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ra A imagem do cientista na ficG¢ao “N&o pode imaginar © que Isso significa para um Investigador, que paixao intelectual se apodera dele. NGo pode imaginar as estranhas delicias desses desejos intelectuais. A coisa que ele [o cientista] tem diante de sinao éum animal, uma criatura como ele, mas sim um problema.” (H. G. Wells, A liha do Dr. Moreau, 1896.) cientifica H. G, Wells (1866-1946), bidlogo e es- critor, resume em uma frase como 0 cien- tista vé seu objeto de estudo. Nao importa © que seja o espécime sobre a bancada. De um pedago de rocha a um animal, tudo se reduz a um problema. O dr. Moreau, 0 vivisseccionista maluco autor da frase, ten- ta explicar ao at6nito visitante o que signi- fica a pesquisa que deverd clevar animais& condigao humana: Concordemos ow nfo coma imagem de ‘Wells, 0 fato 6 que cla evita o clich@ to dis- seminado na literatura (e no jornalismo) do cientista avoado mas bonzittho, genial mas ingenuo, operosomasentregue a forcas que ndo pode controlar. O cientista éna verdade alguémbasicamentecurioso, portadorde um vicio incontrolavel que, para sua sorte, & sancionado -e financiado - pela sociedade. Fosse 0 vicio consumir heroina, a historia seria outra, Mas,comoo dr. Moreau é vici- ado em conhecer, entao tudo esté certo. Enibora Wells sejao fundador da ver- so moderna do género que conhecemos por ficgAocientifica e muitas de suasidéi- as permanegam servindo de modelo até hoje, o fato é que essa imagem, o magis- Revita USP, Site Paule (24): 74-79, desembrolfevertiro 1994/95 no cinema. Jesus OE PAULA Nao teve futuro talvez nao seja bem a expresso, j4 que pelo menos um lado'do dr. ASSIS # editor e mestre Moreau sobrevive nas telas ¢ nas piiginas da FC mais popular:adocientista quetrabatha Pela FFLCH-USP. 6. Sio rarissimas as imagens de cientistas enfurnados em labaratérios atulbados, ce dos de orientandos ¢orientadores, imersos na papelada dos pedidos de verbas, meses para fazer pequenos trabalhos que !hes valerdo, na maioria das veres, uma breve mengdo numa notinha de rodapé de um manual escolar. Nao, © cientista do cinema trabalha sé ¢, mais, trabalha apenas em projetos que deverao,de uma forma ou de outra, mudar 0 destino de homem. Essa intagem do cientista solitérioantecede Wells pot quase um século. O paradigma ¢,claro, Frankenstein ou o Maderno Prometeu,escrito em 1818 por uma jovern de 20 anos, Mary Wollstonecraft Shelley. Muitos autores gostam de defitir 1818 como o ano zero da FC, maso fato¢ que a novela de Mary Shelicy se preocupa mauito menos com aspectos que chamariamos propriamente cientificos ¢ muito mais com a questao geral de se 0 hot pode ou deve conhecer 0 que 0 cerca, de até que ponto é licito desvendar o mundo. © propriosubtitulo de Frankenstein mostra que a questaa sobre a qual se debruga sua autora transcende muito o meramente cientifico. AFCna forma que aconhecemos nasce praticamentea partir do nada com doisautores: Jules Verne ¢H, G, Wells, Verne, escritor menos dotado, fazia mais divulgacao cientifica que literatura cientifica. Uma vez, indagado sobre a obrade Wells, disse: “Ele mente”. Ou. seja, Verne construia 0 possivel, enquantto Wells soltava a imaginagdo ¢ se preocupava menoscom a plausibilidade do contesido do texto. Verne jamaisescreveriauma A Maquina do Tempa, pois acteditava que FC decente ¢ FC do possivel, talvez com uma dosezinha minima de extrapolagio. A desvantagem do posstvel, claro, € que © autor fica limitado no que lhe ¢ dadodiscutir. Quao menos impressionante seriao dr. Moreau se ele fossesimples- mente um bidlogo a caca de informagdes sobre o sistema digestivo de camundonigas. Quao mais impressionante ele ndo se torna quando Wells o coleca como alguém que temo poder Revista USP, Sto Paulo (24): 74-79, dexembrolfevercire 1994195 75 de, em prinefpio, penetrar na esséacia deo que é um hom Mas todo esse poder ¢ exercido, na maioria das vezes, de forma grosseira, atabalhoada, F assim que dois bidlogos sin- tetizam um novo tipo de alimento, a heracleioforbia, que faz. tudo crescer em proporgdes descomunais,¢, inconscientesdo perigo de tal descoberta, confiam a dois analfabetos a tarefa de desenvolverem uma horiaexperimental, com resultados previs(- veis. Novamente, a imagem do cientista em O Alimento dos Deuses, também de Wells, de 1904, teve pouco futuro na FC. Enfim, para o fundador do género, oci- entista € alguém cuja ética basica € “ndo tenho qualquer prine(pio ético” e:cujo do- minio sobre o que fazse resume a “no me preocupo com isso”. Eevidente que no se constroem herdis assim e, portanto, algoteria deser feitocom ‘esse material a fim de que ele pudesse ser ‘consumido em larga escala. B dessa forma que, aos poucos, 0 ci- entista ganha na literatura a imagem do sAbio com pleno dominio sobre o que faz, cujas invengdes ddoem erro apenas quan- do forgasdo mal (0 grande empresério, o politico ambicioso) entram em cena. O ientista age ent3o como coadjuvante do herdi, tornando-se seu conselheiro a fim de que as coisas voltem ao devido lugar. Essa €, com poucas modificagées, a face que predomina na ficgao: cientista faz descoberta, é roubado, entrarem contato com alguém mais pratico que ele ¢, jun- tos, recolocam a coisa toda nos eixos. Nos \ltimos vinte anos, essa maneira de representar o cientista vem mudando ummpouco, pelo menos no cinema classifi- cadocomo“demonstros”. A classificagéo € do socidlogo britinico Andrew Tudor que, em Monsters and Mad Scientists, de 1989, mostra que, no cinema, cada vez menos 0 cientista aparece, seja como ini- ciador da agio (o autor da descoberta que saiu de controle) seja como quem resolve aagio (diretamente ou como coadjuvante do heréi prdtico), Mas, para mostrar o quanto esses estudos - e seus resultados - sho pouco confidveis, um ano depois de finalizado o levantamento para 0 livro, surgia um dos maiores fendmenos de bi- Iheteria docinema, De Volta para o Futu- ro, no qual o cientista € um pesquisador avoado esolitatiocujainvengao sai de con- troleeque deve, apartirdaf, ajudaroherdi a por 0 universo de volta nos eixos. Dessa forma, 9 tinico estudo sistematico sobre tendéncias acaba desdito com menos de um ano de vida. Logo, o melhor ¢ evitar generalizaghes. Assim, tudo o que se dis- ser sobre imagem do cientista deverd ser tomado com cuidado. Ela deriva mais de uma impressio adquirida pelo contato com as obras disponiveis que de qualquer estudosistemAtico, mesmo porque-Tudor nos mostra - estes raramente dio muito resultado. ‘Simon Schama, em Cidadaos, de 1988, nos diz que, no tltimo ano do Terror, de- putados consultaram quimicos acerca de uma arma eficiente para envenenarmulti- ddesno interiorda Franca, nasregiéesonde havia mais oposicao ao regime. Safram de mAosvazias. Cem anosdepois, naoteriam do que reclamar, ser-thes-ia dado isso muito, muito mais. Quando se passa da histria para a ficgdo, vemos que, pelo menos nesse aspecto - da disponibilidade do conhecimento cientifico -,0s escritores sao figis 4 realidade. Quando se trata de planejar Estados perfeitos, os polfticos nao 1ém problemas para promover lobotomias em massa por raios-X, para modificar quimicamente os recém-nascidos a fim de Ihes destinar um lugar definido na sociedade ou de criar mecanismos de vigilancia absolutamente eficientes. A ciéncia necesséria para de- senvolver Estados como os mostrados em Nés, Admiravel Mundo Novoou 1984 esté disponivel de safda. Nenhum dos autores se preocupa miulito em mostrar como ela teria se tornado pronta para pegare usar. Edesesupor queclesencarem ocientista mais ou menos como Wells encaravao dr. Moreau: um resolvedor de problemas € nada mais. Mas essa é a imagem que se deduz das grandes antiutopias do século XX, um ge- nero com pretensdes maiores que simples- mente a de divertir, nas quais pouco se fala diretamentede cientistasindividuais. Quan- do 0 assunto € 0 cientista fulano, fazendo pesquisas sobre tal e tal assunto, a coisa muda, Cai-se de volta no esquema “inge= nuo eexplorado por gente sem escriipulos”. Certo, a imagem do cientistana FC é ‘0 quese poderia chamar uma fraude. Nao Revista USP, Sao Paulo (24): 74-79, dezembrolfeverciro 1994/93

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