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[...

] Para voltar nossa histria, aqueles prisioneiros esto to longe de se renderem,


apesar de tudo o que lhes fazem; ao contrrio, durante esses dois ou trs meses em que
ali so mantidos mostram um semblante alegre, pressionam seus donos para se
apressarem e submet-los a essa prova, desafiam-nos, insultam-nos, criticam-lhes a
covardia e o nmero de batalhas perdidas contra os seus. Tenho uma cano composta
por um prisioneiro, em que h essa ironia: que eles venham intrepidamente, todos sem
exceo, e se renam para jant-lo, pois comero ao mesmo tempo seus pais e seus
ancestrais, que serviram de alimento e sustento a seu corpo; esses msculos, diz a
cano, essa carne e essas veias so os vossos, pobres loucos que sois; no reconheceis
que a substncia dos membros de vossos ancestrais ainda se mantm a: saboreai-os
bem, encontrareis o gosto de vossa prpria carne. Isso no cheira a barbrie de jeito
nenhum. Aqueles que os pintam morrendo e representam essa ao quando so
executados, pintam o prisioneiro cuspindo no rosto dos que os matam e fazendo-lhes
careta. Na verdade, at o ltimo suspiro no cessam de enfrent-los e desafi-los com
palavras e gestos. [...] (pp. 154-155)

MONTAIGNE, Michel de. Sobre os canibais. In: Os ensaios: uma seleo. Organizao
de M. A. Screech. Traduo e notas de Rosa Freire DAguiar. So Paulo: Companhia
das Letras, 2010.

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