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Eu era muda e s na rocha de granito1

Eu era muda e s na rocha de granito. Eu era muda. Voc era a pedra de granito. Voc um
carma, uma revelao ou simplesmente feito para me mostrar que sentimento no pra
todos, para que eu aprendesse que existe mais do que um corao nesta vida, que nem tudo
gira em torno de amar? Seria preciso que eu acreditasse em providncia divina. Seria preciso
que eu acreditasse em destino. Seria preciso muito mais do que eu ser uma mulher de vida
labutada, classe mdia baixa, vivendo base de caf na veia pra dar conta de existir somente.
Ento, o que voc na minha vida? Mandei poesia de Neruda, voc me respondeu angstias.
As lgrimas caram. Viraram dor de cabea, tenso no pescoo, peso nos ombros. Precisa disso
tudo? - eu necessito perguntar a mim mesma. E necessito responder-me, pois falo s, grito,
saio rasgando roupas imaginrias, tacando pedras imaginrias e acabo exausta, fechando os
olhos porque daqui a pouco so cinco horas e precisarei levantar.
O mundo precisa de mim. Precisa de mim muito cedo e ainda sonolenta, com um pincel na
mo. Eu salvadora-da-ptria-de-ningum-nem-a-mim-mesma-me-salvei...O mundo precisa de
mim? Grito amor (imaginariamente). Sai te amo, bem baixinho, quase mudo.
Completamente s. Um resmungo do outro lado o que me resta. Mulher pra se doar
inteira, dedicar sua vida, se esgotar, se esfalfar. Homem assim mesmo. Uma pinoia! No
posso querer mais? No me dado o direito? No posso ouvir um te amo pra caramba! sem
soar falso, sem me perturbar com um Por que est me dizendo isso? No normal que o
diga!? O mundo dos amantes e amados (?) feito de pinoias estabelecidas, pinoias aceitas,
pinoias no questionadas. Eu sou a rainha das pinoias ambulantes. Quero que todas se
explodam! Vo procurar o que fazer, suas pinoias! Deixem-me viver leve, luminosa, amada,
podendo dizer versos de amor que sejam meus, podendo ouvir msicas que amo, podendo
amar as msicas mais do que a voc, que eu j no sei quem , o que quer, pra onde vai.
Pronto. No quero saber. Ta, no quero mais saber de nada que seja angstia, expectativa,
vontades criadas, gestadas, paridas e jogadas no vento.

Eu era muda e s na rocha de granito. Era, segundo me ensinou a professora de portugus,


verbo no passado simples. Coisa pretrita. Coisa acontecida e finda. Peguei a solido, quebrei a
pedra, me cortei. Mas ainda vivo.
Tomei mais um gole de caf. Respirei e sa danando por a....

Referncia ao conto Eu era mudo e s, de Lygia Fagundes Telles.

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