncias entre © esquema operacional proposto e os diferentes modelos utilizados em psicandlise. A intromissio do lingitista, isto é, em suma, do profano, nesse dominio um tanto sacralizado, 6 se pode justificar pelas ambicdes apregoadas da psicanilise de propor seus proprios modelos & descricio semantica, de que Freud foi o primeiro a dar exemplo. Limitando esta intervengdo, vamo-nos contentar em examinar um pouco mais de perto a ultima dessas interpretagées psicanaliticas de Ch. Mauron, que, aplicada as pesquisas literdrias, leva 0 nome, escolhido pelo autor, de “psicocritica” (Psychocritique du genre comique, 1964). Se o autor no tivesse indicado suas fontes inglesas (e notada- mente Fairbain), poderiamos crer que ele tivesse seguido, grosso ‘modo, 0 procedimento metodolégico de Souriau: trata-se prova- 4 bem claramente assin: velmente apenas de uma dessas convergéncias felizes que confir- mam a existéncia de uma atitude epistemolégica bastante geral. A economia do método psicocritico comporta trés conceitos " operacionais fundamentais e outras tantas fases distintas de pro- cedimento analitico: como a passagem de uma a outra fase nio la, pareceu-nos indispensével contar com essas trés fases conjuntamente, embora a primeira entre elas possa ser comparada com a analise ideolégica do capftulo seguinte, com bastante utilidade. + 1. A primeira etapa da descric&o consiste em afirmar a possi- bilidade de descobrir as redes inconscientes comuns, subjacentes ‘a certo niimero de poemas de um mesmo autor. Ela esboca, ‘como vemos, dois procedimeritos: de um lado, a redugio das ocor- réncias a funcdes semanticas; de outro, a consecucio dessas fun- Ses, que empreenderemos mais tarde. Assim, a superposicio de dois sonetos de Mallarmé, Victorieusement fui e La chevelure vol d’une flamme..., permite proceder & redug%o e & organizacio das fungées de que damos um exemplo (Des métaphores obsé- dantes uu mythe personnel, pp. 39-40): Wwitorioss- mente Ser imitil buscar indicagSes, que nos seriam preciosas, sobre os procedimentos descritives que permitiram essas redugées: 0 autor no se interessa por isso. Importa a ele constatar, inicial- mente, 0 cardter inconsciente dessas redes, e sua natureza perma- nente, obsessiva, que permite postular a existéncia de “formacées psiquicas auténomas” nao lingiifsticas, constitutivas do inconsciente, 2. A segunda fase, que nao é diretamente ligada a primeira, utiliza 0 mesmo método de superposicio das seqiiéncias seleciona- das do corpus, a fim de descobrir “secretas similitudes afetivas” entre as “figuras miticas” que se manifestam nos diferentes textos. figuras, que sio personagens humanas, se constituem em “grupos de figuras”. Assim, as “figuras passivas” de Baudelaire, mulher, cmico, vidraceiro, monstro, bufao, ano, etc., considera- das, se estabelecermos as equivaléncias terminolégicas, como ato- res, sio reduzidas a um sé atuante, que Mauron designa como “portador de quimera” (op. cit, p. 184). Esta reducio de atores ‘a atuantes se realiza por uma espécie de andlise funcional em estado embrionario, seguida do reagrupamento das fungées em “esferas de acdo”, das quais apresentamos uma amostra. Segundo Ch. Mauron, os “portadores de quimera” apresentam os seguintes tracos comuns: “1. Caminham em diregio a um objetivo, expem-se, buscam um contacto. “2. Entretanto, sua marcha é dificultada: sentem-se aba- tidos, o contacto € nulo ou nefasto (sujo, aviltante, hostil) “A impressio mais geral é a de prostituigao.” (Op. cit., p.ls2). A essa descrico que, levada com mais rigor, talvez fosse valida, acrescenta-se interpretacdes tomadas de empréstimo & psicand’ ise (que 0 autor designa, bastante ingenuamente, mas com insis- téncia, como “‘cientifica”): a “formagio psiquica autdnoma” da qual nada se pode dizer, j que, por definicdo, & inconsciente, (op. cit., p. 57) acha-se “assimilada a uma espécie de sonho incons- ciente com personagens”, em outras palavras, ao fantasma com miltiplas variagées. 46 3. A terceira fase comporta a definic&o do mito pessoal, ele 4 “proprio identifieado com a estrutura da personalidade. A aplica- Gio desses princfpios metodolégicos aos universos seménticos de alguns grandes poetas franceses permite a Ch. Mauron observar que toda “formacdo psiquica auténoma” comporta varios “grupos de figuras”. Se os atores se acham, de um poema a outro, de uma obra em prosa a outra, numa “situagio dramitica instével”, os atuantes constituem, gragas A permanéncia de suas relagées conflituais, um sistema estavel. & a essa “situagio dramética in- tema” que Ch. Mauron daré o nome de mito pessoal. 14° Os modelos atuacioncis psicanaliticos. As “estruturas dramiticas obsedantes” parecem, & primeira vista, bastante préximas de nosso modelo atuacional. Elas dife- rem dele entretanto num ponto importante, o das relagées, que justamente os constituem om estruturas. Para nés, um atuante so constrdi a partir de um feixe de fung6es e um modelo atuacional & obtido gracas & estruturalizacio paradigmatica dos inventérios dos atuantes. Ch. Mauron vé, ao contrério, na ‘‘superposi¢io das situagées”, a possibilidade de estabelecer as relagées de conflito entre atuantes. Ora, as situagies sio instaveis; elas sio, como j4 sublinhou Souriau, da ordem do acontecimento, que é'a pro- posicio, e as fungées af sio atribufdas a atuantes sintéticos e nio seminticos: nenhuma andlise pode operar com duas classes de variiveis simultaneamente. A psicocritica no se perde com ques- tes de pormenor, j4 que dispde ao mesmo tempo de um conjunto de situacées conflituais e de modelos de personificacio que Ihe oferece a tradicio psicanalitica: ““... como as pesquisas de Freud mostraram, o proprio sonhador é representado correntemente no sonho por duas ou virias personagens distintas. Adotei o seguinte ponto de vista: todas as personagens que aparecem num sonho representam quer: 1.) uma parte da personalidade do sonhador, quer: 2°) uma pessoa com a qual uma parte da personalidade do sonhador estd em relacio, mais freqiientemente de identifica Go, na realidade interior” (R. Fairbain, Psychanalytic Studies of the Personality, citado por Mauron, op. cit., p. 217). A psicocritica dispoe, consequentemente, dos modelos elaborados por Freud e seus sucessores, e a descricdo que ela empreende nao consiste senio 247 em unir os materiais que permitem a confrontacio dos atores e das “situag6es” reconhecidos com as estruturas atuacionais ja estabeleci- das, e ndo em construir tais modelos. As criticas que poderiamos formular sobre isso iriam no sentido de uma certa concepcao da psicandlise, que Ch. Mauron considera erradamente como “cienti- ficamente” estabelecida. ‘Sem atacar 0 préprio “ser” da psicandlise, gostarfamos, entre- tanto, de fazer aqui um certo niimero de observagdes concernentes & sua terminologia. As pessoas desse dominio reconhecem (Pon- talis) que o corpo de conceitos instrumentais elaborado pela psi- candlise é muito heterogéneo e corresponde a esforcos sucessivos de apreensio de realidades psiquicas, lexicalizados com auxilio de meios lingiiisticos diferentes. 1. Existe inicialmente uma conceituagio de caréter espacial que permite conceber a estrutura da personalidade como articulada em varias camadas superpostas (superego, ego, id) que se em relacio hipotition quanto A estrutura global. £ a esse modelo que se refere Ch. Mauron quando afirma que “cada figura pode reptesentar apenas um ego ou algum aspecto do superego ou do id” (op. cit, p. 210), ou quando diz que o “eu consciente de Baudelaire se identifica 0 mais comumente com essa personagem (isto é, 0 atuante denominado chat princier)” (ibid. p. 134). A lexi- calizagio espacial dos conceitos tornou-se atualmente — como bem observou G. Matoré — o mal, talvez inevitavel, das ciéncias humanas e nés 0 utilizamos abundantemente sem no entanto sermos enganados pelo procedimento empregado. Dois planos da lingua- gem ou duas dimensdes da manifestacdo nio tém para nés mais nada de espacial no nivel das definicdes, onde designam simples- mente dois termos redundantes de uma estrutura complexa, isto é, ligadas pela pressuposicdo recfproca. Nao ousamos pronunciar-nos sobre isso, mas parece que esses niveis da personalidade so con- siderados pela psicandlise tanto como nfveis estruturais muito ge- rais quanto como expresses da estrutura atuacional (eles agem, censuram-se, liberam-se), quanto, enfim (e isso irrita bastante o lingiiista), como nfveis de consciéncia. Tentem somente imaginar ‘© embaraco do lingilista se se Ihe pede para descrever, levando em conta a categoria “consciente” versus “inconsciente”, a estru- tura gramatical do francés: a cada articulagto do singular, o plural agiria no subconsciente, e 0 indicativo se oporia ao subjuntivo in- us ._ Desde Saussure, com sua concepcio da estrutura signi- te (subscrevemos inteiramente o que disse Merleau-Ponty a ‘esse respeito), a categoria dicotémica da consciéncia, que se ope inconsciente, no é mais pertinente nas ciéncias do homem, e, almente, seguimos com muito interesse os esforgos de um que procura substitui-la pelo conceito de assuncio. (Vé-se, © embarago de Ch, Mauron quando deve decidir se essa ou ‘aquela rede de metéforas obsedantes é consciente ou inconsciente ‘em tal poeta.) 2. Existe, por outro lado, um modelo atuacional tomado prestado da terminologia descritiva da estrutura do parentesco, Esse modelo é articulado tanto segundo a imagem da familia oci- dental restrita (pais e filhos) quanto segundo as representacées, antropologicamente duvidosas, mas muito na moda na época de Freud, de “horda primitiva’. Ele entra algumas vezes em con- corréncia com o primeiro — na medida em que esse modelo estritico se acha utilizado como atuacional — e chega a substitu‘-lo por exemplo na andlise de Moliére feita por Ch. Mauron. Duas observacdes de ordem epistemolégica poderiam ser feitas a esse tespeito. De um lado, 0 modelo “estrutura do parentesco” nio é to simples como parece & primeira vista e comporta, ao contrario, varias redes relacionais, que se complicam pela lexicalizacio do “perspectivismo” estilistico dos atuantes: leve ser, conseqiiente- mente, de dificil manejo metodolégico. Por outro lado a sua im- Pressio sobre as pessoas 6 muito forte, e as disciplinas que, como a lingiiistica, o experimentaram durante muitos séculos, conhecem seus efeitos inibidores na reflexio metodolégica. __ 3. _Existem finalmente modelos mitolégicos tais como o mito de Edipo, que Freud utilizou metaforicamente para descrever cer- tas situacées € niio estruturas complexas, e cujo carter tipico ele isolou mais tarde. A elaboracio de tais modelos parciais, hipotiticos em relagio A estrutura do parentesco, é metodologicamente pertinente. £ seu cardter indutivo que os torna um pouco suspeitos e gostarfamos de ver a psicandlise, com a superagio desse estgio de inventari- zagio e de exemplificacéo dos casos clinicos e das denominagées miticas, constituir-se numa teoria de modelos de anilise tanto atuacionais quanto transformacionais. 249 Gostarlamos de acrescentar — j& que falamos de terminologia = que a instauracdo de um procedimento metaférico de concei- tuacéo de uma disciplina que se quer cientifica s6 pode ter conse- qiiéncias consideraveis em seu desenvolvimento. Além de ceder & tentac&o constante, e “inconsciente”, de tomar as metéforas como realidades, a psicanélise bloqueia, assim, a via que deve conduzila 2 construcdo de uma metalinguagem metodolégica unfvoca e coe- rente, formulando suas descobertas, que sio corretas, numa lingua- gem poética e ambigua, e que pode fregiientemente ir até & propria hipéstase da ambigiiidade. Essa _utilizacdo, muito conhecida das outras disciplinas, do vocabulétio musical para falar da pintura, ou vice-versa, com- porta numerosos outros riscos. O dom{nio do qual se tomam em- prestados conceitos metaforicos pode, também ele, progredir e articular de maneira nova seus conceitos e seus postulados. E pre- cisamente 0 que ocorreu com a definicao do mito em antropologia, no momento em que Ch. Mauron buscava utilizé-lo para dar conta, através da psicandlise, da estrutura da personalidade lite- aria.’ Passando por uma série de assimilagées semicausais, semi- -analdgicas, mas sempre “dindmicas” (que palavra magica, ao lado de “conereto”, para ocultar nossa ignordncia!), o autor chega, a partir de excitagSes nervosas da primeira infancia, aos fantasmas persistentes e finalmente ao mito pessoal, unidade desse “todo” genético, dindmico e estrutural que é garantida pela “formacdo psiquica”, da qual nada se pode saber. Mas 0 mito pessoal, assim definido, ‘corresponde, em linhas gerais, a qualquer narrativa m{- tica, considerada sob forma de manifestacdo bruta e que é preciso justamente submeter & andlise para dela extrair_ a estrutura ima- nente. Por uma espécie de paradoxo, que nio é apenas termino- Idgico, 0 método psicocritico esté com atraso de uma guerra, ¢ para onde a andlise, com todos os seus problemas metodolégicos, apenas comeca. (QUISA DOS MODELOS DE TRANSFORMACAO 1° REDUGAO E ESTRUTURAGAO @) Organizasio das fungées. A Morfologia do Conto Popular Russo de V. Propp é atual- mente bastante conhecida; as semelhangas dos contos russos, com Outros contos europeus do mesmo género sio suficientemente se- uras para que se possa falar dessa obra sem uma exposigao prévia de seu contetido. Sabemos que depois de ter procedido a descricao “das fungies — descrigo que consiste a0 mesmo tempo na conden- sagdo de unidades sintagméticas da narrativa em unidades semin- ticas denominadas e em sua consolidacio como invariantes em relagdo & sua presenga, sob forma de varidveis, nos contos-ocor- ‘éneias — Propp prope uma dupla definigio dessa narrativa que é ‘© conto popular: 1. Considerando as relagSes entre as funcdes assim descritas € 0s atuantes aos quais estas sio atribuidas, ele agrupa as fun- SSes em esferas de acao, cada uma definindo um atuante parti- cular. Isso lhe permite conceber 0 conto como uma narrativa com sete personagens; 2. Considerando as fungdes em si mesmas, na sua sucessio que constitutiva da narrativa, Propp obtém uma segunda definicao do conto popular caracterizado segundo ele: a) por um inventério bastante reduzido de fungbes (31); b) por sua ordem de sucessio obrigatoria. No capitulo precedente, procuramos explorar a primeira defi- ‘nicéo de Propp, perguntando-nos em que medida ela podia aju- dar na compreensio e justifieacio de um modelo atuacional mais 251 geral, utilizavel num maior niimero de descrigdes de microuni- Sersos miticos. Vamos agora empreender um novo tipo de explo- racdo: a andlise funcional, como vimos, podia servir para descre- ‘ver os conteidos dos atuantes e dar lugar, em seguida, & constru- gio de um modelo atuacional; mas, a0 mesmo tempo, servia de ponto de partida para uma descrigao concernente as relacées entre fungdes que, embora organizadas em narrativas, deveriam, pelo menos em teoria: a) pela redundancia que caracteriza toda mani- festacdo discursiva, manifestar-se em numero suficientemente re- duzido para serem apreendidas como estruturas simples; b) ofere- cer, a0 mesmo tempo, pela sua sucesso na natrativa, elementos de ‘apreciago que permitissem explicitar a existéncia de modelos de transformacdo das estruturas da significacao. ‘A fim de verificar, em certa medida, essas previsbes tedricas, ¢ necessario retomar um inventdrio constituido por Propp para ver: a) se podemos reduzi-lo de maneira aprecidvel, de forma a atingir um conjunto funcional como uma estrutura simples; b) em que consiste a consecugao ubriyatéria das fungées, ¢ em quo medida ela pode ser interpretada como correspondente a transformagoes reais de estruturas. Precisado assim nosso objetivo, nfo nos resta sendo tentar essa simplificagio do inventério, procedendo, se for 0 caso, a novas re- dugées e a eventuais homologacées estruturantes. ‘b) Inventério das fungées. inventétio das funcées de Propp se apresenta, numa tra- ducio aproximada, da seguinte maneira: auséncia (absence); proibicao (interdiction); violagio (violation); procura (reconnaissance); informagio (delivery); decepgao (fraud); submissio (complicity); vilania (villainy); * falta (lack); 9. mando, ordem (mediation, the connective moment); Bogserr 252 10. decisio do heréi (beginni m 3 : as (pst ing counter action); atribuigo de uma prova (the first function of the 5 18. enfrentamento da prova (the hero's rae see recepco do adjuvante (the provision, receipt of magical agent); deslocamento espacial fe translocation); combate (struggle); 17. sinal (marking); vitéria (victory dissolugio da falta (the initial misfortune or lack is i- quidated); 20. retomo (return); Perseguicao (pursuit, chase); 22. liberacio (rescue); ‘ 23. chegada incdgnita (unrecognised arrival); 24. ver acima 8, 95. atribuigio de uma tarcfa (the difficult task); 25. Grito (solution: a task is fccomplhel)i. ? a. 29. 80 sl reconhecimento (recognition); revelacio ga wlan (exposure); revelacao do heréi (transfiguration: new ; punigo (punishment); ae casamento (wedding). Acasalamento de fungées. Essas 31 fungSes constituem um inventério bastante grande que se possa considerar sua estruturacio. £ preciso, por- to, tentar reduzi-lo, seguindo de inicio a sugestio do préprio Propp, que entrevé a possibilidade de “acasalar” as fungoes, Mas 0 acasalamento, nesse estigio sé pode ser empitico e repousa ape. nas sobre uma dupla exigéncia: uma condensagio da narrativa em “unidades episédicas, entendendo-se que 0s episédios a serem pre~ vistos so considerados como possuidores de um carater bindrio, e de serem constituldos de duas fungbes apenas. : Brett reducto, © inventério de Propp se articula da se- 1. auséncia; 2. proibigao vs violacdo; 3. procura vs. submissio; 4. decepgao vs submissio; 5. vilania vs falta; 6. ordem vs decisio do herdi; 7. partida; 8. atribuicio de uma prova vs enfrentamento da prova; 9. recepcao do adjuvante; 10. deslocamento espaci: 11. combate vs vitéria; 12. sin: 13. dissolugao da falta; 14. retorno; 15. perseguico e liberacdo; 16. chegada incognita; 17. atribuicdo de uma tarefa vs éxito; 18. reconhecimento; 19. revelacdo do traidor vs revelacio do herdi; 20. punicdo vs casamento. Vemos que somente certo niimero de fungdes se presta a0 acasalamento, - Um novo inventirio, embora mais reduzido, nao & mais manejvel que o primeiro. d) Contrato. Podemos perguntar-nos se 0 acasalamento de fungdes nao pode receber uma justificativa metodolégica que o tornaria operacional. Assim um par funcional tal como proibigéo vs violagio € interpretado, no quadro da descrigio sintagmética de Propp, como ligado pela relagao de implicagao (a violacao efetivamente pressupde a proibicdo). Considerado, em compensacao, fora de todo contexto sintagmitico, ele aparece como uma categoria sémica cujos termos sio, ao mesmo tempo, conjuntos e disjuntos, e 6, conseqiientemente, formuldvel por 8 vs nao s 254 m como conseqiiéncia liberar a anzlise, ao menos parcialmente, da de sucessio sintagmatica: 0 procedimento comparativo, do identidades a conjuntar e oposigies a disjuntar, pode, tanto, exercer-se sobre o conjunto das fungdes inventariadas. 0 Lévi-Strauss observou em sua eritica a Propp (Ja Structure a Forme) a proibicao no é, no fundo, senao a transformacio tiva da injungio, isto é, do que designamos como “ordem”. esta é, por sua vez, acompanhada de uma fungio que lhe eciproca: a decisio do herdi, que seria melhor designar como eeitaio”. Gracas a essa dupla oposigao, precisa-se a economia eral das 4 fungées: ordem = estabelecimento do contrato, aceitacdo 2 proibigo —— = muptura do contrato. violagio __ Mas, de outro lado, se a proibigdo é a forma negativa da ordem, ¢ se a violagio é a negacdo da aceitagio, vemos que os quatro termos nio so senao a manifestacio de um sistema sémico Avs A == quanto no nivel hiponimico, onde cada um dos termos manifesta por sua vez uma articulagdo categérica como um sistema Esta homologacio tedrica, que nos permitiu conceber A como _“estabelecimento do contrato”, nos autoriza agora a reinterpretar a iiltima fungdo da narrativa, designada por Propp como “casa- "mento". De fato, se a narrativa inteira foi desencadeada pela 255 ruptura do contrato, é 0 episédio final do casamento que resta- belece, apés todas as peripécias, o contrato rompido. O casamento nao é, pois, uma fungio simples, como deixa supor a anélise de Propp, mas sim, um contrato firmado entre 0 destinador, que oferece 0 objeto da busca ao destinatério, e 0 destinatario-sujeito, que 0 aceita. O casamento deve, conseqiientemente, ser formulado da mesma maneira que “ordem” vs “aceitacio”, com a diferenca, entretanto, de que © contrato assim conclufdo é “consolidado” pela comunicacao do objeto do desejo. Obsorvasiio: Pelo tratamento que demos & fungio “‘casa- mento”, comecamos a série de retificagSes do inventério das fungées de Propp, cujas condigées teéricas j4 precisamos: a isotopia da manifestagio discursiva sé pode ser assegurada se 0s algoritmos das fungSes condensadas forem denominados em relacéo a um sé nfvel de generalidade escolhido. ©) Prova. A constatagio de que um contrato pode eventualmente ser seguido de fungées-conseqiiéncias, e de que ele pode, portanto, inscrever-se no encadeamento das fungdes, obriga-nos ‘a situé-lo dentro dos esquemas sintagméticos de que faz parte. Se tomamos, a titulo de exemplo, a prova a que se deve submeter o herdi imediatamente apds sua partida, vemos novas lacunas na descrigio de Propp. Assim, a andlise da prova em duas fungdes atribuigao enfrentamento (The first function of the donor) ** (the hero's reaction) € insuficiente: assim como a ordem é seguida da decisio do herdi, ‘a atribuicio da prova sé pode ser seguida de sua aceitagio. O mesmo acontecer com 0 seguinte: aceitacdo sucede o enfrenta- mento, que se realiza pela vitdria; finalmente, a prova é coroada por uma fungio-conseqiiéncia: a recepeao do adjuvante. Portanto, podemos dizer que toda “prova” — é assim que designamos 0 esquema sintagmatico de 5 fungées que acabamos de descrever — comporta, na ordem de sucesso, as segnintes fungSes e pares de fungées: 256 injungio vs aceitagto F = enfrentamento vs éxito nio ¢ = conseqiiencia, sando tentamos aplicar esse esquema a todas as provas que a urrativa comporta — e hd varias —, apercebemo-nos de que provas sio analisadas desigualmente por Propp. Basta es- abelecer um quadro comparativo das provas encontradas na nar- Para preencher quase mecanicamente as lacunas que nio eixam de aparecer: dissolugio da falta | reconbecimento @ quadro permite formular um certo nimero de observagie Ele coloca em evidéncia o grande mimero de redundan- que a narrativa-conto comporta: a) Inicialmente, as provas, vonsideradas como esquemas sin agmaticos, retornam trés vezes: elas so distintas apenas do ponto Vista do contetido de suas conseqiiéncias; _b) O par funcional constitutivo da estrutura do contrato, ontrado sob sua forma negativa de A no inicio da narrativa acha no fim, jd o vimos, como A. Além disso, é pelo contrato: A, Ay, que se inicia cada prove ec) © par “enfrentamento” ys “éxito”, presente em cada “uma das trés provas, aparece uma vez, como 0 veremos, néo ecedido de contrato; 2. © esquema da prova se apresenta como uma consecucdo - logica, cuja natureza deveremos precisar, e nio como uma seqiién- cla sintagindtica, pois ques 257 a) Os pares A e F niio sio sempre contiguos: 0 envio do herdi em missio é seguido s6 muito depois pelo enfrentamento principal com o vildo; b) Os pares A e F podem se achar sés, fora do esquema da prova; 3. Se o par funcional A pode ser considerado como uma estrutura binéria de significagdo, 0 mesmo no ocorre com 0 par F, cuja constituigio exige ser interpretada. ) Auséncia do herdt. Uma olhada superficial a distribuicdo das fungdes na narra- tiva mostra que seu ponto culminante é constituido pelo combate do heréi com o vilio. Esse combate se situa, entretanto, fora da sociedade atingida pela desgraca. Uma longa seqiiéncia da narra- tiva é caracterizada pela auséncia do herdi, a qual se situa entre sua partida e sua chegada incdgnita. Analisando um pouco mais de perto essa seqiiéncia, observa- mos de novo a auséncla do critério de isotopia, ao qual deve obedecer a denominacio das fungées. A partida do herdi corres- ponde, em Prop, a fungo de retorno, que, na verdade, nio indica © retorno do heréi, mas sua nova partida, apés a permanéncia num outro lugar onde esta situado seu combate vitorioso com 0 vilio. Se, portanto, entendemos como “partida” (designando-a por p) ‘© momento a partir do qual comeca a auséncia do heréi, a funcao que Ihe é diretamente oposta, enquanto sema positivo oposto ‘ao sema negativo, nao & 0 que Propp chama “retorno”, mas a “‘che- gada incognita” (p). Por outro lado, ao momento a partir do qual comeca a ausén- cia corresponde o momento da chegada do herdi aos lugares de combate (nao p); 20 momento de chegada do heréi aos lugares corresponde 0 que Propp chama “retorno” (néo p). Dispomos pois do esquema de substituiao do herdi: P P ndo p ndo p E preciso acrescentar que entre os momentos p e nao p se *igualmente 0 deslocamento espacial, em outras palavras, deslocamento répido (d), que, indicado no desenrolar da nar- antes do combate, sob a forma de uma funcio particular, est4 menos simetricamente presente apés_o combate, onde le se confunde com as fungies “perseguicao” vs “liberacio”. 105 no direito de considerar que “persegui¢ao” vs “libera- Y" constitui um sincretismo de fungSes, que comportam, de um ‘9 par funcional F (decomponivel em “enfrentamento” vs ito”) © de outro, o deslocamento répido. No esquema da cia, teremos, portanto, de introduzir uma fungo a mais (d), -deslocamento, que embora se efetuando nas diregées opestas, deixa de ser redundante: ptd4niop vs niop+dtp Duas coisas devem ser observadas a propésito desse esquema: 1. A rapidez do deslocamento deve provavelmente dar con- a0 nivel da narrativa, da intensidade do desejo ao nivel do Jo atuacional. Assim considerada, ela nao é uma func&o mas aspecto desta, e, como tal, no é pertinente numa deserigio fungées. Preocupamo-nos ‘com isso apenas para extrair um F redundante dentro do sincretismo das fungies, e também por- ‘que o fendmeno do sincretismo, registrado nesse nivel de anilise, merecia ser notado; 2. O préprio deslocamento, considerado como uma cate- joria “ir” vs “retorno”, sé é interessante na medida em que assinala a solidio do herdi e sua permanéncia num além, sem lacdo com o aqui da narrativa. Os estudos de D. Paulme e de Sebag (publicados em [Homme III) precisaram o sentido disjuncao tipoldgica: a permanéncia do herdi & tanto sub- rranea ou aqudtica quanto aérea; situa-se tanto no reino dos mortos como no dos deuses. O problema é, ao mesmo tempo, complexo e simples, muito complexo, em todo caso, para ser tratado no quadro do conto popular, cuja investidura’ axiolégica 6 insuficiente. Consideremos, pois, provisoriamente a auséncia do herdi como uma categoria de expressio déitica, redundante em relagio & funcdo mediadora do herdi. que precisaremos mais | 20 Observagéio: A austncia dos antepassados (= do destina- dor) pode ser observada do mesmo modo. g) A alienagao e a reintegracao. Os leitores de Propp devem ter observado que ele distingue claramente, em sua descrigSo, as nove primeiras fungées, anotan- do-as com o auxilio de caracteres gregos e considerando que las constituem uma espécie de introducio da narrativa. Conhece- mos ja 0 papel que desempenham as trés primeisas fung®es (au- séncia, proibigio, violago), para as quais foram encontradas as equivaléncias no interior e no fim da narrativa. Sé nos resta pois rar os trés pares de fung®es que constituem esta “intro- vs informagio, procura decepgio vs submissio, vilania vs falta. Observamos inicialmente que esta seqiiéncia aparece como uma sucesso de desgracas apresentando-se apés a violagio da ‘ordem estabelecida, e, também, que ela aparece como uma série negativa, & qual deveria corresponder, segundo o principio de simetria observado nos procedimentos anteriores, uma série positiva. © primeiro par de funcées, “procura” vs “informagio”, parece inscrever-se no quadro da concepcio geral da comunicacdo, € traduzir-se mais simplesmente pela “interrogagio” vs “resposta”. A comunicacao lingiifstica assim decomposta parecem correspon- der, na seqiiéncia da narrativa, duas fungdes separadas: sinal vs reconhecimento, que, embora formuladas num outro tipo de significantes, podem ser interpretadas como emissio (de um sinal) vs recepoio (desse sinal), duas fungSes simétricas que constituem 0 ato de comunicacdo po- sitivo, a0 passo que o par funcional interrogacio vs resposta aparece como constitutive de uma espécie de comunicacao negativa. 260 Se levarmos em conta 0 procedimento de coisificagéo, comum tmanifestacdo mitica, veremos que se trata, no primeiro caso, | liberacdo da mensagem-objeto e, no segundo, de sua extorsio. simetria observada exige, entretanto, ser ainda confirmada pelo rtamento, que supomos simétrico, dos dois pares funcionais do da revelacdo da verdadeira natureza do viléo, que se desmascarada. Mas se o vilio é desmascarado, & porque e ter tido uma méscara. E, efetivamente, embora o lexema sscritivo “decepcao” nao o indique claramente, Propp nao deixa sublinhar 0 fato de que o vilio, para enganar o herdi, se nta sempre disfarcado. Precisa-se assim a oposicio entre ecepcio” e “revelacio do vilio”, ~ Quanto A segunda func%o do par, a “submissio do herdi”, igualmente faz aparecer o herdi, embora de maneira menos ira, como portador de uma méscara. De fato, o herdi, nesse esté- o da narrativa, é muito freqiientemente apresentado como um nples, uma espécie de bobo-da-aldeia, que se deixa enganar cilmente, ou entdo, em casos extremos, que dorme enquanto o io opera; enfim, trata-se de um herdi no revelado. A esta manifestacio camuflada do herdi corresponde, no final da narra- tiva, sua transfiguracéo: 0 herdi aparece em todo seu esplendor, jado de vestes reais; manifesta sua verdadeira natureza de Conseqiientemente, comparando as funcgdes do inicio e do podemos dizer que & manifestacdo do vilio e do herdi disfar- ocultando-se sob aparéncias, corresponde a revelagio de verdadeira natureza. Apesar da dificuldade da formulacdo ica das fungées, a hipétese se confirma: as funcées iniciais egativas de desenrolam paralelamente as funcées terminais po- itivas. _ £ impossivel no observar uma espécie de crescendo na ogressio dos pares funcionais. A comunicacéo negativa, isto 6, A extorsio da informacio, é seguida do ato de trapaca; este, sua vez, sera seguido de vilania, realizada sob forma de roubo ou de rapto. Esse terceiro par de fungSes parece-se mais, ‘no entanto, do ponto de vista de seu status estrutural, com o Primero par: de fato, as duas seqiiéncias tém algo em comum: _ Bos dois casos, um objeto — uma mensagem ou um representante 261 simbélico do Bem — transfere-se de mos e passa do herdi (ou de sua familia, ou dos seus) para o viléo. No par intercalar de fungdes, essa transferéncia, desde que exista, € menos visivel: 6 apenas a comparacio com a primeira prova.a que deve submeter-se ePherdi, e cujo resultado é-a recepgio do adjuvante, isto é em Sama, do vigor que 0 qualifica como heréi, que permite com- preender que o que muda de mios, quando do processo de “decep- Freee gue é furtado polo villo, & por assin dizer, a netureza herdica do herdi. Vemos que se precisa o estatuto estrutural das seqiiéncias inicial final da narrative, caracterizadas cada uma delas por uma triplice sedundanela de paves funcionais; trata-se na verdade de uma estru- Tura comum de comunicacio (a de troca), que comporta a trans- missio de um objeto: objeto-mensagem, objeto-vigor e objeto- Them; @ seqiiéncia inicial aparece como uma série redundante de privagées sofridas pelo herdi e pelos seus, ao passo que a seqiiéncia final consiste numa série paralela de conquistas efetua~ das pelo herdéi. Entretanto, se “‘vilania” vs “falta” constituem um par fun- cional de troca negativa, no outro lado da narrativa as coisas se complicam um pouco; A vilania corresponde a punigo do vilio, mas a“ é dissolvida, de maneira redundante, inicial- io do Bem & comunidade, apés a vitéria sobre quando do casamento. Trataremos de resumir toda a anilise, introduzindo a nota- io simbélica. Designamos por C os seis pares de funcées que pela acabamos de analisar: sua enumerago em C; Cz Cs indi repeticéo de C o cardter invariante de seu estatuto de comuni sendo que os niimeros 1, 2 e 3 representam os objetos’ varidveis sta. Consideremos, por outro lado, a série inicial das fungdes como a transformagio negativa da série terminal, designando essas fungées iniciais por C; C; Cs. Como a maitiscula C designa sem- pre uma categoria suscetivel, por sua vez, de uma articulacto sémica em c vs nfo c, vamos obter a seguinte representagio simbdlica das duas séries paralelas e inversas: . Podemos dar, a seguir, de manelra convencional, A série ‘o nome de alienacGo, e & série terminal o de reintegragao. Observagéo: A introducio da notagdo nos dispensa de atribuir novas denominagoes as fung6es reinterpretadas. Provas e suas conseqiiéncias. Nesse estigio da anilise, podemos jd considerar a interpre- das conseqiiéncias das provas, As provas, num total de ‘comportam cada uma delas dois pares de funcies, notados ¢ F, e uma fungio solitaria, considerada como a conseqiiéncia cular que especifiea cada prova. Elas se apresentam, se- gundo ordem narrativa, como a recepgiio do adjuvante, a dissolugio da falta, © reconhecimento. Dado que todas as fungdes, exceto essas trés, se organizam pares, o estatuto solitério das conseqiiéncias poderia parecer um 10 perturbador. ‘A anilise das duas seqiiéncias de alienacdo e de reintegracto ite, felizmente, compreender melhor as conseqiiéncias. Assim, comecando pela conseqincia da prova principal, a liquidacao da Ita aparece como a fungao positiva (nao cs), opondo-se A sua transformagio negativa que é a falta (no ¢,). Da mesma forma, ‘@ reconhecimento aparece como “recepcio da mensagem” (nao ¢1), opondo-se ao seu sema positive, que é “sinal” (C;) e & infor- ‘macéo (comunicagio da mensagem) [no ¢)]. Quanto & recepsio 263 do adjuvante, que & a conseqiiéncia da i 7 prova qualificante, j& vimos que correspondia & privagio da energia herdi pre- senta.a submissio (nio c, vs nio a oe ates Esta integracio das conseqiiéncias nas seqiincias de aliena- edo e de integracdo permite apreender melhor o sentido das prd- Prias provas: seu papel consiste em anular os efeitos nefastos da alienagio, esta resultando da violagao da ordem estabelecida. 1) Resultados da reducao. A primeira parte da anilise, que constitui uma espécie d errata da redugio das fungdes, acha-se assim conclufda, e [uae apresentar, sob forma esquemitica, 0 inventario reduzido e defi- nitivo das fungdes da narrativa. Ruptura da ordem Reintegragio © © alienagio restituigio da _ordem Prova principal BAC,C.CspArpu(As + Fs + no ¢2) dno pi( Fs + cy + nd MopaPpdAs t+ doedCGAlaons Qualificagéo = contrato (ordem vs aceitagio) luta (enfrentamento vs vit comunicagao Presenca deslocamento répido Demanda 2° INTERPRETAGOES E DEFINICOES a) Elementos acrénicos e diacrénicos da narrativa. © ‘esquema da pagina precedente representa o inventdrio reduzido das funges. Essa redugdo sé foi possfvel tomando-se com 264 na certa liberdade a propria definigio da narrativa, que, segundo ‘opp. devia apresentar uma ordem de sucessio obrigat A redugio, tal como a operamos, exigiu, ao contririo, uma ‘aco paradigmitica e acrénica das relagdes entre as fun- (0 acasalamento das fungies, de fato, sé € valido se a rela~ de implicagio: nio s—>s puder ser transformada, pela existéncia, no conteiido sémico das fancies acasaladas, de uma relagio de disjuncéo, em 5 vs néo 5, que permite a apreensio do par funcional enquanto estrutura ele ‘mentar da significado. Essa interpretago paradigmética, condigio da apreensio da significagio da narrativa na sua totalidade, nos permitiu depois encontrar, independentemente da ordem de sucessio sintagmatica, “desta vez unidades de significagio mais amplas, cujos termos sio constituidos de categorias sémicas manifestadas nas fungdes tom: das individualmente. A relagao constitut dessas unidades é igualmente a da disjuncio, Entretanto, para assinalar a distingao entre os dois niveis estruturais, notamos, de um lado, cont o auxilio das maitisculas, 0 fato de que os termos que os constituem sio jé ategorias; e do outro, com 0 auxilio do sinal de negagio super- ‘posto, seus termos negativos. ___ Esse procedimento, se o examinarmos um pouco mais de perto, -néo é seno uma redugdo das fungdes a categorias funcionais, seguida, num segundo procedimento, de sua homologacio. Tal fedugdo nos permitiu extrair, apesar do desenrolar da narrativa, e abstracéo feila de sua redundancia, duas estruturas funcionais homologadas: A vs K e cw o e de prever a possibilidade de interpretar a narrativa como uma ‘estrutura acrdnica simples. 265 Observagiio: A anilise da estrutura da comunicagio C vs € nao 6 téo simples como pode fazer supor sua apresentagio. Ela exige um longo desenvolvimento, impos- sivel nos limites deste capitulo. Voltaremos a isso em outra ocasiao. Toda narrativa se reduziria, pois, a esta estrutura simples, se pio subsistise um residuo diaerdnico, sob a forma de um par funcional enfrentamento vs éxito, que notamos como F e designamos como “Iuta” € que nfo se deixa transformar em uma categoria sémica elementar. 1b) O estatuto diacrénico da prova. © par funcional F possui um caréter duplamente insdlito: nio somente pode ser interpretado como uma categoria de opu- sigdo sémica, mas aparece como a tinica seqiiéncia funcional soli- tarla, assimétrica; isto é, nfo se apresenta em nenhum momento da narrativa sob sua forma negativa. Em compensagio, F entra, como elemento constitutive, numa seqiiéncia diacrdnica que designamos com o nome de “prova”. e que é composta de A+F+e. A prova poderia ser, pois, por essa razio, considerada como © niicleo irredutfvel que da conta da definigio da narrativa como diacronia. Um certo mimero de observagées, que precisam o estatuto diacrénico, pode agora ser formulado: 1. A relagio entre Ae F pode ser considerada como uma relagio de consecugio, e nio como uma relacio de implicacio necesséria, Efetivamente, A ou A podem achar-se sés na narrativa, sem que sua presenca acarrete necessariamente o aparecimento de F: A nio pressupse, pois, F. Por outro lado, F pode estar pre- precedido de A: F no pressupie, pois, A. Isso quer dizer que a seqiiéncia “prova”, se ela caracterizar a narrativa enquanto consecucio, nao impde esta consecucdo, confor- 206 va Propp, como obrigatéria, Muito ao contrario, a prova tal nesee pentido, urna certa manifestagio de liberdade. E io entanto, ela aparece como seqiiéncia fixa, ndo o deve t relagées internas de causalidade, mas & redundancia que a fixa snquanto forma, conferindo-he, como conotacdo mitica suple- mentar, o sentido da afirmacao da liberdade do heréi; 2, Se a relagio entre Ae F é uma relagio de consecucio, ‘deve estar identificada como uma relago que se manifestaria ‘20 significante “contigiiidade”. A consecugio admite facil- te a separacgdo e vemos notadamente que a prova principal seus dois pares funcionais A e F, estreitando, a0 contrario, e modo, a narrativa; 3. O que, no entanto, confere & consecugio livre de A + F ‘o estatuto de estrutura diacrénica é a conseqiiéncia necessaria que e depreende desta liberdade de encontro. A conseqiiéncia, 6, de fato, necessdria; ela pressupbe a existéncia de A + F: vemos 9 claramente nas reduces ltéticas de certas narrativas, onde 0 atribuido ao heréi sem que a narrativa men- asjurate poe tes trecle ews tanfetaca: A preva €, Dols apenas uma convite A consecugio de Ae F, sancionada pelo aparecimento da conseqiiéncia nao c. Se a prova possui assim um estatuto diacrdnico particular, ela também mantém um paralelismo incontestével com 0 modelo atuacional definido anteriormente. fato, no somente os seis atuantes se acham implicados na sre tras também as eategorias, que permitiram a articulacio ‘do modelo atuacional, encontram na prova seus equivalentes. ‘Assim, & categoria da’ comunicacao corresponde a estrutura do contrato. O par funcional F, por sua vez, manifesta, sob forma de luta, a oposicéo das forcas.do adjuvante (que o heréi possui) ‘e do oponente. Qu: ‘anto & conseqiiéncia, vemos que ela representa, sob formas variadas, a aquisicao pelo sujeito do objeto de seu desejo. Observe-se que, das trés provas que comporta a narrativa: prova qualificante, prova principal, prova glorificante, 267 36 as duas titimas apresentam a correspondéneia termo a termo entre as funcdes que implicam e os atuantes da narrativa. Quanto A primeira prova, cuja conseqiiéncia é a qualificacio do herdi para as provas decisivas, ela nio apresenta, pelo seu F. sen3o uma luta simulada, isto 6 simbélica, onde o destinador desempenha © papel de oponente. ©) A atividade dramética da narrativa. Se a prova constitui por si mesma a definigio diacrénica da nar- rativa, o desenrolar temporal desta é evidenciado por um certo niimero de procedimentos, que constituem os elementos de um savoir-faire narrativo. Tal savoir-faire, constitutivo da “elaboracao secundaria” da narrativa (conhecida sob os nomes de intriga, de suspense, de atividade e de tensdo dramdticas), pode ser definido pela separacdo das fungées, isto é, pelo distanclamento, no enca- deamento das funcées constitufdas pela narrativa, dos ‘conteddos sémicos pertencentes & mesma estrutura da significagdo. Assim, ao sema iO G (falta) corresponde, com intervalo de quinze fung6es, o sema nao cs (dissolugao da falta). Nao é neces- sério fazer 0 comentério da falta, que Souriau designa como uma situagio intolerdvel, criadora de necessidades, promotora de acio. Uma vez colocado esse sema negativo, a narrativa tenderd a en. contrar 0 sema positivo, a dissolugao da falta. A atividade obtida pela separacio de Riots vs nao cs pode ser chamada “Procura”. No préprio momento em que a atividade “Procura” se dis- tende, coloca-se um novo sema cy (sinal): a atividade que tende em diregdo & realizagio do sema contrdrio nao ¢; (reconhecimento) embora sua tensio pareca menor, por causa do cardter positive (e nao negative, como no caso de “Procura") do sema procurado, pode ser chamado “Demanda’, isto é, pedido do reconhecimento, que € devido ao heréi. ‘Quanto & terceira atividade, a de “Qualificagao”, que liga nao ¢, a no cz, se se mostra frégil, € apenas na medida em que a quali. ficacio do herdi sé faz anunciar sua vitéria sem realizéla. Sua estrutura, entretanto, é a mesma que a da atividade “Procura” e ambos constituem a atividade redundante que conduz a intriga. 268 Consideraremos como atividades principais aquelas das separa- Festcods culo sema ad quem constitul também a conseqiién- ‘da prova, isso porque, desta forma, as atividades se fotegraes ia estrutura da prova e fazem parte, subsidiariamente, da definicgo. Consideraremos, em compensacao, como secundé- ‘e ndo pertinentes, as atividades constituidas pelas oposices s separadas, mas cujo sema ab quo nio precede a conse- ia da prova. Duas interpretagdes da narrative. ine diacronicamente a narrativa, e que cons- Feet ee linge de copetila, De fato, exoto a hite P. “0s outros constitutivos da prova esto, por assim dizer, apenas ee “malmente presentes nela: sua- investidura semantica, sua sig- “hifieagao — que serd também a significacio da prova —, eles nio ‘as recebem senio do contexto, isto é, das seqiiéncias da narrativa F que precedem ou seguem a prova, b E. Souriau definiu com bastante simplicidade a economia geral de uma peca de teatro: a uma situacio mais ou menos falma do inicio corresponde uma situagdo mais ou menos perma- frente do fim da pega; entre as duas algo se passa. Conhecemos jé esse “algo” que se passa no melo da narrativa; mas a prépria harrativa vai extrair seu sentido apenas das duas permanéncias do inicio e do fim. so ue \iiéncias — inicial e final — da narral iva Bera ‘he dit cstegsras stmaces, sob sua forma postiva ou ne- - gativa: seqiiéncia final C+A seqiiéncia inicial A+C -Considerando que as duas seqiiéncias contém o essencial da investidura semAntica da narrativa, é sua leitura que deve dar a | chave da significacio do conto popular. As coisas, entretano, se complicam pelo fato de que, segundo o tipo de relacdes conside- is, & possiv leitura. os termos estruturais, é possivel uma dupla grintclr consitird na spreensto arvOnlea dos texnos sob forma 269 de categorias e no estabelecimento da correlagio entre as duas eategorias: a c isto é: a existéncia do contrato (da ordem estabelecida) corres- ponde & auséncia do contrato (da ordem) assim como a alienagio corresponde a plena fruigio dos valores. A segunda leitura, levando em conta a disposi¢éo temporal dos termos, nos levard a considerd-los como implicados uns pelos outros: 7 (A>T) = (C>A) © que pode ser comentado mais ou menos nestes termos: num ‘mundo sem lei, os valores sio invertidos; a restituigdo dos valores torna possivel 0 retorno ao reino da lei. Vemos que as duas formulacées siéo bem diferentes, da identidade dos termos. eee ©) A significagao acténica da narrative. A primeira formulagio se apresenta como a correlagio de duas ordens de fatos pertencentes a dois dom{nios diferentes: 1. O dominio social: ordem da lei, di za - ines re la lei, da organizagio contra 2. O dominio individual ou interindividual: existéncia e Posse gracas A comunicagio inter-humana dos valores individuais, A. apreensio paradigmitica da narrativa estabelece, conse- qiientemente, a existéncia da correlacio entre os dois dominios, entre 0 destino do individuo e o da sociedade. Vemos que, assim compreendida, a narrativa apenas manifesta as relagGes que exis- tem ao nivel da axiologia coletiva, da qual ela nio & sendo uma forma de manifestacdo entre outras formas possiveis. O conto popular é nesse sentido, simplesmente uma encamacio particular de certas estruturas de significagio, que podem ser anteriores a ele, e que muito provavelmente sio redundantes no discurso social, 270 ‘A correlagio permite, pois, aprender a narrativa como uma de significagéo simples. Quanto A prépria “correlacio”, iderada como relagio, é essencialmente a afirmacio da exis- da relagio; expressa, {4 que se trata de verbalizé-la, pela ijuncéo como, ela estabelece a relacio conjuntiva entre os os da proporcdo. _E necessfrio agora considerar um pouco mais atentamente termos da correlagio, para ver em que medida podemos, spesar da auséncia do contexto axiolégico, aprofundar a interpre taco da significagio do conto popular. Tomemos de infcio a segunda parte da proporcio, que se tefere ao dominio individual. Quando da redugio, interpretamos eada C como um processo de comunicac’o caracterizado pela transmissio de um objeto simbélico. A comunicagio foi depois par- ticularizada, segundo 0 objeto transmitido, sendo cada objeto va- tidvel indicado por um nimero diferente: 1,2 e 3. £ inttil insistir 0 fato & bem conhecido em antropologia — nesse modelo itico da apresentagio dos valores que é 0 objeto em comuni- Go; & mais interessante tentar apreender a sua natureza. 1. No caso de Cy, 0 objeto da comunicagéo é uma mensa- gem, uma espécie de fala “congelada”, coisificada e por isso trans- missivel. Por constituir a chave do conhecimento e do reconheci- mento, 0 objeto-mensagem poderia ser considerado como uma formulacio, no plano da manifestagio mitica, da modalidade do 2. No caso de Cz, trata-se da transmissio do vigor, que priv: homem da energia necessfria & ago, ou, ao contrério, Iha atri- © objeto-vigor seria 0 equivalente mitico da modalidade o “poder”. 3. No caso de Cs, a comunicagio consiste na transferéncia 9 objeto do desejo, que corresponderia, conseqiientemente, & dalidade do “querer”. Apesar de nao ousarmos nos pronunciar, por enquanto, sobre natureza da correlacdo entre os valores que constituem a nar- ‘ativa e as categorias modais constitutivas do modelo atuacional, “a existéncia desta correlacao traz a confirmacdo do cardter de grande generalidade que possuem tanto uns quanto outras. 71 ~ Vemos, pois, que os termos alienagdo e reintegracdo dos valo- res, pelos quais designamos as seqiiéncias da narrativa CCC e CCC, parecem de certa forma justificados por essas novas precisbes. Em resumo, podemos dizer que a segunda parte da proporcao estrutural coloca, de fato, a alternativa entre 0 homem alienado ¢ 0 homem que frui a plenitude dos valores. Quanto & primeira parte da proporgio, ela é a0 mesmo tempo mais simples e mais complexa. O estatuto de A, que definimos como um contrato social, possui igualmente, & primeira vista, a forma da comunicacio: 0 destinador impie que o destinatério aja; 0 destinatério sceita a injungdo. Trata-se, pois, de uma obrigagio livremente consentida. No caso de A, o destinador proibe o desti- natério de agir, o que é, evidentemente, a transformacao negativa de a, da . que é um convite ao fazer (e nao ao no fazer). (0 contrato ai é de ordem negativa, privando o homem das possi- bilidades de agio. Por outro lado, & aceitacdo correspunde a violagio, que, apesar de ser uma forma de negacio, no é, entretanto, negacio, pois comporta a vontade de agir, em oposi¢éo 4 proibicao, que € a interdicdo de agir. A violacio é, pois, um termo ambiguo: a) em relacéo & aceitagio, ela é a negagdo da aceitagio: niog vs nod b)_ emrelagao a proibigao, que é'a negacdo da injuncao (ordem de agir), ela é a negagio da negacao (negagio da ordem de nio agir); logo: a vs — (a). Em outras palavras, a negacio da negacao é uma espécie de alirmagio (cf. 0 si afirmativo do francés): —-(@ =a Isso quer dizer que a violacio é uma espécie de injuncio Embora paradoxal a primeira vista, a deducao é teoricamente vilida, contanto que se limite 4 conversio somente das fungies, sem levar em conta os atuantes. A tomada em consideragao 272 3s atuantes elucida o paradoxo: a violago é bem uma injuncko, omporta a negagao do destinador e Ihe substitui o destina- 0. De fato, a identificagio do destinador e do destinatario funcao de injungao parece constituir a propria definigéo da ontade, do ato voluntirio. - Vemos, conseqiientemente, que, se Aw E a oposicio entre 0 estabelecimento do contrato social e sua jptura, a ruptura do contrato toma uma outra significagio posi- tiva: a afirmacio da liberdade do individuo, Logo, a alternativa pela narrativa é a escolha entre a liberdade do indivi- © (isto é a auséncia do contrato) e a aceitacéo do contrato |. £ somente apés esse complemento de anélise que aparece ‘a verdadeira significagio do conto popular, que &, como 0 mito — Strauss bem 0 pressentiu e afirmou — uma presentificagio ‘das contradicées, das escolhas igualmente impossiveis e insa- sfatérias. No contexto do conto popular russo, essa contradicao mitica ‘pede ser formulada da seguinte maneira: a liberdade individual tem por coroldrio a alienacio; a reintegracZo dos valores deve 4€F pagn por uma Instauragio da ordem, isto é pela reniincia ‘aesta liberdade. fi preciso ver agora como a narral “contradicao. ‘a tenta resolver esta (© modelo transformacional. Vemos que a anélise da narrativa pode dar lugar a duas de- Ses diferentes. A primeira delas era de ordem diacrénica. A narrativa se duz, de fato, & seqiiéncia da prova que, manifestando no dis- um modelo atuacional, antropomorfiza, de certa forma, as jificagSes e se apresenta, por essa razio, como uma sucessio comportamentos humanos (ou para-humanos). Esses compor- lamentos, como vimos, implieam ao mesmo tempo uma sucessio mperal (que nao é nem contigitidade nem implicagio légica) e “uma liberdade de sucessio, isto é, 0s dois atributos pelos quais 273 tem-se o hibito de definir a Histéria: irreversibilidade e escolha. Vimos também que essa escolha irreversivel (F apés A) compor- tava uma conseqiiéncia, dando assim ao homem engajado no proceso histérico a consagragao da responsabilidade. A seqiién- cia diacrénica elementar da narrativa comporta, pois, em sua definigao, todos os atributos da atividade histériea do homem, que € irreversivel, livre e responsével. Tal interpretacio da prova permite consideré-la como o mo- delo figurativo, isto é, como um conjunto organizado de compor- tamentos miticos, que da conta das transformacSes histéricas, ver- dadeiramente diacrénicas, e a andlise da narrativa, tentada nessa direcio, admite, pois, conceber como possivel a’ descricéo dos modelos transformacionais. Visto sob esse Angulo, o papel da prova se precisa — ela compreende uma estrutura de conteido dada: @ © nog nao ¢ a transforma, por uma operacio mitica, cujos termos vamos definir, numa estrutura de conteiido diferente da primeira: @ c nao a nao ¢ ‘A comparacio, embora superficial, das estruturas — antes e depois da transformacio — mostra que esta parece consistir na supressio dos sinais negativos da estrutura sobre a qual ela se exerce; em outras palavras, num procedimento metalingiiistico que é a denegagio da negacao, que tem como resultado o apare- cimento da assercio. Assim sendo, podemos tentar considerar agora os elementos ainda no analisados do esquema da prova. Vimos que as trés provas contidas na narrativa comportam, cada uma, uma conse- qiiéncia particular — no ¢;, no cz € nao cs, € que essas conse- qiiéncias sio néo somente os resultados das provas, mas também ‘os termos positivos de categorias sémicas cujos termos negativos se acham presentes, sob forma de antecedentes, na estrutura que se supde ser transformvel pela prova. & conseqiientemente 274 ita (F) — unico par funcional nfo analisdvel em estrutura e que precede imediatamente 0 aparecimento, sob forma a, do termo pertencente a estrutura que buscamos transfor- — que deve dar conta da prépria transforma: A luta aparece inicialmente como enfrentamento do adjuvante e do oponente, isto é, como manifestacio, ao mesmo tempo funcional, dinfmica e antropomérfica, daquilo que poderiamos jiderar como os dois termos — positivo e negative — da trutura de significacio complexa. O enfrentamento imediata- ente seguido da fungéo “éxito”, que significa a vitéria do djuvante sobre 0 oponente, isto é, da destruigéo do tetmo nega- tivo em proveito apenas do termo positive. A luta, assim. in- pretada, poderia, pois, ser a representacdo mitica da dissolu- 9 da estrutura complexa, isto-é, dessa operacio metalingiifstica ea denegacio do termo negativo nao deixa subsistir senio 0 smo positivo da estrutura elementar. Teremos, alids, ocasiio de mar esse problema das qualidades do julgamento no capitulo uinte, num n{vel diferente, nao figurativo. De qualquer forma, ‘a luta aparece j4 como a expressio da atividade metalingiifstica, ‘no sentido de que nfo possui contetido proprio, mas incide, ao ontrario, sobre 0 contetido da conseqiiéncia, que é, como vemos, manifestada separadamente, independentemente da luta. ‘Mas a conseqiiéncia no é a saida da luta apenas; ela 6 igualmente a do contrato parcial, estabelecido antes da luta e que 6, também, constitutive da prova — a conseqiiéncia , pois, ‘a sancao desse contrato, a prova de sua realizacdo, e implica o estabelecimento parcial do contrato global rompido. Nao que- tendo prolongar-nos aqui sobre a interpretacao lingiifstica do jul- ‘gamento assertivo, que deveremos retomar mais tarde, contenta- nos em afirmar que a prova, considerada como expressio igurativa do modelo transformacional, introduz uma dimensio dia- énica que, opondo os contetidos axiolégicos investidos nas estru- furas que a precedem e que a seguem, dé conta também de sua sformacio. 9) A namativa enquanto mediagio. ‘Vemos que a narrativa (e mais particularmente o conto popular russo), submetida & anélise funcional que busca determinar a 275 natureza das relagSes entre as funges dentro de uma manifestacio discursiva, & suscetivel, em suma, de uma dupla interpretacio, que evidencia a existéncia de dois tipos de modelos imanentes: a primeira di conta de um modelo constitucional, que parece ser uma forma protocolar de organizacio dos contetidos axiolé- gicos contraditérios, apresentados como insatisfatdrios e inevité- veis; a segunda, ao contrario, explicita a existéncia de um modelo transformacional, oferecendo uma solucio ideolégica, uma pos- sibilidade de transformagio dos contetidos investidos. Esta possibilidade de uma dupla interpretaco nfo faz senfo sublinhar o grande namero de contradigées que a narrativa pode conter. £& ao mesmo tempo a afirmagéo de uma permanéncia e das possibilidades da mudanga, afirmacdo da ordem necessaria e da liberdade que transgride ou restabelece essa ordem. E, no entanto, essas contradicées nio so visiveis a olho nu; muito a0 contririo, a narrativa dé a impressio de equilibrio e de contra- digdes neutralizados. £ nessa perspectiva que ela se mostra essencialmente em seu papel de mediacdo. De mediagdes miilti- plas, devemos dizer: mediagées entre estrutura e comportamento, entre permanéncia e Histéria, entre a sociedade e 0 individuo. Parece-nos possivel, generalizando um pouco exageradamente, agrupar esse tipo de narrativas em duas grandes classes: as narra- tivas da ordem aceita; as narrativas da ordem presente recusada. No primeiro caso; o ponto de partida esté na constatagio de certa ordem existente e na necessidade de justificar, explicar esta ordem. A ordem que existe, e que ultrapassa o homem, porque é uma ordem social ou natural (existéncia do dia ou da noite, do verio ou do in- verno, dos homens e das mulheres, dos jovens e dos velhos, dos agri- cultores e dos cacadores, etc.), se acha explicada ao nivel do homem: ‘@ procura, a prova sio comportamentos humanos que instauraram esta ou aquela ordem. A mediacio da narrativa consiste em “huma- nizar o mundo”, em dar-lhe uma dimensio individual e de aconteci- mento. O mundo se acha justificado pelo homem, o homem inte- grado no mundo. No segundo caso, a ordem existente é considerada imperfeita; o homem, alienado; a situagio, intolerdvel. O esquema da narra- tiva se projeta entdo como um arquétipo de mediacio, como uma promessa de salvacdo: & preciso que o homem, o individuo, assuma a sorte do mundo, que ele o transforme através de uma 276 de lutas e de provas. O modelo que apresenta a narrativa ‘conta, assim, de diversas formas de “soterismo”, que propée lugio de toda situagdo intolerdvel de falta. Essa introdugéo da histéria, seja ela explicativa ou projetiva, slica ou aberta, dé um interésse suplementar & anilise, permi- do colocar a questio do valor e do alcance dos modelos tais se mostram apés a descri¢io do conto popular russo. 9° © MODELO TRANSFORMACIONAL E O PSICODRAMA Do coletivo ao individual. ‘A definicdo da narrativa considerada como uma manifestagio uursiva, que desenvolve, gracas & consecucéo de suas fungées, modelo transformacional implicito, nao se funda, infelizmente, Jo na anilise de um nico género de narrativas, 0 conto spular russo. Sua dimensio permanecer4, pols, tio reduzida que se poderd mostrar que 0 modelo reconhecido na narrativa- -conto & encontrado em outros dominios axiolégicos e se aplica a narrativas de figuracio diferente. Podemos mesmo dizer que quanto mais o novo dominio de aplicagao do modelo se distanciar seu lugar de origem, tanto mais geral pareceré, e com razio, “0 seu alcance. ~ O dominio que se ofereceu, um tanto a0 acaso, A nova expe- riéncia, parece corresponder a ‘esta exigéncia. Tratar-se de um ‘corpus constitufdo pelos resumos das narrativas feitas por uma erianca “obsessiva’, quando de um tratamento psicodramatico, as quais extraimos, com os comentarios do autor, das Réflexions sur psychodrame analytique de M. Safouan (Bulletin de psychologie, 80 nov. 1963). Diante da dificuldade de procurar material psican: Iitico bruto, nfo interpretado, para as necessidades da descricao ‘semAntica, 0s resumos de M. Safouan apresentam a vantagem de ser simples e de englobar o conjunto do tratamento por que passou ‘a crianca. O interesse desse corpus é evidente: contrariamente ‘ao conto popular, que é obra coletiva, as narrativas de que ele é composto provém de um sé locutor individual. Por outro lado, a distingza entre a manifestacko fignrativa da narrativa e a estrutura de sua significagio aparece aqui de maneira indiscutfvel: embora 27 © corpus seja constituido de uma série de narrativas — histérias policiais, contos chineses, narrativas de espionagem — a manifes- tagio discursiva, através de todas essas narrativas, é una e reflete uma estrutura de significacdo unica, compardvel, se nio idéntica, @ estrutura da narrativa do conte popular. © tratamento psicodramatico se manifesta, nessa perspecti como uma técnica que busca promover a realizacao progressiva do modelo transformacional da narrativa até seu término, e o papel do terapeuta consiste em observar o encadeamento das narrativas parciais, a fim de que se dirijam a uma realizagio do modelo estrutural previsto. Para justificar o que acabamos de resumir em poucas palavras, exporemos, etapa por etapa, o tratamento des- crifo por M. Safouan. 1b) A estrutura compensadora inicial. A crianca foi apresentada aos terapeutas pela mie. cujo caréter dominador era visivel, acompanhada do pai, apagado e bonachéo; uma configuragao familiar banal, que fornece as pri- meiras informagées contextuais. A crianca, convidada a “inven- tar” as narrativas para 0 jogo psicodramatico, nao deixou de “propor, semana apés semana, historias policiais que, apesar de sua diver- sidade aparente, tinham em comum o seguinte: havia de um lado, um mestre-cantor, de outro lado, uma nobre vitima que, corajosamente, consentia em ser explorada, pois, se deixasse escapar seu segredo, ela provocaria a perda de uma personagem que devia proteger a todo custo — muito freqiientemente seu prdprio pai”. (loc. cit. p. 965). Se adotarmos, para a andlise das narrativas psicodramaticas, a mesma notacio simbélica utilizada para a descri¢io do conto popular, poderemos tentar formular a estrutura iterativa implicita~ mente manifestada no conjunto das narrativas desta fase inicial por €2 (revelagio do vilio) Indo ca (revelagio do heréi) &2 (decepcao) nao ¢2 (submissao) isto ¢, por um sistema paradigmatico simples, que exprime, sob forma de oposicio categérica, apenas os valores individuais, © 278 da de maneira bastante reduzida: a privacio da forca vital earacteriza a seqiiéncia do inicio € compensada pela conscién- 1 de seu proprio herofsmo. ‘A estrutura desse inventério de narrativas permanece, entre- inteiramente acrdnica: se, como “o mito”, tal como é defi- ‘por Lévi-Strauss, ela permite & crianca “viver” uma situacdo ‘wel, ndo chega a nenhum encadeamento diacrOnico. Pode- ‘admitir a existéncia litética da situagio inicial, nao manifes- ‘nas narrativas, e representé-la por A (ruptura do contrato Pai e filho); a integragio dos valores individuais numa “ordem social” permanece impossivel, pois sua formulacio sd pode ser _ c c ‘e significa a auséncia, no limite, de um novo contrato previsivel. QOheroismo que a crianca nfo cessa de apregoar em suas narrativas, por falta de um destinador no é reconhecido. Notamos, ao mesmo tempo, como traco caracteristico nao somente desse primeiro inventdrio de narrativas, mas do corpus i ‘manifestacao exclusiva de C,, isto é, da priva- ‘0 da energia vital, preferido em relacio a outros " ¢ escolhido na axiologia de valores individuais: ele poderd cons- tituir um dos elementos da definigio desse tipo de estrutura. * |= 4 Observagéio: Ff interessante assinalar que a intervencio do teraupeta, 0 qual detém a iteragéo dessa estrutura inicial, consiste na explicagio da estrutura semantica comum a0 con- junto das narrativas, O papel da tomada de consciéncia pa- rece limitar-se, nesse tratamento pelo menos, a essa fase inicial. ©) © aparecimento da luta. ‘Apés esta intervenco, aparece um novo tipo de narrativas. ‘Todas estas, no entanto, comportam uma idéia comum: “para maladie, malandro ¢ meio”. “Havia um malandro que conse- guia enganar o inspetor, este conseguia capturar, enfim, 0 mal- 279 ‘ & feitor; havia também o “gangster” que, contrariamente As leis do meio, queria aplicar um golpe em seus comparsas, mas caiu vitima de sua prépria asticia ou da deles etc. (Loc. cit, pp. 965, 366)." Abandonando os elementos compensadores cz e nfo x, que conferiam o cardter acrénico, a narrativa tenta provocar um encadeamento diacrénico revelando um novo par funcional F: a oo) eT ( joomibate ). submissiio vitéria O exame desse novo inventério de narrativas e da nova se qiiéncia estrutural permite as seguintes observacées: 1. A seqiiéncia estrutural, embora possuindo o cardter dia- crdnico, permanece, no entanto, ambigua, e funciona como uma estrutura acrOnica compensadora. De fato, como os papéis do herdi e do vilio sio intercambiiveis, o autor das narrativas, que pode escolhé-los, se faz herdi ou vilao, mas preferivelmente herci, a seu bel-prazer. 2. © que faz com que os papéis sejam intercambidveis e que a luta (F) nao possa transformar-se em prova, 6, evidente- mente, a auséncia, na economia da narrativa, de qualquer contrato (A) ¢, por isso, do destinador que faria do adjuvante o atuante. -sujeito, ao muda-lo de missio. Observasao: A intervencio do terapeuta nio se situa fora, mas dentro do jogo: & a vitima, desempenhada pelo tera. peuta, que se recusa continuar a ser vitima, e nao o terapeuta, © problema, como vemos, no se situa’ mais no nivel da consciéncia, mas no da distribuigio e da assungao dos papéis. @) © desenvolvimento da prova. A erianca, tendo jurado vinganca, volta na semana seguinte com um conto chinés muito complexo. Li-Shong e Li-Tock, dois bandidos inimigos, acampam ¢om seus bandos um diante do outro. Shang, auxiliar de Li-Shong anuncia ao chefe a captura do tinico médico da China capaz de exterminar a peste. Tendo 280 ordem de deter 0 médico em segredo, 0 chefe dos bandidos gina um estratagema muito complicado para, destruir 0 inl Sua filha deve ir colher flores na proximidade do campo Tock, ¢ dettarse raptar, como refém. Uma vez prisioneita, wenderd estar atacada ‘de peste. Li-Tock, acreditando-se reclama como resgate quatro caitas de ouro por sus, pri ra, Li-Shong lhe propZe, em troca de sua filha, © médico @ que € capaz de tratar da doenga, reclamando por ¢ “vdte caixas de our. Uma vez feita a troca, Li-Shong 0 Sou aunilar uma mengagem dirigida a seu inimigo, na Hal anuncia que o proprio médico esta doente e que conseqi Iemente Li-Tock deve esperar pela morte certa. mit) _-Nesse preciso momento do jogo, o terapeuta ee ys tum ‘dlema para a erianga: se a mensagem ¢ a 0 sonhecimento do mal pode dar 20 Inigo a canve de escapar ‘da ir o inimigo, nao r more; 3 36 ue aescapar de sit dessa, interzompe © Jog°. i: narrativa, embora complexa, deixa-se analisar como Re desenvolvimento’ da prova simulada, Tentemos inicial er as fungSes constitutivas da prova: falso. contrato:| retorno da troca entre her filha (emi EPG Ce ato] do objero ‘do. desejo) Embora a prova se desenrole inteiramente no plano da “decep- fc, isto & da simulagio © do engano, e embora seja marcada, vor esse fato, pela inversSo dos signos e interversig da sucesso Pintagmatica das funcoes, ela contém no entanto, excenso do Stak todos on elementos consttatves: apreenta, cnseqiente Pe: dos progresso indiscutivel no desenvolvimento da estrut ftiacnte ao conjunto do corpus. 81 A principal dificuldade que bloquearé o desenrolar dessa nar- xativa-ocorréncia reside, no entanto, na distribuigio dos atuantes: © contrato simulado, vilido do ponto de vista funcional, nio 0 é se considerarmos os atuantes que o realizam. © heréi sincrético, de fato, s6 pode firmé-lo com o vilio, pois que ele préprio assume, sinereticamente, 0 papel do destinador e nao pode ser, ao mesmo rio. O actimulo dos papéis de sujeito e de destina- dor é, além disso, visivel quando da dissolugio da falta: o objeto do desejo retomna, pelas mesmas razGes, a seu pai-destinador. Mas, sendo destinador, ele nfo pode mais atribuir-se o vigor qualificante; ele 0 envia pois sob a forma do antivigor (= doenca) ao vilio. © pice do estratagema se acha assim realizado: o antivigor que vai ao vildo nio é senfo um pretenso ndo vigor; o vildo, entretanto, © aceita como verdadeiro e considera que sua natureza vai priva- slo de sua forca; a manifestagdo litética da prova qualificante se acha assim realizada. © mesmo ocorre com a punigo do viléo (c,): © herdi que, em sua qualidade cumulativa de destinador, é encarregado de pu. ni-lo, envia-lhe, desta vez, um verdadeiro antivigor, sob a forma do médico tomado pela peste. Mas 0 vilio sé pode ser punido se o herdi for j4 revelado. O herdi-destinador cai assim na sua prépria armadilha: enquanto destinador, ele quer enviar um objeto- smensagem (nio ¢:) que permite reconhecé-lo como herdi. £ aqui que se situa a intervenedo do terapeuta. Observacdo: Esta intervencio do terapeuta consiste em tomar explicita a impossibilidade do sincretismo sujeito -+- destinador, a impossibilidade para o herdi de ser seu proprio destinador. A auséncia de um destinador independente im- pede reconhecimento do heréi enquanto herdi. As duas narrativas seguintes serdo, pois, consagradas & pesquisa, a0 mesmo tempo, do destinador e do reconhecimento. ©) Realizasao da prova. A nova narrativa proposta pela crianca consegue finalmente sealizar a prova sob forma positiva. Ela se apresenta como uma histéria de espionagem: “Um agente de um eseritério de contra- -espionagem saboreia seu uisque num bar do Cairo. Aposentou-se : i fe 0 desco- er saber mais de aventuras. Seu ex-che! eo Gaeereradamente ‘© agente compreende que, uma missio 0 espera e descja furtarse, Seu chefe o detém a mpo. A missio consiste em ir a aie outra otal de cols = ite considerado desconhecido Ihe dard uma i i istiré em fazer chegar a de mportinca, © 00 rar amis, o agente viverd mutes i mente rece- jos pormenores so importantes. Especial e tf um certo ferimento. O agente 6 abordado por um desconhect: ‘disfarcado de vendedor de amendoim, que Ihe passa acim, ‘wcabou de fazé-lo, foi atingido por uma ba Be in aivica “obre a identidade do desconhecido. Procura ‘mensagem e a encontra entre os amendoins.’ ise ‘Apesar das Jacunas e das indicagSes sempre sumérias, a an: apresenta dificuldades: da narrativa nfo iva abandona, por do: Notar-se-i que a narrativa_aband Be ea oes da seqiiéncia inicial, ndo deixando, = contexto ‘alienante, sendo a situagio de falta. O interesse narragio, e do locutor, esté em outra parte. i tiva_ aparece bservada um pouco mais de perto, a narral ; aS ‘uma histéria do destinador encontrado, nio reconbecido : finalmente perdido. De fato, o atuante-destinador geil, presante ; fva, sob a forma de dois atores: o chefe da c Pa anayenn um destinador que vai procurar 0 destinatéro, ° desconhecido, disfarcado em vender de emencois, ue enrega ” i, nesse sconhecic thece! rem¢ ee caalinn ‘que é de nacionalidade celpeta © papel do destinador-psicanalista, interessante @ ser observado, ‘resume-se em trés fungoes: 283 1. £ um destinador nfo reconhecido pelo destinatério; 2. Seu papel consiste em entregar ji & © sinal de conhecimento e de ponbednni elena cece tui, alids, sua redundfncia parcial). oh 3. Ser i aS a: termina quando, desconhecido, ele é morto por Assim, pois, embora de posse da “men: 7 sagem”, 0 herdi pode receber recompensa, pela auséncia do destinador asvassinede Observacéio: A int pcmere Al nieieasse do terapeuta, morto no eum- ) © problema do reconhecimento e da recompensa. A iltima narrativa Proposta pelo menino duo, quase textual, dem dos dtimos capitulos de Zadig do taire, io”. Zatig, volando definitvamente para abil, coven > Grier ue permite que ele o acompanbe. Juntos pedem hospedagem ¢ Passam quatro notes sucessivas em casa de anfitrides muito a Fentes: um vaidoso e um avarento no inicio, um filésofo ¢ a ore ve oe em seguida. Em sinal de reconhecimento, 0 con Me rouba do, anfitrido vaidoso dois candelabros de ouro, que rece a seguir, em agradecimento, a0 avarento. Em recom, pela honeta howptalidade do flésoo, o ermito, 20 partir, poe ests hosp sofo, 0 ermitio, 2 ae casa; para agradecer & vitiva virtuosa, ele mata seu ‘Vemos que, nesta primeira r ne parte, a narrativa esté problema pico do i («da rooompanmn ao ied (ala e2). Isso Sloteeemente normal: sendo a prova realizada na narrativa anterior tem de ser proposa a queso da eitegragio do valores \ seqiiés 10s de resumir parece, entretanto, i e distibuir corfetamente as recompensas eas punisées Tuo sae , Femetendo-nos quase que A seqiiéncia inici 1 tals deft, renee > que A seqiiéncia inicial, a0 nivel a que a hospitalidade dos dois primeiros anfi das parti, parece que ao s dois primeiros anfi- ae deve punida: ela o é i ‘no outro; a huspitalidade do filésofo e da viiva parecnela poate 284 eria merecer recompensa: & 0 contririo que se produz. Como no cio da manifestacdo discursiva, 0 heréi é um herdi “decepcionade”. ‘A narrativa, entretanto, ndo est ainda terminada. O ermitao, fio 0 esquecamos, 0 enviada da Providéncia: esté preparado ara entregar a mensagem ao herdi crianga). Isso ue nosso herdi ja esté marcado (recebeu 0 ferimento), cum- fivsua tarefa, dissolvendo a falta (apanhou a mensagem que a encarregado de recuperar). Essa mensagem € 0 objeto do jo do sujeito, e nio basta, como devemos lembrar, reconquis- Ta, & preciso ainda que o destinador a remeta, de mancira re- Gundante, ao mesmo tempo como recompensa e como garantia do novo contrato concluido. E é 0 ermitao-destinador que realiza sta ultima fungao, remetendo a mensagem que, apesar da sua forma de “reconhecimento do bem e do mal’, nao deixa de ser recompensa. "A significacdo global dessa manifestagio discursiva, recoberta ‘por varios inventérios de narrativas figurativas, se mostra agora pom clareza, e o modelo transfermacional particular (que os espe- cialistas, se & que reconhecem o seu valor, poderiam definir como faracterizando um subgénero particular de narrativas) pode ser definido como a transformagio de ido ¢, em no ¢1, com o auxilio a prova onde nio c, ser4 analisado como nio ¢s, Isso quer dizer ‘a situagio de falta inicial era caracterizada pelo privacio fo cbjeto-mensagem, isto é, do “saber” que dava & estrutura inictal Mobsessiva” da narrativa seu carater osci io, fazendo do sujeito ‘a0 mesmo tempo um “tolo” e “um herdi por_si mesmo” e cons, fituindo-o em um termo estrutural complexo (no ¢s + nao ez). O sdelo transformacional, por sua vez, s6 pode funcionar — por sua [propria definicio — considerando 0 objeto da falta (no nosso aso: nao c,) como objeto do desejo (nao ¢s). Esse objeto do Gesejo particularizado (nio cs = nao cx) serd, pois, reconquistado durante a prova principal (é, como estamos Jembrados, a mensagem ‘a ser recuperada), e remetido, em seguida, pelo destinador como "uma recompensa. De fato, a mensagem-explicagio do ermitéo con- ‘siste em colocar o “saber” como uma modalidade capaz de disso- iar 0 termo complexo (nfo cz + néo cs) em uma categoria dis- juntiva (nao ¢2 vs no ¢2) distinguindo mascara de rosto, aparénci: Qe “realidade revelada”. O objeto-mensagem que fecha a narra- tiva & conseqilentemente, ao mesmo tempo @ recumpensa © 0 285 “saber” que permite reconhecer a recompensa separando-a da punigao. g) Manifestagao figurativa do modelo. © quadro recapitulativo permitiré ver melhor como se rea- liza, com 0 auxilio de narrativas-ocorréncias sucessivas, a ma- nifestacdo figurativa de uma estrutura de conjunto tinico, mani- festagto que obedece por sua vez a um modelo transformacionl imanente, Tae [=o 2) Alcance do modelo transformacional. __ Chegando a esse estigio de reflexio, confessamos nossa perple- xidade: os resultados da aplicacdo & andlise do psicodrama, do mo- delo obtido a partir da descri¢io do conto popular, nio eram nem previstos nem previsiveis. Eles parecem, no entanto, nao perturbar em nada a psicanilise. Mas, se nossa “démarche” é correta, ela levanta, mais além das descrigées dos contos populares e” dos psicodramas, o problema da generalidade do modelo transforma- cional, que deveria poder dar conta, articulado em todas as suas varidveis, das transformagoes diacrénicas, isto é, histéricas, das 286 uras de significagio. Isso, porque, apesar das identidades ais encontradas nos dois exemplos estudados, a estrutura amitica “obsessiva” possui suas caracteristicas estruturais © objeto do desejo e da procura psicodramitica € 0 o-saber, e sua transformagio consiste na substituicdo paradig- tia do “nio-saber” pelo “saber”. Isso constitui uma particula- io incontestdvel do modelo. ~ Qualquer conclusio seré prematura, e o modelo transformacio- cujas primeiras articulagdes possiveis sio aqui sugeridas, sb ‘ser proposto como uma hipétese a ser utilizada na descricéo ‘manifestacdes figurativas. Isto porque a prépria prova, cuja central no desenrolar da narrativa tivemos oportunidade de svar, nio & sendo um modelo figurative de transformacao, e tradugio em linguagem semntica est longe do término. AMOSTRA DE DESCRICAO 1° PRINC{PIOS GERAIS a) Exemplo escolhido: o universo de Bernanos. Acreditamos nfo ser intitil apresentar, ao final (provisério) destas reflexdes, uma amostra de descrico, mais ou menos com- pleta, que opere a partir de um corpus dado, que dé conta dos pro- cedimentos utilizados e que proponha, enfim, os modelos definitivos de organizagéo de um microuniverso semAntico. Escolhemos, nese intento, o universo de Georges Bernanos. O exemplo praticamente impée-se a nés pela existéncia do estudo de Tahsin Yiicel, L’Imagi- naire de Bernanos, recentemente apresentado, sob forma de tese de doutoramento, na Faculdade de Letras de Istambul. ‘Acscolha de um dominio jé trabalhado por uma pesquisa, cujos métodos nio esto em contradigao com os procedimentos da des- crigdo semfntica, apresenta vantagens e inconvenientes. Entre as primeiras, é bom inicialmente observar a importancia do trabalho: a pesquisa de Yiicel referiu-se ao conjunto da obra de Bernanos, fe isso garante, numa certa medida, sua representatividade. Qual- quer outro exemplo teria sido, pelas limitacées que terfamos de atribuir & andlise, muito mais parcial. Sua representatividade, de um lado, e uma pré-andlise do corpus jé efetuada, de outro, nos permitem nao escamotear as dificuldades que apresenta toda des- crigio, e aumentar o cardter exemplar do exercicio a que nos submetemos. O inconveniente mais desagraddvel est4 na impos- sibilidade de trazer nossa garantia pessoal, concernente & perti- néncia da descrigao, qualquer que seja a confianca que possamos atribuir 20 pesquisador, enjo trabalho utilizamos. Uma outra difi- culdade provém da apresentacéo, que poderfamos qualificar como 288 ria, dos que parece satis- do ponto de vista da critica liter: nao constitui send stapa de pré-andlise semAntica. Resulta disso uma certa fl b na apreciacio dos dados: algumas reduces parecem acaba- tras s6 0 esto parcialmente, e algumas ocorréncias, enfim, sentam em estado bruto. Por isso, o exemplo escolhido vir apenas para ilustrar os primeiros procedimentos da descri¢ao certas reservas: tragaremos apenas suas linhas gerais. fituicéo do texto por extragao. © autor do Imaginaire parece ter sido levado a utilizar, para ituicado de seu texto, 0 procedimento de extrac podemos, tanto, servir-nos desse seu método para exemplificar tal procedi- nto, que até aqui foi apresentado de maneira suméri © ponto de partida da extragéo est na constatacio da redun- acia de certos lexemas, a titulo de hipétese representativa da otopia a ser descrita.. Tals lexemas so, em primeiro lugar: vida e morte. Considerando-os como constituintes de um primeiro inventério estrito, 0 procedimento descritivo comecaré pela extracao de todos i$ contextos que comportam esses lexemas inventariados. Metodo- ogicamente, isso consiste em tomar cada lexema do inventirio como n invariante, em postular para cada um deles uma classe de Aveis, constituida por qual e varidveis definiré, dentro do corpus fechado, o lexema-inv: nte. A reducio de cada classe de varidveis a um niimero limi ‘tado de sememas permitir4 obter outras tantas mensagens quali “cativas, e a anilise, se se detivesse nesse nivel, chegaria & constru- co de um modelo simples que daria conta do conteiido seman- tico de Vida e de Morte. A descricdo, no entanto, continuaria incompleta, pois sé se apoiaria num’ niimero restrito de mensagens extraidas do corpus. Em vez de proceder imediatamente 4 redugao, parece oportuno tetardéla e operar uma segunda extragio, tomando, como lista de 389 invarifincia, 0 inventirio de todas as qualificacdes-varidveis ante- riormente extraidas. Devem ser consideradas duas utilizagSes desse novo inventério: 1. As classes de qualificagdes, constitufdas apés as primeiras extragées, podem ser consideradas como tais e servir_para buscar eventuais equivaléncias dos lexemas j& qualificados. Dessa forma, as classes de qualificagées, tomadas como invariantes, permitem estabelcer as classes de atuantes consttudas de lexemas equi valentes: Morte Vida Agua vs | Fogo Tédio Alegria Como os trés lexemas se acham, no conjunto dos contextos, qualificados pelas mesmas varidveis, devemos postular que, na medida em que as classes de qualificagSes que definom a vida e a morte instituem os contetdos de Vida e de Morte, préprias do corpus dado, estas mesmas classes sé podem conferir conteddos idénticos aos lexemas equivalentes: estes tltimos sio intercam- bidveis e redutivei um atuante-semema comum. Conseqiiente- mente, mesmo quando, mais adiante, continuamos falando sepa- radamente de morte e égua, vida e fogo, entende-se que se trata simplesmente de expressdes diferentes de um s6 semema, denomi- nado, conforme 0 caso, vida ou morte. Observagao: f preciso, no entanto, ter uma certa reserva em relagio a alegria e tédio. 2. 0 inventério de qualificagées pode, por outro lado, servir ‘a extragio de novos lexemas, determinados nio mais por classes inteiras de qualificacées, mas por cada uma das qualificagdes tomada separadamente. Esse novo inventério de lexemas serd to dicotémico quanto o primeiro, sendo as préprias qualificagées que serviram & sua formagio constitutivas, umas da morte, outras da vida. Tal inventétio compreenders, pois, duas subclasses: a) cadéver —- velho — doenga — mentira — ddio, ete; b) vivo — crianga — carne — sangue — verdade — amor, ete. 290 assim institufdas uma ordem da morte e uma ordem da do que as proprias qualidades se acham em relacdo hipo- quanto a uma e outra das duas ordens. procedimento de extragio se mostra, pois, em seu todo, uma série de operagées sucessivas de extracio, sendo que inventdrio de contextos extrafdos permite a extracdo e a izacio de outros contextos, e assim até 0 esgotamento do 1s, isto é, até o momento em que a ultima extracio (n) que © tiltimo inventério (n - 1) néo faré mais aparecer novas ificagées. Isso quer dizer que 0 corpus utilizado para forne- + por extracio os elementos de significagio pertencentes & jia de vida e morte, escolhida no inicio, esta esgotado de ¢ira exaustiva. Mas além disso: podemos supor que a ampli fio progressiva dos inventérios extraidos, fornecendo novos ele- ntos de apreciagio, deve permitir retificar, se for necessdrio, p hipdtese postulada no inicio da descrigio. Escolha da isotopic. ‘A escolha estratégica que permite desencadear a extracdo nfo repousa somente na redundancia observada dos lexemas vida ‘morte; pressupde também questdes simples do tipo: que sig- hnifiam vida e morte para Bernanos; que sentido dé ele a essas “palavras”? A resposta, nesse nivel, 6 imediata: nem o “fato de nem o “fato de morrer”, significagdes de ordem cosmo- ica, sio pertinentes & descrigao; na presenca de qualificagoes a morte & negra a morte é fria se trata evidentemente de descrever nem a cor, nem a temperatura da morte. A dimensio da manifestacio apontada pela descricfo & de ordem nooldgica, e a escolha da isotopia, “concebida como a categoria bindria vida e morte, faz parte, para- Ielamente & redundancia, da hipétese simples inicial. Por outro lado, basta ler umas cingtienta paginas de Bernanos para dar-se conta de que as nogdes de vida e morte se interpre- tam, de maneira geral, nfio coma duas funofes, mas como dois “seres” déiticos imbricados: 0 homem pode estar morto na vida 291 e vivo na morte. Em outras palavras, a existéncia humana é feita de vida morte, que sio dois termos contraditérios e comple- mentares de seu ser noolégico. A isotopia postulada por Yiicel aparece, pois, como a mani- festagio, sob forma de termos complexos, de uma estrutura ele- mentar, que podemos designar como =(V+M). equilfbrio dos dois elementos da estrutura é precirio, no entanto; e esta pende tanto para © lado negativo quanto para © lado positivo, instituindo assim a dominfncia de um dos dois elementos. Por outro lado, se a existéncia humana aparece como a expresso de uma estrutura complexa, o “ideal de vida” a que ela visa nao pode ser senio a supressio de seu termo negativo e a valorizacio apenas de seu termo positive. O mesmo ocorre com a “queda” cuja expressio lingiifstica seré 0 desaparecimento do termo positive da estrutura. Podemos, conseqiientemente, formu- lar a hipétese da seguinte forma: o discurso de Bernanos é uma manifestacio mitica, situada na isotopia E que lhe serve de quadro e que passa ‘por uma série de captagSes estruturais suces- sivas, baseada na aproximagSo dos termos contraditérios: E=(V+M), oscilando entre as duas dominincias positiva e negativa: E:=(V+m) E:=(M+e), ¢ tendendo em direcio & polarizacéo dos termos, logo, em dire- do a0 rompimento da estrutura complexa em Vow M Observacao I: Utilizaremos as letras maitisculas para mar- car 0s elementos dominantes da estrutura, e as minisculas para marcar os elementos dominados. Observasio I: Quase nos esquecemos de introduzir, nesse lugar, a categoria proprioceptiva “euforia” vs “disforia”, que conota o comjunto da manifestacéo: sua presenga é indis- 4 rs nsivel para conferir os caracteres axiolégico e ideolégico _aos modelos que poderio ser descritos a partir do corpus 2° KA EXISTENCIA ENQUANTO MEIO Formas da manifestagao tipos de andlise. __ Jé tivemos oportunidade de insistir a respeito da ambigiiidade Jexema milieu (meio), que designa ao mesmo tempo o centro e algo e esse algo que envolve o centro. Tal nogao é, de fato, exemplo tipico da lexicalizaco de uma estrutura déitica com- , que poderfamos designar, com a utilizagio da terminologia Jaspers, como: “englobante” vs “englobado” e consideramos preferivel & oposigao ", utilizada por T. Yiicel. A categoria assim denominada € de alcance muito geral, ‘a presenca em Bernanos nfo & caracterfstica especial de seu ‘universo. No entanto, considerada como uma das articulacées fun- damentais do espaco’noolégico, ela serve de ponto que permite passagem quase imperceptivel da manifestacdo “abstrata” & ‘manifestacdo “figurativa”, transformando os conceitos abstratos fatuantes. Assim, uma vez reconhecida a identidade das qualifi- agées que sio atribufdas ao mesmo tempo aos lexemas morte “gua, vemos com facilidade em dgua o semema figurative que r © papel de ator por seu poder de englobar um outro ator, 0 cadéver. Em outras palavras, a categoria “englobante” vs “en- slobado”, que nfo exprime, & primeira vista, senao a relaco topo- fica entre duas déixis-volumes, permite, também, novas deter- “minagées de seus termos considerados como atuantes, aos quais “continente” vs “con- "podem ser atribuidos predicados tanto qualificativos ‘como fun- " cionais, ___ Vemos, no entanto, que se, pela simplicidade relativa de seus atuantes, surago topolégica se presta particularmente & ané- lise qualificativa — a descricdo de dgua e fogo desvenda, na ver- 293 dade, uma rede de articulagdes sémicas bastante rica —, 0 que nfo ocorrer4 se quisermos interpretar, com o auxilio da mesma categoria, a manifestacio figurativa néo mais espacial e fisica, mas orgfnica. © homem, que é para Bemanos um set de “carne e sangue’, pode ser interpretado, é bem verdade, como um englobante no interior do qual se instala um ator hipotdtico da morte, o cfincer, por exemplo, que corréi e destréi esse organismo. Mas, a0 inverso do que se passa no primeiro tipo de figuracdo, nfo é mais o englo- Dante que é 0 atuante-sujeito, e, logo, o termo dominante da estru- tura complexa, mas 0 englobado. Além disso, acontece que a domi- nfincia da motte esta representada nio mais pelo atuante-sujeito, mas sim pelo atuante-objeto: o velho, o idiota — sio objetos, pacientes da morte; ao mesmo tempo eles nio sio mais englo- Dados, mas englobantes, dentro dos quais age a morte. Um ter- ceiro caso, enfim, 0 do agente exterior que ataca outros seres vivos que ndo os homens: o rato, a serpente, sao, também eles, atores hipotaticos da morte. Segue-se que, quando a manifestacio figurativa de Bernanos se situa no nfvel orginico, a categoria “englobante” vs “englo- bado” nao é mais af complementar da articulacdo “dominante” vs “dominado” da estrutura da existéncia que postulamos de infcio, e ndo pode mais servir para reduzir os dilerentes atores fa atuantes, sujeitos ou objetos. Assim, a morte, enquanto atuante, al se acha sob a forma de atores varidveis, cujo estatuto, em relacio As duas categorias visadas, pode ser expresso no seguinte quadro: [ avanme | sors | ee dominante englobado dominado englobante nem englobante dominante { nem englobado ‘A distribuicdo dos atores é, conseqiientemente, estilistica na manifestagio orginica e nio corresponde Aquela, rauito simples, que encontramos na figuracdo inorgfnica. Metodologicamente, isso a4 que a variedade dos atores nio permite postular, desde io, os atuantes como invariantes e buscar as varidveis dentro predicados: seremos, portanto, obrigados a recorrer, nesse .& anilise funcional, que permitird, gracas A homologacao das , extrair e reduzir os atores. inorgénica, em compensagio, se ‘a, @ a correlacdo entre a estrutura atuantes, a do meio e a da dominincia pode af ser considerada 0 adquirida: de fato, Atuante-sujeito _ Englobante Englobado Dominante ‘Atuante-objeto Dominado fa atribuigdo a0 atuante-sujeito do conteiido morte ou vida con- re & estrutura complexa seu cariter negativo ou positivo. £, portanto, por essa descricio qualificativa, que vamos co- mecar. b) Vida e morte. Ser4 mais simples apresentar inicialmente, sob a forma de esquema, 0 modelo qualificativo, tal como podemos constitui-lo, ‘com algumas alteragoes, a partir dos dados de T. Ylicel, e dar depois os elementos de sua interpretagio. © modelo qualificativo, apresentado adiante sob 0 a forma de uma estrutura hierdrquica, nao é outra coisa sendo a articulagio interna do conceito que denominamos, no nivel da hipétese sim- FE. por meio do lexema Existéncia. £ constituido de trés niveis iierarquicos distintos: 1. Nivel atuacional. Colocamos a Existéncia como uma es- trutura complexa, situada na dimensio noolégica, e comportando dois termos: vida e morte, cuja articulagio além disso, é subli- nhada pela disjuncdo concomitante da categoria “euforia” vs “disforia”. Precisamos, por outro lado, que anteriormente a toda investidura, os dois termos estruturais vida e morte podiam ser considerados, ao nivel da manifestacdo figurativa, como duas déixis, Mas, 20 mesmo tempo, por serem suscetiveis de receber 295 [sine aa 2 qualificagdes, seu estatuto sintdtico é o dos atuantes: Vida e Morte so, pois, dois atuantes-déixis, e as qualificagSes que fornecem sua vestidura semfntica caracterizam, de uma sé vez, dois espacos noolégicos distintos: 2. Nivel semémico. As qualificacSes dos atuantes esto pre- sentes no modelo sob a forma dos sememas, constru(dos 4 partir das mensagens qualificativas e servem, de maneira bem inesperada, de relé entre os atuantes e os semas; 8. Nivel sémico. A construgio dos sememas tepousa sobre uma anélise sémica que permite constituir as ocorréntias em clas- ses paralelas, que se acham disjuntas pelas oposigies sémicas. Em outras palavras, 0 modelo é 0 resultado de uma descricio sémica que se junta & estrutura atuacional, colocada como hipétese de partida, e a verifica. As categorias sémicas constituem, por si mesmas, a rede taxindmica subjacente ao conjunto do modelo, que, por ser conotado inteiramente pela categoria proprioceptiva, aparece como um modelo axiolégico. 296 ito aos sememas-relé, seu estatuto estrutural est ainda por sado: bem paradoxalmente, sua homologacdo parece prece- ‘aqui, sua redugio. De fato, se os sememas de vida esto, pelas des sémicas, em correlacio com os de morte, tanto uns ‘outros constituem apenas dois inventarios, cada um dos quais rta seis sememas, cuja articulacdo interna nao é evidente. Observacaio: A prépria descricao sémica deixa a desejar algumas vezes: 0s semas aparecem tanto como elementos quanto como contetidos sémicos analisiveis em unidades menores. Pede-se ao leitor dar mais importincia ao procedi- mento metodolégico que & exatidao dos pormenores. /¢) 0 fogo. A redundancia ocorrencial da vida mutével e da morte imu- ‘tavel & considerdvel na iteracdo de Bernanos: a oposicdo sémica “dinamismo” vs “estatismo” parece, & primeira vista, fundamental para a anélise de sua axiologia. Isso, no entanto, néo quer dizer que o atuante-vida seja unicamente caracterizado por funcies, enquanto que o atuante-morte o & por qualificagbes. Vida e Morte sio inicialmente duas déixis: e é somente depois que a Vida é qualificada como um espaco mével e a Morte, um espaco imével. O cardter mut4vel da vida pode, no entanto, servir de ponto de partida que permite a articulagio dos sememas dentro do inventirio, que deve ainda, como o vimos, ser sistematizado. A mudanca pode ainda ser interpretada como uma alteracio, isto 6, como a passagem dindmica de um estado ou de uma “natureza” ‘a um outro estado ou a uma outra “natureza”: ela apresenta, por "isso, os caracteres de uma fungio a partir da qual podemos tentar desenvolver uma mensagem funcional. De fato, os dicionérios ‘usuais, em conformidade, alids, com a aceitacio corrente, definem ‘© fogo como produtor, pela combustio, do calor e da luz. Achamo- “nos, portanto, na presenca, de uma funcio de ordem etiolégica, susceptivel de receber dois atuantes, 0 destinador-causante € 0 destinatério-causado. A interpretagdo proposta permite, assim, reunir em uma sé mensagem trés dos sememas (Vi V2 Vs) do Inventério semémico de Vida: 27 V = F (mudanga) (As (fogo); As (calor/luz)}. Tal reformulagdo nos permite compreender o papel dos se- memas na economia do modelo axiolégico. 1. Ela nos situa, inicialmente, diante de uma dupla inter- pretacéo, aparentemente contraditéria, de Fogo. Determinada pela mesma classe de qualificagSes, Fogo, diziamos, é equivalente a Vida. Dentro da mensagem funcional que acabamos de formular, Fogo nio é sendo 0 atuante-destinador dessa mensagem: o fogo é portanto, ao mesmo tempo, fonte de vida e a prdpria vida. Em _termos lingiiisticos, podemos dizer que Fogo é suscetivel de funcionar, ao nivel da manifestacao, de dois modos diferentes: sintaticamente, Fogo 6 um atuante; semanticamente, ele é 0 repre- sentante hipotitico da mensagem funcional no seu conjunto e, como tal, 0 equivalente de uma parte das qualificagdes semémi- cas de Vida. 2. © mesmo funcionamenta estilisticn dé conta do estat bivalente de dw 9 de calor, ue pop rectene itera jovimento da vida”, mas também, hipotaticamente, equi procticse nics y ipot nte, equivalentes _ Observagao: A oposi¢ao calor vs luz serve ainda para dicotomizar 0 ser noolégico: enquanto clareza e transparén- cia, a luz d& conta da “alma espiritual”, ao passo que o calor remete A “alma corporal”. Infelizmente, néo podemos entrar em maiores detalhes. 3. A utilizagao hipotética dos atuantes permite, assim, com- preender 0 papel de relé atribuido aos sememas: enquanto atuan- tes, eles se subordinam A estrutura da mensagem funcional pelo qual se define, em parte, o atuante-déixis Vida: enquanto con- teidos qualificativos, os sememas positives entram, um por um, em oposicgo a seas congéneres negativos it - tetido de Morte. : ee a ee he Uma conclusio provissria, de ordem metodoldgica, pode ser proposta_nesse estégio da anilise. Se tomamos os’ Sememas V;, Va, Va como definigSes positivas de Vida, sua andlise em semas permite considerar, pela colocacéo em evidéncia das cate- gorias sémicas, a transigfo em direcdo As definigdes negativas de 298 constitufdas pelos sememas negativos nfo V1, nfo Vs, nfo Vs \dos nas definigées positivas de vida — a afirmacio da enquanto ealor implies, por exemplo, a afirmagio da morte uanto frio. _ Se isso é verdade, podemos dizer que a estruturagio do inven- o dos sememas que constituem as definigées negativas da orte nao é mais necessdria: sua articulacdo nio faz senio refle- ‘a organizacao das definigSes positivas da vida. O mesmo vai wr com as definigées negativas da vida: bastard propor um ipio explicativo da organizaco das definic&es positivas da e para que as primeiras possam delas ser deduzidas meca- ite. @) A égua. -Vimos que a morte se define, por oposicio & vida, que é mudanca, como imobilidade. Se, ‘conseqiientemente, interpreta- mos a mudanga como a passagem dinimica de um estado (ou ‘de uma natureza) a outro estado (ou a outra natureza), a imo- bilidade deve definir-se como um estatismo, isto é como uma ~ permanéncia (ou no méximo como uma iteragio) de identidades ‘ou de alteridades. Seria supérfluo retomar uma por uma as definigdes negativas da morte: elas se deduzem a partir das definigdes positivas da Vida. Assim, s6 0 fazemos para sublinhar um trago estrutural que elas comportam, o da nfo necessidade. Tomando emprestado, metaforicamente, o exemplo da categoria de género, que carac- “teriza no francés a classe nominal, poderiamos dizer que as defi- nigdes positivas da vida so “substantivais” e fixas, ao passo que as definigdes negativas da morte sio “adjetivais” e varidveis: do mesmo modo como o género fixo adere aos substantivos, calor ‘se combina com foge, ao passo que égua admite um paradigma varidvel: a &gua pode ser fria, morna ou quente. Poderiamos, talvez, formular esta distingaio de um outro modo, dizendo que 0 contetido positivo de Vida & francés, isto é, social, ao passo que © contetido negativo de morte € préprio, de Bernanos. isto é, individual. Seja como for, a anilise de um dominio preciso faz aparccer a existéncia de certas critérins de “semanticidade” que merecem um exame mais aprofundado. 299 _ A 4gua é, no entanto, susceptivel, ao mesmo tempo, de defi- nig&es positivas, que nos propomos a interpretar no quadro da estru- tura complexa da 4gua. Em relagdo & vida, que € uma consecugio de identidades e de alteridades e que pertence retoricamente a ordem da anti tese, a morte é a apreensio simultdnea de identidade e de alteri- dade, e depende da ordem da antifrase. Analisada como uma articulagao particular da estrutura elementar da significagio, ela se identifica com seu termo complexo: identidade mescla alteridade ee yg es We (positivoy “* (complexo) ** (negative) Observacao: Na anilise sémica que utiliza a terminologia de Bernanos, seria, pois, necessirio introduzir a correcio: pureza = identidade; impureza = (identidade + alteridade). “Limpeza” e “Sujeira” nao seriam sendo redundancias, de ordem sobretudo visual, dessa oposicio. Se inscrevemos a “mescla” como primeira definicio da morte, & sobretudo porque esta “estrutura do misto”, talvez esclareca as razSes que impulsionaram Bernanos a escolher dgua como equi- valente de morte, escolha que nao parece muito restritiva. Isto porque, estabelecida esta equivaléncia, as outras definicées posi- tivas se integram como articulacées particulares, capazes de ma- nifestar 0 termo complexo de sua estrutura. Assim, no eixo da consisténcia, a gua se situa a meio termo dos dois elementos polarizado: gasosidade liquide solidez ———— vs ———__ ys —___ (positivo) (complexo) (negativo) De fato, a égua nfo é nem sélida nem gasosa: ela é ambos a0 mesmo tempo. O fogo, que sé define negativamente por sua consisténcia gasosa, ndo se opce, como vemos, ao seu termo positivo, mas ao termo complexe. Comportande assim a dgua os dols termos da categoria sémica, é a partir do termo complexo, considerado como 300 jo positiva, que se deduz o termo simples, considerado emo ¢efinicio negativa da vida, e nio o inverso. “Se nossa interpretaco esté correta, até aqui, a articulacdo nplexa deve ser encontrada analisando-se os semas constitu- tivos do semema informidade. Assim, o incolor, embora apareca, primeira vista, como o termo negativo que se opde a cor, ompée-se, uma vez considerado como eixo sémico, em uma ca tegoria “negro” vs “branco” capaz de engendrar o termo com- ‘plexo, isto é, 0 cinza, que comporta todas as variaces da cor ja. Da mesma forma, a monotonia nao € sendo a iteracio da msecucio “identidade + alteridade’, isto é, da mudanca apre- ‘endida como permanéncia. Podemos, sem grande dificuldade, apli- car 0 mesmo raciocinio & insipidez. O semema “informidade” ‘aparece, portanto, como a manifestacao da estrutura complexa em todas as ordens de sensacio constitutivas do espaco nooldgico da _ morte. __As definigSes positivas da morte devem ser, pois, consideradas como redundancias da estrutura complexa, apteendida sucessiva- mente, gracas a investiduras suplementares, na sua natureza mista, no carater “consistente” de sua extensio e, finalmente, nas arti- culagées complexas de seu espaco sensorial. Em relagio a estas, as definigées negativas da vida (que no tém, é claro, nada de “negativo”) se deduzem e se afirmam como termos positivos, obtidos pela supressio dos termos negativos das estruturas com- plexas. Observacao I: Poderfamos tomar — se quiséssemos apro- fundar a andlise — uma por uma todas as articulagées sémicas ‘complexas, para estudar as condigdes da supressio de’ seus elementos negativos. Observacao I: £ preciso acrescentar uma palavra a res- peito da articulagio sémica “elevagio” vs “queda” que inserevemos como definidora dos sememas “mudanca” vs “{mobilidade”. Trata-se, de fato, de uma combinacao sémica onde 0 movimento (mudanca no espaco) esta sobredeter- minado pelo sema “leveza” que Ihe imprime a direcéo ascen- sional: a imobilidade, por sua vez, combinando-se com “peso”, determina a direcdo descendente da queda. 901

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