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‘A diversidade dos modos de interpretagdo é um trago marcante do estdgio atual da critica literdria, Estilistica, biografismo, dialética, estruturalismo, psicanilise... Foram tantos os caminhos jé wilhados que correntes até hé pouco tempo divergentes hoje convivem lado a lado na explicagao de um texto. Em Leitura de poesia, vito importantes autores brasileiros — entre cles Joao Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Mario de Andrade e Murilo Mendes — sao interpretados por nomes representativos da critica universitéria, compondo uma amostra significativa das diferentes formas de ler uma obra poética ISBN 85-O8-ObL21-8 (nu Leitura de poesia Alcides Villaca Alfredo Bosi Benedito Nunes Fabio de Souza Andrade Joao Luiz Lafers Jorge Koshiyama José Miguel Wisnik 3 Murilo Marcondes de Moura Alfredo Bosi (org.) “Quisesse alguém mapear as correntes cruzadas ou paralelas dda critica recente, deveria fazer 0 trabalho de um cartégrafo de meandros.” A decliragao ¢ do cetftico € historiador da literacura Alfredo Bosi e espelha com pre- iso a multiplicidade de leituras que caracteriza a interpretagio da obra poética em nossos dias. Estilistica ou estruturalismo? Histéria literdria, psicandlise ou sociologia da literatura? Herme- néutica, semiética, leitura dialé- tica... Foram tantos os caminhos ja trilhados pela critica que a de- cisio sobre a validade deste ou daquele método de abordagem do fendmeno estético tornou-se tuma questo central dos estudos literérios. Leitura de poesia & um bom exemplo desta diversidade dos modos de ler 0 texto poético. Concebido e organizado por Alfredo Bosi, este livro retine ané- lises de oito intérpretes em torno de oito autores, Aqui esto nomes representativos da moderna poe- sia brasileira — Jodo Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Leitura de poesia FRANCA SHOPPNG| ee mae ‘A diversidade dos modos de interpretagdo é um trago marcante do estdgio atual da critica literdria, Estilistica, biografismo, dialética, estruturalismo, psicanilise... Foram tantos os caminhos jé wilhados que correntes até hé pouco tempo divergentes hoje convivem lado a lado na explicagao de um texto. Em Leitura de poesia, vito importantes autores brasileiros — entre cles Joao Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Mario de Andrade e Murilo Mendes — sao interpretados por nomes representativos da critica universitéria, compondo uma amostra significativa das diferentes formas de ler uma obra poética ISBN 85-O8-ObL21-8 (nu Leitura de poesia Alcides Villaca Alfredo Bosi Benedito Nunes Fabio de Souza Andrade Joao Luiz Lafers Jorge Koshiyama José Miguel Wisnik 3 Murilo Marcondes de Moura Alfredo Bosi (org.) Leitura de poesia Alcides Villaga Alfredo Bosi Benedito Nunes Fabio de Souza Andrade Joao Luiz Lafers Jorge Koshiyama José Miguel Wisnik Murilo Marcondes de Moura ta Alfredo Bosi (org.) Série Temas Volume 59 Literatura brasileira Editor Fernando Paixio Editor assitense Ouacilio Nunes Preparagio de texto Carla Moreira Projet grdfica de capa e mialo Homem de Melo & ‘Troia Design ISBN 8508 06121 8 Impressio Grifica Palas Athena 1996 Editora Atica Rua Bardo de Iguape, 110 CEP 01507-900 — Sio Paulo — SP Caixa Postal 8656 ‘Tels PABX (011) 278-9322 Fax (011) 277-4146 ls emia ie Sumario Sobre alguns modos de ler poesia: memorias e reflexdes Alfredo Bost Nota do organizador A tepresentagao do sujeito lirico na Paulietia desvairada Joao Luiz Lafetd O lirismo em si mesmo: leitura de “Poética” de Manuel Bandeira Jorge Koshiyama Os jasmins da palavra jamais Murilo Marcondes de Moura A musa quebradica Fibio de Souza Andrade Expansio ¢ limite da poesia de Joao Cabral Aleides Villaga “fragmento” da juventude Benedito Nunes Cajuina transcendental José Miguel Wisnik A intuigéo da passagem em um soneto de Raimundo Correia Alfredo Bosi 49 SI 79 101 125 141 171 191 221 ‘Traduzindo: “Se nos dispomos a considerar qualquer poe- ma para determinar 0 que nos faca julgé-lo como tal, discerni- mos ao primeiro olhar, constantes ¢ necessérios, dois elementos: um complexo de imagens e um sentimento que o anima”. Tudo o mais pendia dessa visada ao mesmo tempo simples ¢ profunda. O exemplo que ilustrava a doutrina era tirado de Virgilio. Diga-se de passagem, o poeta de Eneida repousa na mesma N4po- les onde viveram e morreram Croce ¢ 0 seu mestre Vico. Croce analisa 0 trecho do Canto 'Terceiro em que Enéias conta como aportara no Epiro onde reinava 0 troiano Heleno com André- maca. Desejoso de ver aqueles seus concidadaos escapos ao de- sastre, Enéias vai ao encontro da rainha fora dos muros da cidade em um bosque sagrado junto as 4guas de um arroio a que tinham dado 0 nome de Simoente em lembranga do rio que banha Tidia. Andrémaca estd celebrando ritos fiinebres diante de um ttimulo vazio onde erguera dois altares, um para Heitor, seu pri- meiro esposo, ¢ 0 outro para o filho Astfanax, Ao vé-lo, é tomada de pasmo e desfalece. Enéias recorda as palavras truncadas com que, retornando a si, Andrémaca o interpelara querendo saber se ele era homem ou sombra. Vem depois a resposta no. menos conturbada de Enéias que, por sua vez, Ihe pede que rememore © passado. E a evocago dolorosa e pudica de Andrémaca que revisita 0 seu destino de sobrevivente ao massacre, de escrava tirada em sorteio e feita concubina de Pirro, que no entanto a rejeitara ¢ a dera como escrava a Heleno; e a morte de Pirro por mio de Orestes ¢ a libertagio de Heleno que se tornow tei. Segue-se ao relato a procissao de Enéias com os seus pela cidade que, pequenina, em tudo imita a Tréia gloriosa e derruida dos antepassados comuns (Canto III, 295-355). Finda a leitura do epissdio, o que temos? Imagens de pes- soas, imagens de coisas, de gestos, de atitudes, nao importa se 8 ALFREDO BOST historicamente reais ou apenas vigentes na fantasia do poeta. ‘Nao imagens soltas nem avulsas, pois “através de todas elas corre © sentimento, um sentimento que nao é mais do poeta que nosso, um humano sentimento de pungentes memérias, de arrepiante horror, de melancolia, de nostalgia, de enternecimento, e até de algo que ¢ pueril e ao mesmo tempo piedoso, como aquela va restauragio das coisas perdidas, aqueles brinquedos forjados por religiosa piedade, da parva Troia: algo de inefivel em termos I6- gicos, e que s6 a poesia, a seu modo, sabe dizer plenamente”!. Feito 0 comentério ao texto virgiliano, Croce entregava-se ao trabalho asséptico de afastar do reino encantado da leitura estética tudo quanto a desviasse para fins considerados estranhos & matureza da arte. E ficdvamos sabendo que poesia nao é discur- so verificavel, quer histérico, quer cientifico; que poesia ndo é dogma nem ensinamento moral; nem, na outra ponta, € “senti- mento na sua imediatidade”. Nem pura idéia, nem pura emocdo, ‘mas expressio de um conhecimento intuitivo cujo sentido é dado pelo pathos que 0 provocou e o sustém. Nada mais, mas nada menos. Direi adiante da forca e dos impasses que essa doutrina continha em si. Entrévamos com outros mestres em outras drbitas: a esti- istica espanhola e a explication de texte. Alguns, mais afoitos, sal- tavam a barreira das I{nguas e se aventuravam pelos atalhos do new criticism anglo-americano tao sagaz na descoberta das ten- sbes ¢ das ambigitidades da linguagem poética. Creio hoje que, se nos tivéssemos debrucado mais atentamente sobre as obras dessa corrente, terfamos alcancado uma viséo mais matizada das relagoes entre a camada sensivel € 0 fio inteligivel do poema. Fora da universidade, scholars consumados como Augusto LEITURA DE POESIA 9 Meyer e Sérgio Buarque de Holanda jé tinham assimilado com inteligéncia as conquistas desse movimento que renovou nos fandamentos a critica literdria ocidental. Dentro da universida- de, porém, 0 prestante manual de René Wellek e Austin Warren, Teoria da literatura, que incorporava conceitos dos new critics ¢ dos formalistas, era lido, aquela altura, de maneira rasa ¢ didéti- ca sem que se discutissem a fundo as implicagées logicas das suas propostas. De resto, na academia nacional nunca houve uma firme tradi¢ao de estudos de teoria do conhecimento que, nos Estados Unidos e na Inglaterra, sempre alimentaram as polémicas entre racionalistas ¢ empiristas. Um livro como The meaning of the meaning de Ogden ¢ Richards, por exemplo, exerceu enorme influéncia nos cursos de literatura inglesa, envolvendo também a ctitica das artes visuais para a qual imagem ¢ idéia, {cone ¢ sim- bolo, concreto e abstrato so conceitos cruciais. No corpo do poema, segundo 0s peritos em close reading, a variedade das metéforas nao impede que um pensamento coeso ordene ¢ aclare as riquezas do fluxo verbal. Alias, é precisamente essa marca de coeréncia intelectual que um Allen Tate admirava na profusio imagistica da Divina Comédia, e que seu mestreT. S. Eliot apontava em Donne e nos metafisicos ingleses. Nesse ponto os new critics contornavam a dréstica oposigéo crociana entre conhecimento intuitive ¢ conhecimento racional. E aco- Ihiam como integrante do universo poético de Dante até mesmo © desenho doutrinal que sustenta a robusta arquitetura do poe- ma. Arquitetura que fora rotulada pelo pensador italiano como 1ndo-poesia, ou seja, estrutura conceitual distinta dos momentos ticos e figurativos que constituiriam a verdadeira poesia de cada episédio. Os new crities encareciam o valor das operagées intelectuais imanentes nos poemas fundadores. E afirmavam, sob a égide ora- cular de Pound e de Eliot, a existéncia de uma alianga tensa de 40 ALFREDO BOS ici fantasia artistica ¢ rigor de pensamento. A combinagio valeria nao s6 para a obra de Dante como para todos os poemas que vém resistindo & usura do tempo. Foi essa inteligéncia moderna da forma — rede de fios sensiveis e cognitivos — que permitiu a critica anglo-americana absorver elementos de andlise simbélica ¢ légica da linguagem. E, de fato, percorrendo a histéria literdria, a presenca crescente de uma poesia auto-reflexiva e metalingiifs- tica a0 longo do século XX parece ter dado razo aos anticrocia- nos, aos quais porém o fildsofo, imperturbavel, sempre respon- deu que 0 erro destes nao consistia em admirar as abstragGes insetidas no poema, mas em admiré-las chamando-as poesia. Poesia-imagem? Poesia-conceito? O problema nao é termi- nolégico. Tem uma dimensio histérica e se formulou com sensi- bilidade ¢ rigor na passagem do Neoclassicismo para o Roman- tismo. Esta a grande clivagem. Schiller na Alemanha e Leopardi na Itdlia testemunharam, entre tantos outros, a crise de uma pritica de poesia que vinha dos antigos e que fora revitalizada pela Renascenga. Chamaram a essa pratica poesia ingénua ou poe- sia da Natureza®, Ambos assistiram 2 mudanga de uma forma solar de arte para outra, dirfamos de segundo grau, em que a andlise do ex, com todos os seus desvaos de tédio e ironia, se dis- punha como tela mediadora e complicadora entre 0 poeta ¢ as forcas e imagens da vida. A nova poesia se dava como interpre- taco do sujeito em vez de figuragao da beleza césmica ou canto dos destinos dos povos; poesia sentimental, isto é, psicolégica, no dizer de Schiller; poesia metafisica, segundo Leopardi. E ambos temiam que o progresso da auto-andlise levasse ao afrouxamento dos lagos milenares entre o homem ¢ o divino, o homem e a na- tureza, o homem e a sua comunidade, e dai formacdo de uma literatura toda voltada para o seu proprio emissor, saturada de in- tengGes psicoldgicas ¢ intrusdes metalingtiisticas. Meio século mais tarde, Nietzsche, que amava os pré-socraticos, pensadores-poetas LEITURA DE POESIA ul da matéria cdsmica, chegaria a sentenciar temerariamente: “O de- senvolvimento do pensar consciente é prejudicial & linguagem”... Ora, foi precisamente o vetor da anilise psicolégica ou ideolégica que norteou parte considerével da produgéo literéria dos séculos XIX ¢ XX, quando, para bem e para mal, se deu o ascenso universal do modo de pensar burgués cada vez mais dis- tante da “ingenuidade” exaltada por Schiller. A sondagem dos mecanismos egéticos ¢ a reflexdo sobre a atividade textual (Flau- bert e Mallarmé ilustrem a afirmagao) obsedaram cada vez mais © sujeito da escrita, que s6 raramente péde langar-se & aventura da intuicéo pré-ldgica, aquele conhecimento auroral definido por Benedetto Croce como o passo primeiro da criacio estética. A lamina da autoconsciéncia fez uma cunha na superficie outrora lisa ¢ inteira da linguagem mitica, que j4 ndo péde mais refazer a simplicidade radiosa de Homero cujos versos semelhavam, na palavra de Schiller, “ordculos divinos na boca de uma crianga”. Os new critics, embora partilhassem 0 gosto poundiano pela poesia-imagem grega, latina, chinesa e provengal, ndo po- diam deixar de ser homens de um tempo penetrado até & medula pelo olhar introspectivo ¢ pela consciéncia critica: tempo em que a poesia virou aquela “coisa anfibia feita metade de imagem, metade de significado abstrato”, conforme constatava Coleridge na sua Biografia literdria?. Dal a alterndncia, nos seus ensaios, de observagées sobre a pujanca metaférica e sobre o nervo légico dos poemas que analisavam. Nos seus estudos j4 reponta, de modo Virtual, a leitura pés-moderna do poema como pluralidade de discursos em tensio. Com a diferenga sabida de que os new oritics ainda faziam critica sob o signo da unidade do eftita esttico, inspi- rados que foram por E. A. Poe e Baudelaire, ao passo que hoje... 12 ALFREDO BOSI Na Estilistica, que se difundiu aqui nos anos de 1940 ¢ 1950, ouviam-se profissées de fé no intuicionismo crociano. Mas 0 gosto era outro, um gosto espanhol. A lirica de Géngora ea sua frondosa descendéncia barroca foram reavaliadas com entusiasmo por Démaso Alonso, mas nao contavam com as sim- patias de Croce, refratério a qualquer complacéncia com 0 ma- neirismo. De todo modo, 0 procedimento pelo qual os mestres espanhéis penetravam 0 texto poético, filiando sempre imagens ¢ ritmos a suas matrizes existenciais, dependia, na raiz, da acei- tagdo da formula idealista intuiggo = expresso, que fora cunha- da pelo fildsofo da Estérica. A diferenca residia na maior atengao que a andlise estilistica dedicava aos fendmenos lingiifsticos, cor- rendo as vezes 0 risco de hipersimbolizar este ou aquele elemento fonético ou gramatical. Esta sobremotivagao do pormenor seria sempre um dos es- colhos da leitura estilistica para a qual a parole do poeta pode concentrar-se e revelar-se no uso de uma figura retérica ou na reiteragao de um determinado timbre vocilico. A relagao das par- tes (ou de uma sé parte) com o todo € um problema renascente para o estudioso do estilo enquanto uso particular de um sistema universalizante como a lingua. Apesar dessas dificuldades de método, os ensaios de Dé- maso Alonso, em Poesia espafiola, de Amado Alonso, em Materia y forma en poesia, ¢ de Carlos Bousofio, em Teorta de la expresién poética, lograram unificar, mediante a identificagio de um “mo- tivo inspirador”, os multiplos tragos de estilo que caracterizam poemas ou obras inteiras de poetas. A busca do sistema expressivo e da unidade tonal (temple animico) contrabalanga 0 efeito de fragmentagao que poderia resultar da andlise fonética ou ritmica mitida, ¢ é responsdvel pelas sondagens certeiras que Démaso Alonso fez nas Soledades de Géngora; e Amado Alonso nas sona- tas de Valle Inclén. A sua releitura parece-me ainda inspiradora LEITURA DE POESIA 13 alguns de seus procedimentos de andlise continuam freqtien- tando os nossos trabalhos académicos, embora nem sempre se dé o;justo reconhecimento as suas matrizes tedricas. Aparentada com a Estilistica, a leitura circular proposta por Leo Spitzer também nos chegava as mios nas sess6es informais de Bettarello com quem um reduzido grupo de fitis discipulos fazia a chamada*“especializacdo” no biénio 1959-60. De Spitzer Kiamos a étima coletinea Critica stlistica e storia del linguaggio cuja edico fora sugerida ao autor pelo préprio Croce, seu dileto mestre ¢ amigos. Spitzer atualizava a idéia do circulo hermenéutico, que Dilthey redescobrira lendo 0 tedlogo romantico Frederico Schleiermacher. Interpretar o sentido de uma passagem biblica significava, para Schleiermacher, fazer um trabalho de ida-e-volta da intui- ao abrangente para a andlise de dados particulares, e vice-versa. A atengo as partes leva & percepgao do todo, mas, como se trata de um conhecimento induzido por olhares parciais, deverd ser confirmado (ou infirmado, em caso de engano) pelo exame de outros aspectos e assim sucessivamente até que a inteligéncia da totalidade venha a iluminar de modo justo cada um dos par- ticulares. A dialética de sentido espiritual uno e formas sensiveis miiltiplas tinha em Schleiermacher uma inequivoca inspiracao platénica. © circulo hermenéutico, reproposto por Dilthey para a leitura compreensiva de textos histéricos, foi aplicado por Leo Spitzer & interpretacéo das produgées simbélicas dentre as quais avulta a poesia. a4 ALFREDO BOS! O exercicio hermenéutico supde que vigore uma coeréncia interna entre as imagens que constituem uma obra poética. Para Schleiermacher toda representacio dispée de leis formais ima- nentes, motivo pelo qual no é um esforco arbitrério do intér- prete rastrear as relagdes que os momentos de um texto ou de uma composicéo musical entretém entre si ou com 0 todo. Essa procura de relagées significativas ¢ a alma da compreensio. Croce louva, no capitulo da Estérica que dedicou a Schleiermacher, a intuigao antecipadora deste fildsofo romantico que jé comparava, no inicio do século XIX, 0 poema ao sonho. Um sonho elabora-se com os mesmos processos simbélicos de um poema ao qual faltasse, porém, a tensao da vontade constru- que s6 se mantém quando a consciéncia esté vigilante. No poema é necessirio que ao momento da inspiragao, andlogo 20 dos fantasmas oniricos, se siga 0 momento da ponderacao, que traz A consciéncia os critérios de expressividade ¢ beleza na esco- Iha ou no descarte desta ou daquela solugéo verbal. A equacio poesia = musica + légica, sugerida por Schleier- macher, é acolhida por Leo Spitzer que a julga uma descrico exata da dialética que o miiltiplo das representagdes ¢ 0 uno do conceito travam na fatura dos discursos simbdlicos. Spitzer trabalhou galhardamente com diversos textos lite- ririos tanto do perfodo cléssico quanto do século XX. Racine estava entre as suas paixdes. E sempre com renovado prazer que leio o seu estudo sobre o famoso “récit de Théramene”. Trata-se da longa fala em que o velho servidor narra, na Phdre, o desastre fatal do seu amo, o jovem principe Hipélito, arrastado até & morte na praia de Trezena por seus préprios corcéis contra os quais investira, de repente, um monstro safdo das ondas do mar. ensajsta parte de uma visio de conjunto, o que é uma das alternativas do método hermenéutico. A histéria de Fedra seria uma tragédia de desengano. Ensinam-se aos grandes deste LEITURA DE POESIA 15 mundo as amargas liges da crueza divina e da humana impo- téncia. Venus ¢ Netuno, o impulso erdtico e a forga do mar, uniram-se para levar & desgraca uma familia real. Essa primeira abordagem, macroscépica, de sentido da obra, que é a intui- géo do seu étimo espiritual, passard depois pelas malhas da leitura microscépica, a qual poderd, ou no, ratificd- tanto, o analista pe em relevo trés aspectos estilistic de Théraméne que lhe pareceram, & primeira vista, intiigantes, logo sintomdticos de um Racine ainda mal compreendido pela critica francesa tradicional: um Racine surpreendentemente barroco? O primeiro trago observado é a duplicidade semantica do verbo voir, empregado nao s6 com a sua denotagao neutra de “enxergar”, como também para exprimir 0 ato de perceber 0 mal que golpeou o rei Teseu e seus entes mais caros. Essa conotagio funesta enturva o olhar de Fedra que, influido por Venus, é peca- minoso (adiiltero e quase incestuoso) desde 0 momento em que a rainha o voltou para o seu belo enteado, Hipélito: Je le vis, je rougis, je palis a sa vue. O segundo trago € 0 uso da atenuacio clissica. O poeta precisa abafar ou sublimar a violéncia origindtia dos conflitos inserindo nos momentos traumdticos certas express6es intelec- tuais ou morais. E um velho sébio este Théramene que comenta 0s fados das personagens. O sangue do principe derramado por obra do monstro marinho é son généreux sang. Do cadéver dilace- rado diz ce héros expiré. O espetdculo da morte cruenta é qualifi- cado como ce désordre affieux, expresso na qual o epiteto emo- tivo (affrewx) é neutralizado pelo termo abstrato, déordre, que snomeia ¢ racionaliza, Por sua vez, o demonstrativo (ce) implica a distancia entre 0 narrador eo fato narrado. Sio todos indices que 16 ALFREDO BOSI remetem a uma vontade-de-estilo cléssica chamada a mediar a matéria trégica. Enfim, terceiro trago, a linguagem antropomérfica com que Racine descreve a natureza. A onda do mar reflui espantada ante a cena fatal. O verso — ‘le flo, qui Vapporta, recule épouvanté” — que jd fora censurado por leitores académicos da tragédia como pre- cioso e retorcido, serve de pista a0 exegeta moderno para sait a0 encalgo de outras imagens estranhas disseminadas na obra (0 sol que enrubesce, a negra flama), reforcando a suspeita da presenga de um veio anticléssico subterraneo mas aqui ¢ ali emergente no mais harmonioso dos dramaturgos. O olhar. A morte. A natureza. O olhar que se abre & luz é trevoso. A morte, com ser terrivel, é exemplar. A natureza, que parece estar fora, est dentro do homem. “Racine é claro, mas a sua clareza é densa de mistétio”. Nessa altura Spitzer jé pode fechar o circulo da sua leitura. ‘Tendo partido de uma percepgio abrangente de Fedra como tra- gédia do desengano dos mortais por obra dos imortais, desceu a tragos particulares de estilo que deram consisténcia & sua hipé- tese para, no fim, remontar & intui¢éo primeira, agora enrique- cida pelas sugestées do percurso analitico. Ir e vir: do todo as partes, das partes ao todo. Note-se que a escolha das pistas néo foi aleatéria. O deteti- ve recortou, de preferéncia, aspectos de algum modo desviantes, que Ihe pareceram sintomas de uma forma interna viva, no caso um complexo de sentimentos ¢ imagens mais rico e original do que 0 j codificado pela fortuna convencional do autor. O orga- nizador da antologia citada, Alfredo Schiaffini, acena, em uma passagem do seu prefécio, para o papel que a doutrina freudiana teria exercido na formago do judeu vienense Leo Spitzer. Embora faltem ao vocabulério da sua hermenéutica mengGes as LEITURA DE POBSIA 17 categorias psicanaliticas, é bem provvel que a leitura do desvio como sintoma aponte para uma afinidade com certas visadas semiol6gicas de Freud. De algumas hipéteses de Spitzer somos tentados a falar em verdadciras intuig6es clinicas. Quando, por exemplo, ele detecta na escrita do militante pacifista Henri Barbusse uma freqiiéncia inesperada de imagens violentas que juntam sangue e sexo. Ou quando topa nos textos vanguardistas de Jules Romains com tuma ficira de palavras “pouco decorosas”, como “tragar”, “expecto- rar”, “cuspir”, “escarrar”, no caso, “cracher” na acepgio de parir — expresses que remetem a uma visio brutalista da sociedade burguesa onde corpos coletivos ¢ anénimos ora absorvem ora expelem os individuos. Certas metéforas nao sé traduziriam esta- dos animicos habituais no autor como dariam forma a correntes ideolégicas supra-individuais e seriam portanto representativas de tenses que ocorrem no interior da sociedade. O circulo in- terpretante é assim alargado pela forca das préprias significagoes encontradas em dados particulares da leitura; ¢ 0 tado a que se refere a leitura circular receberd qualificagées psicossociais. Se uma hermenéutica exige previamente uma heuristica (arte de encontrar), é porque a heuristica é 0 melhor alimento do exercicio de compreensao. Técnica do clinico geral que testa com exames parciais miltiplos o seu primeito e intuitivo diagnéstico. Ou tacteio por ensaio e erro de um criptélogo diante de um hie- réglifo. Ou simplesmente faro de um Sherlock Holmes. Comparada com as sutilezas da Estilistica ou com as argii- cias quase divinatérias do circulo hermenéutico, a explication de texte, que nos eta dada por um professor suico, Alfred Bonzon, Parecia uma técnica estreita saida de uma tradigdo escolar em 18 ALFREDO BOSI que a raison raisonnante levara sempre a melhor sobre a intuigo co sentimento. Cartesiana primeiro, ilustrada em seguida, enfim positivista, a pedagogia liceal francesa seria pouco sensivel & mtisica ondeante e sugestiva do poema Iitico. Havia alguma verdade nesse juizo severo, mas também uma boa dose de preconceito que o idealismo germanico, secun- dado pelo italiano e pelo espanhol, se comprazia em espalhar. Sabe-se que a hegemonia francesa era um fato visivel a olho nu na Faculdade de Filosofia entre os anos 1930 e 1950. Daf a emu- ago com que outras culturas nacionais buscavam conquistar 0 seu lugar ao sol no terreno das Letras e das Ciéncias Humanas. Ea explication de texte com seu didatismo 3s veres rigido era, sem diivida, um alvo bastante fiicil de atingir... ‘Comeso pela justeza, ainda que esquemdtica, daquela apre- ciagao. De fato, na maioria das vezes, 0 que se pedia ao aluno de literatura francesa como objetivo tiltimo da leitura era explicar 0 modo pelo qual o poeta desenvolvera a idéia fundamental do texto. Presumia-se que todo poema devesse conter a apresentacao do tema, o seu desdobramento (em trés partes, de preferéncia) ¢ a conclusio. Salta aos olhos a analogia com o discurso argumen- tativo. Bom poema é 0 que tem comeco, meio ¢ fim. O comeco anuncia o tema, 0 meio 0 enuncia, o fim o remata ou recapitula. ‘A unidade semantica implicaria forte coesio sintética. analista deveria seguis, passo a passo, 0 encadeamento das ora- ges ¢ dos periodos. Ex-plicar quer dizer desdobrar, estirar 0 que esté enrolado, explicitar 0 que parece implicito, Tarefa que te- quer 0 uso de conceitos claros e distintos: “ce qui nist pas clair niest pas francais”. Para tanto, nada no poema deve ficar obscuro, alusivo, lacunoso ou avulso do sistema, As metéforas, por exem- plo, nada mais seriam do que comparagées as quais faltaria o nexo sintético da correlacio: “assim como” ou “tal qual”. Aristo- LEITURA DE POESIA 19 teles dixit. Era preciso aclarar ¢ declarar, com todas as letras, esse procedimento ret6rico mostrando qual termo semelha a qual, como € por que. O plenum inicial seria 0 discurso légico com todos os termos ¢ todas as junturas; faltando estas ou aqueles, cairfamos no metaférico. Note-se que a metéfora ¢ apenas uma entre as varias figu- ras catalogadas pela retorica tradicional. As outras também deve- tiam ser desdobradas e vertidas para a linguagem inequivoca dos conceitos. As figuras fariam parte de uma linguagem que nao é “propria”, pois os seus termos nao se ajustam univocamente aos respectivos referentes: s4o condensagées ou deslocamentos, acrés- cimos ou decréscimos, redundancias ou elipses, em suma, tropos ditados pela forga perturbadora da imaginacao e das paixdes que sempre véem de mais ou de menos. A explication as tratava como efeitos de estilo ou licengas poéticas, pois tais formagGes im- préprias seriam desvios (tese que sobreviveu longamente) de uma suposta norma lingiistica universal que regeria a comunicagio entre os homens. No limite: a linguagem prépria serviria & prosa; a linguagem figurada, 4 poesia. Deixando de lado uma critica de fundo que merece essa concepcao de linguagem (que é exatamente oposta 4 de Vico para quem a polissemia e as redes analégicas precedem e prefor- mam 0 conceito), é razodvel reconhecer que os manuais franceses chamavam a atengéo do aluno para a unidade (ideal) do texto para, em seguida, treiné-lo na andlise mitida das suas articula- ges. Para bem e para mal, a explication era um exercicio de abs- tragio. Igualmente proveitoso era o empenho de identificar 0 significado literal e preciso de cada frase e de cada palavra, recor- rendo com freqiiéncia aos diciondrios, &s artes poéticas e, quando © mestre era erudito, as fontes do texto, que inclufam desde a mitologia ¢ os cléssicos até obras contemporaneas lidas pelo autor do poema analisado. 20 ALFREDO BOS! Em alguns casos operava-se uma combinagio de andlise semantico-sintética do poema (qual a sua idéia principal? como se divide?) com informagées de biografia ou de histéria literdria: em que o autor é parnasiano? em que é simbolista? Esse ecletismo de método, que tamanho desdém provocaria na década de 1960 centre os estruturalistas puros, trafa talvez 0 desejo de compensar © esquematismo retérico de base pela busca de algum tipo de integragio do texto na esfera maior dos significados de valores, isto é, na cultura literdria que viu nascer © poema e com a qual 6 poeta dialogara as vezes dramaticamente. A entio, cdtedra de francés alternava aulas de leitura com exposigdes de histéria literdria com o fito de ministrar-nos elementos para claborar uma posstvel sintese. Na segunda-feira procediamos & andlise dos tro- pos constantes no poema Le lac; na quarta-feira éramos instrul- dos sobre as correntes romanticas de gosto e de pensamento que teriam influido na eclosio da lirica de Lamartine. Mas, forca é convir, para que a imbricacio de texto ¢ con- texto se efetuasse com rigor metodolégico seria necessério que 0 explicador relativizasse primeiro as suas categorias de andlise em ver de assumi-las como critérios de valor. Dada, porém, a filiagao académica do método, essa perspectiva dialética raramente se vislumbrava. Historicizando, pode-se dizer que o tempo da expli- cation era ainda o do Ancien Régime, entre cartesiano e neocléssi- co, a0 passo que o tempo da histéria literdria jé era século XIX... Falamos em critérios de valor. Quais seriam estes para a tradigéo didatica francesa? A integridade necesséria do texto de- pendia da escolha ou invengio (no sentido latino de achamento) de um tema tinico. A disposicéo linear das partes garantia ao poema a virtude indispensdvel da ordem. Enfim, a elocugio exata de cada significado daria & obra 0 mérito imprescindivel da clareza: LEITURA DE POESIA 21 Inventio: Integritas Dispositio: Ordo Elocutio: Claritas. Acontece, porém, que essas partes ¢ artes nao convém a maiotia dos poemas escritos a partir da revolugao romantica. Dai 0 dilema: ou o intérprete enfrentava 0 contraponto tantas vezes assimétrico mas fecundo de tradicéo literdria ¢ criagéo pessoal que enforma o melhor da arte contemporanea; ou, fixando-se no cinon das virtudes neocléssicas, rovulava anacronicamente como “defeitos” de fundo ¢ de forma a pluralidade de motivos, as rup- turas de composicao ou a densidade imagistica dos poemas que submetia ao seu esquadro. Porque unidade, ordem e clareza so apenas equilibsios funcionais, que obedecem as necessidades da representacio e da expressao, e nao atributos ontol6gicos a que © poema deva a priori conformar-se. A tigidez académica na hora do julgamento final néo esca- pava ninguém, nem mesmo 0 cléssico por exceléncia, Jean Racine. Como jé vimos, a narrativa de Théraméne foi afgilida de longa € ornada em demasia nio s6 pelos zoilos dos Setecentos como também pelos comentadores didéticos de Fedra em pleno século XX. Para entender os limites estéticos da explication de texte abra- se a edi¢ao da tragédia preparada para os estiméveis Classiques Larousse, muito difundidos entre nés pelos anos de 1950. Nela se encontram questdes de critica literéria do seguinte teor: “Leitura dos versos 1498-1570. A narragdo de Théraméne: a) & natural em si mesma? b) quais sa0 0s seus defeitos? ©) © que pode explicar esses defeitos? 4) acha-se alguma coisa de louvével nessa narracéo?”5 ALFREDO 8OSI Sugiro que se retome a tiltima pergunta da série acima vol- tando-a para a propria explication de texte: — Acha-se hoje algu- ma coisa de louvével nessa forma de leitura? Que a resposta venha do mesmo Leo Spitzer que, inspira- do em outras fontes culturais, seguia uma diregao aparentemente contréria & dos mestres-escolas franceses. Por duas vezes, entre- tanto, o admirével praticante do cfrculo hermenéutico fez um aberto elogio a explication. Lembro que o ensaio que dedicou & epistola “Les vous et les tu” de Voltaire, em que atribuiu aquela técnica mais, talvez, do que a sua rotina escolar nos dava: a capa- cidade de “buscar, nos particulares lingiifsticos do mais pequeno organismo artistico, 0 espirito ¢ a natureza de um grande escri- tor”. Outra referéncia positiva Ié-se no seu estudo sobre o poema de Keats, “Ode sobre uma urna grega”. Spitzer, cortigindo os “excessos metafisicos” de certo intérprete alemao de Keats, reco- menda aos leitores que adorem com simplicidade “a maneira francesa, pois esta sempre comega pela mais direta das pergun- tas; “de que é que trata todo © poema?”6, Percebo agora, tarde mas em tempo, que onde nés, jovens, acusdvamos drdsticas oposigdes, © amor & poesia trangava secre- tas afinidades. Quando o estruturalismo entrou em cena, nos meados da década de 60, a minha formagio de aluno de Letras jé tinha aca- bado. Restava percorrer 0 caminho das escolhas pessoais com todos os riscos que a liberdade traz. consigo. ‘Uma estada em Florenga no ano letivo de 1961-62 me fize- ra conhecer de perto uma cultura histérica ¢ estética muito densa que estava substituindo o idealismo de Croce, hegeménico du- rante meio século, pelo pensamento marxista de Gramsci e pelos LEITURA DE POBSIA 23 “reins existencialismos de pés-guerra. Em vez de Espitito as cate- fgonias-supremas passaram a set Histéria, Sociedade, Cultura, "Bxisténcia, Pessoa. No terreno da critica literdria, essas correntes, ‘entre'si dispares, postulavam uma integragao do texto na histori. cidade concreta dos seus valores ou na subjetividade criadora que the dera origem. Escolhendo para assunto de tese a narrativa de Luigi Piran- dello, eu me langava precisamente nessas diregées, que me pare- ciam complementares, pois o conflito entre a forma ptiblica do individuo (a sua persona) ¢ a sua vida interior e, dat, 0 processo movido aos constrangimentos da méscara social me pareciam entéo incompreensiveis sem 0 cxame do contexto ideolégico do ethos peculiar ao escritor siciliano. Andlise existencial ¢ hist6- ria cultural cruzavam-se ¢ 0 seu ponto de encontro acendia uma luz reveladora dos significantes produzidos pela escrita na sua busca de representacio ¢ expressio. Foi portanto com perplexidade que, voltando ao Brasil, me dei conta da virada neoformalista que a critica internacional estava dando sob a batuta de mestres franceses ou eslavos sediados em Paris. Entre a publicagéo da engenhosa andlise de Les chats de Baudelaire, feita por Jakobson e Lévi-Strauss em 1963, e edigao da Rhéworique générale do Grupo de Liége em 1970, a teoria lite- raria do ectimeno ficou literalmente tomada pela obsessio de des- cobrir, recortar ¢ classificar as estruturas lingiiisticas ¢ retéricas de todos os textos jamais produzidos pelo homo loquens. Roman Jakobson, Tzvetan Todorov, Gérard Genette, Claude Bremond, um certo Roland Barthes (anterior aos prazeres do texto), Julia Kristeva, A. J. Greimas e algumas revistas prestigiosas como Poétique, Tel Quel e Communications dedicaram um intensissimo labor analitico 20 projeto de identificar 0 cardter préprio da lite- rariedade da literatura, por oposigéo aos outros modos e usos da inguagem que suprem ay necessidades da comunicagio entre os 24 ALFREDO BOSI homens. A poeticidade mesma teve que passar pelas apertadas grades (grilles) de certos paradigmas cuja presenga lhe concedia registro de identidade. Ha paradigma projetado sobre a cadeia sintagmatica? Ha duplicagéo? Hé binarismos e paralelismos? A tima com A, B com B, sendo que AA se opée a BB? Entao, segu- ramente, hd fungio poética. Onde estava o fundamento cientifico dessa busca universal ¢ sistematica de redundancias? Sem duivida, na lingiifstica estru- tural fundada por Saussure e matizada por um lingitista sensivel 4 poesia, Roman Jakobson. A linguagem verbal supde a vigéncia de um cédigo no qual alguns poucos elementos parassemanticos se combinam, logo voltam periodicamente, para formar unidades de significacdo, os morfemas, os lexemas. Na cadeia de unidades significantes os elos iguais acabam repetindo-se necessariamente € com uma freqliéncia cada vez mais visivel e verificdvel. O que alids, o mecanismo de todos os cédigos: os elementos so pou- Cos; os arranjos séo miiltiplos e as repetigées so fatais, E cha- mam-se paradigmas ou padroes os subconjuntos de elementos que se reiteram de modo regular. Até af, 0 abc da lingiifstica estrutural. Ota, essa verificagéo do cardter sistémico da linguagem foi literalmente hipostasiada pela razao estruturalista sobre os retor- os regulares ou mesmo eventuais que ocorrem forgosamente em todos os poemas de todos os povos do mundo, desde os hinos religiosos arcaicos, as cangées de ninar ¢ os provérbios até 0s experimentos cubo-futuristas dos vanguardistas russos. O cédigo poético levaria ao mais alto grau de utilizagao aquela marca inerente a todas as Iinguas naturais ou artificiais, E | essa a base lingiiistica do conceito-chave, generalissimo, da leitura | estruturalista, a fungao potrica: a projecao do eixo das similarida des no eixa das contigitidades. oe A aceitagao da teoria rendeu mirfades de exercicios escola- LEITURA DE POESIA 25 res que botavam de pé com ingénuo espanto 0 ovo de Colombo. De fato, que poema jamais conseguiria subtrair-se aquela cons- tatagdo dbvia das regularidades lingiiisticas? Ritmo é repetigao. Metro & repeticao. Recorrem os morfemas de género, ntimero e grau bem como as flexes pronominais ¢ verbais. A morfologia é um esquema de classes que necessariamente se repropdem e se combinam, O mesmo se dé com a sintaxe: sujeito, predicado e complementos integram todas ou quase todas as frases. Bastava por em realce este ou aquele item, mostrando a sua recorréncia, ¢ © analista provava, as vezes a forca de diagramas ¢ flechas, que o que nio era igualdade (a=a) era diferenca (a#b), dita, para maior rigor do método, oposigao binétia. A parte o tom caricatural que este resumo poderd ter, 0 fato é que o estruturalismo, quando alheado da dimensio antro- poldgica e filosdfica que the dera Lévi-Strauss, entrou por um beco sem safda onde s6 procurava 0 que jé havia de antemao encontrado: a evidéncia dos paradigmas, o binarismo, o circulo do texto que remete a si proprio, do poema que a si préprio se persegue ¢ espelha. A isto chamou-se rigor. A superposigao de padrées da lingua ¢ procedimentos poé- ticos foi um ato de reducionismo Iégico que favoreceu uma pré- tica textual artificiosa e uma critica literdria carente da dimenséo hermenéutica. Mas, como diz 0 povo, de onde menos se espera dai é que vem. Do mesmo estruturalismo que supunha colher a esséncia do poético na ocorréncia de paradigmas, viria, paradoxal e fecunda, a pista para sair do impasse a que 0 constrangiam os seus esque- matismos de base. © mesmo Roman Jakobson, que estimulava ‘uma leitura intralingii(stica do texto, defendia com vigor a idéia da motivagio do signo verbal, pondo em dtivida a tese da sua arbitrariedade tal como fora enunciada por Saussure. ‘A motivacio € a janela pela qual a palavra respira fundo ¢ 26 ALFREDO BOSI se comunica com as energias da imaginacéo e do sentimento, tornando-se expressiva, ou com as formas do mundo, tornando- se representativa. A palavra motivada é pathos. A palavra moti- vada é mimesis. Se assim é, simbolismo e realismo voltam a ter voz no coro das teorias poéticas, ¢ as suas verdades, parciais mas seminais, jé no serdo mais recalcadas em nome de uma visio autotélica, pre- tensamente radical, da escrita artistica. Lembro-me do encantamento com que li, nas paginas da revista Diogéne, um ensaio de Jakobson intitulado “A la recher- che de Pessence du langage”. Nele acha-se a reconstituicio das vias teorias do signo claboradas desde os estdicos e Santo Agos- tinho até Peirce. As visadas do criador da Semiética — como a sua triparti¢fo dos signos em {cones, indices e simbolos — sio retomadas por Jakobson & luz da Lingiifstica moderna. Eas relagdes motivadas, logo nao-arbitrérias, entre significante, signi- ficado e referente so ilustradas com um alto mimero de exem- plos persuasivos que cobrem todos os niveis da linguagem. Fica evidente que a poesia atualiza e leva & maxima poténcia as virtua- lidades todas do signo e sobretudo a sua faculdade de dar nome a aspectos singulares da experiéncia. A palavra poética, assim pen- sada, deixa de ser letrume opaco e intransitivo para tomnar-se feixe de relages que prismatizam (valha a metéfora de Mallarmé) 0 som pelos sentidos e o sentido pelos sons, a imagem pelas idéias © a idéia pelas imagens. E 0 simbolo cumpre a sua vocagio multi- milenar de dar inteligibilidade & relacéo do homem com 0 mundo. Essa vocagio para o sentido ainda esté longe de ter-se esgotado: no por acaso, Roman Jakobson rematava o seu estudo com uma citaggo de Khliébnikov: “Eu compreendi que a patria da ctiagio std situada no futuro; é de ld que sopra o vento que nos enviam os deuses do verbo”7. Pergunto-me agora: de onde teria vindo a Jakobson a ins- LEITURA DE POESIA 27 piragéo para transcender os limites do seu préptio esquema didético das fungées da linguagem? Veio da sua convivéncia inti- ma com o melhor da poesia russa do comego do século, nao excluda a lirica de feicio simbolista. Veio dos tempos herdicos do formalismo de Moscou e de Sao Petersburgo. ‘Como se sabe, uma perseguicéo feroz comandada pela censura stalinista fez calar a voz daqueles pesquisadores que, desde os anos da Primeira Guerta Mundial, vinham dando contri- buiges originais & teoria do poema. Mas, gracas a iniciativas como a de Todorov, que compilou os principais textos dos formalistas russos em Théorie de la littérature (Seuil, 1965), ¢, no Brasil, & dedicacéo e competéncia de um mestre dos estudos russos, Boris Schnaiderman, pudemos enfim conhecer os trabalhos de Chklovski sobre a arte como procedimento; de Tinianov sobre a nogio de construgio e 0 conceito de evolugo literdrias de Ossip Brik sobre as relagbes entre ritmo e sintaxe; ou de Tomachevski sobre a estrutura do verso e a questo da temética. Nao cabe aqui mapear as teses do formalismo que foram amplamente retomadas pelos estudiosos dos anos 60 ¢ 70. O texto de Brik, por exemplo, sempre me pareceu particularmente agudo ¢ tem-me valido muitas vezes nas aulas de andlise rftmica de poemas brasileitos. No terreno especifico da leitura de poesia creio que se de- ‘vam ressaltar alguns aspectos histéricos e tedricos daquele fecundo movimento cultural. Os formalistas eram, acima de tudo, escavadores da pala- vra artistica. As suas primeitas € mais audazes intervengées foram ditadas pelo clima polémico que se difundiu na Rissia no pri- meiro quarto de século envolvendo simbolistas ¢ anti-simbolistas entre os quais avultavam pela militincia os futuristas. Era uma uta nao s6 literdria mas também ideolégica, pois alinhava, de uma parte, os defensores de um passado neo-romantico ¢ espiri- 28 ALFREDO BOSI tualista ¢, de outra, os arautos de um futuro que apostava no fazer técnico e nos moldes de um pensamento materialista, Este cardter futurista de ruptura com as potticas do século XIX seria responsével pelo tom radical irreverente dos manifestos do Circulo de Moscou.e da OPOIAZ, Sociedade para o Estudo da Linguagem Poética (1916), que foram as primeiras agremiages dos formalistas. F hipétese corrente na historiografia sobre o formalismo russo atribuir aquela sua disjungao cortante de linguagem poética versus linguagem de comunicacio ao projeto futurista de criar uma arte inteiramente diversa tanto da tradigao literéria quanto da fala cotidiana, “a arte libertada da vida” ou “a arte como artifi- cio”, no dizer do jovem Chklovski, Em contrapartida, 0 conceito jakobsoniano de motivagio acabou reatando os dois termos, atte e vida, postos em contraste, ao afirmar que entre linguagem cotidiana ¢ linguagem poética no hé fosso intransponivel, apenas uma diferenca de grau ou de intensidade. O cédigo lingiifstico de ambos afinal ¢ o mesmo. A teoria da motivacio, cujos ascendentes estio no Cratilo platénico, na Cabala, nos romanticos ¢ nos simbolistas, insere 0 leitor de poesia em um universo existencial amplo, 0 mundo-da- vida que, em ultima instancia, é 0 mesmo universo do leitor de obras ndo-literdrias. Enquanto o conceito de fungao poética ten- dia a deslocar 0 texto para o pélo da linguagem centrada em si mesma, 0 conceito de motivagao potenciava os procedimentos da fala corrente elevando-os ao plano da expresso estética. O que a hipétese da existéncia de uma fungao poética, em si, isola- va ¢ abstrafa, a idéia de motivacao dinamizava lancando 0 poema. no “gran mar dell’esere” invocado por Dante. A intimidade que os formalistas cultivavam com as fontes vivas da literatura permitiu-lhes transitar de uma posigéo exclu- sivista (“poesia néo € vida”) para uma posigdo integracionista LEITURA DE POESIA 29 (“poesia também é vida), o que desnorteia o leitor de hoje preso no fraseado de efeito que ilustrava ora uma ora outra proposta. TTemos hoje distancia para avaliar a densidade oculta naqueles paradoxos ¢ exploré-la em mais de uma dimensio. Cito, a propésito, a controvertida definicao de Chklovski de arte como procedimento. Tomada em abstrato, é um lema ultraformalista ¢, como tal, serve de escudo a jogos maneiristas. No entanto, vista no seu contexto, essa formula abre-se para 0 projeto maior de aproximar linguagem poética ¢ percepgao origi- nal de pessoas e objetos. O procedimento do poeta-inventor nao é um mero expediente retérico auto-ostensivo (“semostradeiro”, como diria a Emilia de Lobato), mas um modo da percepgéo pelo qual o olhar singulariza 0 objeto ¢ o liberta das camadas con- vencionais do uso instrumental que dele se fez ¢ faz. O novo em poesia nao € efeito de arranjos cerebrinos de fonemas ou de palavras: arranjos que, com graga e propriedade, os italianos chamam de freddure, frioleiras, dada a baixa temperatura poética que 0s ditou. Ao contrario, o novo depende de uma ingenuidade radical do olhar e do sentir que atenta para a coisa ¢ a diz como se o fizesse pela primeira vez. Ingenuidade no sentido que lhe atribuiu Schiller no extraordindrio A poesia ingénua e sentimen- tal. S6 0 poeta ingénuo é génio, afirmava Schiller, e, enquanto genio, capaz de criar novos procedimentos de expressio. ‘Nessa ordem de idéias, 0 estranhamento que a grande poe- sia em geral provoca, longe de ser um attificio forjado para com- plicar a frio a relagio do leitor com 0 texto (“E del poeta il fin la meraviglia’, dizia Marino), provém da agudeza de intuigao e da intensidade de sentimento do eu lirico em face de um mundo que ainda novo e imprevisto apesar de gasto por séculos e sécu- Jos de uso ¢ convenco. Futurismo e simbolismo — discordantes em quase tudo — convergem aqui para renovar por dentro o off- cio desautomatizador da palavra pottica. 30 ALFREDO BOSI Essa leitura transformalista que proponho dos conceitos afins de motivagao, singularizagao ¢ estranhamento é confortada pela interpretacio que Ihes deu o mais completo dos historia- dores do formalismo russo, Victor Erlich: Observemos sambém, sem invalidar as afirmagées de Cohlowski, que o seu conceito de arte como redescoberta do mundo era vizinho do conceito tradicional mais do que o ert- tico formalista o. admitiria. Como sublinharam Wellek e Warren, a idéia de estranhamento néo era absolutamente nova, Jd Aristételes estava consciente do fato de que um estilo pottico perfeito no pode dispensar certas palavras incomuns, Também a estética romantica, como Coleridge e Wordsworth, vin no senso de novidade ¢ de frescor uma das caracteriticas da verdadeira poesia. Do mesmo modo, para os surrealistas, a arte é fundamentalmente um renascer da admiragiio, um ato de renovagio’. ‘Ainda segundo Erlich, a concecio de poesia de T. S. Eliot, expressa em The use of poetry and the use of criticism, lembra de perto a tese da singularizacao: A poesia, [escreve Eliot), pode ajudar a romper 0 modo convencional de perceber e de julgar [...] ¢ faz ver as pessoas mundo com olhos novos ou descobrir novos aspectos deste. De quando em quando, ela pode dar-nos uma consciéncia ‘mais ampla dos sentimentos profundos, ignotos, que formam © substrato do nosso ser, ao qual bem raramente acedemos; porque a nossa vida 6, em geral, uma continua evasio de nbs mesmos e do mundo vistvel e sensivel?. LEITURA DE POESIA 31 Maio de 68. Liam-se intensamente Jakobson ¢ Todorov, Genette e Bar- thes, em 68, precisamente quando o radicalismo de esquerda es- pocava em Paris ¢ periferias 20 mesmo tempo que no Brasil a ditadura militar entrava pela fase do terror. Apice do estruturalismo coincidia com a explosio de todos os marxismos. Na Franca de maio de 68 uma revista como Tel Quel, obra coletiva de Sollers, Barthes, Kristeva e Derrida, engenhava meios e modos para fundir estruturalismo lingitistico ¢ materialismo, no que acompanhava, mutatis mutandis, os esfor- os de Louis Althusser para reler O capital em uma chave reso- lutamente anti-historicista. Na Universidade de So Paulo o centro irradiador da teoria literdria, a personalidade rica e mediadora de Antonio Candido, se abria democraticamente as novas correntes, embora sem perder de vista 0 horizonte social e histérico que dissolvia toda rigidez formalista segundo a boa ligio dos professores franceses ativos nos primeiros anos da Faculdade de Filosofia. Fora da USP, 0 estruturalismo vingou depressa e sem maiores contrastes. Virou propriamente moda. [Nesse meio tempo, escapos ao nazismo, e jé naquela altura mestres de mais de uma geracio, Otto Maria Carpeaux ¢ Anatol Rosenfeld continuavam a exercer 0 seu magistério que expunha ¢ problematizava 0 idealismo, a sociologia do conhecimento, 0 existencialismo, 0 marxismo ¢ a psicandlise, fazendo ver que 0 estruturalismo estava longe de responder as questées fundamen- tais da nossa cultura. E entre estas questdes, as mais candentes para nés, amantes da poesia em tempos ag6nicos, eram as que aprofundavam as relagées entre Palavra e Histéria, Palavra ¢ Sujeito. Seguindo o rastro da memeéria pessoal, tantas vezes mistura- da com a histéria coletiva, vejo-me entéo perseguindo as zonas de 32 ALFREDO BOSI interseccio de fantasia poética ¢ imagindrio cultural: no caso, estu- dando os nexos de poesia e mito na obra de Giacomo Leopardi. estruturalismo de Lévi-Strauss lia 0 mito como uma sintaxe suprapessoal, uma bricolagem de motivos ou “mitemas” peculiar ao pensamento selvagem: 0 que era um convite para o analista ater-se as relagées formais e sincrdnicas verificdveis no texto, relegando ao plano das hipéteses incertas a compreensio da sua génese histérica e existencial. Em contrapartida, no cam- po da reflexaio hermenéutica, Paul Ricoeur, retomando Dilthey em chave fenomenolégica, mostrava que o mito poderia ser pen- sado no interior de um contexto de sentido e valor; contexto que variava conforme os momentos histérico-culturais. Pela abor- dagem hermenéutica, 0 mito poderia ser revivido e ganhar novos significados no interior da obra de arte. Essa possibilidade de remodelagem dos antigos mitos na histéria viva da poesia jé fora contemplada na obra mestra de Ernst Robert Curtius, Literatura europtia e Idade Média latina, com a sua selva de tépicos renascentes; ¢ jé alicergara a proposta enciclopédica de Northrop Frye que, na Anatomia da critica, classifica os mitos ¢ os arquétipos recorrentes na literatura oci dental. Na esteira de certas sugestGes de Ricoeur, que se encon- tram na Symbolique du mal, procurei compreender tanto 0s mo- tivos idilicos e elegiacos quanto os motivos herdicos da poesia de Leopardi. Do ponto de vista do significado, Leopardi reelabora- va mitos centrais da tradicao greco-latina e biblica: a Idade de Ouro, o Parafso Terrestre, a Queda, o Prometefsmo utdpico. Daf © nome do ensaio: Mito e poesia em Leopardi. ‘A tentativa de imbricar 0 texto poético no proceso de longa duragao da histéria mitica era sedutora, mas criava mais de um problema, E o mais agudo consistia no aspecto remissivo do mé- todo: explicar uma obra do comego do século XIX pela retomada LEITURA DE POESIA 33 de topoi de um passado que a antecedera dle, ao menos, trés milé- nios. Para enfrentar a dificuldade do anacronismo era necessério, primeiro, demonstrar a permanéncia e a pregndncia de um ima- gindrio que atravessara tempos culturais diversos e que subsistia na meméria das representacess depois, historicizar, 0 quanto possivel, a temdtica do poeta moderno colocando-a em situacao: fo que era vidvel gracas & aberta polémica de Leopardi contra os idedlogos do seu tempo. Leopardi era movido por um amargo inconformismo em relagio a duas vertentes culturais que permeavam 0s cfrculos cul- tos da Europa ocidental entre a conquista napolednica e os anos da restauracdo: o passadismo medievista dos antigos nobres (de que seu pai era paladino nas Marcas pontificias) e 0 discurso superficial dos liberal-burgueses que, certos do seu promissor futuro econémico e politico, afirmavam a vigéncia de um pro- gresso facil que em breve estaria ao alcance de toda a humanida- de, Leopardi, como fariam Schopenhauer e o jovem Nietzsche, seus grandes admiradores na Alemanha, valorizava extremada- mente a poesia grega arcana, com seus mitos vitais, sobretudo os titanicos, afrontadores da prepoténcia olimpiana. Nem pesado passadismo nem leviano progressismo. A situagio existencial de Leopardi, que incluia 0s trabalhos da meméria cultural, nele precoce, levava-o a extrair da tradi¢ao simbélica aqueles temas miticos que melhor figurassem 0 seu proprio mundo-de-vida. Como leitor moderno de Leopardi cabia-me compreender como aqueles mitos tinham sido absorvi- dos pela sua concepgio de histéria em fungo contra-ideolégica. Ora, repensar o imagindrio de tempos remotos trazendo-o luz da consciéncia atual dos conflitos era também um dos alvos da visio dialética da cultura centrada na idéia de um desenvolvi- mento da prépria consciéncia através dos tempos. Nao me bas- tava, para tanto, recorrer ao culturalismo, que apenas constata a 34 ALFREDO BOSI petmanéncia do passado na meméria literéria. Eu precisava de uma teoria da cultura que desse conta da escolha leopardiana de resistir as forcas ideolégicas do seu presente mediante a refacgao das imagens miticas do passado em registro anticonformista. Em outras palavras, eu precisava de uma teoria da cultura que soubes- se lidar com a contradigdo entre consciéncia poética (que incot- pora em si a meméria) e pressio ideolégica. Uma teoria dialética da culeura, Verificou-se, ao longo dos anos 60, um processo de cliva- gem no pensamento de inspiragao hegeliana. Do lado italiano, que me era familiar, Benedetto Croce, hegeliano de centro, ja formulara a “dialética dos distintos”, pela qual arte ¢ filosofia sio formas diversas do Espirito que néo dependem mecanicamente das condigdes econémicas de vida do artista e do filésofo, pois, a seu modo, as representam ¢ as julgam, o que dava as criagoes simbélicas uma considerével margem de liberdade. Quanto a0 pensamento de Gramsci, cortigia polemicamente 0 idealismo manifesto nas posicées crocianas, mas, como estas, nutria um respeito profundo pela capacidade idealizadora ¢ projetante da cultura ¢ das atividades “poiéticas” que nao deveriam ser reduzi- das ao jogo nu e cru dos interesses, Ambos, Croce ¢ Gramsci, carreavam gua para 0 moinho de uma diferenciagao das préti- cas ¢ dos valores culturais. Do lado alemao, a polémica da era pés-stalinista era aspera. O materialismo hist6rico de Lukacs (de quem eu admirava ¢ admiro os ensaios sobre o romance de for- magio, 0 heréi problematico, o simbolo e a alegoria) vinculava resolutamente ponto de vista narrativo e ideologia de classe, mos- trando a eficécia ea positividade operante das relagées de pro- dugao no mundo burgués: o que evidentemente limitava aquela ampla margem de liberdade que Croce atribufa & intuicao lirica. Mas era precisamente essa positividade ubiqua ¢ coercitiva, pré- Pria das estruturas burguesas hegem6nicas, que a dialética nega- LEITURA DE POESIA 35 tiva de Adorno e Horkheimer contrastava em nome da liberdade revoluciondria, da inteliggncia critica ¢ da imaginacio estética. E, por trds da Escola de Frankfurt, iluminando ¢ desafiando o determinismo sociolégico linear, assomava a figura atipica ¢ pro- fética de Walter Benjamin, que viria a ser 0 nume do marxismo em crise. A leitura dialética da poesia encontrava em Adorno um texto candnico, 0 “Discurso sobre lirica e sociedade”, que eu fazia ler a todos os alunos de pés-graduagao desde 1970. Particular- mente feliz me parecia o trecho em que o pensador augurava uma interpretagao social da lirica que fosse capaz de dizer “até que ponto fica a obra de arte condicionada a sociedade, e em que medida ela a ultrapassa’. Outro momento forte do ensaio: “A grandeza das obras de arte consiste unicamente em revelar 0 que a ideologia oculta”!?, Leopardi fizera solitariamente esse percurso, conseguindo superar na sua Ifrica madura tanto 0 arcadismo erudito, dominan- te nos meios provincianos que freqiientara adolescente, quanto 0 medievismo de importagdo alema que, por volta de 1820, se inclinava para uma arte gotica, abertamente anticléssica. Leo- pardi rompera as malhas do tecido ideolégico que oprimia o seu ambiente literdrio e escavara a prépria dic¢ao até produzir uma forma que convertesse em imagem ¢ ritmo os seus impasses exis- tenciais. Sofrendo o presente insofridamente, ansiando pelo in- finito, Leopardi valeu-se dos Antigos para arrancar dos materia listas e dos estéicos um titanismo que, afinal, daria o timbre da sua voz. ao coro dos romanticos mais radicais. Comecou entao a gestar dentro de mim um conceito para © qual tendia a minha formacio espiritual, mas que demorou al- guns anos a vir & luz: 0 conceito de poesia como resisténcia. Nele reconhego hoje presencas ora difusas, ora pontuais, do existen- cialismo além de estimulos do pensamento dialético de linhagem 36 ALFREDO BOST hegeliana. Do existencialismo recebi largamente, desde os seus precursores, como o Kierkegaard de Aut Aut e 0 Max Scheler dos ensaios sobre a intencionalidade dos movimentos afetivos, até os seus pensadores cristios (0s personalistas Mounier ¢ Pareyson) e incréus: ¢ como teria sido possivel naqueles anos permanecer alheio as palavras de fogo que vinham de Sartre, de Camus, de Merleau-Ponty? No campo do pensamento dialético Croce me remetera diretamente a Hegel cuja Bstética e a Pequena ligica tomei pot livros de cabeceira. E a paixao politica daqueles mes- mos tempos de opgées radicais me.levava a bater em outras por- tas: Gramsci, Benjamin, Adorno, Ernst Bloch. ‘Mas ainda falta dizer a fonte principal: a leitura assidua de Giambattista Vico. Para este pensador original, anticartesiano em pleno século XVIII, © mito precedeu & razo assim como a linguagem poética preformou ¢ enformou a prosa do conccito. Na Scienza nuova o mito e a poesia sobrevivem nos tempos “civis” ¢ “racionais” de aparente morte da arte, assumindo entio regis- tos novos, quando néo estranhos. E nao tera sido essa estranhe- za que as vanguardas formalistas advertiram na grande pocsia moderna, dando-lhe o nome de “estranhamento” sem atinar tal- vez com os motivos histéricos das suas marcas de singularidade € marginalidade? A idéia de que a poesia (mitica, intimista, satirica ou uté- pica) néo ¢ liso espelho da ideologia dominante, mas pode ser 0 seu avesso ¢ contraponto, no me conduziu a retornos irraciona- listas. Tratava-se de entender a riqueza imanente do simbolo poético em uma perspectiva realista pela qual a poesia faz. parte do movimento histérico, é um dos seus modos de manifestar-se, € nao um seu epifenémeno. LEITURA DE POESIA 37 Quando me pus a redigir O ser ¢ 0 tempo da poesia, entre 1972 € 1976, o estruturalismo e a dialética hegeliano-marxista jé estavam cedendo lugar a um enfoque pluralista, descentrado, “pés-moderno”, do texto, visio que a andlise dos discursos pro- piciava e ilustrava. Foucault, ultimo Barthes, Lyotard e Derrida desconstruiam prazerosamente as teses sistémicas que tinham sido pacientemente construidas por Lévi-Strauss, Jakobson ¢ Al- thusser, ainda que nem sempre uma polémica drdstica de tudo- ou-nada mostrasse a divisio das aguas. A mudanga de perspectiva, ou melhor, de perspectivas ainda esté em curso. Confesso que, envolvido nos problemas que a dialética dos distintos ¢ a dialética negativa propunham a teoria do poema e & histéria cultural, mantive-me ao largo das formulagées ditas pés-modernas, em- bora pressentisse, nao sem angustia, a sua fora ambivalente de atracao e desagregacdo. Quisesse alguém mapear as correntes cruzadas ou parale- las da critica recente, deveria fazer 0 trabalho de um cartégrafo de meandros. As éguas, mal divididas, fluem umas nas outras. O que parecia por um momento unido estd prestes a apartar-se. O que, tempos atrés, cortia em leito préprio agora sc espalha ala- gando as margens ¢ impedindo que o desenhista separe com trago nitido os cursos principais e os seus afluentes. Tudo se con fande quando a matéria tende ao estado de magma. Estruturalistas ¢ marxistas, por tanto tempo desavindos, podem aproximar-se buscando mtituo apoio em face do adversé- rio comum, que ¢ a retérica do irracionalismo e do narcisismo sem limite. Subsiste, é verdade, um modo de ler 0 poema, ou 0 Tomance, como se este fosse uma rede de representagdes que teria sempre a ver com o sistema social abrangente e com os seus 38 ALFREDO BOSI conflitos ideolégicos: leitura que a alguns jé parece levemente anacrénica, mas que nasce de um esforco meritério de criticos que ainda apostam no sentido do uno-todo em devir gragas as contradig6es que o constituem. Em paralelo, hermeneutas ¢ psi- cocriticos dio-se, as vezes, as maos sempre que o tema lembre 0 mito ¢ as pulses inconscientes que 0 mito reapresenta e subli- ma. Se o fantasma do reducionismo sociolégico ow psicanalitico ronda essas leituras, deve-se lembrat que tudo depende da sabe- doria do intérprete. Quando este se abeira respeitoso da densi- dade do objeto estético, reconhecendo que a sua teoria, por mais cientifica € rigorosa que parega, nfo vai “explici-lo” uma vez por todas, mas apenas tentard compreender alguns dos seus signifi- cados ¢ dos seus processos de expressio, o risco de determinismo seré esconjurado desde o primeiro olhar do analista. Como o clima geral ¢ de pluralismo de visadas, que o vale- tudo do consumo cultural favorece e multiplica, o historiador de idéias poderd encontrar, & sua disposigao, exemplos das mais va- riadas tendéncias quer puras quer misturadas, Mas sempre sera possivel divisar no meio do labirinto alguns cortedores mais fre- qlientados que, provisoriamente, nos dao a impressio de valerem como sinais dos tempos. Pensando exploratoriamente: o que esté acontecendo neste final de século é um fendmeno de coabitagio de extremos. Dido 0s socidlogos que a civilizacao de massas anénimas tem por neces- sétio complemento a emergéncia do mais agudo individualismo. O eclipse do sujeito (a morte do autor preconizada por Barthes) coexiste hoje com a reivindicacao de que s6 0 sujeito empirico importa. No interior desse campo de polaridades expande-se uma critica literdria meio académica, meio jornalistica, estimulada Pelo mercado cultural em crescimento. A abordagem do texto Poético oscila entre um enfoque biogrifico, as vezes brutalmente LEITURA DE POESIA 39 projetivo, e uma leitura erudita saturada de remissdes e media- g6es de todo tipo. © que entendo por um enfoque brutalmente projetivo? Exatamente 0 oposto de uma das proposicées capitais de Croce pela qual “a poesia no ¢ sentimento na sua imediag0”; jufzo que se completa quando 0 filésofo pede que se distingam com cuidado a personalidade poética do autor ¢ a sua personalidade emptrica ou prética. Ora, a visada projetiva diz 0 contrdtio: a poesia vale como pura imediacio, explosao do desejo, da paixéo, do capricho individual, do sexo a flor da pele, do instinto de morte, dos lances do acaso e das contingéncias a que se reduz a maior parte de uma biografia. “Poesia”, diz um desenvolto pos- moderno da California, “€ tudo quanto eu quero chamar de poe- sia’, Descarta-se com uma penada a fungio simbélica, universali- zante e mediadora, da palavra literdtia e das redes culturais, tudo em favor da gestualidade selvagem da voz ou da letra. Serfamos tentados a falar em “novo surrealismo” ou em “novo expressio- smo”, caso nao tivéssemos consciéncia plena de que se trataria de um abuso, de uma extrapolagio: o surrealismo francés € 0 expressionismo alemao propuseram & arte inquietagées filos6fi- cas ¢ politicas de longo alcance que nfo se reconhecem nas ati- tudes pés-modernas violentamente projetivas. A histéria cultural no se repete, apesar das aparéncias em contrati ‘Mas a ctitica pés-moderna nao € sé impudente biografismo € autocomplacéncia sem medida. Inclui, no outro extremo, alta dose de sofisticagio, que se revela pela pritica de uma leitura hipermediadora. Valendo-se da histéria dos motivos e dos temas na litera- tura universal, essa leitura persegue os simulacros errantes de uma tradigao que precederia, no curso dos séculos, esta ou aquela metéfora, este ou aquele topos. Curtius, no epflogo que escreveu Para a sua obra monumental, opés a crenca na tabula rasa, 40 ALFREDO BOSI segundo a qual 0 poema obedeceria apenas & inspiragao imediata do poeta, & idéia do thesaurus, de barroca meméria, de que o es- criba enciclopédico extrairia imagens ¢ conceitos inserindo-os maneirosamente na sua composi¢ao!. A andlise hipermediadora ow hipercultural prefere sempre esta tiltima opcio. De fato, a meméria letrada, avolumando-se fatalmente com 0 passar dos tempos, parece dar boas raz6es ¢ velhas armas 4 metdfora do tesouro. Tudo ja foi dito, inclusive esta mesma sentenga. Nihil novum sub sole. Assim sendo, é tarefa do critic descobrir de qual poema antigo ou moderno 0 poema novo é re- facgao, glosa ou paréfrase. Retrocede-se a concepg6es retéricas seiscentistas para banir de vez a idéia de pligio. “O senhor sabe que todo texto é um intertexto?” — perguntou-me glacialmente em Paris uma especialista na marginalia de Flaubert, Prudente ouvie nada respondi. Quando 0 tom muda, mas o velho fraseio se mantém, diz-se que o poema € parddia ou carnavalizagéo de outro poema. Ou pastiche ou centio. As teorias de Bakhtin apli- cadas pontualmente a Rabelais so extrapoladas desabusadamen- te, A literatura nada mais seria do que um continuo espeticulo, variamente encenado, da prépria literatura. Textos gerariam tex- tos por partenogeénese. A imagem lirica jd ndo mais revelaria a abertura da palavra a existéncia como postulavam Croce ou, com diversa filosofia, os fenomendlogos ¢ seus discipulos existencia- listas; mas se resumiria na re-efetuagao de padrdes tropoldgicos produzidos alhures e reencendveis ad libitum. (Desculpe o leitor © involuntétio pedantismo, aqui inerente a0 método em causa.) Na hora da interpretagao do texto a andlise hipermediado- 1a vale-se do trabalho de pesquisa que hoje se faz intensamente no arquivo da histéria das representag6es ¢ das mentalidades. E, uma saida contextualizante que me parece saudével. E muito Provavelmente o computador ligado & Internet deveré colaborar cada vez mais eficazmente nessa busca detetivesca de exempla LEITURA DE POESIA 41 bem repartidos em temas, tépicos ¢ esteredtipos. Tudo 0 que é classificavel deverd ser arquivado e posto & disposigéo dos consu- lentes, ditos acessantes ou usudrios. As figuras retéricas e grama- ticais, que tanto serviram nos anos de 1960 para calcar leituras sistémicas, passam agora a ser instrumentos cortantes na obra de desmontagem textual e do correlativo fraccionamento do eu au- toral. Tudo isso faz sentido na estranha Iégica do caos contempo- raneo diante do qual deverfamos reagit como o estdico Espinos: no rit nem chorar mas compreender. A morada de duas portas: breve homenagem & meméria de Gaston Bachelard Entre os extremos do narcisismo sem raizes ¢ da cultura sem sujeito, é grato saber que ainda atrai mais de um leitor eritico um modo de perceber as imagens do poema capaz de abracar generosamente corpo ¢ historicidade, matéria e significagao. Falo da experiéncia poético-filoséfica de Gaston Bachelard que vem resistindo & atual crosio das propostas modernas ¢ se dé como alternativa a todo pensar destrutivo. ‘A formulagio crociana de que partiram estas reflexdes identificava na alianga de imagem e sentimento o ato fundante da poesia, Bachelard dé a ambos os termos um dinamismo novo quando chama para © campo magnético da significacio a ima- gem € 0 som, 0 corpo humano ¢ a matéria do cosmos. Estamos em face de um pensamento monista fecundo que nada subtrai & formagao do texto poético: nem a materialidade da voz, nem a fusio de corpo e mente peculiar & imagem, nem 0 mével do de- 42 ALFREDO BOSI sejo em transformagio, nem os fantasmas do sonho e do deva- neio, nem a energia unificadora do pensamento, nem enfim a pertenca do simbolo & meméria cultural. Com perspectiva original e néo-idealista Bachelard traba- Iha a idéia da uni-toralidade césmica e hist6rica que Croce havia, em registro hegeliano, postulado no seu admirével ensaio “O ca- réver de totalidade da expressio artistica’, escrito em 1917 rido mais tarde no Brevidrio de Estética, Cito uma das suas passa- gens mais incisivas: inse- Dar ao conteido do sentimento a forma artistica é dar-the «ao mesmo tempo o selo da totalidade, o sopro {afflato] césmico; e, neste sentido, universalidade e forma artistica nao sao duas coisas, mas uma, O ritmo e 0 metro, as correspondéncias ¢ as rimas, as metéforas que se abracam com as coisas metaforiza- das, os acordes de cores e de tons, as simetrias, as harmonias, todos esses procedimentos que os retoricos erram quando estu- dam de modo abstrato, tornando-os assim extrinsecos, aci- dentais ¢ falsos, sao outros tantos sindnimos da forma artisti- ca que, individualizando, harmoniza a individualidade com a universalidade e, por isso, no mesmo ato, universaliza™®, Segundo Bachelard, a fantasia artistica, que é imaginagao formal combinada com a imaginagéo material, desdobra ao nosso olhar atributos préprios da matéria viva, inconsciente, corpérea. Mas nem por isso a imagem resultante deixa de integrar um determinado “complexo de cultura” e de pertencer & histéria das ctiagbes estéticas da humanidade. © poema transita da cultura para a natureza, A palavra ‘motivada semantiza a natureza ¢, de torna-viagem, faz a cultura re-emergir das suas fontes vitais. O som da linguagem € matéria — aérea corrente saida do organismo humano — que os proces- LEITURA DE POESIA 43 sos mentais da significagao assumiram. Sensagées, sentimentos, imagens, idéias, tudo interage com tudo: E necesstria a unido de uma atividade sonhadora e de uma atividade ideativa para produzir uma obra pottica. A arte é natureza enxertada'3, Bachelard insiste na metéfora: 0 enxerto se faz porque 0 poema participa tanto da natureza, terra-dgua-ar-fogo, suporte das imagens, quanto da cultura, que é afinal a propria natureza que milénios de operagées simbélicas trabalharam ¢ afeigoaram. Essa dupla participagéo, que se reconhece na materia sig- nata da palavra, abre ao nosso olhar duas portas. Uma porta comunica com os labirintos do inconsciente onde se gestam as metamorfoses do desejo. Porta do sonho. A outra porta dé para os tesouros da meméria formados por mais de trés mil anos de tradicio letrada. Porta da cultura. Por amor & coeréncia de método ha intérpretes do poema que se créem obrigados a abrir somente uma porta. Deixam entrar assim uma corrente homogénea de dados ¢ relagées, mas pagam caro o preco dessa uniformidade de vistas, pois terdo em maos sé um elo da cadeia. Se abro apenas a porta que dé para a génese sens{vel das figuras do poema, arrisco-me a perder tudo quanto neste se deve ao estilo de época, a0 gosto literdtio, & poética em que se formou 0 autor, &s convengées de género e de metro a que © texto obedece, & t6pica e ao vocabulétio que tradicionalmente se associaram ao tema, a ideologia que ordenou o seu ponto de vista; enfim, deixarei de ver as dimens6es sociais a que nenhum poema jamais se subtraiu. Se, porém, eu abrir s6 esta outra por- ta, fechando a primeira, a minha interpretacéo acabaré desprovi- da de todo entendimento das operagdes que converteram o pathos em imagem (nesta imagem tinica, ¢ néo em qualquer 44 ALFREDO BOSI outta tirada de um repertério) ¢ nada saberei das motivagdes existenciais que forjaram a sua expressio neste ritmo, endo em qualquer dos metros que a histéria do verso oferece ao poeta culto. Bachelard ensina a ver no coragdo de um tema clissico, como, por exemplo, 0 carpe diem recorrente dos gregos aos drca- des, nfo tanto a retomada de um cliché ilustre quanto a intuigéo sempre renovavel de um momento de felicidade amorosa en- sombrado pela certeza da finitude e da morte que espreita toda carne. Entio cada imagem — a chama que diz. 0 ardor de Eros, © arroio que lembra o tempo em fuga, ow a terra fria sob a qual jazerdo os amantes — nos revelaré um sentimento delicioso e pungente, 0 sentimento que chamou 0 poeta ¢ os seus leitores para um presente denso, tinico, irrepetivel, embora a sua aparén- cia possa coincidir com as mil e uma versdes que do mesmo tema deram poetas de outros tempos ¢ lugares. André Chénier, bizantino de nascenga, neogtego por vo- casio, derradeiro dos cléssicos franceses, assim reconstrufa a sua livre conversagio com os antigos: Tantét chez un auteur j'adopte une pensée, Mais qui revét chez moi, souvent entrelacée, Mes images, mes tours, jeune et frais ornement; Tantit je ne retiens que les mots seulement; J’en détourne le sens, et Vart sait les contraindre Vers des objets nouveaux quis sésonnent de peindre's, A porta que abre para a tradicao literdria, por mais pistas de intertextos que faculte ao critico, néo deverd fazé-lo esquecer que cada poema novo, forte ¢ belo é um ato diferenciado de elocugao, ato de conhecimento, e no mero re-conhecimento do que jd foi sentido, imaginado e dito. LEITURA DE POESIA 45 Que Mnemosyne, mae das musas, ndo barre a entrada & epifania; a0 contrério, evocando-a ¢ invocando-a, abra-lhe a porta. Bachelard acalenta a idéia de uma afinidade arcana entre a matéria, tal como a concebiam os velhos alquimistas crentes na coincidentia oppositorum, a sensibilidade humana, as fantasias oniricas e as imagens poéticas: 0 que é outra maneira de pensar as relagdes de contigitidade e de semelhanga que unem o natural € © cultural. O respeito ao fogo, matriz da vida e agente da morte, advém de um aprendizado social encetado na primeira infancia; © que nao cancela o fato de cada nova queimadura ser uma ex- periéncia corporal irredutivel. A cultura, no caso, a educacao, pode preceder a natureza na vida da crianga, mas quanto ainda de selvagem e de misterioso continua & espreita no curso da sua existéncia! A “psicanélise da matéria’, que Bachelard inaugurou com La psychanalyse du feu em 1937, traca a rota que vai do onirico ao poético, mas o nosso pensador quis ir mais fundo e tocar a propria substancia de que ¢ feito 0 mundo: aqueles elementos primordiais, terra, gua, ar e fogo, que iro depois compor-se no imagindrio do texto. Reaparece a metéfora do enxerto: Os complexos de cultura estto enxertados em complexos mais profundos que foram trazidos & luz pela psicandlise. Como sublinhou Charles Baudouin, um compleso é essen- cialmente um transformador de energia psiquica. O complexo de cultura continua essa transformagto. A sublimagao cult ral prolonga a sublimagéo natural’, O fildsofo prossegue insistindo na sobrevivéncia (dirfa- ‘mos, na resisténcia) dos sonhos e das imagens que se formam sempre, de novo, depois que se converteram em poemas ou se 46 ALFREDO BOS! fixaram em alegorias ou em conceitos. Como Vico, Bachelard cxé no rebrotar das palavras miticas ¢ simbdlicas mesmo quando uma rajada de racionalizagées parece té-las varrido para sempre da linguagem dos homens. O encontro da imagem com o pensa- mento, do corpo com a cultura, dé-se no instante poético, aque- Je momento de plenitude que faz da poesia uma metafisica instantanea!®, Bela € a filosofia que nao teme a diferenca nem a contra- digo; antes, as convoca e as agasalha & sua sombra. Mas, para tanto, deveré também acolher corajosamente 0 momento no raro ingrato da identidade. Notas 1B. Croce, Breviario di Estetica. Aesthetica in nuce, Milano, Adelphi Ed., pp. 193-4. A redacio do original italiano da Aesthetica in nuce & de 1928. 2E Schiller, Poesia ingénua e sentimental, estudo ¢ tradugio de Mircio Su- zuki, So Paulo, Iluminuras, 1991. A redacio do original data de 1795-96. G. Leopardi, “Discorso di un Italiano intorno alla poesia romantica”, em Opere, tomo I, Milano, Riccardo Ricciardi Ed., 1956, pp. 772-843, A redacio do “Discorso” remonta a 1818. 9S. T. Coleridge, Poemas e excertos da “Biograftaliterdria”, introducao, sele- <0, tradugao e notas de Paulo Vizioli, Sao Paulo, Nova Alexandria, 1995, P. 129. A Biografta literdria foi redigida em 1815. 4 L, Spitzer, Critica stilistica e storia del linguaggio, aos cuidados de Alfredo Schiaffini, Bari, Laterza, 1954. ° Racine, Phidre — tragédie, a.c. de Henri Chabot, 44. ed., Paris, Classiques Larousse, 1954, p. 87. © L. Spitzer, “A Ode sobre uma urna grega”, em Luiz Costa Lima, Teoria da literatura em suas fontes, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1975, p. 125. 7 R. Jakobson, “A la recherche de I'essence du langage”. Diogene, Paris, ne 51, jul-set. 1965, p. 38, LEITURA DE poRsia : 47 8 V, Enlich, ILformalismo rusio, Milano, Bompiani, 1966, pp. 193-4 9 Apud Erlich, op. cit., p. 194 10 Theodor W. Adorno, “Discurso sobre lirica e sociedade”, em Luiz Costa Lima, op. cit p. 344. O texto original de Adorno é de 1958. 11 E.R. Curtius, Literatura européia e Idade Média latina, trad. de Teodoro Cabral, revista por Paulo Rénai, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Li- vro, 1957, pp. 397-419. 12 B, Croce, Breviario di Exetica, cit., p. 155. 13 G, Bachelard, Leau et les réves, Essai sur Vimagination de la matitre, Patis, José Conti, 1942, p. 14. \ Epitre IH, 4 Le Brun, citado em La poesia de Croce para nos advertir do cuidado com que se deveria praticar a critica das fontes. Traducao literal: “Ora em um autor eu adoto um pensamento, mas que em mim, tantas vezes entrelagado, reveste minhas imagens, meus torneios, jovem e vigoso cornamento; ora retenho tio s6 as palavras; desvio-lhes o sentido, ¢ a arte sabe constrangé-las a objetos novos que elas se surpreendem de pinta”. 15.G. Bachelard, Leau et les réves, cit p. 26. 16 G, Bachelard, “Instante poético ¢ instante metafisico”, In: O direito de sonhar, trad. de José Américo Motta Pessanha, Sio Paulo, Difel, 1985, pp. 183-9. O original francés & de 1939. 48 ALFREDO BOSt Nota Este livro é um conjunto de andlises ¢ interpretagbes de textos poéticos brasileiros. ‘Aos seus colaboradores pediu-se que escolhessem livremente tanto os poemas a serem estudados quanto os métodos de analise literdria que thes parecessem mais convenientes ao seu objeto. Nada hd, portanto, de exaustivo na composi¢ao da obra: ha ape- nas alguns poemas, alguns poetas, alguns modos de ler o poema. O resultado foi um encontro de leituras que representam alguns dos caminhos percorridos atualmente pelo ensino universitétio de teoria ¢ andlise literdtia. O projeto do livro tem uma dupla dimenséo: critica, isto é valorativa, enquanto os ensafstas se detiveram em textos que lhes pareceram dignos de atengio; e pedagégica, na medida em que se constata um esforco de tornar acessivel a jovens iniciantes nas Letras a linguagem complexa da andlise ¢ da interpretaggo do poema. O organizador 49 acm are etre d a Cree OP ee A representacéo do sujeito lirico na ara o leitor de hoje, a leitura da Paulicdia desvairada € uma experiéncia ainda capaz de provocar muito estranhamento, mas por motivos obviamente diver- sos daqueles que comoveram os contemporaneos. O Que estranhamos é tomar contato, pela primeira vez, conivers38 que nio foram escritos “para leitura de olhos mudos”, mas para serem cantados, urrados, chorados — como diz o autor no “Pre- ficio interessantissimo”. Ao longo do século, a poesia mudou de- mais, foi baixando de tom, alterou seu registro no sentido de cortar boa parte da eloqiiéncia declamatéria herdada do Roman- tismo ¢ do Parnasianismo, Caminhamos mesmo para a poesia de olhos mudos: o canto, 0 urro eo choro foram substituidos por uma espécie de low profile do verso, que abandonou o destaque hiperbélico em favor da discrigo amena do coloquial. E é assim ue, acostumados & forga insinuante de Manuel Bandeira, a0 Poder suave da fala de Drummond, ao encanto antidiscursivo de 53 Joo Cabral, ¢ inevitével que tenhamos a estranha sensagéo de ‘deslocamento diante desse que foi o primeiro esfor: 3 criar] entre nés 0 verso moderno, capaz de representar a agitagao € tamulto da vida nas grandes cidades — agitagao e tumulto q de resto, hoje em dia, também nos parecem ao relativos. ‘Mas tal sentimento nao nos desobriga da necessidade de tentar compreender o fendmeno da Paulictia desvairada no ins- tante de seu nascimento. Como este livré péde entusiasmar tan- tos jovens escritores € poetas da época? Como conseguiu ele levar Oswald de Andrade a escrever 0 comovido texto “O meu poeta futurista’? Sabemos que as leituras feitas por Mdrio para peque- nos grupos de amigos obtinham grande sucesso, e que 0 préprio Manuel Bandeira impressionou-se vivamente com os poemas: 0 autor de Carnaval e A cinza das horas (que mais tarde, falando sobre Hd uma gota de sangue em cada poema, acharia a férmula lapidar do “ruim esquisito” para qualificer a poesia “passadista” do amigo) saiu do encontro realizado na casa de Ronald de Car- valho, em 1921, estimulado a modificar seus rumos criativos a partir do impacto da Paulicdia. Outras conversées, se podemos falar assim, ocorreriam nos anos subseqiientes. O livro escandalizava os farautos ¢ fascinava ‘9s espiritos mais livres e criativos. De certo modo, como um evangelho estético, ele trazia a boa nova das mudangas imediatas € necessdtias — e o contato de suas palavras catalisava as vonta- des transformadoras, precipitando aquilo que a prépria época prteparara, Mantidas as escalas, ocorria com a Paulictia desvairada algo parecido com o que Lacan! nota a respeito da forca da psi- canilise em seus primeiros anos: sua novidade desarmava ¢ des- concertava as resisténcias. Esté claro que isto serve para explicar, ¢ ainda assim ape- has em parte, somente o impacto inicial da obra de Mario de Andrade. Certo: é preciso vé-la em seu desenvolvimento a0 34 JOAO LUIZ LAPETA longo dos primeiros anos do Modernismo — vé-la modificar-se ¢ avultar, em apenas quatro anos, entre 1921 ¢ 1925, do ritmo harménico da Paulicéia ao registro coloquial do Losango cdqui, ¢ dat A variedade da pesquisa etnogrifica do Cla do jabuti —, é preciso entender sua inquictante exploragao de tantos angulos da cultura internacional e brasileira, para podermos aquilatar sua influéncia decisiva nos jovens poetas da época, nomes como Drummond, Murilo Mendes ou Jorge de Lima, que chegaram a assimilar até mesmo seus cacoetes. Mas s¢ nos limitarmos a0 exame do fenémeno da Paulicéia desvairada, veremos que seu ca- réter de novidade desconcertante tem papel decisivo na recepgio entusidstica dos contemporaneos. © charme da novidade tinha raizes num impulso profundo das mudangas. Para agir como agi, nao podia apenas ostentar a leveza das modas passageiras, ‘mas necessitava radicar-se em estimulo interior persistente, provo- cado tanto pelo contato com as poéticas vanguardistas européias como pela vivéncia intensa da nova realidade de Sao Paulo no inicio dos anos 20. Poderfamos dizer, um pouco rebarbativa- mente, que a necessidade profunda a animar o sujeito é a repre- sentagéo moderna do seu préprio eu moderno, em estreita cor relagéo com a cidade moderna. E conhecida a anedota do “estouro” que est nas origens da Paulictia. Em carta a Augusto Meyer’, Mério de Andrade conta que desejara, inspirado por leituras de Verhaeren, escrever um livro de poemas sobre Sao Paulo, sem entretanto conseguir fazé-lo, Na mesma época, encantado por um busto de Cristo esculpido em gesso por Brecheret, decide compré-lo. Sem di- nheiro, entra em negociagdes com o irmio, consegue levantar a quantia necesséria e autoriza o artista a passar a obra em bronze. Quando ela fica pronta, a familia (alvorogada por mais essa lou- cura do doido-da-casa) retine-se para conhecé-la. Trata-se do fa- moso Cristo de trancinha, de fato notdvel criagao de Brecheret. LEITURA DE POESIA 55 ‘Mas o escandalo € imediato: diante da arte moderna a familia tradicional se enfurece e recrimina 0 comprador infeliz. Mario defende-se e-defende o Cristo, inutilmente — ninguém se con- vence. Mas é depois desta.cena meio farsesca que ele, enervado exasperado, sente a inspiragao stibita, abanca-se ¢ escreve de uma 6 assentada 0 que viria depois a constituir a Paulicéia desvairada. ‘Acho a anedota significativa por vérias raz6es, entre elas por revelar-nos 0 curioso fundo psicolégico da criago: a um periodo depressivo, em que o poeta procura e no encontra a sua inspiracdo, segue-se a irrupg4o de uma corrente de energia cria- dora suficiente para remover todos os obstéculos. A energia € despertada por uma briga em familia, em torno da arte moder- na — ¢ os fatores familia/arte moderna, opondo-se‘em tio forte tensio, deem ter revolvido conflitos profes da personali- dade (conflitos que Mario representard mais tarde, transfigura- dos com humor e freudiana ironia, nos Contos novos). Seja como for, 0 episédio modifica a situacéo: 0 poeta, que antes tentara escrever “2 maneira de Verhaeren”, encontra dentro de si a lin- guagem nova para representar-se e para representar a sua cidade, A recepcio da obra foi capaz de captar este éan. Foi capaz de captar também os problemas que ele implicava. Veja-se, por exemplo, o seguinte trecho de Tristao de Atafde, escrito imedia- tamente depois da publicacao do livro: Haverd muita coisa transitbria, nesta poesia a um tempo demolidora e construtora, ndo poderd agradar facilmente a grande maioria dos leitores cujo gosto ainda refisga com razio 4 certas ousadias das sinteses potticas atuais, jd superadas como vimos em outras literaturas — forcard muitas vezes a nota com o simples intuito de espantar os burgueses[...] terd por vezes condescendéncias excessivas com o seu subcons- ciente lirico. Serd tudo iso exato, sem disvida, mas representa 56 JOAO LUIZ LAFETA 0 livro uma corajosa clarificagao de tendéncias, uma visio poderosa da vida atual e de todos os contrastes da civilizagdo ‘moderna, uma reagdo necesséria contra a asfixiante rotina das formas consagradas ¢ bem gramaticadas, ¢, sobretudo, uma tentativa de originalidade literdria brasileira — ainda presa demais ao urbanismo, talvez, para poder aleangar uma realidade mais vasia —, mas cheia de forea, de possibilidades, de inteligincia conquistadora. A poesia nito é sb isto, é certo. Nem hd formulas de arte; 0 necessdrio é que cada artista se procure a si mesmo. E 0 encanto da vida literdria ¢ justa- mente a diversidade das tendéncias 0 jogo das personali- dade. Osx. Mirio de Andrade um bomem de muito espirito ‘para néo compreender tudo isso, assim como vin que em seu ivro a “blague” se entrelagava a seriedade. Seja como for, vale por toda uma vanguarda3. O trecho ¢ longo, mas pela sua importancia merece a trans- ctigdo integral. Tristo de Ataide desconfiou sempre dos “exa- geros” jacobinos dos modernistas, e nao deixaria de assinal4-los aqui; mas isso nao o impede de reconhecer que o livro tem “uma visio poderosa da vida atual e de todos os contrastes da civilizacdo moderna”. Este sentimento de verem-se retratados foi, talvez, 0 que entusiasmou os contemporaneos. Interessante, também, é 0 fato de que o préprio Mario de Andrade, embora admitindo os defeitos do livro, timbrasse em ver neles, a0 mesmo tempo, qualidades. Posicao paradoxal, que ele exprimiu na época (1924) com uma intuigéo fulgurante: Foi nesse deltrio de profunda raiva que Paulicea [sic] desvairada se escreveu, no final de 1920, Paulicea {sic] mani- festa um estado de esptrito eminentemente transitério: cblera cega que se vinga, revolta que néo se esconde, confianga in- fantil no senso comum dos homens. Estes sentimentos duram LEITURA DE PORSIA 57 pouco. A céblera esfria. A revolta perde sua razito de ser. A con- fanca desilude-se num segundo. Comigo duraram pouco mais que um defluxo. Pascaram. Deveria corrigir o livro ¢ pagar-lhe estes aspectos? Nao. Os poemas foram muito corri- gidos. Muita coisa’deles se tirou, Alguma se ajuntow, mas os exageros, tudo quanto era representativo do estado da alma, ¢ nio desfalécimentos naturais em toda criagao artistica, at se conservou, Uma obra de arte nao ¢ expressiva sé pelas beleeas que contém. Ou o Sr. Alberto de Oliveira seria superior a Castro Alves. Muitas vezes os defeitos sao mais interessanies e comoventes que as belezas. Direi mais: muitas vezes 0 defeito é uma circunstancia de beleza. Esta idéia final, de que “o defeito € uma circunstinciz de beleza”, parece-me de grande importincia para entendermas 0 alcance ¢ a repercussio inicial da Paulicéia. Nao pelo sentido comum, bem banal, de que uma obra possa ser comovente pela grandeza que nela foi tentada, embora nao tenha sido conseguida. Isto talvez seja 0 que Mario de Andrade, em parte, quis dizer, e também nao deixa de ser verdadeiro: de fato, hé obras cujo grande intuito — apesar de nao alcangado — nos emociona. Akkm de Castro Alves, lembrado por Mério, poderiamos pensar em Al- vares de Azevedo ou Lima Barreto. Mas vejo o problema tam- bém por outro lado. Quero lembrar uma frase de Adorno, cujo alcance parece-me pertinente para a questo que discutimos aqui. | Quase se poderia medir a grandeza da arte de vanguarda | [escreve Adorno] com o critério de saber se 0s momentos his- | ‘ricos, como tais, fizeram-se nela essenciais, ou, pelo con- {_ trério, afundaram-se na intemporalidade', Ora, justamente o “momento histéricu” fez-se essencial na 58 JOAO LUIZ LAFETA Paulictia desvairada, Aqueles que depreciam uma obra por ser la datada, querendo dizer com isso que ela nao supera sua cit- cunsténcia — e portanto néo se universaliza —, deveriam refle- tir melhor sobre esta frase de Adorno. Ela indica que o momen- to histérico moderno — a coisificagdo, a prepoténcia do mundo, esmagamento da subjetividade, a negagao do humano (vario 0 nomes do mesmo fendmeno bdsico) — tornou-se essencial na arte moderna porque incorporou-se &.sua linguagem, virou pro- cedimento artistico, foi integrado no coragéo da forma de tal modo que fez-se “tepresentativo”. No caso da Paulictia, como bem viu Mario de Andrade, era preciso manter os “exageros”, pois cles eram bem “representativos” do “estado da alma” — mais que documento condescendente do subconsciente litico, como pen- sava Tristdo, eles eram marcas negativas (quase no mesmo sentido em que se fala de negativo fotogrifico) do momento histérico. Era através destas marcas-exageros que o mundo da negagio ficava representado nos poemas, formas negativas bem dignas da gran- deza da arte de vanguarda. Mostrar como isso se dé na Paulicéia desvairada é dificil complexo. Parte da demonstragio, entretanto, € 0 que tentarei fazer aqui, buscando focalizar 0 problema da representacao do sujeito litico, como se sabe central na arte moderna desde Bau- delaire, ¢ que as vanguardas do comego do século tentarant resolver em duas diregdes principais: ora equacionando a telagao sujeito/objeto em formas construtivas ¢ objetivas (na linha do futurismo, do cubismo e do abstracionismo), ora invertendo a énfase através da elaboragao de formas destrutivas € subjetivas (na linha do expressionismo, do dadafsmo e do surrealismo)>. Essa distingao, feita assim em tracos tao largos, serve aper Para nos mostrar como a oscilagéo entre uma arte extremamente impregnada de subjetividade e outra marcada, ao contrario, pela objetividade das formas acompanhou de modo profundo o de- LEITURA DE POESIA 59 senvolvimento das vanguardas histéricas. No caso da Paulicéia des- vairada, como em tantos outros, a separagao das linhas nao se dé inteiramente: baseada no “moto litico”, na liberago dos impulsos do que Mario chamava de “subconsciente”, a linguagem tende para a linha destrutiva, de forte influéncia expressionista; contra- balangando isso, entretanto, é visivel também todo um esforgo (explicitado na teoria do verso harménico) de cardter construtivo, a tendéncia “pronunciadamente intelectualista” do livro, & qual © poeta se refere no “Prefacio interessantissimo”. A critica atual assinalou esta tensio na obra de Mério, mos- trando como ela ¢ constitutiva de seu estilo. Roberto Schwarz, por exemplo, no seu ensaio “O psicologismo na poética de Mario de Andrade”, referiu-se a “polaridades irreduttveis”, que dilacera- riam 0 pensamento estético do autor’, Lufs Costa Lima, em “Permanéncia e mudanga na poesia de Mario de Andrade”, par- tiu desta observagao de Schwarz sobre o “traco psicologizante” para desenvolver a tese de que a poesia mério-andradina deixa escapar aquilo que, desde Baudelaire, fora fundamental “ao senti- mento da poesia moderna: o impacto da grande cidade”. Isso se daria na medida em que Mério, levado pelo desejo de “continuar a exploracao de seu eu”, resquicio de um subjetivismo romanti- co, é incapaz de representar a cidade, pois toma-a apenas para logo mergulhé-la “no anonimato da subjetividade poética’””. ‘Adiante voltarei a este ponto, e veremos que talvez no seja isto exatamente 0 que ocorre. Por enquanto, observemos que a tensa oscilagao entre subjetividade e objetividade foi assinalada pelos contemporaneos da Paulictia desvairada. Jé Ronald de Car- valho, escrevendo sobre o livro em 1922, anotava: “Seu impres- sionismo & a0 mesmo tempo deformador e expressionista”’. E Carlos Alberto de Aratijo, em artigo de Klaxon, desenvolvia a mesma idéia: 60 JOAO LUIZ LAFETA Dissemos que Mario é um objetivo. Mas é um objetivo paradoxal, isto é, que toma i cidade em que vive aquilo ape- nas que the pode servir. E portanto um objetivo na sensacao (recebe tudo, embora sé guarde alguma coisa), mas é um sub- jetivo, se assim podemos nos explicar, na expressio. [E pros- segue:] Este subjetivismo, alids, como é natural num livro de separagiio, de rompimento entre o eu que possuta artificial- mente e 0 eu que afinal reconheceu em si mesmo, é um subje- tivismo exagerado?. Estas observagées séo do maior interesse, pois mostram como os préprios contemporaneos sentiam a tensao significativa que hé no livro, entre a representacao do eu ea representacio da cidade. Impressionismo e expressionismo, nas palavras de Ro- nald de Carvalho, ou objetivismo e subjetivismo, na formulagao de Carlos Alberto de Aratijo, o movimento tenso aponta para as duas grandes linhas que dividiram as vanguardas. No meu entendimento, este ponto de irresolugio — que traz conseqiién- cias graves para o acabamento formal dos poemas — é de muita relevancia para se discutirem os modos de representagio do su- jeito lirico na poesia da modernidade. Quando Carlos Alberto de Aradjo sugere que Mario é objetivo na sensagéo, embora sub- jetivo na expresséo, sua maneira de formular o problema lembra- me a anilise feita por Auerbach dos procedimentos narrativos de esctitores contemporineos da Paulicéia: Virginia Woolf ¢ Proust. ‘Auerbach mostra, em “A meia marrom”, que neles os recursos do foco narrativo visam a objetivar, ao méximo possivel, a repro- dugao dos movimentos da consciéncia, mas o resultado final € paradoxalmente o méximo de subjetivagéo da narrativa. O eu que nos fala escapa em meio a meandros de pensamentos, sen- sages, desejos, percepgGes incompletas etc. Ou seja: 0 eu arti cial e uno do século XIX dé lugar a um eu multiplo e desagregado, LEITURA DE POESIA 61 de um “subjetivismo exagerado” — como diria Carlos Alberto de Aratj falver seja este o grande problema de linguagem da Paw- | Fictia desvairada: equilibrar a notagao objetiva dos aspectos da ci- dade moderna com o tumulto de sensagées do homem moder- || 0, no meio da multidao. Este jogo arriscado, do qual Proust ¢ Virginia Woolf se sairam tio bem, nem sempre — e para dizer a | verdade: muito raramente — resolveu-se a favor de Mitio neste | primeito livro. A delicada cristalizacao do litismo, que segundo Hegel consiste na passagem de toda a objetividade subjetivi- dade, € perturbada pelo movimento incessante entre a Paulictia € 0 desvairado trovador arlequinal. Mas 0 fato de ter tentado isso, de ter tentado forjar essa modernidade da representacao, foi 0 lance feliz de Mario de Andrade: nesse instante, ¢ retomando agora a frase de Adorno, um momento histdrico fez-se essencial na sua obra. Ou por outras palavras: 0 mesmo movimento que perturba a ctistalizagao do litismo cria nos poemas uma dissonancia que € indice das dissondncias da vida moderna. O lirismo dificil e in- completo representa as dificuldades e incompletudes do sujcito lirico na modernidade incipiente. Neste caso, estaria bem justi- ficada a intuicao de Mario, ao dizer que muitas vezes os defeitos so uma circunstancia de beleza, e ao recusar-se a limpar o livro dos exageros apontados. A tensio transparece porque estd no fundo-de-origem da forma, nas relag6es entretidas pelo sujeito Iirico com a realidade que 0 circunda, € que por isso mesmo 0 artista ndo consegue resolver (com prejutzo, é claro, do equill- brio formal dos poemas, coisa que uma estética classicizante vé naturalmente como defeito e mau-gosto). Se essa hipétese for verdadeira, estudar a representacao do sujeito Ifrico na Patdlicéia desvairada & algo como estudar suas “vi- cissitudes”. Talvez nao seja apenas, como pensa Roberto Schwarz, 62 JOAO LUIZ LAFETA que © psicologismo leve a poética de Maio de Andrade a umm dilaceramento entre “polaridades irredutiveis”, E talvez nao seja também, como acha Luis Costa Lima, que o poema-caleidoscépio representativo da cidade moderna seja prejudicado por uma con- sumagio.subjetiva do assunto. Hé tudo isso, sem diivida, mas a mobilidade do sopro poético na Paulictia é muito maior do que essas formulagées parciais possibilitam entrever. De fato, a subje- tividade esté ali submetida a grande pressio, que estoura tudo —| © eu, a cidade, a linguagem —, tudo submetendo & fragmentagao, Como no caso das pulsées, analisadas por Freud, nunca se pod: apreender diretamente 0 sujeito litico, que desliza de metamor. fose em metamorfose, manifestando-se mével, arlequinal, on numa, ora noutra forma, Suas vicissitudes deixam marcas na lin guagem dos poemas, cicatrizes que testemunham a complexida- de das forcas libertadoras ¢ repressivas em jogo. Vejamos agora como se da esse processo em alguns dos poemas. Antes, o titulo do livro: hé nele um cruzamento curioso, tal- ver reminiscéncia (voluntéria ou nao) de Emile Verhaeren, Uma das obras do poeta belga intitula-se Les villes tentaculaires précé- dées des Campagnes hallucindes'®, o que sugere a posstvel jungio, no titulo Paulicdia desvairada, do substantivo villes (antes adje vado como tentaculaires) e do adjetivo hallucinées (antes qualifi- cando as campagne:). A transposico realizada por Mirio de An- drade cia efeitos novos. Em primeiro lugar, villes é substitufdo por “Paulicéia”, o plural abrangente ¢ universalizante cede passo a limitagdo precisa do objeto. Isso parece ser o primeiro indicio de uma tendéncia & individualizagao concretizadora do material temdtico. Mas a operagao seguinte, a troca dos adjetivos, é ainda mais sugestiva. A aplicagéo do adjetivo “tentaculares” as cidades modernas decorre de um modo de vé-las, como seres vivos ‘monstruosos, cujas ruas e pracas se estendem de maneira animal, LEITURA DE POESIA 63 enleando e apreendendo os homens: “Leurs doigts volontaires, qui se compliquent/ De mille doigts précis et métalliques’'', Sentimos diante das “cidades tentaculares” uma mistura de fascinacao ¢ repulsa; fascinagao pelo movimento poderoso que elas contém, repulsa pela parte monstruosa e envolvente desse mesmo movimento: La plaine est morne et morte — et la ville la mange [...] Telle une béte énorme et taciturne Qui bourdonne derriere un mur, Le ronflement Sentend, rythmique et dur, Des chauditres et des meules nocturnes[...]2 Os “mil dedos precisos ¢ metilicos” desaparecem no titulo de Mario, substituidos por “desvairada’, assim se atenuando uma das conotagdes. E embora seja mantida a idéia de movimento anormal, desatinado, sentimos desaparecer a repulsa ¢ aumentar a aproximagio. A dupla substituigao tem como efeito principal um sentimento de proximidade. Nomeando e individualizando seu primeiré motivo tematico, a cidade-Paulicéia, o poeta se faz mais ligado a ela; atribuindo-lhe a seguir seu préprio estado de Animo, cria uma identidade entre os dois. Pois quem é que se encontra desvairado, 0 eu ou a cidade? A vida moderna desvaira 0 poeta, ¢ este transfere seu des- vairismo para a vida moderna. A cidade nao surge apenas como © “cortelato objetivo” (Eliot) dos sentimentos do eu, pois tais sentimentos existem em funcio da cidade, de modo que a auto- descrigéo tem de ser também a descrigao da cidade. Quero dizer que no caso de Mario de Andrade nao se trata simplesmente de buscar fora da subjetividade a imagem objetiva que a represente (como nos maus poetas), mas que este sujeito da poesia é, ele ‘mesmo, formado pela realidade que canta, ¢ esté tdo ligado a ela quanto o titulo geral dos poemas procura sugerir. 64 JOAO LUIZ LAFETA Insisto nesses pormenores apenas para destacar 0 procedi- mento que é bésico na Paulictia desvairada: diante da paisagem citadina o poeta nao registra simplesmente a face externa que seus olhos enxergam, mas procura em suas sensagdes, nas impresses que a cidade deixa dentro dele, as marcas que revelem a imagem tinica e duiplice de ambos. Jé no primeiro poema, “Inspiracao”, percebe-se que Sao Paulo vai servir-lhe menos como objeto de descrigao e mais como uma espécie de musa concreta e moderna, cuja proximidade desperta o canto. No verso “Sao Paulo! como- cdo de minha vida...” € possivel notar com clareza esta fusdi comogao do poeta se identifica com a realidade urbana, a excla- macio (Fungo do eu) é 0 mesmo vocativo (fungao do tu) que a So Paulo € dirigido, como se apelasse & vinda da musa. A idemtificagio entre 0 espaco externo ¢ a interioridade é perceptivel desde a epigrafe (“Onde até na forca do verdo havia tempestades de ventos ¢ frios de crudelissimo inverno”), que suge- re, por meio da linguagem antitética e hiperbélica, um espago metaférico, mitico ¢ primordial, lugar onde se defrontam ele- mentos contrérios. No corpo do poema esta contradigao, diga- ‘mos, meteorolégica e elementar, é retomada, passando para 0 traje arlequinal do poeta e daf, de novo, para a caracterizacio da cidade: a Arlequinalt... Traje de losangos... Cinza ¢ ouro... Luz e bruma... Forno e inverno morno... Assim se fundem os dois, o arlequim (cuja roupa dourada ¢ cinzenta reflete luz e bruma, calor ¢ frio) ¢ a cidade, lugar con- traditério onde se desenvolve um confronto de forcas!3. A duali- dade das cores que lutam no traje de losangos ¢ a dualidade dos elementos que lutam na Paulicéia, ¢ ambos encontram a mesma representagao simbélica: arlequinal! Krystyna Pomorska, utilizando os conceitos de similari- LEITURA DE POESIA 65 dade e contigitidade tais como definidos por Jakobson, ¢ apl cando-os a relacéo mensagem/emitente, conclui que a poesia me- tafdrica poderia “ser compreendida como uma espécie de poesia na qual a mensagem est intimamente ligada ao emitente”, e este se torna “uma espécie de filtro em que todas as coisas se fundem através de sua prépria personalidade”. Criada pelo Romantismo, levada ao extremo pelo Simbolismo, a poesia do “ego litico” foi ainda adotada pelos acmeistas, que, embora insurgindo-se contra a “predominancia do espiritual sobre o concreto”, mantiveram intacto 0 “princfpio metaférico de transformacao”4,. Estas duas caracteristicas do acmefsmo russo, tais como descritas por Pomorska, servem para grande parte da diccéo poética da Paulicéia desvairada, Trata-se de uma poesia do “eu If- rico”, muito marcada pela fungGo emotiva, mas trata-se também de uma poesia muito concreta, no sentido de que a paisagem, embora filtrada pelo emitente, deformada mesmo por ele, tem nao apenas uma enorme presenga nos pocmas, mas também uma paradoxal autonomia. A imagem (arlequinal é 0 poeta e é a cidade) que une e concilia os dois pélos, identificando-os, nao apaga entretanto as diferengas entre eles. “Os elementos da ima- gem”, como diria Octavio Paz, “ndo perdem seu carter concreto ¢ singular”!5. Assim como no se compreende a cidade sem as deformagées do eu, também nao se compreende o eu sem as de- formagées nele provocadas pela cidade. Vejamos, como exemplo desta inter-relacio, o segundo poema do livro: O trovador Sentimentos em mim do asperamente dos homens das primeiras eras. As primaveras de satcasmo intermitentemente no meu coracao arlequinal... Intermitentement 66 ‘Outras vezes é um doente, um frio na minha alma doente como um longo som redondo Cantabona! Cantabona! Dlorom... Sou um tupi tangendo um aléude! O poema esté de novo estruturado sobre um jogo de opo- sigdes, desta vez entre 0 “primitivo” eo “civilizado”. Os “homens das primeiras eras’ aproximam-se, até sonoramente, das “prima- veras de sarcasmo”, e ambos opéem-se ao “frio” ¢ & “alma doente”, A onomatopéia dos sinos duplica a oposicio, contrastando o re- pique festivo de “Cantabona! Cantabonal” & plangéncia melan- célica de “Dlorom...”. Bem observada, a construgio do poema obedece ao mesmo principio antitético estruturador de “Inspira- gio”: as primaveras daqui equivalem & fora do verso, & luz e a0 calor de Id, assim como o frio e a doenga equivalem & bruma e 20s frios de crudelissimo inverno. De novo, Sao Paulo ¢ 0 trova- dor se identificam, e de tal maneira que os tiltimos versos dos dois poemas sao perfeitamente simétricos: Sio Paulo é “Galicismo a berrar nos desertos da América”, isto ¢, civilizagio e barbérie, enquanto o trovador é “tupi tangendo um alatide”, isto é, primi- tivo e civilizado, Estamos aqui em meio ao mais completo subjetivismo, e de tal modo que a cidade nem é referida nos versos. Sua presenca, ‘no entanto, é determinante. Alids, entre todas as composigdes do livro, “O trovador” (et pour cause...) patece ser 0 caso extremo de expulséo dos elementos descritivos de pura expansio do sujeito. Apesar disso, note-se que um certo tom analitico perma- Rece presente no poema, que o eu toma-se como objeto e fala diretamente sobre si mesmo. Daf procedimento, nada simbo- lista, da “referencia direta ao objeto ao invés de alusoes indiretas LEITURA DE POESIA o7 a0 mesmo”, como diz Pomorska sobre 0 acmefsmo; dai, tam- bém, 0 fato de uma poesia tao carregada de subjetividade perma- necet, no entanto, muito pouco introspectiva. Quanto a esse tiltimo ponto, seria bom insistir um pouco mais. O terceiro poema da Paulictia desvairada, mantendo ainda o procedimento bésico da transformacao metaférica, deixa entre- ver com nitidez as esferas distintas de sujeito e objeto, forgando a parte de oposigao entre ambos, mas mantendo ainda a identidade. Os cortejos Monotonias das minhas retinas... Serpentinas de entes frementes a se desenrolar. ‘Todos os sempres das minhas visdes! “Bon giorno, caro.” Horriveis as cidades! Vaidades ¢ mais vaidades... Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegr Oht! os tumultudtios das auséncias! Paulicéia — a grande boca de mil dentess € 0s jorros dentre a Iingua trissulca de pus e de mais pus de distingao. Giram homens fracos, baixos, magros... Serpentinas de entes frementes a se desenrolar... Estes homens de Sao Paulo, todos iguais ¢ desiguais, quando vivem dentro dos meus olhos to ricos, \ parecem-me uns macacos, uns macacos. A identidade (ea fusio sujeito/objeto) é criada no primeiro verso, quando a monotonia da multidao é deslocada e atribuida as retinas do poeta — uma metonimia. Depois vem a transposi¢ao metaférica: 0s cortejos sio “serpentinas de entes frementes’. A seguir 0 terceiro verso repete © primeiro: a multidao é vista de 68 JOKO LUIZ LAFETA novo como monotonias (metaforizadas em “Todos os sempres”) das retinas (também metaforizadas em “minhas visGes”). Todas estas transformagées permitem-nos afirmar que 0 principio construtivo da linguagem, nesta primeira estrofe, é a ‘expansio do discurso, por meio da qual o poeta, insistindo sem- pre na mesma significagéo central, amplia 0 niimero de signos e busca precisar com maior forca expressiva aquilo que deseja dizer. O primeito verso j4 contém, implicitos, os dois versos seguintes, que vio apenas expandi-lo, defini-lo discursivamente: monoto- nias das minhas retinas = serpentinas de entes frementes = todos os sempres das minhas visdes. Esta tendéncia & definigao discursiva é uma das caracteris- ticas formais da poesia de Mario. A redundancia do significado, compensada pela multiplicaggo dos significantes, revela uma inclinagio a explicitagao progressiva do sentido; daf um afasta- mento do modo alusivo de dizer ¢ uma aproximagao a0 modo direto, que aliés surge plenamente nos versos quatro ¢ cinco: “Horriveis as cidades!/ Vaidades e mais vaidades...”. A nomeacio direta elimina a possibilidade de hermetismo subjetivista e concretiza a realidade que se quer descrever. Entre- tanto, embora a metéfora esteja traduzida, a linguagem continua a set metaférica, a ética do emitente continua a afetar a mensa- gem e a tingir o real representado. A Paulicéia se transforma em “grande boca de mil dentes” (eis como se transfiguraram os “mille doigts précis et métalliques’, de Verhacren), ¢ as multidées sio “pus de distincao”. Na tiltima estrofe a metéfora desaparece de novo, Para dar lugar explicago quase prosaica: “Estes homens de S40 Paulo,/ todos iguais ¢ desiguais,/ quando vivem dentro dos meus olhos tao ricos,/ parecem-me uns macacos, uns macacos”. Parece, portanto, que hé dois procedimentos chocando-se: a metéfora, presa A postura subjetiva, & poesia do “ego Ifrico”, € a definigéo discursiva, presa & postura objetiva ¢ intelectualista. LEITURA DE POESIA 69 Essa ultima rompe muitas vezes a cristalizacéo Irica € provoca dissonancias. Na Paulicéia desvairada, alias, as dissondncias pare- cem ser de dois tipos: ou desejadas, procuradas (como as antite- ses luz x bruma, forno x inverno morno), ¢ que se integram ao tom do poema, ou involuntérias, que escapam ao dominio do sujeito lirico (como esta estrofe final do poema “Os cortejos”), rompendo a unidade de tom, por causa da dureza prosaica que resulta da explicitagao de sentido, ¢ produzindo um efeito peno- so de coisa nao resolvida. Penoso para nds, bem entendido. E possivel que esteja af um dos “defeitos” que Mario de Andrade deixou ficar por consi- deré-los “circunstincia de beleza”, testemunhas de sua tentativa de representar em linguagem moderna a aventura do homem na grande cidade. A ruptura de tom é uma das vicissitudes do sujei- to Iirico: desequilfbrio formal, defeito estético (se nos colocamos da perspectiva de uma estética da unidade e do equilibrio), aponta-nos entretanto, como dissondncia que é, para as grandes tensdes da vida (¢ da arte) daquela época. E sinal essencial do momento histérico. ‘A grande poesia do Modernismo brasileiro s6 se fard mais tarde. O préprio Mario terd sua fase madura, espléndida, repre- sentada por alguns poemas belissimos do final dos anos 20 e dos anos 30: “Poemas da amiga”, “Poemas da negra”, “Girassol da madrugada’... © arranco inicial, porém, guarda 0 encanto da descoberta ¢ da invengao; suas dissondncias seam como antincios de um novo tempo, signos de luta criativa. Para concluir, gostaria de comentar brevemente ainda dois poemas, duas das quatro paisagens que cle incluiu ne livro. Ve- Temos como a representagio do sujeito oscila, no primeiro caso, entre a expansao lirica ¢ a interferéncia prostica, mas em com- pensagio, no segundo caso, consegue obter grande unidade expressiva. 70 JOAO LUIZ LAFETA Paisagem n? 1 Minha Londres das neblinas finas. Pleno vero. Os dez mil milhdes de rosas paulistanas. Hi neves de perfumes no ar. Faz frio, muito frio. Ea ironia das pernas das costureirinhas Parecidas com bailarinas. O vento é como uma navalha Nas mos dum espanhol. Arlequinal... H4é duas horas queimou Sol. Daqui a duas horas queima Sol. Passa um Séo Bobo, cantando, sob os plétanos, Um tralalé... A guarda-civica! Prisao! Necessidade a priséo Para que haja civilizagao? Meu coragio sente-se muito triste. Enquanto o cinzento das ruas arrepiadas Dialoga um lamento com o vento... Meu coragao sente-se muito alegre! Este friozinho arrebitado Dé uma vontade de sorrir! E sigo. E vou sentindo, ‘A inquieta alacridade da invernia, Como um gosto de lagrimas na boca... ‘A primeira estrofe desencadeia uma série de imagens que servem para compor a pretendida paisagem. Na aperéncia, 0 su- jeito estd ausente e sé vemos surgir um quadro onde sol ¢ neblina LEITURA DE POESIA 7 se confundem, Na verdade, ele se esconde por trés de cada no- tagdo, de cada imagem, vestindo a roupa arlequinal da cidade. E uum processo sensivel, concreto, quase epidérmico de descrever: 4 as neblinas opacas, os perfumes que se transformam em neve, 0 frio, 0 vento como uma navalha cortante — tudo é sentido na pele, como se a cidade revestisse o homem Também a linguagem 6, em conseqiiéncia, sensivel e opaca. Posso parafrasear a estrofe e reduzi-la a um enunciado como, por exemplo, “no verdo da Paulicéia a neblina ¢ o vento frio se alter- nam com o sol”. Mas a pardfrase assim realizada nos dé apenas 0 niicleo légico e perde o que é fundamental: a flama, a subjetivi- dade que transfigura metaforicamente a linguagem, “que soa na Jinguagem até que a linguagem mesma se faca perceptivel”!6, Neste momento do poema o lirismo encontra-se plena- mente realizado, sem prejuizo para a objetividade. Mas, na passa- gem para as estrofes seguintes, a tensio vai diminuindo, a lingua- gem afrouxa ¢ perde a qualidade compacta dos primeiros versos. A partir da segunda estrofe o movimento litico vai sendo refteado aos poucos, ¢ as sensagdes livremente registradas cedem lugar a um pensamento mais nitido ¢ mais légico. A linguagem se torna mais explicita, ¢ 0 teor metaférico diminui na mesma proporsao. Este ponto do poema é importante pela sua intencdo de combate estético. O Sao Bobo que passa em liberdade sob os plé- tanos, cantarolando o tralald irracional, € talvez uma boa e iréni- ca alegoria da “loucura” modemnista. A guarda-civica e a priséo parnasianas so parodiadas pelo poeta nos versos “Necessidade a prisio/ Para que haja civilizacéo?”, uma redondilha e um decas- silabo rimados em -do, o “admirabilissimo 40”. Admitida tal lei cura, haveria na passagem uma correspondéncia entre linguagem ¢ intengao parédica, e 0 tom irénico predominaria nela. O pro- blema é que o lirismo do poema é rompido pela stibita irrup¢o da parddia, a coeréncia interna da composigio é abalada e as dis- 72 JOAO LUIZ LAPETA sonancias — antes integradas — produzem agora desagradével efeito de irtegularidade formal. E ainda mais: a prisio parnasiana, mesmo combatida, vai acabar por impor algo das suas limitag6es ao poeta. A estrofe final (“E sigo. E vou sentindo,/ A inquieta alacridade da invernia/ Como um gosto de légrimas na boca...”) constitui um verda- deiro fecho-de-ouro bem ao gosto parnasiano, seja pela forma decassilabica dos dois tltimos versos, seja pela facilidade senti- mental da imagem, seja pelo fato de buscar resumir lapidarmen- te as tensbes todas que atravessam 0 poema. E importante observar que as rupturas de tom nao se de- vem, nos casos examinados, a um subjetivismo excessive do poe- ta, Pelo contrério, é a definiggo discursiva, a necessidade de explicitagao do sentido que interfere na maior parte das vezes € destr6i a qualidade Iirica. No poema que estamos comentando, a ruptura parece dar-se em decorréncia de uma espécie de confli- to de linguagens: a grafia do lirismo, responsdvel na primeira estrofe pelo actimulo de sensagées simulténeas, permite entre- tanto que aflorem também velhos habitos de versejar, anteriores a0 estouro da Paulicéia, “Uso de cachimbo” — anotou Mario no “Preficio interessantissimo”. Mas a intromissio do Parnasia- nismo neste poema bem pode ser considerada, ainda, como um outro sinal do momento histérico. De outras vezes, entretanto, o dado bem langado favorece © pocta. E 0 caso do seguinte poema: Paisagem ne 3 Chove? Sorti uma garoa cor de cinza, Muito «riste, como um tristemente longo... A casa Kosmos nao tem impermedveis em liquidaco LEITURA be porsiA 73 Mas neste largo do Arouche Posso abrir meu guarda-chuva paradoxal, Este lirico plétano de rendas mar... Ali em frente... — Maio, pde a méscara! — Tens razo, minha Loucura, tens razdo. O rei de Tule jogou a taga a0 mar. Os homens passam encharcados.... Os reflexos dos vultos curtos Mancham o petit-pavé... ‘As rolas da Normal Esvoacam entre os dedos da garoa. (E si pusesse um verso de Crisfal No De Profundis...) De repente Um raio de Sol arisco Risca o chuvisco a0 meio. © procedimento basico € © mesmo que vimos desde 0 poema “Inspiracao”, e que consiste em desenvolver o jogo de opo- sig6es entre luz e bruma, chuva e sol. Aqui, porém, os arpejos harménicos quase desaparecem, ¢ os versos se tornam melédicos —a tensio diminui, sutiliza-se em contrastes apenas esbogados: a garoa sori triste, 0 plétano substitui os impermedveis, a Lou- cura tem razo, as sombras pesadas dos homens opdem-se aos corpos leves das mogas. A imagem final suaviza também as opo- sigdes: 0 raio de sol € arisco ¢ a garoa é chuvisco. Mas este jogo de amortecimentos néo leva a qualquer penumbrismo simbolista tardio. Pelo contrétio, apesar de marcada pela subjetividade, a linguagem do poema mantém grande concretude, apreende a 74 JOAO LUIZ LAPETA paisagem através de referencias diretas (a casa Kosmos, 0 largo do Arouche, a Normal) ¢ aproxima-se ao méximo do registro coloquial, que na fase seguinte do Losango cdgui seré a mais importante conquista da poesia de Mério de Andrade. Mas ja aqui o “tableau paulistano”” esté completo ¢ perfeito: assimilado de maneira total pela subjetividade lirica, o tema do movimento cosmopolita encontra representago na levera de versos que expri- mem o livre movimento dos sentimentos e meditagbes do poeta. Notas 1 Para que a mensagem do analista responda & interrogacéo profunda do su- jeito, é preciso com efeito que 0 sujeito a ouca como a resposta que lhe € particular, eo privilégio que tinham os pacientes de Freud de receber a boa palavra da boca mesma daquele que era o anunciador, satisfazia neles essa cexigéncia.” Jacques Lacan, Bieritos, Sao Paulo, Perspectiva, 1978, pp. 155-6. 2. Em Mério de Andrade escreve cartas a Alcea, Meyer e ouaros. Coligidas e ano- tadas por Lygia Fernandes. Rio de Janeiro, Ed. do Autor, 1968, pp. 49-57. 3 Tristio de Ataide, “Vida literdria", O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jan. 1923. ‘Transcrito em Marta Rossetti Batista, Telé Porto Ancona Lopez, Yone Soates de Lima, Brasil: 12 tempo modernista — 1917-1929. Documentagdo, Sio Paulo, KEB/USP, 1972, pp. 200-7. A citagio seguinte, de Mério de ‘Andrade, esté em “Crénicas de Malazarte — VII", otiginalmente publica~ da na América Brasileira, Rio de Janeiro, abr. 1924, ¢ tepublicada neste livro (pp. 71-2). 47. W, Adorno, “Lukes y el equivoco del realismo”, em G. Lukes e ou- tos, Realismo: zmito, docirina e tendéncia historica?, Buenos Aires, Tempo Contemporineo, 1969, p. 49. 5 A distingao entre as linhas *impressionista-cubista-abstracionista’ ¢ “primi- tivista-expressionista-surrealista” esta em Alfredo Bosi, Histéria concisa da liceratura brasileira, Sao Paulo, Culttix, 1970, p. 378. © autor observa que “os modernistas da fase berdica baralhavam as duas linhas”. 6 Roberto Schwarz, A sereia ¢ 0 desconfiado, Rio de Janciro, Civilizago Bra- sileira, 1965. LEITURA DE POESIA 75 7 Luiz Costa Lima, Lira ¢ antilira (Mério, Drummond, Cabral), Rio de Ja- , Civilizago Brasileira, 1958, p. 39. 8 Ronald de Carvalho, “Os independentes de Sao Paulo”, artigo de 1922, republicado em Brasil: 12 tempo modernista, cit, pp. 198-200. 9 Carlos Alberto de Araijo, Klavon, n° 7, 30 nov. 1922, p. 13. Ed. fac-sis lar, com introdugdo de Métio da Silva Brito, Séo Paulo, Martins/SCET, 1972. 10 Emile Verhaeren, Les villes tentaculaires précédées des Campagnes hallucinées, Patis, Mercure de France, 1917. Consultei, no IEB-USP, o exemplar que pertenceu & biblioteca de Mario de Andrade. 11 E, Verhaeren, cit, p. 107. 12 Jhidem, pp. 105-6. 13 “[,..] na cidade arlequinal, cuja dualidade contém a dualidade do cu, espe- Ihado e revestido por ela como por um traje de losangos". José Miguel Wisnik, O coro dos contrdrios. A miisica em torno da Semana de 22, Sio Paulo, Duas Cidades, 1977, p. 122. 14 Krystyna Pomorska, Formalismo e futurismo, So Paulo, Perspectiva, 1972, pp. 108-9. 15 Octavio Paz, Signos em rotagao, Sao Paulo, Perspectiva, 1972, p. 38. \6T. W. Adorno, “Discurso sobre lirica y sociedad”. In: Notas de Literatura, Barcelona, Ariel, s.d., pp. 60-1. 17 A alusio a Baudelaire me foi sugerida por Tableau berlinois,cese de livre- docéncia de Willi Bolle, a quem agradego também pela cépia de seu texto “A cidade sem nenhum caréter. Leitura da Paulicéia desvairada de Mitio de Andrade”, andlise benjaminiana dos poemas desse livro. 76 JOAO LUIZ LAFETA oo (1) Na ocasiéo do envio deste texto ao organizador do livro, Joio Luiz Laferd cescreveu tum bilhete para Alfredo Bosi, que transcrevemos a seguir. (N.E.) P/06/07195. Caro Alfredo Bosi: — A idéia era desenvolver um pouco a andlise do siltimo ma, interrompida abruptamente. Pretendia mostrar ali como o problema da rei da subjeividade feava melhor resolvido do que anes — através das rmeciforas, do didlogo com a Minha Loucura, da delicada sonoridade dos “vultos ‘curtos” contrastados com “esvoacando nas asas da garoa”, do De Profindis coli- dindo c/ Cristal — quer dizer, da dissonincia encontrando uma forma a0 ‘mesmo tempo tensa e pacificada. Algo como a festa no final de Mis. Dalloway, fem que cada qual guarda sua dor e se inunda do prazer de estar ali, no meio de tanta beleza cuidadosamente preparada por uma mulher gentil ¢ amorosa, “De repente/ Um taio de Sol/arisco/ Risca © chuvisco a0 meio”. Mas parece que algumas revelagbes tardam. Nao quero aumentar 0 meu atraso, Precso arrscar agora uma leitura de “Meditagio sobre o Tict®”, ¢ do Drummond de Alguma poesia e Brejo das almas. Divides de bolsista 20 CCNPa, a serem pagas dentro de duas semanas. Entio, fica do jeiro que estd. Um dia, quem sabe, corrij ist. Ey de- pois (seguindo aliés uma meia sugestZo sua), parto para mostrar como 0 verso coloquial de Mario de Andrade se forma no Losango edgui, vasta ousadia de abandonar os empolamentos retricos da Paulictia € procurar a naturalidade rfumica e simbélica que — ai dele! — 6 Bandeira ¢ Drummond acharam... com a estreitacolaboragio do proprio Mério, est claro. Deixo a cépia, pois o texto da revista estérodo empastelado. ‘Um abrago muito agradecido do seu, Jodo Lui Lafetd the gat tall, Um ain ton abe, ceri sane Fg ve apd pt oe ee be fe teen deine tee | Sgpadiar ga Rese ipanel hte an ele! — at Oem teiey. Devin, seend athcrnnens Oona cabrite telabemsieg’ de pulbre Hine, the alec ae ‘ 77 Crean PCa te ated O lirismo em si mesmo: leitura de “Poética” de Manuel Bandeira Jorge Koshiyama Vida e poesia: & escuta do outro este poema, temos um registro fonogréfico, na voz de Manuel Bandeira. Ler um poema é colocar-se & escuta de um outro set humano, nao apenas de uma voz. Quem dentre niés péde ouvir Manuel Bandeira ler os seus poemas, sabe que ele os lia como se cada poema fosse nascendo ao passar por sua voz! Ler deste modo, ouvindo internamente, modulando e mobili- zando os ritmos do outro, € situar-se naquele plano em que vida, fala e mundo se aproximam e se unificam, O poema, assim como © pensar, pode ser compreendido, em sua origem primeira, a partir das imagens da natalidade ¢ do nascimento?. Retomando a questio da natureza humana, que estd no centro do pensa- mento de Santo Agostinho, Hannah Arendt lembra-nos, em A condigao humana, de nossa itteversivel inser¢ao no tempo: A Terra é a quintesséncia da condigio humana, e, ao que 81 sabemos, sua natureza pode ser singular no universo, a inicad capat de oferecer aos seres bumanos um habitat no qual eles podem mover-see respinar sem esforgo nem artficio. O munda' — artificio humano — separa a existéncia de um ambiental meramente animal: mas a vida, em si permanece fora deste: mundo artificial e através da vida o homem permanece liga-" do a todos os seres vivos3. E nesse espago de vida que se forma a nossa experiéncia do’ mundo e da linguagem. Na experiéncia de vida de cada um, con- § frontam-se e reduzem-se & unidade — ao seu intimo, dificil pro- | cesso de articulagzo — linguagem, sentimento, mundo. Acolher a poesia é dar abrigo a esta voz, ¢ a uma relagao entre o Eu e 0 Mundo. Que voz é esta que nos fala com tanta intensidade? Estou farto do lirismo comedido Indicando os diferentes modos de elaboracao da experiéncia, na arte e no texto literdrio, um atento aos muileiplos planos do real, outro que tende a deformagao do real, Gilda ¢ Antonio Candido procuram ver o que dé unidade a textos de ritmos e formas tao diversos. E esbocam uma interpretagao de Estrela da vida inteira’, caracterizando o Eu lirico desses poemas: A nossa atengio ¢ despertada inicialmente pela voz lbrica deste Eu, que, ao construir os poemas, nos acompanha a cada paso, dando a cada verso o seu timbre e a sua vida’. Os poemas de Manuel Bandeira trazem sinais dessa vor, que deveremos tentar distinguir ¢ caracterizar. Abre-se, a quem os quiser ler e ouvir, a experiéncia de um conhecimento da solidao ¢ de uma possibilidade de comunhio; a ela, porém, s6°4 poderemos reconhecer a0 nos colocarmos & escuta da expressao 1 82 JORGE KOSHIYAMA poética e tentarmos compreender nesta 0 desdobrar-se de uma experiéncia, de uma reflexo ¢ de uma confidéncia do poeta. De imediato, do reconhecimento da “vor litica’, voltamo-nos para a necessidade de responder & questao: Quem é o poeta? Leitura do poema Pottica, poesia, poema que faz de um poema um poema? O titulo do poema, — “Poética” — est carregado de miiltiplas determinagoes. Um grande professor, Flavio di Giorgi, lembrou certa vez, em aula, que estudar a etimologia das palavras é buscar as miiltiplas rafzes da formagio do sentido. Poética, do grego poiein (Fazer, criat) & “o estudo da criagéo poética em si mesma”6. Poema, do grego poiein (Fazer, criar, produzir), & em grego, 0 que é ou foi criado pela mo do homem, um termo equivalente a artefato, resultado de arte, artesanato). O que se discute a partir do termo poética € | uma reflexdo sobre a criagio, e como, nesta, a experiéncia do mundo ¢ a arte da poesia vém se interligar. Esperavamos, pois,_| uma arte de poesia. Mas o poema vai se propor algo que se distin- gue nitidamente da elaboragéo de uma poética formal, de uma doutrina ou ciéncia da poesia, mas tenta dar uma expressio dire- tamente poética & experiéncia do lirismo. Nesta experiéncia, através da palavra de um poeta, com o que entramos em contato? A palavra desse poeta estabelece uma mediagZo entre poética e litismo, procura fazer-nos refletir sobre um momento de uma crise, de um processo de cisao social e psiquica, de que a lirica do século XX dé um testemunho. LEITURA DE POESIA 83 Poética A Iitica é sempre uma resposta a uma experiéncia. Nao uma experiéncia fora da histéria. Se voltarmos as rafzes, aos radi- cais de poesia, poema, poética, verificaremos, como indicamos acima, a intima associagéo entre trabalho, linguagem, poesia. Pela raiz verbal poiein, o poema aparecia como a condensagao de um trabalho, mas, este é um nome tardio. Antes da diferenciagao de poética e poesia de outros termos também utilizados para designar aqueles que exerciam essas atividades, o aedo dava nome simultaneamente Aquele que exercia a arte do canto e a arte de narrar; a clogiiéncia de um tecer, com sua muisica e linguagem, a unidade de uma histéria. Mas, pouco a pouco, esse trabalho, de que Homero era o exemplo méximo, passou para outras maos. A poesia é esse trabalho de, através de uma experiéncia com o Ser, lembrar e custodiar, mediante a forga de uma lin- guagem bela e memordvel, aquilo que, nomeando-nos, € 0 sinal de uma comunidade auténtica. A intensidade ético-religiosa da representacio que Werner Jaeger nos oferece da vida e da'acao do poeta, definindo-o como Educador, mostrando os heréis de Homero nao como forcas cegas, mas como seres humanos aut6- nomos que lutam para dominar essas forcas ¢ para cumprirem, com autonomia, sua vida, contrasta com o realismo aristotélico. Jaeger recorda que “o homem nao quer ser ou permanecet cego”; em face da Ate ou da Moira, o homem conserva a claridade da Tazo, mesmo no reino sombrio do Hades: Homero concebe a ate, tal como a moita, dum modo estrita- mente religioso, como uma forca religiosa & qual 0 homem ‘mal poderia resisir. No entanto, principalmente no Canto IK, 0 homem aparece, senio como senhor de seu destino, ao menos como autor inconsciente dele. Hé uma profunda necessidade no 84 JORGE KOSHIYAMA fato de serem precisamente os Gregos, para quem a acto herbi- ca do Homem se situa no mais alto lugar, a sentir como algo de demontaco 0 trdgico perigo da cegueina e a eterna oposigdo & ‘ago e & aventura, enquanto a resignada sabedoria asidtica sentava evitar o perigo pela inagdo e pela remincia. A frase de Herdclito: 80g avOpone Soapov encontra-se no termo de um caminho criado e percorrido pelos Gregos no conbecimento de seu destino. O poeta que criou a figura de Aquiles esté no inteio desse caminho?. Contrasta, com isso, o realismo do estagirita, ao considerar a estrutura € a representagio poética das acées humanas, partindo de processos e questées de técnica pottica. Discutindo os erros dos Poetas € as objecdes que Ihes sio feitas pels criticos, Aristételes anota: Ousra questito ¢ a categoria do erro, conforme fira os princt- ios da arte, ou de outro dominio. Com efeito, ignorar que a corca nao tem galhos é erro menos grave do que pintd-la numa figura irreconhectvel. Além disso, se a censura é de que ndo representam os originais quais séo, quigé os tenham figu- rado quais deviam ser. Séfocles, por exemplo, dizia que ele representava os homens como deviam ser e Euripides, como cram. Essa a solugio; se, porém, nem sito como sto, nem como deviam ser, a solucao é que “assim consta’: por exemplo, no caso dos deuses. Talvez. néo os fagam melhores, nem como sao na realidade, mas como ocorreu a Xendfanes; “é como dizem”. As vezes, quid, nao haja havido melhoras, ¢ sim representou- se como costumava ser; no caso das armas, “langas a prumo, conto fincado no chio” porque esse era 0 costume do tempo, como ainda hoje na Iltria®. J& em Euripides, lembra ainda Jaeger, estamos diante de dramas e destinos individuais. Aristételes constata uma cisdo en- LELTURA DE POESIA 85 tre um modo de representar 0 poeta como testemunha histérica de uma comunidade, ou entéo como alguém que afirma uma perplexidade individual diante de todos os valores, diante do mundo. E a partir desta linhagem de poetas, de testemunhas de uma oposigao entre a consciéncia ¢ o mundo, que se inicia com Euripides, que se constitui a poesia do Ocidente. Agora, que Manuel Bandeira tenha dado 0 titulo de “Poé- tica” a esse poema é significativo de dois modos. Em primeiro lugar, representaria um esforco de compreender, novamente, ndo uma arte da poesia, mas 0 que nela € nascimento, condicéo de uma experiéncia; em segundo lugar, o que se quer é definir uma arte poética, ou compreender a experiéncia da poesia? O tema da ctiagdo poética é um dos fios condutores desse poema de Ban- deira. Mas, se podemos, no caso de um poeta do século XX, falar de uma arte poética — ou de seu contrétio —, de que modo deveremos entender esse processo? Talvez. tentando pensar as relagdes que 0 poeta brasileiro estabelece entre poética e litismo. Poética e lirismo 1 Estou farto do lirismo comedido 2 Do lirismo bem comportado 3 Dolirismo funcionério piiblico com livro de ponto {expediente protocolo e manifestacdes de fapreco ao sr. direror. 4 Estou farto do lirismo que, péra ¢ vai averiguar no [diciondrio o cunho vernaculo de um vocdbulo Deve-se pesar a relacio entre poética e lirismo, E é curioso que, no primeiro verso de um poema, trabalhe-se a relagio entre poética ¢ lirismo. Em nenhum momento do poema, Bandeira fala de poesia, mas, sempre de lirismo. Para compreender a ori- 86 JORGE KOSHIYAMA gem do lirismo, devemos voltar a consideragées sobre a Podtica de Aristételes. As nogdes de poética de poesia sio histéricas; distinguindo a Poética da Teoria da Argumentacio e do Discurso (a Retérica), ele caracteriza a poesia ¢ a teoria dos géneros potti- cos, distingue a epopéia, a tragédia e a comédia. Detenhamo-nos no tratamento dado ao ditirambo, pois é nele que encontramos a origem do lirismo. Os ditirambos eram os poemas corais entoa- dos nas tragédias. O coro era acompanhado por instrumentos como 0 aulds (forma de citara arcaica), a lina e diversos instru- mentos de percussio. Deste instrumento, a lira, derivou 0 termo lirismo, como sinénimo de canto. Depois de Safo de Mytilene, ou de alguns passos, quase incompreensiveis, nos ditirambos de Estesicoro ¢ Arquiloco, o verdadeiro sentimento litico sé reapa- receria seiscentos anos depois, nas Tristes de Ovidio, nas jarchas mogérabes®, nos cantos dos trovadores e em Dante!®, Caracteriza-se a lirica como um processo de separacio entre © canto € 0 epas (a arte de narrar). O canto, que volta-se, mediante recusas sucessivas, para a interioridade pura, terminaria condu- zindo a um conceito de poesia e a poéticas da negatividade em que a consciéncia e a palavra constroem-se dialeticamente. Ou canto reflui para si mesmo, mimetizando e reiterando a cisio social e ps{quica, ou ele constréi-se como uma resposta a esta cisio, Ainda no século passado, Leopardi recusava-se a cindir, em sua Itica, 0 canto ¢ 0 pensamento, a visio da natureza ¢ a histdria A cisdo apresenta duas faces, uma que indica um insula- mento do poeta, que se colocaria como um ser maldito, ¢ outra, sombria, em que a nobreza de um poeta como Mallarmé era negada. A recusa do “lirismo comedido” representa algo que vai além da inegével preocupagao de Bandeira, naquele momento, 1928, de intervir em um debate sobre o futuro da poesia, debate em que cle participava como uma forca construtiva, e, ao mesmo tempo, LEITURA DE POESIA 87 impulsionando ¢ pasando a Emilio Moura ¢ Carlos Drummond de Andrade — ow a todos 0s que 0 amavam ¢ acolhiam — o testemunho insubstituivel de sua poesia. Ela é um exemplo de fidelidade ao canto, que, nascido do coracio, expressa-se, nesses versos, apenas por uma caracterizacéo negativa ¢ dialética do lirismo, e isto em toda a série dos versos iniciais do poema. O gesto de recusa (“estou farto de”) é reforcado pelo movimento entoacional de um verso que se espraia, como uma onda ritmica. Como que se retoma, aqui, o movimento de uma fala, que rompe nossa expectativa de uma determinago conceptual de “poética”. O que temos é uma expressao direta, indignada: 1 Estou farto do lirismo comedido 2 Do lirismo bem comportado 3 Do lirismo funcionério piblico com livro de ponto expediente protocolo e manifestagoes de fapreco ao st. diretor. 4 Estou farto do lirismo que para ¢ vai averiguar no [diciondrio 0 cunho verndculo de um vocdbulo Prop6e-se uma ruptura contra todos os que operam no nivel da retérica, que, por exemplo, separam os termos poéticos dos ndo poéticos. Na circunstancia de 1928, é claro, & contra os passadistas, ou melhor, é contra os nao-poetas que ele se dirige. Manifesto Abaixo os puristas Todas as palavras sobrerudo os barbarismos universais ‘Todas as construgées sobretudo as sintaxes de excecao “Todos os ritmos sobretudo os inumerdveis eau 88 JORGE KOSHIYAMA O poeta imita agora nfo o tom de uma conversa, mas 0 tom de um manifesto. Em um primeiro modo de ler, esses pre- ceitos de poética podem ser aproximados seja de propostas do ultraismo! seja das propostas cubo-fururistas!2, Mas, se os lermos como propostas de uma poética prépria, pessoal, o que houve foi uma ampliagao de ritmos, de possibilidades de criar. Em autores de menores possibilidades criativas, como Oswald de Andrade, houve uma adesio de modo mais estrito a um tinico tipo de rup- tura parodistica, sintético-semantica, que se reitera em uma linha conceitual. Manuel Bandeira nao se deixou prender a uma obrigatoriedade desses processos ritmicos, desses preceitos, mas 20 colocar-se como programa operat6rio: 8 Todos os ritmos sobretudo os inumeraveis valeu-se desses ritmos inumerdveis para dar uma musicalidade extraordindria a “Evocagio do Recife”. Em sua poesia e na de Car- los Drummond de Andrade, 0 verso livre acolhe esses “titmos inumerdveis’, mas também disciplina-se: é antes de tudo verso. 9 Estou farto do lirismo namorador 10 Politico 11 Raquitico 12 Sifilitico Eis que se retoma, quase integralmente, o ritmo ¢ 0 movi- mento da primeira estrofe, com uma deslocagéo de acento para a rima — usada porém de um modo irénico: “Politico/ Raqui- tico/ Sifilitico/”. 13 De todo lirismo que capitula ao que quer que seja [fora de si mesmo. ‘Através das caracterizacSes negativas usadas até agora, ch gamos ao que € lirismo. Mas, o que ¢ lirismo? Ao recusar aceit LEITURA DE POESIA 89 © que “capitula ao que quer que seja fora de si mesmo”, pela recusa do ndo-lirismo, desse nao-canto, negando as negagées, percebemos as determinagGes reciprocas de lirismo e poesia. Ota, essa identidade € a mais dificil de caracterizar, pois o que nela vive é um modo de ser. O que capitula ndo é poesia, quem capitula nao é poeta. Resistir, nao capitular, é um modo de exis- téncia do ser e do “si mesmo” (o Seif de Jung). A afirmagao do lirismo em si mesmo, que nos parecia uma estranha determi- nacio do principio de identidade ¢ nao-identidade, esta afir- magio da identidade do ser humano consigo e com os outros, uma presenga que o trabalho da linguagem e a poesia funda deixa de ser, para nés que 0 lemos, um paradoxo, pois o lirism é agora referéncia imediata a0 Self, 2 identidade fundamental entre ser humano e ser humano. “O lirismo em si mesmo” € aquela experiéncia com a linguagem, em que se funda, para nés € para os outros, a lembranca e a possibilidade de uma comu- nhfo auténtica. E 0 canto, que € feito da mediacao entre vi mundo, linguagem, da escolha nossa, é palavra de um vivente. Mas, antes, temos de passar por mais uma série de negagées. Talvez esta estrofe seja a menos necessérias seu mérito € 0 de constituir uma ponte a partir da qual seja poss{vel a afirmagao do lirismo: 14 15 Sera antes contabilidade, tabela de co-senos secretério [de amante exemplar com cem modelos de [cartas e as diferentes manciras de agradar As [mulheres, etc. O lirismo é ditirambo, didlogo coral. “Que ¢ homem”?, pergunta o coro em Edipo-Rei. O lirismo € 0 que se afirma em face desta tiltima série de negacdes. Nao capitular. Veja-se, agora, a afirmagio. Quem sou? Como vivemos? Que ¢ a identidade de 90 JORGE KOSHIYAMA lirismo e poesia, em um nivel mais profundo, se quisermos nao definir mas sentir a sua realidade, mesmo se isto € possivel ape- nas a partir de graves feridas: 16 Quero antes o litismo dos loucos 17 O lirismo dos bébados 18 O liiismo dificil e pungente dos bébados 19 O lirismo dos clowns de Shakespeare E curioso que, ao passar das negacées para a afirmacio, aparecem versos medidos: uma redondilha maior (7 silabas), uma redondilha menor (5 sflabas) e dois versos de arte maior, como se fosse de modo a fazer-nos perceber que esta nao € possi- vel, sem uma miisica ou uma cadéncia e um determinado ritmo livremente aceito. lirismo dos loucos O litismo € a renovasao do canto ditirambico. Se o lirismo, isto & a expressio do ser humano que é portador da experiéncia poética, nao pode capitular “ao que quer que seja fora de si mes- mo’, é estranho que ela seja nomeada mediante categorias nega- tivas, Ao escrever “o lirismo dos loucos”, Bandeira no estaria voltando ao Romantismo? Nao necessariamente. Porque o louco nomeia a margem de fora, o lado mais obscuro, a partir do qual nds nos movemos até alcangar, pela experiéncia da linguagem, a possibilidade de nos colocarmos & procura de uma comunhio. ‘Mas 0 louco, que teré de comum com o lirismo, ou, mais preci- samente, com este poeta, a néo ser a dor, 0 sentimento de uma perda, de uma nostalgia? De modo muito mais radical que o liti- £0, 0 louco define-se por faltas, por caréncias, por uma retracéo frente ao mundo. A poesia € porém a afirmagio de uma identi- LEITURA DE POESIA 91 dade, Apesar da aproximagao romantica entre loucura e poesia, a ela ndo poderia elevar-se Kaspar Hauser, em seu insulamento irreversivel, sem palavras. Porém, Isidoro Blikstein lembra-nos que, para Kaspar Hauser, a paisagem do mundo ¢ indecifravel, talvez porque a experiéncia do mundo seja anterior & “codifi- cago lingiiistica”. Talvez Manuel Bandeira fale do “lirismo dos loucos”, do “litismo dos bébados/ 0 dificil e pungente lirismo dos bébados”, movido pela necessidade de dar nome as palavras dos homens, mas, reconhecendo que vivemos em um perfodo de crise, de uma cisio social e psiquica exasperada, ao dar nome as palavras ¢ aos softimentos dos homens, entrega-nos, em custédia, 0 no- me ea identidade de seres igualmente feridos. Esta identificago do poeta a seres marginais, a seres feridos, a seres minimos, dé- nos a medida da pungéncia e da compaixio caracteristicas de sua poesia. Aquilo de que Manuel Bandeira fala é do contetido de uma poética negativa, para levar-nos & experiéncia do lirismo em si mesmo. A experiéncia da palavra, que encontra a sua sintese mais alta na poesia, é emogio. E apenas porque o lirismo pro- pée-se como projeto conservar plena ¢ integra recordagao da experiéncia individual € social, que 0 poeta pode integrar a cexperiéncia de seres que vivem & margem ¢ trazé-los, com a forga compassiva de sua emogéo e de seu canto, para junto de nds. Lirismo, libertagao 20 nio quero mais saber do lirismo que nao ¢ libertacao No meio da excentricidade em que vivemos, em meio & dor, & solidio, ao espanto frente ao desenraizamento do presente, irrompe, como um grito de vida e de esperanca — nostalgia de uma comunhio, essa palavra que nos repde, mesmo corporal- 92 JORGE KOSHIYAMA mente, a caminho. Finalmente, compreende-se o lirismo como emogao, como pungencia, mas, ao mesmo tempo, como um caminho em que se resgata a meméria de uma unidade. Saber-se vivo — lembra 0 poeta japonés do século XVII Matsuo Bashé, mestre na vida e na arte da poesia — € sentir que estamos a cami- rho, em viagem. Extrema afirmacio de madureza e do canto ne- cessétio, Ao identificar a experiéncia humana, o lirismo ¢ a liber- ago, Manuel Bandeira deu nome poesia, resgate ¢ sinal nosso, vivo. Deu nome & poesia em si mesma. Lirismo, libertagao. Reflexdes Caracterizar o lirismo em si mesmo é manter-se no ambito de algo que pode ser compreendido como uma poética pessoal, prépria aManuel Bandeira, ou deveria esta compreensiio da poe- sia como libertacao ser colocada como um conceito igualmente coletivo de poética? Neste caso, se o texto em exame tem relagoes com outios textos de poesia ¢ pottica do século XX, do Moder- ismo europeu e do Modernismo brasileiro, quais sao elas? Por outro lado, a0 pensar a relagdo entre o Todo ¢ as Partes, lembra- mos que relagao entre poética e lirismo deve ser repensada. Localizando o poema na obra de Manuel Bandeira no Modernismo brasileiro ‘Telé Porto Ancona Lopez lembra-nos, no Preficio & edigao critica das Poesias completas de Mario de Andrade, da necessidade LEITURA DE POESIA 93 de precisar a circunstancia e de localizar cada poema na obra do poeta, na hist6ria dos movimentos literérios e culturais's. Precisar 0 sentido de alusdes ¢ de propostas dos grupos ¢ dos escritores modernists, por volta de 1930, permite-nos pensar o significado de “Poética’ no desenvolvimento da obra de Manuel Bandeira ¢ de uma visio de pocsia. Qual o significado deste poema ¢ da poesia de Manuel Bandeira para Mario de Andrade e para poetas mais jovens, como Carlos Drummond de Andrade? Formalmente, “Poética” é um poema escrito em versos livres. E a recuperagao de um momento de uma conversa, reto- mada a partir de um certo instante. Mas 0 poema é “forma” (Aristételes). O poema imita sucessivamente 0 tom de uma con- versa, o tom de um orador popular (“lirismo raquitico/ [...] inu- meriveis"). A explosio exasperada, segue-se um movimento de volta para si, de escuta interior, de confidéncia. “Poética” € 0 décimo poema de Libertinagem, 4° livro de Manuel Bandeira. Poesias (1924) reunira seus livros anteriores (Cinza das horas, Carnaval, Ritmo dissoluto).. Ritmo dissoluto jf retine poemas como “Os sinos”, “Quando perderes 0 gosto hu- milde da tristeza’, “Meninos carvociros”, “Baldezinhos”. Todos esses so poemas essenciais de sua obra. Em Libertinagem, o poe- ma “Poética’ aparece ao lado de “Nao sei dangar”, “Camelés”, “Cacto”, “O porquinho da India”, “Evocagio do Recife”, “Vou-me embora pra Pasdrgada”. Com esses poemas, “Poética” entra em uma relagao dialética, uma vez que tais poemas vio responder & proposta de poética de nosso autor, pelas formas mais estranhas, de auto-ironia, de humor pungente, de “ligdes de infancia” (“Ca- melds”, “Evocagao do Recife”), de sonho, de libertacio. Entre 1924 e 1930, desenvolvem-se, de um lado, as aventu- ras paralelas da criagdo de Macunatma e Cobra Norato. No plano da pottica ¢ da criagdo literdria, textos de Mario de Andrade, Losango cdqui e A poesia de 30, sintetizam um dos pélos da reno- 94 JORGE KOSHIYAMA vacio literaria, e 0 Manifesto da Antropofagia também procurava ampliar a liberdade de criagdo, reconduzindo-nos a uma escuta do mito, do lendério e do inconsciente. Em “Revistas re-vistas”, posficio da Revista de Antropofagia, Augusto de Campos analisa ‘© quadro cultural daquele perfodo. Mas, ele valoriza, na poesia daquele momento, um tinico aspecto, que aparecia sob as formas de uma critica da linguagem. Cabe assinalar um veio em que a poesia se cala, Embora se encontrem, no Martin Cereré, alguns veios de ouro, estes se perdem, porém, no meio de discursos em que a fala ¢ a ideologia se enrijeceram em retérica congelada. ‘Ao resenhar, em A poesia de 30, Poemas de Augusto Frede- rico Schmidt, Alguma poesia de Carlos Drummond de Andrade, Poemas, de Murilo Mendes, e Libertinagem de Manuel Bandeira, Mario de Andrade aponta a busca de um equilfbrio entre uma liberdade interior de criagao e uma poesia que se busca e se cons- tr6i!5, Neste clima, qual a posigao de Manuel Bandeira e qual 0 sentido com que este poema intervém nesse debate sobre os rumos da poesia? Bandeira propée simultaneamente uma poética de libertagao, mas, a0 mesmo tempo em que se volta contra as propostas da poesia anterior, ele vai colocar-se, para poetas mais jovens que cle, como Carlos Drummond de Andrade, como exemplo de alguém que procura a poesia em uma confidencia. No debate em curso naqueles anos, a sua interven¢Zo marcou um ponto de sdbrio reconhecimento de que a poesia nao pode ser procurada em formas exteriores ao sentimento que se quer cexprimin, sejam essas processos discursivos ou retéricos, ¢ que a poesia é, enquanto lirismo, aquilo que dé nome & nossa identi- dade humana. Poética de um grupo, coletiva? Tal como Bandeira a coloca, em sua poesia ¢ nas cartas a Mdrio de Andrade ¢ a Carlos Drummond de Andrade, a sua poética volta-se, com forga, contra tudo 0 que ¢ negagao da poesia. Em relacao a sua propria poesia, a forca de sua linguagem compassiva, com a sua LEITURA DE POESIA 95 pungéncia, é a de alguém que nos fala ¢ resgata para nés, na solidao em que vivemos, um sentimento de comunhio. Acima da circunstancia, uma poética essencial Acima do seu valor de intervengio no debate sobre a poe- sia dos anos 20, esta € uma pottica essencial. Emogéo ¢ palavra alcangam-nos. E, por isto, melhor que todos, pade ler-te Carlos Drummond de Andrade: Nao é 0 canto da andorinha, debrugada nos telhados [da Lapa anunciando que vida passou 2 toa, 4 toa Nao é 0 médico mandando exclusivamente tocar um {tango argentino, diante da escavagéo do pulmao esquerdo ¢ do pulmao [direito infilerado. No so os carvoeitinhos raquiticos voltando [encarapitados nos burros velhos. Nao sao os mortos do Recife dormindo profundamente [na noite. Nem ¢ tua vida, a vida do major veterano da guerra do [Paraguai, ade Bentinho Jararaca owa de Christina Georgina Rossetti: & tu mesmo, é tua poesia, tua pungente, inefavel poesia, ferindo as almas, sob a aparéncia balsimica, queimando as almas, fogo celeste, ao visité-las; €0 fendmeno poctico de que te constituiste o misterioso [portador 96 JORGE KOSHIYAMA € que vem trazer-nos na aurora 0 sopro quente dos [mundos, das amadas exuberantes ¢ das [situagbes exemplares de que nao [suspeitévamos. © pode mesmo dizé-lo: © pocta melhor que nés todos, o poeta mais forte — mas, haverd lugar para a poesia? (“Ode no cingiientenério do poeta brasileiro”) Drummond, poeta secreto, mais marcado pela dor e de to- dos o mais reticente em relacéo 4 comunicabilidade da experién- cia poética, transforma Manuel Bandeira no representante de todos os poetas e vé nessa pungéncia tao préxima de seu descon- certo ¢ de sua indignacio, de seu sentimento de desconsolo, de desconfianga e de amor, um lugar que permite um intimo aco- Ihimento ao ser humano. E isto, que se pense nas santas palavras de Antigona, era 0 que o poeta e muisico Séfocles indicava como sua misso: nomear, na intimidade do coragdo, a possibilidade de um reconhecimento reciproco, que é, igualmente, acolhimento ao Ser. Do lirismo em si A liberdade moderna de ritmos, a que corresponde uma gran- de mobilidade no arranjo da frase, ésigno de que se descobrin ¢ se quer conscientemente aplicar na pratica do poema, 0 principio duplo da linguagem: sensorial, mas discursivo, finito, mas aberto, ciclico, mas vetorial. Lod Ora, a arte pottica, ntvel mais alto e mais livre de organiza- LEITURA DE POESIA 97 sto da matéria fonica, pode ou néo reproduzir este ritmo frésico. O dilema, historicamente posto e resolvido em cada texto poctico, é julgar se a composigio literdria deva destacar do fluxo oral a esstncia nua da alternancia, ¢ fid-la, quer dizer: deva extrair dos varios riemos da linguagem 0 metro, 0 nimero\s, Ao definir a dupla vocacéo da poesia moderna, a alternan- cia entre uma liberdade de ritmos ¢ padrées formais estritos, Alfredo Bosi aproximou a poesia da musica ¢ de uma forma que, no limite, visaria capturar a esséncia da temporalidade. Cons- ttuindo-se como miisica, ela, porém, rompe com esse padrio, ¢ quer construir um espago dentro do tempo. A poesia de Bandeira, porém, independe dessa oposicao entre a liberdade de ritmos 0s processos e padrées formais, pois, além de reunit os dois mo- mentos, expande-se até abolir as fronteiras entre poesia € prosa, € responde por um conceito e por uma experiéncia do lirismo, que é palavra que empenha o ser humano como um todo, e ape- nas nesse sentido pode ser compreendida enquanto cria¢io. No lirismo, a experiéncia foi reconduzida & intimidade absoluta, on- de a palavra tem seu enraizamento'”, O lirismo, que aproxima negatividade e reflexao, é a relagao entre a exprtessio e a intimidade do si mesmo, de uma poética que é libertacao, apenas por ser con- fidéncia, que nos abre a possibilidade de uma escuta, de acolhida de comunhao com todos os seres vivos. Um poema coloca-se como momento de uma cadeia que tune poeta e leitor. E algo como uma conversa entre duas pessoas, ou, para usar a expressio de Martin Buber, é um Eu-Tu. Assim Martin Buber descreve uma relaco interpessoal de natureza dia- 6gica, nao solipsista, que é a relagao direta do homem com Deus ¢ € a norma para as relacées entre os setes humanos. Somente, no lugar da palavra frdgil, luente, que aguarda ¢ espera a resposta do interlocutor, um poema é algo que se coloca em uma relacéo 98 JORGE KOSHIVYAMA fem que a palavra construida pelo poeta recusa a transitividade e a fragilidade de uma conversa. Um poema é uma formacio, uma palavra que vai & procura de alguém que a ousa e a faga sua. As duas mevéforas da “fratura” ¢ da “supléncia” colocam-se, em O sere 0 tempo da poesia, do professor Alfredo Bosi, como indi- cadores de uma relacéo entre poesia ¢ linguagem. O poema, como descreve Aristételes, modelo para o ser humano, nao se acha tao longe dessa concepgio de poesia como forma de reco- nhecimento recfproco. Nao haverd forma de compreender essa margem da poesia, em sua proximidade e distancia — 0s sinais que nos fazem essas miiltiplas linguagens? Em nossa histéria, nés trazemos conosco “no apenas os nossos feixes” (Salmo 125), mas também 0s nossos cdnticos. Notas Conheso apenas um registro, raro, de uma leitura de alguns de seus poemas, em um disco que ouvi na casa do compositor Willy Cotrea de Olive 2 No primeito capitulo de A condigao humana, Hannah Arendt reavalia as con- digbes da existencia humana na Terra: “o nascimento ¢ a morte: a natalidade ¢ a mortalidade” (p. 16). Na Introdugio a esse livro, Celso Lafer escreve: “O primeizo item a ser mencionado & a originalidade do ponto de partida de Hannah Arends, quando ela afirma que a natalidade, ¢ nao a mortalidade, é a categoria central do pensamento politico” (p. VIII). Nao apenas do pensa- mento polio dams, O que a ques em seu eso fli sobre 0 n- tido de nossa condigio: “o novo comego inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado pode iniciar algo de nov, is & agi Nese sentido de initia, todas a atividades do homem suem um elemento de acio, e portanto, de naralidade. Além disso, como a io lade politica por exceléncia, a natalidade, ¢ nao a mortalidade, de consticuir a categoria central do pensamento politico contraposto 30 cae (naa down ¢ Eat nar 0 que significa, & luz dessa inversdo epic, © problema da natu- humana, a questio mibi factus sum ('a questio que me tornei para mim mesma” de Sato Agosinho) € 0 problema central de A condizao bumana. 3 Arendt, Hannah, op. cit.,“Prélogo", p. 10. 4 Bandeira, Manuel, Eserela da vida inteira.7..ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1979. LEITURA DE POBSIA 99 da ¢ Antonio Candido de, “Inttodugio™. In: Enrela 9 de Janeiro, José Olympio , 197 risttles, Horicio, Longino. Jntredui Introd. Roberto de Oliveira Branda ETA: A formato do bemem Herder (Copyright Aster Lisboa, 1946). A clito esti no texto de Estrobeu, Fl avalcanti de Souza: “Hericlto c h 0 demi lminio €0ésco)”. Nota do tradutor: “A revessio do sentido, sugerida pelo que indiquei entre parénteses, ¢ permitida,sendo exigida, pela estruturacio da frase ), 23. Cito a tradugio de José sgregt, que nao determina pela posicao 0 sujeito © o predicado. O que esté em primeizo lugar pode ser predicativo e o que esté em segundo pode ser sujeito Os pré-soerdticos — Herdelito de Efeso, trad. de J. Cava Paulo, Abril, 1973). Ethos, em grego, rcfeze-se 4 estrutura c a0 juizo sobre a uumana, Dando ao que em nds estrucura essa agao (0 ético) a forma uum génio ¢ colocando-o no interior do ser hamano, Hericlito afirmava, pe ira vez, no pensamento antigo, a estrutura dialética da agdo humana. E a tém por radical um verbo que significa agi. Conduta e ago s dos deuses ¢ mitos sio indicados pelo mesmo radical. A Jo prof. José Cavaleanti de a conduca, a acio dos 8 Poética. In: Aristételes, Hordcio, Longino. A podtica cldsica, cit, cap. XXVL p49. uem quiser acompanhar a histéria da poesia no Ocidente, nos dec. ltimos séculos, pelos ensaios de Pound, et ¢ (2. ed., Norfolk, New Directions Books, 1930), em que este valoriza, contudo, uma visio inte. lectualista da lirica ¢ volta-se para figuras, ccmo a dos trovador dello, de Dante e de Browning, pesado em que a ago pode ainda ter de impacto criativo sobre a p 11 Vero estudo de Jorge Schwarcz sobre a poética de cosmopolitsm do Medernismo: Orwild de Andrade 0 Paulo, Perspectiva, 1983. 12 Os futuristas falavam de uma imaginagio sem-fios, em uma poética que foi comada pelo grupo de Oswald de Andrade. 13 Blikstein, Iidoro, Kasp er ea fabricacéo da realidad, Sio Paulo, Cul- trix, 1981, 4 Ver o Preficio & edicio critica das 2 s de Misio de Andrade, reali- Andrade, Mirio de. Aspectos da lit ’aulo, Martins Fontes, 1975, 16 Bosi, Alfredo. “Frase: mtisicae siléncio”. In: O sere 0 tempo da poesia, Si Paulo, Cultix, 1977, pp. 76 Adorno, T.W. "Conferéncia sobre lirica ¢ sociadade”. In: Benjamin, W:; Ador- tno, T. € outros, Textosescolhides, Sio Paulo, Abril, 1975, Murilo Marcondes de Moura eRe 10 15 Aproximagao do terror 0 2 Murilo Mendes Dos bragas da poeta 2 Pende a épera do mundo (empo, cirurgiao do mundo): — O abismo bate palmas, A noite aponta o revélver. Ougo a multidao, 0 coro do universo, O trote das estrelas JA nos subtirbios da caneta: ‘As rosas perderam a fala. Entrega-se a morte a damicilio. 30 Dos braco: Pende a épera do mundo. 35 2 Tenho que dar de comer ao poema. Novas perturbac6es me alimentam: Nem tudo 0 que penso agora Posso dizer por papel e tinea. O poeta j& nasce conscrito, Atento as fascinantes inclinagdes do etro, Ja nasce com as cicatrizes da liberdade. O owvido soprando sua trompa Percebe a galope ‘A marcha do ntimero 666. Palpo a Quimera O tremor E os jasmins da palavra “jamais”. 2 Dos telhados abstratos Vejo os limites da pele, Assisto crescerem. os cabelos dos minutos No instante da eternidade. Vejo ouvindo, ouso vendo. Considero as tatuagens dos peixes, astro monossecular. Os-tochedos colocam-se mdscaras contra pdssaros [asfixiantes. A grande Babildnia ergue o corpo de délares. Ruido surdo, 0 tempo oco a tombar... A spiral das geragées cresce.! Os jasmins da palavra jamais Murilo Marcondes de Moura Introdugéo cn proximagio do terror” & um poema tipico de Murilo] Mendes, basicamente pof duds caracteristicas: as, OApe rente esgarcamento da composigao a sonalidads\ religiosa, neste caso angustiada, Uma boa maneira de perceber a primeira dessas caracteris- ticas é observar de que modo, no decorrer das leituras iniciais, as ' partes que acabaram de ser lidas vio sendo passn a passo esque-@ cidas, ou ficam retidas apenas de modo residual. Isso revela uma forma de compor que se afastou muito da légica causal imediata; “Spreensfvel Tineatmiente; afirmando, ao contrdrio, uma estrucura irregular e fragmentada. E como se o corpo do poema fosse cons- ‘Titiiido de pedagos Cija unidade — se existir — imp@e-se ao lei- tor como enigma, semelhante & figura da Quimera que aparece na parte 2, A propria divisdéo do poema em trés partes jd parece acusar essa estrutura compésita. Em_outras passagens, Murilo M eta eminentemente lirico, também incorporaria 0 105 feio por intermédio da busca (nele congenial) da deformacao e {alo inséliro. E quanto & dimensio religiosa, alguns elementos -,avulsos — “a marcha do mimero 666”, “a grande Babilénia”, *: espiral das gerages” — compéem um conjunto fragmentado po- rém firme de referéncias, sugerindo vinculos intertextuais com outros discursos, como 0 Apocalipse de Sao Joao. Esta confluéncia de procedimentos artisticos ultramodernos (a técnica da montagem, por exemplo) ¢ visio catélica é essen- cial no poeta e muitas vezes incomoda. E um trago flagrante que se manifesta no s6 no movimento geral da obra, mas também gro detalhe, investigar como ocorre essa farticulagao em “Aproximacio do terror” pode proporcionar, pois, tanto um encaminhamento para o modo de ser mais intimo do {\poema, como uma abertura para quest6es mais amplas da obra ‘do autor. falvez nao seja de todo desnecessdrio advertir que a poesia de Murilo Mendes raramente se entrega com facilidade. Sao pouquissimos os poemas que fascinam de imediato ¢ logo se transformam em pecas incontestes dé antologia. Em contrapar- tida, 0 leitor, thesmo nao especializado, teria maiores chances de escolher, ao acaso, alguns dos poemas usualmente presentes nas melhores seleces das obras de Drummond e Bandeira, por exem- plo. Apontar esta diferenga, esta claro, no visa estabelecer ne- _nhuma escala de valor entre estes poctas ou entre seus leitores, mas mente aludir a alguns problemas intrinsecos 4 obra de Murilo Krendes suscitados por “Aproximacao do terror”. Pois diante deste poema, 0 leitor vive a situagio incémoda e paradoxal de ser con- vidado a entrar — afinal ele comega com o aniincio de um espe- ticulo (a “épera do mundo”) — e encontrar a porta fechada ou “fem mesmo encontrar @ porta. Ele precisa reivindicar seu aces- so, insistir na necessidade de sua participacao ativa, o que é cada vex mais raro. Os que se dispuserem a fazé-lo certamente encon- 106 MURILO MARCONDES DE MOURA Cr: A ¢ \} . . ros ae trario a marca de um dos nossos maiores criadores, cuja Obra /~ heterogénea ¢ ampla mesclou preocupagées intimas, sociais € religiosas pelo exercicio estético mais fino e obstinado. I ("Do que fala 0 poema? Do terror, jé presente no titulo € [desdobrado em intimeras imagens (versos 4, 5, 10, 20-25, 33- 35)? Da condigao do poeta (1-3, 13-19)? Proporia uma reflexéo. \ sobre a criagdo pottica (8, 13, 16)? Ou se trata antes de uma \y meditagéo angustiada sobre o tempo (3, 7, 20-23, 25, 28-29, 32, 35-36)? Como vincular esses temas as referéncias religiosas diretas (20-23, 29, 34-36)? Por que proliferam imagens relativas a0 corpo (1, 4, 5-7, 9, L1, 13-14, 19, 20, 23, 27-28, 30-31, 33-34)? Eo que pensar da metéfora inicial: 0 mundo como épera ¢ esta como poema (jé que pende dos bragos do poeta)? Ou do didlogo des- continuo e obliquo que se estabelece entre certas imagens: poeta- regente/caneta, tempo-cirurgiso/(bisturi), cicatrizes do poeta! tatuagens dos peixes/limites da pele, estrelas/mundo/telhados/ pele? | Existe aqui uma auséncia de repouso fundamental, 0 tran- “Gito entre os fragmentos & demasiado inquieto para que a nossa | / atencio consiga se fixar de imediato em algum ponto articulador | | — esta infinidade de diregbes e auséncia de hierarquias lembram \" a imagem do caos. Convivem sem mediagées explicativas 0 maiot \ _, €.0 menor (mundo/elhado, espiral das peragies/poeta, a ror dade do tempolminutos), 0 artificial e o natural (6pera, poe “A associagio inicial mundo-Gpera-pocsia pode set um bom, meso e nos induz a pensar © poema como uma composiséo \Layiors eeratorteonsrd OK ema 107 pf m trés momentos icante e esse desdobramento cons- titui 0 corpo do poema. Isto é, do primeiro ao tiltimo verso vamos construindo uma figura, ainda que pelos estilhagos. O lei- or, espécie de ouvinte-assistente do poema-dpera, deve tomar ‘parte ativamente: concernido pelo que ouve e vé, nao Ihe resta _outra alternativa sendo buscar o sentido de tal figura, o que pres- supée uma tomada de posicao. De espectadores a atuantes: esta é a passagem que espera de nés 0 poema. Dito de outro modo, © assunto € vasto (0 mundo) e desconfortdvel (0 terror), e nao hd como o leitor deixar de se ver envolvido (em particular, supée-se, 0 leitor contempordneo do poema, escrito entre 1944-45). En Sintesé, 0 importante € considetat que a imagem ini cial sugere a idéia de conjunto, de coisa fechada e coerente em si mesma, uma espécie de organismo. A figura que 0 poema forma ao longo das partes € unitdria (uma opera), ainda que pertut- badora. Algo que poderfamos formular, parafraseando, como a unidade do vasto — “a 6pera do mundo”. _ _ J A is -outrast 6 poeta como regente, cujos bracos dao inicio fungo, permite a analogia entre a batuta de um ea caneta de outro, esta diretamente mencionada em duas “ passagens: “subtirbios da caneta” e “papel e tinta’, Trazer para a caneta as possibilidades da batuta ou trazer para a poesia as pos- \sibifidades da muisica — 0 poema como som. Como se trata de juma épera, a muisica é apenas um dos elementos componentes, Inecessitando ser complementada pelo trabalho cenogréfico. Tra- zet para a poesia, portanto, também as possibilidades visuais — o ema como imagem. Relagdes que parece corroborar o verso 1050: “Vejo ouvindo, ougo vendo”. —~Existe aqui uma ampliagio do campo expressivo da poe- sia; ela é, por assim dizer, esticada em diregao as duas artes tio caras ao poeta? i intura)\Ampliagao que nao deve ser 108 MURILO MARCONDES DE MOURA Ox ; ne sa at Barulhento, imagético, descontinuo ¢ agénico, 0 es est longe de ser dos mais agradéveis; & estilo)é sempr€elevado, )? Gee ansiominanc € a5 tumilto, Nao hé como dear tomada como declaracao de insuficiéncia da poesia ¢ sim como profunda confianga em seu poder de sintese. , tao evocados pelo [guns tragos comuns surpreen- { ocalipse de Sao Joao: imagens \ de relaciond-lo aos ms pleréricos,ciftados, que se confundem na percepgio do 4, 2 apéstolo (“Em minha visdo ouvi ainda o clamor de uma multi- dio de anjos...”; “Eu, Jodo, fui o ouvinte ¢ o testemunho ocular destas coisas. Tendo-as ouvido e visto...” etc.), alegorias hibridas ¢ aterrorizantes que inspirariam outros artistas do século, como Max Ernst. Sabe-se que os discursos apocalipticos biblicos, ainda que voltados para o transcendente, séo obcecados pelas correspon- dentes circunstancias histéricas, normalmente terriveis, ¢ contém muito de adverténcia exaltada aos contemporaneos, pela anteci- paco das “coisas que deverao acontecer muito em breve”. O es- petdculo apocaliptico é a revelagao do fim ¢ traz consigo enorme carga de ambivaléncias: a instauracéo de um reino ¢ o ani mento de outro. Nos termos biblicos, “doce e amargo”1O dis- SuFSOapocaltptico; humanidade, é um género marcadamente pablico, ea poesia que fade grande interesse um estudo comparativo da “poesia de guerra” no Brasil, pais periférico no conflito mas de muicas ma- neiras envolvido, jé que o posicionamento contra o nazi-fascis mo pressupunha a critica ao totalitarismo doméstico do Estado Novo. Entre nés, no campo da poesia, Murilo Mendes e Carlos | Drummond de Andrade foram as vozes mais comprometidas da época, manipulando no plano estético dois pontos dg vista dey o Ce Mmpromehraen'o terruns of ross DVOmMrord © MMent ey carter universalizante, respectivamente 0 catolicismo ¢ 0 mar- xismo. As diferencas néo poderiam ter sido maiores (em termos esqueméticos, a importincia da intervengio divina no primeiro e da préxis humana no segundo), embora uma semelhanca difusa fosse inevitavel: certo tom amargo de esperanca, que per- mitiria a Drummond vislumbrar 0 “ouro oculto” nos fragmen- tos negros dos corpos e dos escombros de Stalingrado, preliidio da “grande Cidade de amanha”, ea Murilo Mendes, antecipar na Babilénia em queda a ascensio da Jerusalém Futura. © que importa para o encaminhamento da leiura de “apo ximagio do terror” é compreender de que modo o fazer poético, ao incorporar a viséo religiosa e 0 momento histérico, consegue x\ estabelecer centros muito bem definidos, mesmo que de intera- ~sio problematica: o estético, 0 religioso ¢ 0 social. Dé um lado, o fato histérico da atualidade (a II Guerra Mundial) € enquadrado na escatologia catélica, ¢ o poeta fala en- \2 to como profeta (na Biblia, “atalaia” ou “oréculo”), o que expli-,, \u' caria.alinguagem fragmentada ¢ cifrada; teligio, histériae poesia estariam relacionadas, assim, pela alegoria: 0 elemento primério €0 plano divino da salvacdo, a histéria humana um derivativo ¢ poesia um vaso comunicante entre ambos, isto é, uma estrutura inclusiva que remete o profano ao sagrado pelo procedimento da montagem. Talvez.o impulso do leitor seja deter-se aqui e dar tudo por explicado, inclusive a tensio mencionada no injcio entre visio religiosa e técnicas de vangitarda. Afinal, 0 préptio material com que © poema trabalha — sons ¢ imagens — jé teria sido larga- mente utilizado pelo seu arquétipo biblico, que teria fornecido ainda o exemplo da opacidade num texto entretanto piblico. f) ‘A operago seguinte seria descer aos detalhes do poema, as suas imagens isoladas, ¢ tentar ler, nelas, a cifra do conjunto jé assimilado, Antes de prosseguir, porém, observemos que tudo no 110 MURILO MARCONDES DE MOURA poema passa por um processo de desvalorizacio: 0 acontecimento histérico terrivel que o precipitou, a posicao do poeta, o proprio trabalho artistico. A guerra seria mero sucediineo do apocalipse, assim como o poeta do profeta e a poesia do verbo divino. Projetar tal esquema unilateral sobre algumas imagens jé apontadas pode funcionar: “A marcha do ntimero 666”, “A gran- de Babilénia ergue 0 corpo de délares”, “A espiral das geragies cresce”, Nao por acaso, so versos de referéncia muito mais ime- diata. Dificil ¢ associar o plano alegérico de conjunto a um verso como “E os jasmins da palavra jamais”, provavelmente 0 mais fascinante do poema. Portanto, parece muito mais revelador, sem diivida mais trabalhoso, analisar com espitito desarmado os nticleos funda- mentais de tensdo do poema, assim como seus elementos consti- tutivos de detalhe. A importancia da alegoria retornard, inclusive pela presenga maciga do tropo bisico do poema — a personifi- caso, mas ao lado de outras componentes. tf Do ponto de vista propriamente analitico, deve ter se tor- nado clara, pelo que jé foi discutido, a importancia de investigar de forma minuciosa aqueles dois modos de percepgao que se {' imbricam um no outro — “vejo ouvindo, ougo vendo” — e que 4. coincidem com os dois pélos operisticos e também apocalipticos £ do poema: 0 som ¢ a imagem. O leitor constata de imediato a presenga de alguns ru(dos ao longo de todo o texto: palmas, revélver, a multidao, 0 coro, o () trote, a marcha a galope, culminando com o ruido surdo do final. « Esquema muito semelhante ocorreré em diversos poemas do li- vto Poesia liberdade, sobretudo em “Janela do caos”, um dos mais LEITURA DE POESIA Ter famosos. Representar a guerra como espetdculo musical caricato € grotesco foi um dos meios predilecos do poeta para acusar a deformacao e a barbérie. , A rigor, a produgao de tais sons seria propria somente da “multidao” e do “niimero 666” (“ntimero de homem”, segundo © Apocalipse joanino). Mas cles tém agentes insuspeitados: of abismo, a noite, 0 universo, as estrelas, 0 tempo. A personifica- §, padtio imagético do poema, é portanto paralela & produgao Vg de rufdos. A humanizagio da natureza, em escala césmica (a. “6pera do mundo”) ii_uma das rafzes do grotesco neste * parma, Descontados 6 coletivo impessOalizante “multidao” ¢ a figura arquetipica da “Besta”, o tinico ser humano propriamente Ae dito € 0 poeta, mas o lugar que ele ocupa é o de observador-escri- Sis ba. Na sua absoluta maioria, as personagens do drama séo coisas ou elementos da natureza, uns estridentes como o revilver; ou- (<> tos mudos como as rosas. Esta autonomia dos objetos concorre \8” Para enfatizar a contranatureza da circunstancia, patente no verso “Os rochedos colocam-se méscaras contra péssaros asfixiantes”, ‘em que surge uma variante do tema de Prometeu — carissimo a Murilo Mendes — filtrado por imagens da guerra. A parte este aspecto genérico, a sonoridade do poema é bastante elaborada em intimeras passagens. O verso “OJouvido sbprantlo|sua\trompa’, constituido de trés anapestos, é clara- mente uma harmonia imitativa do galope marcial da Besta, agente por exceléncia do terror apocaliptico. O esquema ritmico existia na versio inicial — “Os ouvidos percebem a galope” — ‘mas sem as aliteragées “so prando sua trompa” acompanhadas do jogo de nasais. Além da maior riqueza sonora, 0 verso mantém © padriio imagético, de estranheza, pelo qual uma parte do corpo ganha autonomia. O detalhe que se emancipa do todo assay ¢ entao a designé-lo, nos moldes da sinédoque, se entrelaga com a cee Personificagio como modo dominante de geraggo de imagens v 4 x & 112 MURILO MARCONDES DE MOURA _ (bragos/poeta; caneta/criagéo poetica; pele/organismo; minutos! tempo), sendo diretamente responsivel pela relagdo de desconti- nuidade que se estabelece entre os elementos do poema. ‘Aquela mesma estrutura formal (eneassilabo com trés ana- estos) reaparece em outros momentos: “O poeta jé nasce cons- crito”, “Os rochedos colocam-se méscaras...” e “E os jasmins da palavra ‘jamais’. O segmento em que surge este verso mistetioso talvez seja 0 mais trabalhado em termos de sonoridade: Palpo a Quimera Owemor | E os jasmins da palavra “jamais”. ‘Nas quatro palavras centrais, trés delas oxitonas, a tonica incide sobre a segunda sflaba. Além disso, existe uma alternancia de timbres abertos ¢ fechados entre as quatro vogais acentuadas, todas elas balizadas pela mesma consoante /m/. A proximidade sonora que se estabelece entre estes quatro elementos, sobretudo se ordenados aos pares (Quimera/tremor; jasmins/jamais), faz pensar na sua reversibilidade: “E o jamais da palavra jasmins”... Ao vé-lo afirmar que “palpa” tais elementos, o leitor das memé- tias do poeta evoca de pronto a passagem em que ele pretendia, ainda menino, “pegar” 0 som; trabalhando com elementos tio abstratos mas de trama sonora tio cerrada, 0 som parece ser aqui, de fato, a tinica coisa palpavel. Enredar no texto os elementos do terror (Quimera / tremor / jamais) por meio de tais recursos uma operagao que confina com a magia: tentativa de neutralizar 0 indesejével com formulas encantatérias. Na versio inicial constava: “E os jardins da palavra jamais”. A mudanga para “jasmins” certamente foi bastante feliz para a mu- sicalidade do verso pois, sendo palavras quase anagramiticas, a aproximagio delas torna-se ainda mais insélita visto que motivada. LEITURA DE POESIA 113 Isto é, afirmar que a palavra jamais contém jasmins é absurdo do ponto de vista Iégico, mas plenamente aceitavel para 0 ouvido. E possivel aproximar essa imagem do topos cléssico da brevidade da vida ou da fuga inexordvel do tempo (“jamais”), normalmente associado ao fanar das rosas (“jasmins”). Num poema tao volta- do para a destruicéo, para a presenga da morte, a relagio pode ser pertinente. De todo modo, parece um verso a ser compreen- dido muito mais com as razdes do corpo € nao tanto com as do intelecto. Por outro lado, como vimos, aqueles elementos estéo todos referidos ao eu lirico, que mantém com eles uma relagdo titil. Aqui tudo se passa no campo mais livre das imagens, pois a tini- ca coisa palpével (no sentido de ter um corpo) é um ser fabuloso —a Quimera; j4 “tremor” e “jamais” passam a adquirir figurada- mente tal corporeidade. Tal corporificagio reitera a figura bésica do poema e pode ter sido outro forte motivo para associar“jas- sins” a “jamais”, isto é, para fazer o abstrato conter 0 concreto. © que parece mero detalhe ganha enorme importancia, pois o elemento abstrato preponderante no poema € 0 tempo; 7% personificado desde o inicio (“cirurgiaéo do mundo”), vai adqui- rindo mais e mais volume (“assisto crescerem os cabelos dos minutos”) até “tombar” no iiltimo acorde do poema-6pera. Visto de perto, o tempo adquire existéncia paradoxal pois de seu adens: "000" mencionado no fim. Crescer para esvaziar-se... Ao set corporificado, o tempo € #* sabmetido aos ciclos vitais e pode, por exemplo, murchar como qualquer organismo mortal. Embora correto, iss0 ainda €insuft- ciente, por nio_explicar 0 porqué de se representar a morte do tempo, presenea das mais fortes no pocma desde o inicio até 0 encerramento. ‘Aqui sera preciso voltar ainda uma vez a visio religiosa do autor: 0 tempo nasce da ruptura do humano com o sagrado, 114 MURILO MARCONDES DE MOURA expande-se na busca da recuperagao daquela harmonia origindria e morte quando esta ¢ finalmente alcangada. Nos termos do poe- ma, 0 tempo é 0 “cirurgido do mundo” por ser um agente trans- formador, mais especificamente agente da cura de um organismo doente, organismo este, como vimos, de amplitude césmica (0 mundo depois da “Queda’). O tempo faz incisées na pele do universo (“astro”, “estrelas”), na pele do poeta (“cicatrizes”), na pele dos peixes (“tatuagens”) etc. Ao operar 0 mundo, do maior ao menor, o tempo opera-se a si mesmo, pois prepara a irrupsao do eterno, etapa final do plano divino da salvacéo, quando os seus servicos passam a ser dispensados, jé que a remissio total estard consumada... Diante de um pocma como este estamos senipre no can ensaistico, mas nao seré despropositado afirmar que cle é em gran. de parte um exercicio de flagrar a atuago do tempo, ao tran: formé-lo de abstrato em concreto, ao Ihe dar um corpo ¢ u voz ¢ até mesmo uma morte. Devemos supor que o poeta estabe\i?” leceu pacto intimo com o tempo, sustentou demorada medi-\\® tagfo sobre sua natureza, para, finalmente, fazé-lo revelar-se na) linguagem poética. poeta, assim, torna-se um émulo do tempo. E de se notar que ambos so os sujeitos principais do poema, o primeiro como “cirurgido”, o segundo como poeta-regente... do mundoy7. Esse paralelismo, que forma a abertura do poema, deve ser en-\y tendido em seu sentido mais fundo. Ambos atuam sobre os seres e elementos de modo a desarticuli-los, a descobrir-lhes os refolhos ca estabelecer entre eles relagées inusitadas. O poeta, ser antigo como o tempo, é igualmente um agente da cura do mundo, como aparece nesta definigao do proprio Murilo Mendes: ~ Asravés dos séeulos, 0 poeta ¢ encarregado ndo sb de revelar aos outros mas de viver praticamente no seu esptrito e no seu san- LEITURA DE POESIA 115 ‘gue a sua vocagao transcendente de homem... O poeta é 0 ins térprete dos mistérios da criagéo, um visiondrio do amor e dg ‘morte, um grande mago. A poesia é uma desforra, uma recor quista do paraiso perdido. Nés procuramos na poesia 0 foi perdido pelo erro e pelo atraso dos homens, [Em outra pat sagem, lé-se:] as mais antigas tradigoes, quase imemoriais, constituem o lastro da poesia. Todo poeta auténtico, de acordo com essa visio, estaria} impregnado do “sentimento do tempo” ¢ teria a capacidade dé conservar intacto 0 conhecimento das origens e fins da humanit, dade, assim como teria o dever de torné-las piiblicas, sobretudo em tempos de desagregagio. Nao por acaso 0 livro Poesia liber dade & dedicado “aos poetas mogos do mundo”; além da afits | magéo de esperanca, hd nessa dedicatéria uma alusio clara & cont 3 tinuidade de uma famflia de homens que Murilo Mendes consit derava capaz de se situar na vanguarda dos acontecimentos.. (“Dos telhados abstratos vejo/ assisto/ considers”) porque capaz de resguardar a lembranga do mais recuado. Mas tais sujeitos fortes esto, como todos os outros ele: | mentos da criagao, fatalizados para a morte. O tempo, organismo abrangente cuja pele envolve todo o resto, imprime em tudo 04 selo da morte. E no interior desse imenso organismo que pulsa, © corpo individual do eu lirico. A mesma idéia, também sugerida, pela guerra, aparece em outro trecho do livro Poesia liberdade: “4 morte coletiva apodera-se da morte de cada um”. O “tremor” pet rante a destruigao é como que transmitido de criatura a criacuraa num abalo avassalador. Ora, entre 0 espetéculo césmico da destruigao total (a mort. te do mundo) ¢ a insercio nele do sujeito singular (a propria morte) cria-se uma tenso enorme. O poeta registra tudo de uma posicao destacada — do alto (“Dos telhados abstratos”), mas en 116 MURILO MARCONDES DE MOURA volvido ao exttemo, pois 0 espeticulo observado inclui a prépria destruicao. A “aproximagao” da morte individual também par- ticipa da integridade do texto, estabelecendo assim um novo dinamismo para este poema que se monta a partir de centros em faga. Quando o leitor acredita ter capturado um sentido mais fixo, este, sem ser excluido, é logo reconduzido a outro. Outro aspecto rltmico essenciale bastante perceptivel dé-se pela repeticao de um conjunto de versos relativamente homoge-/ | nneos: “Das bracos do poeta” / “Pende a 6pera do mundo” /“Q abismo bate palmas” / “A noite aponta o revélver” /“O trote dak estrelas” | “As rosas perderam a fala” / “Nem tudo 0 que pensd{ agora’ / “Dos telhados abstratos” / “Vejo os limites da pele” / “Nj instante da eternidade” / “Vejo ouvindo, ougo vendo”. Conta| giados por esta repetigio, nticleos semelhantes se destacam nd leitura de outros versos: “cirurgiéo do mundo” / “o coro do uni- verso” / “A grande Babiiénia...” / “o tempo oco a tombar”. E uma quantidade considerdvel de versos de duragao se-/ melhante (a matriz é a redondilha maior), quase todos de sentidd completo, num procedimento conhecido do leitor de Murilo Mendes: justaposigao de versos em staccato. O resultado primeiro disso € um andamento rpido e sincopado. Tal andamento rela- ciona-se diretamente com 0 movimento da visio, veloz.¢ enu- merativo: abismo / noite / estrelas / caneta / rosas / ouvido / ro- chedos etc. Como estes elementos esto ainda animados pela prosopopéia, a inquictude é extrema, Existe uma perfeita sincro- hia entre o ritmo rapido € recortado, a sucesséo vertiginosa de elementos descontintos diante dos olhos, ¢ as ages que tais ele- mentos efetuam, em geral excitadas: bater palmas, apontar 0 re- vélver, trotar, escrever. .. © fazer postico & proposto como atividade febril ¢ ner- vosa: “Novas perturbagSes me alimentam” / “Tenho que dar de comer ao poema”. © poeta exposto 20 terror empunha a caneta l5o efi 7 LEITURA, DE POESIA p l registra como pode os acontecimentos, de modo que a recepti- vidade corporal € paralela ao ato de criar. As partes do corpo salientadas so, por um lado, ouvido ¢ olhos — recepgio dos sons e imagens —, por outro, bracos e maos — o ato de escrever. O corpo do poeta é um organismo de interiorizacao e exteriori- zac’o simultaneas ¢ 0 poema retém essa pulsacdo de organismo vivo e também “se alimenta’. A imagem do corpo é tao essencial que permite ao leitor vislumbrar a figura de conjunto do poema como uma estrutura de organismos que se contém uns aos outros em cfrculos concéntricos. O menor destes circulos, ¢ por isso mesmo 0 que suporta o maior impacto, € 0 da criagao poética, mais especificamente 0 poema que lemos — personificado na caneta com os seus “subtirbios”. A declaragao “Nem tudo 0 que penso agora/ Posso dizer por papel e tinta” parece se referir a um intervalo problematic entre a experiéncia convulsionada do eu lirico ¢ a notagao dessa experiéncia. O poema se faz como arabesco tenso, espécie de ras- cunho, ao ter de pulsar em sintonia com a realidade a ser repre- sentada: auténtica confluéncia de planos em que um modo de ver sobressaltado associa imagens da guerra contemporanea a imagens apocalfpticas. A propésito, todos os verbos do poema esto no presente: a tinica excecio, “perderam”, descreve o estado atual do sujeito a que se refere ("rosas”), designando algo como © “As rosas esto mudas”, por exemplo. Isso reafirma o fato de 0 poema se construir no corpo-a-corpo com a realidade fiance de si, sem. i, sem_mediagtes sem distancia, submetenda-se ao acho i eer ou apenas aproximativa. inacabado é uma caracteristica latente na produgao poé- tica de Murilo Mendes, diferenciando-a muito da de outros gran- “,o! des poetas brasileiros; uma vez ele definiu seus poemas como ~ “estudos” que outros poderiam desenvolver... No entanto, seria apressado estabelecer jutzos inflexiveis de valor, pois o inacabado, 18 MURILO MARCONDES DE MOURA precisamente a maior caracteristica formal deste poema, tornou- se uma das categorias estéticas distintivas da modernidade pela recusa, ou impossibilidade, da representagio linear. > A obra de Murilo Mendes, sobretudo entre 1930- 1945, dialogou de modo declarado com uma das principais vertentes da modernidade: 0 surrealism. Em “Aproximagao do terror”, a énfase na receptividade do poeta e na poesia como registro ime- © diato sugerem fortes analogias com a “escrita automética’, método 9” bésico de producio artistica do movimento francés. André Breton, em trecho do primeiro manifesto surrealista (1924), propoe o que ele considerava 0 estado mais propicio & criagio artistica € que poderia constar como comentirio parcial a este poema de Murilo Mendes: \ Coloque-se no estado mais passive, ou receptivo, que puder. Faca abstracdo de seu génio e de seus talentos [...] Escreva rdpido sem assunto pré-concebido, suficientemente rdpido para que nao seja tentado a reler-se [...] Continue 0 tanto que Ibe aprouver. Confie no cardter inesgotdvel do murmirio. Em “Aproximagao do terror”, o “murmiirio” corresponde- ria ao famento das criaturas ¢ aos sons da guerra cuja transcri¢ao ‘ assume cardter quase mecnico: os bragos e a caneta, avulsos, que se deslocam incessantemente. O padrio ritmico, ditado pela re~ y dondilha maior, pode ser encarado como outro indicativ de um Aluxo espontineo. Asia neste sentido especfico, 0 poema dey goal mbors, parafouente, tudo nce esta personifcado), Pele ieee Oe Oi Esse cevazlamento da originalidade autoral j4 ocorrera na TelEGHO poeta-profeta discutida acima, em que a palavra poética aparecia como sucedaneo da revelacio divina. No Apocalipse de So Joao, o ato de escrever € igualmente compulsério e impera- LEITURA DE POESIA 119 tivo: “Escreve, pois, 0 que viste...” é a voz que comanda o braco do apéstolo. ‘Mas assim como era impréprio ler 0 poema como pura alegoria, também seria forcado interpreté-lo como surrealista de modo pleno. Algumas imagens — a “espiral das geracOes” ¢ a “6pera do mundo”, por exemplo — apresentam um potencial articulador premeditado, estranho & gratuidade do jogo surrea- lista. Sem deixar de ser alegérico-religioso ou surrealista, 0 poema se constréi, antes, como uma interacio entre estas duas confor- magées, interacao esta que tem uma histéria particular na poética de Murilo Mendes: 0 “essencialismo”, termo cunhado pelo pré- prio poeta para designar as idéias do grande amigo Ismael Nery. Como revela 0 préprio nome, trata-se de uma proposta de cod nhecimento das esséncias, de inspiracao catdlica, e que se servia largamente dos procedimentos artisticos das vanguardas, em par- ticular do surreaismo. A proposta de Rimbaud — “desarticularyh 0s elementos” — tal como fora filtrada pelos surrealistas, ¢ lida em. chave mistica, podia proporcionar o aprofundamento do olhar °) em dirego a uma realidade mais universal e menos episddica. Em conseqiiéncia, estabeleceu-se uma definigao de poeta (e tam- bém de poesia) da maior importancia para a producio inicial de Murilo Mendes: “o poeta deve misturar-se na vida, constituir-se uum centro de relagées”, “um essencialista deve procurar manter-se rna vida como se fosse 0 centro dela, para que possa ter a perfeita relacao dos fatos e das idéias”, “inteligéncia de choque, o artista se mantém como centro de convergéncia de todos os fatos”. Por estas definigoes, podemos apreciar 0 quanto as posigdes centrali- zadoras do poeta e da poesia, marcantes em “Aproximacao do terror”, correspondem a um sincretismo tipico de Murilo Men- des entre visio religiosa e fazer artistico, ‘Mas, para restabelecermos a tensao especifica do poema, o que circunda de modo absoluto o criador e sua obra s4o os agen- 120 MURILO MARCONDES DE MOURA tes do terror: abismo, revélver (0 antipoda exato da caneta: (' ambos se empunham, um para destruir outro para criar), a mar- cha do ntimero 666, pdssaros asfixiantes etc., enquanto outros? ~ delicados, acham-se neutralizados. “O abismo bate palmas” e rosas perderam a fala” sao versos andlogos de muitos pontos det’ vista e, por isso mesmo, a oposigao entre eles ¢ tanto mais enfitica. Trata-se de uma circunstincia em que hé o fechamento para o lirico ea necessidade de confronto com o mal. Algo préxi- mo ao que se 1é em tantos poemas da época, como no exemplar “Maus tempos para a lirica”, em que Brecht coloca a atividade poética dividida entre as “macieiras em flor” e os discursos de Hitler, para os quais forgosamente acaba se voltando. A sua maneira, “Aproximacdo do terror” também é um poema em que se discutem 0 lugar do poeta ¢ a fungio da poesia, como jé foi sugerido atrds, Ele estd “conscrito”, “atento”, assinalado pelas “cicatrizes da liberdade” e sua poesia — “poesia liberdade” — necessariamente comprometida. Sem diivida, 0 compromisso estd eivado de religiosidade, mas é fundamental notar que 0 tom angustiado do ema deslo- \ ca visto ligion de eu horizon em gral epic e pu | “Feador para o Gampo des “pereutbagber. [0 & 0 poe 4 {a-3e ufo mals para 9 pdlo desteutivo da guerra (0 presente) do \ “Gute para a regeneracio fatalmente por vie (0 futuro), também ° enfatizada nos discursos apocalipticos. “ete sentido, um bom exapls dE contase com ‘Apro- ximagio do terror” ¢ 0 célebre “Quarteto para o fim dos tempos” do compositor Olivier Messiaen, datado de 1940. As condigées do mtisico eram muito mais adversas do que as do poeta brasileiro, pois estava em um campo de concentracdo, no centro do terror, onde a pega foi tocada pela primeira vez (“nunca fui ouvido com tanta atengao e compreensio”, comentaria anos depois Messiaen). A fascinante miisica do quarteto, porém, é de natureza quase LEITURA DE POESIA 121 ‘oposta & do poema: extremamente contemplativa, parece situar- se além do conflito, jd no plano do eterno. Murilo Mendes, por sua vez, sempre teve predilecao pelos estados intermedidrios, em que duas ou mais realidades se ten- sionam; para utilizar uma palavra-chave de sua obra, sempre procurou voltar-se para o “choque”. Ora, do ponto de vista da composicao tal perspectiva gera conseqiiéncias enormes, sendo que a mais imediata delas vem sendo amplamente lembrada aqui: a descontinuidade. Ao consultar a primeira versio do poema, publicada em 1947 no volume Poesia liberdade, 0 leitor observa com espanto 0 quanto certas passagens foram deslocadas. Os atuais versos 13, 10, 26, 20 ocupavam respectivamente as seguintes posicoes: 10, 21, 22, 27. Como o poema sempre esteve dividido em trés Partes, isso significa que elementos da parte 1 migraram para a 2 € desta para a parte 3 etc. A sensagio é a de quem acompanha um jogo de armar, cujas regras combinatérias obedecem a uma légica prépria ¢ fugidia. O essencial ¢ reconhecer nessa reuniao de fragmentos independentes ¢ na reversibilidade que se instala entre eles 0 auténtico nticleo do fazer poético em “Aproximacao do terror”. Cada pedago é, 20 mesmo tempo, uno em si mesmo porém suficientemente aberto para estabelecer relagdes com os demais. A versio final do poema pode ser considerada melhor do que as anteriores pelo rigoroso trabalho do poeta em alguns detalhes, mas em qualquer das quatro verses existentes subsiste a impressio fundamental de auséncia de centro ou de seu esface- lamento em varias ditegGes. Ora, 0 centro esfacelado é 0 elemento mais impregnado de visdo religiosa. Trata-se do despedacamento de um grande corpo, imagem classica da Igreja ¢ do “corpo mistico”, ou seja, da humanidade estendida no tempo em sua destinagao celeste. Jé os fragmentos tém existéncia e impulsos singulares, que sio ¢ néo 122 MURILO MARCONDES DE MOURA sfo redutiveis a este esquema maior. A atualidade infiltra as ima- gens tradicionais de uma incémoda temporalidade — a imagéti- ca canénica do apocalipse traduzida do ponto de vista da guerra moderna —, ao mesmo tempo em que estas projetam sobre o tempo presente sua natureza arquetipica. Deste modo, o invisivel — 0 corpo mistico — ganha visibilidade no momento de sua desagregaao (histérica), assim como é esta que instiga a tentativa de afirmagao da harmonia. Mais uma vez em Murilo Mendes, poeta dos “dois lados”, observa-se uma tensio inextricdvel entre 0 plano de conjunto, que almeja tudo explicat, e o detalhe, que ganha autonomia, E impossivel pender demais para um pélo sem deixar escapar 0 outro. Complexo, estranho e angustiado é como poderfamos defi- nir “Aproximagio do terror” e também quase tudo o que Murilo Mendes produziu de melhor naquele perfodo. Nota "© poema tem quatro versdes diferentes. A primeira em Poesia liberdade (Agit, 1947, pp. 67-9); a segunda em Poesias, primeira reunio da obra postica do autor (José Olympio, 1959, pp. 324-5); a terceira na Antologia ‘pottica organizada pelo proprio Murilo Mendes (Agir, 1964, pp. 89-90); «, finalmente, na recente Poesia completa e prosa (Nova Aguilar, 1994, pp. 431-2), baseada nas variantes deixadas pelo poeta que revia incessante- mente seus trabalhos. Esta passou a ser, portanto, a obra de referéncia; sua primeira edicio, porém, apresenta falhas ocasionais de edigio, Na transcti- ‘40, suprimi o ponto apés “Quimera’ (v. 23) ea virgula apés “Vejo” (v. 30). Na edigio da Nova Aguilar constava: “Palpo a Quimera./ O tremor! E os jasmins da palavra jamais.” e “Vejo, ouvindo, ougo vendo.”. Hi diferengas enormes entre a primeira versio do poema e as trés posteriores, jé entre estas alteragbes de detalhe. LEITURA DE POESIA 123° et SO eee wari Wore A musa quebradiga Fabio de Souza Andrade ntre todas as formas fixas da expressao lirica, 0 soneto chama nossa atencio pela capacidade de resistir as idas e vindas do gosto poético. Ainda hoje, apesar da ‘marca forte da recusa modernista das formas fixas, a moldura dos quatorze versos € a traducéo gréfica mais comum da iia “poesia” para os ocidentais. Traducio simplificadora, mas que revela em negativo a grande disposigao adaptativa do soneto, uma flexibilidade que Ihe permitiu atravessar os séculos. No Brasil, talvez nenhum outro poeta modernista tenha tido uma relagio tao duradoura ¢ proveitosa com 0 soneto como Jorge de Lima, Seu percurso poético, rico ¢ variado, pode ser acompanhado trangiiilamente através dos imimeros sonetos que escreveu, desde os parnasianos de estréia, até os 6rfico-herméticos do fim da vida. A cada passo, a cada salto, 0 autor de Invenio de Orféu sentia-se obtigado a medir Forgas com o soneto, espécie de termémetro de seus impasses expressivos. 127 Nao é de se estranhar que tenha dedicado um livro exclusi- vamente a eles, presentes desde o titulo, no Livro de sonetos (1948). Essencial & definigao do estilo final de Jorge de Lima, a coletanea é atravessada de ponta a ponta pela teasao entre 0 automético, sugerido pela multiplicagéo de imagens insélitas, e o arquitetado, marcado pela adogao da forma breve e fixa. No itinerdrio do poeta, este embate antecipa a questio central de Invencao de Orféeu, caudaloso poema épico-litico que encerra sua obra ¢ con- densa sua importancia. Os sonetos atrafam Jorge de Lima por seu cardter concen- trado, classico, desafio a uma imaginagéo poética como a sua, naturalmente inclinada ao jorro, aos grandes movimentos expan- sivos. Os depoimentos do cunhado do poeta, Povina Cavalcanti, ¢ do médico ¢ amigo, J. Fernando Carneiro, relatam que o pré- rio Livro de sonetos teria sido composto de um jato s6, enquanto Jorge de Lima se recuperava de uma estefa, internado em clinica de repouso carioca. Talver isso explique a forte unidade do livro, costurado pela recorréncia temdtica e a retomada com variagées, quase musical, de diversas passagens — e mesmo poemas inteiros — ao longo do volume. Mas saber que 0 poeta escreveu sob efeito de psico- trépicos, além da curiosidade biogréfica, nao adianta muito aos interessados na natureza da lirica em geral ¢ da poesia de Jorge de Lima em particular. Os poetas trabalham para fazer de cada esa uma ménada, uma méquina de significagdo. completa, inteligivel em si, Para uma compreensio verdadeiramente abran- gente, a clareza explicativa dos percalgos biogréficos nao pode ser convertida em panacéia das diividas do leitor. E justamente a reflexio sobre a natureza da litica um dos assuntos preferidos do Livro de sonetos. Toda uma série de poe- ‘mas reunidos no volume desenvolvem uma arte poética pritica, voltados para o tema da criagao, agrupando-se ao redor de deter. 128 FABIO DE SOUZA ANDRADE minados tépicos muito caracteristicos do autor — como a inves- tigagao da inspirago noturna e do sonho como estimulos & fan- tasia, ou ainda a dificuldade de dar forma exata a uma imagem complexa da realidade, em fuga constante, correspondente & in- quietagio do sujeito lirico. Entre os muitos sonetos dedicados a este tema, analisemos o que se segue, desenovelando as imagens complexas que 0 formam. Como sombra invasora e transbordada de asa de cinza e chuva quebradiga tu desterras 0 tempo interrompido com tua solidao alucinada. Pedra de olvido e fonte abandonada, essa faixa de névoa é téo perdida que morte e nasce em ti, se em mim tu inclinas tua distancia em plumas desfolhada. De cal flutuante ¢ de onda descontinua Musa és to s6, tao mar ensimesmado to sortilégio, tao solitéria e erma que pareces escada submarina para cu descer imerso, no teu reino investido dos mantos decisivos. Mesmo aquele que nao tenha familiaridade com o universo de Jorge de Lima, nao deixard de notar desde a primeira leitura alguns elementos que fazem o interesse deste soneto — certa LEITURA DE POESIA 129 atmosfera mitica, seu carter visiondrio ¢ érfico, uma tendéncia 20 isolamento orgulhoso do sujeito litico, criador de um micto- cosmo particular. Mais do que qualquer outro recurso expressivo associado A Itrica, prevalece aqui o apelo as imagens. A narracio do encontro decisivo e repentino entre aquele que fala, 0 poeta, ¢ sua musa se realiza a partir da combinagao de uma série de elementos visvais, fortemente entrelagados. O encontro que se descreve vai ganhando substancia através de naturezas elementais (a chuva, 0 mar, as ondas, as plumas). Estamos as voltas com uma simplicidade ligada aos fundamen- tos, que universaliza 0 discurso e jé indica a seriedade com que © poeta trata seu objeto. Lidar com acontecimentos desta ordem sugere uma atengo voltada para coisas essenciais. O olhar do poeta desgarta-se do banal e dirige-se para o césmico, aquilo que diz respeito a toda a humanidade. O aspecto marinho do poema também é muito caracterfs- tico de Jorge de Lima. Ele nao se concentra neste ou naquele verso, mas contamina com seus atributos (a 4gua, 0 movimento, a impressio de perenidade associada & perpétua oscilagao) todos 0s outros elementos imagéticos. Quando o autor de Invengao de Orfeu faz. a opcao pelo campo de imagens relativas ao mar, esco- Ihe de uma s6 vez a matriz. das qualidades que especificardo, de maneira concreta, as varias pegas do poema e seu resultado final. A maneira de uma constelagdo, os diversos elementos sim- ples configuram-se em uma formaco que, 0 mesmo tempo, pre- serva suas qualidades individuais e dé origem a novas realidades, compostas. Estes grupos imagéticos devem sua forca ao efeito de Conjunto, & rede de sentidos complexos que se estabelece com sua interacio, sob o efeito de um campo poético. A ordem tinica € imutével em que esto dispostos pelo poeta é a responsével por este efeito e, longe de obra do acaso ou da inspiracio gratuita, 130 FABIO DE SOUZA ANDRADE resulta de uma sensibilidade educada e um ouvido apurado, da reescrita, da vontade poética ativa. ‘A complexidade obtida a partir dessa combinagio de ele- mentos aparentemente tio simples age como uma armadilha traicocira para o leitor apressado. inutil buscar uma chave in- terpretativa que traduza o poema em um sentido univoco, dire- to e claro. Sua forga provém justamente da indeterminagio, que no pode ser confundida com arbitrariedade. Ler adequadamen- te um poema é fazer justiga & estrutura verbal que o enforma. Ainda que 0 conhecimento contextual enriquega a compreensio, que o efeito de conjunto, seja do livro ou da obra, da biografia ou dos elementos histéricos, ajude na elaboragao de hipdteses interpretativas, a palavra final cabe ao texto, no caso, multipli- cador de sentidos. ‘A poesia final de Jorge de Lima nao funciona & maneira das fabulas, que, sob disfarce de uma cadeia de imagens, enco- brem um tinico sentido, uma moral a ser desentranhada, Muitos tendem a privilegiar este processo de interpretacio, alegérico, nas leituras que fazem de sua obra. Escoram-se em fatos de sua biografia (sua conversio ao catolicismo), em tragos de sua perso- nalidade, em seu psiquismo. Assim 0 Livro de sonetos — e, pot extensao, cada um dos poemas que 0 compdem — ¢ explicado como manifestacéo de religiosidade militante, esgotamento ner- voso etc. E evidente que Jorge de Lima converte estes elementos — € outros, como o conhecimento da tradigao literdria — em material de sua poesia, mas o ponto a ser ressaltado é sua inter- vencéo criadora sobre este material, 0 efeito final que a monta- gem lhe confere. Digressao hermenéutica A parte, 0 que 0 soneto em ques- tao propée é uma fuga para dentro de si mesmo, que nao exclui © mundo, mas, ao contrério, abarca-o num movimento inclusi- vo. Gerard Manley Hopkins, o jesufta e poeta simbolista inglés, LEITURA DE POESIA 131 batizou, de maneira feliz, este movimento basico da poesia, par- ticularmente a moderna, de “inscape”, out seja, a busca de um abrigo, de um refiigio na interioridade. A lirica é a um sé tempo a porta ¢ a chave que possibilitam este voltar-se para dentro de si mesmo, dificil em tempos que tendem & publicidade total e cultuam a completa extroversao. A questo é precisar como Jorge de Lima registra esta “fuga” tao distante do escapismo neste soneto em particular. O modo de fazé-lo implica uma concepcao prépria da poesia que, no poe- ma, se cristaliza em arte poética pritica. Como paréfrase provi- s6ria, poderiamos avancar que, nos versos dessa escada marinha, a descoberta da poesia est expressa como um encontro stibito com uma musa distante e fugidia. Sua invocagio e aparecimen- to se desenrolam através de uma sucesso de elementos estranha- dores, incomuns, que destoam da nossa percepgio ordindria do mundo. Assim, como coroamento feliz da visita, uma escada conduz ao fundo do mar, espaco insélito em que se instala, final- mente a vontade, o poeta. Além do narrativo, hd no soneto também um elemento dramético. A voz Ifrica se dirige a uma musa muda. Essa figura feminina a quem apela o sujeito € particularmente significativa. Associa a poesia & experiéncia amorosa, sacralizada em fungao da gravidade com que o encontro é descrito. A descida da escada que conclui o poema tem forte apelo ritualistico, sugerindo um casamento, uma unio sagrada entre poetae poesia. Em poeta tio afeito as referéncias classicas, essa musa evoca imediatamente a Beatriz. de Dante, também revelacao da poesia e da religiosidade, ¢ mergulho do poeta da Divina Comédia nas profundezas abissais, Curioso que, num poeta como Jorge de Lima, tao fascina- do pelo mito de Orfeu, a busca da amada se faga por um mergu- tho nas profundezas, pela descida de uma escada. Também no mito grego, o herdi mitico que fazia as drvores dancarem e os rios 132 FABIO DE SOUZA ANDRADE correrem mais répido desce ao Hades em busca de Euridice, asso- ciada a sobrevivéncia de seu canto magico. Tanto Beatriz como Euridice reaparecerio como personificagées da musa em Invengiio de Orfew, livro em que as citages elipticas e as alusdes & tradicao literéria nao faltam. O significativo & que, em ambas as referén- cias, esta implicada a relagdo poeta-poesia erotizada e sacralizada pela intermediagao feminina. Aqui, a expedicao se faz a profundezas marinhas que cha- mam a atengao do leitor avisado por suas caracteristicas parado- xais. Trata-se de um mar contido, ensimesmado, indissocidvel da visita da musa. Melancélico, mas de doce melancolia, seu poder de sedugao para 0 eu litico é determinante. Nele, o sujeito quer, € deve, se perder. O mar esté associado ao fluente € ao estético (“pedra de olvido e fonte abandonada”), nos dois casos, modali- zado pelo esquecimento e pelo abandono. Um abandono que, rentincia ao familiar, significa também o encontro de uma di- mensio anteriormente desconhecida e negada ao sujeito. A aparicao da musa no é apenas stibita, “invasora”, intro- duzida pela abrupta comparacio do primeiro verso. Além de ine- vitdvel (“transbordada”), ¢ também “sombria”. O sombrio esté principalmente no acinzentado da chuva eno simile que evoca a sombra, Desta sombra pode-se desprender também um matiz de irrealidade, de mundo onfrico ou sobrenatural. No universo do mitopottico, o mundo das sombras se oporia ao concreto dos cor- pos sdlidos que preenchem tempo € espaco cotidianos, sensiveis. A visita da musa parece relacionada, portanto, a visitagdo de um anjo anunciador, a uma anunciagdo (mais uma vez Beatriz), mas nada permite que se avalie com certeza se esta visita é de cardter exclusivamente laico ou sagrado. Antes, Jorge de Lima explora a ambigiiidade, que recusa a leitura religiosa, mas confere sacralidade a uma experiéncia mundana como a poesia, dignifi- cando-a. A forga e a novidade, incomuns, da vivencia poética LEITURA DE POESIA 133 estio indicadas na lembranga do “sortilégio”. A matéria de que se fara musa é frdgil (“quebradica”), voldtil (“de asa...”), passa- geira. O aspecto perturbadoramente delicado que lhe dé corpo acentua a raridade e preciosidade da experiéncia que ela propicia. Fica a questéo sobre o cardter soturno, grave da visita da musa. De onde vird? E preciso atentar ainda ao jogo entre um movimento de ascensio ¢ um de descenso, um jogo de contrérios presente desde © primeiro quarteto. Note-se que a chuva, 4gua em queda, quali- fica as asas, instrumento de vo. Da mesma forma, a escada sub- marina no serve para deixar 0 mar, mas para nele ingressar. A combinagao de contrérios esté também na justaposigao entre a dureza pedra e a fluéncia da fonte, na proximidade entre a morte € a vida, no segundo quarteto. A figura responsével por esta justaposi¢ao de contrérios — © oximoro — esté particularmente presente na poesia final de Jorge de Lima, ‘Trata-se da expressao tensa, que forga e estende metaforicamente os limites dos significados para dar conta de novas realidades. A prépria poesia nao faz mais do que potencia- lizar os significados latentes nas palavras ¢ descobrir novas possi- bilidades de significacao. Notéivel na construgo do primeiro quarteto é a auséncia de qualquer pontuacio, excesao feita ao tinico ponto final que interrompe os versos iniciais. Ainda que se trate de um perfodo simples, 0 uso de metéforas genitivas e de adjetivos participiais leva a uma potencializacéo do sentido e & sugestio de diversas leituras posstveis. A visitante inesperada no se limita a surgir. Com sua aparigéo, revoluciona a ordem do mundo, instaura um novo universo de leis ¢ regras préprias. O tinico verbo ativo deste primeiro quarteto sugere um movimento que estd de acordo com nossa hipétese inicial, de um afastamento da rotina que conferiré novo sentido & ordenaggo 134 FABIO DE SOUZA ANDRADE das palavras ¢, com elas, do mundo percebido. O desterrar € ass0- ciado ao exilio, 20 deixar as certezas em diregao 20 novo, ao im- previsto, ao desconhecido. Além disso, o complement da ago também é inesperado: a musa desterra néo 0 sujeito do poema, mas o préprio tempo, categoria essencial a sua autocompreensao ¢ de seu lugar no universo. Assim, a radicalidade do exilio pro- posto instaura-se desde as primeiras linhas. ‘Mas o tempo também é qualificado ¢ nesta adjetivacio fi- ca clara a importancia da acentuacao ambigua. Conforme se leia 0 terceiro verso, cabe tanto a interpretacéo de que o tempo des- tetrado nio se trata do tempo em si, mas de uma modalidade particular de tempo — 0 “tempo interrompido com tua solidao alucinada” —, caso em que a presenga solitéria da musa seria 0 instrumento sobrenatural de transporte a um novo tempo, me- Ihor e mais precioso, nao-fragmentério nem descartivel pela pou- ca importincia. Cabe ainda uma segunda leitura, a hipétese de que aquilo que se encontra suspenso e expulso da érbita do sujeito é efeti- vamente o Tempo em si, cortado e “interrompido” pela presenca sombria ¢ alucinada da musa. Neste caso, a interrupgao seria do ‘Tempo em sentido forte, ¢ as implicagées dos versos, apocalipti- cas: a prdpria Historia se desfaria na presenga da Musa. Qualquer destas leituras deixa espago ainda para a suges- to de que a “aparicio” da musa (quer se lhe atribua um cardter laico ou sagrado) é intermitente. Implica, assim, que a visita da poesia nio se dé ao alcance de uma decisio racional, a partir de mero célculo de meios e fins. Nao se pode convocar a musa como quem aciona um interruptor e acende as luzes. Uma conseqiién- cia possfvel é a constatagéo de que o tempo que vivenciamos nao seja o de uma experiéncia plena no mundo, em que habitaria a poesia todo instante e espago, mas esteja interrompido, entrecor- tado por um ambiente hostil. LEITURA DE POBSIA 135 Outros elementos reforgam a particularidade da duragio ¢ da temporalidade no poema. Hé a sugestéo de um ritmo pré- prio, de suspensio das atividades corriqueiras, de presente eterno na prdpria mecanica da visio inspirada. Neste instante tinico, 0 da descoberta da poesia, aparece um signo forte de eternidade, de presente expandido aos sem limites do infinito, expresso no mo- vimento fluente do mar. Mas no reino da musa esta fluéncia é relativizada, marcada por uma alternancia, “onda descontinua”, cujo ir e vir é traduzido em movimento de nascimento ¢ morte, A natureza do encontro com a musa é dupla, aparente- mente contraditéria, comportando ao mesmo tempo uma des pedida. A musa se desfolha e se perde; entregue a ela, 0 poeta se adensa, mas ao prego de se afastar de certas dimensées de si. Ha um elemento de remincia 4 ordem habitual — do mundo, das palavras — que convive com essa instauragao de uma nova légi- ca, postica, “alucinada”. Essa alucinagéo nao é uma qualidade que se possa deixar passar em branco ao se ler 0 poema. Pela sonoridade esté ligada a luz, & iluminagao, e, portanto, a inspiragao, & visdo reveladora, a0 alumbramento. Por outro lado, tem relacdo também com 0 mundo das percepgdes alteradas, aos contornos dilufdos propicia- dos por uma visio excéntrica, dos alucinados que ndo se enqua- dram na norma. Anormal, atfpica é também a experiéncia das palavras na poesia. Nela, nao tem vez 0 uso pedestre ¢ instrumental que faze- mos da linguagem no dia-a-dia. O efeito pottico depende de que nos desgarremos do habito. Depende de um distanciamento do emprego mecanico, coletivo e automatico da linguagem. Implica uma singularizagéo, um voltar-se para dentro de si mesmo. Dat, a énfase constante do soneto no processo de isolamento, que faz parte do ingresso no reino estranho e insular da musa: o da poe- sia, Ao longo de todo 0 poema, acompanhamos a descricéo de 136 FABIO DE SOUZA ANDRADE paragens ermas, solitérias. Paradoxalmente, no encontro com a musa dé-se um encontro com o genuinamente humano , por- tanto, com algo universal. (© mergulho na poesia, caracterizado como investidura, tem também um elemento mégico, esté associado pelo poeta ao sor- tilégio. No ambiente turvado pela névoa, 0 poeta, prestidigitador de palavras ¢ realidades, faz-se maior que o comum dos mortais, adquire uma grandeza quase mitica, caracteristicas que 0 aproxi mam de Proteu e de Orfeu, demiurgo. Pode descer aos mares, pode renascer, povoar « solidao. Assim, mais do que reforgar um movimento intuitivo e in- voluntério, que, aparentemente, retine o cu litico e sua visitante, © que o poema testemunha é trabalho construtivo, escondido sob 0 resultado final. Ao conerério do que poderia parecer, nao basta a ctiagdo de um estado semi-hipnético para que a poesia surja. E preciso que a intervencio de uma vontade ativa, profun- damente arraigada numa sensibilidade e personalidade poetica ja formadas, se manifeste na ocasiao propicia. A simples existéncia do soneto implica dominio técnico da poesia, o desenvolvimen- to de um estilo. ‘Mais: este modo de fazer tem uma histéria, aparenta-se a outros estilos, dialoga com cles. Até atingir © ponto em que 0 Livro de sonetos amadureceu, Jorge de Lima trocou de pele diver- sas vezes, deixando aos poucos de ser o poeta impressionado pelo parnasianismo, apropriando-se das reivindicagées modemnistas, aproximando-se de correntes da vanguarda européia. Grosso modo, pode-se dizer que dois encontros foram fundamentais neste per- curso: a descoberta do surrealismo, afinidade eletiva que se desen- volve ao mesmo tempo que a amizade com Murilo Mendes, na década de 30 no Rio, ¢ a valorizacéo do érfico, do mitopoético na sua poesia. A partir dos chamados “malditos” do simbolismo finissecu- LEITURA DE POESIA 137 lar francés — Rimbaud, Mallarmé, Baudelaire —, acentuou-se nna poesia moderna uma vertente que se distingue, entre outros tragos, pela ousadia metaférica. No lugar das metéforas claras, de acordo com 0 gosto e o decoro classicos, estes poetas escolheram — \, as imagens complexas, de dificil interpretagao, que abdicam da | vontade de representar 0 mundo de maneira transparente pela ambigao de criar realidades novas através da propria poesia. la tiltimo Jorge de Lima se inclui nesta tradicao. Emprega largamente a metéfora absoluta, as metéforas genitivas, aberturas para a ambigitidade e pluralidade de sentidos. Muito mais do que simples construgées metricamente peritas ou demonstragées de habilidade poética, seus sonetos finais — os do Livro de sonetos e da Invengao de Orféu — sto experiéncias-limite dentro desta ver- tente moderna da poesia. A obscuridade semantica aparece aqui como a defesa possivel contra a banalizacao das palavras e da pré- pria lirica. A estratégia é fechar-se em si mesmo para sobreviver, ctiar carapagas (i.e., as imagens complexas) que dificultam a com- preensio imediata, mas preservam o que é, por natureza, forte ¢ frégil: a capacidade da linguagem de fundar mundos préprios. Para ter acesso a este microcosmo particular do poeta, que reina sobre um reino reduzido, individual, € preciso pagar o pre- 0 da interpretagio, vencer as resisténcias de uma arte que, na imagem do filésofo alemao Theodor Adorno, “fecha os olhos € comprime os dentes” para se manter viva. ~ Nos versos deste soneto de Jorge de Lima, pudemos acom- fpanhar uma certa légica poética em movimento, um processo compositivo caracterfstico de uma corrente importante da lirica moderna. Dylan Thomas 0 descreveu como “uma construgao ¢ destruicéo constante de imagens que brotam de uma semente central”, ela prépria “uma multidao de imagens”, em torno da qual as outras se agrupam e se enroscam como serpentes, nao concéntrica, mas centrifugamente. 138 FABIO DE SOUZA ANDRADE A desctigao se adapta perfeitamente ao novelo de imagens que dao corpo ao encontro entre poeta e poesia na escada sub- marina, imagens que remetem a mitos ¢ tradig6es diversas, com- binando significados distantes, numa forma aparentemente frag, mentéria, mas coerente, quando observada do ponto de vista da I6gica interna da composigao. Como o poeta, também o leitor de poesia precisa descer uma escada submarina, se despedir da familiaridade dos signifi- cados conhecidos para aprender a respirar sob a dgua densa dos sentidos metaféricos entrelacados, obscuros, mas genuinos. A re- compensa é a descoberta de uma nova dimenséo da linguagem: menos utilitéria, menos corriqueira, hermética, dificil mesmo, ‘mas preciosa em sua recusa da simplicidade ébvia e desgastada. LEITURA DE POESIA 139 Alcides Villaga Joao Cabral de Melo Neto Expansio e limite da poesia de Joao Cabral Marca de humana oficina tica muito particular, que também lhe traga os limi- tes. A tendéncia geral dos leitores conquistados por uma obra poética é a de colar a admiracio ao que se mostra como propriamente expansivo nos poemas, ao que vive nas sugest6es € impresses recolhidas livremente dos temas, figuras e ritmos acionados no texto; jé a leitura critica tende, por dever de oficio, a0 reconhecimento dos limites do territério poético interpretado — reconhecimento que, nos casos bem-sucedidos, identifica-se como qualidade mesma da admiracéo. Discernir no objeto de arte 0 que esté nele determinado nao é negar suas propriedades de expansio, bem pelo contririo: é compreendé-las em seu preciso triunfo. Qual a expansio e qual o limite da poesia de Cabral? ‘A busca pode encontrar ponto de apoio na poética explicita omo toda grande’poesia, a de Joao Cabral de Melo ( Neto afirma, para expandir-se, critérios de uma poé- 143 ¢ redundante que é a base consciente de tantos e tantos poemas do préprio Cabrals mas essa operacio de refundir uma metalin- guagem em outra, conservando-se 0s mesmos princfpios de valor, pode funcionar como um jogo de espelho contra espelho, em que a fidelidade se dé como vertigem. A poesia deste pernambu- cano é construfda segundo matrizes que se expdem no centro mesmo da expresso, impondo-se como projeto de visibilidade tal que dispensa a énfase do tipo sublinhatério. Seu desafio outro, tum passo além da redundincia: qual o sentido desse projeto? Uma arqueologia do sujeito Como o projeto cabralino nao nasce ex nihilo, mas por fortes injungdes de natureza psicolégica, geracional e cultural, é litil refletir sobre sua arqueologia, cujos sinais, um tanto cripti- cos, inscrevem-se no livro de estréia, Pedra do sono. O livro é de 1942 e 0 poeta ¢ entdo pouco mais que adoles- cente. A dedicatéria a Carlos Drummond de Andrade, 0 poema- homenagem a Picasso, algumas pegas de feitio nitidamente mu- riliano (como “A poesia andando”, “Noturno” e “Janelas”) ¢ 0 imagindrio de feigao surrealista tragam uma érbita nada aciden- sdo linhas de forga da poesia da época ¢ da arte moderna, jé devidamente afirmadas e inspirando, sobretudo nos artistas mais jovens, um novo félego libertério. A resposta futura de Cabral ser, como sabemos, ponderar essa liberdade, desconfiar de seu “ficil” e dotar sua linguagem de um programado coitrole; mas em Pedra do sono o poeta engatinha, ¢ 0 que a ele logo se impoe € a questio da identidade pessoal e da persona artistica. O desafio terd como resposta agénica o leitmotiv do“eu morto” e de seus corolirios: as alusdes a suicidas, a cristalizagéo do rosto num retrato, o simulacro de um manequim, a figura de 144 ALCIDES VILLAGA um homem enforcado. A primeira pessoa gramatical est obses- sivamente assumida, mas no modo paradoxal de quem o faz para \ declarar sua auséncia. Os olhos se mecanizam em telescdpios, 0s} pensamentos em telegramas, a experiéncia viva em folha de jor- nal, a poesia em revélver, o tempo na roda de um carrossel Sao espagos preferenciais da Pedra do sono os “jardins da minha auséncia’, campo metaférico em que © poeta acusa o es vaziamento interior € a alienagao bésica do nenhum contato efet_ tivo com o cotidiano e o mundo. O surrealismo nao é aqui uma ) afirmagao de visionério, mas um cédigo apocalfptico que ali~ menta a técnica da montagem cubista. Um e outro procedimen- tos suprimem, de saida, toda relacio “natural” entre 0 sujeito e 0 mundo, impondo mediagées violentas que diluem a identidade pessoal eo empirismo da vida. Os gestos, as noticias ¢ as ima- gens do cotidiano surgem filtrados por lentes, ou no espago im- presso, ou em espelhos ¢ retratos, ou em vozes telefénicas. A figura mesma do eu, inatingida, apenas se insinua no siléncio do aterrado, no gesto “por detrds da cortina’, na estétua especular de um manequim. Méquinas e aparelhos do mundo moderno, que reproduzem e expandem os sentidos humanos, comparecem para sublinhar mais fortemente a inatividade exasperante desse sujeito, ao qual parece restar a recepsio transfiguradora que con- verte tudo em “flores secas”, em “sol gelado”, em “lua morta’, em “frutas decapitadas”, em “aguas paradas”. Nao é incomum a atitude radical de poetas jovens que estréiam ja imersos em negagoes absolutas. Desde 0 gauchismo baudelairiano, o olho realista nas ruas agitadas e o olho litico na tradicio altiva e milenar da poesia armam uma visio divergente, que pode dar em impasse — cabendo a cada poeta cunhar seu proprio modo de representar as incongruéncias. Excecao feita ao lirismo maior de Manuel Bandeira, nossa poesia moderna nao conheceu afirmagio da personalidade integra ou estabilizada: LEITURA DE POESIA 145 tem vivido sobretudo nas perspectivas da multiplicagio ¢ do contraditério. Sem fugir & regra, Joio Cabral — o estreante — afronta a questio da identidade lirica com um peso maximo de recusa; mas, nas sucessivas declaragées de auséncia, sujeito em primeira pessoa nao faz mais que atualizar 0 paradoxo e 0 im- passe. Embora pequeno o livro ¢ curtos 0s poemas, ha uma satu- ragio no tom sombrio da perspectiva para a morte € no artificio de fragmentar 0 mundo em imagens desgatradas. Sem deixar de insinuar-se em vertente da Itica, a poesia de Cabral nasce esgarcando a identidade subjetiva, com nuances que a distinguem da negatividade mérbida do Drummond de Brejo das almas (na qual se mantém 0 primado da consciéncia sempre individual do gauche Carlos) ou das inquietagées visiondrias de Murilo Mendes (cujo pano de fundo estampa sinalizagéo utépica € mistica); trata-se, antes, de representar um rosto em sua plena impossibilidade. Sob pena de repeticao desfibrada, 0 paradoxo e © impasse no podem continuar por muito tempo: a reincidén- cia nas imagens de um “eu morto” daria a um segundo livro um tom de farsa, Enfim: Pedra do sono busca promover o exorcismo da condigio lirica sem meios reais de se furtar & expressao subje- tiva, A morte anunciada encena-se antes como impacto declara- trio, nao lhe correspondendo uma equivalente forga estilistica. ‘Um salto calculado Se para o poeta a instancia sentimental esté condenada, com ela o nexo imediato ¢ afetivo com o mundo, impée-se, para a poesia continuar, a necessidade de uma ordem outta, ao largo do caminho lirico. O salto de Cabral — original e definitive — estard na efetivagao de um estilo que repele toda confisséo ou pieguismo; estard na construgao de uma matéria pottica que se 146 ALCIDES VILLAGA quer imune & oscilagao ¢ & anguistia, qualificada por um maximo de autonomia e resistente a qualquer ameaga de desequilibrio. E © que jd se pode reconhecer em alguns poemas de O engenheiro (1945), em que se promove a passagem para a poética manifesta ¢ radical de Psicologia da composigao (1947). Afastada a “desordem da alma’, uma luz reveladora vem incidir sobre objetos, seres, cenas e situagdes do mundo, com os quais se objetiva reflexamen- te 0 ato mesmo da construgao verbal. A “toalha limpa’, a “louca branca”, a “laranja verde”, 0 “lapis gasto” séo indices da busca de composigao de figuras e paisagens, de organizacio pléstica, em suma, a supor antes a estaticidade que o movimento, antes 0 es- paco que a durasdo. © poema passa a sistematizar-se numa con- cepsao material da palavra e da poesia, apresentadas enquanto fenomenologia de um literal escrever (“a tinta ou a lépis”), sobre a folha de papel (“branco asséptico”) em que cabem sugestivas ironias (como a de representar os impulsos inconscientes nos “monstros” “nadando no pogo/ negro e fecundo” — pogo que ¢ também o tinteiro). Se 0 que pode provocar o leitor é a énfase nos gestos ¢ instrumentos mesmos da escritura, bem como o in- tento de “assepsia”, 0 que ao poeta perturba € 0 fato de “brotar/ de um chao mineral” o ser vivo do verso. E a desconfianga quanto a esse facil “brotar” que impele o construtor a recortar o sentido nftido € mais exteriorizado posstvel de cada signo. Em O enge- nheiro subsistem metéforas de perfil tradicional, mas na Psicolo- gia da composigao 0 “vicio da poesia” tende ao exercicio regrado ¢ rigoroso da linguagem, culminando na poética reconhecivel- mente cabralina. Vale lembrar alguns de seus procedimentos bisicos: senso de proporgao na medida dos versos; ordenacio simétrica deles ¢ das estrofes; unificagao das sonoridades em campos de assonancias ¢ aliteragdes; comentério conceitual das figuras; elipses e quebras da sintaxe mais ortodoxa; recorréncias em um léxico preferencial, pautado pela categoria do elementar LEITURA DE POESIA 147 (gua, pedra, luz, cristal, vegetal, ésseo...) e qualificado positiva- mente na medida da resistencia (A aco fisica, ao tempo, a0 aci- dental, 20 improviso). Eleitas as mesmas “vinte palavras” simbélicas, com as quais refere 0 poeta sua obsessio pelo limite contencioso da lingua- gem, clegem-se igualmente os pardimetros pelos quais se articulam a0 mundo, numa espécie de simbiose entre o construido ea refe- réncia. No extremo, trata-se de considerar que “flor é a palavra/ flor, verso inscrito/ no verso, como as/ manhas no tempo” — axioma a partir do qual tudo pode se desnaturalizar, instituindo um universo préprio, perfeitamente tautoldgico, sob o comando de formas estrururantes e da acdo consciente do criador. “Culti- var 0 deserto/ como um pomar as avessas’; tal operagio impée & ordem e ao ritmo da natureza uma inversao ostensiva, siméttica portanto, em que se prescreve a ordem outra de um particularis- simo projeto. Comeca aqui, expande-se aqui e ainda aqui encon- tra seu limite a poética de Cabral. Objetivagio e ética A objetividade desse “riguroso horizonte” (Jorge Guillén), €m que as imagens tém como condigio de valor a subordinagao a0 Processo construtivo, é apresemtada como clarificagio do cédigo verbal, onde tudo se unifica. Um elenco elementar de simbolos densos € tomado como parametro para o desdobramento de inti- ‘meras outras figuras, mantida no conjunto uma relaggo de con- tigitidade que nao se admite perder. As afinidades ou as oposig6es entre as imagens travam-se no interior de um discurso cumu- lativo, orientado para a autodefinigdo. Se a ordem & previsivel (dadas as premissas, cada vez mais familiares), 0 estilo acolhe, no entanto, um prisma multiplicador de nuances, garantindo que 148 ALCIDES VILLAGA 20 previsivel se some um aspecto de fato original, a cada passo. A simettia nao se poupa de inventar e surpreender, ¢ 0 efeito de “aparigio” de cada imagem nao compromete os critérios da poé- tica — agora também uma ética — adotada com tanto rigor. A preciséo da linguagem de Cabral é conforme a valores éticos basicos, que lhe dao a propriedade expansiva ao mesmo tempo em que detertninam seus limites. E uma ética de afirma- ¢do do elementar sobre 0 compésito, do limpo sobre o sujo, do analitico sobre o sintético, do ordenado sobre o caético, do dedu- zido sobre o especulado. Projetadas e disseminadas como autén- ticos valores, estas ¢ outras categorias regem um modo préprio de percepcao, combinagao e fixacao dos elementos. Criam uma espécie de sraduzibilidade geral entre cles, fazendo aproximar-se, por exemplo. uma paisagem pernambucana de uma paisagem andaluza, dado o termo comum da rudeza ou da esterilidade — termo que funciona também como padrio estético. Essa traduzibilidade é de longo alcance. Tanto permite um didlogo interatributivo de varias artes (poesia, ficgio, pintura, arquitetura, escultura), de varios oficios (ferraria, agricultura, pesca, canto, bailado, futebol, tourada), de varios ritos (vel6rios, Procissbes, peregrinagées, lutas, vaticinios, festas), quanto per- mite uma variadissima criagao de similes, muitas vezes insdlitos (entre 0 ato de escrever € 0 de catar feijao, por exemplo). A consi- deragéo mais abstrata do paradigma combina-se com a nota mais concretizante da figura, j4 que nas equagées do poeta uma coisa Temete 4 outra, sempre sob a garantia dos principios comuns reiterados, A relacionar (mais um exemplo) a cabra das escarpas do Mediterraneo com a cabra da pernambucana Moxoté est4 um “nticleo de cabra”, 0 qual se demonstra no cavar o drido, na dure- za da couraga, no “capaz de pedra” — em tudo, enfim, que torna cabra realidade qualificada e signo exemplar, num universo poé- tico definido. Para servir 4 definicéo categérica desse universo, os LEITURA DE POESIA 149 atributos encarnam o substancial, os adjetivos e os advérbios valem como substantivos, assim como podem os nomes préprios qualificar nomes comuns: “morte e vida severina”, “jeito de exis- tir, Cardozo”, “manha ipanema” etc. Esses modos de expansio da poesia de Cabral server tan- to A apresentacéo mais estatica de paisagens, figuras, seres ¢ obje- tos quanto ao andamento de textos draméticos ou narrativos, presente sempre o que jé podemos identificar (bem ao seu estilo) como um “ser Cabral”. Esse “ser” estd liberto do confessionalismo ou do psicologismo, j4 que o foco poético incide sobre as coisas e suas relagées, sobre os homens e seus gestos, sobre as palavras “abelhas domésticas” que 0 poeta mantém a seu servigo. Ideal- mente, todo poema seria auto-avalivel na medida em que se ve como conquista da paciéncia, da atengio, da disciplina — que afastam as franjas de obscuridade de uma imagem, a indetermi- nagio de um conceito ou a imprecisio de frases facilitadas. O arquifamoso poema “Tecendo a manha”, de A educagao pela pedra (1966), pode ser lido como historia da construgéo e adensamento de uma metéfora— “luz balio” —, cujo desgarramento aérco 56 & petmitido depois de se tramarem todos os “fios” que lhe dio a consisténcia poética ¢ didética. Assinale-se, porém: 0 pocta nao deixa de fazer equivaler & artesania da matéria verbal (onde cos- turou obsessivas aliteragées) a concep¢do magica e propiciatéria dos cantos dos galos, por sua vez uma tradugéo do provérbio popular sobre a solidariedade: “uma andorinha s6 néo faz. verdo”. Abre-se aqui — e por certo néo s6 aqui — a questo do movi- ‘mento dessa poesia, de sua orientago para o mundo; enfim, de sua efetiva objetividade. Um suposto cardter “objetivo” da arte de Cabral é freqiien- temente deduzido nos limites de uma leitura estritamente for- malista, na qual se reduz a parcela intrigante, provocadora e, no final das contas, essencialmente poética dessa poesia. Para muito 150 ALCIDES VILLAGA além do fetichismo da palavra, o poeta pernambucano faz agir a face expressionista dos objetos representados, 0 que nao 0 im- pede de integré-los num continuum estilistico em que aparecem como que nivelados. A ordenacio do universo de Cabral supde um exercicio dialético de contrastes € oposigdes cujo sentido escapa As descrig6es formalistas. As simetrias, de corte classici- zante, estio permanentemente relevando nuances ¢ distingdes entre os elementos, como se nos lembrasse 0 poeta de que os planos do real em que sua linguagem toma pé com tanta segu- ranga so, todavia, muito complexos, ¢ lhe interessam por isso. Se no nivel estritamente formal os axiomas ¢ as equages dese- nham a téo decantada “geometria”, o mundo a que esta se apli- ca € apresentado como um grande € desafiante objeto, que s6 adquire visibilidade pelo método das aproximagGes sucessivas. Sao as aproximagées estabelecidas pelos similes, pelas propor- Ges, pela predicacao “serial” — recursos bdsicos da perspectiva do poeta. Para nao dispensar alguns exemplos, veja-se: a estrutu- ragio de “Uma faca s6 lamina” com base nas expresses “assim como”, “qual”, igual”, “quer seja [...] ou”, que culminam no reconhecimento da “realidade prima ¢ téo violenta/ que ao tentar apreendé-la/ toda imagem rebenta’; a cumulativa caracterizagao do que é um cante a palo seco: “cante mais s6”, “cante desarmado”, “cantel submarino ao siléncio”, “de todos mais lacénico”, “de gtito mais extremo”, “cante para cima’, “de caminhar mais lento”; a recorréncia de formulas que, em A educagdo pela pedra, expdem os modos de articulacao entre operagées distintas: “catar feijao se limita com escrever”, “em situagao de pogo, a agua equivale! a uma palavra em situagao diciondria”, “arquitetura como construir portas” etc. (grifos meus). E sempre atuante na poética de Cabral essa operacio apro- ximativa da linguagem que, rigorosa enquanto proceso que se expde a si mesmo, nio 0 ¢ menos enquanto movimento para. LEITURA DE POESIA 151 Grande parte de sua pocsia constitui-se, alids, de poemas dramé- ticos, narrativos e anedéticos. Seu poema mais famoso — “Mor- te e vida severina” (1956) — ofereceu-lhe 0 retorno imprevisto da popularidade que a encenagio ¢ a musicalizagio propiciaram (fetorno no propriamente estimado pelo autor, a julgar por repetidas declarag6es suas). Deve té-lo desgostado 0 emocionali mo que a “voz alta’ literalmente inflexionou, em momento agu- do da vida politica brasileira. O “auto de natal pernambucano” ganhou a perturbadora miisica que a linguagem do poeta quer abolir com aquelas “pedras” que obstruem leitura “fluvial”; no entanto, a miisica de Chico Buarque nio deixou de se colar fiel- mente a rudeza trégica do discurso ¢ a0 enxuto litismo de algumas cenas, como a das oferendas ao recém-nascido ou a do canto de louvor & natureza que metodicamente se recicla como “um sim numa sala negativa’. Rompendo a quadratura do papel de pégina, a fala de Cabral coralizou-se, néo para contrariar o antilirismo propalado, mas para afirmar a natureza trdgica que lhe pulsa sub- terraneamente, Encendvel é também 0 “Auto do frade”, “poema para vozes” de 1984; ¢ hé grande encanto cénico nas narrativas poéticas de “Crime na Calle Relator” (1987), em que se apura uma graca original de contador de casos, sem prejuizo para a iden- tidade do estilo. Mais do que geografia fisica ou labirintos lingiifsticos, hé a Histéria nas histérias de Cabral, assumida do angulo de um racionalismo modernizante (que marcou boa parte da producao cultural e do pensamento politico do Brasil nos anos de pés- gucrra) mas extremamente sensivel aos protagonistas de culeuras arcaicas ou as vitimas da exploracéo humana. A ténica formali- zante de seu projeto estd longe de abolir, também, a instancia mitopoética. Paisagens, seres e eventos movem-se num universo expressivo cujo controle exasperado acaba por legitimar ¢ inten- sificar um tipo de emogio desconhecido da poesia luso-brasileira. 152 ALCIDES VILLAGA O rigoroso sentido de trabalho em que se crispa a linguagem de Cabral nao atende ao des{gnio de uma académica autocontem- placio: revela um debrugar-se met6dico sobre o real, de que reti- ra as sugest6es mais fortes de equivaléncia, diferenca ¢ oposicio. A tautologia de “flor/ é a palavra flor” encerra, por certo, um compromisso mallarmeano, ¢ assume posicéo de combate a certas tradigées da retérica nordestina ¢ do regionalismo pitores- co. E compromisso de quem, depois da estréia ag6nica em Pedra do sono, decidiu-se pela nenhuma concessao ao sentimental. Mas 0 axioma nao deixa de set, ironicamente, a expressio do funda- mento mitico que gostatia de exorcizar: a palavra flor de modo algum faz esquecer a flora natural, ¢ todo esforco na direcdo con- trdria acentua mais a idealidade dessa busca que a materialidade da ‘palavra-objeto”. Em Cabral, nao hd flor que nao venha ime- diatamente qualificada, investida das propriedades que a siste- matizam também como simbolo, isto é, como matéria expressiva em movimento para a significagao. Ao invés de se considerar todo © esforco de sua morfologia poética como sustentacao efetiva da “auronomia” do signo, pode-se reconhecer que a objetividade real de suas palavras esté no fio de navalha dramdtico em que se equilibram, esforgo em que se consagram o titanismo de origem ea humanizagio final. Uma experiéncia téo singular de criagao nao existe sem a marca de uma vivéncia igualmente singular, de um modo préprio de afirmacao do sujeito em bem precisos itinerério biogréfico ¢ contexto sociocultural: Ao lado da morte severa (motivo que Ca- bral absorve obsessivamente ¢ figura em geografias ¢ cédigos universalizAveis) est4 a vida severa: duro paradigma para os com- promissos éticos e estéticos da arte do poeta. Sua particular mi- tologia é a de alcancar, pot obra das palavras-pedras e dos signos- cristais, uma natureza sem dor € sem morte, sem inclinagao e sem_ desejo, anti-schopenhaueriana, cuja engenhosa arquitetura sou- LEITURA DE POESIA 153 esse manifestar-se por si mesma, na perfeigo incontrastada uma verdade mineral; mas é no caminho para esse fundo mi que o homem de Cabral vive sua viagem dramética: viagem destina, espanhola, universal. Eis af a expansdo mais comoven da disciplinada arte do poeta. Seu limite mais distendido ironicamente, no “fracasso” de néo poder escapar a esse I subjetivo, ainda que vingado pela rigidez e pela simetria. Valé “Le vrai rongeur, le ver irréfutable/ N’est point pour vous qui dé mez, sous la table,/ Il vit de vie, il ne me quitte pas”. Para nao falar de si com imediatez, por repudiar o abi das primitivas reiteragdes do “cu morto”, Cabral exorciza 0 q to pode a primeira pessoa, transferindo-a astutamente para outras que possam representé-lo: poetas, ficcionistas, pintor escultores, arquitetos, desenhistas, sociélogos outros que, nomes préprios, encarnam uma cumplicidade de formas e cof ceitos. Mas é preciso lembrar que a humanidade representa nessa poesia ultrapassa em muito o circulo de amigos, person: dades ou vultos histéricos, abrangendo um amplo universo soci em que atuam os cassacos de engenho, os homens do eito e.4 mangue, os migrantes, os pescadores, as rezadeiras, os bailadore 08 ciganos, os touteiros, os futebolistas, os artesios... sem falar. soalidade embutido na elipse do tom litico tradicional red em poesia personalissima, personalismo cuja forma evidente es nas marcas do padrao estilistico, mas cujo sentido profundo: revolve na contradicéo entre o interesse pelo drama humano € inguagem que repele o dramatismo. Como ambos os p implicam, e nao existem em separado, ler a poesia de Cab sempre uma experiéncia polarizada pelo mitico e sua n pela concep¢do primitiva de destino ¢ pelo filtro iluminista, pe empenho da atengao aos movimentos do sobreviver ¢ pelo ester 154 ALCIDES VILLAGI cismo mais refinado, E desejével ler a poesia de Cabral nao ape- nas como um indiscuttvel triunfo técnico, mas como a disfarca- da rebeldia de uma voz que responde as angistias modernas com seu proprio mito de toralidade poética. Pode ser um trufsmo lem- brar que o aspecto mais propriamente construtivo da arte traz em si mesmo (quando é, de fato, arte) o conteiido do esforgo huma- nista; € 0 que se d4 numa poesia como essa, que promove entre 0 declarado construir ¢ 0 implicito silenciar um didlogo atualissi- mo: didlogo entre a determinacio consciente de um limite para aarte e a expansio dos ritmos, imagens ¢ afetos de que a lingua- gem humana ainda nao quis ou nao péde se livrar. Poética e poesia em dois poemas Nos dois poemas que leio a seguir quero reconhecer, como matéria viva, os conceitos de limite e expansio, até aqui tratados mais abstratamente. Vejo, na obra poética de Cabral, duas grandes tendéncias que permitiriam agrupar poemas em que prevalece (apenas prevalece) a explicitagio da forma de construir sobre a matéria a representar ¢, de outro lado, poemas em que seres ou fatos da vida avultam para deixar implicito o projeto de constru- io. Talvez jamais em estado puro, mas suficientemente vistveis, distingue-se ora 0 primado do conceito descritivo sobre a figura temporalizada, ora 0 inverso; se lé 0 poeta se vale da “servent das idéias fixas”, aqui elege 0 caminho dos “poemnas em voz alta’; se num plano a énfase recai sobre um ideal de plasticidade e auto- definicéo da linguagem, em outro 0 cédigo retira da observacao do mundo a fabula exemplar e um modelo do viver. Os dois poemas sio “O ferrageiro de Carmona’ ¢ “Crime nna Calle Relator” — este 0 que dé 0 titulo ao livro de 1987, no LEITURA DE POESIA 155 qual também se encontra o primeiro, Trata-se de uma col de poemas narrativos, de “casos” saborosos cuja matéria, em pt cfpio prosaica e até piadistica (como a “Histéria de mau ca é filtrada pela expresso do estilo de Cabral, ganhando com © costumeiro tensionamento, “O ferrageiro de Carmona” menos anedético de todos, servindo-se de uma situacao est como moldura de um monélogo em que poeta atualiza, vex mais, e pela voz. de um “outro”, os valores paradigméticos: seu préprio fazer artistico. Escolhi-o por isto: ele se singulariwg no livro como poema de rigorosa conceituagao, ilustrando aqi limite das “idéias fixas” a que me referi pouco atrés, “Crime Calle Relator” é, por sua ver, exemplo agudo de expressio ni rativa, aberta para valores morais como a dignidade, 0 estoici mo € o sentimento de culpa. O ferrageiro de Carmona Um ferrageiro de Carmona que me informava de um balcdo: “Aquilo? Ede ferro fundido, foi a forma que fez, nio a mao. S6 trabalho em ferro forjado que é quando se trabalha ferro; entio, corpo a corpo com ele, domo-o, dobro-o, até o onde quero. O ferro fundido é sem luta, € 86 derramé-lo na forma. Nio hé nele a queda-de-braco € 0 cara-a-cara de uma forja. 156 ALCIDES VILLA Existe grande diferenga do ferro forjado ao fundidos é uma distancia tio enorme que nao pode medir-se a gritos. Conhece a Giralda em Sevilha? De certo subiu ld em cima. Reparou nas flores de ferro dos quatro jarros das esquinas? Pois aquilo é ferro forjado. Flores criadas numa outra lingua. Nada tém das flores de forma moldadas pelas das campinas. Dourlhe aqui humilde receita, ao senhor que dizem ser poeta: 0 ferro nao deve fundir-se nem deve a voz ter diarréia. Forjar: domar o ferro & forca, nao até uma flor jé sabida, mas ao que pode até ser flor se flor parece a quem o diga’. Os dois versos iniciais sugerem uma narrativa ou um did- logo, mas a “cena” introduzida em terceira pessoa esgota-se logo como indice de uma situagéo em que o que importa é a fala do ferrageiro ao poeta, ¢ nela uma espécie de ars poetica do artesio. O tema eo procedimento sio conhecidos dos leitores de Cabral: trata-se de um alter ego (como em “Graciliano Ramos”) do poeta a definir sua matéria-prima e 0 processo adotado na artesania. O LEITURA DE POESIA 157 deste ferrageiro é o do “ferro forjado”, afirmado na oposigio ao do “ferro fundido”. Nao ¢ preciso dizer que a “conversa” entre os dois criadores est implicita no monélogo em que ambos demar- 4 cam um campo de princfpios consensuais, uma poética definida e uma ética rigorosa. A suposta fala do ferrageiro sevilhano en- § controu na forma poética do artesio pernambucano o rigor de um método de trabalho que é de ambos, traduzindo-se no estilo da linguagem de Cabral a “queda-de-brago” com as palavras, | tanto quanto bem se traduz no trabalho do ferrageiro a “lingua” forjada pelo poeta. Poeta-ferrageiro e ferrageiro-poeta sio as duas | faces da mesma persona: a experiéncia e o discurso, a imagem e'4 © conceito, o exemplo particular e o paradigma geral. A arte do mestre de oficio é tao ilustrativa da poesia de Cabral quanto 0” futebol jogado por Ademir da Guia, 0 cante a palo seco, a pintura de Mondrian, a voz do canavial, uma “faca sé lamina” ou 0 tou- rear de Manolo Gonzilez — expresses diversas de construgao disciplinada. Maneirismo? Sim, quando se considera que a com- plexidade da vida é excessivamente filtrada pelo padrao candnico; se considerarmos, porém, a variabilidade das experiéncias cultu- ; rais que o alimentam, o canone se revela sensivel a nuances € par- ticularidades que encenam miiltiplas correspondéncias entre os objetos do mundo, ¢ néo deixa de haver surpresa no reconheci- mento, a cada poema. As “idéias fixas” servem incontéveis ima- gens em movimento para o mundo exemplar. A exemplaridade, por sua vez, nao € simpléria, nao se vale de um mundo submisso ou unfvoco, pelo contrério: cumpre 34 “educacio pela pedra” a que se obriga o poeta distinguir entre exemplo e 0 antiexemplo, entre o sim e 0 no, de modo a real a positividade que lhe interessa: a afirmacao de uma pottica nft da nos contrastes, cujo efeito final deve estar nessa mesma tidez, acima (mas supondo-as) das antinomias. Fica claro que #84 formas da simettia de Cabral so apresentadas como ganho sobre 158 ALCIDES VILLA a matéria complexa que souberam atravessar ¢ controlar para 0 uso de sua poética, “matéria de humana oficina”. A oficina, neste poema, é a do ferrageiro que forja o ferro, e despreza a quem o funde. As raz6es estio no poema, e nao € pre- ciso duplicé-las; lembremos apenas que participam da preferéncia tradicional do poeta pelo que € mais trabalhoso ¢ mais dificil, seja pela resisténcia maior da matéria, seja pelo esforgo deman- dado em sua transformagio, Neste poema, como em muitos, as antinomias entre 0 “dificil” ¢ 0 “fécil” exigem, para maior nitidez, a unificagéo do campo temitico e da linguagem que 0 incorpora. No caso, trata-se de deduzir 0 universo do ferrageiro, do ferro, da {forja e da fundigéo do mundo do trabalho bragal para o da repre- ‘sentagdo, dos limites de um oficio para os limites do simbolo. A ponte é a palavra ferro, que atravessa 0 poema em sua forma pré- pria, ou em derivados, ou nas aliteragées que a estendem até flor — seu ponto de chegada. O poema conta, por assim dizer, esse processo, deixando-se marcar por ele. As marcas sio conhecidas: certa regularidade métrica, rimas toantes, estrofacéo regular, for- tes aliteragées, argumentacao em simetria etc. — tudo a servigo da antinomia geral entre o forjar e o fundir. Ao plano do forjar pertence o designio do criador (“s6 trabalho em ferro forjado”), seu dom{nio sobre a matéria (“domo-o, dobro-o até o onde que- ro”), 0 embate do artesao com aquela (“corpo a corpo”, “queda- de-brago”, “cara-a-cara”); a0 plano do fundir pertence o primado da forma aleatéria, o sem-esforco de “é sé derramé-lo na forma”, a auséncia do sujeito determinante (“foi a forma que fez, nao a mio”). A desctigio dos dois processos e 0 valor de suas implica- 6es esto nas quatro primeiras quadras (nao por acaso a metade exata do poema); nas outras quatro considera-se a diferenca en- tre os produtos dos dois processos, ou seja, a flor da forja e a flor da fundigdo. Ao passat do método de representar para a matéria LEITURA DE POES!A 159 j representada, a ars poetica invoca o exemplo histérico-material: a torre de Giralda, em Sevilha, onde estio as flores paradigmdticas. 4 Nio quaisquer flores: de ferro; néo de qualquer ferro: de ferro forjado; ¢ nao distribu{das ao acaso, mas nos “quatro jarros das esquinas” (sugerindo os quatro vértices de um quadrado). Dis- tribuidas com equilfbrio geométrico no espago “li em cima”, so “flores criadas numa outra lingua”; 0 termo grifado explicita de vez a traduzibilidade da ars poetica da ferraria em sua correspondente verbal, e vice-versa. A irdnica “humilde reccita” do artesio ao in- terlocutor “que dizem ser poeta” plasma de vez a relacdo entre os oficios: “o ferro no deve fundir-se/ nem deve a vor ter diarréia”. O paralelismo equipara a facilidade na arte & incontinéncia intes- tinal, lembrando outras situagées em que Cabral pondera a po: bilidade de “fezes”, “crosta”, “resto de janta” como maus exem- 4 plos de descontrole ¢ de compulsio. Em A educacdo pela pedra, no poema “Coisas de cabeceira, Sevilha”, entre as “coisas” que lhe ficaram como boa meméria da cidade estd a ligio de “néo esparra- marse, fazer na dose certa’, “com a incorrupgao da reta”. Um ras- treamento em outros poemas ¢ livros de Cabral chegard a um clenco variado e numeroso desses modelos de contencio. A tiltima estrofe me prende em especial, por assumir em definitivo, mais que o tom sentencioso, 0 niicleo mesmo da ars poetica clissica: a questio do parecer, que confina com a da verossimilhanca, O ferrageito-poeta conclui assim a “humilde receita”: Forjar: domar o ferro & forca, no até uma flor ja sabida, mas a0 que pode até ser flor se flor parece a quem o diga. O preceito, aqui, supde a superioridade de certo fazer | 160 ALCIDES VILLAGA sobre outro, ¢ tanto por isso quanto pelas cldusulas do dominio sobre a forma (“domar o ferro a forca”) e do efeito de verdade (“pode até ser flor/ se flor parece a quem o diga”) filia-se & poética aristotélica, que classifica hierarquicamente os modos de repre- sentago e mostra preferéncia pelo “impossivel que persuade a0 possivel que nao persuade”. O poema afunilou-se para um con- ceito de imagem, melhor dizendo: para um conceito da construgio da imagem. As etapas prescrevem a solidez da matéria (0 miné- rio), 0 trabalho fisico (“corpo-a-corpo”) ¢ a afirmago do artificio sobre o “natural” (“Nada tém das flores de forma/ moldadas pelas das campinas”). Descartada a imediatez da “flor j4 sabida” (isto 6, da flor enquanto natureza ou da imagem que por ela se mol- da), o poeta se afasta da imitagao mais ingénua ou do cardter alu- sivo das figuras; mas também nao admite, por certo, a liberdade da imaginagio, dos improvisos ¢ das transfigurag6es, pois a matéria ¢ o método preexistem ao construir (0 que se verifica no sempre reconhecivel modus operandi do poeta, que alids 0 toma ‘como tema ¢ como pedagogia: “educagao pela pedra”, “psicolo- gia da composigao”, “escola das facas”...). Se a flor néo pode ser “ja sabida”, reconhectvel na natureza ou na tradi¢ao de seu uso ret6rico, e tampouco ser imagindria, jd que se criou como proces- so materializado ¢ nao como efeito de subita aparigéo, é porque a cldusula de sua existéncia depende de parecer “a quem o diga’. Estamos, assim, no limite méximo da convengio pessoal, ou da convicgio estilfstica de quem chama para si mesmo a definiggo de todo o processo de construgéo. Em outras palavras: a poética mais explicita de Cabral parte da qualificagao de um sujeito exclu- sivo que a define nao como atributo de sua intimidade mas como demonstragao de sua técnica. A persona de “quem o diga’ é tau- toldgica como o seu objeto (“flor é a palavra flor”), €a convencao poética se fecha “a forga” em si mesma, sendo, em tltima instin- cia, 0 “molde” em que se deve fundir 0 mundo. E neste limite LEITURA DE POESIA 161 paradoxal que os conceitos da arte cabralina impéem-se sobre as imagens, invertendo o percurso mais tradicional da linguagem poética e afirmando altivamente sua propria legitimacao. E ine- gavel que a fala do ferrageiro parte de um mundo rude e mate- rial (0 mundo do ferro, da forja, do trabalho pesado) para ali- mentar, com essa rudeza, uma poética das mais sofisticadas; mais do que “teal”, a figura humana do ferrageiro se constréi como verossimilhanga para os conceitos que o implica, ¢ néo como personagem. A rigor, a “narrativa” inexiste (ao contrério da maio- tia dos poemas do livro), sacrificando-se a suposta sitwagéo de conversa ao que © poeta decantou nela de argumentativo, fazendo do ferrageiro seu alter ego e da experiéncia dele uma construgéo didatica. E 0 que venho chamando de limite da poesia de Cabral, ¢ que constitui, a meu ver, uma das duas grandes tendéncias de sua arte: a de trabalhar os conceitos a partit de uma figuragao exemplar colhida no mundo das experiéncias. A outra tendéncia (que, inversamente, figura uma experiéncia vivida apoiada numa concepsao paradigmética do estilo) toma forma no poema “Cri me na Calle Relator”, que passo a comentar. Crime na Calle Relator ‘Achas que matei minha ave? O doutor & noite me disse: cla nao passa desta noite; melhor para ela, trangiiilize-se. A meia-noite ela acordou; nio de todo, a sede somente; € pediu: Déme pronto, hijita, una poquita de aguardiente. 162 ALCIDES VILLAGA Eu tinha s6 dezesseis anos; 86, em casa com a irma pequena: como poder nao atender aordem da avé de noventa? JA vi gente ressuscitar com simples gole de cachaca © arrancarse por bulerias gente da mais encorujada. E mais: se o doutor jé dissera que da noite nao passaria por que negar uma vontade que a. um condenado se faria? Fui a esse bar do Pumarejo quase esquina de San Luis; comprei de fiado uma garrafa de aguardente (cazalla ¢ anis) que lhe dei cuidadosamente como uma pogio de farmécia, medida, como uma pogio, como nao se mede a cachaga; que Ihe dei com colher de ché como remédio de farmacia: Hijita, bebi lo bastante, disse com ar de comungada. Logo entéo voltou a dormir sottindo em si como beata, um semi-sorriso de gracias aos santos éleos da garrafa. LEITURA DE PORSIA 163 De manhi acordou ja morta, ce embora fria e de madeira, tinha defunta o riso ainda que a aguardente Ihe acendera. Hi neste poema uma comogio discreta, que vem muito de dentro dele e insinua, ao final, o sublime — uma espécie parti- cular de sublime, mais entranhado que exposto, fundo e sereno como a expresséo da morta na tiltima estrofe. O titulo tem a pala- vra “crime”, e no poema narra-se um rito de morte a sombra de um gesto supostamente culposo — mas a narrativa ndo expoe violéncia alguma, muito ao contrério: a morte da ancia é sacra- mentada num perfeitamente equilibrado jogo entre 0 mistico € © profano, entre a gravidade do tom ¢ um sorrateiro humor que 1ndo o desmente, entre os pormenores de um quadro doméstico material e uma espiritualidade que vem incluit-se nesse mesmo materialismo. Muito distante da tenséo aventada no titulo ¢ no abrupto verso inicial — tenséo que se deslocard no percurso do poema —, vem impor-se a natureza piedosa de um gesto e sua conseqiiéncia de harmoni Consta (nao pude apuré-lo) que Joao Cabral de fato ouviu a hist6ria da boca da “neta’, no tom confessional e consultivo que © poema conservou. Ha questées que se podem levantar diante do depoimento que se tornou poema: a) que espectfico interesse terd a narrativa despertado no poeta e para a sua poética? 4) como se deu o ajustamento da fala original aos moldes para- digmaticos da linguagem de Cabral? c) que efeitos reveladores nascem dessa conjungao entre a matéria histérica (com seus pres- supostos éticos, culturais, psicolégicos) e a forma da rigida con- vengio cabralina? Sao quest6es que se entrelacam; buscarei tratd- las no de modo segmentado, mas atendendo a sensagao de inteireza complexa e sugestiva que o poema desperta. 164 ALCIDES VILLAGA Os tragos mais superficialmente formais de “Crime na Calle Relator” séo os mesmos de “O ferrageiro de Carmona”: estrofes de quatro versos, regularidade métrica, rimas toantes, discurso apresentado como fala direta a um interlocutor, Neste arcabougo formal comum hé as diferengas profundas que vio do poema argumentative para o dramdtico, da construgao de con- ceitos para a construgio narrativa, do modelo objetivo e plasti- cizado para o encadeamento causal das agées. Como em nenhum dos dois poemas se nota descumprimento dos paradigmas estilis- ticos de Cabral, nao se podendo afirmar que a ars poetica de um seja menos pessoal que a do outro, a dedugao ébvia é a de que 0 sentido do rigor do projeto deste artista abarca o drama hu- mano, a moralidade, o detalhe cultural, o valor ético e a epifania iluminadora, Tal obviedade lembra que esse projeto se faz com palavras ¢ com o farto material da vida que Ihes inspira 0 modelo construtivo — tanto quanto este se torna um critério de aproxi- macio das percepgbes e sensacdes do mundo que objetiva. A situagao narrada expée relagGes particulares de persona- gens em determinado quadro social: entre a adolescente e a avé de noventa, moribunda, hé pressupostos significativos, disseminados no poema, Alguns deles: a severidade da hierarquia na ordem familiar tradicional, o religioso estoicismo que Cabral faz ver na vida espanhola, um arraigado sentimento de culpa ¢ pecado, 0 despojamento da casa humilde no Pumarejo, o sentido de limite que deriva da sentenga desenganadora do médico: “ela ndo passa desta noite”. H4, em tudo, uma economia do rigor, da medida, do ponderado, do contido, que atua na direcao contréria & hipé- tese de um “crime” — este excesso entre os excessos. Se 0 primeiro verso traz consigo a diivida mortificadora — “Achas que matei minha av6?” —, todos os outros instalam uma perspectiva tal de julgamento que, ao fim da histéria, impée-se nfo s6 a inocéncia Piedosa como o valor da morte pacificadora ¢ sublimizada. LEITURA DE POESIA 165 A aalpa, presumida pela neta, vai sendo por ela mesma relativizada, em procedimentos que lembram as atenuantes do? rito juridico; somadas, elas podem conduzir & absolvicio do réu., Aqui, a neta invoca o testemunho do médico (“ela no passa desta noite”), a solucao piedosa que a morte representaré (“me- thor para cla, tranqiiilize-se”), a contingéncia da pouca idade e da decisio solitdria (terceira estrofe), a firmeza do pedido da avé, a “jurisprudéncia” comprovada do efeito restaurador da bebida (quarta estrofe), a analogia com a situacéo de “tltimo pedido” dos condenados & morte (quinta estrofe), a intencao de cuidadosa terapéutica (sexta e sétima estrofes), 0 implicito reconhecimento da avé (“Hijita, bebi lo bastante”) e — sobre- tudo — o efeito final de beatitude estampado no iltimo sortiso da velha. Interessam-me certas marcas do discurso da neta ¢ das falas do médico e da anci. Bem observadas, vo compondo uma reveladora homologia entre os elementos da situacio narrada ea natureza de sua expressio estilistica, tal como se os valores de lima se espelhassem na outra. Dito de outro modo: o sentido dos fatos narrados e as inflexSes emocionais neles atuantes perten- cem 4 mesma ordem ética pela qual se rege o discurso poético de Cabral, contribuindo um plano para a concregéo do outro. Bern 0 gosto do poeta, a situagao j4 nasce radicalizada no limite que 0 momento terminal da av6, sobre o qual néo pesa, porém, 0 excesso do trigico, A morte parece encontrar nesta histéria sua feicao ideal para 0 poeta: cumpre-se com severidade, sem trau- ‘ma, sem pieguismo — praticamente sem dor —, representando em seu rito uma observancia que é também a do rigor das metas expressivas da poética de Cabral. Como se dé tal encontro? So marcantes no poema as expressdes que véo compondo aspectos restritivos da situacio: “ela ndo passa desta noite” funda a restrigéo crucial, mas uma economia depuradora vai-se mar- 166 ALCIDES VILLACA, cando nos “sé dezesseis anos” da neta, que esté “sé, em casa com a irma pequena’; na “poquita de aguardiente” que lhe pede a avé; no “simples gole de cachaca’; na “sede somente”; no “semi-sortiso”; ¢ nas especificagées do fiado em que se comprou a cachaga em certa “quase esquina” do Pumarejo. O restritivo é também deta- Ihista € materializante, concretizando a histéria. O processo se apura e se adensa, porém, na sétima e oitava estrofes muito mar- cadas por expressGes de cautela ¢ comedimento: “cuidadosamen- te”, “como uma pogio [...] medida”, “com colher de ché/ como remédio’: a neta serve cachaga com um rigor de posologia farma- ctutica, 2 a avé obedece com igual rigor ao limite do “lo bastante” co suficiente), num quadro de ponderagdes e de medidas. Nem falta, na prontincia espanhola, certa ressondncia entre “bebi” ¢ (“vit”) — 0 que, neste caso, marcaria também a ampla suficién- cia dos noventa anos. E deste regime do restrito mas suficiente, do severo mas expressivo que nascem a sarriso heatifico e a més- cara da morte, iluminada, que fecham 0 poema. ‘Toda essa severidade expande-se como um ritual intensa- mente religioso, a que nao faltam a comunhio, a béngio in ex- tremis (“santos dleos da garrafa”) ¢ um sentido de graga que se revela litirgico dentro da formula banalizada: “gracias”. Também © humor distraido da expressio “acordou jé morta” colabora com essa fuséo de planos em que a cachaga se transfigura em santos dleos, em que o fogo da aguardente ilumina um jibilo interior, em que os acentos do restritivo niio impedem (antes o provocam) um efeito de alta voltagem poética. Na verdade, é exatamente nesse conjunto de restrigdes € mensurages que se encontram a poesia da narrativa e a poética de Cabral. O senso de medida da neta na administragao da cachaga guarda correspondéncia com a administraggo calculada da linguagem do poeta: a aceitaggo de “lo bastante”, por parte da avé, é da mesma natureza dos limites de suficiéncia e equilibrio de seu estilo; os detalhes mitidos e 0 LEITURA DE POESIA 167 sentido geral da narrativa encenam, enfim, uma ligio de limites a que é muito sensivel a arte cabralina. O senso de medida traduz-se, retoricamente, no jogo de comparagées: “como uma pogo de farmécia”, “como nao se mede a cachaca”, “como remédio de farmécia”, “com ar de comungada’, “sortindo em si como beata’. O procedimento é um habitual mo- do de aproximacio, pelo qual o pocta pode indicar as seme- Ihangas ¢ ressalvar as diferencas, mantendo assim, escrupulosa- mente, um justo senso de medidas e distingées — senso que € parte fundamental de sua estratégia expressiva. Garantida, porém, com as comparagées, a nitidea de cada um dos termos, é fre- qiiente que a metéfora entio compareca, jd devidamente “histo- riada” em seu processo: os “santos dleos da garrafa” metaforizam a comunhio pela qual 0 mundano (ou mesmo o blasfemo) da cachaga se converteu no santificado, abrindo caminho para 0 expressionismo da estrofe final: De manha acordou jé morta, ¢ embora fria e de madeira, tinha defunta 0 tiso ainda que a aguardente Ihe acendera. A imagem desta morta — a imagem desta morte — é 0 arremate que poema pacientemente construiu com a dissemina- Gao de indices e detalhes sutis. Como toda imagem forte, ela vai muito além de sua imediatez, abrindo espago para as sugestes € expansées garantidas em seu poder de sintese. O aparente cochilo da expresso “acordou j4 morta” (nao raro, em frases distrafdas) tem aqui a ambigitidade intencional do efeito de vida que per- manece na méscara defunta. Esta, “embora fria e de madeira”, guarda enquanto expressdo o prazer do momento vivido um pou- co antes. Na simultaneidade da imagem encontram-se os tempos 168 ALCIDES VILLAGA do ser e do parecer, ambos verdadeiros, 0 primeiro emprestando a0 segundo o sentido de intimidade calorosa e positiva, 0 segun- do emprestando ao primeiro a faculdade da permanéncia sim- bélica. O ressalvante realismo de “embora fria ¢ de madeira” (atento ao quadro materialista da morte fisica) é, por sua vez, ressalvado pelo “riso ainda/ que a aguardente he acendera” (ex- presséo na qual a quimica da cachaca eleva-se ao simbolo do acender: calor ¢ luz conservados): donde o réquiem iluminado por um intrigante sentido de triunfo. Nesta recortada fronteira entre vida e morte, matéria e sim- bolo, histéria e poesia, Cabral apreendeu o limite ¢ a expansio possivel (“ainda”) da imagem. O duplo aqui conjugado faz pensar no comportamento geral de sua poesia mesma, no aspecto “frio” que assume em sua planificada ossatura, em sua perspectiva si- métrica e geometrizante; mas também faz pensar na menos defi- nivel iluminagao que lhe corre subterraneamente, ¢ a enrafza em miiltiplas experiéncias: casos pungentes, paisagens animizadas, objetos tocados, personagens ctimplices. Como falar de uma coisa sem falar da outra? Como orientar o prazer estético para 0 puro desenho da forma, sem admitir que seu rigor mesmo provém e se destina ao mundo interpretado? “Embora fria [...] 0 riso ainda”: nesta balanca de restrigio ¢ limite, neste espaco minimo de movimento entre 0 nome e a coisa, Cabral produz uma poesia intensa, vertical e cortante. Seu Poema ideal seria, quem sabe, um raio branco e luminoso sobre uma pedra eterna, chamada Pedra por Ninguém. Contra o hori- zonte desse mito, porém, o poeta trabalha e trabalha sua lingua- gem, sua “humana oficina”, na qual além das flores forjadas em ferro ilumina um sorriso minimo de morte e de vida — “e néo hé melhor resposta/ que o espetéculo da vida”. LEITURA DE POESIA 169 am ats ee {Juvenrupe) Mério Faustino Juyentude — a jusante a maré entrega tudo — maravilha do vento soprando sobre a maravilha de estar vivo ¢ capaz de sentir marayilhas no ‘vento — amar a ilha, amar o vento, amar 0 sopro, o rasto — maravilha de estar ensimesmado (a maravilha: vivo!), tragado pelo vento, assinalado nos pélagos do vento, recomposto nos pésteros do tempo, assassinado 1a pletora do vento — maravilha de ser capaz, maravilha de estar a postos, maravilha de em paz sentir maravilhas no vento € apascentar 0 vento, encapelado vento — mar & vista da ilha, eternidade & vista do tempo — © tempo: sempre 0 sopro exéreo sobre os pagos, sobre as régias do vento, do montuoso vento — ea terna idade amarga — juventude — extase ao vivo, ergue-se 0 vento livido, vento salgado, paz. de sentinela maravilhada a vista de si mesma nas algas do tumultuoso vento, de seus restos na mAgoa do tumulério tempo, de seu pranto nas 4guas do mar justo — maravilha de estar assimilado pelo vento repleto pelo mar completo — juventude — a montante a maré apaga tudo — “fragmento” da juventude Benedito Nunes Muitas obras dos antiges acabaram como fragmentos. Muitas obras dos ‘modernasjé nascema assim. E SciteceL — rag. A 24. “fragmento” reproduzido nas péginas anteriores, da- qui por diante denominado JUVENTUDE, pertence & série de poemas curtos sem titulo, compostos entre 1959 © 1962, que Mario Faustino excepcionalizou como o inicio de um projeto de criagéo, preenchendo nova fase de sua poesia, para ele definitiva. Tratava-se de elaborar, enquanto vivesse, um tinico e longo poema tio s6 pela correlagéo muitua entre pocmas curtos dessc tipo, em ntimero indefinido — “pe- quenos poemas liricos”, dizia, heterogéneos na forma e na temd- tica, mas escritos em verso e com a autonomia das composig6. tradicionais. Em vez de partes que se adicionassem para formar-lhe © todo, essas composicdes breves eram “fragmentos”, enquanto porgées antecipatérias, exemplificativas, do Gnico poema extenso, cuja idéia, contudo, também ideal norteando a experiéncia poéti- ca de que provinham, preexistia aos seus componentes, enquan- to diretiva a cles comum. Unicos produtos finais, os “fragmentos”, 175 identificados pelos pontos de supensiio [. ..] antes do inicio e de- pois do final, constitufam, ao mesmo tempo, momentos de para- doxal “obra em progresso”, sempre incompleta quanto mais avangassem, ¢ da experiéncia do poeta que intermediavam. O © existencial e 0 poético se complementariam dentro de tal projeto, que pretendeu unir vida e poesia. Por isso, atribufa Mério Faus- tino A escrita dos “fragmentos” — num primeiro jato, versos oca- 4 sionais ou de circunstancia, depois estruturados, reconstruidos! —a fingao de reordenar a sua existéncia, feita “unidade milti- pla’, a semelhanga do almejado poema extenso a que tendia. ‘Ao neutralizar a intengao psicolégica desse projeto biogré- fico-artistico, em proveito da intencionalidade de JUVENTUDE, aqui analisado, numa leitura de compreensio, do “angulo de uma _frnomenologia do poema, em busca de seu sentido, essa composi¢ao perde a excepcionalidade conferida & série, sem perder o caréter de “fragmento”, que deve & sua forma peculiar de “pequeno poe- ma Iirico”, ¢ religa-se, juntamente com as suas congéneres, 20 conjunto da obra realizada pelo poeta, de que todas sao efetiva- mente partes, ao lado das poesias de O homem e sua hora (1955) € dos textos experimentais (1956-1959) que as antecederam2. No correr da andlise, ficam patentes, a despeito das diferengas que os separam na forma e na concepsio, os vinculos do “frag- mento” escolhido com as primeiras e com 0s iiltimos, a comecar pelo seu tema, a juventude, af interligado as grandes oposigdes tematicas da lirica de Mario Faustino, amor e morte, tempo € eternidade. Mas como desencobrir o sentido desse poema vultoso, de avassaladora sonoridade, que se propaga com o repetitivo bord3o das duas palavras insistentes, “maravilha” e “vento”, aquela em posigao anaférica, treze vezes reiterada, ¢ a ultima quinze, no comeso € no fim dos versos? O imediato efeito encantatério da iteragio, envolvendo o leitor, parece dissolver as significagoes em 4 176 BENEDITO NUNES 4 “nadas aéreos”. Talvez estejamos diante de uma poesia aparentada aquela espécie, mencionada por Jorge Luis Borges, que “no quer dizer nada ¢ 4 maneira da miisica diz. tudo”. Aqui, de fato, 0 encantatério é musical; a interagao integra um ritmo cantabile, considerével e vigoroso extrato fonico das enunciagées dos versos. Elas so ritmicas, de modo que nao hé significados que nao sejam cantantes, na acep¢ao melédica do rermo. Inversamente, 0 ritmico é significativo, tanto do ponto de vista semantico quanto sintdxico. Nessas condigoes, pode apli- car-se a JUVENTUDE, sob a dependéncia da interconexo entre 0 fonemitico e a significagao das palavras que o caracteriza, a no- ‘do de ritmo em toda a sua latitude de fendmeno imanente’. A repeticio das mesmas palavras, antes assinalada, cuja funcao vere- mos adiante, é, sem diivida, a figura mais exterior dos 36 versos paratéticos da composicio — de metros variados, regulares, como decassilabos, em geral herdicos, além dos de menor medida, ¢ irregulares, com 13, 15 e 18 sflabas — cujo ritmo ondulatério excede o simples compasso métrico pelo andamento, gracas & diferenga expressiva das variagoes de acento, combinadas com a recorrente incidéncia, verso a verso, das mesmas vogais (a-e-i-o). Mais lento nos versos de maior ntimero de sflabas, mais répido nos outros, 0 andamento, inseparavel desses pontos de assonéncia, redobrados pelas profusas rimas internas (estar/amar, vento/ tempo, apascentar/mar, mégoa/aguas, repleto/completo) e alitera- gGes (juventude/jusante, pélagos/ pésteros/pletora/ postos, eterni- dade/etéreo, tumultuoso/tumulério), dé as enunciagées uma ni- tida linha de entoagao. Sob esse aspecto, é justificavel o quali- ficativo, atribuido ao ritmo, de ondulatédrio, que tem a ver com a forma de “fragmento” adiante diagramada: LEITURA DE POESIA 177 1 Juventude — I 2 a jusante a maré entrega tudo — 3. maravilha do vento soprando sobre a maravilha IT 4 de estar vivo e capaz de sentir 5 maravilhas no vento — 6 amar a ilha, amar 0 vento, amar 0 sopro, o rasto_ Ill maravilha de estar ensimesmado 8 (a maravilha: vivo!), 9 tragado pelo vento, assinalado IV 10 nos pélagos do vento, recomposto 11 nos pésteros do tempo, assassinado 12__na pletora do vento 13” maravilha de ser capaz, 14 maravilha de estar a postos, 15 maravilha de em paz sentir v 16 maravilhas no vento 17 e apascentar o vento, 18 encapelado vento — 19 mar a vista da ilha, 20 eternidade a vista VI 21 do tempo — 22 0 tempo: sempre o sopro 23 _etéreo sobre os pagos, sobre as régias do vento, VIE: 24 do montuoso vento — 178 BENEDITO NUNES: 25 ea terna idade amarga — juventude — 26 — éxtase ao vivo, ergue-se o vento livido, 27 vento salgado, paz de sentinela 28 maravilhada a vista 29 de si mesma nas algas vill 30 do tumultuoso vento, 31 de seus restos na magoa 32 do tumulétio tempo, 33 __ de seu pranto nas 4guas do mar justo — 34 maravilha de estar assimilado 35 pelo vento repleto IX 36 e pelo mar completo — juventude 37a montante a maré apaga tudo — x O trago formal mais ostensivo de JUVENTUDE — parco em adjetivos, utilizando freqiientemente o infinitivo pessoal do ver- bo estar (estar vivo — estar ensimesmado — estar a postos — estar assimilado) — ¢ 0 uso, do principio ao fim, de uma pon- tuagdo — os travessdes nos finais de verso, doze ao todo — quase exclusiva, nao fosse a saliente fungao ritmica das virgulas, como se constata no enjambement dos decassilabos 9, 10 ¢ 11. Os travessées pontuam unindo o que separam e separando o que unem. Nesse duplo papel, assinalam tanto o recorte do “frag- mento” — seccionado & altura de cada um dos doze travessées — quanto o entrelagamento das trés estrofes — distico, estancia mediana e verso final isolado — e dos versos entre si, distribuidos LEITURA DE POESIA 179 em dez unidades distintas de enunciagao (indicadas pelos algaris- mos romanos do lado direito do texto), que nio se interligana discursivamente. Onde o travessio aparece, a sintaxe discursiva se interrompe, substituida pela sintaxe ritmica. Assim, a forma sin- gular desse “pequeno poema lirico”, enquanto “fragmento”, é a. da continuidade na descontinuidade — continuidade associativt do ritmo e das imagens’, descontinuidade das enunciagdes. A lua de tal oposic¢ao interna, os travess6es também funcionam para marcar pausas do ritmo, que se interrompe em cada unidade, re- comegando, de novo, na seguinte. Nessas sucessivas interrupgoes € recomegos — dai o movimento ondulatério do ritmo —, seu andamento ganha distintas entoag6es, que complementam as va- riagdes acentuais com as variagdes melédicas dos versos. O efeito encantatério antes destacado ¢, pois, 0 prolonga- mento da sedugio do canto, em que as significagées so musicais © 0 cantabile, significativo. E.a iteragao de “vento” e “maravilha” introduz nesse cantabile a diferenca de timbre das duas palavras — refrées mais do que bordées — que tém por fungdo emprestar a0 movimento ondulatério do ritmo uma altura enfiética, atisso- nante, de recitativo oral. A semelhanga de outros “fragmentos”, 0 poema, a despeito de incluir detalhes de escritura visual, entra na categoria dos textos poéticos de leitura em voz alta’. E recitativo por ser canto, € canto pela sia configuragio ritmica, como intercorréncia dos elementos destacados: compasso ou cadéncia, andamento, vatiagao melédica ¢ timbre, Articula-se na configu- ragio ritmica o sentimento preponderante no poema, que dé o tom ou a tonalidade de sua linguagem lirica. E af, no ritmo, que traspassa as enunciacées da segunda estrofe, que se pode desen- cobrir 0 sentido intencional, o dizer obliquo de JUVENTUDE?. Enquanto nos sonetos de O homem e sua hora a juventude aparece no motivo incidental do amor — a perturbadora atracio 180 BENEDITO NUNES amorosa pelo adolescente ou, ainda, o realce de seu vigo fisico em contraste com a velhiceS —, nesse “fragmento” ela é expressa- mente tematizada, em confronto com 0 amor ¢ a morte, © tempo ea eternidade, como objeto de louvor. ‘Assim Mario Faustino retoma um dos atos mais proemi- nentes da linguagem lirica — 0 encémio, o elogio —, base inten- cional de um género da Antigilidade, cujas formas, o hino ea ode, entéo codificadas, a tradi¢ao moderna estendeu, desde o Roman- tismo, &s coisas da Natureza, aos estados e sentimentos humanos. Por ser contraparte da reveréncia, do respeito ou da admiracéo do sujeito a algo fora de si, 0 ato de louvor, que lhe manifesta a vor, guarda distincia em relagio ao que exalta, e que revive, de maneira exultante, numa acio celebratéria. Porém, € s6 na segunda estrofe que o sujeito lirico louva a juventude, em atitude de abstrato distanciamento, favorecida pelo infinitivo impessoal, depois de havé-la invocado no comego do distico: Juventude — a jusante a maré entrega tudo — maravilha do vento soprando sobre a maravilha de estar vivo ¢ capaz de sentir maravilhas no vento — amar a ilha, amar 0 vento, amar 0 sopro, 0 rasto — maravilha de estar ensimesmado (a maravilha: vivo!), Sobre set 0 tinico em primeira pessoa de toda a composicio, € um dos poucos no indicativo presente, esse verso parentético & também o tinico que interrompe o distanciamento da voz, exter- nando, num registro exclamativo solitatio, o motivo de admira- LEITURA DE POESIA 181 ‘cdo do sujeito: 0 sentimento de viver. Eis a “maravilha”®, que 0 identifica 4 sua prépria juventude ¢ a torna louvével, Numa glosa ao conhecido conceito de Paul Valéry, pode-se dizer que 0 “pequeno poema Itico” de Mério Faustino é 0 “desenvolvimento” dessa exclamagao"®, O sentimento de viver, estado intensivo de Animo e origem da admiracdo que a motiva, constitui a ténica dos versos de louvor da segunda estrofe, exaltando a vida como juventude e a juventude como vida. Mas “danga de uma atitu- de”! naquela ténica, a aco celebratéria dramatiza essa exaltacio do sentimento de viver dentro dos limites da cena marinha tragada conjuntamente pelo distico e pelo verso isolado final, entre os quais a estrofe mediana se localiza. De fato, o distico (1), que comega invocando a juventude, ¢ do qual nao hé passagem sintético-discursiva para aquela, € 0 inicio de uma enunciagao sentenciosa, nao-celebratéria, que se completa com a da tiltima estrofe (X), a que esta oposta, forman- do ambas, enquanto imagens contrérias do fluxo ¢ do refluxo da maré, em correspondéncia simétrica, as partes complementares de um mesmo sfmile da juventude enquanto ciclo temporal: Juventude — a jusante a maré entrega tudo — a montante a maré apaga tudo — espaco marinho do louvor aberto entre esses extremos, demarcados por duas locugées maritimo-fluviais, a jusante ¢ a montante, indicando a posigao altaneira de quem divisasse os dois movimentos contrdtios da mesma corrente liquida, é, como cena da celebragao, um espago metaférico. Muito embora se note a auséncia, no “fragmento”, de metéforas tépicas, abundantes nos poemas anteriores de Mario Faustino", os versos sentenciosos, 182 BENEDITO NUNES que sobrepéem a imagem da maré ao estado juvenil, dio origem a0 principal nicleo associativo do poema, nele disseminado co- mo elemento fonemdtico-significativo: mar-av-ilha do vento soprando sobre a mar-av-ilha a-mar U a ilha, amar U 0 vento, [amar U 0 sopro, 0 rasto — Tanto “maravilha” quanto “amar” so anagramas de mar, ¢ © mar é uma imagem obsessiva que passa das composigées de O homem e sua hora as pecas experimentais aos “ftagmentos”!3. Prolongado, por encontro eufénico num acidental adjetivo (ama- ra itha amaro vento amaro sopro), mais realcével pela leitura em voz alta, essa imagem forma o primeiro elo de uma cadeia de associagoes por semelhanca. Assim, ao repetir-se “maravilha’, também se repetem as imagens do mar, da ilha ¢ do vento, ele- mentos do cendrio marftimo a cla associados. A outra palavra privilegiada, “vento”, refiiéo como a anterior, a metonimia do elemento aéreo e aligero da cena marinha, também se conjuga 20 mar, porém, segundo se verd adiante, enquanto imagem-simbolo do impeto amoroso, erético, da juventude'4, Acrescente-se a esse primeiro elo — maré, maravilha, amar a iba, mar a vista da itha' — aqueles derivados da transposico de significados me- diante similitude sonora entre os significantes (paronomésias), que integram, interligando os versos da segunda estrofe, o mesmo ritmo ondulatério que comegou no distico, ¢ teremos a segunda cadeia associativa. A proliferagao da semelhanca paronoméstica, préxima do trocadilho (capaz: de sentir — recomposto — estar a postos — ser capaz — em paz sentir — eternidade — a terna idade — paz de sentinela), em convergéncia com as rimas e aliteragées, completa o espago metaférico da agao celebratéria, que encena, LEITURA DE POESIA 183 em dois momentos, retomando o tempo e a eternidade, jé tema- tizados anteriormente pelo poeta, a dramética identificagio da juventude com o sentimento de viver. primeiro momento (3 a 18), que corresponde as quatro primeiras entoagées (II, III, IV, V), é 0 da expansio oceidnica, dionisfaca, da sensibilidade, arrebatada pelo préprio sentimento de viver. A longa pausa que o separa do decassilabo herdico do distico (1), realga 0 lento andamento de 3 (15 silabas), que, mo- vendo-se na esteira das assonancias, aumenta em 6 (17 sflabas), num largo maestoso, com apoio na repeticao de amar, e sob 0 maior efeito de retardamento ritmico introduzido pelas virgulas, dividindo o verso em quatro hemistiquios (amar a ilha / amar 0 vento / amar 0 sopro / o rasto), que finalizam por uma sflaba grave (rasto). Na quarta entoacdo, em contraste com a anterior pelo de- cassflabo com que se inicia, acelera-se 0 andamento, marcado por trés rimas emparelhadas e pontuado por virgulas, dos trés outros decassflabos (9, 10 e 11) interligados, acompanhando a meta- morfose do sentimento de viver em impulso amoroso, erdtico (a imagem do vento), envolvente e violento, que extasia o sujeito: maravilha de estar ensimesmado (a maravilha: vivo!) tragado pelo vento, assinalado nos pélagos do vento, recomposto nos pésteros do tempo, assassinado na pletora do vento — Jé.o hexasstlabo final (na pletora do vento), em.que arre- fece a aceleragao, entrosa-se aos versos de menor medida da en- toagio seguinte, octossilébicos, com tOnicas na terceira e na oita- va sflabas, © hexassildbicos, com variagdes acentuais na quarta, 184 BENEDITO NUNES terceira ¢ sexta sflabas, que assinalam 0 anticlimax do arrebata- mento, o sujeito pacificado retornando a si mesmo num estado de plenitude individual: maravilha de ser capaz, maravilha de estar a postos, maravilha de em paz sentir maravilhas no vento © apascentar 0 vento, encapelado vento — ‘As variagdes melédicas do andamento, em fungio das pausas e variagbes acentuais dos versos, e de todo o regime iterativo da composigao, incluindo a esteira de assondncias — as aliteragoes cas rimas, mas sobretudo a repeticao conjugada de “maravilha’ e “vento”, principal fator de intensidade ritmica—, unem as quatro distintas unidades de enunciago, com suas diferentes entoag6es, numa s6 inflexio exultante, interrompida quando comesa 0 intermezzo do “fragmento”, dividindo-o em duas metades: mar & vista da ilha, eternidade a vista do tempo — © tempo: sempre 0 sopro exéreo sobre 0s pagos, sobre as régias do vento, do montuoso vento — No intermezzo — versos 19 a 24 — ingressa 0 tempo co- mo agente dramético, em concorréncia com o “vento”, sua rima assoante no verso 10, ¢ confrontado a eternidade, a que tende a cexultagio da vida, na mesma cadéncia dos iiltimos versos da anterior entoacio interrompida. A eternidade, af sugerida, é 0 LEITURA DE POESIA 185 hic et nunc da sensagio, no espago do presente instantineo (mar & vista da ilha). Logo a imagem do tempo, associada & do “vento”, verso 22, torna-se dominante, recebendo no verso 23 (13 sfla- bas) um registro de amplidio espacial, depois do que tem inicio © segundo momento da acio celebratéria e a segunda metade do “fragmento”, continuagao do louvor ao sentimento de viver, & sua expansio erética, de novo metamorfoseada, mas sob diferen- te inflexao do mesmo ritmo: ea terna idade amarga — juventude — éxtase ao vivo, ergue-se o vento livido, vento salgado, paz. de sentinela maravilhada a vista de si mesma nas algas do tumultuoso vento, de seus restos na magoa do tumulério tempo, de seu pranto nas éguas do mar justo — ‘A conjungfo inicial (¢) marca um recomego. Agora, po- rém, saindo do éxtase preponderante na primeira metade, a par € passo da exultagao, ¢ jd aliviada a carga repetitiva do ritmo, rimas e aliterages reduzidas ao minimo (mégoa/éguas; cumul- tuoso/tumulitio), sem mais 0 acompanhamento intensificador de “maravilha’, a “curva melédica”'S da entoagao de VIII, tracada pela cadéncia em diminuendo de 25 a 32 — versos de seis s{labas sucedendo os de onze e dex —, declina para o andamento vaga- roso do adagio, enquanto, diante da metamorfose tandtica do impeto amoroso, a exultagao da primeira metade alia-se, dentro do continuo ritmico da segunda estincia, transportando a mesma ‘nica do louvor, & inflexio lamentosa, elegfaca, deste segundo momento. 186 BENEDITO NUNES O “vento” como tempo, metamorfose tandtica do impulso amoroso, recebe conotages sombrias (livido, tumulério), rein- corporando a metéfora do mar (salgado), e a juventude, “terna idade amarga’, realgada no que tem de frégil, passageira ¢ con- flitiva — oximoro que é um calembur da eternidade —, assimi- la 0 acidental adjetivo do verso 6 (amar, amaro). Mas, embora a celebraco seja agora um rito lutuoso, o louvor a juventude e ao sentimento de viver, completamente identificados, no cessa, Em seu ultimo ato, apés o decassflabo herdico (33) do final da unidade VIII, a celebracéo, que encena o luto da juventude, sua imersio tanética no “mar justo”, repete, de maneira modificada, em IX, a inflexio exultante de IV, inclusive na disposi¢io empa- relhada das rimas: maravilha de estar assimilado pelo vento repleto ¢ pelo mar completo — juventude — Mas aqui também se fecha a enunciagéo sentenciosa ini: ciada no distico, perfazendo-se, com a fim da celebragao, 0 ciclo temporal da juventude, antevisto de maneira impessoal e distan- ciada pelo sujeito Iitico, a cavaleiro de sua prépria idade juvenil, de que antecipou, apés 0 momento de expansio, quando tudo entrega (a jusante a maré entrega tudo), 0 momento de dissipa- gio, de ruina e de morte, quando a montante a maré apaga tudo — Ve-se, entdo, que o simile da juvéntude, que entrosou as duas imagens contrérias do fluxo ¢ do refluxo, é uma concordia discors, uma concordancia de opostos, do mesmo modo que o € © sentimento de viver em suas metamorfoses, cujo contraste LEITURA DE POESIA 187 entre o atrebatamento dionisfaco, amoroso, ¢ a morte, como entre exultagao ¢ lamento, o ritmo ondulatério mantém na cele- bragio que o louva. E assim a agéo celebratéria, que une as duas inflexdes, a exultante do elogio e a lamentosa da elegia, num sé louvor & juventude e ao sentimento de viver, equivale a um sim dado & vida contraditéria e efémera. Nessa afirmagio trdgica est& 0 sentido intencional do “fragmento” — o seu dizer obliquo —, explicitado do ritmo cantante em que se articulou, aceitando ¢ consagrando o amor fati que impregna, desde 0 comego, a lirica de Mario Faustino'”. Notas 1 Mario Faustino adotava terminologia cinematogréfica inspirada por Eisens- tein: os versos circunstanciais seriam takes e montagem o procedimento artistico posterior. Os concretistas difundiram, a época, o ensaio do cineasta russo relacionando montagem e ideograma (“O princfpio cinematogréfico € 0 ideograma’). A terminologia era, de certo modo, polémica, na medida ‘em que Mério Faustino, que tinha conservado 0 verso mesmo nos seus poemas experimentais, marcava a distincia que o separou dos concretistas, utilizando teéricos e poetas que cles prezavam, sem esquecer, ainda, Mal- larmé e Pound, de cuja escrita poética se aproximaria a dos “fragmentos”, rno entanto vinculada, quanto ao ideal do poema longo, & Invengio de Orfets, de Jorge de Lima. 2. O homem e sua hora, Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1955. Republicado, ‘com os esparsos ¢ os inéditos, incluindo os “fragmentos”, em Poesia de M- tio Faustino, Civilizacdo Brasileira, 1966, e Poesia completa/Poesia traduci- da, Max Limonad, 1985. As citagdes seguem esta ultima edicio. 3 Jorge Luis Borges, La Ciffa, Prélogo, Madrid, Alianza Editorial, 1981, pp. Me l2 4 Na conceituagio de Roman Ingarden, o ritmo é imanente quando prescrito “por determinado conjunto fonemstico-significativo”. A obra de arte lite- 1dria, Lisboa, Fundacio Calouste Gulbenkian, 1965, p. 67. 5.A proporgao crescente de poemas fragmentirios a partir do comeco do sé- 188 BENEDITO NUNES culo XIX pode atribuir-se a “uma énfase crescente do associacionismo Iti- co ea uma énfase descrescente do enredo dramético racionalmente desen- volvido...” (“an increased emphasis upon lyrical associationism, and a decreased emphasis upon rationally extricated plot...”). Keneth Burke, The philosophy of literary form, Berkeley, Los Angeles/London, University of California Press, 1973. 6 De acordo com a conhecida disting’o de Joio Cabral de Melo Neto entre “poemas para serem lidos em siléncio" e “poemas que, menos que lidos, podem ser ouvidos". Nota a Duas Aguas, José Olympio Editora, Rio, 1956. 7 “Além da escolha, do lugar e do encadeamento das palavras, é pois, sobretu- do, a totalidade da configuragao ritmica do dizer poético que ‘exprime’ o que se chama de sentido (Sinn)”. Heidegger, Holderlins Hymnen, "Germa- nie” und “Der Rheine’, Gesamtausgabe, Band 39, Frankfurt am Main, Vittorio Klosterman, 1980, p. 14. “Divisamos assim 0 adolescente,/ a rir desnudo em praias impolutas...”, Divisamos assim 0 adolescente, p. 119; “Rapaz, em minhas maos cheias de areia/ Conto os astros que faltam no horizonte/ Da praia solugante onde passeia/ A espuma de teu fim, pranto sem fonte. © juventude, um palio de inocéncial Jamais se estenderd sobre outra aurora...”, Onde paira a cangdo recomegada, Sete sonetos de Amor e Morte, O homem e sua hora, p. 175; “LA conde um velho corpo desfraldava/ As trémulas imagens de seus anos;/ on- de imaturo corpo condenava/ Ao canibal solar seus tenros anos;...”, Nam Sibyllam, Sete sonetos de Amor e Morte, O homem e sua bord, p. 172. 9 Maravilha (de mirabilia, neutto plural de minabilium do verbo mirare): 0 que causa assombro ou provoca admiracio. 10 “Le yrisme est le développement dune exclamation... — Le genre de pobsie (qui suppose la voix en action — la voi directement issue de ou provoguée par les choses que Von voit et que l'on sent comme presentes’, Paul Valéry, Tel Quel J, Paris, 1941. p. 179 1. “The symbolic act is the dance of an attitude”, cf. Keneth Butke, op. cit, p. 9. Entendemos a agio celebratéria como um tipo de ato simbdlico. 12 Bastaria referir, como exemplo, as de Nam Sybillam: “LA onde um velho corpo desfraldava/ As trémullas imagens de seus anos;/ onde imaturo corpo condenava/ Ao canibal solar seus tenros anos...”, p. 172. Veja-se, ainda, “E dobram sonhos na mal-estrelada/ Meméria arfante donde alguém que chamo/ Para outros bragos cardeais me nega/ Restos de rosas entre lengéis de olvido...”, Ego de Mona Kateudo, Sete Sonetos de Amor e Morte, O ho- mem e sua hora, p. 176. 13 “Apago a vela, enfuno as velas: planto/ Um fruto verde no futuro, e parto/ De escuna virgem navegante, e canto/ Um mar de peixe e febre e estirpe LEITURA DE POESIA 189 farto —”, Viagem, p. 123; ...B até no atol do sexo triunfante/ Do mar e da salsugem da agonia/ Dormia um redentor..., Agoniste, (O homem e sua hora), p. 174; —“... Cruel foi ceu triunfo, torpe mar./ Celebrara-te tanto, te adorava/ Do fundo atroz a superficie, altar! De seus deuses — tanto amava/ Teu dorso cavalgado de tortural...”, Balada (em meméria de um poeta suicida), p. 116; “... —E do salio o deslizar se ouvia/ dos carros na rodovia, como se ouve/ 0 mar — outro, mais outro — sobre as conchas atentas —", Ariazul, p. 78; "... por que temes 0 mar; por que ni temes/ 0 carvao que ele formas por que temes ?”, Marginal Poema 19, p. No fabuloso mar na salsa areia/ alimento nao crescef cobras crese € nos impée silencio o bramir vero/ do veado occano...”, Cavossonante escudo nosso, p. 913 *... eu lutando com eros/ idem idem com verbo! eu Jutando com mar, com Migomesmo, guerreiro atribulado. 22-10-1956, amor confrange”, fragme p.50;-—“... 0 marsem remo tolda os horizontes..., fragmento, p. 52; “O. mar recebe o rio. O rio/ faustosamente corre para 0 mar! o rio-mat hino apologético do mundo...”, fragmento, p. 555“... € experimenta-se a voracidade! do mar, do fundo/ envenenado:... cala-se alguém que nao quis beber seu cilice,/ alguém que nio quis beber,/ alguém que nio quis/ © mar, em vio e nada, 0 érduo mundo,/ ... As algas dangam/ no mar vinho amargo...”, fragmento, p. 6 'E marcho contra o vento, sobre etéreos/ Desertos sem retorno..., Soneto antigo, p. 126; “Oh vento que meu cérebro aleitaste/ Tempo que meu des- tino ruminaste...”, Ego de Mona Kateudo, p. 176. ‘Também se trata de uma imagem-simbolo, que ocorre no poema-titulo O ‘homem e sua hort (*... Quando o coche/ da noite detiveres, cancio minha,/ Retorna a mim, que passarei mil anos/ A contemplar-te, ouvit-te, cogitar-te. Venus faré de teu marfim fecunda/ Carne que tomarei por fémea, carne/ Feita de verbo, cara carne, mée/ de Paphos, filho nosso, que outta ilha/ onora e redolente...”, p. 188), no experimental 95 e peligicos deusesi/ conspiram contra mim, jogam-me em ilhas. 95) e num fragmento (“Ao fundo a ilha, movediga ¢ torta/ de nossa infincia... Ao fundo a ilha, semovente ¢ morta,/ CE. Alfredo Bosi, O ser ¢ o tempo da poesia, [..] Sobre as nuvens/ Defic a Antigiifs- sima lingua estas palavra feita. E pungente, ¢ raro, ¢ breve/ F 0 tempo que me dio para viver-m € precioso. Mas satido/ Em mim a minha paz final...”. Parte final de Poesia completalPoesia traduzida, cit., p. 107. BENED Sear Reet Caetano Veloso José Miguel Wisnik peigundy ;medseaoape Cm Dmn7(bs) G7 Cm 194 JOSE MIGUEL WISNIK A primeira‘escuta essa cangio nos atrai com 0 encanto da sua singeleza algo enigmética. ‘Trata-se de uma singeleza estilizada, feita da prépria “maté- ria fina” da cultura artesanal do Nordeste. Temos af os rendilhados sintéticos e sonoros tipicos do cantador popular, sua ritmica, sua melédica, sua instrumentagao. O xote chama & meméria aquele universo da tradi¢ao oral nordestina que Luiz Gonzaga traduziu para o mundo do rédio, do disco, da cango urbana. O encantamento vem misturado com estranhezas que ele mesmo ora acentua ora dissolve. A cango parece revelar transpa- rentemente o seu sentido ¢ a0 mesmo tempo guardé-lo intocado. ‘Ao ouvi-la, pode-se perguntar: que “homem lindo”? que “menino infeliz”? que “sina”? o que é “cajuina”? As perguntas vertem sobre seres cujas ligagbes, entremeadas num tecido alusivo e muito suti, nao saltam a vista, embora mantenham um poder de convenci- mento que se antecipa ao entendimento ¢ garantem sua forca. LEITURA DE POESIA 195 O ponto de partida é a pergunta pelo sentido da existén- cia. No entanto, ela nao estd af para ser propriamente respondida (ce responder é esgotar a razdo de ser da pergunta) mas para re- tornar no movimento circular da cangio, atualizando-se a cada volta completa da repeticdo. O que motiva a pergunta recorrente é uma cena, lembrada por um sujeito a um outro que dela parti- cipa: o dom de uma rosa, feito do tu para o eu (“pois quando tu me deste a rosa pequenina’), move a admiragao deste (“vi que és um homem lindo”) ¢ alude 20 mesmo tempo a um terceiro, 0 “menino infeliz” cuja “sina”, por nés ouvintes ignorada, parece despertar nas duas personagens uma emoso contida que s6 en- contra correspondéncia no miituo olhar “intacto”, suspenso para a ldgrima mas vazado na transparéncia da “cajuina” (“e éramos olharmo-nos intacta retina/ a cajuina cristalina em teresina”). Esta tiltima referencia remete intimamente & cultura piauiense: cajuina é uma densa e transliicida bebida de fabricacéo caseira, feita de caju, que resulta da depuragao da massa da fruta. Assim, a cena que motiva a pergunta inicial remete a uma experigncia que permanece para nés como segredo, ipartilhado pelo ewe pelo tw internos & cangao. Talvex 0 encantamento enig- mitico de “Cajuina” esteja ligado ao modo como ela nos faz par- ticipar desse segredo: assim como a cajuina guarda a esséncia do caju em sua transparéncia, tendo decantado radicalmente a sua matéria, a cangao nos faz ir ao niicleo emocional de um aconte- cimento do qual, no entanto, a histéria esté subtrafda. Para isso, é preciso que a pergunta pelo sentido do “existir- mos”, de alcance universal, reverta 3 sua fonte singular, que € aqui © acontecimento intersubjetivo, vivido pelas pessoas em sua pro- nominalidade in/transferivel (ew-tu/ele, nls), cercado dos indices singelos da medida humana — a cidade de Teresina, o dom da “rosa pequenina’, a “lagrima nordestina” suspensa, e a misteriosa auséncia de um “menino infeliz”. Se a pergunta remete & cena 196 JOSE MIGUEL WISNIK J que a motivou, a cena nos devolve & pergunta circular, proferida desde sempre no infinitivo pessoal que nos inclui. ‘A melodia de “Cajuina” é um rendilhado circular, em que o fim converte-se em recomeco, na sua triplice repeticao. Na gra- vacao original de Caetano Veloso (Cinema transcendental, 1979) a cangio repete-se trés vezes igual, embora matizada por varia- Ges instrumentais do arranjo, em especial as frases do acordeom que a partir da segunda vez vao comentando a re-escuta da melo- dia e da letra. A triplice volta agrega 4 breve cangao a figura do retorno continuo, consolidada como uma virtualidade que se torna inerente a ela (se considerarmos, com Propp, que a tripli- cago garante as formas orais a estabilidade de uma estrutura). Mas sobre a figura do rendilhado, que o desenho da melo- dia espacializada nos faz ver, quero tecer antes de qualquer andlise algumas consideragées algo digressivas, embora ainda circulares. E sugestivo lembrar, aqui, que o “fazer renda” é um atributo poé- tico-musical da culcura artesanal nordestina. Em “Muié rendera’, baido-simbolo desse mundo, 0 poeta-cantador quer intercambiar no jogo amoroso os dons da artes com os seus dons de sedutor: “olé muié rendera/ olé muié rendé/ tu me ensina a fazé renda/ que eu te ensino a namord”. ‘Mas 0 que o cantador tem oferecer nesse jogo de sedugio — a arma com a qual ele quet rendé-la — so justamente as “rimas do seu estilo” e a miisica da melodia e das sonoridades ver- bais (indicada em rendera-rendd ¢ renda-namord). Estd implicito no seu apelo que tanto o fazer renda quanto o fazer poesia séo igualmente trabalho ¢ desejo, ¢ que o estilo do poeta é 0 equiva- lente suposto do produto do trabalho femninino, a renda. A poesia- miisica, que ¢ renda de sons ¢ palavras, aprende da mulher 0 seu saber tecer sobre o vazio. Essas associages no s4o inteiramente estranhas & pottica explicita de Caetano Veloso, e ao seu notésrio senso metalingiifs- LEITURA DE POESIA 197 tico. Numa cangdo nem téo conhecida ¢ nem to bem urdida quanto “Cajuina”, chamada “Tenda’, faz-se uma glosa sugestiva de “Muié rendera’: “mesmo que nunca se aprenda/ eu te ensino a fazé renda/ que mais posso te ensind/ eu que nao porto outra prenda/ que s6 sei dar vida a trama va”. O poeta assimila o dom da rendeira (dar trama & vida va no tecido) ao dom, ou & prenda, da poesia (dar vida & trama va das palavras). No caso dessa can- 40 0s papéis masculino e feminino nio esto mais demarcados como estavam no baio rural patriarcal nordestino, e se confun- dem na trama da qual se faz 0 amor e a poesia: “tu me ensina amor a namord/ ¢ eu talver te ensine a me ensind/ tega-se assim a fazenda/ e a nés dois tudo se renda”. “Cajuina” € também ¢ em outro sentido, como veremos, uma cangGo sobre o dom e sobre a falta. Podemos dizer simples- mente, por enquanto, que é sobre a falta de resposta para a per- gunta fundamental. Mas a impossibilidade de nomear o que falta nao cala propriamente a poesia (divergindo a seu modo daquela afirmagao do jovem Wittgenstein — “o que nao pode ser dito deve ser calado”): a poesia-mtisica prossegue ainda, onde cala, em seu rendilhado silencioso que glosa a falta, “dando vida & trama va”. Esse rendilhado é da ordem da materialidade sutil, como aquela materialidade percebida no préprio cerne da expe- riéncia decantada: “apenas a matéria vida era tio fina’, Se olhamos o esquema da melodia, vemos inicialmente uma renda de frases dotadas de inequivoca regularidade. Nos quatro primeiros versos temos sempre, em cada um, uma série de notas iguais que sofrem a inflexio primeiro descendente ¢ depois ascendente de um intervalo de tera, maior ou menor. FE através dessa inflexao, justamente, que 0 espago melédico se desloca, gerando frases de desenhos andlogos, que ocupam alturas um Pouco diferentes e no entanto sugeridas sempre pelo prdprio movimento da frase anterior. 198 JOSE MIGUEL WISNIK De 1 a4 trata-se, portanto, da pequena variagao deslocada e caprichosamente encadeada de um mesmo motivo. O que cons- titui esse motivo, além da regularidade mével de um rendilhado? E importante notar que cada frase termina sempre por um movi- mento melédico ascendente, compativel com a curva entoativa da interrogacdo. A melodia da interrogagéo (“a que serd que se destina?”) fixa-se como padrao motivico, e ressoa nas frases seguin- tes como se a pergunta, caindo como pedra num poso, tivesse feito com que sua onda entoativa ficasse ressoando na melodia da cangio. LEITURA DE POESIA 199 Mas além da regularidade da renda e do contorno entoati- vo e fugaz da pergunta, estabilizado também no padréo motivico, hé um outro detalhe essencial: a tileima sflaba tonica de cada ver- so é nio s6 elevada melodicamente na tensividade de um salto intervalar ascendente, mas alongada, estendida na duracio vocé- lica, sutilmente valorizada em vibragao. Essa leve diferenca de in- flexdo muda tudo: sem ela a cangao permaneceria na sincopa¢ao somético-dangante do xote, com ela, ganha uma dimensio emo- ional que alude discreta e poderosamente & distancia ¢ & falta. 200 JOSE MIGUEL WISNIK LEITURA DE POESIA 201 Com esses comentarios, acabo de indicar implicitamente © modo como se combinam em “Cajuina” as trés instancias que constituem, segundo Luiz Tatit, o tecido da relagdo entre melo- dia ¢ letra na cangao em geral. Temos af tematizagao dominante (decantagao de elementos regulares e repetidos ligados a um géne- ro conhecido de cangao ¢ musica de danga, modalizando um fazer), figurativizasao recessiva (mise-en-scéne melédica de um trago en- toativo, no caso a curva interrogativa, serializada e compreendida aqui pelo padrao tematizante) e passionalizagio residual (discre- ta exploragao das conotagées afetivas advindas da maior tenséo vibratéria dada pela elevago melédica e pelo alongamento das vogais, que modaliza o ser, pontuando cada fim de verso)!. Em resumo, rendilhado nordestino dominante, mas cifrando em seu desenho a interrogacio recorrente e a emocionada inflexdo da falta. Sobre a melodia, quero dizer ainda sucintamente que a fra- se do verso 5 contrapée-se as anteriores através de um desenho radicalmente descendente, que evolui em telagéo 20 contexto paralelistico regular de 1-4 como se abrisse uma “segunda parte” (embora a homogeneidade dominante no contexto ritmico-melé- dico e poético nao permita falar, na verdade, em segunda parte). O que acontece aqui € que essa nftida descida para o grave em intervalos primeiro arpejantes (“tampouco turva-se a”) e depois ‘em graus conjuntos (“a ldgrima nordestina”) “modula” entoativa- ‘mente o contexto interrogativo da parte inicial para um contexto asseverativo. 202 JOSE MIGUEL WISNIK LEITURA DE POESIA 203 Nao uma asseveracio definitiva, mas antes dialetizada através dos desenhos de 6 ¢ 7, em que se combinam agora linha ascendente-descendente e ascendente num movimento serpeante, procedendo sucessivamente por intervalos arpejantes (“apenas 2”, “e éramos 0-”) e por graus conjuntos (“a matéria vi/da era tao fina’, “olharmo-nos in/tacta retina”), Essas mudangas mantém intocado, no entanto, o principio do rendilhado, jé que variam sobre elementos motivicos que vo sempre se padronizando, além de ter sempre seu ponto de partida no lugar marcado pelo fim da frase anterior. A frase final (“a caju(na cristalina em teresina”) fecha o cir- cuito com uma forte afirmac’o de regularidade interna: desenho descendente unidirecional, procedendo por graus conjuntos da escala de do menor, rima interna acentuada e reiterada, tudo resolvendo-se harmonicamente sobre a tOnica e preparando desde entao 0 eterno retorno da pergunta. Como jé foi dito, 0 ponto de méxima asseveragao final esté comprometido com a volta da interrogacao, através de uma espécie de dobra circuladora: se em “ceresina” temos um nitido ponto de “parada”, em “existirmos” temos aquilo que Luiz Tatit chama de “parada da parada”, enten- dido como o lugar origindrio da semiose (na qual todo comego seria sempre, na verdade, um recomeso). A propésito, a tiltima palavra da cangio, “teresina”, forma com a primeira um quase-anagrama consonantal, dado pelos tragos fonéticos comuns a ambas (teresina, existirmos), com a variagao da nasal alveolar no /n/ de “teresina” e bilabial no /m/ de “existir- mos”, Ambas as palavras tém quatro slabas com o acento incidin- do sobre o mesmo i da terceira silaba, vogal que corta por sua vez a cancio de alto a baixo, através da reiteragdo insistente da rima em ina nos oito versos, elevada a0 cubo no iiltimo (‘a cajuina cristalina em teresina”). A mesma vogal i, que preenche exausti- vamente a coluna vertical da rima, horizontalizada no fim, com- 204 JOSE MIGUEL WISNIK parece também em alguns momentos cruciais no interior dos versos: “existirmos”, “vi que és um homem lindo”, “a sina/ do menino infeliz nao se nos ilum/na”, “a matéria vida era tao fina”. Num texto feito para o Songbook de Caetano Veloso (Rio, Lumiar Editora, volume 2)Gomentei que a letra da cango “é per- corrida de alto a baixo pela cicatriz sonora da vogal i, a maneira da cicatristeza de Augusto de Campos, que se combinasse com a sristeresina de Torquato Neto” (este poeta-letrista é chave como veremos, para o enigma sem resposta dessa muisica). Temos af uma “cicatristeresina cristalina” que se da a conhecer através do rendilhado sonoro que faz a matéria da cangio nordestina. Retomo essas observagées acrescidas de outros exemplos da miisica e do texto, Estéo em jogo na cangio marcas de regulari- dade intensiva que decantam certas propriedades de um género. Como foi dito, essa regularidade geral € tematizante e corres- ponde segundo Tatit & modalidade do fazer. Dirfamos aqui que esse fazer cancional corresponde ao “fazer renda” e tudo que ele implica simbolicamente na cultura popular do Nordeste brasilei- ro, unindo difusamente as esferas do trabalho, do artesanato, do amor, do dom e da falta aliciadas pelo apelo ritmico e melédico. Participam dessa regularidade geral, além dos elementos jé apontados, a condugio ritmica do xore (compasso bindrio pulsado através do desenho tipico de zabumba, com um acento no tem- po inicial respondido por duas acentuagées no contratempo) ¢ a célula acentual do triangulo, de natureza sincopada, que serve de onda portadora replicada pelos dodecasstlabos regulares com acentuagéo tendencial nas sflabas pares, como acontece em “pois quan do tu me des te a ro sa pe que ni na’, Uo - U-~U —- U-U-U—U propre rpreroe rs LEITURA DE POESIA 205 ou em “a ea ju {na cris ta li na em ze re si na’. U-—uU-U +U-— U —U-U srerpror 6 rere ‘Mas a cangéo no tem a estabilidade puramente monocorde da regularidade. Se fosse cantada obedecendo somente a0 modelo da escansio bindria dos acentos, resultaria disso uma versio sim- pléria dela mesma. Pois a renda sonora é, aqui, necessariamente regular ¢ irregular, tecido de diferencas, de deslocamentos de in- tensidades e de hiatos, através dos quais a palavra cantada pulsa. ‘Assim, além de guardar a marca da entoagao interrogativa, hé varios momentos em que as irregularidades das palavras, deslo- cando 0s trilhos acentuais do ritmo melédico, forgam a melodia regular para sinalizar sutilmente uma outra coisa — as instabili- dades da fala e do sujeito. E 0 que se passa antes de mais nada em “existirmos”: a obedecer 0 padréo acentual dominante, cantarfamos “e-xis tir més, a que se rd que se des #i na2”, U-U -~U-U-U-U-U No entanto, acentuar sutilmente “e xis tir mos”, uu-vU esse contexto, contra a redundancia do padrao, significa ocupar firmemente “o sem lugar da existéncia” no peso frdgil da sflaba. ‘A palavra parece respirar seu som e sentido, em si mesma, ainda 206 JOSE MIGUEL WISNIK quase mais falada do que cantada, antes de prosseguir a frase ¢ estabilizar o padrio ritmico ¢ melédico (“a que serd que se desti- na?”), Esse deslocamento do significante, com a pausa que af se produz, isto é, 0 “pequeno nada” que o acompanha, é 0 essencial da proferigéo da pergunta metafisica que retorna em cangao. Dirfamos que é 0 ponto sem lugar do irrespondivel da pergunta, que, sem poder nomear, a cangio ainda assim respira. Algo semelhante se passa em “do me ni no in fe liz” uu- UU — em vez de “do me ni no in fe liz”, u-u — UR em “tam pou co tur va se a ld gri ma nor des ti na” u -uU-vU uU-UU- U-U em vez de “cam pow co tur va- se a ¥é gri ma nor des ti na” u-u-U —U-U -~U-U em todo o verso “¢ éra mos o /har mo- nos in tac ta a re fi na” —-uuU--U UU UU-U em vez de “¢ é ra mos a thar mo- nos in tac ta a re tina’. u-u-u —- U-U —U-U LEITURA DE POESIA 207 Esse verso, em que ocorre o maximo de tensio acentual em toda a cangio junto com o maximo de diversificago melédica (0 dpice tensivo da nota mais aguda da melodia e o desenho ser- peante em sobe-desce-e-sobe), antecede imediatamente 0 verso final em que ocorre, por sua vez, o maximo de regularidade me- Iddica (o desenho unidirecional em graus conjuntos) e de regu- laridade acentual, reforcada cabalmente esta tiltima pelas rimas internas (“a cajuina cristalina em teresina”). E como se nos dois vvers0s finais tivéssemos confrontadas, em scu maior grau de con- centragéo, as diferencas subjacentes a0 movimento prosédico da cangio em seu todo. “Temos assim uma espécie de balanceamento instivel, deli- cado, entre as regularidades do apelo somético do xore ¢ as osci- lagées sutis do sujeito da fala as voltas com 0 enigma do destino, do sentido da vida, da auséncia e da identificagéo com 0 outro e com 0 vazio — cheio de miisica. 2. O texto A pergunta ‘A pergunta pelo sentido da existéncia é a questo irrespon- divel que nos constitui a todos, da crianga ao filésofo. Ao final da estéria de Miguilim 0 menino faz. esse apelo & mae: “Mae, mas por que é, entio, para que é, que acontece tudo?!”. Diante da co- movente demanda de sentido, que nao se preenche (nunca serd demais reler essa cena), a mae s6 pode dizer: “Miguilim, me abra- a, meu filhinho, que eu te tenho tanto amor...”. (Ao fundo o papagaio, Papaco-o-Paco, “sobrecantando”, trauteia velha cangao 208 JOSE MIGUEL WISNIK repetindo em eco que sé se vem para buscar nosso quinhao do gosto da vida: “Mestre Domingos, we vem fazer aqui? Vim buscar ‘meia pataca, pra beber meu parati...”2). ‘A questio metafisica, tal como ae por Heidegger, por sua vez, pode-se dizer que faz parte da familia das questées do menino do conto de Guimaraes Rosa ¢ do sujeito da cangéo de Caetano Veloso. Mas sé se usarmos aqui a idéia de familia como lugar em que se cruzam diferentes posigdes interpostas. Pois a questo metafisica heideggeriana no se apresenta como a per- gunta do filho desamparado (“Mée, mas por que é2”), nem do imo que partilha a condicZo humana (“existirmos, a que seré que se destina2”), mas de um Sujeito-filésofo pai que interpela o set na terceira pessoa, buscando colocar-se fora e acima da ques- to que, segundo ele mesmo sabe no entanto, pde em xeque quem pergunta — “Por que existe afinal ente ¢ nao antes Nada?”3, Se fago aqui esse contraponto entre trés verses da mesma pergunta, que se correspondem e nao se confundem, € porque acredito que a questdo irrespondida e fundante, que passa através da literatura, da cangao, da filosofia ¢ da experiéncia comum, traduz-se por deslocamentos de modos singulares de protagonizé- lac de apropriar-se dela — a questo —, que por sua vez se apro- pria de quem questiona. Em suma, a pergunta que interroga o sentido da existéncia é um /ugar comum destinado & eterna repe- tigdo, lugar comum que ganha no entanto, a cada “outra vez em quando” (para usarmos ainda uma expressio de Guimaraes Rosa), a sua singularidade irredutivel. No caso da frase de Miguilim a marca singular, a diferenca que se destaca do fundo comum da pergunta (“...por que é para que é, que acontece tudo?”), esta precisamente nos signi- ficantes “Mie, mas..., entdo...?”, onde esto assinalados apelo, © desamparo, a cobranca da promessa de uma continuidade do sentido, jé perdida, a despedida acusando o golpe de um mundo LEITURA DE POESIA 209 que finda, e um puro ndo-verbalizvel que se pode chamar de amor (a mae chamaré explicitamente amor, sabendo que um no verbalizével — “me abraca, meu filhinho” — tenta cobrir a enor- midade da falta). Sobre a formula heideggeriana — “porque existe afinal ente ¢ ndo antes Nada?” — poderfamos dizer, como o préprio Heidegger reconheceu mais tarde, que ela mantém a empostagao do “estilo tradicional de questionar da metafisica’, com a “per- gunta causalmente conduzida pelo ‘por que”, de modo tal que o que prevalece nao é “o pensamento do ser” mas o “conhecimento representador do ente a partir do ente”é. Da nossa parte, dirfamos que hé nela, nesse “por que — afinal”, algo do trago de uma ges- ticulacio interpelativa que chama a ordem os principios cs fins, como se dissesse, com a voz. da autoridade: “de uma vez por todas — por que isso e nao antes aquilo2”. Despida da sua ret6rica, a singularidade que essa questo isola estd na preeminéncia que ela dé a “estranheza plena” do ente “como 0 absolutamente outro — em face do nada’. O reba- timento vertiginoso entre o ente ¢ o nada vislumbra o ser — é a revelagdo do nada que nos devolve o existente para além de si mesmo, ¢ na transcendéncia desse para além a “suspensio dentro do nada” que define o “ser-ai”. Curiosamente, a cangéo “Cajuina’ faz parte de um disco comercial que quis se chamar, com toda a estranheza irdnica que isso comporta, Cinema transcendental. E de fato ela sustenta, como outras do disco, a dificuldade conceitual ¢ até fonética do titulo com a forca prépria de sua miisica e de sua poesia. O nome do disco supe a transcendéncia do olhar, como esse olhar que se vé a si mesmo e ao outro, na auséncia radical de outro, através da transparéncia absoluta da cajuina, Essa transparéncia guarda assim o enigma da presenca ¢ da auséncia como flutuagao forte e fragil do existente no nada: “apenas a matéria vida era tio 210 JOSE MIGUEL WISNIK ; ea dha fina” (pela primeira vez posso me aproximar um pouco mais desse verso em seu sentido préprio). Voltando & pergunta: “existirmos, a que ser que se desti- na?”, Que diz ela, ao perguntar também a seu modo por que ¢ pra que tudo acontece (como faz 0 menino), no limiar em que nos vemos suspensos no nada (como ditia o filésofo)? A meu ver, © que singulariza essa manifestacio da pergunta transcendental, no caso de “Cajuina”, é 0 tempo do verbo “existirmos”, isto é, 0 infinitivo pessoal. Essa forma no separa, na sua origem, quem pergunta da propria pergunta e do outro, pois ela é ao mesmo tempo nome, verbo ¢ pronome, ou seja, 0 ser, a aco e a intersub- jetividade (eu e tu transcendidos em nés, compreendendo sujeitos presentes e ausentes da interlocucio). _ Na verdade, a irrupgéo direta e circular do “existirmos” é uma afirmagio que tem sua opacidade prépria e sua transparén- cia num pulsar quase falado, antes de indagar mais uma vez pelo que sera que ser daquilo a que se destina (mas abrindo a partir de entao uma cadeia de recorréncias fonicas, de ‘papaco-o-pacos de meia pataca", como diria 0 texto rosiano, em brilhos ¢ rimas de tal modo rendilhados que neles bebemos 0 nosso parati sem fim, a cajuina das cajuinas). Podemos dizer desde jé que 0 infinitivo pessoal de “exist mos” nao est4 sozinho, nessa cangio, porque se reflete especular- mente num outro momento decisivo do texto: “éramos olharmo- nos intacta retina”. Assim, 0 nticleo da pergunta e também aquilo que se decanta do que resta de uma resposta para cla cém no infinitivo pessoal o seu tempo. Dito isto, nao deixa de ser interessante observar, um pouco & margem, que em cangdo posterior de Caetano Veloso esse trago lingiifstico retorna como tema e como problema, associando-se a uma reflexao sobre as originalidades e as possibilidades da lingua e da cultura em I{ngua portuguesa. O “infinitivamente pessoal” LEITURA DE POESIA 21 do ser desejante, que é objeto-sujeito da cancio “O quereres” (Véld, 1984), corresponde a uma possibilidade singular do i como aquelas elencadas na musica “Lingua” (do mesmo disco): © set/estar, os nomes em 4, a “rosa no Rosa” ea “pessoa no Pessoa” (0 enigma da obra do maior prosador e 0 do maior poeta da lin- gua neste século aparecem af como se ja contidos nos seus res- pectivos nomes), Nessa perspectiva, o tempo verbal do sujeito da pergunta constitui-se de certo modo num sinal daquilo “que pode ¢ o que quer essa lingua” em poténcia. Na cangio “Lingua” faz-se ainda uma boutade que vem a0 caso: “se voce tiver uma idéia incrivel/ é melhor fazer uma cangio/ esté provado que s6 é possivel filosofar em alemo”. Ora, essa & justamente uma referéncia parédica ao fato de Heidegger ter afirmado o destino filosofante da lingua grega e da lingua alema, em contraposicéo aqui com uma possivel vocacio cancional da Iingua portuguesa no Brasil. O cardter compensatério da admis- so, ironicamente auto-apologética, dessa vocagao menor ¢ risi- velmente deslocada no mundo nao deixa de guardar a ambiggo de uma afirmagao poética, da qual o humor nao est descartado. ‘Assim, podemos dizer que a pergunta de “Cajuina’, “exis- tirmos, a que ser que se destina?”, poe como sujeito nao pro- priamente o “ser-af” mas um “sermos-e-estarmos-ai”, no chao de um destino comum e sem nome, intertogado ¢ afirmado através dessa viagem “que realizamos no nada” (como diz a cangio “Ter- ra’), junto com o planeta que carrega “o nome de sua carne”. jioma, A visio eo dom Imediatamente apés a pergunta vem um “pois”, conjuncéo explicativa algo flucuante, que nao dispée aqui de um poder de 4 212 JOSE MIGUEL WISNIK = explicatividade imediata, Em outros termos, a conjungio nao aponta diretamente para aquilo que a interrogacio deixou aberto (0 sentido da existéncia), mas abre a uma exposigio da circuns- tancia em que surge a pergunta, ¢ do lugar existencial de onde ela provém. Assim, a explicagio nao versa sobre o enunciado da interrogagao que acabou de ser feita, que permaneceré intacto na sua transparéncia irrespondivel, mas sobre a raiz da sua enuncia- 40 no encontro entre sujeitos, onde mora o problema. De imediato, a conjungéo liga a interrogacao, através da circunstncia do dom (“quando tu me deste a rosa pequenina”), a uma viséo (“vi”) que, tendo seu primeiro impacto na beleza do tu (“homem lindo” investido da graca de seu gesto), compreende no seu arco tudo 0 que o texto diz a partir de entio, até o final da cangio. O raio de agao sintético-semantico dessa visto inclui expressamente trés oragGes subordinadas (“que é um homem lindo € que se acaso a sina/ do menino infeliz nao se nos ilumina/ tampouco turva-se a ldgrima nordestina’), ¢ mais duas oragdes coordenadas as subordinadas, que mantém um nexo sintdtico mais frouxo, mas sustentando ainda, em suspensio e a distancia, 0 elo objetual com o nticleo da visio: (vi que) “apenas a matéria vida era tio fina”/ “e (vi que) éramos (olharmo-nos intacta retina/ a cajuina cristalina em teresina)” (onde a oragio reduzida reintroduz 0 infinitivo pessoal). Desse modo, o arco amplo do ver desem- boca numa visde da visio que acaba por conter sujeitos ¢ objetos num nticleo intextrincével (predicativo do ser) em que cada pes- soa se vé e é vista vendo outra coisa 20 mesmo tempo transparen- te e ausente. Mais uma vez, 0 medium dessa singularidade ¢ 0 infinitivo pessoal onde se cruzam 0 substantivo, 0 verbo e 0 pro- nome, agora especularizados no olhar, ou, melhor, no olbarmo-nos. Se a manifestagao da visio ¢ a matéria principal do texto, a intensidade que a dispara vem do gesto da doacdo. que j4 con- tém uma aluséo concentrada a algo partilhado e verbalmente LEITURA DE POESIA 213 inexpresso entre ew ¢ tu. Pois dar a rosa (0 dom da flor é 0 dom por exceléncia) é dar um bem volétil, que foge ao dominio das coisas ¢ deixa apenas a marca do gesto entre pessoas. Pode-se dizet que a evanescéncia do dom jé contém a percepcio da gravi- dade e da graca da vida fugaz, sugerida na “sina do menino infe- liz”. Recebé-lo significa, a0 mesmo tempo, reter do objeto que se desfaz a possibilidade de retribuir 0 gesto, 0 que a prépria cancéo nao deixa de fazer, imitando a delicadeza da flor “pequenina”. Nessa palavra singela, por sinal, ressoa li longe a lembranga do baido de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira (“Paratba’, 1950) mandando o abrago-dom “pra ti, pequenina’, a Parafba humilde e sobranceira no seu orgulho popular. (Na cangio “Terra”, Cae- tano Veloso jé havia reverenciado a forsa desse baio, dando-lhe uma dimensiéo césmica: “na vertigem do cinema/ mando um abrago pra ti/ pequenina como se/ eu fosse 0 saudoso poeta/ fosses a Parafba/ Terra, Terra/ por mais distante 0 errante nave- gante/ quem jamais te esqueceria?”) (Muito, 1978). “Vi que é& um homem lindo”: como ja disse, a beleza transparece para nés como um atributo da graca, da gratuidade, do dom. Mas ela nao deixa de ser ainda, além de um dom em si, tum possivel atributo da relacio triangulada que une ew e 14 20 “menino infelia” contido numa aura de sombra e luz. Pois ele — © “menino” — € 0 vértice misterioso da relagao interpessoal, de onde provém e para onde vai o sentido do dom. O ouvinte-des- tinatdrio da cango tem que intuit, numa tzoca de dons, o sentido obscuro ¢ luminoso desse destino. (De todo modo, em “homem lindo” a harmonia musical passa do modo menor a0 maior ¢ a melodia se alteia, como se devolvesse brilho ao brilho da beleza que vem na imagem.) A partir da visio do dom ha um movimento de contra- posicéo balanceada entre as raz6es para chorar, discretamente referidas na “sina do menino infeliz”, por um lado, e a contengao 214 JOSE MIGUEL WISNIK do trago nordestino que transpée a dor e sublima a légrima, por outro. O rendilhado das antiteses constt6i o equil(brio oscilante, frdgil mas auto-sustentado, das negag6es que se negam: se acaso nao se nos iluminal tampouco turva-se (enquanto isso, a harmo- nia musical abre um ciclo encadeado e “subordinante” de sub- dominantes, que ocupa os versos 4 ¢ 5). Aqui, © jogo de forcas iluminantes e obscuras é delicado. “A sinal do menino infeliz nao se nos ilumina”: nesse torneio estilistico algo abarrocado e tao caracteristico da poesia popular nordestina, intensificado pela carrcira de is reiterados que pon- tilham nele, o destino do menino, num sé movimento frésico, (nao) ilumina um duplo objeto dircto ambivalente (se / nos). O jogo especular e rebatido entre os pronomes reflexivos da terceira pessoa e da primeira do plural deixa ver ainda algo como a con- traluz de um “eclipse oculto”, em que a falta aponta assim mes- mo a fonte de luz, e a opacidade, a conjungio invistvel dos astros (“Eclipse oculto”, Uns, 1983). Turva-se a vista através da ligrima ou avista-se a ligrima discreta metonimia (“tampouco turva-se a légrima nordestina’) indica que entramos num jogo especular muito sutil, em que se substituem causa ¢ efeito, sujeito ¢ objeto, quem estd vendo e quem é visto (além daquele que nao é visto). Também a ligrima, como a luz, esté presente por auséncia, e, na verdade, denegada, ou melhor, assumida em sua nordestinidade, que seu poder de resisténcia silenciosa. Desse jogo sutil de negagées afirmativas, tecidas ponto por ponto, desprende-se a leveza de um verso jd liberado da trama das contraposigdes antitéticas elitdticas, despojado dos los subor- dinantes e do ciclo de subdominantes que havia densificado a harmonia, e onde se canta mais simplesmente, numa cadéncia resolutiva em dé maior (a tinica da cancio): “apenas a matéria vida era to fina” (em seu aparecer e desaparecer, em seu concen- turvar-s LEITURA DE POESIA 215 trar-se ¢ em seu transcender-se, ¢ em seu poder, propriamente alquimico, de coagular-se e de dissolver-se). Exe tu coincidem num olhar “infinitivamente pessoal” que define seu ser-e-estar (“e éramos olharmo-nos”), transparente na dor suspensa da “intacta retina’, por sua vez cristalina como 0 espelho vazio da cajuina em que se miram em ponto de fuga. “Intacta retina” figura ao mesmo tempo como metéfora de cajut- na ¢ metonimia do sujeito. Suas sonoridades aliterantes recor- tadas e compactas, que jd ecoavam as de “tampouco turva-se”, espraiam-se, por sua vez, como se se dissolvessem anagramatica- mente na transparéncia, em “cajuina crisralina em zeresina” (onde, foneticamente, “cristalina” contém “intacta” ¢ “teresina” contém “retina”. O objeto direto desse olhar / olharmo-nos & duplo ¢ ambi- valente (como 0 era o de ilumina em néo se nos ilumina): 0 préprio nds que reflete os sujeitos, e a cajuéna transhicida. Os sujeitos se miram mirando algo — a esséncia sem lugar de um lugar (teresina), suspensa num olhar que resvala para o nada —, nada que, no entanto, plenifica 0 existirmos que move a volta sem fim da pergunta. Esse espelhamento que vai 4 raiz intersubjetiva do espelho poderia levar-nos a falar em trans/narcisismo, como estado poé- tico de suspensio transcendental que contempla a falta constitu tiva dos sujeitos, € 0 amor como troca de dons na falta’, diante da pura presenca. 3. O subtexto Na altura de 78-79 Caetano Veloso excursionou pelo Nor- deste com 0 show relativo a seu disco Muito, e foi pela primeira 216 JOSE MIGUEL WISNIK ver a Teresina, onde visita o pai de Torquato Neto, poeta e letrista que conhecera em Salvador na primeira metade dos anos 60, € que se tornara seu parceiro ¢ depois participante do movimento tropicalista em 67-68. Torquato Neto se suicidara em 1972, na data de seu ani- versitio, sob 0 signo de Escorpiao. Se ha sempre quem veja em mortes como essa algo como um assassinato difuso, que faz do poeta uma vitima das circunstincias, é preciso reconhecer a in- transferibilidade do ato, e nao destituir dele justamente aquele que se definira como “pronome/ pessoal intransfertvel/ do homem que iniciei/ na medida do imposs(vel”. Marcando com a morte a data do nascimento, o poeta nega e confirma seu ptéptio sig- no, faz e desfaz seu destino, expondo radicalmente todo o seu set a0 curto-circuito de “uma espécie de caos no interior tenebroso da semantica”®, © tema é antigo. Na sua “Arte poética”, Hordcio dizia: “Reconhega-se aos poetas o dircito de morrer a seu gosto; salvar alguém contra sua vontade é 0 mesmo que maté-lo, Nao é a pri- meira vez que cle faz isso; tirado fora (da sua motte) nao se torna- 4 logo um homem, nao deixard o desejo de uma morte famosa”, Essa desejada “morte famosa’, a que se refere o poeta antigo, é a morte enigmaética — podemos dizer ambiguamente sagrada, no sentido em que remonta negativamente, em inquieta e obscura destruigio, as fontes do sagrado ¢ da poesia. “Nao é bastante clara a razio por que verseja: se foi por tet urinado nas cinzas do pai, ou por ter profanado com uma acéo impura o sinistro lugar onde caiu um raio””. Ao desvendar esse bastidor de “Cajuina’, do conhecimento do qual ela independe para vigorar em sua emogéo transfigurada, quero apenas indicar © quanto essa singela cango contém em seu fundo obscuro ¢ luminoso a luta entre pulses autodestruti- vas ¢ ctiadoras que estio no coracéo da prépria poesia, poesia LEITURA DE POESIA 217 com a qual a cangéo dialoga verticalmente ao dialogar com a miisica popular nordestina. No dom, ela revisita a inocéncia que preserva, sem deixar de ter a consciéncia problemética ¢ vertigi- nosa da centrifugagao do sujeito e do mundo. Estamos aqui num lugar muito préximo, guardadas as diferencas de género ¢ de tom, daquele a que se chega no conto “O espelho”, de Guimaries Rosa, quando se define (interrogati- vamente) a matéria fina do mundo como sendo aquela “inter- secgio” sutilfssima “onde se completam de fazer as almas” aqui, o mundo se faz da incompletude oscilante dos sujeitos, te- ida de existirmos e de olbarmo-nos, e vertida no mistétio do dom. Guimaraes Rosa agrega ainda a esse mistério uma pergun- ta vertiginosa: “Vocé chegou a existir?”. Nao menos vertiginosa do que a afirmagéo, colhida de uma letra de Caetano Veloso para uma miisica de Djavan: “Se eu tivesse mais alma pra dar/ eu daria: isso pra mim é viver” Como Agradecimentos ‘Ao aluno Paulo César Carneiro Lopes, que lembrou bem a propésito a frase de Miguilim; a Luiz Tatit, pelo luxuoso auxilio prético ¢ tedrico; a Francisco Foot Hardman, que citou a “Arte poética” de Horicio num texto sobre Ana Cristina César; a Haquira Osakabe, cajuina e sempre; ¢ a Viriato ‘Campelo, que me ensinou a conhecer ¢ a amar o Piauf. Notas 1 As idéias de Luiz Tati, que fornecem um novo e original modelo para a and- lise das relagées entre melodia € letra, esto contidas em O cancionirta — composigio de cangées no Brasil (Sio Paulo, Edusp, 1996) e em Semsidrica da 218 JOSE MIGUEL WISNIK . cangéo (Sao Paulo, Escuta, 1994). O primeiro livro desenvolve andlises das dicgGes e de cangoes de um conjunto representative de autores; o segundo é mais cerradamente tebrico. Segundo Tatit, na tematieagdo predominam os ataques consonantais e a regularidade interna dos motivos melédicos e rit- ‘micos, enfatizando um objeto decantado. Na pasionalizacdo, predomina 0 alongamento das vogais e o tensionamento do campo das alturas, enfati- zando 0 préprio sujeito colhido na instincia emocional das distancias € aproximagGes, encontros e desencontros. A figurativizagdo encena no ritmo na melodia as instabilidades caracteristicas da fala. Os trés modos nfo se ‘excluem nas cangdes, mas se combinam com predominancia maior de um ou outro. 2 Guimaries Rosa. “Campo geral”. Manuelzio e Miguilim (Corpo de baile). Ficzao completa, vl. 1. Rio, Nova Aguilar, pp. 541-2. 3 M. Heidegger. “A prelecao (1929)”. In: Que é metafisica?. Sao Paulo, Duas Cidades, p. 44. 4 Idem. “Introdugio (1949)". In: Que & metaftsica’, p. 80. 5 Esse estado poderia talver. ser pensado como estando ligado a uma mutacio do mito de Narciso, augurada em outra cangZo: “Possa o video ser 0 lago onde Narciso/ seja um deus que saberd também ressuscicar” (‘Santa Clara padrocira da televisio”, Burangeira). 6 Torquato Neto. “Marcha 3 revisio". Os siltimos dias de Paupéria, So Paulo, ‘Max Limonad, 1982, p. 331. Ver também a sec¢io VIR VER OU VIR, que contém “Tristeresina’, € 0 poema caligréfico-visual em foro-cartaz “triste RESINA’. 7 Horécio, “Arte peética (Epistula ad Pisones)”. In: A poética cldssiea, S40 Paulo, Culerix/Edusp, 1981, p. 68. LEITURA DE POESIA 219 ere OM] DT aaa Aintuigéo da passagem em um soneto de Raimundo Correia Alfredo Bost Git uta Varia imbruna, torna azeurra il sereno, ¢ tornan Vombre ‘git da’ collie da’ tet, «al biancheggiar della recente luna, Leorannt, I Sabato del Villaggio Estas imagens da matéria (...) Elastém (pe, elas so um coragao. BACHELARD, Lieau et les réves Aproximagées semanticas passagem do poente & noite € 0 objeto de percepsio visado neste soneto de Raimundo Correia. Ao converter o objeto em tema, a linguagem pottica nao se limita a compor signos neutros, trans- parentes, portadores de notagées puramente descritivas dos movi- mentos da natureza. O poema exprime intuig6es que apreendem © sentimento por exceléncia da mudanga das formas no correr do tempo: o sentimento de melancolia, Os matizes desse estado de alma se difundem em tudo e em torno: locugées que falam da sua ubiqilidade e do seu envolvimento. A experiéncia emotiva do fenémeno césmico precede e rodeia a sua percepcéo dando-lhe forma lirica. 223 ‘A passagem do dia para a noite combina varios planos seminticos que so, poeticamente, a0 mesmo tempo objetivos € subjetivos: a perda, a difusividade e a lentidéo. O que se vai perdendo é a luz do sol. © que se espalha entre vapores e, amorfa mancha, ocupa 6 espaco inteiro é a penumbra. Penumbra vale quase-sombra, claro-escuro, lusco-fusco. E 0 esmaecimento do acaso se faz devagar. $6 pouco a pouco, como em agonia, a brasa do sol poente cede & luz ainda vacilante, trémula, trémula, da lua. Sob a placidez final desse obscurecimento do dia repare-se na ocorréncia de algumas express6es mais fortes espalhadas pelo soneto, ¢ que desenham o esbogo de uma tensio. Sugestées que penetram a desctigio. E na agonia que o sol esbraseia 0 Oci- dente. A pélpebra do dia fecha-se como se fosse regida por uma lei ignota e muda, a lei da necessidade universal. Quanto a luz, retrocede e esvai-se na exata medida em que as sombras prevale- cem, A tenso chega nesse momento a assumir aspectos de um cendrio de oposigdes. Nao hd violéncia, porém: tudo € difuso e lento. Do lado da natureza que assiste ao refluxo da luz solar sobrevém uma impressio de passividade — que o adjetivo apdtica traduz com preciso. O sentimento de pathos agénico vem do sol: da luz e do calor do sol. A melancolia que tudo permeia e circunda também deve ser compreendida nas suas passagens internas: nos seus tons. Sombrio humor segregado em meio aos contrastes da matéria e do espirito (que a reflete e a nomeia), a melancolia destes versos resulta afinal em algo de suave mediante a interiorizacao do ritmo universal. O amor fati reconhece a oposigao mas a sublima. 224 ALFREDO BOS! A alma das coisas jé atravessou a agonia da luz vencida pela treva, ¢ teve de cerrar os olhos: “...2 proporgao que a luz recua.../ A natureza apitica esmaece. Convém atentar para a seqiiéncia-eixo das unidades signi- ficativas. Primeiro, a agonia do sol. Em seguida, a melancolia dos horizontes distantes. Depois, a apatia da natureza terrestre, En- fim, a aparico hesitante da luz. Nao é absolutamente uma luta de morte que tudo desfaz. E apenas, nos ritmos da necessidade, uma passagem com perdas. Assim também é 0 ser tomado pela melancolia: um difuso aba- timento das energias vitais, um calor na viscera que irtita ¢ nfo aquece, um estado de alma que carece de esperanga, mas que ainda nao é morte. Le soleil noir de la mélancolie. Os diciondrios de Iingua portuguesa que gozavam de au- toridade nos fins do século XIX, € que o verndculo Raimundo Correia de certo consultava, nao atribufam ao termo “melancolia” outra acepgdo que nao fosse a de estado mérbido do organismo que inclinava a alma & angtistia e a uma tristeza sem fundo. O Moraes, fonte ¢ modelo de todos, exemplifica com “sombras de melancolia”. Para 0 entendimento de “Anoitecer” parece-me que uma leitura mediadora e atenuadora, logo sublimadora das tensées, seré a mais justa. O poeta rima agonia com melancolia, mas, a0 rematar a nomeagéo dos sentimentos, observa a apatia da natu- reza. E 0 movimento gradual da passagem da luz a sombra e do sol & lua que a sua intuicao estd configurando. Como hipétese hermenéutica, ¢ plaustvel supor que 0 processo inteiro lhe desse a impressio de beleza ontolégica em harmonia com as leis cés- micas. Beleza do eterno devir, indiferente ao homem (a Natureza leopardiana e machadiana), mas que nao deixa o homem indife- rente. Daf, a melancolia que mergulha o ew no tempo que passa. LEITURA DE POESIA 225 ‘A revolugio romantica da sensibilidade ocidental no se deu em ‘ao: a passagem do tempo ¢ a mesma em todos os tempos, mas no é igual em todos os tempos o sentimento que o devir inspira. A frase motivada No poema o desenho, o ritmo e a extensio da frase nao s0 aleatérios nem puramente convencionais. Se a forma é artistica, se construgdo ¢ expresso andam juntas, sempre se dé algum nexo entre a sintaxe do periodo e a idéia ou sentimento que se quer significar. Em “Anoitecer” hé trés periodos que nao superam os limi- tes dos decassilabos em que ocorrem: Fecha-se a pilpebra do dia... Um mundo de vapores no ar fluctua... A natureza palida esmaece... E hd um periodo que corresponde as trés ultimas sflabas métricas do seu respectivo verso: Anoitece. Sio, pois, quatro perfodos breves quando comparados com os demais que, ao contrério, ultrapassam, as vezes consideravelmen- te, 0 confim dos seus versos mediante a pritica do enjambement. ‘Além da relativa brevidade, haveria algo de semanticamen- te comum entre essas quatro unidades sintéticas que poderia diferengé-las dos outros periodos? Na sua alusividade impressionista, que as reticéncias con- correm para sugerit, todas essas frases buscam aprender o fend- meno entre espacial temporal da passagem derradeira da pe- numbra para a escuridao. E o esvair-se da luz crepuscular jé na 226 ALFREDO BOSI sua fase terminal, que dura pouco, apenas um momento, na me- dida em que a transigao jé avangou muito. A correspondéncia se faz evidente nas sentengas mais curtas: “Fecha-se a pélpebra do dia” e “Anoitece”. © adeus & luz nelas é dito de modo contido, quase lacdnico. Em contraste com essas frases concentradas na significagéo da tltima aparéncia do ocaso, os outros perfodos acompanham o percurso inteiro de modo mais distendido. Com 0 movimento nnascem a impressio do tempo ¢ as varias possibilidades de sim- bolizé-lo. O andamento descritivo assume formas sintéticas afins A narracio. Descrevem-se coisas, mas processos narram-se. Des- dobram-se as imagens do sol em brasa, dos céus raiados de ouro € ptirpura, dos vértices da serrania aureolados de chama, das sombras que crescem, enfim da lua que surge timidamente. Neste segundo corpo semantico chama a atencio o predo- minio da ordem inversa. O predicado é sempre anteposto 20 sujei- to, 0 atributo é anteposto ao nome. E uma ordem que dé énfase 2 intuigdo dos movimentos e a figuragio dos modos da passa- gem. Se o que importa é trabalhar o sentimento das metamorfo- ses, justo & que seja colocada no primeiro plano da frase a predi- cago, que assinala os cambios de luz ¢ registra os seus efeitos na paisagem. O periodo de abertura é exemplar como emblema do pro- cesso: “Esbraseia 0 Ocidente na agonial O sol...”. A inversio esta marcada: 0 sujeito vem depois do predicado, do objeto ¢ da cir- cunstancia, O que & posto em lugar estratégico, como 0 acorde inicial de uma sinfonia ou a pincelada mais forte de um quadro feito d'aprés la nature, € 0 esbraseamento do poente: a cor, 0 ful- gor ea ardéncia que incandescem uma vasta érea do horizonte. Luz e fogo se move, e 0 seu modo de brilhar queimar é 0 da agonia. Leia-se 0 terceiro verso: LEITURA, DE POESIA 227 por céus de oiro e de piirpura raiados. ‘A descrigéo dos céus, por onde fogem as aves antes que baixe a noite, traz.igualmente uma inversao sintética. O participio raiados ¢ precedido pelo seu complemento, “de oiro ¢ de purpura”. motivo do procedimento é semelhante ao que fez “esbrascia” antepor-se a “sol”. O acento da significagéo cai no processo da mudanga. Por que “de oiro e de purpura” antecede “taiados”? O por-do-sol deu ao firmamento aquela coloragao intensa ¢ inica que funde o amarelo gneo do ouro e o vermelho arroxeado da purpura. Eo efeito da transformagéo cromdtica operada pela agonia da tarde que impressiona o olhar poético; e ¢ esse tempo incendido ¢ fugaz do ritmo césmico que precisa ser realcado, deixando em segundo plano a forma passiva que aqui vale mais pelo seu complemento do que em si mesma. No segundo quarteto também prevalece a ordem indireta. Primeiramente, na relacio sujeito-predicado: “delineiam-se” prepée-se a “vertices”; “esbatem” vem antes de “tons”. Depois, na relagao regente-regido: “da serrania” vem antes de “vértices”; “de chama”, antes de “aureolados”. O que distingue este segundo quarteto do primeiro nio é, pois, o constante encarecimento das predicagdes, mas 0 contetido mesmo da mensagem valorizada. No primeiro, as imagens vivas da brasa, do ouro ¢ da puirpura exigem lugar de honra no fraseio do verso, No segundo, a agao do tempo vai tornando distante e quase abstrato o objeto da percepgao. Em vez de céus em bra- seiro, vemos linhas e angulos agudos: h4 um qué de geométrico em “delineiam-se vértices”. Adiante, as linhas desfazem-se ¢ 0 verbo é vago: “esbatem”. O tempo que passa vai alterando lenta- mente a fisionomia dos espacos. O tempo faz a linguagem dis- tanciar-se na lonjura e recortar de preferéncia os perfis da cordi- Iheira (“além, da serrania/ os vértices”), as suas auréolas, que 228 ALFREDO BOSI arredondam as linhas tetas, e, mais adiante ainda, os matizes mortigos da melancolia que tudo invade e ensombra. Os traba- Ihos do tempo se exprimem pelo verbo; por isso, “delineiam-se” ¢ “esbatem” ganham a devida precedéncia. Observe-se 0 que se passa na construgio dos tercetos. No primeiro, a forma da sombra mével, “como uma in- forme nédoa”, ¢ a sua dindmica (“avulta e cresce”) dominam a seqiiéncia ¢ deslocam o sujeito, “sombra’, para o verso seguinte valendo-se de um novo enjambement. Juntamente com a inversao ocorrem estruturas subordina- tivas, como uma informe nédoa, A proporgdo que a luz recua; reforcando a hipétese motivacional segundo a qual a complexi- dade da sintaxe responde sempre & maior densidade do processo configurado. O preenchimento da atmosfera pela sombra amorfa se dé A medida que perdem forga 05 raios do sol. E 0 momento de tensio que jé foi assinalado. Dentro do conjunto dos perfodos longos apenas a iltima oragao do terceto final mantém a ordem direta: Pouco a pouco, entre as drvores, a lua Surge trémula, trémula... ‘Tampouco essa ordem é aleatéria. O sujeito, “lua”, assume a posicao tdtica de centro do encadeamento, alma do significado pivé da forma poética. Centro da construgao ¢ do sentido da frase, “Iua” acha-se a meio caminho entre as expresses de tempo modalizado (“pouco a pouco”) ¢ lugar (“entre as drvores”) eos termos fortes da predi- casio: “surge trémula, trémula...” LEITURA DE POESIA 229 Centro da formalizacio poética: ua, fechando o pentiltimo verso do soneto, ganha uma posigao privilegiada, porque: a) pode rimar, chamando a si os ecos de outros signifi- cantes (“Iua” / “flutua” / “recua”)s b) contém a tiltima e mais relevante das s{labas tnicas do decasstlabo, Iti/ a, que é sugestiva em si mesma pela sua sonori- dade cerrada e sombria; ©) enfim, “lua” 0 elemento de novidade introduzido na corrente das figuras que esto tragando o desenho da passagem do poente & noite: a lua surge. A ordem do periodo foi condicionada pelo concurso de todos esses motivos: de metro, de rima, de timbre, de imagistica. Embora nao se possa aferir com preciso o grau de consciéncia estética que presidiu & escolha final da cadeia frésica, é certo que esta respondeu as visadas da intuicao ¢ as ondulagdes musicais do sentimento. A dinamica das imagens Se a arte é, como propée Hegel, o aparecer sensivel da Idéia, as intuig6es vividas em um momento de contemplacéo devem necessariamente revelar-se sob a forma de imagens. A légica que relaciona entre si as imagens da poesia chama-se analogia e é distinta da légica que rege 0 discurso dos conceitos. Distingao, como assevera Croce (dialetizando neste Ponto o pensamento de Hegel), nao significa contradicao. Ana- l6gico no € sinénimo de incoerente, nem de absurdo, nem se- quer de aleatério. No poema a corrente das imagens é teleolégica; entretanto, poderd ser aleatéria sempre que Ihe faltar unidade de 230 ALFREDO OSI sentimento, ou melhor, quando 0 estado de alma que deveria ter energizado a intuiggo nao tocar o limiar da identidade. Mas se esse limiar for alcangado, se houver alguma constincia no pathos subjacente ao imagindrio, este acabard tomando alguma forma, € as suas figuras se dispordio segundo algum padrao de relagées internas. (E também verdade que 0 travejamento das correspon- déncias entre espirito ¢ forma néo poderd impedir a irrupgéo do aleatério, o qual sobrevém em qualquer tempo (essa é a condicao mesma do acaso); mas o complexo de sentimento-e-figura encontraré meios de acolhé-lo, dialogando com a sua estranha mensagem. Se o sentimento € vivo e profundo, as figuras reponta- ro ¢ a fantasia estética saberd dar-lhes ritmo e coeréncia. Se, a0 contrétio, o sentimento lébil, descentrado, superficial ou de todo falto, entio um jogo de arbitrios programado buscaré supri-lo dando aos menos avisados a impressao de originalidade. Mas a meméria, ventre da alma, segundo a metéfora poderosa de Santo Agostinho, nao se deixa enganar com facilidade: relega a vacui- dade cerebrina ao limbo do esquecimento. Passado algum tempo, © leitor néo lembra nem uma linha, nem uma palavra, sequer um som, $6 fica 0 que significa.) Em “Anoitecer” as figuras da passagem desdobram-se em um continuum decrescente. E a luz do sol que cede ao luar noturno. A gradacao se dé tanto na seqiiéncia das imagens quan- to na ordem dos movimentos subjetivos que as animam. Figuremos uma pauta musical em que a melodia seja com- posta pelas imagens que do forma visivel & transigao do ocaso. E que a harmonia busque na marcagao dos estados afetivos os acordes com os quais acompanhe ¢ potencie a linha melédica. No desdobramento das imagens diretamente vinculadas ao tema da passagem (digamos, na clave de sol), 0 poema dispée na ordem das ocorréncias: LEITURA DE POESIA 231 brasa (esbraseia) ouro pérpura chama auréola tons suaves vapores informe nédoa sombra lua No baixo continuo dos sentimentos, em geral mais reduzido ¢ concentrado que o das figuras, aparecem: agonia melancolia apatia Radiag6es da energia luminosa e formas da matéria césmi- ca também so momentos e formas da sensibilidade: uma idéia fecunda cujas potencialidades foram ilustradas por Gaston Ba- chelard nos seus estudos sobre a imaginagao material. O fildsofo aplicou-a & metaforizagao onirica e poética ¢ a enraizou nos ele- mentos primordiais das cosmologias arcaicas: a terra, a 4gua, o ar © 0 fogo. A combinago de fogo e terra, que gera 0 ardor ¢ as lumi- nosidades candentes, pertencem as imagens iniciais: a brasa, 0 ouro, a plirpura, a chama, De luz e ar se faz a aura. Ao encontro da Agua e ar pertencem a névoa e as tonalidades amortecidas pré- ximas da sombra. O soneto modula tanto a fusio de terra ¢ fogo, quanto a de ar ¢ 4gua; e sugere o transito vagaroso da primeira 8 liltima. A sugestéo envolve a descricéo. Ainda nas palavras de Bachelard: Antes de ser um espetéculo consciente toda paisagem é uma experiéncia ontrica’. 232 ALFREDO BOSI O decrescendo se gradua em ambas as dimensées: nas for- mas ¢ na alma da matéria. Na cena da paisagem ctepuscular a luz vai diminuindo tanto em intensidade quanto em nitidez de contornos: a brasa Passa a ouro, este a purpura, a chama a auréola; os tons suaves a vapores flutuantes; a nédoa sem forma a sombra. Na dimensao animica: da agonia (agon: luta) baixa-se & melancolia (humor sombrio) e a natureza afinal esmaece até 0 esvaimento da paixio (a-pathos). Como em toda intuigio verdadeiramente poética ndo se formam duas séries paralelas: de um lado as imagens; de outro, 05 fendmenos subjetivos. A poesia se engendra precisamente na conversao das figuras no sentimento e do sentimento nas figuras. O esbrasear do sol no Ocidente despedindo os iiltimos raios de cores ainda quentes introduz a imagem do dia em com- bate viril, mas jd perdido, que a palavra agonia diz. de modo lapi- dar. No mesmo quarteto, a fuga dos passaros e o cerrar da palpe- bra do dia pressagiam a queda iminente na escuridio da noite. Depois, alonga-se a visio para a distancia dos montes. O halo dourado que envolve as arestas dos cimos ¢ a névoa que se espalha pelo horizonte como que suspendem a hora agénica ¢ inflectem a alma da natureza para uma tristeza enorme, cisma- renta, sem margens: em tudo ¢ em torno, a melancolia. Como no lembrar o fecho do soneto “Banzo”, que Mario de Andrade achava nada menos que sublime? Vai co'a sombra crescendo o vulto enorme Do baobd... E cresce n'alma 0 vulto De uma tristeza, imensa, imensamente. ‘A apatia é a ltima a chegar: a sombra cresceu, a luz recuou. A natureza terrestre j& ndo luta nem sequer se entristece, apenas LEITURA DE POESIA 233 resigna-se ao ritmo de um universo de que ela faz parte ¢ que a transcende infinitamente. A relacio entre “fluxo animico” ¢ as “imagens correspon- dentes” parece tet-se esgotado com o verso inicial do tiltimo ter ceto: “A natureza apética esmacce...” O ciclo das transformagoes da luz estd cumprido. No entanto, se a luz do sol se foi, nem por isso a cena submerge na treva. A vida do cosmos prossegue, € uma luz diferente, quase receosa de si mesma, por isso lenta e va- cilante, aparece tio perto da terra dos homens que se diria que desliza por entre as drvores. Como uma aparigao misteriosa, a lua surge. J& nao hé mengGo de sentimentos: nem agonia, nem melancolia, nem apatia, s6 a contemplagio de uma luz nova banhando a noite. Anoitece. O ser, a cultura, o sujeito ‘A natureza precede a cultura e a preforma e a enforma. A poesia é obra da cultura: nasce e vive na histéria dos homens. A.cultura, que é meméria ¢ trabalho, evoca e invoca a na- tureza trazendo & tona da consciéncia os seus movimentos incons- cientes. A cultura dé um sentido & natureza, a poesia atribui-lhe miiltiplos sentidos, pois se faz. nas fronteiras méveis do mundo do sujeito. A poesia transforma a natureza em paisagem, dé-Ihe alma, dé-lhe vor. ‘Um poema como “Anoitecer”, escavado na intuigao das pas- sagens da luz, na visdo do ocaso em chamas ¢ do luar que surge; um poema imerso no sentimento do devir — em que tempo terd sido gerado e trabalhado? Esta pergunta jd é 0 primeiro passo de uma viagem que queira chegar a interpretacio. Pode-se desdobrar a resposta em virios planos. 234 ALEREDO BOSI Comego pelo chao ontolégico, aparentemente a-histérico: ser da natureza em perpétuo devir abre-se, revela-se & intuicéo do homem. A abertura do ser ao olhar finito do poeta deu-se tanto na lirica grega quanto na cangio trovadoresca, tanto no so- neto de Petrarca quanto no poema de Lamartine, tanto no hai-kai de Bashé quanto nas visées de Yeats, tanto nos idilios de Leopardi quanto nestes versos para o anoitecer do maranhense Raimundo Correia, Formulada em termos ontoldgicos, a relagao da palavra com o perpétuo alternar da luz e da sombra precede qualquer tentativa de historicizagao pontual do poema. A fenomenologia da linguagem tal como foi pensada por Martin Heidegger nos conforta na consideragio deste primeiro olhar: a poesia, lingua- gem original, a morada do ser. Contemplando a natureza € modulando os seus movimentos, 0 poeta sonda as origens da propria existéncia como estar-no-mundo. O poeta interioriza as fases do devir: a agonia, a melancolia e-a apatia sao estados do corpo e da alma que ele tem em comum com a matéria ora mé- vel, ora inerte do cosmos. A linguagem abre-se para este vasto mundo que a antecedeu ¢ a constituiu. A sensibilidade do poeta é ponte de ida e vinda pela qual o homem se reconhece um ente da natureza ¢ entra em empatia com o ciclo do nascer, morrer € renascer de todos os seres. “Anoitecer” seria mais um signo dessa pertenga da palavra ao circulo da existéncia que enlaga homem ¢ natureza na zona comum do sentimento do devir. Heidegger, no seu belo estudo sobre Hélderlin e a essén- cia da poesia, aprofunda alguns aspectos dessa co-extensio do homem com o mundo e explora o veio das ressonincias que ela traz & linguagem do poema?. Um segundo modo de enfrentar a questéo do tempo ine- rente aos significados do poema é situd-lo na trama viva da his- t6ria cultural. O soneto de Raimundo Correia, embora tematize um aspecto universal do devir césmico, foi escrito em uma certa LEITURA DE POESIA 235 €poca, 0 final do século XIX; em um determinado meio letrado, a cultura erudita brasileira entao vigente, forrada de conceitos valores deterministas (materialistas, positivistas, evolucionistas); e, afunilando mais, no bojo de um estilo poético de origem francesa perfeitamente datado: o Parnasianismo. Nao poderia ter sido com- posto, exatamente como foi, em outro perfodo, em outro ambien- te cultural ou sob a influéncia de outras instituigdes literérias. Na medida em que essas determinagées pesam sobre a ‘mancira de 0 poeta escolher a perspectiva, o género, a forma fixa, © vocabulério e as rimas, no parece razodvel subtrair 0 processo da sua escrita as referéncias histéricas préximas, ao tempo no qual e para o qual a obra foi produzida. ‘Toda determinagao implica negag6es ¢ limites. Em outras palavras: a liberdade criativa do poeta néo é absoluta. A retérica parnasiana, em fase de aberta polémica anti-romantica, encarecia a descrigio “objetiva’” e “impessoal” do mundo exterior e recusava © comprazimento nas poténcias subjetivas que fora dominante em quase toda a literatura do século que findava. Poesia das coi- sas tangfveis em oposigao a poesia da alma. Nao é 0 caso de por a ‘nu, nesta altura, a relativa pobreza do idedrio realista-parnasiano brasileiro, em boa parte importado da Frana; verifique-se apenas que a linguagem de Raimundo Correia se concentra nos aspectos da natureza, elidindo sistematicamente qualquer mencdo a um eu que os observe ou reflita. Outras marcas do Parnaso também podem rastrear-se na escolha da forma italiana do soneto (rara entre os romanticos), na corregio métrica e gramatical segundo normas académicas ¢ na prevaléncia absoluta dos decassilabos camonianos regulares com uma tinica excecio, canonicamente “justificada”, do verso sdfico: “Uns tons suaves de melancolia’. No entanto, ¢ aqui vejo 0 acesso a um terceiro patamar interpretativo, lendo hoje este poema de Raimundo Correia sem @ preocupacio de aplicar-lhe etiquetas, percebe-se que no se 236 ALFREDO BOSI trata de mais um soneto parnasiano perdido na farta produgéo literdria da época. O seu imaginério ¢ a sua miisica resistiram & senescéncia do estilo e da moda em que foi composto; e puderam chegar até 1nés, um século mais tarde, e reviver em nés a intuiggo da pas- sagem € o sentimento do vir-a-ser césmico que assistiram a sua génese. Lembro que o gosto seguro e matizado de Manuel Bandei- ra, instaurador da modernidade na poesia brasileira a partir dos anos 20, filtrou o lirismo secreto de Raimundo Correia separan- do a borra parnasiana do vinho puro de uma linguagem densa e pessoal. Bandeira chega a dizer, no ensaio “O sortilégio verbal de Raimundo Correia’, que “talvez.o tinico poema verdadeiramente parnasiano de Raimundo Correia tenha sido ‘Versos a um Artista’ dedicados a Bilac”3. Haverd algum excesso nessa avaliagéo, mas, de todo modo, aprendemos com 0 poeta-critico que Raimundo foi o menos parnasiano dentre os parnasianos do seu tempo. O que € outro modo de dizer que, escrevendo embora dentro dos limites apertados de certas convengées de cultura e de gosto, ele soube descobrir na prépria sensibilidade um tempo individual resistente aos ditames abstratos do Parnaso. Em “Anoitecer” omitem-se os indices gramaticais da subje- tividade, 0 pronome ¢ o verbo em primeira pessoa, e atende-se formalmente ao programa da “impassibilidade”; mas a paisagem que 0s princfpios da escola tentavam encerrar “na gaiola dourada dos quatorze versos” é aqui surpreendida na agonia da luz solar, nna melancolia das sombras do ocaso ¢ na apatia do esmaecimento da noite. Tudo quanto fora evitado como sinal da tradigfo romantica serd de algum modo reposto ¢ convertido pela palavra do poeta em simbolo da natureza em movimento. A anima, re- calcada ¢ calada pelos rigores da convengio, vai aflorar feminina na lua que surge entre as drvores, trémula, trémula. LEITURA DE POESIA 237 Poesia amante do siléncio e da solidio noturna, segundo a conceituacéo certeira de Mario de Andrade‘, este “Ancitecer”, juntamente com “Cavalgada” (“A lua banha a solitdria estrada”), “Banzo”, “Plenilinio”, “Despedida’, “Harmonias de uma noite de vero” e “Aria noturna”, tem um inequivoco ar de familia em razio das semelhangas de tema e de linguagem. Trata-se de atos diversos de uma parole comum. Ajudam a compor uma fisionomia singular na meméria da literatura bra- sileira. Integram aquela personalidade poética que vimos abrir-se as mutagées da natureza e a0 mesmo tempo dialogar com a cul- tura dos seus contemporaneos, nfo s6 para receber desta valores ¢ formas, mas também para enriquecer 0 nosso imagindrio com novas figuras e novos tons. “Anoitecer”, lido aqui ¢ agora, ainda nos ensina a admirar, como se fora pela primeira vez, o mistério da luz que se dissolve no ocaso. Notas 1 Em Leaw et les réves. Essai sur limagination de la matitre, Pati, José Corti, 1942, p. 6 . 2 Martin. Heidegger, Arte y poesia, México, Fondo de Cultura Econémica, 1958, pp. 125-47. Para a reconstrugéo da fenomenologia heideggeriana da linguagem, ver Pascagem para 0 podtico de Benedito Nunes, Sao Paulo, Atica, 1986. 3 Em Raimundo Correia, Poesia completa ¢ prosa, Rio de Janeiro, Aguilar, 1961, p. 23. 4 Do ensaio de Mério de Andrade extraimos essa passagem em que hé uma tentativa de entender a persona postica de Raimundo Correia em termos de “indole”: “Raimundo é ainda dos nossos poetas o que melhor soube dar a impresséo de siléncio. E deveras engragado: um parnasiano eximi preender o siléncio!... (...) Ninguém methor do que ele caracterisa, sono- riza seria talvez.o termo, as cenas silenciosas, cheias duma calma tristonha, cenlevadamente mudas. Paira sobre a sua melhor poesia uma sonoridade de rnoturno, quase de cangio de berco. Vejo nisso o reflexo da sua indole de paz silencio” (em “Mestres do passado — III — Raimundo Corre’, Jornal do Comébrcio, 15 ago. 1921). 238 ALFREDO BOST ‘Os autores Alcides Villaga £ professor de Literatura Brasileira na FFLCH da Universidade de Sio Paulo, E autor de dois livros de poemas (O tempo e ouaros remorse, Atica, 1985 © Viagem de trem, Duas Cidades, 1988 [Coleco Claro Enigma)) e de diversos arti- 05 ensaios sobre autores brasileiros. Alfredo Bosi ¢ professor de Literatura Brasileira na FFLCH da Universidade de Sio Paulo. E autor de Histria concsa da lteratura brasileira (Caltex, 1970), O ser ¢ 0 sempo da poesia (Culttix, 1977), Céx, Inferno (Atica, 1988) e Dialétca da colon- zapdo (Compankia das Leas, 1992). Benedito Nunes é professor de Filosofia na Universidade Federal do Pari. E autor de Passagem para o pottico(Atica, 1986) ¢ O drama da linguagem (Atica, 1989). Fabio de Souza Andrade ¢ professor de Teoria Liteivia na Universidade Estadual Paulista — Unesp (Asis) autor de O engenheiro noturno: A Urea fnal de Jorge de Lima (Nova Alexandria/Edusp, no prelo). Jodo Luiz Lafeté (1946-1996) foi professor de Teoria Literdriae Literatura Compa- rada da FFLCH da Universidade de So Paulo. Publicou/930: A erica e 0 mader- nismo (Duas Cidades. 1974) e Figuragao da intimidade: Imagens na poesia de Mé- rio de Andrade (Martins Fontes, 1986). Deixou um ensaio inacabado sobre a obra de Graciliano Ramos, que deveria apresentar como tese de livre-docéncia Jorge Koshiyama & mestrando em Literatura Brasileira na USP; prepara uma disser- tagio sobre a poética de Manuel Bandera. José Miguel Wisnik ¢ professor de Literatura Brasileira na FFLCH da Universidade de Sio Paulo. E autor de O coro dos contndros: A misica em torno da Semana de 22, (Duas Cidades, 1977) e O som e o sentido (Companhia das Letras, 1989). ‘Marilo Marcondes de Moura é professor de Literatura Brasileira na Universidade Fe- deral de Minas Gerais. Publicou Murilo Mendes: A poesia como totalidade (Edusp/ Giordano, 1995). 239 Mario de Andrade — ¢ poetas igualmente importantes, ainda {que menos conhecidos do grande piblico, como Murilo Mendes, Jorge de Lima e Mario Faustino. Leitura de poesia trax. também a anilise de um soneto do parna- siano Raimundo Correia e de uma cangio de Caetano Veloso. A vatiedade de autores vem juntar-se a diversidade dos ana- listas. Ao lado de ensaistas consa- grados como Benedito Nunes € 0 proprio Bosi (autor de uma elu- cidativa introdugéo 20 volume) estéo expoentes das novas gera- ges da critica universicéria — Joao Luiz Laferd, Alcides Villaga, José Miguel Wisnik, Murilo Mar- condes de Moura, Fabio de Sou- za Andrade ¢ Jorge Koshiyama. Leitura de poesia constitui ‘uma significativa amostra dos ca- minhos percortidos atualmente pelo ensino de tcoria ¢ andlise literdria, que serd de grande utili- dade para estudantes dos cursos de Letras e de interesse para to- dos os que valorizam a expressio poética,

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