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SOCIOLOGIA - PROBLEMAS E PRATICAS N14, 1999, pp S975 Medicinas Paralelas e Pratica Social Luis Silva Pereira* Resumo: A doenga é de carfeter social. Para entender esta proposta € preciso conhe- cer © contexto que produz o mal. Neste artigo analisa-se a teoria social acerca do Goente e da doenga no Ocidente. recorrendo 2 pesquisa feitas sobre os sistemas de pensamento e de acco a que recorrem os doentes: a cigncia, a religifio e 0 esoterismo, Apds a caracterizagio das concepeGes de cura e dos itenerdrios terapéuticos percor- ridos pelos doentes, apresenta-se alguns sinais de alteragio de mentalidades © de praticas no que respeita & assisténcia e a side. Introducao Um dos trabalhos do antropélogo no estudo de assuntos relacionados com a doenga e as técnicas de cura consiste em compreender a teoria e a pratica de um determinado agrupamento humane, relativamente aos cuidados a ter com 0 corpo é as técnicas a utilizar quando ele adoece, tendo em vista 0 seu regresso ao estado de satide. As nogées de “corpo”, “doenga”, “satide”, so construfdas culturalmente, deyendo 0 antropélogo buscar o seu sentido junto das pessoas que as utilizam, como Gnico meio de poder entender quais as estratégias sociais nos processos de manutengio ¢ de recuperagio da satide. Aquelas noges nao s6 variam de sociedade para sociedade, como dentro de uma mesma sociedade encontramos distintas acepgdes e diferentes comporta- mentos relacionados com as categorias referidas. As atitudes relativamente 4 doenga sao de tal forma variéveis que uma mesma doenga produz diferentes doentes, sendo cada um deles um caso que exige, para 0 sucesso do tratamento, um conhecimento individualizado da sua histéria — e n&o s6 clinica, como veremos adiante. Procurarei explicitar as raz6es que determinam que o discurso cientifico nao atinja toda a populagdo — nem sequer a maioria — e que essa mesma populagio recorra, quando doente, a varias técnicas de cura, nem sempre privilegiando o -ecurso 4 ciéncia médica modema, experimentando formas alternativas de cucar, santo no universo rural como no urbano. Utilizo a expresso “medicinas paralelas” para designar tanto a chamada edicina popular”, de marcada raiz empirica, como as ditas “medicinas alter- assistente no ISPA. 160 Luis Silva Pereira nativas", que manifestam sinais evidentes de erudicao e sistematizagao na abor- dagem do corpo e nas concepgées de satide ¢ doenga. O ponto de referéncia e de partida para a designagio escofhida é, obviamente, a ciéncia médica moderna — face & qual as medicinas paralelas se afirmam, na sociedade ocidental, guer come alternativa quer como complemento no complexo processo de manutengao ou de recuperagio da satide. O autor deste artigo foi confrontado com este problema quando the foi solicitada a elaboragao de um projecto, conjuntamente com uma equipa de in- vestigacao formada por médicos, enfermeiros, assistentes sociais € antropélogos, destinado a estabelecer os termos em que deveria decorrer uma investigagao de terreno para avaliar do grau de satisfagdo da populagao assistida. relativamente ‘ao Centro de Satide ao qual recorria. A questo com que se defrontava o “Centro a, em Espa- nha, era a seguinte: os meios técnicos disponiveis eram modernos e em bom estado de funcionamento, o pessoal samitério era suficiente, mas havia um nt- mero de pacientes superior em muito ao esperado, tendo em conta as referidas circunstancias. O problema era o desajustamento entre as estratégias do C.A.P, ea vivéncia da populacio assistida. 0 que fazia com que, face ao balango final, © capital investido em tecnologia e recursos humanus nao produzisse os resul- tados esperados. Com este exemplo concreto procuro adiantar questées que se prendem, por um lado, com as relag6es entre instituigdes sanitérias — com destaque para os corpos médicos e assistenciais que as constituem — e o seu enquadramento ffsico e cultural e, por outro, com os temas mais gerais da construgio cultural do corpo, da doenga ¢ da savide que me proponho desenvolver seguidamente. de Asisténcia Primaria” a que me refico. na provincia da Catalu 1. O corpo e a doenca: controlo e representacao social Consciéneia, linguagem e téenicas corporais so trés dados fundamenta para a construcio das nogées de corpo e de doenga. Elas radicam no individ © 6 da interacgdo individuo/sociedade, a qual tem lugar ao Jongo do processo socializagio, que aquele se situa socialmente, comunica e usa 0 seu corpo. acordo com o sistema de pensamento do grupo em que esta integrado, A evidé- cia de que radicam no individuo prende-se com o facto de ele ser capaz produzir pensamento abstracto — em todas as sociedades humans conhecidas — ic., de criar simbolos e comunicar através deles, de idealizar ¢ interpreta> mundo, bem como 0 lugar que neice ocupa. Mas é fundamental que a socied. esteja presente para orientar, educar, transmitir valores e normativizar coms ~ tamentas. Contribuindo positivamente para o debate destes temas, 0 modelo teéric: =: Lévi-Strauss (1952) veio langar uma nova luz sobre as questdes do etnocentr e do pensamento seivagem. Segundo 0 autor, uma estrutura semeihante de > jento seria comum aos individuos pertencentes as sociedades humanas Medicinas paralelas ¢ pritica social 161 nhecidas do passado ou do presente, variando a cultura de acordo com as dife- rentes respostas dadas a diferentes questées com as quais se defrontam, relaci- onadas com o meio e circunstancialismos hist6ricos do progresso. Esta ndo era a posigo dos autores evolucionistas ¢ do préprio Durkheim. Para este ultimo, fai como para aqueles, a uma forma de organizacao social mais simples corresponderia uma forma de pensamento mais simples. Segundo Durkhi (1893), na sociedade baseada na solidariedade mecéinica, os indivi- duos nfo teriam consciéncia de si prdprios por viverem num mundo de indistingaio. onde nao haveria, ainda, divisio do trabalho social. Através da crescente complexificagao deste, a sociedade transitaria para a solidariedade organica e 0 homem ganharia, no processo, a consciéncia da sua individualidade. por saber qual a tarefa especifica que deveria desempenhar no seio do grupo de pertenga. Dos estudos que efectuou sobre o sentimento religioso (1912) e os sistemas de classificagao (1901-1902), Durkheim concluiu existir uma afinidade estreita entre “sistema social” e “sistema légico” ¢ estabelece que o primitivo, a partir dos materiais fornecidos pela religiao, elaborou, na escola da sociedade. a capa- cidade de conceptualizagao. Assim, as categorias de género, espécie, espago, tempo, causalidade, contiguidade, no se afiguram inatas mas produzidas em sociedade. Esta apresenta-se-nos, no modelo de Durkheim, coro enquadramen- to inevitdvel (j4 que se impde coercivamente) ¢ instrumento no quai e através do qual o homem aprende a manipular uma estrutura I6gica e conceptual que Ihe permite interpretar 0 mundo e integrar-se nele. Um dos clos de jigactio entre a teoria de Durkheim e a de Lévi-Strauss é visfvel no facto daquele autor considerar que a capacidade de conceptualizagio é a condicSo da existéncia do ser social. Lévi-Strauss, pelo seu lado, caracteriza © pensamento pela capacidade de comunicar, comum a todas as sociedades humanas. qualidade que radica na caracteristica de 0 inconsciente colectivo poder vonstruir simbolos e, através deles, comunicar. Esta aptidao, segundo o autor, é de todos os tempos ¢ de todas as sociedades conhecidas. A estrutura de pensa- mento é, assim, semelhante nos individuos que integram todas as sociedad conhecidas, propondo-se autor estudar a infraestrutura inconsciente subjacente aos fenédmenos, entendé-la, tal como a outros elementos de um sistema. de acordo com as relagées que mantém numa teia sistematizada de correlagdes, cujas regras procura conhecer, ¢ conferindo & antropologia o papel de descobrir 2s ditas estruturas mentais inconscientes através do estado das instituigdes e da Jinguagem A esta atitude no & de todo estranha a importincia que teve na sua forma- cdo a teoria de Marcel Mauss. No estudo que este autor fez, sobre as técnicas corporais (1950), defende que 0 corpo € 0 primeiro e o mais natural objecto e meio técnico do homem. A tese demonstrada pelo autor, através da apresentagao de numerosos dados etnograficos, ¢ a de que 0 modo como o homem concebe e utiliza 0 seu corpo varia de acordo com as culturas. A diversidade das técnicas corporais constitui a prova de que através da codificagiio das necessidades e das praticas corporais e da sua imposig’io ao grupo, as sociedades educam os seus 162 Luis Silva Pereira membros e transmtitem ao longo do tempo, de geracéio a geragio, as técnicas consideradas adequadas ao bom uso do corpo. As técnicas relativas a0 uso do corpo sio parte integrante das estratégias reprodutivas do grupo, visam o bom desempenho individual em sociedade e constituem uma expresso da preocupacio social em preservar a satide colectiva. Os trabalhos de Rivers (1924) e Ackernecht (1942 e 1971) contribuiram decisi- vamente para uma reflexdo antropolégica sobre a doenga, O primeiro autor abordou a pratica médica como um proceso social entre outros, estudou-o sob essa perspectiva e considerou que mesmo as concepcoes médicas que o homem ocidental considera absurdas se fundam num corpo de crengas coerente e légico; © segundo autor mostrou como as representagGes ¢ praticas relativas 4 doenga desempenham um papel de controlo social Este tiltimo aspecto foi igualmente desenvolvido, entre outros autores, por Evans-Pritchard (1930), 0 qual demonstrou como entre os Azande a bruxaria €, simultaneamente, parte do organismo humano, produto de um acto psiquico, fonte de infortdnio, origem de doenga, causa da morte (“Dizem os Azande: ‘a morte tem sempre uma causa, e nenhum homem morre sem motivo’, querendo dizer que a morte sempre resulta de alguma inimizade”, 1930 (1978): 91). Nesta obra, através de uma anélise do sistema de pensamento que conceptualiza a doenga e a cura, o autor, na linha de Rivers, demonstra que as crengas aparen- temente irracionais relativas a etiologia e & superagdo do mal recobravam sentido quando analisadas no seu devido contexto social Especialmente desde os trabalhos deste autor, 0 estudo antropolégico da doenga caracteriza-se por encarar 0s factos relacionados com esta tiltima como entretecidos com outras 4reas do social (v.g. parentesco, religido, magia, etc.), articulando-os com outros elementos recoihidos pelo antropélogo no trabalho de campo. Na esteira daquele autor, Augé, através da andlise de casos na Costa do Marfim e no sul do Togo, aborda a dimensao social da doenga partindo da sua interpretagio como significante, como suporte da nossa relacdo com 0 social (1984: 23). Aos seus olhos as priticas relativas doenca e os discursos subja- centes nfo sé se integram num sistema simbdlico articulado, como também fazem parte de teorias gerais que ordenam os simbolos que permitem pensar 0 social no seu conjunto (Fainzang, 1989: 12). Neste sentido, uma autora integrante da sua equipa, Sindzingre (1984), faz uma andlise da explicacao do infortdnio entre os Senufo, da Costa do Marfim, considerando que toda a doenga ou inforttinio requer uma interpretagao e que esta é um avatar das relagdes sociais e das representagdes proprias de uma dada sociedade (1984: 96), Segundo Fainzang (1989: 13), 0 estudo das representagdes da doenga cons- titui um meio privilegiado e, por vezes, uma necessidade, para compreender a sociedade, facto que a autora comprovou no estudo que fez entre os Bisa de Burkina (1986), entre os quais verificou o papel estruturante das representages da doenga sobre as priticas sociais ¢ as suas ligagées com a cosmogonia e a organizagao social daguela etnia africana. 164 Luis Silva Pereira cuja ldgica é indissocidvel das relagdes sociais e das representagées da socieda- de que constr6i a hipétese explicativa. Desta Idgica procede tanto a concepgao do corpo como a instituigéo do social. Neste enquadramento, a doenga surge como um acontecimento eminentemen- te social. Sofrer uma doenga, pensé-la, é situar-se em relagdo aos outros membros da sociedade da qua! o doente faz parte (cf. Kenny e De Miguel, 1980: 43 a 68). Um enunciado explicativo remete sempre para 0 contexto social que o produz e qualquer situacdo anormal, patol6gica, s6 é encarada como tal por ser parte integrante deste contexto — como diz Foucault: “La enfermedad no tiene realidad y valor de enfermedad mds que en una cultura que la reconoce como tal “(1954 (1988): 83), O doente, pelo seu lado. interroga-se acerca do que Ihe acontece, quanto durara 0 mal que 0 acomete, porque tem de softer, porque existe esse mal e 0 ataca. Os observadores que nao tenham em conta este aspecto referencial da dor efou da doenga, ficarfio com 0 campo de andlise reduzido a reacgdes reflexas ou instintivas. Para que uma experiéncia dolorosa constitua sofrimento pleno deve correspander a uma estrutura cultural — esta dé ao acto de sofrer a forma de uma pergunta que se pode expressar e partilhar (cf. Illich, 1975). A doenga € assim, socialmente codificada, funcionando como significante social, j4 que é objecto de uma interpretag&o colectiva que se implica no meio humano que o experiencia e teoriza (cf. Le Goff, 1985). A doenga, diz Susan Sontag (1977), € uma “metdfora”: através das concepgdes de doenga os homens falam dos seus conceitos de sociedade e das suas relagdes sociais. Logo, numa interpretagio da interpretago social da doenca, é imprescindivel que esta seja contextualizada pelas relagdes do grupo humano respectivo e pelas representacdes sociais dessa mesma sociedade que a metaforiza. Sendo a doenga um facto social, a sua natureza, distribuicéio e interpretagaio social variam no espago € no tempo, de acordo com distintas conjunturas sociais. ‘A concepgtio de doenga, tal como a de satide (varidveis segundo @ conjuntura social, j4 que so historicamente construfdas), 6 um meio de acesso ao sentido que 0 individuos dao aos seus comportamentos individuais ¢ as relacdes que estabelecem com os membros da sociedade a qual pertencem, bem como ao sistema de in- terpretacbes, crengas ¢ valores que Ihe sio subjacentes, Corpo e¢ satide afiguram-se, assim, como parte dos elementos do processo reprodutor com o gual o processo da vida se constréi ¢ a sociedade funciona, garantindo a sua continuidade no tempo através das gerages. Esta construgdo & colectiva e s6 se pode entender a sua teoria € a sua pratica integrando-a ne quadro mais alargado da sociedade, da qual fazem parte os individuos que procuram evitar a doenga ou debela-la. Ao aceder ao papel social de doente, caracterizado pelo reconhecimento de uma incapacidade involuntéria para desempenhar as actividades sociais habituais, 0 individuo sofre uma intervengao do exterior que varia de acordo com as culturas e com contextos particulares: aumento de solidariedades, continamento, integragaio em novas estruturas sociais, acesso a agentes da cura ¢ a novos modelos interpretativos do seu estado, ete, Medicinas paralelas ¢ prética social 165 Para além do referido reconhecimento social, imediato 4 consciéncia da disfungdo que o doente tem, normalmente, do seu estado, este tiltimo exige (num terceiro momento do processo) a assisténcia dos que Ihe estio préximos (e de observadores significativos na interpretagdio e na cura), a andlise do problema tendo em vista a sua explicagéo e 0 recurso a uma estratégia curativa. Este processo nem sempre é coerente, por vezes desenvolve-se por tentativas e erro, por despistagem, etc., e evolui ao longo de um itinerério terapéutico com fracturas ¢ inflexGes cuja extensdo varia na razio directa do inéxito da(s) terapia(s) e da angiistia sentida pelo doente. O que procure deixar claro é que 0 diagnéstico, ou seja, a determinagao de uma doenga pelos seus sintomas, nem sempre dé uma resposta cabal & procura de sentido buscada pelo doente. O que se passa na realidade € que exisi¢ uma notéria dificuldade de comunicagio entre os produtores do discurso médico, téenico ¢ pretensamente univoco, ¢ os receptores, nao familiarizados com a terminclogia utilizada, habituados a outros sistemas interpretativos da doenga e limitados no seu sentido critica por ela lhes dizer directamente respeito. Importa lembrar que nem tudo 0 que trata 0 corpo & saber médico e a manutengdo da satide — ou a prevengio da doenga — tem como referente contexto social no qual vive o individuo que é medicamente assistido. As pessoas vivem em sociedade ¢ nada é feito sem recurso a quem detém o saber ¢ a autoridade para aconselhar, resolver situagdes de desequilibrio, restabelecer uma ‘ordem, seja no corpo individual, seja no corpo social. Concomitantemente, cada individuo tem a sua propria teoria de como gerir as suas condigdes para a manutengao do corpo e da satide, resultante daqueles saberes e da sua propria interpretacdo deles (cfr. Iturra, 1988). Entao, para além do sofrimento (“Etymologically, patient means sufferer” - Sontag, 1988: 37), e da maior ou menor incerteza relativamente ao desfecho de uma nova situagao desagradavel, o deente vé-se confrontado, frequentemente, com a sua incompreensio face ao que ihe acontece porque, por um lado, n&o entende 0 que Ihe € dito e, por outro, tem informagdes varias — por vezes contraditérias — relativamente ao seu estado. O doente vive, assim. o sofrimento, a dificuldade de 0 comunicar aos outros — porque provoca sofrimento o facto de 0 invocar e porque é dificil explicd-lo — ca insatisfagdio que Ihe provoca a resposta. Sofre, por um lado, a solidéo que, normalmente, uma doenga determina e, por outro, uma intervengio social que procura recuperd-lo para as suas actividades sociais. E que, pelo enraizamento num corpo sofredor e pela ameaga que constitui para a integridade da reprodu- Go das pessoas e da sociedade, a doenga, como salienta Augé (1985), 6 um acontecimento que tem a particularidade de mobilizar uma grande carga afectiva e de activar processos sociais frequentemente complexos A atitude predominante na sociedade ocidental, baseada na tradigiio judaico- crista! e na légica aristotélica® consiste, neste aspecto particular, na distingao irredutivel satide/doenga. As conotag6es positivas ligam-se A primeira, as ne- gativas A segunda. A doenga 6, entéo, encarada como um mal, um desequilibrio, 166 Luis Silva Pereira uma ameaga ao individuo e A sociedade, que é preciso erradicar, anular, para que se restabeleca a boa ordem na esfera individual ¢ na esfera colectiva. A sociedade cumpre categorizar a doenga, classificd-la e determinar 0 modo como deve ser debelada — facto que desde o século XVII (Foucault, 1963 e 1964) determina, em certos casos, 0 internamento, o confinamento do doente as paredes de uma ins- tituigio, como parte de uma técnica terapéutica destinada a curar 0 doente — intervindo como julgar necessario, de acordo com as regras que elt propria es- tabelece. A ciéncia médica tem como um dos seus objectivos fundamentais “combater” a doenga. Sou de opinido que as medidas funcionais tomadas pela medicina nao sio acompanhadas por um acréscimo significativo de consciéncia do individuo re- lativamente & doenga que sofre. Sendo a doenca indissocidvel do doente, enten- do que ela constitui uma mensagem sincera do estado geral da pessoa. Existem especialistas, mas o mal é englobante, a doenga atinge o individuo na sua tota- lidade. A interrogagao e a intervengao nao devem, assim, ser dirigidas exclusi- vamente a um 6rgéo ou parte do corpo, mas ao indivfduo afectado, como um todo. Prova do que afirmo é que quando ouvimos alguém falar de uma doenga que teve, ouvimos queixas, descrigio de sintomas, alfvio por ja ter passado, mas raramente ouvimos referéncias ao que esse alguém aprendeu com a doenga que sofreu. Assim, da doenga fala-se, mas raramente se ouve o que ela tem para dizer, antes se da atengao a uma parte do problema, a um eco ou reflexo, do que se passa a um nivel mais profundo do que o da disfungao de um érgio. Assim, ao referir 0 pouco que o individuo aprende com a sua doenga nio me refiro ao conhecimento que tem do nome da doenga, da sua explicagao ao nivel organico ou psfquico, da forma de a vencer, mas & sua interpretag3o come um processo que acompanha, que corre ao mesmo tempo que 0 processo vivencial, Parece-me dbvio que estes dois processos tém muito em comum e que para se entender um, tem que se entender o outro (geralmente, entendendo um poder-se- A entender 0 outro e nao entendendo um, nao se entende 0 outro), Melhor do que © médico ou outro agente de cura, quem deve saber o que tem feito do seu processe vivencial € o doente. Mas isto nao Ihe é dito pela sociedade, a qual fornece ferramentas ao individuo para a sua pratica de categorizagao. Assim, quando a orientagio social nao Ihe d4 respostas adequadas as perguntas que faz, © individuo que vive a auséncia de sentido do mal que 0 acomete, recorre a quem esté investido socialmente de autoridade para Ihe fornecer algumas respos- tas a seu respeito — ainda que insatisfatérias. Ja referi como em sociedades africanas a experiéncia mérbida é maioritari- amente interpretada como maléfica, no entanto ela é af interpretada como sig- nificativa de um desequilibrio a nfvel do grupo. Na sociedade ocidental a doenga € frequentemente encarada como um absurdo, um acontecimento falho de sentido, um acaso infeliz circunscrito & esfera individual que exige uma intervengao social para que o grupo recupere o elemento atingido. Aquele vazio de sentido existencial da experiéncia patoldgica é preenchido — e tem o seu reverso — na absolutizagéo do saber médico (cfr. Laplantine, 1986 (1991): 103 € 104). Em Medicinas paralelas © pratica social 167 resumo, a directiva social na sociedade ocidental é de que a doenga s6 faz sentido quando traduzida em linguagem do saber médico experimental. Através da comparacio com sociedades nao ocidentais podemos ver como em muitas delas (a propésito de sociedades andinas equatoriais, cfr. Bernand, 1985) as doencas aparecem menos como entidades nosograficas precisas e mais como acontecimentos pessoais que revelam componentes bioldgicas e sociais (assumindo particular importancia, entre estas tiltimas, questdes de ordem ma- gico-religiosa). Parece-me defensdvel que numa sociedade camponesa, caracte- rizada por uma estreita rede de relac6es interpessoais, um forte peso da tradigfo € 0 respeito pelas normas colectivas, a doenga permite a cada individuo exprimir a sua singularidade (Ibidem: 205) Essa individualizagio do doente, comum em sociedades alégenas e em so- ciedades camponesas, nao € a atitude predominante na sociedade ocidental in- dustrializada. Aqui, 0 doente sofre um processo de despersonalizagéio, um iso- lamento do contexto social a que pertence e um internamento em instituigdes onde o tratamento diferenciado é mais determinado pela doenga de que se pa- dece do que pela individualidade do doente. A doenga e a morte tém espagos que Ihe so destinados e onde se mantém longe dos olhares de todos os que assim se tornam alhcios ao sofrimento de outrem. No ocidente industrializado a doenga € a morte sao brancas — tornam-se anénimas, nao tém o consolo da familia, dos amigos, dos vizinhos, e a Gnica presenga veste branco uniformizado Serd que a sinceridade da doenga nos fere? Julgo que sim. Alids, os doentes sao, frequentemente, pessoas que suscitam a nossa simpatia, nao sé porque a tradig&o crista educou a nossa sensibilidade ao sofrimento, mas também pela sua sinceridade. As suas fraquezas, defeitos, contradiges, adquirem uma expressio fisica, exterior, manifesta. Na doenga ha um corpo que se rebela. Contra muito do que Jhe é imposto: as violéncias, os excessos, as frustragdes, 0s ressentimen- tos, as cobardias. Quando o corpo nfo suporta a pressio, fala — o som é de tal forma desconcertante que 9 que o seu dono e proprietario pretende é superar rapidamente © sofrimento, combater a doenga e derroté-la. O que se perde no processo é uma consciéncia acrescida, um auto-conhecimento enriquecido. As- sim, dificilmente se poderd ganhar a satide?. A especializagaio € um dos sinais desta forma de pensar ocidental e desta qualidade do raciocfnio, que divide um problema em partes para estudar, sepa- rada e aprofundadamente, cada uma delas. Sabemos das conquistas da ciéncia, efectuadas através da aplicacao desta técnica de investigacao e anélise. No entanto, sabemos também dos perigos da arbitrariedade usada na parcelizacao do universo analisado, do exagerado reducionismo, da fragmentagao artificial — e, por vezes, artificiosa — do conhecimento. No que diz respeito 4 medicina, estou totalmente de acordo com Sousa Santos quando afirma que “a hiper-especiali- zac&o do saber médico transformou o doente numa quadricula sem sentido quan- do, de facto, nunca estamos doentes senio em geral” (1987: 46). A categoriza- do “psfquico”, “somatic”, “psicossomitico” espelha esta mesma especializa- ¢4o ¢ reflecte essa parcelizagao do individuo que é, de facto, um todo. 168 Luis Silva Pereira Essa atitude social impede a conciliagao das partes componentes do todo e inviabiliza a comunicagio do individuo consigo mesmo. E que, por paradoxal que parega, ha situagSes em que é saudavel estar doente — quero dizer que se 0 indiyidue no tem consciéncia das suas limitag6es fisicas, a doenca revela-se como um aviso, ma récusa em continuar nas condigdes impostas e um alerta para perigos mais graves se houver reincidéncia. Parece-me nao haver conselho médico que valha um bom auto-exame. Mas este nao é incentivado pela preponderante politica de encarar a doenga como mal a combater ¢ de essa cruzada estar entregue a especialistas que intervém no corpo doente ¢ 0 silenciam. O que é valorizado pela sociedade do cdlculo € a quantidade de riqueza que o individuo produz e nao a sua capacidade de se auto- conhecer. Assim, 0 que importa na doenga é fazé-la desaparecer, para que o individuo retome as suas actividades sociais. Veja-se o alarme que causa um jovem doente e a resignagao social relativamente a um velho reformado, nao produtivo e enfermo — a prépria velhice 6, frequentemente, encarada como uma categoria que, semelhantemente a de doenga, é englobada pelas de incapacidade ¢ nfio-produtividade Na sociedade ovidental os velhos — “idosos”, “anviaios”, sio palavras que vestem mal a hipocrisia — reformam-se. Este novo estado significa que aqueles cidadios deixaram de trabalhar, de produzir. Significa também que o seu trabalho deixou de ser avaliado como importante para a reprodugao social o qual, no en- tanto, continuam a desempenhar — guardando a meméria do grupo, orientando e acompanhando os mais pequenos, etc.. Os que nfo produzem adequadamente, os disfuncionais (criminosos, doentes, veihos, etc.) so objecto de um isolamento progressivo que teve inicio no século XVI mas que se desenvolvew de forma mais sistemética desde ha dois séculos e meio e que ainda n&o parou — pelo contrario, cresceu e tem somado novas categorias de individuos ao longo desse tempo (Foucault, 1964; Beauvoir, 1976), a tiltima das quais, destinada também ao iso- lamento em instituigdes. € a chamada “terceira idade”. Este isolamento, este confinamento daqueles individuos as paredes de uma instituicao, este principio de encerrar para corrigir, curar ou conservar elementos passivos. comegou por ser produto de directivas estatais, mas aquilo a que assistimos hoje é que, & excepgtio de instituigdes penais, aquelas instituigdes comegam a passar do sector publico ao sector privado, como sinais evidentes de estarmos perante um negécio lucrativo. A atitude social perante a doenga é, assim, semeihante & tomada perante a velhice: evitamento. Nos dois casos procura-se criar distanciamento relativa~ mente Aquilo que é encarado como degradagao bioldgica. Ora, ¢ aqui pretendo ligar esta questo & jé referida tendéncia para a especializagio dos saberes e a fragmentagio do conhecimento, 0 que se faz ao interpretar desse modo essas duas realidades — a doenga e a velhice — € tomar a parte pelo todo. E que a degradagao fisica ou psiquica pode ser uma das caracterfsticas mas nao 6, neces- sariamente, a mais importante que se nos apresenta naquelas duas realidades. Ao dar-Ihe destaque, ao conferir-the preponderancia numa anilise fragmentada, nao vemos tudo 0 que la esta esperando ser visto. Ao vermos parte, néo conhecemos. Medicinas paralelas e pratica social 169 Com esta atitude doentia de encarar a doenga, entre outras realidades tidas como desagradaveis, a sociedade ocidental, apesar dos meios tecnolégicos ao seu dispér, cria doengas a um ritmo muito mais rapido do que curas. Nao pretendo, em nenhum momento deste artigo, criticar na ciéncia médica o valor do seu trabalho ao longo de séculos ou o mérito de inimeros investiga- dores e agentes que no esmorecem na sua luta por diminuir o sofrimento do homem. As questées que levanto prendem-se, no com o desempenho dos pro- fissionais da ciéncia médica, mas com uma Orientagao do pensamento ocidental que determina, do meu ponto de vista, a inadaptago dos meios disponiveis ao objectivo que se pretende alcangar. Estou convicto de que a atitude social rela~ tivamente & doenga e o pouco que se faz para ajudar a desenvolver o auto- -conhecimento dos individuos nao cria seres humanos saudaveis. 3. Cura e itinerarios terapéuticos Assim como a doenga e a satide, também a cura é interpretada de diferentes formas, em diferentes culturas, e dentro de cada cultura ha diversas categoriza- goes e técnicas de curar, As estratégias de recurso a esses diferentes saberes e técnicas siio determi- nadas, na sociedade ocidental, pelo privilégio concedido ao discurso médico em detrimento dos outros (Foucault, 1971). O individuo, de acordo com o meio em que se move, com a informagao de que dispde e o grau de ansiedade que a doenga desencadeia, recorre a varios campos do saber médico e nao exclusiva- mente a ciéncia médica. O facto de o homem ser o nico animal com uma consciéncia reiterada e sistematica da sua prépria morte, determina uma forma de medo tenaz e durdvel (Delumeau, 1978: 22). Assim, o medo de a incapaci- dade se tornar definitiva ou de poder provocar a morte, leva os individuos a recorrer 208 meios que tenham ao seu dispér para evitar essas eventualidades*, Trés sistemas de pensamento e de acgio constituem as dreas do saber aos quais podem recorrer os doentes: a ciéncia, a religiao e o esoterismo. A primeira € 0 conhecimento experimental médico moderno, que considera como valido o que se vé, se doseia, se mede, com prevas apresentadas de progresso e eficacia a muitos niveis mas com uma concepgao preponderantemente materialista e fragmentaria do individuo, como ja foi referido. A religido recorre 4 via experiencial, reiterada socialmente através do tem- po, a que nds chamamos fé (v. Iturra, 1991), que é investida na entidade divina e na possibilidade da concessio da graca ao doente que reza, cré e se sacrifica, dedicando essas actividades e crengas a essa mesma divindade que tudo pode, inclusive curar 0 doente. Neste caso, pede-se o milagre que cura, e 0 amor supremo, 0 amor pela divindade, é recompensado pelo supremo amor da divin- dade que concede a graga de sarar quem a ela recorre. O esoterismo caracteriza-se como 0 modo de pensar e de sentir comum aos visionarios, a Varios tipos de curadores— acupunctores, mediuns, magos, feiti- 170 Luis Silva Pereira ceiros, etc. — e a outros agentes de um saber que se revela, ainda que em diferentes graus, sistemdtico e ordenado de acordo com instrumentos teéricos capazes de interpretar o mundo (gnose) ¢ de agir sobre ele de acordo com regras ditadas aos iniciados e defendidas dos olhares profanos (hermetismo) (Silva Pereira, 1993: 13). Os métodos esotéricos interessam-se pelo doente, mais do que pela doenga, considerando o individuo na sua totalidade fisica, espiritual, afectiva © integrado no meio césmico O pressuposto do racionalismo, fundamento filoséfico e epistemoldgico da ciéncia médica moderna, € reconhecer unicamente a azo como fonte do conhe- cimento. A Idgica da descoberta — no caso vertente: do diagnéstico — baseia- se na elaboracdo de uma hipétese prévia, na sua verificacdo através da experi- mentagao, com exercfcio de uma técnica de investigagao baseada nos encadea- mentos sucessivos de causa e efeito, de acordo com um sistema Idgico que vai do particular ao geral. Os dogmas da Igreja Catélica, as verdades incontestaveis de outras religiGes minoritarias presentes no ocidente, constituem a base sobre a qual se estabelece a f€ como via exclusiva ou complementar de cura do doente. A fé, a esperanga na gxaga divina, o sacrificio, a prece, a entrega total aos designios superiores, sfio aspectos de um dos caminhos da cura na sociedade ocidental, particularmen- te o da religiao catélica. Digamos, de forma mais simples, que um crente catdlico que professe as trés virtudes teologais — f&, esperanga e caridade — pode aspirar a ser agraciado pela divindade. O esoterismo procura o divino no manifesto e sustenta uma interpretagao integradora do mundo e do homem, afirmando a superioridade da intuic¢ao sobre a inteligéncia, j4 que aquela pode captar o subtil. © que o pensamento esotérico (do grego “esoterik6s", i.¢., interior) procura € 0 interior do individuo para tocar, af, 0 mistério e alcangar, a partir desse centro, as razdes tltimas da existéncia (Silva Pereira, ibidem: 25). Para entender 0 que se passa com o doente, € essen- cial, para as medicinas esotéricas, conhecer a natureza integral do ser humano, id que € ele que traz a doenga ¢ o tratamento deve ser adaptado A unidade e & totalidade do indivfduo. ‘As medicinas esotéricas, designacio coincidente com a de medicinas pasa- lelas pela qual optei por ser mais conhecida e aceite — sem os preconceitos que encaram o esoterismo como um amontoado de superstigdes obscuras, retrogradas e doentias (Michaud, 1976: 65) —, caracterizam-se pela observancia de trés leis fundamentais que esto na sua base: a da analogia, a do ritmo e a do equilibrio ternario (Ibidem: 29). De acordo com a primeira (expressa no principio esta- belecido por Hermes Trimegisto, “o que esta em cima € como o que esta em baixo”), 0 estabelecimento de uma relagiio de semelhanga qualitativa entre dois elementos permite que conhecendo a natureza de um deles se possa concluir a natureza do outto — 0 que significa que sendo o homem parte do universo, tudo © que existe neste existe naquele, j4 que microcosmo ¢ macrocosmo se regem pelas mesmas leis basicas e 0 que acontece num teré inevitavelmente reflexos no outro. Conhecer-nos a nés prdprios, de acordo com a directiva socrdtica, Medicinas paralelas ¢ pratica social 171 equivalerd, assim, a conhecer 0 universo (e vice-versa, de acordo com a referida légica da analogia). Estas antigas orientaces esotéricas encontram semelhangas num novo tipo de saber cientifico, mais aberto, mais integrador e interdisciplinar, patente na obra de Kuhn (1962) e de Sousa Santos (1987), 0 qual, de acordo com © contexto referido, defende que todo o conhecimento € auto-conhecimento. Segundo este autor, estamos perante uma inflexdo no modo de encarar 0 conhe- cimento humano, & beira de uma ruptura que traré consigo o estabelecimento de um novo paradigma A lei do ritmo, de acordo com a previamente esclarecida lei da ana- logia, defende que a vida humana esta enraizada nos ritmos vitais pelos quais se ligam 0 microcosmo e 0 macrocosmo que o engendrou (Michaud, 1976: 31). O ritmo, a vibragio, a ciclicidade, sao fontes de reflexdo para a acgao das medicinas esotéricas, numa aproximagao constante entre homem e universo. De acordo com a terceira lei, a do terndrio, duas coisas opostas na aparéncia sdo apenas graus extremos de uma nica e mesma coisa e a unido destas duas coisas extremas estabelece um certo equilfbrio (Ibidem: 34). Alguns exemplos: 0s trés reinos da natureza, as trés etapas do tempo, as trés etapas da vida, os trés estados da matéria, o positivo ¢ 0 negative separados pelo neutro. etc. Aquele autor considera como exemplo mais notavel desta lei o triplo aspecto sob o qual tudo se apresenta no universo: a matéria, a energia, 0 pensamento, ou, mais exactamente, a matéria, a energia, a informagao (Ibidem: 35). No fundo, as duas tiltimas Jeis podem caber na primeira, a essencial, a da analogia, declarando a teoria esotérica que, prova e consequéncia das analogias e correspondéncias, € 0 facto de as partes agirem umas sobre as outras pelas afinidades — assim funciona a magia quando age sobre um elemento A para obter um elemento B em correspondéncia com o elemento A; assim funcionam a acupunctura e a reflexologia quando para curar um ponto A activam um ponto B em correspondéncia com aquele (Silva Pereira, 1993: 25). Assim, a diferenca entre a ldgica cientitica e a l6gica esotérica revela-se especialmente marcada ao nivel das regras ow princfpios: a primeira funda-se sobre o principio da nao contradigéo, enquanto que a segunda se funda sobre o principio da resolugao das oposigées, resultado final da relacdo de analogia existente entre os dois elemen- tos comparados — sendo na analogia entre 0 cosmo e o homem que reside a lei essencial do esoterismo médico, como vimos. A [6gica cientifica utiliza, sobre- tudo. 0 principio da causalidade, enquanto que a légica esotérica utiliza, priori- tariamente, o principio da interpretaco (Riffard, 1990: 381). As estratégias sociais de cura t8m como opgio estes trés campos do conhe- cimento, os quais podem ser utilizados quer cada um deles exclusivamente, quer dois ou mais cumulativamente, Como jé foi dito. isso depende do grau de sa- tisfagio que 0 individuo tenha relativamente ao discurso que € 0 privilegiado na sociedade ocidental (i.e., 0 produzido pela ciéncia médica), 0 grau de informagao de que o doente dispde ¢ o grau de angistia que a doenca lhe provoca. E assim que os itinerérios terapéuticos assumem varias formas, direccOes € inflexdes ao longo do processo de cura. Cumpre esclarecer que, por um lado, ha 172 Luis Silva Pereira perguntas que o doente se faz a si mesmo que nao podem ser todas respondidas por uma s6 dessas areas do saber e, por outro lado, ha em todas estas Areas provas irrefutdveis de cura. Este ultimo facto revela, do meu ponto de vista, dois elementos fundamentais do processo de cura: a vontade do doente de sarar ¢ a convicgao de ter escothido a via adequada de cura. Ajudar a criar aquela yontade e contribuir para a formagao daquela convicgdo so acgdes levadas a cabo, ainda que assumindo diferentes formas, pelos agentes curadores das trés dreas referi- das, j4 que estao conscientes do poder curativo que aquelas atitudes encerram. No entanto, o nfvel de comunicagao estabelecido com 0 doente é muito varidvel, sendo notério que de uma boa relagao, do bom entendimento entre curador e doente, da clareza na emissio e na recep¢ao da mensagem, dependem a correcta aplicagio de uma terapéutica e 0 éxito do processo curativo. Apreciacées finais Na minha forma de ver, uma doenca que desaparece pode voltar, inclusive sob outras roupagens, tanto mais quanto tenha sido mal resolvida a nivel pessoal e/ou a nivel da intervengdo social que o doente sofreu. Julgo que o éxito da cura consiste na aprendizagem que 0 doente faz de si proprio ¢ da vida, ao longo do processo de sofrimento por que passou. A ideia de fazer frente, a todo 0 custo, a uma doenga, nfo deixa campo ao doente para se aperceber de que tem pela frente e de que modo esse processo se prende com o seu passado viven- cial, Por exemplo, 0 acompanhamento de um psicdlogo junto de um individuo que padece de doenca organica, como algumas sdo designadas, nao pritica comum, © que revela a ja referida fragmentago do conhecimento € a pouca atengao dada A fungdo pedagégica que a doenga pode ter sobre o individuo que a sofre. Assim, a doenga é encarada como um mal que se sofre sem sentido aparente e isso mesmo se pode notar quando é traduzido numa linguagem técnica incom- preensivel para a maior parte da populacéio assistida. Pouco haverd de mais pessoal e incomunicdvel que uma dor fisica ou um desgosto profundo e mais impessoal do que a sua tradugdo em termos nosoldgicos ow classificatérios. Entre estes pdlos constroem-se varios sistemas explicativos, com uma lingua- gem que resulta de um esforco interpretativo e classificatéria da doenga mas, quer na teoria quer na pratica, o grande esquecido é o doente que nao entende, que nao se satisfaz, que no sabe, verdadeiramente, o que 6 que a sua doenga ‘exprime a seu respeito Ao evitar a interpretagao do sintoma, desterra-se tanto o sintoma como a doenca para o campo da incongruéncia (Dethlefsen e Dahlke, 1983: 16). A atitude predominante da sociedade ocidental perante a doenga separa o que é inseparavel — doenga e doente —, pelo fascfnio que sobre cla exercem os sintomas, e nao separa 0 que deve ser separado — sintomas e doenga —, i.e., forma e contetido. SAo canalizados recursos tecnolégicos para tratar érgdos partes do corpo, descuidando-se o individuo que esté doente (Ibidem: 17). Medicinas paralelas e pratica social 173 Julgo que esta atitude tem nuances diferentes, nas diferentes areas que re- ferimos e mesmo dentro de cada uma delas, pois ha elementos que revelam mudangas na mentalidade tradicional, uma preocupagdo crescente com uma visao mais integrada e globalizante do individuo e uma maior interdisciplinaridade no estudo de caso. Penso que a doenga indica que a nivel da consciéncia do individuo existe um desequilfbrio, uma desarmonia, e que este facto se manifesta ffsica e/ou psiquicamente sob a forma de sintoma. Este tiltimo € um aviso e um sinal que importa ouvir e interpretar. A vontade de melhorar a vida das pessoas passa, em grande medida, pelos incentivos que a todos os niveis da acgdo social se possam desenvolver para que elas sejam mais capazes de auto-conhecimento. A doenga deve, assim, ser encarada como um fenémeno susceptfvel de criar comunicagao e nunca como uma néo-comunicagiio, uma disfungao, uma catego- ria negativa. Em sociedades como a nossa, que nao privilegiam a unidade existente atrés da polaridade, a doenga é encarada sob aquele ultimo ponto de vista. Parece-me fundamental alterar esta atitude, através do recurso a outras modali- dades de sistema de pensamento e de interpretagio da doenga — exemplo desta acgio: as medicinas orientais afirmam-se de modo crescente no ocidente —, bem como a uma revisdo dos processos utilizados, acompanhada de um esforgo de compreensio que deve envolver médicos e outros agentes da satide, mas também profissionais da area das ciéncias sociais e, sobretudo. a populagao assistida que deve ser ouvida nas ideias que expressa Acerca das nogées de doenga e satide. A experiéncia do C.A.P. catalao, referida no inicio deste artigo, € um entre varios exemplos ilustrativos de acgées interdisciplinares que esto a ter Jugar a nivel europeu. Estas acgGes so reveladoras de uma alteragao sig- nificativa no modo de pensar a assisténcia prestada as populagdes e de uma vontade de inverter 0 sentido dos acontecimentos no dominio da satide Notas 1 V. a Biblia, no que respeita 2 ligagdo pecado/doenga, v. g. Génesis Ill, Levitico XX1 € Deuteronémio XXIII ¢ XXVIUL 2.V. Metafisica, ¢ como a “demonstragdo” aristotél essa existéncia ao principio de no contradicio. 3 Sobre este tema: LOWEN, 1975 e 1981; REICH, 1936; ROGERS, 1951 ¢ 1961 4 Sobre atitudes relativamente a doenga e sua comextualizacdo hist6rica na sociedade ocidental, v. LE GOFF, 1985; sobre a evolugio das atitudes do homem ocidental perante a motte, v. ARIES, 1975 ¢ 1977. a da existéncia do Deus imutavel liga 174 Luis Silva Pereira Bibliografia ACKERNECHT, Erwin H, (1942), “Problems of Primitive Medecine”, Bull. of the History of Medecine, XI: 503 2 521 ACKERNECHT. Eswin H, (1942), “Primitive Medecine and Cultural Pattern”, Bull. of the History of Medecine, XII: 545 a S74. ACKERNECHT, Erwin H, (1971) (1985). Medicina y Antropologia Social, Madrid, Akal. ARIES, Philippe, (1975) (1989), Sobre a Histéria da Morte no Ocidente desde a Idade ‘Média, Lisboa, Teorema. ARIES, Philippe (1977), LHomme devant fa Mort, Paris, Bd, du Seuil. 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