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Revista da Faculdade de Leas HISTORIA orto, II Série, vl. 2 2001, pp, 013-021 Isabel Barca * Educagao Histdrica: uma nova drea de investigacao * RES UM O Os anos 70 do século XX marcam 0 inicio de uma época de grande intensidade in- | vestigativa em relag3o 4 cognigdo histérica. Paises como a Inglaterra, E.U.A ou Canada comegam a romper com a aceitagdo dos caminhos tradicionais do Ensino da | Histéria e procuram aduzir novos elementos a forma como os alunos assumem a compreensio da Histéria e, sobretudo, & forma como constroem o seu conhecimen- to. Procura-se aqui tracar ndo s6 0 desenvolvimento dessas perspectivas como referir | 05 contributos que outros paises, como Portugal e a Espanhe, tém trazido para o campo dessa érea de investigacéo. © Ensino da Historia, enquanto disciplina de charneira para a promogio da educagao historica, assume-se hoje com uma fundamentagao cientifica propria. Ancorada em areas de conhecimento como a Epistemologia da Hist6ria e das Ciéncias Sociais, a Psicologia Cognitiva e a Histéria, constitui-se como teoria e aplicagao 4 educacao de princfpios decor- rentes da cognicao histérica. 1, COGNIGAO HISTORICA: INVESTIGAGAO INTERNACIONAL Desde os anos 70 do séc. XX, a investigacdo em cognicao histérica tem-se desenvolvi- do com pujanga em varios paises, sobretudo em Inglaterra, Estados Unidos e Canada. Outros paises como Portugal ¢ a Espanha seguem actualmente a mesma esteita. Neste campo de pesquisa, os investigadores (com formagao em Hist6ria, Filosofia da Histéria ou Psicologia cognitiva) encetaram a tarefa sistemética de estudar os principios e estratégias da aprendizagem em Histéria, de criangas, jovens e adultos. Como pressuposto te6rico, partem da natureza do conhecimento hist6rico e, como pressuposto metodolégico, empreendem a anilise de ideias que os sujeitos manifestam em e acerca da Hist6ria, através de tarefas con- cretas. Distanciam-se assim de um critério generalista de categorizacao do pensamento em niveis abstractos ou concretos, que foi estabelecido com os contributos de Piaget e Bloom tendo por base as caracteristicas das ciéncias ‘exactas’ como a Fisica e a Matematica. Estes pressupostos generalistas conduziram alguns autores a concluirem que a Histéria era de- masiado complexa para ser estudada por alunos com idades mentais inferiores a 16 anos. ‘Tais afirmaées forneceram, nos anos 70 ¢ 80, argumentos contra a incluséo da Histéria no curriculo de escolaridade obrigatoria, enquanto disciplina auténoma, substituindo-a por uma rea integrada de Estudos Sociais ou Ciéncias Sociais (como ainda actualmente acon- * Universidade do Minho, Professora Associada. ** Comunicagio apresentada no Ciclo de Col6quios “Estado da Histéria’, realizado no Anfiteatro Nobre da Faculdade de Letras do Porto, a 4 de Abril de 2001. 4 14} saver parca tece em Espanha e nos Estados Unidos). Sob influéncia desta estereotipada concepgéo de pensamento concreto versus pensamento abstracto, entre alguns professores de Historia ainda hoje persiste a conviccio de que alguns temas histéricos (como a Pré- “Historia ou a Idade Média) sao de dificil compreensao para os alunos mais novos porque sao muito abstractos. Esta assun¢do nao tem em conta que qualquer tema, incluindo os atrds referidos, podem ser abordados de inimeras maneiras. Com pesquisas sistematicas sobre o pensamento de alunos, professores e historia- dores, os especialistas em cognigao histérica tém chegado a conclusdes que a formacao em Ensino da Historia e as praticas dai decorrentes nado podem ignorar. Estas pesquisas distan- ciam-se de uma ideia de aprender Histéria em quantidade, baseada simplesmente numa compreensao mecanicista de nogdes estereotipadas (que, para muitos, se confunde com ‘pensamento abstracto’). Jé Thompson, em 1972, chamava a atengdo para a necessidade de se encarar a aprendizagem da Histéria numa perspectiva qualitativa, respeitando a esséncia do saber histérico: O critério para a progressio em Histéria nao deveria ser o da quantidade de in- formagio factual adquirida, mas 0 do progresso alcancado a nivel de pensamento histérico. (p. 34) Fazendo eco desta preocupagao, Dickinson & Lee publicaram, em 1978, o estudo transversal “Understanding and research’, envolvendo alunos dos 12 aos 18 anos, ¢ que cons- tituiu um marco de investigagao nesta Area. Interrogando-se sobre 0 enquadramento teéri- co que deveria presidir & investigacao do pensamento histrico, questionaram a logica no histérica que serviu de base a pesquisas anteriores, bem como a nocdo piagetiana de inva- riancia de estidios de desenvolvimento, pelo menos quando aplicada ao processo de com- preensao hist6rica. A partir da recolha de dados no terreno, Peter Lee criou um modelo de Progresso de ideias em Historia relacionado com a natureza da explicacao histérica, e que foi aprofundado em “Making Sense of History” (1984), um segundo estudo transversal com alunos dos 8 aos 18 anos, em torno das nogdes de empatia e imaginagao histérica, funda- mentais para a explicacao histérica. Simultaneamente, Shemilt (1984) apresentou uma ca- tegorizagao de ideias dos adolescentes sobre empatia histérica em cinco niveis. Esta catego- riza¢ao parece equivaler em termos globais aos niveis propostos por Ashby & Lee em 1987. Podemos estabelecer um paralelo entre a categorizacao das ideias dos alunos sobre com. preensio histérica, proposta pelos dois estudos: Ashby & Lee Shemilt 1) “O passado opaco” “Ossos secos e sentimento de superioridade” 2) “Esterestipos generalizados” “Consciéncia de uma humanidade partilhada” 3) “Empatia derivada do quotidiano” _“Empatia do quotidiano aplicada a Historia” 4) “Empatia hist6rica restrita” “Empatia histérica” 5) “Empatia hist6rica contextualizada” _“Metodologia empética” Como Ashby & Lee (ibid., p. 66) salientaram: “Ha claros sinais de convergéncia entre as principais tendéncias da investigacao nesta rea, o que pode justificar um certo grau de confianga na validade destes comentarios provisérios e de optimismo quanto a resultados de pesquisa no futuro” | 15] eoucacao wistORICA: UMA NOVA AREA DE INVESTIGAGAO Este modelo de andlise indicia uma progressao de ideias das criangas e dos adolescentes nao propriamente dependente da idade. Os investigadores observaram nos alunos uma pro- gressao irregular, parecendo desenvolver-se gradualmente mas com oscilagoes, desde os niveis mais simples até aos mais sofisticados. Os resultados sugerem que os alunos apresen- tam desde imagens caéticas ou fragmentadas do passado, considerando as acces. dos agentes historicos como ininteligiveis', até nogées hist6ricas mais ou menos elaboradas, com niveis in- termédios expressando ideias de uma perspectiva de senso comum (umas estereotipadas, outras com base no quotidiano real’). Recentemente, Ashby, Lee & Dickinson conduziram 0 Projecto CHATA (Concepts of History and Teaching Approaches) através do qual estudaram as ideias de alunos dos 6 aos 14 anos de idade. Os seus trabalhos sobre ideias acerca de compreensio, explicagao, evidén- cia (interpretagao de fontes) e variancia da narrativa em Historia encontram-se profusa- mente publicados (cf., por exemplo, Lee, 2001) e citados praticamente por todos os investi- gadores da rea. Também varios investigadores, nos Estados Unidos e Canada, tem dedicado a sua pesquisa a trazer a luz os critérios epistemolégicos que estdo na base do raciocinio histo- rico, quer entre jovens estudantes quer entre historiadores e pais de alunos. Estes investi- gadores tém realgado a natureza situada da construgao do conhecimento historico (Barton, 2001; Barton & Levstick, 2001, entre outros). Conceitos de significancia hist6rica, mudanga, evidéncia e narrativa tém sido centrais nestas pesquisas. A partir delas, conclui-se que as criangas tém j4 um conjunto de ideias relacionadas com a Histéria, quando chegam & escola. O meio familiar, a comunidade local, os media, especialmente a tv, constituem fontes importantes para o conhecimento histérico dos jovens, que a escola nao deve igno- rar nem menosprezat. £ a partir da detec¢ao destas ideias — que se manifestam ao nivel do senso comum, e de forma muitas vezes fragmentada e desorganizada ~ que 0 professor poderd contribuir para as modificar e tornar mais elaboradas. Em Espanha, boa parte deste tipo de pesquisa tem focalizado as concepgoes dos alunos a nivel dos conceitos especificos da Hist6ria, como por exemplo, revolucao ou camponés (cf. Carretero e Voss, 1994). A exploracao de ideias sobre a Historia, na sua acepgao episte- molégica, foi empreendida por Cercadillo (2000), que desenvolveu um estudo comparativo entre alunos espanhdis e ingleses quanto a significancia de um determinado acontecimento histérico (a Armada invencivel). 2. COGNIGAO HISTORICA: INVESTIGACAO EM PORTUGAL Numa abordagem que dé énfase & natureza situada e ao contexto social da aprendiza- gem, nao faz sentido a importacao automatica de principios cognitivos para a realidade portuguesa. O desafio principal que se coloca é: como pensam em Historia os alunos por- tugueses? Por isso, também em Portugal se esté a emprender a pesquisa sistematica das ideias historicas de alunos e professores. As ideias de alunos do ensino bisico e secundario (do 7° a0 11.° anos de escolaridade) foram analisadas quanto a nogao de provisoriedade da expli * Uma frase tipica deste nivel é a exclamacao: “Mas que burros eles eram. Se fosse comigo, nada disto acontecia!’ 2 Q presentismo, que consiste em imaginar as acgdes dos agentes historicos & luz das experiéncias do presente, consti- tui um indicio deste nivel de pensamento historico.

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