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TENDENCIAS RECENTES DO CURRICULO DO ENSINO FUNDAMENTAL NO BRASIL’ Elba Siqueira de Sé Barretto ste artigo aprofunda consideragdes sobre alguns dos pressupos- tos sociopoliticos que nortearam as orientagdes curriculares emanadas das secretarias de educagéo de diferentes estados brasileiros a partir de meados da década de 80. Aponta também ten- déncias mais recentes no campo do curriculo, tanto provenientes de ini- ciativas de alguns municipios de capitais, quanto da esfera federal. Por QUE ANALISAR CurRICULOS OFICIAIS? Na tradigao federativa do pais, coube aos diferentes sistemas esta- duais de ensino, ao longo de muitas décadas, elaborar e implementar orien- tagdes curriculares as suas redes de escolas, a partir de diretrizes e nor- mas gerais provenientes da instancia federal. Os guias, ou propostas cur- riculares, produzidos no Ambito das secretarias estaduais de educagdo tam servido como referéncia as escolas estaduais, municipais e particulares * Neste texto tomou-se como ponto de partida a andlise dos curriculos ofciais realizada pela Fundaciio Carlos Chagas por solicitagao do MEC, em 1995, com vistas a subsidiar a ela- borago dos ParSmetros Curriculares Nacionais para o ensino fundamental (Fundacio, | 996). Além disso, buscou aprofundar reflexdo realizada em trabalho sobre os principios educativos e politicas sociais, apresentado em semindrio no Rio de Janeiro em 1996 (Barretto. 1996). 6__Os Curricu1.os po Ensino FUNDAMENTAL PARA AS EsCOLAS BRASILEIRAS dos respectivos estados. Embora oficiais, essas orientagGes nao se reves- tem de um carater de obrigatoriedade, cabendo as escolas certa mar- gem de autonomia na sua adocao e interpretacao. Tal autonomia é exercida na pratica, mais em virtude de um largo distanciamento entre as prescri- ges escritas e as escolas, do que de uma deliberagao expressa dos es- tabelecimentos de ensino e de seu corpo docente, visto que a maioria dos professores sequer chega a tomar contato direto com as propostas. Os municipios que mantém escolas préprias podem também, como. entes federativos, oferecer orientages curriculares especificas as suas re- des de ensino, Os mais desenvolvidos e com recursos humanos mais qua- lificados tem também aprimorado a capacidade de sistematizar suas orien- tagdes sobre curriculo. Essa pluralidade e aparente diversidade de orientacdes curriculares no pais acaba se diluindo e empobrecendo, porque © curriculo em curso nas salas de aula reflete frequentemente grande atrelamento dos professores aos li- vros didaticos que adotam. Hé no Brasil um enorme descompasso entre o esforco de renovagao curricular realizado pelas secretarias de educacao e as mensagens curriculares veiculadas através dos livros didaticos. Entre os textos adotados nas escolas, nao poucos foram produzidos originalmente ha varias décadas, alguns inclusive nos anos 40, tendo passado apenas por maquiagens modernizadoras sem alterar substancialmente o contetido e a metodologia no decorrer de centenas de edigdes sucessivas. Além do mais, como o par- que editorial esta concentrado nas regiées sudeste e sul do pais, os autores de livros didaticos costumam tomar como referéncia as orientagdes prove- nientes das propostas curriculares de estados dessas regiées, bem como ter- minam por se referir predominantemente as suas especificidades. De qual- quer modo, vale reiterar: em algum momento de seu processo de elabora- 40, 0s livros didaticos costumam tomar como referéncia as orientagoes que constam de certas propostas curriculares' . Assim sendo, contribuem para dis- seminar uma leitura particular que delas fazer os autores desses textos. |. Damesma forma, entretanto, ndo se deve deixar de mencionar o fato inverso de que algumas poucas propostas curriculares, provenientes de secretarias de educagdo de regioes menos desenvolvidas, chegam por vezes simplesmente a reproduzir, para certas disciplinas, 0 elenco de t6picos arrolados em indices de alguns livros didaticos. INSINO... 7 Tenpencias RE DO CuRRICULO Este estudo nao se propée, entretanto, a dimensionar o quanto as praticas escolares se afastam ou se aproximam das orientages dos érgaos gestores dos sistemas de ensino sobre o curriculo. Pretende, antes, analisar o discurso veiculado pelas propostas curriculares vigen- tes no pais, que, valorizadas pelos aparatos técnico-burocraticos en- carregados de produzi-las, “criam verdades” ao oficializarem saberes e legitimarem posturas. Assim sendo, passam a constituir referéncias importantes nas redes de ensino, mesmo quando propagadas princi- palmente por meio de atividades de formagao continuada dos docen- tes. Isso leva as propostas curriculares a se transformarem em objeto de disputas politico-ideoldgicas de grupos concorrentes que visam a hegemonia na area, como tém assinalado varios estudiosos do assun- to, dentre os quais Moreira e Silva (1994 ) e Silva (1995 ). As orientagées curriculares oficiais refletem também um ideério que permeia mais amplamente a sociedade através das suas instituigdes e das forgas sociais que as animam, ideario esse que vai além da interpretacao particular, que fazem os segmentos no poder, de certos principios e pres- supostos educacionais. Vém, assim, tais orientagdes constituir, elas prd- prias, testemunhos que cristalizam, através de determinada versdo pe- dagdgica, certos valores socialmente compartilhados, tal como aponta Goodson (1995). Dai se explica 0 fato de que. a despeito das mudancas de governo e de dirigentes, seja possivel encontrar mais semelhangas do que diferengas no conjunto das propostas curriculares, embora me- regam ser destacadas contribuigGes especificas e maiores afinidades po- litico-ideolégicas ou tedrico-metodolégicas entre algumas delas, em de- corréncia da identidade encontrada entre as administragdes que desen- cadeiam as reformas do curriculo. © CONTEXTO DAS REFORMAS CURRICULARES DOS ANos 80 © movimento de renovagao curricular que ocorreu na década de 80 foi liderado por estados das regides sudeste e sul que, tendo eleito gover- nos de oposigaéo ao regime militar, pleiteavam uma conduta democratica em relacéo a redefinicao dos destinos do pais e 4 elaboracdo e imple- 8 Os Curricutos po Ensino FUNDAMENTAL PARA AS ESCOLAS BRASILEIRAS mentagdo das politicas puiblicas. Sendo estados mais populosos e também mais desenvolvidos economicamente, eles estiveram 4 frente da grande mobilizagéo que ocorreu na sociedade brasileira pela restauragéo do Esta- do de Direito, que culminou com a promulgacao da Constituigao Federal de 1988, seguida de eleicao direta para a presidéncia da Republica. Nesse periodo, que se chamou de transigao democratica, a mobi- lizagao intensa da sociedade civil e o debate politico trouxeram a tona questées até entao restritas a alguns de seus segmentos representa- tivos. Dentre as que mais sobressalam no cenario nacional, encontra- vam-se a participagao democratica e a descentralizagéo, que visavam a recuperagéo da importancia dos poderes estaduais e municipais. Me- diante a ampliagdo do exercicio da cidadania, buscava-se legitimar os marcos que redefiniriam as regras do jogo democratico na sociedade, criando os canais institucionais por onde se escoariam as reivindica- g6es dos movimentos populares e de outros segmentos sociais. Bus- cava-se também promover a transferéncia de poder, de encargos e de recursos da esfera central, fortemente desgastada, para as demais instancias. Nesses termos, os reclamos relativos a participacao e a descentralizagao passaram igualmente a fazer parte das pautas gover- namentais, configurando, a um tempo, maior sensibilizagdo e flexibili- dade do aparelho burocratico do Estado em relagdéo as demandas populares, no que tange as politicas de corte social, e uma politica de cooptagao do Estado em relagao aos movimentos representativos dessas demandas (Cf. Martins, 1996). As reformas curriculares geradas nesse contexto foram, de modo geral, muito marcadas pelo discurso que dava énfase a necessidade de recuperar a relevancia social dos conteddos veiculados na escola, con- trapondo-se as orientagdes tecnicistas que prevaleceram na década an- terior. Nos anos 70, a questao do o que ensinar, por um lado, tinha sido deixada em segundo plano pelas orientagdes que insistiam nos aspec- tos operacionais do curriculo; por outro lado, para as teorias criticas que se difundiram no pais a partir da segunda metade dessa década, o conhecimento foi transformado em simples instrumento de dominagao. Nos anos 80, tratava-se de recuperar a importancia do saber veicula- TENDENCIAS RECENTES DO CuRRICULO DO ENSINO... do pela escola como instrumento de exercicio da cidadania plena e como elemento capaz de contribuir para a transformagaéo das relagdes sociais vigentes. Mais do que em qualquer outro perfodo da histéria brasileira, o dis- curso a favor das classes populares passa a fazer parte dos pronuncia- mentos oficiais das administragdes do ensino, dentro do clima segundo o qual a nova ordem social que se queria instalar no pais tinha como com- promisso resgatar a imensa divida social com os milhdes de exclufdos dos beneficios sociais pelo regime autoritario. Nessa perspectiva, buscava-se chamar atengao para o carater so- cial do processo de produgao do conhecimento — para o qual contribui toda a sociedade —, destacando o fato de que poucos vinham dele se apropriando. De acordo com as formulagdes da pedagogia critico-social dos contetidos, que encontrou terreno fértil entre as orientagées ofi- ciais do curriculo, a escola deveria buscar no seu interior solugées peda- gogicas adequadas as caracteristicas e necessidades dos alunos das ca- madas populares, visando assegurar a todos condicdes mais vantajosas para reivindicar os préprios direitos e lutar por uma sociedade mais jus- ta. Os representantes da chamada pedagogia dos conteudos procura- vam chamar a aten¢ao para a importancia da escola para as camadas populares, opondo-se também as tendéncias originarias da educagao popular, que, tendo se desenvolvido 4 margem do sistema escolar nos anos anteriores, a ele se contrapunham porque o consideravam porta- dor de um saber de classe e excludente. A escola para os conteudistas era, portanto, considerada como 0 local privilegiado de transmissdo, aos segmentos majoritarios, de um tipo de saber valorizado socialmente, ao qual estes no teriam acesso de outra maneira.? A argumentacgao dominante no perfodo aproximava-se daquela de- senvolvida por Snyders na Franga, por Lawton, representante da esquerda classica na Inglaterra, e também se ancorava em Gramsci, autor que 2. Entre os autores mais citados nas propostas curriculares, como mentores intelectuais dessa tendéncia, encontram-se Dermeval Saviani, José Carlos Libaneo, Carlos Jamil Cury, Guiomar Namo de Mello e Neidson Rodrigues. 10_Os Curricutos Do EnsiINo FUNDAMENTAL PARAAS ESCoLAs BRASILEIRAS considerava as experiéncias culturais das criangas de origem popular como ponto de partida para as atividades escolares e nao propriamente como provedoras dos contetdos do ensino. Provém de Gramsci também a pro- posta de escola unitaria, recuperada por autores como Luis Anténio Cunha (1987) e Vanilda Paiva (1985). Nesse tipo de escola — originalmente destinada a quebrar o dualismo do sistema de ensino italiano atendendo a todos os alunos indiscriminadamente —, 0 curriculo deveria assegurar a todas as criangas um conjunto de conhecimentos basicos comuns e, ao mesmo tempo, mostrar uma flexibilidade capaz de permitir a incor- poragao da diversidade. Assim sendo, o curriculo cuidaria que a educa- Gao transcendesse os limites do vivido e propiciasse 0 dominio de uma cultura capaz de ultrapassar os interesses regionais ou de grupos e clas- ses, possuindo caracteristicas universais. Da preocupagao com a relevancia social dos contetidos resultou, no &mbito do desenho curricular, o desdobramento, em certos estados, dos Estudos Sociais em Histéria e Geografia. Visava-se, com a mudanga, su- perar o esvaziamento tedrico a que foi submetida a area quando desco- lada das condigées de producgaéo do conhecimento nos seus campos es- pecificos. Ressalte-se, ainda, a reintrodugdo, em alguns curriculos, da Historia da América e a tentativa de descartar 9 componente conserva- dor da Educagao Moral e Civica instilado pelo governo militar, incorpo- rando na programacao de Histéria uma perspectiva mais comprometida com a participagao democratica. Houve também, em certas redes de ensino, um esforgo de maior diversificagéo da oferta de linguas estran- geiras, fugindo ao predominio quase exclusivo da Lingua Inglesa, como é © caso de Pernambuco e de Sao Paulo. Esse discurso buscou sobretudo manter-se como referéncia ampla para a selegéo de contetidos socialmente significativos no interior das préprias disciplinas curriculares, embora alguns autores tenham procu- rado ir mais longe, transformando-o em orientagdes didaticas precisas, No que nao obtiveram sucesso. Em verdade, a postura genérica que Pretendia conferir um norte comum ao tratamento dos componentes curriculares, nem sempre foi capaz de informar as opgdes a serem fei- tas em relagdo a enfoques tedricos dentro dos campos especificos de TENDENCIAS RECENTES DO CURRICULO DO ENSINO...__I1 conhecimento, por vezes até mesmo divergentes nas academias. A mera declaragéo de intengées acerca de um posicionamento a favor das clas- ses populares nao foi, tampouco, capaz de se constituir em guia claro para o processo de transposicao didatica pelo qual passam as disciplinas académicas para configurar o conhecimento escolar. O discurso, com conotagao fortemente politica, demonstrou fragil intersecgéo com as proposigées dos especialistas, que, efetivamente, terminaram por con- ferir a ténica aos guias curriculares (Cf. Fundagdo, 1996, p.6). O ideario das reformas curriculares foi sistematizado, em grande parte, por intelectuais que se identificavam nos anos 80 sobretudo com © Partido do Movimento Democratico Brasileiro (PMDB), que congre- gava uma ampla frente de oposigéo ao regime burocratico-autoritario. Muitos desses intelectuais, com a abertura politica, passaram a ocupar cargos de gestado nas redes publicas de ensino. Tal idedrio foi compar- tilhado, em maior ou menor medida, por educadores de amplo espec- tro politico. No caso do Partido Democratico Trabalhista (PDT) — que se diferenciou por ter encampado como carro-chefe do programa par- tiddrio a proposta de atendimento a crianga em escolas de tempo inte- gral, elaborada por Darci Ribeiro —, prevaleceu também a preocupa- Gao comum com a construgao de uma educagao democratica de qua- lidade. Esta estaria igualmente empenhada em assegurar 0 sucesso edu- cacional das camadas populares, e essencialmente comprometida com a criagao de condigdes de ensino e aprendizagem adequadas as ne- cessidades dessa clientela. Apesar de formuladas nos anos 80, a maioria das propostas curricu- lares dos estados continua em vigéncia, mediante reedigdes parcialmen- te alteradas, a despeito das mudangas na gestao das redes de ensino. Considerando a fragilidade da representagao partidaria em relagao a for- mulagao das propostas de governo, o que costuma acontecer com a alternancia no poder é a mudanga de énfase em determinadas ténicas das propostas curriculares e/ou a criagdo de novos apelos em relacao aos projetos educativos aos quais os dirigentes procuram imprimir a sua marca propria. Contudo, o tratamento dos componentes curriculares proprimente ditos quase nao sofre alteragées significativas. 12_Os CurricuLos Do ENSINO FUNDAMENTAL PARAAS ESCOLAS BRASILEIRAS A ForMaGAo PARA A CIDADANIA E Os Drre!Tos Socials A formagao para a cidadania esta inscrita como objetivo do ensino de 1° e 2° graus na prépria Lei 5692/71, que estabelece a reforma des- ses niveis escolares. Entretanto ela ganha especial &nfase a partir dos anos 80, em decorréncia das mudangas que ocorreram na sociedade brasi- leira no periodo, Quando abordada pelos componentes curriculares que tratam mais diretamente do tema, como a Histéria e os Estudos Sociais, a cidadania tende a ser tratada segundo uma perspectiva classica. Ela costuma vir as- sociada ao exercicio dos direitos civis — ligados as liberdades individuais e as possiveis esferas de atuagéo do cidadao comum — e, mais particular- mente, aos direitos politicos, entendidos como o direito de participar do exercicio do poder politico através do voto. A intengao é a de oferecer ao aluno esclarecimentos sobre a organizag4o sociopolitica do pals nas dife- rentes esferas de governo, acrescidos de alguma informagao sobre a es- trutura partidaria e os processos eleitorais. Apenas em poucas propos- tas sao consideradas também outras formas de organizacao através das quais se veicula a participacao politica, como as sindicais e comunitarias, estas Ultimas girando em torno de reivindicagées locais (Bittencourt, 1996). O tratamento explicito do tema nas disciplinas afins, nesses Ultimos ca- sos, recupera as transformagées histéricas dos elementos definidores da cidadania, incorporando os direitos sociais aos direitos civis e politicos. A questao da cidadania nao esta, porém, circunscrita tio-somente aalgumas disciplinas especificas na escola. Aparece também com frequién- cia como preocupacao explicita no ensino de Ciéncias, Matematica, Lin- gua Portuguesa, ou seja, em componentes curriculares que se distanci- am do eixo das ci€ncias humanas, pois a escola deve propiciar aos alunos o dominio de cédigos e simbolos do mundo contemporaneo, que per- mitam a sua participagdo mais ampla na sociedade. Uma vez concebida como fungao primordial da escola, a educa¢4o para a cidadania perpassa a formulagao. do curriculo como um todo. Nos encontros e semindrios — muitos dos quais alimentaram as pré- prias discusses sobre a reformulagao das propostas curriculares —, nas TrNDENCIAS RECENTES DO CuRRICULO DO ENSINO...__13 praticas de capacitagéo docente, assim como nos movimentos organiza- dos pelos educadores, que se multiplicaram a partir dos anos 80, o tema da educagéo para a cidadania acaba expressando o significado que tem adquirido a educacao politica nas escolas. Em indmeras redes de ensino comegam a ser criados canais institucio- nais de participagao como os conselhos de escola; introduzem-se prati- cas, como a da eleicao de diretores pela comunidade escolar, que buscam superar o velho estilo patrimonialista de controle das redes escolares, quando tais cargos eram preenchidos por indicagao politica dos grupos no poder; restaura-se a discussdo sobre a transparéncia na gestao da coisa publica. A pauta da educagao para a cidadania de algum modo reflete o dima que permeia outras mobilizagées, decorrentes dos movimentos po- pulares, das mulheres, dos direitos humanos centrados sobretudo na ques- téo dos presos politicos, e tende a reforgar o discurso que, no 4mbito escolar, dé énfase a luta pela redemocratizagaéo da sociedade. Essas experiéncias contribuem para consolidar a concep¢ado de que a prépria educacao deve traduzir-se em direito de cidadania e, ao mesmo tempo, deve municiar a populagéo com um instrumental que lhe per- mita ser mais efetiva nas suas lutas emancipatdérias. O conceito de ci- dadania passa a expressar mais fortemente a intengado de participacao ativa dos cidadaos nos assuntos referentes aos interesses comuns e as- sume clara associacao com a efetivacao dos direitos sociais. O direito a educagao é aquele mais reiteradamente destacado no contexto dos sis- temas de ensino, e chega mesmo a se expressar, em muitas das ori- entacées oficiais, através de declaragdes de intengao dos administra- dores, no sentido de reverter o quadro de fracasso escolar apresenta- do pelas camadas majoritarias da populagao. Os direitos dessa popula- GAo a permanéncia bem-sucedida na escola passam, assim, a ser reite- rados por um significativo numero de dirigentes e técnicos dos apara- tos publicos de ensino. Ao mesmo tempo, os professores séo chama- dos a se comprometer, no seu desempenho profissional, com o pro- cesso de emancipagao social, politica e cultural desses segmentos. Na década de 80, a critica da orientagaéo conferida ao periodo anterior pelas politicas educacionais fundamentadas nas teorias do capital humano faz 14_Os Curricutos Do ENSINO FUNDAMENTAL PARA AS Escolas BRASILEIRAS ver que as relagdes entre a educacdo e o mundo do trabalho sao mais com- plexas do que queria crer a tradigao economicista. Procura-se evidenciar a impossibilidade de estabelecer relagdes lineares entre o aparato escolar e 0 mercado de trabalho, além do que se reconhece que as demandas da so- ciedade e dos individuos sao mais abrangentes do que as expressas pelo setor econémico e nem sempre se conciliam com estas ultimas. Assim sendo, a tarefa principal da escola, recuperada como essen- cialmente politica, tem implicagées muito mais amplas do que a da inser- ¢4o dos individuos no mundo produtivo. Nesse sentido, a questao da cidadania aparece como intrinsecamente ligada ao desejo de insergao plena do conjunto de individuos nas diferentes esferas da vida em socie- dade, expressando a vontade de reverter o estatuto de “cidadao de segunda categoria” a que vinha sendo relegada a significativa parcela da populagao excluida do usufruto dos bens coletivos. Cidadania e demo- cracia aparecem pois como coroldrios um do outro, somente passiveis de concretizagéo quando se instala na sociedade um didlogo entre iguais. Ao tomar a democracia como valor, trata-se ndo apenas de reco- nhecé-la como um “meio eficiente de solucado de divergéncias, de um procedimento que a histéria revelou capaz de garantir certas vanta- gens ao carregar, para a deciséo tomada, o aval tanto de quem votou a favor quanto de quem opinou contra”. A recuperacao da coisa publi- ca como bem coletivo deve considerar nao somente o fim a que se destina a atuagdo, mas 0 meio “pelo qual se decide a execugao desse bem" (Ribeiro apud Martins e Franco, 1997). Entre os elementos que qualificam a democracia como valor universal, as questdes relativas a ideologia e a emergéncia dos conflitos como condigao sine qua non para a manutengao do nivel de legitimidade dos regimes democraticos in- corporam-se pois @ ampliagéo da nogio de cidadania. A participagao na vida publica como expressao maior da cidadania ativa significa, do ponto de vista politico, de acordo com Benevides (1995, p.54), organizagao das bases e participacdo nos processos decisérios que ocorrem em varias instancias, rompendo a verticalidade absoluta dos poderes autoritdrios. Do ponto de vista social, significa o reconhecimen- to e a constante reivindicagéo de que os cidadaos, mais do que titulares TENDENCIAS REcENTES DO CurRIcULO Do ENsINO... 15 de direitos, sio criadores de novos direitos e de novos espagos para expressd-los, consolidando-se como novos sujeitos politicos. O discurso a favor das camadas populares na escola acabou entretanto se revestindo de um tom reformista mais do que popular, em face da fragi- lidade da atuagdo da sociedade civil frente 4 prevaléncia da atuagao do Esta- do, a despeito de toda a mobilizagéo que ocorreu no periodo. Enquanto Proposta de governo, a participagao mais ampla da populagao na formula- ao das politicas publicas, incitada de cima para baixo a partir da propria administrag’o, foi reduzida e fragmentada, refletindo postulagdes partidarias antes que interesses populares propriamente ditos e servindo, nao raro, a Propésitos restritos de recomposigaéo dos grupos dominantes no poder. No caso das propostas curriculares, a consulta ampla aos agentes edu- cacionais, iniciada nas regides sudeste e sul, estendeu-se também a alguns outros estados das demais regides, embora nao tenha sido uma pratica generalizada. Nao obstante, essa consulta, via de regra, nao atingiu as po- pulagdes usuarias da escola,’ visto que so comeca a haver mencao mais explicita a ela nas experiéncias de alguns municipios a partir da passagem para os anos 90. Assim sendo, é possivel afirmar que, embora as questées referentes ao curriculo tenham implicagdes sociais amplas, afetando toda a populagao, o debate sobre elas permaneceu encerrado no ambito dos profissionais do ensino, nao tendo sensibilizado o grande publico. Contudo, muitas das préaticas politicas dos governos que assumiram posturas democratizantes nao se livraram de um certo populismo clien- telista e se enredaram por vezes em compromissos corporativistas, que, em ultima anélise, continuaram a privatizar 0 uso dos recursos publicos. E certo também que as caracteristicas de insucesso escolar da maioria da populagao pouco se alteraram, visto que as mudangas preconizadas € implementadas no periodo nao afetaram profundamente as questdes estruturais dos sistemas pUblicos de ensino, responsdveis, em propor- 4o significativa, pelos seus altos indices de fracasso. Pode-se afirmar, entretanto, que houve um saldo positivo em mui- tas redes de ensino quanto A adogio e disseminacao crescente dos pro- 3. Excecio seja feita 20 Estado do Rio Grande do Sul. 16 Os CurRicuLos Do ENsINO FUNDAMENTAL PARA AS ESCOLAS BRaSILEIRAS cessos de gestao democratica da escola, quanto a sensibilizagdéo de um grupo representativo de docentes em relagao as necessidades educa- cionais da clientela e quanto ao emprego de medidas relativas @ organi- za¢ao da escola com vistas 4 melhoria do fluxo escolar. Também nfo se trata apenas de retdrica discursiva a ampliagao signi- ficativa, na Constituigao Federal de 1988, do direito 4 educagao. Este se expressa em particular através do reconhecimento do direito da crianga de 0 a 6 anos a educagao institucionalizada, da necessidade de adequar a oferta de ensino as necessidades do aluno que trabalha, da extensao da gratuidade do ensino publico a todos os niveis de ensino, entre ou- tros. A chamada Constituigéo Cidada, promulgada apés grande partici- pagao popular e de grupos organizados, dentre os quais o Férum em Defesa da Escola Publica, termina, pois, consagrando como amplos di- reitos sociais muitas das demandas educacionais da populacdo e reafir- mando a responsabilidade do Estado pelo seu cumprimento. Novos PARADIGMAS INTERNACIONAIS No Campo pa Epucacdo A questao da igualdade e da justica social na restauragao da de- mocracia liberal no pais encaminhou-se no sentido de que pudessem ser cumpridas as promessas de Bem-Estar feitas pelo Estado e esbo- gadas de modo bastante insuficiente nos perfodos anteriores. A Cons- tituigdéo de 1988 foi escrita tendo como referéncia o Estado promo- tor do desenvolvimento, que se veio modelando historicamente a partir dos anos 30 no pais e terminou por desdobrar-se em Estado benfeitor, cujo modelo ja dava mostras de esgotamento desde mea- dos da década de 70. No processo da Constituinte, buscava-se defi- nir parametros que, no extremo, possibilitassem a cobranga do ideario liberal que propalava a igualdade de oportunidades a todos, e aposta- va-se no Estado como a instancia capaz de assegur4-la mediante ado- g4o de politicas de cardter redistributivo. Ainda que o processo de incorporagéo e expansdo das politicas so- ciais pelo Estado, transformando-o em Estado provedor — que ocor- TenpANciAs RECENTES DO CuRRICULO DO ENSINO... 17 reu nos paises de capitalismo avangado e também, de modo limitado, nos paises da América Latina — possa ser atribuido a necessidades es- truturais das préprias sociedades, nao se pode menosprezar o fato de que essas sociedades sempre tiveram como contraponto o modelo de Estado socialista. Este reiteradamente contribuia para colocar a ques- tao da igualdade, da justiga social e do papel redistributivo do poder publico em pauta no mundo capitalista ocidental, tensionando-o. T&o logo se inicia a década de 90 — e particularmente em de- corréncia das vicissitudes do socialismo real emblematicamente regis- tradas na queda do muro de Berlim —, tornam-se mais evidentes No pais as exigéncias decorrentes da nova configuragao mundial. Provocadas por profundas transformagées nas estruturas internacio- nais de poder, bem como pelas inovagées tecnoldgicas e pelo pro- cesso de globalizagéo da economia, que jd vinham ocorrendo ha déca- das, tais exigéncias tem levado os Estados Nacionais a declinarem de parte de sua capacidade deciséria em favor de organismos interna- cionais. Elas tm imposto igualmente reajustes estruturais aos dife- rentes paises, sendo a reviséo do papel do Estado — ja fragilizado sobremaneira e claudicante na sua fungao de provedor — um de seus eixos centrais. As pressdes se exercem nao s6 no sentido de que ele retraia a sua participagado ativa no setor econédmico, como tam- bém restrinja a atuagao na oferta das areas sociais e passe a nelas atuar segundo a légica de mercado. © documento publicado em 1992 pela Cepal, “A educagao, eixo das transformagées produtivas com eqiiidade”, que tem servido como referéncia importante para o redirecionamento da politica educacio- nal na América Latina, estabelece o binémio competitividade e equi- dade como diretrizes a serem seguidas pelos paises da regido. De um lado, argumenta-se que a manutengdo da capacidade de desenvolvimento das sociedades passou a depender muito mais forte- mente do dominio, por parte de grandes contingentes da populagao, de habilidades intelectuais mais complexas, da capacidade de manejar informagées e de se organizar nas relagdes de trabalho de modo mais auténomo do que o exigido em outros estagios de desenvolvimento das 18__Os CurricuLos Do ENSINO FUNDAMENTAL PARAAS ESCOLAS BRASILEIRAS forgas produtivas. Na era das chamadas “sociedades do conhecimen- to", a educagdo passa a ser considerada o mével do desenvolvimento e deve estar voltada fundamentalmente para alimentar as forgas do mercado, portanto, para criar melhores condigdes de competitividade. No caso dos pajises periféricos, a educagao tende igualmente a ser entendida como condigao basica de superagado das desvantagens de insergao nos mercados mais competitivos e como elemento deter- minante de mobilidade social ascendente no plano individual. De outro lado, justifica-se também a importancia dada 4 educagao por razGes politicas, associadas 4 necessidade de preservar a democra- cia — reinstaurada em diversos paises da América Latina ainda recente- mente —, assegurando a todos o dominio dos conhecimentos basicos, habilidades e atitudes reclamados para o exercicio da cidadania. Historicamente, o conceito de democracia tem recebido significa- dos diferentes, ora privilegiando o atendimento do interesse geral, en- tendido como interesse da maioria, ora destacando o direito das mino- rias a serem atendidas. Em tempos de desregulamentagdo, como os nossos, 0 entendimento da democracia tem pendido para a valoriza- go dos interesses das minorias, mesmo quando interpretadas como maiorias tradicionalmente silenciadas. O discurso da igualdade é subs- tituido pelo discurso das diferencas. Se antes o democratico era bus- car a igualdade basica, agora o democratico é respeitar as diferengcas. Gerado a partir dos paises de capitalismo avangado, esse discur- sO aponta para as novas formas de exclusdo e marginalizagao social af experimentadas. A pauperizagao do proletariado, caracteristica de ou- tras fases do desenvolvimento do capitalismo, é substitufda por areas de insuficiéncia de atendimento dos servicos ptiblicos que praticamente se universalizaram. Tal insuficiéncia transforma a populagdo dessas areas tradicionalmente marginalizadas, tais como as da crianga peque- na, dos idosos, dos desempregados e das minorias étnicas, em mas- sas que encontram dificuldade de encaminhar as suas necessidades e aspiragées através dos sistemas politicos de representagdo tradicio- nais. Passa-se, entéo, a reconhecer que a categoria de classe social é insuficiente para responder aos reclamos de transformagao das so- TenpEncias RECENTES DO CuRRICULO DO ENSINO... 19 ciedades contemporaneas, visto que as diferengas entre as classes tor- naram-se menos marcadas nessas regides (Offe,s/d)*. Pelo fato de ter sido assegurado o suprimento primordial das neces- sidades basicas 4 maioria da populacao, a dificuldade maior de insergao social dos grupos desprivilegiados no contexto das tensées provocadas pelo acirramento da competitividade e pelo desemprego estrutural, passa a ser mais fortemente atribuida a questdes tais como as de género, da pertinéncia a grupos €tnicos minoritarios, de faixa etaria, ou a outras caracteristicas de excludéncia. As caracteristicas de multirracialidade, for- temente acentuadas na ultima metade do século, em particular, nessas sociedades, que receberam grande contingente de migrantes provenien- tes de ex-coldnias e de outras partes do mundo com nivel menor de desenvolvimento, mesclam-se também com a emergéncia dos regiona- lismos nacionalistas e com as guerras inter-étnicas que as politicas de consolidagaéo dos Estados nacionais haviam abafado. Os velhos esquemas de negociagéo e de compromissos mediados pelo Estado, visando a acomodagao de interesses de diferentes segmen- tos sociais, que, embora insuficientes e pouco adequados diante da ero- sao do setor estatal e dos atores nacionais, mantinham fundamentalmente como referéncia as expressdes de necessidades de classes, cedem par- cialmente lugar 4 emergéncia de uma outra interlocugéo. Os novos ato- res em cena buscam colocar seus interesses especificos nao mais como circunscritos a um ambito restrito de reivindicagdes, mas afetando o conjunto dos individuos da sociedade, a medida que demandam a mu- danga de todo o padrao de relagdes sociais que nela se estabelece. E o fazem recusando a busca de consensos homogeneizadores comuns as praticas polfticas de perfodos anteriores e restaurando a dinamica do conflito que passa por uma linguagem politica particularista, a qual recla- ma por autonomia e coloca entre parénteses a totalidade com vistas a anular toda a hierarquia entre as diferencas (Cf. Martucelli, 1996). 4. Infelizmente, nao disponho da refer8ncia bibliografica completa desse texto (Domina- ¢6o Politica e Estrutura de Classe: Contribuicdo 4 Andlise dos Sistemas Sociais do Capitalismo Tardio), publicado certamente em revista brasileira e do qual mantenho apenas cépia xerox. 20 _Os Curricutos no ENsINo FUNDAMENTAL PARA AS ESCOLAS BRASILEIRAS __ Esse discurso amolda-se ao atual feitio dos Estados Nacionais, debilita- dos na sua capacidade de articular e implementar politicas no plano econé- mico e social, entre outros motivos, em vista da queda da arrecadagao de- corrente das transformacées no setor produtivo, bem como em virtude da fragilizagao dos mecanismos centralizadores que possibilitaram a sua expan- so. Os processos de descentralizagdo que tais Estados sio levados a adotar lhes possibilitam compartilhar com novos atores as suas responsabilidades ou desincumbirem-se daquelas que para si avocaram em perfodos anteriores, instalando um novo modo de atuar que pressupde o reconhecimento da diversidade e o aumento das diferengas em contraposigao as caracteristicas homogeneizadoras que marcaram a fase de expansdo do setor ptiblico. O discurso das diferengas e da autonomia é, porém, um discurso ambiguo no ambito das democracias contempordneas. Ele evoca, de um lado, a questao da equiidade, quando pleiteia um tratamento diversifica- do aos diferentes grupos sociais em vista dos seus distintos backgrounds — isso porque se recusa a admitir a pretensa homogeneizagao embuti- da no bojo da igualdade formal, que tem servido para mascarar a prevaléncia de vantagens ligadas a condigées de dominacdo e poder nas sociedades. Presta-se, de outro, a legitimar a competicao entre os mul- tiplos interesses particularistas, o que convém as sociedades em que as leis do mercado tém prevalecido sobre quaisquer outros parametros de organizacao social, e, nesse caso, os interesses dos grupos minoritarios sA0 Os que maiores dificuldades encontram para se fazer valer. Segundo argumenta Martucelli, as diversidades s6 podem tornar-se politicamente significativas no interior de uma concepcio liberal. Esta exige que se pare de pensar na igualdade no interior de uma concepgao global da injustiga, a qual remete a uma si- tuacao estrutural de dominacao e de exploragdo, e que se desloque na direcao de uma concepcao de justiga social enquanto igualdade de opor- tunidades. Dai para diante, trata-se de garantir uma participagdo igualitaria no seio da competigao social, (Martucelli, 1996, p.21). O fenémeno da globalizacao dilui fronteiras, padroniza condutas, dis- semina modos de vida e de consumo e tem viabilizado a acdo de orga- TeNpDENCIAS RECENTES DO CuRRICULO DO ENSINO...__21 nismos supranacionais que conduzem a implantagao de politicas setoriais em varias partes do mundo, baseadas em pautas extremamente homo- géneas. Ao mesmo tempo, da também margem aos novos pleitos de ci- dadania, que ultrapassam a tradicional forma de expressao através dos sistemas classicos de representagao. Tais pleitos passam a ganhar maior visibilidade ao reivindicar responsabilidades e direitos nado somente em relagao a esfera central do poder publico, como em relagdo aos pode- res constituidos no Ambito econémico, nas relagées de género, nos meios de comunicagao, em outros espagos culturais e sociais e no nivel regio- nal e local (Cf. Garreton, 1977). Para além dos direitos sociais, sao os direitos humanos que ganham énfase, reinterpretados sob um sem nu- mero de versées a partir do prisma de que a satisfagao das necessidades fundamentais do homem, tanto de natureza social quanto individual, desloca-se da esfera do privado para se colocar no dominio publico. Eles se configuram nos direitos da crianga, dos indios, das mulheres, dos homossexuais, dos negros, enfim, das pessoas em geral, de viverem em um mundo cujos recursos naturais nao podem continuar sendo dilapi- dados e assim por diante. Entretanto, a visdo fragmentaria do social e as caracteristicas disruptivas da competitividade néo se tem mostrado capazes de assegu- rar a coesdo basica demandada pela vida em sociedade. Nesse quadro, além da importancia econémica conferida 4 educagdo, dada a emergén- cia de ura cultura mais centrada no individuo, passa-se agora também a atribuir a ela a responsabilidade de costurar o esgargado tecido social num mundo em que a violéncia se multiplica em escala planetaria, mediante a inculcagao de valores. Na nova configuragao mundial, a necessidade de que a escola reafirme explicitamente a tarefa de transmitir valores co- mega a ser reforgada na pauta da educagao, uma vez que a ela compe- te também melhorar a qualidade de vida da populagao. A idéia da educagao como “todo poderosa” e mola privilegiada da transformago social deixa, contudo, de colocar em evidéncia o peso re- lativo da educagao, uma vez que fatores de ordem econémica, cultural, politica e outros podem ter igual ou maior efetividade do que ela para desencadear as mudangas pretensamente desejadas. 22_Os CurricuLos Do ENsiNo FUNDAMENTAL PARA AS EscoLas BRASILEIRAS A SINALIZACGAO DAS MUDANGAS NAS ORIENTAGOES CURRICULARES BRASILEIRAS A partir da primeira lei de Diretrizes e Bases Da Educacdo Nacional de 1961, consolidou-se no sistema de ensino brasileiro um formato de curriculo baseado, em parte comum e obrigatéria, no ensino fundamental e médio, complementada por uma parte diversificada, que se torna ex- pressiva particularmente neste Ultimo nivel. A unidade do ensino propicia- da pelo nucleo comum obrigatério, ainda que revestida de um carater bas- tante formal — visto que se limita apenas a indicagéo das matérias e nao a uma especificagéo dos contetidos — tem, mesmo assim, funcionado como uma espécie de passaporte democratico. Ela tem assegurado ao conjunto dos alunos a mobilidade horizontal, possibilitando a transferéncia de uma escola para outra sem grandes transtornos, bem como a mobilidade ver- tical ao longo dos cursos, permitindo em tese a todos os concluintes dos estudos de nivel médio o acesso indiscriminado ao ensino superior, inde- pendentemente da modalidade de curso escolhida. Cumpre destacar que essa concepcao é particularmente mais aberta e@ menos restritiva do que a que prevaleceu no desenho curricular de boa parte dos paises considerados avangados. A questao das diferengas tem sido contemplada historicamente no pais, mais no plano das disposigdes legais sobre o curriculo do que propriamente nos seus desdobramentos em termos de orientacSes curriculares as esco- las. Através de um intrincado conjunto de normas e regras que perpassam as diferentes instancias da federagao, tem-se procurado assegurar a flexibi- lidade dos sistemas de ensino, conferindo a eles certa margem de escolha na proposicao do elenco de disciplinas e de seu tratamento, a fim de que o curriculo possa melhor adequar-se as diversidades regionais, as peculiarida- des locais e as caracteristicas da clientela, bem como permitir o pluralismo de idéias e de orientagdes. Nesse caso, nao estéo pois em jogo apenas as diferengas relativas 4 populacao usudria dos servigos educacionais, mas a questao regional e as caracteristicas federativas do Estado brasileiro, bem como as condigées de expressdo da diversidade de idéias, assegurada pela democracia liberal que informa o seu regime de governo. __ Trnp@ncias RECENTES DO CuRRICULO DO ENSINO... 23 Nas propostas curriculares elaboradas pelos estados nos anos 80 é pobre o tratamento dado as diferengas locais e regionais e 4 diversidade sociocultural dos alunos, entre outros motivos, por ele nao estar posto como problematica central desses documentos, voltados que sdo funda- mentalmente para a sistematizagao de um corpo comum de conhecimen- tos passiveis de serem adquiridos por todos. Basicamente estruturadas como um conjunto de disciplinas escolares, tais propostas revelam freqiientemente alto grau de generalidade, embora procurem ora apro- ximar-se da légica de aquisigao de conhecimentos pela crianga informada pelo construtivismo, ora da ldgica interna de organizagao do conhecimento em cada campo do saber. Isso leva as prescrigdes curriculares a se dis- tanciarem das experiéncias vividas pelos alunos, a despeito de, nas orien- tagdes metodoldgicas, esses textos invariavelmente insistirem em preco- nizar uma abordagem que parta da realidade da clientela escolar. O tom genérico que, via de regra, predomina nas propostas nao im- pede, contudo, que varios guias curriculares também explicitem certa sen- sibilidade e preocupacado quanto ao tratamento de questées referentes 4 educagao de alunos ou grupos com caracteristicas étnicas e/ou socioculturais especificas, ou vivendo em condigdes muito peculiares. Incluem-se nesse caso as populagdes indigenas, as que freqdientam escolas ribeirinhas ou de assentamentos, os alunos negros, migrantes, criangas e adolescentes de rua. Varios estados fazem refer€ncia a demandas de tratamento desse tipo, provenientes das redes escolares, mas é comum que elas sejam remeti- das a deciséo do coletivo das escolas e a comunidade, com a recomenda- Gao de que devem ser consideradas a luz dos principios tedricos adotados pelas respectivas secretarias de educacio. Aanilise mais apurada dos componentes curriculares revela que a pro- blematica da diversidade sociocultural e da educago de segmentos que so- frem discriminagGes especificas recebe, via de regra, tratamento explicito ape- nas no caso de algumas poucas quest6es culturais relacionadas a pertinéncia de classe. Isso ocorre na maioria das vezes quando se trata de temas ja tra- balhados na produgio teédrica e na literatura pedagdégica, como, por exem- plo, o uso da norma culta e das variagGes dialetais no ensino da Lingua Portu- guesa e a consideracao do calculo mental no ensino da Matematica. Temas 24__Os Curricutos po ENSINO FUNDAMENTAL PARAAS ESCOLAS BRASILEIRAS que apresentam real complexidade, como © convivio social e a violéncia, a incorporagao nao estereotipada dos pontos de vista e contribuigSes culturais de outros grupos com caracteristicas de excluséo, nao encontraram, entre- tanto, um lastro politico maior que abrisse caminho a um tratamento peda- gOgico mais aprofundado nos curriculos oficiais. Eles ficaram diluidos no com- promisso genérico afirmado com uma educagao capaz de contemplar as especificidades regionais e locais, valorizar as experiéncias de vida dos educandos e favorecer a insercao social dos segmentos marginalizados, arriscando-se a conformar, quando entregues exclusivamente as localidades, atitudes que tendam a reforgar discriminagGes ao invés de contribuir para supera-las. Isso néo impediu que iniciativas pontuais surgissem em alguns esta- dos, como a da inclusdo da disciplina Estudos Africanos no curriculo das escolas estaduais da Bahia em |986°. apds largo processo de tramitacao da proposta, assim como a de atividades de natureza semelhante encam- padas pela Secretaria Municipal de Educagao do Rio de janeiro. Na justifi- cativa apresentada pelas entidades negras da Bahia para a introducao da disciplina, Regina Pahim Pinto (1993, p.33) destaca: asua necessidade, num estado cuja populacao é majoritariamente descen- dente de africanos; a necessidade de se conhecer a histéria das trés ragas que formam a sociedade brasileira, e, finalmente a sua importancia para a identidade da crianga negra. Segundo os militantes, a auséncia do estudo da hist6ria e da cultura negras nos curriculos escolares concorre para a falta de identidade cultural e, conseqUientemente, para a inferiorizagao do povo negro e de seus descendentes no Brasil. Fora da escola, entretanto, no ambito mais amplo dos estudos sobre as politicas de corte social, comegam a ficar mais claras e nuangadas nos anos 90 as novas formas de interpretagéo da questao da desigualdade de renda e do acesso das camadas populares a bens e servigos. Como a maioria dos paises da América Latina, o Brasil tem-se caracterizado pela manu- tengao de altos indices de pobreza de grande parte da sua populacéo e continua ostentando uma das taxas de distribuiggo de renda mais iniquas S.A propésito, consultar Santos (1987) e Pinto (1993). TENDENCIAS RECENTES DO CurRicuLo DO ENSINO... 25 do mundo. Nao obstante, a incapacidade da regiao para superar os niveis de pobreza atingidos em funcao da crise do Estado e das politicas de ajus- te nao impediu que os estratos abaixo da linha de pobreza venham-se beneficiando com a expanséo de equipamentos sociais urbanos, de satide e de educag4o. Estudos tém argumentado que a pobreza atual é ainda mais heterogénea que a de 20 anos atrés. Os pobres tém maiores possibilidades de inser¢éo ocupacional; separam-se as trajetori- as da pobreza por conta de renda baixa e por necessidades basicas insatisfei- tas; as linhas divisérias entre os pobres e os nao pobres se debilitam, aumen- tando o raio de situagGes de vulnerabilidade; a pobreza se feminiza, visto que as familias chefiadas por mulheres séo mais pobres; 6 uma pobreza urbana cada vez mais segregada dentro das cidades (OFI, 1997, p.7). Embora as formas classicas de exclus&o atinjam mais de um tergo da populagdo entre nds, emerge a tendéncia a focalizar a questao da pobreza sobretudo do angulo dos chamados novos pobres — que nao S40 assim tao novos —, o que abre caminho para considera-la sobretu- do como agravante de outras formas de exclusdo, associadas as novas identidades que disputam espago na arena social. A problematica das diferengas resultantes da pertinéncia a grupos ou classes sociais tende também a diluir-se de certo modo no discurso académico da area. E reforgada pelo fato de que a assimilacao apressada das proposig6es acerca do multiculturalismo, geradas no primeiro mun- do, deixa de considerar que o nosso fator de exclusdo nao esté forte- mente tao associado a diferengas culturais como as encontradas entre os migrantes estrangeiros nos paises desenvolvidos, muito mais acentua- das. As diferengas aqui se manifestam em contextos em que os niveis de privagao da populacgaéo em relagao a bens sociais basicos sio muito maio- res e esto mais estreitamente associados a baixos niveis de renda. No pleito a favor da eqlidade, as diferengas de género e de etnia, também reclamadas ha tempo pelos movimentos sociais, bem como a atengao devida as peculiaridades do atendimento 4 crianga pequena e a emergéncia de uma cultura juvenil com caracteristicas préprias, ao lado de outras demandas, passam paulatinamente a se impor ao discurso dos 26_Os Curricutos po Ensino FuNDAMENTAL PARA AS Escoras BRASILEIRAS educadores, que renitentemente as haviam deixado de lado em déca- das anteriores. Elas se colocam como igualmente importantes quando se cogita da igualdade social basica, uma vez que também configuram situagdes de exclusdo. Os direitos individuais passam a ser reivindicados com igual ou maior énfase do que os direitos sociais tais como formula- dos entre nds nas décadas de 70 e 80 e, a questao da cidadania se agre- gam outras demandas, como as da preservacao do meio ambiente, da defesa do consumidor, por exemplo. Inovagdes no Ambito das Prefeituras A preocupagao com as diferengas tendo como horizonte uma so- ciedade mais democratica imprimiu a sua marca em certas orientagdes curriculares, formuladas na primeira metade dos anos 90 por alguns municipios de capitais. como € 0 caso das propostas de Sao Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, tomadas para estudo. Diante do processo acelerado de urbanizagao pelo qual passou o pais e da multiplicagao de regides metropolitanas, entre as quais se incluem alguns dos maiores aglomerados populacionais do mundo, o carater diverso e plural das nossas cidades — que replica em versio peculiar esse mesmo cardter da socie- dade brasileira — oferece terreno fértil para ensaios no campo educa- cional. Em se tratando de secretarias de educagao que, durante as ges- tes examinadas, incorporaram em maiores proporcées do que as an- teriores 0 pessoal das universidades em seus quadros dirigentes, nao é de surpreender que mudangas comecem a apontar por esse lado. Essas mudangas tém em comum a tentativa de superar a fragmenta- ¢4o das propostas curriculares estaduais, atribulda principalmente ao fato de estas Ultimas serem centradas nas disciplinas, o que leva A comparti- mentalizagao artificial do saber, Buscam assim estruturar um curriculo — que se quer multirreferenciado — a partir de principios supostamente mais integradores, que possibilitariam uma aprendizagem mais bem sucedida aos grupos diferenciados da populacao que a escola deve atender. A secretaria de educagéio do Municipio de Sao Paulo, na gestao de 1989 a 1992, e a de Belo Horizonte, entre 1993 e 1996, ambas sob a TENDENCIAS RECENTES DO CURRICULO DO ENSINO... _27 direg&o do Partido dos Trabalhadores, promoveram reformulagées do conceito de curriculo, ampliando-o e entendendo-o como instrumento de organizagao e atuacao da escola. Nesse processo, atribuiram grande én- fase a pratica voltada para a transformacao social, que se deve traduzir em propostas de intervencao na realidade. Identificadas com a formagao politico-pedagdgica do educando, as propostas valem-se da idéia de integragéo do curriculo como recurso facilitador da postura reflexiva em relagéo ao saber constituido, reiterando o propésito de insergao do aluno na sociedade como cidadao auténomo, consciente e critico (Fundagao, p.9). Tais propostas insurgem-se contra o cardter homogeneizador e pretensamente opressor das prescrigées oficiais sobre curriculos, mol- dadas historicamente por meio das disciplinas para inculcar a chamada cultura legitima, que, desvinculada da realidade social complexa e plural, dificulta a explicagdo € compreensdo dos determinantes das condigées de vida dos varios seg- mentos e grupos da populagao, contribuindo para manté-los numa posi- ¢40 passiva a heter6noma, de no sujeitos, no concerto das relagdes sociais (Fundagao, p.8). Os curriculos oficiais impediriam ou dificultariam a emergéncia das vozes representadas pelas culturas tradicionalmente silenciadas pela es- cola. Por esse motivo, sao tidos, por alguns criticos dos curriculos pres- critos, como confirmadores dos interesses e valores dos grupos domi- nantes, ironicamente, no periodo em que varios desses curriculos en- saiam, particularmente nas areas das ciéncias humanas, ura linguagem esquerdizante. Os grupos gestores da Secretaria da Educagio da cidade do Rio de Janeiro, entre 1989 e 1992 eno periodo de 1993 a 1996, assumem uma perspectiva pluralista e nesse Ultimo mandato, optam por um formato nao disciplinar de curriculo, assim como fazem também as secretarias das duas outras capitais. As administragées das trés prefeituras em aprego adotam principios diferentes para a ordenagao ou integragao do curriculo, como a inter- 28 Os CurricuLos po ENsINO FUNDAMENTAL PARAAS ESCOLAS BRASILEIRAS disciplinaridade em Sao Paulo, os temas transversais e os eixos norteadores em Belo Horizonte, ou os conceitos-chave e os nticleos conceituais no Rio da Janeiro. A partir desses principios, sao elaboradas orientagdes que fo- gem a um tratamento tradicional do curriculo no que se refere aos ele- mentos usualmente considerados como seus estruturantes, quais sejam: os objetivos, os contetidos, a metodologia e a avaliagdo. Os principios ordenadores do curriculo estao fortemente ancora- dos em problematicas da sociedade contemporaénea, como a constru- ao da identidade, a analise das relagdes sociais geradas no e pelo traba- Iho e a valorizagao deste, a preservagio do meio ambiente e da satide, © conhecimento e o respeito a diversidade das expressGes culturais e a condenagao de quaisquer formas de discriminagao. Especialmente aten- tos as desigualdades sociais produzidas pelo peso das desigualdades de renda e por outras formas de exclusdo social das massas urbanas que povoam as escolas das regiSes metropolitanas, esses curriculos voltam- se explicitamente para a construgéo de uma cidadania ativa. Aproximan- do-se da perspectiva da cidade educativa, os grupos formuladores des- sas propostas buscam incentivar a interagéo da escola com a populacgao que a cerca e com outras instituigdes, movimentos e organizagdes da sociedade civil, de modo a possibilitar a ampliagdo da esfera da participa- Gao cidada em um espacgo de convivio que ofereca oportunidade de ex- plorar as multiplas dimensdes em que se revela 0 cidaddo do mundo. A proposta da interdisciplinaridade em Sao Paulo preconiza a necessida- de de mergulhar na realidade, propondo que a escola rompa o seu isola- mento e tentando identificar, através de pesquisa na comunidade, os princi- pais problemas vivenciados pela populagdo do seu entorno. A partir dai séo selecionados os temas geradores, com forte conota¢ao social, tal qual ja Ppreconizavam as praticas de educa¢ao de adultos propostas por Paulo Freire ha décadas. As disciplinas sio entéo chamadas a interpretar esses temas, guardando a sua especificidade de abordagem. Aos saberes das diversas ci- €ncias agregam-se outros saberes: os dos alunos, dos professores, os po- pulares, resgatados todos no esforco de compreensao critica das questdes selecionadas para estudo e da busca de alternativas para intervir na realida- de. Considerando que a especificidade das areas do conhecimento decorre TENDENCIAS RECENTES DO CURRICULO DO ENSINO... 20 da evolugao histérica do modo pelo qual elas foram socialmente construidas, procura-se restabelecer, a partir do enfoque sobre o tema gerador, a rela- ¢4o com o todo através da inter-relagdo entre tais reas, com vistas 4 me- lhor compreensdo do fendmeno ou situagao (Pontuschka, 1993. p.13). A interdisciplinaridade é buscada no plano da pratica pedagdgica e nos argumentos de ordem social e naéo no plano epistemoldgico propria- mente dito. A légica particular do interior de cada area do conhecimen- to é mantida no empenho em resgatar a totalidade, ainda quando se faz © esforgo de relativizar a dicotomia entre o saber escolar e 0 do senso comum, abrindo caminhos para o enriquecimento reciproco. O conhe- cimento é reconhecido como fato histérico e social, cujo desenvolvimento nao corresponde a um esquema linear, mas a uma marcha dialética que sup6e continuidade e ruptura, reelaboragao do conhecimento antigo e novo. A pratica é fonte permanente e constitutiva do conhecimento, mas N&o o substitui. Uma viséo suméria de cada area do conhecimento é ofe- recida aos professores, com o fito de possibilitar o estabelecimento de critérios para a organizacao da programacio escolar, que propiciem uma compreensao critica do mundo e uma articulagdo entre a cultura popu- lar e o conhecimento sisternatizado, respeitando as caracteristicas de cada grau e modalidade de ensino (SP/SME, 1990/1991). Ha, contudo, dificuldades em relacao ao trabalho com os temas ge- radores. Ele reproduz muito proximamente o proposto por Paulo Freire em projetos de curta duragao, visando 4 educagao de adultos que ja possuiam mais larga experiéncia de vida. Na escola regular de primeiro grau, os temas de conotacado social predominam mais ou menos nos moldes daqueles selecionados nos cursos para adultos, sem maior aten- go as especificidades dos interesses infantis e as diferengas entre as fai- xas etarias. Além do mais, como se trata de um curso de longa duragao, 0 fato de toda a escola se debrucar ao mesmo tempo sobre o mesmo tema, faz com que se torne muito ténue o fio condutor que assegura a progressao dos contetidos e a crescente complexidade da abordagem em fungao da idade das criangas e da série ou ciclo em que esto. Como a visao de area é demasiado genérica para aclarar a progressdo possi- vel, termina prevalecendo uma referéncia nao explicita 4 sequéncia de 30_Os Curricuos po ENsINO FUNDAMENTAL PARA AS EscoLas BRASILEIRAS contetidos tradicionalmente trabalhada pelos professores, a reboque da necessidade de integracdo proposta mediante os temas geradores. O grupo proponente do projeto da “ Escola Plural” de Belo Hori- zonte (1994) percebe as dificuldades assinaladas na experiéncia paulista e faz restrigdes A concepgao de interdisciplinaridade como lugar de intersecgdo de disciplinas afins, por julgar que, embora ela assegure o interesse e 0 trabalho conjunto dos professores, nao contempla devi- damente o aluno como elemento ativo no processo de producao do seu conhecimento. A secretaria de educagao da capital mineira opta por acolher os mais variados projetos elaborados pelas suas escolas a partir de princi- pios diversos, tendo como ponto de confluéncia o saber sistematizado, as vivéncias dos alunos, a participacao coletiva e as questées sociais. Cabe levar o aluno a restabelecer a unidade entre os varios objetos de conhecimento e a agdo e, os professores, a organizar experiéncias que propiciem a ele essa aprendizagem, proporcionando a participagao ati- va do educando no trabalho com os contetidos escolares. Esses con- tetidos devem estar afinados com a pluralidade dos espagos e tempos socioculturais em que ocorrem a socializagéo da crianga e do adoles- cente e em que se da o processo de sua formagao. O conhecimento cultural, presente nas disciplinas escolares, permanece va- ridvel importante na construg3o do conhecimento escolar, porém é sobretu- do o seu valor instrumental, enquanto subsidio ao tratamento de questdes sociais significativas que o legitima como saber escolar, na tripla acepcao de saber, saber paraa acdo e saber para a convivéncia. (Fundagio, pp. |2-3). O desenho curricular preconizado pela Escola Plural, tomando de empréstimo as orientagdes do curriculo espanhol atualmente em vi- géncia naquele pals, termina por propor, em determinado momento, a insergao de temas contemporaneos de grande apelo social, que ul- trapassam os campos especificos das diferentes 4reas do conhecimen- to escolar. Esses temas devem funcionar como eixos transversais que Perpassam os diferentes componentes curriculares. A educagio para TENDENCIAS RECENTES DO CurRICULO DO ENSINO... 31 a cidadania 6 proposta como tema transversal nuclear, secundada por outros temas como a preservagao do meio ambiente, o convivio com a diversidade cultural, o respeito a igualdade de género e as diferentes etnias, a educacado sexual e a educacao para o consumo. Aexemplo do que ja haviam proposto outras administragées, como as do Rio de Janeiro, a Secretaria de Educagaéo de Belo Horizonte su- gere “eixos norteadores” capazes de sintetizar aspectos fundamentais da intervengao pedagdégica, orientando a selecdo e assegurando a coe- réncia na estruturagdo de contetidos curriculares a ser feita pelos pro- fessores. Segundo Cadernos da Escola Plural, os eixos norteadores perpassam os contetidos das diversas disciplinas aca- démicas, constituindo uma nova forma de conceber a interdisciplinaridade, agora entendida a partir das fungdes e processos que varias disciplinas de- sencadeiam, e nao mais pela justaposicao de contetidos das disciplinas a partir de um tema Como exemplo, mencionam a nogéo de espago, presente nos con- teUdos de diferentes componentes curriculares (BH/ SME, s/d. p.19). A légica da construgdo da identidade social tem precedéncia, nessa proposta, sobre a légica institucionalizada do ensino, visto que esta ulti- ma costuma estar historicamente associada a etapas e pré-requisitos que tradicionalmente tém-se prestado a justificar a repeténcia. Os proces- sos de socializagéo que passam, via de regra, despercebidos no cotidia- no da instituigéo escolar recebem particular atencao. Atitudes, auto-imagens, representagdes, construgao de papéis, devem ser trazidos para o centro do processo educativo e fortalecidos por uma in- tencionalidade transparente. A construgao de valores ganha visibilidade e relevancia ao lado da construgao de esquemas e habilidades intelectuais e de identidades sécio-culturais (Fundacao, p. 13). Os alunos devem, dentro dessa perspectiva, acompanhar o seu grupo etario ao longo da escolarizagao, independentemente de terem ou nao demonstrado rendimento satisfatério em todas as areas do co- 32_Os Curricutos no Ensino FUNDAMENTAL PARA AS ESCOLAS BRASILEIRAS nhecimento. O pressuposto é de que o convivio e o conjunto das expe- riéncias por eles vivenciadas contribuirdo para ir suprindo ao longo do processo educacional eventuais dificuldades de aprendizagem manifes- tas em momentos especificos. A prefeitura do Rio de Janeiro, mantenedora da maior rede de ensino municipal do pais, tem também alimentado uma reflexdo enriquecedora sobre curriculo. Decorrente de um trabalho conjunto desenvolvido nas escolas du- rante varios anos, os Fundamentos para a elaboragéo do curriculo bd- sico, publicados em 1991, preconizam dois eixos integradores: um, vertical, que se apdia na construgao progressiva de conceitos de com- plexidade crescente, e outro, horizontal, que se expressa na selegao de conceitos-chave comuns a diferentes disciplinas, bem como no aproveitamento da pratica social do aluno. Tomados como conceitos espontaneos do cotidiano do aluno, os conceitos-chave passam a adquirir cientificidade quando inseridos no contexto mais complexo do saber sistematizado. A incorporagao do saber popular, nesse caso, implica a apropriagdo da ldgica de sua estruturacao, das ferramentas de analise que lhe sdo préprias, o que dispensa a mera assimilagao de fatos e dados tomados enquanto contetidos isolados, permitindo, atra- vés da utilizagéo de conceitos — que sao abstragées sobre conjuntos de fatos e de dados —, interpretar o conhecimento e atribuir-Ihe novos significados (Cf. RJ/SME, 1991, p.7). Considerando a escola como um ambiente privilegiado para a cons- trugao sistematica de conhecimentos e a aquisigao de valores, a gestao se- guinte propde-se a dar prosseguimento as orientagGes anteriores e desen- volve a proposta de Multieducagéo (1993/1995). Ela busca estabelecer uma relagdo estreita entre as vivéncias cotidianas e o saber escolar através da intersecgao de principios educativos, de forte acento social, com conceitos nucleares, de natureza epistemoldgica, tendo como meta a construgao do sujeito ético, auténomo, solidario, critico e transformador. Os principios educativos fundamentais visam: possibilitar ao aluno rela- cionar-se eticamente com o meio ambiente e perceber-se como parte dele; aprender os modos de producao, as relagdes de trabalho e reconhecer o TENDENCIAS RECENTES DO CyRRICULO DO ENSINO... 33 seu valor social; entender-se como integrante de uma cultura e valorizar 0 pluralismo cultural; utilizar-se de varias linguagens apropriando-se delas de forma critica através da compreensao e recriagaéo (Cf RJ/ SME, 1995). Reconhecendo que ha varios modos de construir um curriculo interdisciplinar, a alternativa proposta retoma parcialmente a idéia dos con- ceitos-chave, introduzindo os conceitos nucleares ou nuicleos conceituais, elementos estruturantes do conhecimento que perpassam diferentes areas do saber. Com a ressalva de que se trata de uma alternativa e nado de um modelo fechado, so propostos quatro conceitos nucleares que, pela sua importancia, contribuiriam para fundamentar a agao pedagdgica: identida- de, tempo, espaco e transformacdo. O ser humano constréi a sua identi- dade nas relagGes que estabelece consigo mesmo e com os outros; vive num determinado tempo histérico, psicolégico e sociocultural; convive no espago geogréfico, social, cultural e politico, e transforma a sociedade ao mesmo tempo em que é€ transformado por ela (Cf. RJ/SME,1995). Os principios educativos se combinam, por sua vez, com cada um dos nucleos conceituais. num intrincado processo que busca a constru- ao de critérios para a selegao e ordenagado dos contetdos referentes aos componentes curriculares e 4 formacdo de atitudes. De acordo com Bonamino e Brando, a tentativa de identificar con- ceitos mais abrangentes que nucleiem o curriculo nas diferentes areas e niveis do 1° Grau, teria como fundamento a constituigao do que Bourdieu chamou de habitus escolares, que possibilitariam ao aluno nao apenas com- preender, mas incorporar o conhecimento sob a forma de esquemas ope- ratérios. Conforme argumentam as autoras, a hipdétese é que os conceitos nucleares teriam uma dupla natureza — transdisciplinar e transcultural — , o que garantiria 4 construgdo de um nucleo curricular basico uma base relacional, quer no eixo cultural, quer no eixo disciplinar. Ao explorar a caracteristica relacional desses conceitos, evitar-se- ia a sua cristalizagaéo, bem como a do préprio conhecimento. Por seu carater abrangente, os conceitos estruturantes podem oferecer mais 34_Os Curricutos po ENsINO FUNDAMENTAL PARA AS EsCOLAS BRASILEIRAS facilmente condi¢ées de transito de um contetido a outro, de uma matriz disciplinar a outra, assim como favorecer a apreensdo de diferentes in- terpretacdes que Ihe sao atribuidas em diferentes culturas (Cf. Bonamino e Brandao, 1995, p.22). As orientagdes desses municipios tem também em comum o fato de transferirem o locus de sistematizagao curricular dos érgdos cen- trais das redes de ensino para o ambito da escola. Essa medida € par- ticularmente cara as administragdes petistas que fizeram grande em- penho em coloca-la em pratica. Partindo de um conjunto de principios gerais, o curriculo é criado e recriado em cada unidade escolar pelo conjunto dos educadores e, em principio, com a participagao dos alu- nos e de seus responsaveis. Pretende-se que essa construcao coletiva permita trabalhar de maneira mais adequada as diferencas da clientela e incorporar com maior efetividade os saberes dos docentes, ofere- cendo a estes oportunidade de exercicio da sua autonomia. Nessa concepgdo descentralizada de gestéo, os professores deixam de ser meros executores de prescrigdes antes elaboradas por técnicos dos Orgaos centrais, as quais nao Ihes asseguravam de fato um envolvimento maior no processo de selegao dos contetidos e desenvolvimento do curriculo. Ela permite que os docentes se apropriem deste, fazendo com que atenda as necessidades de trabalho e estudo de seu grupo, ainda que permanegam dividas sobre se o processo de reelaboracio curricular apenas por essa via chega a ser mais consistente e proveito- sO para a aprendizagem do conjunto dos alunos. De certo modo, esperam também as prefeituras petistas que © cur- riculo seja expurgado de seus vieses ideoldgicos, 4 medida que é recons- truido pela escola com a participacdo da comunidade. No caso, o traba- lho pressupSe todo um processo de organizagio popular paralelo a es- cola, e, preferencialmente, através do partido. A diversidade é assegurada nao s6 porque se cria espago para a ma- nifestacdo dos interesses e expressdo de formas culturais variadas dos alunos e da populagdéo com quem a escola interage, como pela varieda- de de arranjos possibilitados para a prépria ordenagio do curriculo, em cuja montagem entram os professores como principais protagonistas. Tenvéncias Recents po Curricuo po ENsINO...__35 O processo de reconstrugéo permanente do curriculo demanda, contudo, um forte investimento na reciclagem continua dos professores, assim como um vigoroso esforgo com vistas a articulagéo do processo educacional que ocorre ao longo do percurso escolar. Em que pesem os esforcos feitos pelas prefeituras quanto ao envol- vimento dos professores no processo de reelaboragao curricular e & preocupacao de incorporar os temas emergentes da sociedade em uma concepc¢io de curriculo mais flexivel e menos fragmentada, vale lembrar, a propésito, a adverténcia que faz Veiga Neto quanto ao importante papel desempenhado pelas disciplinas na constituigao da prépria modernidade. Na perspectiva foucaultiana, por exemplo, elas constituem dispositivos que, muito além do curriculo, “moldam sujeitos e organizam os arranjos e os fendmenos sociais mais amplos.” Assim sendo, a sua contestagao implica uma postura muito mais radical em termos da ordenagao da so- ciedade como um todo e do préprio objeto do conhecimento, questéo essa que, pela sua complexidade, nao é passivel de ser resolvida pela via pedagégica (Cf. Veiga Neto, 1997, pp.94-5). O Novo Papel do Governo Federal sobre o Curriculo Atendendo 4 prescrigaéo da Constituigéo de 1988, segundo a qual “se- rao fixados contetidos minimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formagao basica comum e respeito aos valores culturais e artisti- cos, nacionais e regionais” ( art.201), 0 governo federal passa pela primeira vez, em meados dos anos noventa. a fazer ele proprio prescricdes sobre o curriculo, que vao muito além das normas e orientagdes gerais que carac- terizaram a atuagao dos érgaos centrais em periodos anteriores. No ano de 1996, foi trazida a publico para discussdo e submetida a apre- ciagéo de especialistas uma versao preliminar dos Parametros Curriculares Nacionais elaborada pelo Ministério da Educagaéo. Além de um documento introdutério, compreende orientagdes referentes aos quatro primeiros anos do ensino fundamental no que diz respeito a Lingua Portuguesa, Matemiéti- ca e Ciéncias. As orientagdes relativas aos demais componentes obrigaté- rios do curriculo ainda estavam em vias de elaboracao. 36__Os Curriculos po ENSINO FUNDAMENTAL PARA AS ESCOLAS BRASILEIRAS As disciplinas tradicionais do curriculo agregam-se os denominados te- mas transversais, contemplando a preservagéo do meio ambiente, a edu- cagaéo sexual, a educagao ética. Nesse desenho de curriculo, a busca de ressignificagéo dos contetidos curriculares, para que melhor correspondam as demandas da populag4o e da sociedade abrangente, procede de fora para dentro, ou seja, provém desses temas, que séo elementos exterio- res ao prdéprio tratamento epistemoldégico conferido as areas do conheci- mento escolar. Essa orientagao é distinta daquela assumida por intimeras propostas curriculares dos estados, no sentido de rever os contetdos das disciplinas a partir de seus pressupostos tedrico-metodoldgicos, incorpo- rando intrinsecamente as questdes que Ihes sdo postas pelos desafios do mundo contemporaneo, de modo a integra-las ao seu corpus de conhe- cimento. Pretende-se com isso tornar os componentes curriculares mais atualizados, embora restem duvidas quanto 4 sua capacidade de evitar a multiplicagéo de abordagens que muito facilmente tenderdao a se transfor- mar em outras tantas disciplinas escolares A iniciativa de elaboragao dos Parametros Nacionais procura respon- der as novas demandas de qualidade do ensino e ao estabelecimento de padrdes de desempenho do conjunto da populagao brasileira que me- lhor correspondam as exigéncias de insergao do pais na nova ordem mun- dial. Guarda referéncias estreitas com iniciativas semelhantes, tomadas em diversos pafses europeus e da América Latina com o respaldo das agéncias internacionais. Nessa verséo dos Parametros Curriculares Nacionais, a conotagao sociopolitica da educagao tende a ser substituida pela necessidade de que a escola assuma explicitamente a tarefa de transmitir valores, que devem ser traduzidos na sua nova transposigao didatica, em ensinamentos sobre ética e convivio social. A discussao da relagao entre ética e convivio social nao é estranha nos meios intelectuais ligados 4 area da educacdo no Brasil, gragas sobretudo aos escritos de Agnes Heller, bastante divulgados no pais na década de 1980. De acordo com a teoria dos carecimentos radicais de Agnes Heller (1982), ha necessidades basicas dos seres humanos, que decorrem do de- senvolvimento da sociedade civil e que nao podem ser satisfeitas dentro TeNpENCIAS RECENTES DO CurR{CULO DO ENSINO... _37 dos limites da sociedade capitalista. Entre tais necessidades ou carecimentos, estao os chamados radicais, que implicam a superagaéo dessa sociedade dentro de um horizonte socialista, aquela que permitiria a satisfagao das necessidades por todos os homens. Admitindo que todos os estratos so- ciais podem tornar-se sujeitos de transformagao radical da sociedade, a teo- ria dos carecimentos leva em conta as forgas materiais e os determinantes sociais, mas considera que em ultima instancia a mudanca depende das opgdes individuais, ainda que essas opcées sejam histdrico-referenciadas. “A democracia formal é a condi¢ao preliminar para que possam ser satisfeitos os carecimentos radicais” (Heller, 1982, p. 137). Estes repor- tam-se sempre a valores, de sorte que a transformacao social deve abrir a possibilidade de que todos os homens se elevem da condi¢ao de sujeitos particulares a sujeitos individuais, cuja atuagao se caracteriza por ser mo- ralmente responsavel e mais elevada. Um processo de transformagao pu- ramente politico nao conduziria, portanto, por sis6 e automaticamente ao socialismo, sendo imprescindiveis as transformac6es nas relacdes sociais e humanas. Se as decisdes do Estado deve basear-se no consenso, entéo € necessario que os cidadaos sejam habituados desde criangas a participa- rem de decisdes coletivas, a discutirem racionalmente. Nesse sentido pro- pe que se examine “a hipdtese de um novo Estado no qual o poder nao seja exercido a partir de um centro unico e no qual — até onde possivel — sejam desmanteladas as estruturas hieraérquicas da sociedade” (p.!42). Uma vez que nao existe consciéncia social sem ética, “se © socialis- mo € um ideal de liberdade e igualdade, ele nao pode ser realizado atra- vés de meios que sufoquem a liberdade”" (Heller 1982 , pp.153-4 ). As- sim sendo, a autora postula trés normas éticas para a moralidade socia- lista, que oferegam aos homens grande liberdade de interpretagaéo e de atuag4o, a saber, o habito das discussées racionais, o reconhecimento dos carecimentos dos outros e o desenvolvimento das capacidades de cada um. Por esse caminho, tende a concordar com Kant que se insur- ge contra a obediéncia aos deveres ditados de “fora”, visto que esta nio forma individuos moralmente aut6énomos, e admite que a formulagao segundo a qual os homens nao devem ser simples instrumentos em mos de outros €é uma norma justa para uma moralidade de tipo socialista. 38__Os Curricuos Do ENSINO FUNDAMENTAL PARA AS ESCOLAS BRASILEIRAS As colocagées de Agnes Heller prenunciaram tendéncias que vém dando margem, no campo da educagao, ao estabelecimento de certos consensos em ambito internacional. A énfase na educagéo de valores tem ganho lugar de destaque na pauta das reformas educacionais mas, distan- ciada da utopia socialista, ela tem dificuldade de delinear um modelo de sociedade que, encarecendo os ideais de justiga e equidade, encontre referentes histdricos mais sdlidos em um mundo que enaltece a concor- réncia do mercado. Em outro contexto sociopolitico, a relagéo da educa- ¢40 com a satisfagao das necessidades humanas passa a ser definida em termos da satisfagdo de necessidades basicas de aprendizagem’. E, coma pedagogizacao das necessidades, a ética vé-se esvaziada de seu contraponto politico, uma vez que se tende a considerar as necessidades individuais e sociais como coincidentes ou complementares e colocar a existéncia dos conflitos na esfera das decisées pessoais € nao na coletiva (Torres, 1994). A formulagéo mais acabada da educagao de valores chega até nds atra- vés da influéncia direta do curriculo espanhol na formulacao dos Parametros Curriculares Nacionais. A abordagem excessivamente psicologizada da obra espanhola busca também os caminhos de Kant para o tratamento da moralidade, o que nao seria de surpreender, dada a prevaléncia da linha piagetiana nas orientagGes curriculares daquele pais e as afinidades entre Piaget e Kant. A vertente através da qual se pretende tratar a questo dos valores recai predominantemente sobre os processos através dos quais eles serao inculcados como verdades universais, ou seja, através de como pas- sarao a ser introjetados pelos individuos como um dever imperativo, sendo que a preocupagao de discuti-los mais aprofundadamente na sua concretude hist6rica nem sempre recebe igual destaque (Espanha, 1992). No caso dos Parémetros Currriculares Nacionais, a educagao ética Passa a ser estreitamente associada ao exercicio pleno da cidadania, ao lado da aquisicéo de competéncias basicas requeridas pela modernidade, sendo considerada o fio condutor do convivio social 4 medida que cria disposigées e alimenta valores que balizam os comportamentos de indi- 6. Atente-se para as proposic6es da Conferéncia Mundial de Educagio para Todos, re- alizada em Jontien, em 1990. TENDENCIAS RECENTES DO CURRICULO DO ENSINO... 39 viduos e grupos, contribuindo para construir identidades. A proposta parte de um conjunto basico de valores universais, considerados indispensa- veis a manutengéo das sociedades democraticas, tais como a solidarie- dade; a capacidade de manter o didlogo rechagando a violéncia; 0 culti- vo a tolerancia a partir do respeito as diferengas e apresenta uma for- mulagéo muito mais elaborada sobre esses temas e sobre a maneira de aborda-los do que a que figura nos guias curriculares estaduais. As ori- entagdes se demoram no trato de algumas das diferengas que condu- zem 4 discriminagdo mas, em meio a diversidade comum as sociedades globalizadas, a questéo da pobreza tende a ser levada em conta apenas como agravante de caracteristicas outras associadas as novas identida- des emergentes. Diluem-se assim as questées das diferengas resultan- tes da pertinéncia a grupos sociais ou classes (Brasil, 1996, pp. 20-1). Embora a velha verséo da Educagao Moral e Civica seja veemen- temente descartada sob o argumento de que se propoe a ensinar va- lores e atitudes considerados de antemao corretos, como pertencen- tes a um conjunto de regras acabadas a serem impostas por forca da autoridade, a nova roupagem de que se reveste a area nao a descarac- teriza em termos do seu propésito primeiro. Como um todo, os Parametros Curriculares Nacionais representam avangos em determinados aspectos. mas apresentam também muitos outros problematicos. Varios deles decorrem do fato de que no momento da redefinigéo dos principios educativos que devem permear as orienta- g6es curriculares, as dificuldades manifestas no didlogo com os diferen- tes segmentos sociais interessados tém prejudicado o necessario esfor- co de compatibilizagio das demandas relativas A Area, esforco esse que deve ocorrer a partir da problematizagao do processo de constituigéo dos fins da educagéo e de selegdo dos contetidos escolares, necessaria- mente multiplos e nao raro conflitantes. Sem pretender examinar mais detidamente outros aspectos do docu- mento, restringimo-nos a observacio de que a tarefa a que se propés o ministério excedeu em muito o propdsito expresso de oferecer parémetros curriculares. Segundo parecer do préprio Conselho Nacional de Educagao, estes constituiriam um conjunto de principios e conteddos basicos, capazes 40__Os Curriculos po Ensivo FUNDAMENTAL PARA AS ESCOLAS BRASILEIRAS de servir como referencial aberto e flexivel para orientar o trabalho de formulagao das orientagdes curriculares a ser realizado pelos estados € municipios enquanto gestores do ensino fundamental. Tal como estao, as orientagdes vao de encontro com o principio federativo e chegam mesmo a se contrapor a prépria nogao de curriculo, cuja efetivagao supe © trabalho de professores e alunos no cotidiano escolar e dentro do respeito 4 autonomia das escolas. Em vista disso, o documento propée que tais parametros sejam apresentados as escolas sem carater de obrigatoriedade. devendo ser encarados sobretudo como uma ex- periéncia em estudo que deve passar pelo crivo do trabalho do ensino e da aprendizagem (Cf. CNE, Parecer n°3/ 97 ). ‘Tudo indica, porém, que, se prevalecerem tais orientagGes curriculares federais extensas e detalhadas, que roubam 0 espaco a formulacées diversifi- cadas em qualquer instancia, tendera a ocorrer uma excessiva homo- geneizagao, senao da pratica escolar, certamente do discurso que a infor- ma. Essa homogeneizagao sera tanto maior quanto mais eficiente for o mi- nistério na divulgagao de suas propostas por meio de forte articulagéo com as editoras de livros didaticos, da implementacao de programas de capacitagao de docentes a distancia e da expansao dos processos de monitoramento dos sistemas de ensino através da avaliagdo externa. Isso ocorre exatamente no momento em que se preconiza a descentralizagéo e em que mais se defen- de o pluralismo de idéias e a importancia das diferencas. Ademais, acontece a respeito de matéria sobre a qual decididamente nao cabe resposta Unica. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BARRETTO, E. S. de S. 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