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ARLINDO MACHADO | CAIOMAGRI _ MARCELO MASAGAO Arlindo Machado ‘Caio Magri Marcelo Masagiao * Odireito de Comunicar — Expresso, infarmacao e liberdade — Desmond Fisher » Signagem da Televisio — Décio Pignatari Colegao Primeiros Passos *® O que é Comunicacdo — Juan £. D. Bordenave » O que é Contra Cultura — Carlos A. M. Pereira * O que é Desobediéncia Civil — Evaldo Vieira + Oque é Ideologia — Marifena Chaui * O que é Industria Cultural — Teixeira Coelho + O que é Jornalismo — C/évis Rossi « O que é Propaganda Ideclégica — Nelson Jahr Garcia Radios livres A reforma agraria no ar Prefacio: Felix Guattari ~|brasiliense s oo 1 o Copyright © dos Autores. Capa: Waldemar Zaidler Revisdo: Rosana N. Morales Newton T. L. Sodré Editora Brasiliense S.A. R. General Jardim, 160 01223 — S40 Paulo — SP Fone (011) 231-1422 Indice Prefacio— Felix Guattari ..........00. 005: 9 Liberdade para as ondas 15 Por uma cooperativa dos radio-amantes 22 Manifesto por sonoridades livres (Radio Xil 24 Canais para a resposta da audiéncia ......... 26 Um depoimento: Cinderela ................ 36 A batalha dos ares do sul (manifesto da Radio EROLOM Bavaria neta aaa 48 Primeira intervencdo da Radio Xilik . 50 Um pouco de histéria: as radios livres eirpeias 59 Um depoimento: o Sombra ..... 79 1? manifesto da Radio ltaca . 83 2° manifesto da Radio ltaca . 84 3° manifesto da Radioltaca . 86 Duas ou trés coisas sobre Alice . 87 : as radios livres ‘latino- Um pouco de histéri americanas ... 1? manifesto da Radio Trip A liberdade esta no ar (Radio Livre- Grandad) 117 O consciente e o inconsciente do radio .. » E19, Manifesto da Radio Tereza .. 123 Terceira intervencio da Radio Xilik esters) 125 Constitui¢ao da Radio Patrulha de Ermelino PIREAT HCO) Seren cciaretein ero mie ers ames Uma televisdo para mil vozes . . Um depoimento: Luis Algarra (TV-Livre de So- GCL Me ied le WOM xcrpasesrareculeroesocslasy Pequena cronologia da radio alternativa ..... Apéndice 1: Esquema técnico para um trans- missor FM — Geraldo Itagiba de Andrade Apéndice 2: O Cédigo Brasileiro de Telecomu- nicagdes 3 Bibliografia sumaria 132 136 143 150 154 172 180 “Todo homem tem direito a liberdade de opi- nido e expressdo. Esse direito inclui a liber- dade de receber e transmitir informagées e idéias por quaisquer meios, sem interferén- cias ¢ independentemente de fronteiras.” Artigo XIX da Declaracao dos Direitos do Homem : A Luciana, que terd 17 anos no ano 2000. A Lilia, que tera 15 anos no ano 2000. Auma talvez Nina ou um quiga Marco, que teré 14 anos no ano 2000. Prefacio As radios livres em dirego a uma era pés-midia O fendmeno das radios livres s6 toma seu sen- tido verdadeiro se 0 recolocamos no contexto das lu- tas de emancipacao materiais e subjetivas. Na Italia ena Franca, ele foi um dos iltimos florées das re- volucées moleculares que se sucederam aos movi- mentos de contestacao dos anos 60. Nos iiltimos 60 anos, a situacao européia foi submetida a um conge- lamento social, politico e cultural, para ndo dizer a uma onda de glaciagao. Isso tem a ver com 0 esforco desse continente em manter seu lugar entre as gran- des poténcias econémicas e militares que dele se dis- tanciam cada vez mais. As diferentes categorias so- ciais que 0 compéem se apertam friorentamente umas nas outras, agarrando-se ds suas ‘‘conquistas” e ds suas ilusdes. S6 uma minoria de marginais con- segue se manter fora do consenso reaciondrio. Nes- sas condigées, a maior parte dos grandes movimen- tos de emancipacao se encontram abatidos ou joga- dos para escanteio. A situagao é muito diferente no continente la- tino-americano e em particular no Brasil, onde cen- 10 A. MACHADO/C, MAGRI/M. MASAGAO, tenas de milhdes de pessoas se encontram margina- lizadas em relagdo a economia dominante. E como nada autoriza esperar que elas possam vir a se inte- &rar docemenite em uma sociedade de tipo norte- americano, europeu ou japonés, é possivel supor que elas 56 poderdao afirmar seu direito a existéncia atra- vés da reinvencdo de novas formas de luta e de ex- pressao. Novas: porque, manifestamente, nado se pode mais dar credibilidade aos métodos politicos obtusos e corporativos dos velhos partidos e sindica- tos de esquerda. Sem divida, as lutas classicas no campo do trabalho e na arena politica tradicional continuaréo a desempenhar um papel importante para o estabelecimento de relagées de forca globais com as classes conservadoras, mas elas ndo poderao mais dar um contetido verdadeiramente emancipa- dor a essas lutas se as diferentes composicoes da es- querda permanecerem impregnadas de valores con- servadores. A intervencdo de uma inteligéncia alter- nativa, de préticas sociais inovadoras,como é o caso das radios livres, parece portanto indispensdvel a sade de centenas de milhées de explorados desse continente. Essa recusa parcial das prdticas da es- querda tradicional n@o impede de maneira nenhu- ma que se estabelega com ela aliancas — por exem- plo, nessa questao das radios livres. Nao implica, portanto, um fechamento sectdrio sobre os gruptis- culos de extrema-esquerda que, de maneira mais ve- lada, séo também incapazes, na maioria das vezes, de entender as profundas mutacées que se operam na sociedade contemporanea. Novas e mais amplas aliancas podem ser criadas para reinventar novas RADIOS LIVRES aT formas de vida — talvez de sobrevivéncia — e de luta. Penso, por exemplo, em certos setores da Igre- jaligados a teologia da libertacao. As primeiras radios livres do Brasil foram aco- lhidas com uma cerita reserva. Alguns recearam que sua apari¢do pudesse servir de pretexto para uma repressao violenta; outros s6 conseguiram ver nelas um replay dos movimentos dos anos 60. E bom que esteja claro, antes de mais nada, que 0 movimento das radios livres pertence justamente aqueles que o promovem, isto é, potencialmente, a todos aqueles —e eles séo uma legido — que sabem que nao po- deréo jamais se exprimir de maneira conveniente nas midias oficiais. Nao se trata, portanto, de um movimento esquerdista, mesmo se sao os esquerdis- tas os primeiros a se engajar corajosamente nessa perspectiva. Isso quer dizer, no meu modo de ver, que os seus atuais representantes deveriam evitar todo sectarismo e toda rigidez. Parece-me evidente que em uma etapa ou outra do processo atual deve- rao ser estabelecidas negociacGes com as autorida- des. Parece-me absurdo e irresponsdvel proclamar que as negociagées sobre as condigées de exercicio das novas midias serao recusadas por principio. A questdo toda esta em fazer essas negociagdes nas melhores relacées de forca possivets para os movi- mentos de emancipacao dos jovens, das mulheres, dos negros, dos trabalhadores, das minorias sexuais, dos ecologistas, dos pacifistas etc. As rddios livres nado nasceram de um fantasma da belle époque dos meta-oitos, como escreveu um Jjornalista da Folha de $8. Paulo. Trata-se, pelo con- 12 A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO trario, de um movimento que se instaurou, nos anos 70, como reagdo a uma certa utopia abstrata dos anos 60. As radios livres representam, antes de qual- quer outra coisa, uma utopia concreta, suscetivel de a@judar os movimentos de emancipacao desses paises asereinventarem. Trata-se de um Instrumento de ex- Perimentacao de novas modalidades de democracia, uma democracia que Seja capaz nao apenas de tole- rar a expressao das singularidades sociais e Indivi- duais, mas também de encorajar sua expressao, de thes dar a devida Importancia no campo social glo- bal. Isso quer dizer que as radios livres nao séo nada em si mesmas. Elas sé tomam seu Sentido coma componentes de agenciamentos coletivos de expres- sdo de amplitude mais ou menos grande. Elas deve- rdo se contentar em cobrir Pequenos territérios; po- derdo igualmente pretender entrar em concorréncia, através de redes, com as &randes midias: a questdo fica aberta. O que, no meu modo de ver, a resolveré é a evolucao das novas tecnologias. As rédios livres, @ amanha as televisées livres, séo apenas uma pe- quena parte do iceberg das revolugées mididticas que as novas tecnologias da informitica nos Prepa- ram. Amanhd, os bancos de dados e a@ cibernética colocarao em nossas maos meios de expressdo e de concerta¢do por enquanto inimagindveis. Basta que esses meios ndo sejam sistematicamente recupera- dos pelos produtores de subjetividade capitalista, ou Seja, as midias “globais"’, os manipuladores de opi- nido, os detentores do star system politico. Trata-se, em suma, de preparar a entrada dos movimentos de emancipacao numa era pds-midia, que acelerar4 a RADIOS LIVRES reapropriagado coletiva nao apenas dos meios de tra- balho mas também dos meios de produgao subje- tivos. Felix Guattari Liberdade para as ondas D. repente, comegam a florescer, em varios pontos do pais, discussdes sobre a democratizacao dos meios de radiodifusaio. A emergéncia de radios livres em Sao Paulo e Sorocaba nao veio sendo atigar labaredas numa fogueira que ja fazia as primeiras brasas. Daqui para a frente, a tendéncia é aprofun- dar-se cada vez mais o questionamento da atual es- trutura de poder em radio e TV. Mas com o pais ainda mal-saido de duas décadas de afasia, estamos engatinhando muito devagar na diregao de um equa- cionamento certeiro do problema. A verdade é que partidos politicos e entidades representativas, tio elogiientes no manejo da quest@o econdmica, mos- tram-se perplexos quando se trata de apontar alter- nativas para aquele que atualmente é o mais pode- roso aparelho de aculturagao da sociedade. O que propdem as velhas instituigdes para do- mar esse poder? Fala-se numa nova legislagao para concessdes de canais de radio e TV, que transfira as decisées para um oreo de constituigdo democratica. Nao se cogita, entretanto, lancar qualquer suspeita sobre a autoridade do Estado para distribuir as fai- 16 A. MACHADO/C, MAGRI/M. MASAGAO xas de onda. O Estado permanece encarado como proprietario legitimo do espaco eletromagnético, donde decorre que o apadrinhamento continua sen- do a conseqiéncia fatal do mecanismo de conces- sdes. Sejam quais forem os critérios de distribuigdo, a concessiio equivale, nesse sistema, a uma outorga de privilégios, de forma que qualquer alteracao da estrutura de poder a nivel das midias de teledifu- sao significara apenas uma troca de mandarins, sem qualquer progresso real para a democratizagao dos meios, Fala-se também no descentramento das redes de producio e difusio, de forma a garantir a plura- lidade de enfoques. Mas por descentramento se cos- tuma entender apenas a ampliagio do rol dos con- cessionarios, como se a mera rediyisdo do bolo em fatias menores pudesse por si 80 alterar a substancia de seu recheio. Em termos estruturais, midias como o radio € a televisio representam, no Brasil, a con- vergéncia de interesses do aparelho estatal, das re- des de distribuigado, do sistema publicitario e da in- dustria fonografica (muitas vezes organizados sob. forma de pools). Nao funcionam jamais como servi- go publico e menos ainda como meios de comuni- cac&o, uma vez que ninguém (a no ser os seus pro- prietarios-concessionarios) esta se comunicando através delas, A sociedade esta excluida do moné- logo que elas fabricam, pois sé atua a nivel de recep- tora de informagoes, mas ela propria nado pode pro- duzir e distribuir a informagaio que lhe interessa. Qualquer proposta de democratizagdo dos meios nao seré, portanto, digna de crédito se ndo puder transformar a fungdo social dos meios e garantir para a audiéncia canais para intervir com auto- nomia. RADIOS LIVRES 7 Nestes tiltimos 20 anos, algumas poucas dizias de apadrinhados do regime militar foram contem- pladas, a titulo de troca de favores ou como prémio por sua lealdade, com o privilégio de utilizar faixas de onda em radio e TV. Afora essas criaturas de compromissos escusos e de passado duvidoso, nin- guém mais esta autorizado a utilizar as ondas eletro- magnéticas para o exercicio da comunicagdo. De acordo com a nossa legislacao das telecomunicagoes, inspirada no modelo das ditaduras mais repressivas, qualquer emissio nZo autorizada € tratada como crime contra a seguranca nacional. Mesmo que se trate apenas de uma curti¢ado de roqueiros, como aconteceu em 1983, quando a cidade de Sorocaba foi palco de uma simpatica eclosao de radios ilegais, realizada por garotos cansados da mesmice das FMs oficiais. Quer dizer: entre nés, o mecanismo de concessdes nao é — nunca foi — um expediente téc- nico apenas; ele é um sistema de controle das emis- sdes pelo poder de Estado. A sua simples existéncia jaéuma forma de censura, pois sua fungao é discri- minar os que estao autorizados a falar e os que estdo condenados a ouvir. . A excegao das poucas emissoras estatais, os meios de radiodifusio sao hoje mantidos basica- mente por grupos de interesses comerciais, que deles se utilizam para vender mercadorias e multiplicar o capital. Até ai, tudo muito natural, visto vivermos sob um regime capitalista, para cuja reprodugao as midias sao fatores imprescindiveis. Mas deve haver espaco também para outras modalidades de explo- raco, mais democraticas ¢ que permitam engajar a iniciativa da propria comunidade atingida pelos meios. Nesse espaco alternativo podem caber, por exemplo, emissoras ligadas a grupos de produgao 18 A. MACHADO/C, MAGRI/M. MASAGAO cultural, a grupos de intervencao social, As minorias etnicas, culturais ou sexuais, aos partidos politicos, as comunidades locais e também aos amantes do radio e da TV para ai realizarem experiéncias reno- vadoras de linguagem. O leque de opcées, enfim, deve ser tio amplo quanto a diversidade dos ci- dadios. Nao se pode esquecer que o estagio atual da tecnologia coloca a possibilidade de emitir sinais de radio e TV praticamente nas maos de qualquer gru- Po com um minimo de recursos e de conhecimentos de eletrénica, Qualquer legislag&o que ignore essa realidade esta defasada em relacio ao seu tempo. A recente experiéncia das emissoras de radio e TV nao autorizadas ou livres (e que a imprensa prefere cha- mar um tanto pejorativamente de “piratas”), a re- Percussdo que ela obteve e os debates que estd pro- yocando demonstram que o limite de subordinacio da sociedade civil 4 estrutura organizativa das mi- dias Ja foi rompido. Agora que os fatos j4 atropela- ram a imaginacao dos politicos, dificilmente se Po- dera imaginar outra forma de viabilizar o acesso da sociedade aos meios de radiodifusao que nao seja a devolugao das ondas ao dominio piblico. E verdade que uma medida dessa amplitude pode gerar uma corrida, sobretudo entre os “pira- tas” verdadeiros, aqueles que vivem atras do ouro. Para evitar a sanha dos oportunistas, é preciso, na- turalmente, limitar 0 espaco das redes e conglome- rados, que hoje se multiplica em progressfo geomé- trica. SO assim poderd sobrar espaco para as expe- riéncias de exercicio coletivo da democracia. Uma forma de tornar isso vidvel tecnicamente é estabele- cer um: piso minimo de programacdo produzida no préprio local da torre transmissora ou retransmis- RADIOS LIVRES 19 sora e garantir espace para que a propria comuni- dade possa criar e gerir suas emissoras locais. Nio ha conglomerado que possa resistir 4 forga descen- tralizadora de uma medida dessa natureza. Ela pode abrir uma brecha para que as comunidades locais ¢ todos os grupos hoje marginalizados da radiodifusio possam ter acesso as ondas. Em pouco tempo, o mapa cultural-ideolégico das telecomunicagédes po- dera estar inteiramente redefinido e em condicdes de exprimir melhor a fisionomia atual da sociedade. Em relagao ao radio, o espago proprio para uma pequena revolugao ¢ o da freqiéncia modulada (FM), por se tratar de uma forma de emissao relati- yamente barata, que nao requer antenas transmis- soras sofisticadas, e oequipamento pode inclusive ser construido caseiramente. As outras modalidades de emissao requerem maior requinte de tecnologia e de capital empregado, razao por que as suas despesas dificilmente poderiam ser bancadas por emissoras sem interesse comercial. Além disso, o aleance da FM é mais limitado, o que favorece as experiéncias comunitérias ou as emissdes voltadas para as popu- laces locais, enquanto as outras classes de onda, de alcance mais amplo, interessam mais as empresas comerciais, para as quais o indice de audiéncia é fa- tor fundamental. A vista disso, é preciso garantir o espaco da freqiiéncia modulada as experiéncias de diversificagaio cultural, limitando, se necessfrio, a exploracdo de publicidade nessa classe de onda. Com relagio 4 TV a coisa é mais complicada, yisto no ser habito de nosso sistema de teledifusao fazer emissdes em UHF, o que reduz o leque de op- g6es apenas ao 12 canais VHF convencionais. Os canais UHF tem alcance mais limitado do que os VHF, prestando-se melhor As experiéncias comuni- 20 A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO tarias ou de audiéncia mais seletiva. Em compensa- ¢4o, oferecem um leque de opcoes de faixas de onda muito mais amplo, abrangendo até 70 canais dife- rentes numa Unica localidade. Até aqui, essa classe de onda tem sido negligenciada e utilizada apenas para retransmitir os programas das redes as peque- nas cidades do interior, De alguns anos para c4, en- tretanto, ela comeca a despertar o interesse dos no- vos produtores de TV, ja que possibilita realizar emissdes localizadas, voltadas para setores especifi- cos da populacao, constituindo uma alternativa eco- nomica 4 dispendiosa tecnologia da TV a cabo. Faz muitos anos que se encontra engavetado no Ministério das Comunicagoes um projeto de implan- tagado da TV por subscrices no Brasil, que utilizaria os canais UHF. No sistema de subscrigées, a infor- macdo seria langada ao ar codificada, de forma que para ser recebida nos receptores caseiros seria ne- cessdrio acrescentar ao aparelho um pequeno deco- dificador. Este iltimo poderia ser cedido aos inte- ressados em troca de uma assinatura com contribui- cao mensal. Assim, o espectador pagaria voluntaria- mente por uma informacao que lhe interessa e que ele escolhe, ao invés de contribuir de maneira invo- luntaria por uma informagao que ele nao escolhe, sempre que compra um eletrodoméstico ou uma pasta de dente, como ocorre no sistema de TV co- mercial, De qualquer forma, neste momento em que se discute uma nova ordem das telecomunicacdes no Brasil, é mais do que oportuno introduzir em defi- nitivo o UHF em nossos habitos de emissdo e recep- ¢4o, com ou sem subscricao, A vista das imensas possibilidades descentralizadoras do sistema. Importante é frisar que, em qualquer das mo- dalidades, o acesso as ondas deve ser livre, nao ne- RADIOS LIVRES 21 cessitando de concessdo de qualquer espécie. O pa- pel do Ministério das Comunicagées deve ser admi- nistrativo apenas, disciplinando a utilizagdo das on- das e impedindo a superposigao de duas ou mais emissoras numa mesma faixa, ou a interferéncia de uma sobre outra. Na grande maioria das cidades do pais néo haverd problemas de superocupacio do dial, uma vez que ha espaco suficiente para todos os interessados. Entretanto, o problema pode surgir nos grandes centros urbanos, como Sio Pauloe Rio, em que a demanda de faixas de onda pode ser maior que a capacidade do espectro das freqiiéncias. Nesse caso, 0 Ministério das Comunicagées podera intervir conciliatoriamente, determinando limites de alcance para aumentar a oferta de faixas e estudando, em conjunto com os interessados, alternativas de uso conjunto das faixas, em horarios ou dias alternados. Radios e televisdes livres constituem a melhor resposta de uma sociedade democratica aos conglo- merados e monopolios, bem como ao seu poder de concentracdo e comando. Elas se dirigem a segmen- tos especificos da populacao, oferecendo transmis- sdes diferenciadas, voltadas 4s aspiragdes de cada estrato social, de cada comunidade ou de cada gru- po cultural. Sua programacao tende a ser diversifi- cada na mesma amplitude da diversidade do publi- co, ao contrario das radios e televisdes comerciais que, por forca de suas ambigdes hegemonicas, s6 se podem dirigir 4 média indiferenciada e amorfa dos cidadaos abstratos. A liberdade para as ondas pode ser a base de uma explosdo informativa tao ampla e diversificada como foi o fendmeno das radios e TV livres na Europa, na segunda metade dos anos 70, Por uma Cooperativa dos Radio-Amantes | mbuidos do sentimento mais nobre e também Mais banal de articular uma corda vocal na atmos- fera, nésiniciamos um movimento de reforma agra- rianoar. O radio é uma conquista técnica da humani- dade e nao pode ficar nas mos (nas linguas) de proprietarios-concessionarios que s6 fazem poluir o ar com suas musicas e noticidrios descartaveis. PIRATAS SAO ELES. NOS NAO ESTAMOS ATRAS DO OURO. Por mais recente que seja 0 movimento das radios livres no Brasil, ele j4 comeca a fazer'a sua hist6ria; mais de vinte grupos de jovens estao cons- truindo seus transmissores. Sem falar nos movi- mentos sindical e popular, que comegam a namo- far essa nova possibilidade de comunicar suas lutas de forma mais rapida e eficaz. Avista do crescimento e das perspectivas que se apontam, resolvemos constituir esta Coopera- tiva dos Radio-Amantes, que ter os seguintes ob- jetivos: 1) socializar os conhecimentos técnicos e pos- sibilitar a construg3o de novos transmissores a to- dos os interessados; 2) prestar ajuda e solidariedade, no caso de repressdo, a qualquer grupo de radio-amantes; RADIOS LIVRES 3) socializar os Programas e os estidios de producdo; 4) estabelecer uma ética das radios livres, que discorra sobre os limites de poténcia do transmis- sor, interferéncias de sinais e outros assuntos de interesse comum; 5) invas&o @ ‘Ocupacéo definitiva da atmos- fera. Todo movimento Necessita de sustentagao material ¢ por isso estabelecemos uma cota no valor de 1/2 ORTN mensal, a ser paga individualmente pelos membros das radios. Quem puder contribuir com mais sera benvindo, mas mesmo assim conti- nuara tendo apenas um voto na Cooperativa. Grande bacie che mille transmissori fioriscono. Cooperativa dos Radio-Amantes Endereco p/correspondéncia: C. A.C. S. — CORA-Livre Rua Monte Alegre, 984 05014 — Sao Paulo (SP) —$_——— de Manifesto por sonoridades livres (Radio Xilik) E necessario dizer as coisas. Com os olhos, com a ponta do nariz e — por que nao? — com o [aébio articulado, bem articul®2°- J lando com um instrumento musical. VIVA OVIOLINO VIVA VIVALDI INA PANELA TEEEEEEEEEEEM... CCCCCCCCCECCCCCCCCCCCCCCCCENSURA! Ha muitos anos, os transistores combinaram- se apaixonadamente com as resisténcias, cris- tais, diodos e condensadores, possibilitando a um infimo mortal, no interior de sua casa em Carapicuiba, escutar um imbeciléide menudo dizendo que “adora tiocolate e la Radio Ciu- dad”. Infelizmente, um grande romance ele- tr6énico se transformou em novela pentelha. Meios de comunicaco viraram questao de Seguran¢a Nacional! SEGURE-SE lingua, porque vocé nasceu sem pa- tria! CONTROLE-SE, porque de voce sd queremos um belo comercial! FALE-NOS, mas nao diga nada! Edo NADA surge Alice, a Alice que veio de um pais novo, Radio Alice, Bolonha 1976/77. Nao importa quanto tempo durou. Importa é que | RADIOS LIVRES seus transistores eletrificaram muitos timpa- nos. Eletrificaram, botando no ar muitos arri- gos barnabés. Eletrificaram, possibilitando que passivos ouvintes se transformassem em ati- vos locutores, eles préprios porta-vozes das necessidades, dos desejos e ansiedades de si mesmos e de seus agrupamentos sociais. Ele- trificaram, brincando de forma séria com 0 de- sejo ea fantasia. LIMPEM SEUS OUVIDOS, POIS ESTA ENTRAN- DONA RAREFACAO DO AR: RADIO XIMMIMIININIMNLIK SP. Estamos ai porque acreditamos que na panela tem muita, mas muita... CCCECCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCRIACAO! Crieasual 25 Canais para resposta da audiéncia Bestoit Brecht, num texto escrito em 1932(““A radiodifusio como meio de comunicagao", compi- lado em Teoria do Rédio) montou uma utopia que seria profética em relacao ao fendmeno das radios livres. Imagina ele um sistema democratico que pu- desse converter o radio de um simples aparato de distribuigio de informacdes num amplo sistema de comunicagao, transformando cada radio-receptor ¢aseiro num transmissor por feed back. Nesse sis- tema, as torres de transmissiio Perderiam a sua fun- ¢ao “monolégica”, @ servico exclusivo de uma emis- sao unidirecional, e se converteriam num centro de troca de informagées, local de um interedmbio co- municativo pleno, mi que emissor e receptor deixa- Tiam de existir enquanto categorias isoladas. Dessa forma, a unilateralidade dos pélos produtor e con- sumidor seria superada pela transformagao da ra- diodifusaio num mecanismo de didloge, onde nin- guém mais deteria o monopélio do discurso. A pos- sibilidade real de uma democracia deveria passar, segundo Brecht, por essa alternativa: o Reichstag (parlamento alemio), os tribunais, os sindicatos e RADIOS LIVRES a7 todos os demais centros de decisao da vida publica deyeriam estar interligados com a comunidade atra- yés da rede radiofénica, cuja reversibilidade permi- tiria a cada cidadao interferir de forma direta e ime- diata nas decisées grandes e pequenas. Tal seria o esquema de uma sociedade construida estrutural- mente em torno da possibilidade do did/ogo e na qual as pessoas finalmente poderiam se falar de for- ma reciproca, ativa e produtiva. ‘Se acham que isso é utépico — concluia Brecht — peco-lhes que, pelo menos, meditem sobre as razGes por que seria uté- pico”. Retomando essas idéias num dos mais instigan- tes panfletos culturais de nosso tempo, Hans Mag- nus Enzensberger observa que do ponto de vista ex- clusivamente técnico nao existe diferenca funda- mental entre transmissor e receptor: qualquer radio- receptor transistorizado pode, pela propria natureza de sua tecnologia, atuar sobre outros radio-recepto- res, sendo portanto um emissor em potencial. Se tal possibilidade ndo se realiza tecnicamente isso se da Por interesses politicos evidentes, jA que os centros de poder nao podem prescindir da divisdo social do trabalho, em que produtores de um lado e consumi- dores de outro conformam a contradicao de base das sociedades industriais modernas. Por essa razio, yeiculos como o radio ou a TV, na sua estrutura atual, nio sio meios de comunicacio porque nao estado a servigo da comunicacio: nio permitem ne- nhuma influéncia reciproca entre transmissor e re- ceptor. Do ponto de vista técnico, reduzem o feed back ao nivel minimo que permite o sistema: as son- dagens de audiéncia. Ainda nesse panfleto, dando seqiiéncia a um projeto de luta do préprio Brecht (“A possibilidade de impedir 0 poder da desconexao 28 A, MACHADO/C, MAGRI/M. MASAGAO. esté na organizagao dos desconectados"), Enzens- berger elabora uma estratégia de perfuragdo da es- trutura “‘monolégica” ou unidirecional das midias, propondo a sabotagem geral da producao vertical e centralizada das midias dominantes com uma pro- ducao autogerida, construida em forma de redes ¢ dotada de reversibilidade: um periédico escrito pe- los préprios leitores, uma rede de video de grupos politicamente ativos e, naturalmente, rAdios livres. Mas nao é apenas a separacdo técnica entre produtores e consumidores que reduz a massa de ouvintes 4 condig&o de receptores passivos e isola- dos. Para prevenir-se dos riscos de uma possivel re- versibilidade no dominio das midias, uma vez que a radiodifusdo é um problema de solucio técnica facil e relativamente barata, as instancias de poder con- tam com duas formas de controle: a institucional e a econémica. Institucional: em quase todos os paises do mundo, a propriedade das ondas radiofénicas pertence ao Estado, o que quer dizer que a maquina governamental detém o monopdlio do radio e da te- levisio. Uma vez garantido o monopélio através de uma legislagao especifica e de um aparato policial de vigilancia e repressao, 0 poder de Estado pode utilizar esse beneficio de duas maneiras diferentes: ou ele proprio explora 0 servigo de forma exclusiva, como era o caso da Inglaterra, Italia e Franca antes da explosdo das radios livres, ou ent&o ele concede o direito de usar determinadas faixas a grupos econ6- micos ou politicos de sua confianea, como ocorre atualmente no Brasil. Em qualquer dos casos, 0 go- verno detém a hegemonia de uso das ondas radiofé- nicas, podendo retirar a concessdo a qualquer mo- mento, se entender que o beneficidrio nado mais cor- responde 4 sua confianga. Controle econémico: es- RADIOS LIVRES 29 tabelecimento de critérios “‘profissionais’’ para ou- torga do privilégio de emissdo, com o estabeleci- mento de limite minimo de poténcia para funcionar. Ora, permitir que apenas emissoras de grande po- téncia possam operar acarreta, pelo menos, duas conseqiténcias: primeiro, s6 os grandes grupos eco- némicos podem emitir, porque os custos de trans- missdo vdo-se tornando mais caros conforme au- menta o raio de alcance; segundo, emissoras de grande poténcia ocupam uma faixa do dial muito ampla, de modo que uma ou duas dizias delas j4 sao suficientes para preencher todo o dial de uma metrépole como Sao Paulo. Numa perspectiva mais democratica, o aleance de uma emissora nao deveria estender-se além de alguns quarteirées ou alguns bairros, para evitar arroubos de hegemonia e abrir espaco para o maior ntimero possivel de radios. Foi contra essas formas autoritarias de controle que se insurgiram, na Europa dos anos 70, as radios livres democraticas. Se pudéssemos reduzir a uma frase o conjunto de motivagdes manifestas que nor- tearam o movimento, poderiamos dizer que ele visa substituir um modelo de midia monolégico, one way e altamente centralizado na maquina burocratica do governo ou nos departamentos publicitarios das grandes empresas por um sistema de comunicacaio dialégico, two way, capaz de eliminar a distingado autoritaria entre emissor e receptor e de devolver ao “ouvinte” um papel ativo, permitindo-Ihe ultrapas- Sar a condigao de receptor passivo de ideologias alheias. $6 que — aqui est4 o mais importante — as radios livres faziam isso sem alterar o mecanismo técnico que garante a separacdo entre emitentes e ouvintes, subvertendo esse mecanismo por dentro, na medida em que dava autonomia aos receptores. w A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO O principio norteador das radios livres era fazer com que o “‘ouvinte’’ se sentisse dentro e participante de um movimento: a qualquer momento (e sem que esse momento pudesse ser determinado a priori) ele po- deria telefonar para a emissora para informar qual- quer coisa que estivesse acontecendo a sua volta e ser colocado imediatamente no ar, sem qualquer censu- ra, ou entao se dirigir diretamente 4 emissora para dar o seu recado. Se um adolescente quisesse relatar uma experiéncia sexual que acabou de viver, ele se dirigia 4 Radio Tomate, por exemplo, e falava sem entrayes; se um roqueiro quisesse mostrar um disco pirata que acabou de descolar ou entio a fita de sua banda, poderia se dirigir 4 Radio Obliqua; um ho- mossexual discriminado por sua op¢fo sexual pode- ria entrar no ar pela Radio Gay e fazer a dentincia; um cidadao que quisesse reclamar da falta de Agua ou de um esgoto entupido em sua rua, usaria a radio livre de seu bairro. Ou qualquer outra, porque os papéis de cada radio nao eram tao precisos. Guattari fala que ds vezes a Radio Tomate era invadida por habitantes do bairro ou por bandos de desempre- gados ou por hostes de mendigos, que pediam a pa- lavra para fazer o Quartier Latin ouvir a sua voz. Talvez essa seja uma das grandes novidades introdu- zidas pelas radios livres nos meios de comunicagao de massa: tornar o meio tao transparente quanto possi- vel, eliminar os intermediarios, intérpretes, comen- taristas e deixar que os acontecimentos sejam repor- tados pelos seus proprios personagens. Fala-se muito hoje — e um tantoimpropriamen- te —de tecnologias interativas, a propésito principal- mente dos recursos da informatica. Essas discussdes poderiam ganhar impulsose as pessoas depositassem um pouco mais de atencdo na experiéncia das radios RADIOS LIVRES ci livres, que se mostrou capaz de inyentar, nos seus momentos mais ousados, um verdadeiro sistema de feed back entre a equipe emissora e a comunidade dos ouvintes. Seja através da intervengdo telefénica, da abertura das portas da emissora 4 comunidade, da transmissao direta das ruas ou da yeiculagio de fitas produzidas pelos préprios ouvintes, as radios livres restabeleceram 0 circuito do didlogo nas midias de massa, abrindo a possibilidade de falarem e serem ouvidas sobretudo Aquelas camadas da populacdo tradicionalmente afastadas das antenas. Tecnica- mente, elas souberam tirar todas as conseqiiéncias do casamento explosivo do radio com o telefone, trans- formando automaticamente todos os seus ouvintes em correspondentes. Munidos de fichas de telefone, qualquer individuo, mesmo o mais fragil ou o mais humilhado, podia parar no primeiro orelhao e soltar os cachorros a respeito de tudo o que estava aconte- cendo ao seu redor. Nao ha instituigéo centralista que possa suportar a pressiio dessa reversibilidade do circuito: 0 papel jogado pela Radio Alice nos acontecimentos bolonheses de 1977 é a sua prova definitiva. Os meios convencionais ditos de comunicagao colocam toda énfase no aspecto “profissional"’ da realizacio ¢ ostentam o acabamento esmerado do produto, o padrao técnico de qualidade como valores a serem celebrados em si. O mito da competéncia profissional barra, mais ainda que a censura econ6- mica, o acesso direto da comunidade as midias, tanto mais se esse mito vem apoiado em legislagao mono- polizadora da atividade, imposta 4 sociedade para reservar os interesses de corporagées. Essas mesmas midias definem ainda 0 acesso aos canais de expres- s4o ptblica como fungio do critério da autoridade, 2 A, MACHADO/C, MAGRI/M. MASAGAO. prestigio e representatividade do sujeito emitente. Em todas as circunstAncias, a emisséo da mensagem é encarada como matéria do especialista: o especia- lista da expressdo, o especialista do processamento. técnico, o especialista do contetido ou porta-voz. A experiéncia das radios livres caminha numa perspectiva inteiramente oposta a esse culto da espe- cializacao e da competéncia. Nela, as solugdes cole- tivas de enunciagao “‘atravessam’’, como costuma di- zer Guattari, as especializacées, para inventar um tipo novo de democracia direta, capaz de perfurar os modelos tradicionais de outorga e representagao. O que da as radios livres um aspecto ruidoso, capaz de desconcertar o ouvinte eventual, nao é tanto a preca- riedade dos meios técnicos, mas principalmente oseu empenho em dar a palavra a interlocutores “meno- res”, fazer falar acentos locais e sotaques plebeus, em contraposicao ao recitativo uniforme e padroni- zado das emissoras convencionais. O que elas visam, enfim, € introduzir nas antenas a palayra viva, cheia de forca, indecisiio e desejo. Todos devem ainda lembrar-se dos episédios pi- torescos que envolveram o cacique Juruna, quando ele se pos a carregar a tiracolo um pequeno gravador portatil, com o qual gravava os discursos e as pro- messas que os governantes faziam aos indios. Era a sua maneira concreta de dizer que os homens do po- der eram mentirosos. Juruna conseguiu mesmo cau- sar um certo desconforto, a sua presenga nas ceriméd- nias oficiais era sempre constrangedora porque o seu gravador indiscreto funcionaya como um indice da demagogia do orador. Nés nos divertimos muito com aquilo que supinhamos ser uma ingenuidade do ca- cique, mas a yerdade é que Juruna tinha inventado uma utilizacdo inteiramente nova dessa coisa banal RADIOS LIVRES 33 que é 0 gravador doméstico, uma utilizagao que ja- mais poderia ter estado no horizonte do fabricante do aparelho. A atitude do cacique Juruna lembra a da crianca que ganha como presente dos pais um piani- nho de brinquedo para que desde cedo ja tome gosto pela musica. Mas ao invés de dedilhar 0 instrumento nas teclas, como prevé o design do piano, a crianga enfia a mio por baixo para dedilhar diretamente nas cordas; ou ent4o bate o intrumento no chao para que as cordas vibrem e produzam um ruido agradavel. Ora, 0 que se trata de fazer com as radios livres é exatamente isso: reinventar o sistema das midias, desconstruindo a pragmatica que nos é imposta de cima, verticalmente, j4 a partir da concepgao da tec- nologia. Ao mesmo tempo, reintegra-lo de forma sa- dia na vida da comunidade, para que ele seja instru- mento da criatividade coletiva e nao a pris4o do ima- gindrio. Numa polémica com Enzensberger, Jean Bau- drillard nos fala de uma definigao de poder que existe em certas comunidades ditas “primitivas’’ e que vem bem a calhar a propésito do que estamos tratando. Ela diz mais ou menos assim: o poder esta com aque- le que pode dar e a quem n§o se pode restituir, Dare fazé-lo de tal forma que isso nao Ihe possa ser resti- tuido significa romper a troca em seu favor € instituir um monopdlio. Restituir, pelo contrario, é romper essa relacdo de poder e instituir, sobre a base de uma reciprocidade antagénica, o circuito da troca simbé- lica, A maior revolucdo que se pode fazer hoje no dominio das midias e da cultura de massa em geral consiste na restituigao dessa possibilidade de respos- ta. Nos tiltimos dez anos, pelo menos, essa idéia ver se tornando cada vez mais clara a um numero cada vez maior de pessoas. A proliferag¢ao incontrolavel de A, MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO a melhor publicidade para as radios livres RADIOS LIVRES 3B poesia “marginal’’, editada e distribuida artesanal- mente pelos proprios autores, a onda contagiante de discos e fitas “independentes”, a abundante produ- Gao caseira em video e pequenas bitolas cinemato- graficas, os grupos de intervencao urbana, as bandas suburbanas de rock, a febre dos graffiti, a prolifera- Gao das radios livres, toda essa abundante produgao microsc6pica, que as instituigdes classificam pejora- tivamente (ideologicamente) de ‘‘amadorismo’’, nao sera sintoma de uma mudanca de papéis, de uma rebelido de receptores que, por fora das instituigoes, inventam suas préprias formas de resposta, para quebrar o monélogo das midias dominantes? Talyez estejamos proximos daquilo que prognosticava Erik Satie no comeco do século: ‘‘O futuro sera dos ama- dores, isto é, daqueles que amam o que fazem”’. Um depoimento: Cinderela Pua se resume numa questao de mutacdo es- pacial. Uma certa necessidade de sair da cova coti- diana cemiterializada. A vida esta em toda parte. As mulheres querem sair do espaco da cozinha eexigem que o Estado assuma conjuntamente a edu- cacao das criancas, fornecendo creches. Querem também voltar para casa 4 noitinha contando casos, privilégio que até agora s coube ao macho. Os homossexuais querem que o fato de gosta- rem do espagozinho apertado nao seja considerado doentio, pois, afinal, a op¢ao nfo passa de uma ques- tao de sensibilidade erégena e talvez algumas coisas mais... Os negros nio querem que o espaco de sua pele, tingido de um pigmento mais escuro, seja con- fundido com um revélver acompanhado da velha frase: ‘Isto éum assalto!”’. Os ecologistas proclamam algo Gbvio: que o es- paco da natureza seja preservado; afinal, sem ele... RADIOS LIVRES 37 Os psiquiatrizados nao querem que a loucura fique trancada no espago do manicémio e pergun- tam: Por que o delirio dos possuidos pode andar 4 solta e fora das instituigdes que eles controlam? Os presos comuns se recusam a viver num es- ago parecido com um esgoto e perguntam: Ja que soltaram nossos companheiros presos politicos, por que agora nao prendem muitos politicos que estao soltos? A juventude se recusa a se coisificar em seus locais de trabalho. Considera que 0 espago de cria- edo da fantasia deve ser computado em tempo de tra- balho. Qs... hum, hum... é tudo uma questao de es- Paco. Etomandoa palavra ao pé da letra, por que nao. ocupar oespaco atmosférico? Afinal, jornalzinho, jornaleco, boletins, papel higiénico psicografado, todo mundo ja utiliza bem ou mal. Por que nao saborear um microfone que, entre outras coisas, 6 mais barato e mais rapido? Assim comega a discussdo dos meios de radio- difusdo, Nao adianta reclamar nas assembléias: “O. povo nao é bobo, fora Rede Globo!”’. E necessario misturar saliva, ondas hertzianas, microfone, dese- jos multiplos e, como nas melhores receitas da vovo, intervirnoar. Duas possibilidades: ou teescutam ou te desligam. E vocé continua falando... No mundo, ja falaram de montdo fora dos ca- nais oficiais. Na Italia e na Franga, na década de 70, radios e TVs livres interviram em varias questdes re- gionais e nacionais, demonstrando essa possibili- dade. E na vizinha Bolivia, os mineiros e suas radios 3 A, MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO sindicais realizaram a famosa assembléia dos ouvi- dos. Sera que a esquerda nao cogita que uma das causas principais da resisténcia e da prépria sobre- vivéncia da Central Operaria Boliviana Seja o fato de ela possuir esse instrumento eletrénico barato e efi- caz: a radio livre? Sera que o analfabetismo Politico, moral, cultu- ral e existencial das pessoas vai ser tesolvido pelo método Paulo Freire? Mas o ouvido nunea é analfa- beto, por mais sujo que ele esteja. Mais do que para ouvir, o ouvido esta ai para mandar uma mensagem para océrebro, de modo que este, mais rapido ainda, faga uma salada do consciente com 0 inconsciente, ordenando que as salivas respondam prontamente. Ai esté uma questao fundamental das radios li- vres: o ouvinte deixa de ser um timpano passivo (no maximo de saco cheio das baboseiras que escuta) para passar a intervir diretamente. Cada individuo é locutor de seus conflitos e necessidades, sem precisar de representantes, — Faz muitocalor, oar esta abafadissimo! — Também pudera, ele nunca foi to utilizado! Desculpe, leitor, mas onde estamos? — Everao, 61983, é também Brasil! — E Sorocaba, sao mais de 40 rAdios livres no ar. Em plena ditadura, se bem que os cassetetes j4 anunciem uma metamorfose democratica. Eles se diziam apoliticos. O negécio era “muita miisica, uns recados para a sogra € umas paquera- dinhas radiofénicas”’. Se nao é politico transgredir a lei, rompendo, mesmo que localizadamente, o mono- polio do monstro global, ent&o ja nao sei mais o que é politico. Além do mais, acho profundamente politico discutir com a sogra em ptblico, rompendo o mono- pOlio da fofoca familiar. RADIOS LIVRES a9 O que importa é que Sorocaba aconteceu € con- seguiu nao s6 vencer a batalha técnica como intervir em pleno Figueiredio. : A noticia se espalhou, a imprensa divulgou, o Dentel baixou. O ar esfriou e Sorocaba calou (ela voltaria ao arem 1985). Endo demorou muito, Sao Paulo falou. Oar da Paulicéia comega a ter um Xilik. Oclimaera outro, o ano era 1985 e o Brasil tinha acabado de ganhar uma “‘Nova Repitblica”’. Entao vamos 14, para o tal dia. — Que dia? Odia tal. Aquele em que Tancredo morreu. O Brasil se transforma numa imensa igreja en- tupida de desejos. O aspecto é lacrimoniosamente es dia seguinte, saindo pelas portas de fundo da igreja... Nomeio da rua ou talvez numa mesa de bar, entre os goles de uma loirissima gelada. — Oespaco politico existe! — NaFranca foi assim, na Italia assado! — Entfo vamos: ao tupiniquim o seu pedago mais tesudo de quindim. br — Ecco, a come risolvere il problema téc- nico? hu. E do casamento da querida Santa Efigénia com © nosso queridissimo Sao Gertrudes surge a nossa primeira panela. Quero dizer: nosso transmissor. (Pra quem nao sabe, Santa Efigénia é uma rua de Sato Paulo onde ficam as lojas de componentes eletroni- eos. O Sao Gertrudes, sinto muito, vocé vai ter de descobrir.) f No dia 20 de julho, além dos avides, além dos menudos e do fofinho da “‘pirata” Radio Cidade, surge enxeridamente no ar: la petite Xilik. 40 A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO 106 MHZ, funcionando no horario em que a eidade comega a ficar escurinha. A “pirata” Radio Cidade — Rede Globo das emiss6es radiof6nicas em Sdo Paulo — tentou pira- tear, jogando seu forte sinal em cima da faixa da Xilik. PIRATAS SAO ELES. NOS NAO ESTAMOS ATRAS DOOURO. O que existe de mais fundamental, o que existe de mais banal é o simples desejo de articular uma corda vocal. Nao importa quantos nos escutam, nao importa © que acham. Estamos grudados no nosso cordao umbilical, no desejo mais ingreme de somente ma- mar, ou talvez balbuciar algo de intacto no ar. Fase fundamental: escutarmo-nos no dial. Dentel ejornalistas em geral nao gostaram: fala- ram que eram jovens de 68 com crise IN, TES. NAL. N6s, muitas vezes jovens com mais de 30 anos (talvez a ditadura tenha atrasado etapas), preocupa- dos com a producio, forma e emissdo da programa- gio, deparamo-nos com problemas domésticos: — Nao agiiento mais esse negécio de vocé voltar para casa todos os dias depois das tantas. Afinal, fi- quei sabendo que estava gravida na semana pas- sada! E otrintao responde rapido: = Tesado é o que nao falta! Transaremos quan- tos filhos forem necess4rios: Xiliks, [lapsos, Molo- RADIOS LIVRES 41 tovs, Neblinas, Totés, Trips, Tomadas, Jofios e Ma- riazinhas... Ja a juventude com menos de 15 conta pro pa- pai ¢ pra mam@e que ultimamente esta muito inte- ressada em eletrénica e pede um aumento da me- sada, que rapidamente ser4 torrado na Santa Efigé- nia. Radio Apocalipse é o nome que uma 7? série ginasial deu para a radio que esta montando. Constelagio familiar: maldigdo da sorte e do azar. Adoro ser papa. E bom passar um sAbado in- teiro entre fraldas, resmungos e risadas de minha bambina. Adoro meu papa, na sua silenciosa crise dos 50. Ele mesmo muitas vezes me censura, nao pelo meu “ativismo’’, mas pela minha caretice. Eu the digo: — Velhao, nao se preocupe com os grandes cargos publicos. Muitos de seus amigos nfo passam de pilantras enfastiantes da eterna hetero-liberal-li- bertinagem. Continuo preferindo yocé trocando a porca politica pela sua segunda esposa. Continuo preferindo vocé com aquela yodca que saboreamos em alguns domingos da vida. Noutro dia (27 de agosto): — Os homens estado comecando a ficar preocu- pados! — Ser4 um aviio, uma mosca, o carnaval? Nao, definitivamente nao! — EaNova Reptblicaem ago! Foram A PUC atras da Xilik. O pessoal do Toninho Malvadeza voltou de maos abanando. — E, desta vez nao deu! 42 A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO Parece que eles nunca aprendem que a coisa é mais embaixo. Por uma questio de sabrevivéncia, a Xilik co- mega o seu namoro sindical. Coloca seu transmissor 4 disposigao da histérica e vitoriosa gteve geral dos bancarios de 1985. Nas assembléias, a Rede Globo era vaiada e impedida de filmar, por causa das as- neiras e mentiras que transmitia sobre a greve. Em contrapartida, a Xilik, que transmite apenas para dois ou trés bairros da Paulicéia, tem direito A pala- vra na assembleéia paulista da Praca da Sé. Parece que eles gostaram da idéia e na préxima greve, além da Folha Bancdria, além do lobisomem, hayer4 uma radio livre sindical no ar. Sera a Radio Tereza (“tereza” € o nome que os presididrios dao Aquela corda de lencol através da qual fogem da cadeia). Na verdade, os banc4rios paulistanes j4 tinham uma radio: era um servico de alto-falantes que ani- maya o centro nervoso do capital financeiro na hora do almogo. Agora, com a Possibilidade de ter um transmissor, bastam apenas alguns ajustes técnicos para continuar o trabalho. Os quimicos também querem, nos campos do Para ha iniciativas, mais de vinte grupos de jovens interessados ja compram pegas. Na periferia, setores da Igreja ja haviam construido um transmissor antes da Xilik e s6 estao esperando o momento certo para entrar no ar. Trabalhadores ligados aos movimentos dos bairros (creches, loteamentos clandestinos etc.) também ja freqilentam a Santa Efigénia. Nas elei- ges municipais para prefeito, surgem duas radios Se Ligue, Suplicy (ligadas ao PT) para dar uma estica- dinha nos minutos gratuitos. E depois do avango a nivel nacional, setores do PT discutem a possibili- sf RADIOS LIVRES 43 dade de se construir uma radio do partido, como forma dese comunicar com os simpatizantes. E criada uma Cooperativa dos Radio-Amantes, para ajudar na construgao dos transmissores e pres- tar solidariedade no caso de repressio. Comega-se a discutir também a nossa legislacao. 3 Quem nunca escutou nenhuma dessas emissdes deve fazer-se a pergunta tradicional e curiosa: — Mas, afinal, o que tocam eles e o que falam noar? . Para responder a essa pergunta, eu gostaria de lembrar uma expressdo muito cara ao Guattari, quandoele discute a forma das radios livres, falando numa certa “boca pequena”. ; : Essa expressao poderia ser traduzida por: “frag- mentario cotidiano que nunca vai para o ar’’. Frag- mento que existe, mas fica encarcerado em espagos predeterminados, onde a sociedade 0 manipula. Se esta encarcerado nao pode ser socializado. Ou me- thor: é socializado, s6 que é aquela socializacao que passa pelo crivo do Estado, do capital, do editor, do partido ete. De tal merda, fica 0 fato de que acabam por ca- lar a “boca pequena”. Sutil assassinato. Afinal, é melhor tutti generalizzato. A forma sé existe enquanto fragmento passa- geiro. O moleque de rua tem acesso ao microfone eissoem sijaéuma revolucao na forma. 9 Tapaz que nunea havia provado o sexo, no dia seguinte resolve falar de sua sensagao diante do lengol amassado, nao para o psicdlogo, mas ao microfone. O nortista conta os seus primeiros dias na Paulicéia, essa fantastica garoa da ilusdo. O desempregado fala das sensa¢oes estranhas que tem sentado nos bancos das pra¢as, olhando para aquele mundo de engravatados do cen- a4 A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO. tro da cidade. Toco o disco que tirei do fundo do bat € que um dia, no ano mil noyecentos e qualquer coi- sa, escutei com alguém. Boca pequena todo mundo tem. Torne ela oni- Potente, onipresente. Mude de canal, faca um baca- nal. Um bacanal de bocas pequenas. Um momento! Se vocé estiver na diivida, cui- dado! Nao faca nada! Ou melhor: continue restringindo seus fragmen- tos para onde as instituicdes os delimitam. Continue sendo um trabalhador eficiente, um aluno aplicado, um esposo competente, um negro que sonha casar- se com a branea mais linda da cidade. Continue len- do a imprensa responsdvel, yotando util. Afinal, o magiclik de sua casa nunca funcionou muito bem. Continuismo — a palavra que os politicos ado- ram. Outro momento! Cuidado ainda maior! Depois que vocé pega no microfone, muito mais que o Sinhozinho Malta, nao ha Roque Santeira que ofaga largar. Processo implosivo. Toda liberdade A atmos- fera, Nenhuma vassoura de muitos janios conseguiré varrer a singela poluicdo que comeca a tomar conta do ar. E verdade que logo o grande capital vai que- Ter pegar a sua fatia do bolo, profissionalizando e pagando muito bem muitos desses joyens criativos. Faz medo também a normatizacdo que os gabinetes dos homens do poder estio preparando para a Cons- tituinte: radios “educativas” ¢ “comunitarias” para domesticar a revolta, onde cada agrupamento social ter4 meio minuto para falar... : Inevitavel, meu caro Watson. Eles estio ai para isso. RADIOS LIVRES 4s Os homens de imprensa querem nos enquadrar como juveniilistas afoitos. Eles estio é com citimes. Citime, esse verme estratosférico! Afinal, essa coisa de radio livre pode comprometer a funcdo deles como castradores de singularidades e fabricantes de gene- talidades. Imaginem s6 se as pessoas nao precisam mais deles e comecam a falar elas mesmas do que Ihes interessa. Os bancrios diretamente de suas greves, os camponeses diretamente de suas terras ocupadas, as domésticas de seus cubiculos de dormir, a juven- tude roqueira de suas garagens. A VIDA DIRETAMENTE DA VIDA. RADIO- MOVIMENTO. RADIO-VIDA. Os psis em geral também esto preocupados. De repente, oinconsciente que eles supdem estar no diva comega a ser liberado em outros espacos. Nao, eu nao quero mais conectar meu sonho com a anilise do psiquiatra, quero-o conectado no ar, ao vivo. Quem sabe nao recebo cartas e telefonemas interessantes? Na&o quero mais reclamar de minha solidao para que ela seja medicada com psicotrépicos. Vou con- clam4-la na rarefagao doar. Estamos na era da informatica, que também é a da bomba atémica, muy rapida, muy rapida... Temos também de ser muy rapidos!!! E, de repente, radio é isso: uma rapidez que nem agente que é agente do movimento entende. Nem agente entende. Nem agente entende. Nem agente entende. BOOOOOOOOO000M é 0 que acontece, acontece, acontece. A pratica é maior que ouniverso. 46 A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO Portanto, eis que todavia: ABUTRES DA MIDIA, ABUTRES DAVIDA, NA TERRA, NOMAROUNO AR, NOSSOS CORACOES CONTINUARAO A SALTITAR. E NOSSAS SALIVAS GASTAS COM O FA- LAR. FALAR, FALAR, FALAR. ALGO DE POLICENTRICO NO AR... P.S. Um beijo a Dona Stela, que renasceu de cécoras em 1985. Cinderela RADIOS LIVRES 47 Prmeincd, uetrd, mnanedans, mo emer, BKB UewicearTHnln 9 ArOMEZAS eee a el A batalha dos ares do sul (Manifesto da Radio Toté) Veervec Levantar ancoras! Todos junto com a Radio Toté, navegando as ondas hertzianas em busca do Eldorado sonoro. Chega de ferros a nos tolher. A nau de Toté esta Preparada para enfrentar os destréieres da RENAR — Rede Nacional de Radiomonitoragem — que, com seus misseis radioguiados, sdo os lobos defen- sores dos impérios da informacio de miio unica. Que tenham veze voz os excluidos da comunicagao de massa! Chega de aldeia global com seus caciques nos impondo a homogeneizacado e a pasteurizacao cul- tural. Que floresca a diferencal Chega desse siste- ma de concesses que sd privilegia o clientelismo politico, deixando 4 margem os reais interesses da sociedade. E ainda nos chamam de piratas! Assu- mimos © termo por questdes. estéticas, mas PIRA- TAS SAO ELES. Nao estamos atras do ouro. As ondas hertzianas s&o livres! Viva a Radio Xilik! Vivam as radios livres! Que mil transmissores florescam, alegrando nossa primavera! ARTT — Rede Tot6 Ternura de Telecomunicagdes — esta transmitindo com a sua Radio Toté, em regime RADIOS LIVRES perimental, nos 106 MHz FM, atingindo a regigo pré- xima @ Pinheiros, Praga Panamericana, Butantd e Rio Pequeno, em hordrios variados. Na equipe de produgio estardo, além do capitio Toté Ternura, os corajosos c&es que se dispSem a enfrentar a carrocinha do DEN- TEL, como Sdo Bernardo, o co que cuidaré dos assun- tos sindicais; Snoopy, o correspondente nos EUA; Rin- Tin-Tin, 0 repérter policial; Lassie, a sex6loga; Cachorro Louco, o lecutor “chapadao"’; Baleia, a critica literdria que recebe a espirito de Graciliano Ramos; Rex, 0 cao Pastor evangélico, e uma programacSo inédita e va- tiada, marcada pelo lancamento do seu “Reporter Os- $0", que seré transmitido em cadeia, diretamente do Carandiru. Fique com a gente nessa viagem. Queremos ser 0 seu cdozinho de estimacdo, sempre ao seu lado. Primeira intervencio da Radio Xilik (20/7/85) “Ship Ahoy” de Frank Zappa entra firme, de- pots vaia BG, “Ship Ahoy" sobe e manda fogo até o fim. Entra “4 canni” de Lu- cio Dalla. Vaia BG. Musica sobe, depois BG. BIFO: Radio Xilik. Ra- dio livre urgente, em 106 MHZ, aberta a to- dos, exceto a: generais ativos e passivos, senho- ras de Santana, falsa- rios, mamdes que dizem sempre mentirinhas, fa- locratas, criangas que falam sempre a yerda- de, demagogos, juizes evangélicos. B: Radio Xilik. RAdio livre urgente chama a parte do mundo sonoro livre. Polifonia, B: Radio Xilik chama Radio Alice, Bolonha, Italia, RADIOS LIVRES $1 Musica sobe, depois BG. Musica ube e vai até 0 fim. “Toxika"’ do Plastic People entra firme. De- pots BG. B: “Alice é il diavolo. Sulla strada di Maja- kovskij. Testi per una pratica di comunicazio- ne sovyersiva.”’ B: “Non sara la paura della folia a costringer- Cie B: Radio Xilik. Radio livre urgente chama Ra- dio Solidariedade em algum ponto da Polé- nia. “Eles tém medo dos ve- lhos por suas memérias. Eles tém medo dos jo- vens por sua inocéncia. Eles tém medo dos tra- balhadores. Eles tém medo da cién- cia. Eles tém medo de livros epoemas. Eles tm medo de discos egravacoes. Eles tém medo dos mii- sicos € cantores. Eles tém medo dos es- critores. 52 A, MACHADO/C, MAGRI/M. MASAGAO Miuisica sobe e vai até o fim. Eles tém medo dos filé- sofos. Eles tm medo dos pri- sioneiros politicos. Eles tém medo das mu- dancas na ctipula de Moscou. Eles tém medo do fu- turo. Eles tém medo de sair as ruas. Eles tém medo uns dos outros. Eles tém medo de Karl Marx. Eles tém medo de Lé- nin. Eles tém medo da yer- dade. Eles tém medo da liber- dade. Eles t8m medo da de- mocracia. Eles tém medo da decla- racdo universal dos di- reitos do homem. Eles tém medo do socia- lismo, ENTAO, POR QUE DIABOS ESTAMOS COM MEDO DE- LES?” B: Radio Xilik. Radio livre urgente chama Ra- dio Venceremos em al- Caetanoatacacom “‘Soy loco por ti, América”. Vaia BG. Muisica sobe e vai até o fim. Entra “‘Nés espantaremos o RADIOS LIVRES 33 gum ponto de El Salva- dor. “Sol, Abriga-os nas tuas miaos! Com a lingua dos teus raios acende-lhes os olhos! Ovelho rosto do tempo trogamos agora. Saos e salvos yoltamos para casa. Entao, sobre os nicaragiienses, sobre os salvadorenhos, sobre os guatemaltecos, sobre todos pelo firmamento ter- restre, desde as auroras verme- thas, fila apés fila, sete mil cores brilharam de mil arcos-fris dife- rentes.”” (Maiakévski —_adulte- rado) B: Urbanots paulista- nos: Passem a Cultura e caiam na Xilik. 54 A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO urubu."’ Aguilar e q@ Banda Performatica. Miisica sobe e vai até o fim. Aigelin entra firme com “Paris-New York, New York-Paris””. Vai a BG. B: Desistam! No sabemos recitar, Tepresentar, cantar, de- senhar, escrever, dan- Gar. Nao sabemos nada das lig6es angustiantes ou confortantes. Nada faremos por ou para vocés. Desistam! Nao organizaremos o caos. Desejamos. Nada faremos por ou Para vocés. Desistam, urbanots! B: Radio Xilik chama Radio Tomate, em Pa- ris. “Perigo iminente. Aten- ¢éo, a menor linha de fuga pode fazer tudo ex- plodir. Vigilancia es- pecial aos pequenos grupos perversos pro- Pulsando palavras, de- sencarrilhando frases, atitudes suscetiyeis de contaminar populagées RADIOS LIVRES 5S Miisica sobe e vai até o fim. Arrigo “Clara Crocodi- lo” Barnabé entra com tudo. Vaia BG. Musica sobe e volta a BG. inteiras. Neutralizar, prioritariamente, todos aqueles que possam ter acesso a uma antena. Guetos por toda parte — se possivel autogeri- dos —, microgulags por toda parte, até mesmo na familia, no casalein- clusive na cabeca, de modo a segurar cada in- dividuo, diae noite.”” (F. Guattari) B: Radio Xilik. Radio livre urgente chama as radios livres de Soro- caba. B: Acorda, Manchester paulista, que essa pre- guica faz cera nos ouvi- dos. Vossos solitarios trans- missores grunhem uma lingua oculta. Acorda, Manchester Paulista. O galo rouco deixa o louco najanela. Crise? S7 RADIOS LIVRES A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAQ 56 dores nat Os extermi B sao eles... Nés desejamos a vida descoberta. sour orn 38 A. MACHADO/C, MAGRI/M. MASAGAO yon MPELA s HIROSHI! Um pouco de historia: as radios livres européias Une das experiéncias mais férteis de insergio dos meios de teledifusiio no processo de reconstrugao democratica aconteceu em alguns paises da Europa, durante os anos 70. O movimento das rédios livres, iniciado na Italia em 1975, visava perfurar o mono- polio estatal das telecomunicacées, através de emis- sdes de radio ilegais ou nao autorizadas. Nascidas no bojo de movimentos politicos contestatérios, as ra- dios livres estimularam as pessoas a passar da con- dicdo passiva de ouvintes para a de agentes ativos de seus discursos e a colocar no ar as suas idéias, os seus prazeres, as suas miisicas preferidas, sem pre- cisar de autorizacao para isso. As faixas de onda fo- ram consideradas propriedade coletiva e cabia 4 co- letividade usufruir delas. Piratas em busca de ouro Asradios livres européias nada tém a ver, entre- tanto, com as rddios piratas, cuja histéria é anterior e completamente outra. Ha uma enorme confusao 60 A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO terminolégica nessa drea. Radios piratas, radios pe- tiféricas e rdios livres formam trés frentes progra- maticamente diversas de corrosao do todo-poderoso monopdlio estatal das telecomunicacées, vigente na Inglaterra, na Italia e na Franca até meados deste século, através dos érgios BBC (British Broadcasting Corporation), RAI (Radio-Televizione Italiana) e ORTF (Office de Radiodiffusion-Télévision Frangai- se) respectivamente. A pirataria é um fendmeno ti- picamente inglés. A partir do final dos anos 50, al- gumas emissoras foram montadas dentro de barcos, para emitir fora das Aguas territoriais da Gra-Bre- tanha, como forma de burlar a tutela estatal. A radio Merkur, por exemplo, emitia nas costas de Cope- nhague (Dinamarca), a Nord nas costas de Estocol- mo (Suécia), a Verénica em Aguas holandesas, a Ca- rolineea Atlanta no mar da Inglaterra. Era costume erguer uma bandeira negra, como a dos corsdrios, nos barcos emissores, e esse detalhe deu origem a ex- pressio “radios piratas’’. Essas emissoras eram “piratas’’ também num outro sentido. Elas buscavam o ouro, através da conyersao do radio num veiculo comercialmente lu- crativo. Eram financiadas basicamente por multina- cionais como a Ford, Lever ou American Tobacco, que tinham interesses comerciais no mercado euro- peu e precisavam fazer seus informes publicitarios perfurarem o edificio do monopdlio. A primeira pi- rata air para oar — a Merkur — estreou em julho de 1958 e um més depois j4 contava com verbas publi- citérias de 150 mil délares. Basicamente, essas radios introduziram na Europa o estilo radiofénico norte- americano, baseado na difusdo de miisica pop e na animaciio dos disk-jockeys. Se considerarmos que as radios do monopélio eram, nessa época, palavrosas, RADIOS LIVRES 61 enfadonhas e demasiado obcecadas com a difusao de misica classica, nao é dificil imaginar que as pi- ratas ganharam terreno em pouco tempo. A radio Caroline chegou a conquistar 28 milhées de ouvintes entre 1964 1968. Ja as radios periféricas nio sio “piratas’’ no mesmo sentido inglés. Teoricamente, elas emitem do exterior, nao estando portanto subordinadas 4 lei do monopolio. E 0 caso da Europe 1, da RAdio-Tele- Luxemburgo, da Sud-Radio (voltadas ao piblico francés) e das radios Montecarloe Capo d’Istria (des- tinadas ao publico italiano). Sdo emissoras “‘legais” num certo sentido. Algumas, como é 0 caso de Sud- Radio, tém seus estidios no préprio territério francés e apenas a antena transmissora fica fora. Outras, como a Europe 1, sdo sociedades de economia mista onde o Estado é acionista majoritario. Da mesma forma que as piratas inglesas, entretanto, todas elas sao geridas com verbas publicitarias das multinacio- nais e de empresas norte-americanas. Nos anos 60, a pirataria nas ondas gerou alguns incidentes internacionais, sobretudo por iniciativa da Inglaterra. Mas é um problema dificil de resol- ver pelas vias juridica ou diplomatica, uma vez que © conceito de soberania nacional sé é aplicavel ao territério fisico, mas nao ao espacgo eletromagnético. Ademais, as proprias superpoténcias internacionais desmoralizaram a idéia de inviolabilidade das na- ¢6es quando, a partir dos anos 40, se engalfinharam numa verdadeira batalha nas ondas, em busca da penetracdo ideolégica. As emissoras norte-america- nas Free Europe, Liberty e Voice of America, a Radio Central de Moscou, a Deutsche Welle da Alemanha Ocidental, além da prépria BBC britanica, bombar- dearam os seus adversarios politicos com emissdes 62 A. MACHADO/C, MAGRI/M. MASAGAO. diarias em ondas curtas, seguindo o exemplo de Goebbels na Alemanha nazista. Colocados no fogo cruzado do monopélio estatal e da pirataria interna- cional, os europeus partiram para a sua propria revo- lug&o nas ondas radiof6nicas, inventando uma ter- ceira modalidade de emissao: as rAdios livres. A explosio italiana Pode parecer estranho, mas, na Europa, a crise do monopdlio estatal de radiodifusao comeca no Am- bito da televisiio. Na primeira metade dos anos 70, houve uma tentativa frustrada de implantar a tele- visio por cabo na Italia, Embora a empreitada nao tenha vingado, ela introduziu uma discussio que acabou se revelando fértil: o cabo estaria no Ambito do monopélio? Teria o Estado poderes constitucio- nais para geri-lo? Se nao, isso significaria que o ter- reno estava livre para a sua exploracdo? De inicio restrita aos burocratas das telecomunicacdes, a dis- cussdo acabou entretanto caindo no dominio puiblico e logo a legitimidade inteira do monopélio era colo- cada em questao. Entao era possivel pensar o radio ea TV fora da tutela estatal? E se a utilizagio das ondas fosse liberada, como se poderia reinventar as telecomunicacées? Na primavera de 1975, antes mesmo que alguém desse resposta a essas questdes, as radios livres ita- lianas come¢aram a acontecer na pratica, ignorando 0 monopilio € toda legislagfo que o suportava. Elas ainda nao tinham nada de alternativo no sentido po- litico-cultural do termo. Radios como a Milano In- ternazionale e a Emmanuel de Ancona, pioneiras do movimento, eram emissoras de aficionados e de bri- RADIOS LIVRES 63 coleurs da eletrénica. Nas fileiras de seus animado- res havia homens como Borra e Semprini, comer- ciantes de aparelhos de som, que se converteriam hos principais fornecedores de equipamentos de transmiss&o quando as radios livres explodissem logo aseguir. Desde 0 inicio, as radios alternativas ao mono- polio se aglutinaram em dois nicleos. De um lado, aquelas que tinham interesses comerciais, que visa- vam 4 exploragdo de publicidade e a transformacio. do radio num negécio rendoso, como era nos Estados Unidos. Nessa perspectiya empresarial, a RAdio Mi- lano Internazionale aparece como o melhor exem plo, De outro lado, porém, o desafio ao monopélio abriu espago para uma experiéncia radiofénica absoluta- mente inédita, dirigida para uma auténtica gestao alternativa da informagdo e para oexercicio direto da democracia, através de sua ligacdio com movimentos sociais contestatérios. Esta tiltima estava quase sem- pre relacionada com as novas esquerdas ou com gru- pos de natureza politico-cultural que nao mais se encaixavam nos yelhos partidos. O Canale 96 de Milao, a Radio Milano Centrale, a Radio Citta Futura de Roma e a Radio Bra Onde Rosse foram algumas das emissoras que melhor per- sonificaram essa segunda alternativa. A Milano Cen- trale mantinha conexées diretas com fabricas ocupa- das e contava com uma rede de infotmagées sobre a vida da cidade que incluia, entre outros, os motoris- tas de taxi de Mildo. Suas ramificagdes na vida poli- tica da cidade Ihe permitiam manter os ouvintes in- formados sobre concentragdes, greves e manifesta- goes e dar em primeira mo, ao vivo, noticias dos diversos movimentos reivindicatorios. Abria amplos espacos para as chamadas autonomias (setores par- Ca A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO ticulares de combate, como as mulheres, os traba- lhadores imigrantes, as minorias étnicas, os jovens, os homossexuais, etc.) e até na publicidade manti- nham uma atitude alternativa, anunciando apenas as cooperativas e os mercados que vendiam a pre¢os populares. A estrutura organizativa da Radio Milano Cen- trale, com sua rede de extensdes nos movimentos so- ciais, de certa forma resume 0 espirito das demais emissoras alternativas. A maioria delas opera em es- quema de autogestfo e siéo mantidas com a contri- buicio voluntaria de seus colaboradores e simpati- zantes. Mais conseqiientes em marcar o papel dife- renciado das radios livres, algumas emissoras, como €ocaso de Canale 96, emitem também contra-infor- macio, visando corroer ou subverter o fluxo de in- formagdes geradas pelos porta-vozes do poder. To- das elas, entretanto, se consideram inseridas no Mo- vimenio (nome genérico que os italianos dao a todas as frentes de combate auténomas), a que procuram, para usar sua propria expressio, atravessar. Mas ha sempre um niicleo animador (para nao dizer ‘“‘diri- gente’, termo que nao cabe no horizonte dos alter- nativos, preocupados em perfurar as relagdes de au- toridade) que, em geral, corresponde a algum circulo politico-cultural mais ou menos constituido. Foi num desses miicleos, o Gatto Selvaggio de Bolonha, que nasceu a idéia da Radio Alice, a mais ativa do Movi- mento e cujo papel na defini¢ao do papel ‘‘transver- salizante”’ das radios livres foi decisivo. Aresposta do Estadoe das forgas politicas majo- ritérias as radios ilegais era também diferenciada. Havia um clima de tolerfncia em relacdo as emisso- tas de perspectivas comerciais, enquanto aquelas que ofereciam uma alternativa ao modelo politico RADIOS LIVRES 65 eram duramente reprimidas. Em julho de 1976, os transmissores da Radio Bra Onde Rosse foram se- qiiestrados e, trés meses depois, o Canale 96 era fe- chado, acusado de manter relagdes com as Brigadas Vermelhas. Em margo de 1977 desencadeia-se uma onda repressiva sobre as radios livres de cunho poli- tico-social, culminando com o fechamento brutal (se- guido de processos criminais contra seus animado- res) das radios Popolare 99, Anadio, Alice e, um pouco mais tarde, Citta Futura. Tudo isso aconteceu depois da “‘legalizagao"’ de julho de 1976, quando o Tribunal Constitucional ditou uma sentenga ne- gando a legitimidade da reserva para o Estado das transmiss6es televisuais e declarando legal a inicia- tiva privada nas emissdes radiof6nicas de alcance lo- eal. A propria ambigitidade da legislag&o era usada de forma discriminatéria pelo poder de Estado: ele aplicava a lei do monopélio para as radios conside- radas inoportunas ea sentenca constitucional para as radios comerciais ou ligadas ao poder local. No 4pice da repressdo as radios livres “atraves- sadas’’ no movimento social, aempresa de navegagdo aérea Alitalia introduziu uma polémica ridicula, ba- seada no argumento de que as emissdes clandestinas estavam provocando interferéncias nos aparelhos de comunicacgdo de bordo, durante a operagao de ater- rissagem. Essa polémica logo foi engrossada pelas forgas conservadoras do pais, que comecaram a pres- sagiar as radios livres entrando nas faixas da policia, das ambulancias, dos bombeiros e provocando uma eatastrofe urbana. O panico era artificialmente pro- duzido para manipular a opiniado publica, pois ja- mais aconteceu acidente algum devido a emissdes ra- diofénicas. “‘O medo que eles tinham — explica Felix Guattariem Micropolitica — era que se pudesse ins- 66 A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAQ: taurar a zona no plano social, ou que esse tipo de radio (...) servisse de caixa de ressonfncia a movi- mentos politicos mais amplos.”” O combate diferenciado as emissdes livres era endossado igualmente por comunistas e democrata- eristaos. O PC eos sindicatos operarios foram fiéis ao principio do monopélioa maior parte do tempo. Nao se pode esquecer que a invasdo do estidio da Radio Alice por tropas da policia foi determinada pelo pre- feito comunista de Bolonha. Entretanto, algumas secgdes sindicais comecaram também a utilizar as radios livres, sobretudo nos momentos de conflito mais intenso com a classe patronal, ocasido em que co acirramento da luta exigia dispositivos de comuni- ca¢fo massiva mais rapidos e eficazes. Esse fato in- troduziu contradigdes dentro do aparelho sindical, ja que ele tinha de defender 0 monopdlio e convi- ver ao mesmo tempo com emissGes ilegais produzi- das em suas proprias fileiras. Quando o monopdlio se tornou politicamente insustentavel, os comunistas passaram a defender radios comunitarias burocrati- cas, ligadas ao poder local ou as entidades represen- tativas. Do lado da democracia-crista as contradicdes nao estavam menos exacerbadas, pois o partido re- presentava interesses de grupos econémicos que pre- tendiam ocupar comercialmente as ondas de radio e TV, mas ao mesmo tempo temia que a liberacdo das ondas provocasse uma explosao cultural e ideolégica de conseqiiéncias imprevisiveis. O estrangulamento das emissoras de interven- ¢ao cultural-ideolégica se deu, portanto, em varias frentes: pela via juridico-policial e também pela via mercadoldégica, através do preenchimento completo do dial com radios de tipo empresarial. No final de 1975, quando se deu a primavera das radios livres, RADIOS LIVRES. 67 havia quase uma centena de emissoras clandestinas em toda a Italia, das quais pelo menos um tergo era constituido por radios democraticas sem fins comer- ciais. Em junho de 1978, segundo cifras oficiais, a Italia j4 contava com 2 275 radios locais e 503 emis- soras de TV, a maioria esmagadora emitindo pro- gramacgao comercial e sobrando para as emissoras “atravessadas” no Movimento nada mais que dez por cento do espago eletromagnético. A conseqiién- cia foi a degeneraciao das midias de teledifus4o, uma vez que, destituidas de projeto cultural e avidas ape- nas de lucro facil, a maioria das emissoras preenchia seus horarios com enlatados comprados no exterior. A “‘legalizagaio” de 1976, decorrente da sen- tenga 202 do Tribunal Constitucional, provocou uma corrida as faixas de onda em freqiiéncia modulada e TV, mobilizando o sistema publicitério, a indis- tria do disco e do video, o mercado de espetdcu- los, os partidos politicos de tipo eleitoreiro e toda uma multidao de empresdrios e tecnocratas interes- sada numa fatia do espectro eletromagnético. Essa proliferagao desordenada de radios e televisées, sem qualquer sentido de prioridade, acabou desembo- cando naquilo que posteriormente se yeio a conhe- cer como a “‘anarquia” italiana: uma quantidade praticamente incontavel de emissoras encadeadas e superpostas, impossiveis de separar, a maioria de- las terrivelmente iguais. Quando um ouvinte cir- cula de automovel num centro urbano italiano com o radio ligado, ele muda automaticamente de emis- sora a todo momento, sem sequer tocar no botao do dial e as vezes sem nem mesmo perceber. Entregue a sanha dos comerciantes e oportunistas de toda es- pécie, o movimento das radios livres degenerou num patchwork de lugares comuns. Mas inegavelmente 68 A, MACHADO/C, MAGRI/M. MASAGAO abriu uma brecha no monopdlio, e esse precedente seria o estopim de uma revolugdo nas ondas que se propagaria por todo o Velho Mundo. Alice do outro lado do espelho pesar dos problemas, a experiéncia das ra- dios livres democraticas na Italia foi fértil de desco- bertas e se converteria num ponto de referéncia obri- gatorio para todas as posteriores tentativas de rein- ventar o radio numa perspectiva coletiva. De certa forma, ela exprimiu uma nova sensibilidade politica, que nao poderia desabrochar através das vias tradi- cionais, como os partidos, as entidades, o parla- mento, etc. Essa nova sensibilidade, que nasceu nas barricadas de 1968 e foi-se transformando com a experiéncia acumulada, consistiu na pulverizagao da luta politica em intimeros pequenos niicleos dotados de singularidade (grupos de bairros, de jovens, de mulheres, de consumidores, de pacifistas, de racas, de nacionalidades, de opgdes religiosas, de op¢des sexuais, de opgdes culturais, etc.), nticleos que nao podiam aceitar as formas de organizac&o pasteuri- zadas dos partidos e sindicatos e que nao deixavam dissolver sua singularidade sob a mascara dos obje- tivos “histéricos” e ‘‘gerais’’. No bojo desse Movi- mento, as radios livres democraticas desempenha- Tam um papel “‘transversalizador"’, ou seja, elas po- diam atravessar todas as singularidades, dar-lhes presenga e expressdo, sem entretanto enquadré-las ou reduzi-las aum denominador comum. Ninguém negara que a mais importante radio do/no Movimento foi a Alice de Bolonha. Ela co- me¢ou a emitir em janeiro de 1976 como uma das RADIOS LIVRES Co) derivagdes de um grupo diretamente mergulhado na agdo politica, o A/Traverso, responsayel, entre ou- tras coisas, por reunides publicas, atividades comu- nitarias, festas, uma revista periddica e até mesmo encontros diarios e informais na Piazza Maggiore. Alice se caracterizava, antes de tudo, pela recusa de assumir uma postura politico-partidaria definida nos termos convencionais e por trazer 4 discuss&o pu- blica temas malditos como 0 corpo, o desejo, o pra- zer e a preguica, Com muita freqiiéncia, mesclava valores estéticos com acées politicas, retomando a atitude desmistificadora do dadaismo num contexto pés-moderno. Seus articuladores buscavam inter- romper a transmissdo de informagées politicas pro- dutivas e subverter o fluxo de produgio e circulagiio dos signos emitidos pelas varias instancias de poder. A melhor definigdo de seu programa de acio talvez esteja delineada nas palayras com que a emissora de Bolonha abriu a sua primeira emissfio: “Radio Alice emite: miisica, noticias, jardins em flor, conversas que nao vém ao caso, inventos, des- cobrimentos, receitas, horéscopos, filtros magicos, amor, partes de guerra, fotografias, mensagens, massagens e mentiras’’. Alice, de fato, nfo tinha escripulos em praticar as misturas mais inesperadas, na luta contra os Jabberwocks (monstro inventado por Lewis Carroll em um de seus poemas e que, no caso de Alice, tanto podia personificar os gorilas da ordem constituida, quanto os fdsseis da oposicao consentida). Combi- nava citac6es literarias (Joyce, Maiakévski, Carroll) com miisica classica, cangdes politicas, rock'n'roll, 70 A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO mondlogos interiores, fluxos de pensamento, gritos primais, depoimentos de grevistas, slogans de mani- festagdes e zueira de festas. Ora a linguagem era utilizada em sua dimens4o instrumental, ocasiaio em que os microfones eram abertos aos ofendidos de toda espécie; ora a linguagem era experimentada na sua dimensdo poética e reinventada numa perspec- tiva criativa; ora ainda ela explodia como uma ope- racao de guerrilha no seio das midias dominantes, revertendo a légica da circulagio de mensagens no espago eletromagnético. Em margo de 1977, Bolonha foi paleo de uma crise sem precedentes no Ambito das universidades, cujo resultado foi um confronto violento com os po- liciais enviados pelo prefeito comunista, com saldo de um morto e intimeros feridos. Alice desempe- nhou um papel estratégico nesse conflito, “transver- salizando” de alto a baixo o Movimento, com noti- cias ao vivo enviadas por telefone diretamente pelos estudantes envolyidos. Nao bastasse isso, a radio in- citava as pessoas a aderirem as manifestages e, com base em informagoes passadas por simpatizantes dis- tribuidos por toda a cidade, alertaya sobre os deslo- camentos da policia e os focos de repressio. O po- der de Estado considerou intoleravel a interven¢ao da Radio Alice nos acontecimentos e, no dia 12 de mar¢o, por ordem expressa do prefeito Zangheri, a emissora foi invadida por tropas policiais e os seus articuladores, presos e processados. A invasio foi re- portada ao vivo até o ultimo momento. Silenciada, Alice se transformou em um mito, eo seu exemplo fez florescer outras incontaveis alices dentro e fora da Italia, como que fazendo vingar 0 postulado maximo da emissora: RADIOS LIVRES 7 “Que cem flores murchem! “Que mil transmissores florescam!"* As mil Alices da Franca Na Franga, as antenas livres se converteram ra- pidamente num dos mais significativos eventos poli- ticose culturais do final dos anos 70. Tal como havia acontecido na Italia, as ondas hertzianas foram atra- vessadas pela interferéncia de uma multiplicidade de vozes, que falavam linguas, sotaques e jargées par- ticulares e de que as radios oficiais niio costumavam Ser porta-vozes. No dizer de Felix Guattari (Revo- lucdo molecular), as radios livres francesas produ- ziram “uma revolugao na relagao com a palavra pu- blica, um questionamento da manipulagio do ima- ginario por uma ordem social opressora que fabrica o consenso majoritério’’. Nesse sentido, experiéncias fundamentais foram realizadas no periodo 1977- 1983, tanto a nivel de insergao do veiculo nos movi- mentos populares de base, como a nivel da liberta- Gao da subjetividade e dos gozos pessoais. Excetuando-se o exemplo isolado da Radio Campus de Lille, a primeira experiéncia de radio livre nos termos do movimento europeu e que foi ao arem 1969, considera-se a origem do fendmeno na Franea com a primeira emissao, em marco de 1977, da Radio Verte de Paris, de inspiragao ecolégica. Foi uma intervengio memordvel e de grande repercus- sao, principalmente por um detalhe decisivo: nessa ocasiao, o canal estatal de televisao TF1 apresentava os resultados do segundo turno das elei¢des munici- pais, e entre os convidados do programa estava um dos idealizadores da radio livre, Brice Lalonde, que R A, MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO ligou um receptor de radio diante das cameras € co- locou a Radio Verte no audio da TV, para a surpresa de cerca de 15 milhées de espectadores. Foi a maior audiéncia j4 obtida por uma radio livre. Na seqiién- cia, o destino das radios livres francesas nao seria tao feliz quanto a sua estréia. Perseguidas, fechadas, si- lenciadas com interferéncias oficiais, elas seriam, nos primeiros tempos, mais discutidas (na imprensa escrita principalmente) do que propriamente ou- vidas. Pode-se dividir 0 movimento das radios livres francesas em dois grandes periodos: antes e depois da tomada do poder pelos socialistas liderados por Francois Mitterrand, em julho de 1981. Antes dessa data, o monopdlio nacional das telecomunicagoes era defendido com unhas e dentes pelo governo de cen- tro-direita de Giscard d’Estaing, se bem que amplos setores do empresariado, excitados com a idéia de explorar publicidade em radios e TV comerciais, ja viessem colocando em questao a excessiva estatiza- ¢ao dos meios de radiodifusto. Quando eclodiu o movimento das radios livres, sob inspiragao direta da experiéncia italiana, esses segmentos do empresaria- do francés apoiaram com todo vigor, principalmente através da imprensa escrita, a ousadia dos jovens pioneiros, pois queriam utiliza-los como ariete para derrubar o monopélio e implantar as emissoras co- merciais. No periodo giscardiano, as radios livres tiveram vida efémera, pois eram perseguidas pelo regime. Mas, com uma tinica excegdo, nfo se pode dizer que tivessem uma existéncia propriamente clandestina: as emissdes eram mais ou menos abertas, as vezes até com identificaciio do local da emissao e dos seus arti- culadores. Tratava-se de abrir uma brecha no mono- RADIOS LIVRES 3 polio, por dentro e, se possivel, com a adesdo das populagées locais. A excegiio foi a Radio Verte Fes- senheim, que optou, desde suas primeiras emissdes em 1977, pela clandestinidade, razio por que sobre- yiveu a todas as investidas da repressio. Essa emis- sora surgiu como forma de aglutinar resisténcia 4 construgado de uma central nuclear em Fessenheim, na Alsécia. Equipou-se com material movel, de modo que podia escapar facilmente da policia, ocul- tando-se nas montanhas ou atravessando as frontei- ras. Contou, desde logo, com a ades4o espontinea da populacdo local (emitia em francés, alemao e no idio- ma da regido), e essa talvez tenha sido a principal razio por que o governo giscardiano nunca conse- guiu sustentacdo social suficiente para silencia-la. O ano de 1977 viu florescer radios livres de todas as coloragdes ideoldgicas e culturais. Muitas delas eram apenas pitorescas, como foi o caso da Fil Bleu (Fio Azul), organizada pelos préprios giscardistas da provincia de Montpellier, para combater os socia- listas e comunistas que detinham o poder municipal. Outras, porém, tiveram uma importancia vital para oavanco do movimento. Talvez se possa dizer que a experiéncia francesa mais rica desse periodo foi a da RAdio Coeur d’Acier (Coracao do Ago), instalada na regido industrial de Lorraine, no norte da Franca. Em dezembro de 1978, uma sideriirgica da ci- dade de Longwy anunciou a demissao de 2300 ope- rarios por causa das dificuldades econdmicas. Ime- diatamente, iniciou-se uma grande mobilizacdo da populacdo da cidade contra a medida. A central sin- dical do PCF — a CGT — enviou ao local um equi- pamento de radiotransmissao e dois jornalistas en- carregados de treinar os quadros minimos necessa- rios para colocar a maquina em funcionamento. Eles 4 A, MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO_ pensavam em ficar no ar umas duas semanas, mas acabaram ficando 18 meses, tal a repercussdo do evento. A populacao engajou-se com entusiasmo na transmissio, comegou a reconhecer a Radio Coeur d'Acier como a sua radio e se mobilizou de todas as maneiras possiveis para manté-la no ar. Uma pro- fessora de gindstica improvisava programas espor- tivos, um aficcionado do jazz fazia selegdes desse gé- nero musical, um padre explicava o que era canto gregoriano, trabalhadores emigrados falavam de seus paises de origem, moradores faziam leitura cri- tica dos jornais franceses. Quando percebeu que o moyimento tinha fugido do seu controle, a CGT ten- tou recuperar o equipamento e silenciar a Radio Coeur d'Acier, mas ja era tarde. O movimento havia ultrapassado as direcdes tradicionais e os esteredti- pos da estrutura sindical. A Radio Coeur d’Acier havia-se tornado a yerdadeira forga aglutinadora do moyimento. Guattari afirma, a esse respeito, que, num determinado momento, essa radio foi mais li- yre que todas as demais radios livres da Franca, além de ter representado um grande problema para a CGT, que nao tinha como liquida-la, porque nao era apenas um grupinho esquerdista que estava envol- vido nela, mas um movimento social dos mais am- plos. O primeiro artificio inventado pelos servicos de vigilancia da Télédiffusion de France para calar as emissoras livres foi produzir interferéncias nas faixas de onda utilizadas por estas tltimas. Essa forma de censura, a que os franceses chamam de brouillage, consiste em emitir um ruido desagradavel com trans- missores muito potentes na mesma freqiiéncia da emissora que se quer “queimar’’. Desta maneira, fi- cava praticamente impossivel sintonizar a emissora, RADIOS LIVRES 75 além de dar a impressdo, ao piblico mais desavisado, de que as radios livres no passavyam de uma zoeira inaudivel. O pessoal das radios livres, com fina iro- nia, costumava dizer que a brouillage era a radio pirata de Giscard e o fato de ela emitir apenas ruido significava que os seus articuladores nao tinham real- mente nada a dizer. Mas a verdade é que 0 dispositivo de “queima”’ dos sinais acabava também revertendo contra o monopolio, pois os ouvintes viravam o bo- tao dodial e ouviam, o tempo todo, censura e apenas censura. Além disso, as radios livres também tinham suas formas de defesa: quando eram interceptadas pelos mecanismos de balizamento da Télédiffusion, passavam a emitir em outra faixa de onda, ou entdo se colocavam bastante proximas de uma emissora oficial, de forma que a brouillage acabava queiman- do tambem esta ultima. Em 1978, com a yitéria da direita nas elei¢des, inicia-se um periodo de repressio mais aguda contra as emissées ndo-autorizadas. O governo assina um aditivo a lei das telecomunicagées, estabelecendo multas no caso de transgressio ao monopdlio e até um ano de prisdo. A partir dai, ha um refluxo tem- porario do movimento, pois o governo se mostra dis- posto a acabar com a desobediéncia civil no campo da radiodifusao. Em junho de 1979, a policia inter- yém na sede do Partido Socialista para tomar o trans- missor da Radio Riposte, dos socialistas. O préprio Francois Mitterrand acaba sendo citado em proces- sos por envolvimento com as radios livres. Uma quantidade imensa de processos vai sendo acumu- lada nas prateleiras do poder judiciério, mas os jui- zes ndo encontram nem tempo, nem sustentacao po- litica para distribuir punic¢dées. Com a vitéria dos socialistas em 1981 ¢ a subida 6 A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO de Mitterrand ao poder, a coisa muda de figura, ini- ciando-se ai um segundo periodo na histéria das ra- dios livres francesas. JA na ocasiaio da posse do novo governo, a Franca contava com 28 radios livres e mais 14 em avangado estado de implantacao. Em pouco tempo, esse ntimero foi duplicado e triplicado, até chegar, em meados de 1982, 4 média de uma nova emissora paralela a cada 24 horas. Eram radios de todos os tipos, para todos os gostos, com todas as coloragées ideolégicas. Dentre as emissoras parisien- ses, algumas se especializaram em misica jovem, como a Tropical ou a Oblique; outras procuravam dar voz As minorias marginalizadas, como foi o caso da Gilda, da Gay e da Tomate; umas terceiras ain- da se fizeram expressio das comunidades locais, como aconteceu com a Radio 19, do 19° distrito de Paris, ou a Fréquence Montmartre, dos moradores do bairro de mesmo nome. Entre estas Ultimas, a experiéncia de maior impacto foi a da Radio 93, li- gada ao subirbio de Saint Denis, que se tornou um. importante nucleo de resist@ncia dos moradores dos grandes conjuntos habitacionais. Nao foi isento de problemas esse segundo pe- tiodo. Os socialistas nio viam com bons olhos a cha- mada “anarquia” italiana e tudo fizeram para impe- dir que a Franga seguisse 0 mesmo caminho. Por outro lado, resistiram até onde foi possivel 4 pressio dos grupos de interesses comerciais que queriam in- troduzir a publicidade no radio e na TV. Enquanto os debates se arrastavam na imprensa partid4ria e no parlamento, a Télédiffusion de France continuou “queimando” as ondas livres, pois, afinal, a velha le- gislagio das telecomunicagées ainda era vigente. Uma emissora particularmente visada pela brouilla- ge dos socialistas foi a Gilda, dirigida por Patrick RADIOS LIVRES nn Fillioud, nao por acaso filho do ministro das comu- nicacSes. E até que as sucessivas legislacoes “‘legali- zassem”’ as radios livres, a partir de 1983, a Franca viveu uma situagiio confusa no tocante ao espaco ele- tromagnético, com os organismos oficiais perseguin- do as radios construidas fora do monopélio, mas o dial entupido delas até a completa ocupacao. Fim e recomeco O destino das rdios livres européias foi selado com a sua legalizacaio. Elas que haviam sabido resis- tira todas as modalidades de repressdo, ndo estavam preparadas para enfrentar a arma mais traicoeira: a institucionalizagao. As duas formas de legalizaciio adotadas na Europa lhes foram igualmente nocivas. A legalizacao de tipo empresarial, A moda italiana, dando énfase 4 competéncia técnica e econdmica, com abertura ao suporte publicitario, esmagou as radios verdadeiramente alternativas, pois os seus transmissores modestos nao puderam enfrentar a hegemonia do grande capital. Por outro lado, a le- galizacdo de tipo burocrdtico, 4 moda francesa, dan- do @nfase 4 representatividade polftico-partidaria, ao poder local e aos organismos corporativos e sindi- cais, acabou dissolvendo as emissoras nao vinculadas aos aparelhos convencionais de representagdoe que, nao por acaso, eram as mais criativas e as mais con- seqtientes do movimento. As radios livres auténticas poderiam, é claro, ter resistido. Ocorre, porém, que os movimentos da ju- ventude e dos trabalhadores — o principal alimento de que elas se nutriam — entraram em refluxo. As radios livres nio poderiam sozinhas transformar em 78 A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO. barulho o siléncio da maioria. O argumento dos oportunistas, segundo o qual as radios alternativas, “como tudo o que é contestatério”’, acabaram sendo recuperadas pelo capital ou pela burocracia politico- partidaria, peca por isolar a experiéncia radiofonica da vida real das pessoas. Enquadrada a rebeldia, institucionalizada a liberdade, policiada a desobe- diéncia civil, o movimento das radios livres apenas acompanhou o refluxo geral da sociedade européia. E yerdade que alguns grupos deixaram-se assimilar pelos organismos oficiais de representag&o, ou se profissionalizaram, abrindo-se 4 sustengao publici- taria; mas eram grupos que, desde o inicio, ja se in- clinavam nessa direcio e foram apenas beneficiados pela conjuntura. As poucas radios que ainda procu- ram resistir A maré de caretice tem de enfrentar o descrédito geral e o cinismo que ameacam a todo momento contagiar seus animadores. Mas é justa- mente nesse momento em que as radios livres euro- péias enfrentam a sua pior crise que come¢am a pro- liferar emissoras clandestinas no Brasil, culminando com o boom de Sorocaba, que chegou a ter, no final de 1983, mais de 40 rdios livres no ar. O fim é tam- bém orecomeco. Um depoimento: o Sombra Risio pirata radio xilik rdio livre radio clan- destina radio poema radio oficial radio comercial ra- dio canal. Radio. Esta paixdo me atingiu repentinamente, como aquele yulto que dobrou a esquina. Para citar Le- dusha, uma poetisa lenddria. Para irradiar. Radio. Como radiacao. “Foi pelos fins de outubro...” E o que dizia Wel- Jesem A Guerra dos Mundos. Mas para mim foram comecos de julho. Essa paixdo ja tinha dado sinais de si em janeiro: Z, de Brazil. Eu nao podia ima- ginar ent4o como realizaria. Apenas sabia — como sabia no sei — que ela iria me carregar até um ter- ritério de magia. Ela despencou de repente, como acontece com essas coisas, vinda da premeditagioe do acaso, como um morcego da noite que cai sobre vocé de asas aber- tas. E claro que a primeira vez tinha de ser A noite... S6 se transmite 4 noite, s6 se locuta 4 noite, s6 como éter a noite. 80 A. MACHADO/C, MAGRI/M. MASAGAO Num segundo de luz negra, o fruto dos meses armou-se, repentinamente, num interesse escuso e emedebista, na palavra sim quanto ao telefonema. Num segundo, a gente estava nos jornais, eles nos deglutiam, todas as m4os bem avidas para nos devo- rar, nos paginar, nos diagramar, nos imprimir e nos vender na mais ampla circulagao nacional. Quanto A Globo, fechou-se em copas. Bem, a gente nao tinha todas as cartas na mesa, mas puxa vida, Jack, nossa jogada era alta. Voyage superequipado da Federal, eu nao te esquecerei! E agora, radioamantes, outra palavra inven- tada: 0 livro. Que estamos fazendo nés ao pé da pa- gina impressa? Que est&o fazendo eles neste disco? Nos estamos no ar, seus calhordas, ou como se disse uma vez, fuck you, asshole! As coisas do radio se engatilham num segundo e quanto a nds, que so- mos os filhos do gatilho... Oradio é a poesia. Marshall McLuhan, deixe-me aproveitar a rara oportunidade para reverenciar a tua poesia secreta. De hoje em diante, para mim, vocé sera o velho Mac. Um amigo nas estradas da eletrénica. Nas estradas da eletrénica estamos, em plena Idade Midia. Cavaleiros negros e servis serpentes contra nés avangam. Contra vés transmitem. Estado de atalaia, com seus radares de alarme avancado A dist&ncia, os seus misseis e seus canhdes. Mas a radioterapia é um fato para essa tensdo, 6 ciimplices sutis. A liberdade da Xilik existe. Irra- diando na atmosfera o seu sinal verde-peixe-nas-pro- fundezas, como eco de sonar de “Viagem ao Fundo do Mar"’ — vival Na insensatez do asfalto! Viva! Em sua fetal espera. Viva! No germinar pulsante das se- mentes. RADIOS LIVRES 81 Sorry para quem nao gostou da locugio. Era péssima mesmo. Lamento para quem achou isso e aquilo. Essa radinha n&o presta. Ela é uma vaga- bunda. A mais vagabunda de todo o Audio paulista. Antenas parabdlicas imensas varrem os céus. Nelas verei ainda as radioesquadrilhas certas. Toda a poesia vive no radio, na pepita de ur4nio, nesta radiagao. Toda poesia diz: “alé base, responda... alé base, responda..."". Um mundo belo para se viver é 0 nosso, mein Hertz. Um universo de misteriosa beleza; “‘vasta e obscura é a visao que formei em minha mente’. “Eu pessoalmente acredito em vampiros: o beijo frio, os dentes quentes, um gosto de mel.” “Quem sabe o mal que se esconde por detras dos coracdes hu- manos?” The shadow ever knows. Xilik por aqui. O resto é mistério no mistério. As ondas, fili- busteiros. Da neblina que cobre as aguas, surjam, queimados de sol. Sem medo, ao jogo do mar alto. Das sombras que recobrem as cidades eu ja falei demais. Que estas malditas paginas impressas, tio alinhadas e certas, nio nos contenham mais! Que seja este um momento apenas! Cegante aparicfo A luz do sol. Retornemos aos mantos que nos envol- vem, deixando para tras miragens, radioamantes, fuligem e vultos pelo ar. O que podia ser dito, dito foi. E firmo, cordialmente, como O Sombra. 82 A. MACHADO/C. MAGRI/M, MASAGAO © Sombra ataca na Avenida Paulista. i 1? Manifesto da Radio Itaca eas comecaa viagem. Como a poesia, uma viagem ao desconhecido, N&o a busca de algo distante, idealizado. Masa realizacao de sonhos no cotidiano — itaca seja aqui. No ja to complexo emaranhado de relacdes, uma /nova teia: Pessoas se conhecendo através de Ondas so- /noras. Oespaco éoar. Navegar nas ondas da metropole tegida por Pro- /meteu, bebendo ovinho de Dionisio. Bye Bye, Dentel. Agora os deuses somos nés. 2° Manifesto da Radio Itaca NOS voamos NOS voamos Ositacos sobre acidade flutuamos no no espaco vento noar ondas de &mberes & ébanos & perfumes sensuais de toda espécie quanto houver de aromas deleito- /sos... Pra despertar o coro! Pra pulverizar as torres do siléncio! ELES falam ELES falam TEMPO °o 4 a o o o = o TEMPO ciclopes &lestrigdes duques zurros & condes joGes &S. Excia. osinistro Magalhaes RADIOS LIVRES SAO PAULO dasneblinas densas! TODAS as possibilidades suspensas... NO AR PROJETO ITACA nés. no estamos atrés da bufunfa. rr 3? Manifesto da Radio Itaca “que o meu pobre intelecto saia a voar sem teto sem ter onde se par." Harolde de Campos Pacinos rumo a ltaca (e diziamas que, como @ poesia, seria uma viagem ao desconhecido) que- rendo realizar a grande orgia no ar — a troca das mais diversas experiéncias através de uma panela, uma antena eum microfone. itaca seja aqui: eo é. Na paixéo, orgasmos e angistias. Ocotidiano — endo o Estado — €0 local esco- Ihido para nossos delirios/desejos. € a partir desse pedacinho que vamos romper. N&o ter compromissos de género global (su- pertecnologia, antena postal) vai refletir na intensi- dade das invasées nos timpanos dos radi ioamantes. Nada de relacdes viciadas, queremos nos comuni- car. Os milhares de ciclopes e lestrigdes do dia-a- dia atormentam os mares de itaca e a cabeca de quem faz a locugao. Nem sempre o Prazer preva- lece. Talvez aio motivo da frustracdo: — Quero fazer rddio o dia inteiro. Nao da. E tentar jogar com essa tensao. Tomar félego e ressurgir: passado o baixo as- tral, a gente percebe que viver “pirataria” @ tudo isso. Itaca continua a viagem. Sempre que preciso, recorrendo ao poeta. Afinal, “é preciso arrancar alegrias ao futuro” (Maiakévski). Duas ou trés coisas sobre Alice Te ccmnce tragos de um caminho singular. Imagindrio da pequena Alice que venceu e foi yen- cida pelos jabherwocks. O jogo comega. De saida, o projeto de uma ré- dio como hipétese: “mensagens, massagens, menti- ras’. Dar voz ao desejo — a cada coletivo um mi- crofone — e transmiti-lo. No Mercantino Rosso, nas greves, nas escolas ocupadas, nos supermercados territorializados, Por onde rolou o microfone da Ra- dio Alice, nada foi como antes... “Aqui Radio Alice. Enfim, RAdio Alice. Vocés nos ouvem na freqiiéncia de 100,6 MHZ € continuarao nos ouvindo se nao formos mortos pelos nazis.”” E foram... Bifo, Fontana, Marchi, todos pre- sos. Transmissores seqiiestrados, desejos trancafia- dos nas jaulas do grande jiri italiano. Nao escuta- Mos sua voz, mas, como dizia Maiakéyski, “‘conhe- cemos 0 peso do papel impresso” no coragdo radio- amante solitario. 88 A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO Radio no Movimento. Radio Alice é Radio no/ do Movimento. O que significa isso? A crise da es- querda italiana pés-72 desemboca nos moyimentos de revolta, nas diferentes autonomias (termo ita- liano para designar setores particulares de movi- mentos sociais urbanos: mulheres, jovens proleta- rios, homossexuais, etc.). A imiciativa da Radio Ali- ce vinha do cireulo politico Gatto Selvaggio, que in- tervinha no processo de recomposi¢ao da dispersao. Cultura e politica indissocidveis; cotidiano e poli- tica ndo dao vez para palayras de ordem do compro- misso hist6rico (DC-PCI). “White Rabbit”’ do Jef- ferson Airplane aurmen- ta, Pausa. Miisica aumenta. Pau- sa. “Radio Alice da a pala- vra a todos, exceto a: jabberwocks e zumbis, generais aposentados e amarelos, mamaes que dizem mentiras e crian- gas que falam sempre a verdade, fascistas e far- macéuticos especulado- tes, democratas-cris- tios e demostenianos, falocratas e falsérios, leaders e outsiders, bombeiros e banquei- ros, precursores € por- tas-bandeiras.” “Radio Alice faz falar quem: ama as mimosas e acredita no paraiso; odeia a violéncia e agri- de os violentos; acredi- RADIOS LIVRES 89 ta ser Napoledo mas sabe que podera muito bem ser um aftershave; fumantes e bebuns; malabaristas e mosque- teiros; ausentes e lou- ” cos. Comec¢o é ponto de fuga fora da ordem do dis- curso. Fim é ponto para a fuga do discurso da or- dem. “Informar nao é suficiente. Quem emite, quem re- eebe? Nao se trata de informagées mais verdadeiras sobre os mesmos temas, informagées mais detalha- das, mais vastas, mais articuladas, mais adequa- das, mais corretas (alias, como corrigimos a infor- magao?). Trata-se de outra coisa, uma outra infor- macao sobre os fatos, sobre os minimos fatos da luta operdria, enfim de uma outra realidade. £ PRECISO REGISTRAR CADA MINIMA VA- RIACAO NO DIAGRAMA COTIDIANO DAS LUTAS.” Alice vai em busca do que € menor, sabendo que a sociedade conspira contra a propria capaci- dade de interpreta-lo. Alice rejeita o termémetro tipo ideal para detectar a manifestagao de classe. Ela sai 4 cata, um pouco as cegas, do absurdo da linguagem. Alice se recusa a assumir um papel maior, oferecer seus servicos 4 palavra do Estado, dar a palayra oficial, a palavra dominante das me- taforas, o jogo de palavras. Recusa o sonho da maio- ria dos pequenos coletivos e se propoe a criar um de- 90 A. MACHADO/C. MAGRI/M, MASAGAO ver-ser menor: saber escutar, saber guardar e nao falar, impulso no ponto de fuga, velocidade da luz para se afastar das metaforas, metamorfosear. Ser estranha em sua propria lingua. Falar é como jejuar, delirar é como morder. A boca sempre foi um érgao dos sentidos, Nessa apro- priagdo radical, Alice afirma um sujeito coletivo, encadeamento articulado onde nao existem herdis ou narradores. As aspiracées sao vAlidas nos termos da prépria existéncia. “Coca Cola Douche" Voz 1: “Eles falam, eles dos Fugs em BG. falam, OK, eles falamo tempo todo. Eles lan- gam sinais, palavras, meios sinais, meias-pa- lavras, para nos obrigar a aceitar nosso papel de filhos, mulheres, pais, operarios, estudantes, para nos ensinar a fazer gracinhas e ser discipli- nados, obedecer e tra- balhar.” Abertura de “O Bar- Voz 1: “As maquinas beiro de Sevilha” de falam, falam uma lin- Rossini. guagem de ferro, sem- pre igual. Eles as pre- pararam, aperfeicgoa- ram de uma vez por to- das. Nossa funcdo é res- ponder as ordens que as maquinas continuam a nos dar em siléncio.” RADIOS LIVRES ot BG sobre, crescendo. Voz 1: “Eles falam e tudo o que dizem é con- tra nés, para nos ex- cluir, para nos enrolar, para nos submeter cada vez mais. Mas Maia- kévski ainda esta conos- co: Voz 2: Nés nao apren- demos a dialética de Hegel/ Mas ela irrom- pia na explosdo das ba- talhas/ quando, sob os projéteis,/ diante de nds fugiam os burgue- ses/ como uma yez nds fugimos diante deles.” Bifo, um dos animadores da Radio Alice, foi preso em 15/5/76 (Alice havia comegado suas inter- vencées/transmissoes em janeiro daquele ano). As acusagdes foram as mesmas que levaram milhares de jovens italianos a experimentarem a violéncia do Estado. Qualquer desvio, qualquer outro desejo, além daqueles tolerados pelos tradicionais aparatos politicos DC-PCI, se configuraya como ameaca das Brigadas Vermelhas. As Brigadas foram o deposita- rio repressivo, o bode expiatério para todo 0 Movi- mento. Da prisao, Bifo escreve um comunicado: “Eles dizem claramente: a prdtica da felicidade é subversiva quando ela se torna coletiva. Nossa von- tade de felicidade e de libertacdo os aterroriza e eles 92 A, MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO Teagem nos aterrorizando com a prisio, quando a repressdo do trabalho, da familia patriarcal e do se- xismo nao sao suficientes. Ai entdo eles dizem cla- ramente: Conspirar quer dizer respirar junto. E dis- SO que somos acusados. Eles querem nos impedir de respirar porque nds nos recusamos a respirar isola- damente em seus locais de trabalho asfixiantes, em suas relagoes individualmente familiares, em suas casas atomizantes. Ha um atentado que confesso ter cometido: é o atentado contra a separacao da vida e do desejo, contra 0 sexismo nas relacdes interindividuais econ- tra a redugdo da vida a uma prestacao de servicos.”’ A 11 de margo de 1977, durante uma emissao da Radio Alice, um ouvinte interrompe o programa para descrever, de seu apartamento, o combate en- tre a policia ¢ manifestantes (estudantes). O relato desse ouvinte — um caricaturista chamado Bonvi, sem vinculo partidario algum — lembra 0 calor do radialista de futebol quando seu time esté em cam- po. “Espere um momento... Algo importante... Maldita seja minha cabegal!... Caiu a ligacao! Ainda nos ouvem?.,. Bom, entdo escutem: aqui Bonyi, do Sturmtruppen (histéria em quadrinhos cujo titulo significa em alemao: ‘Tropas de Assal- to’). Escutem, entio. A situacio é a seguinte: o ad- mirdvel, o fantastico, é que os camaradas eram co- munistas auténticos e que os n&o-filiados As federa- Ges se sentavam e combatiam de verdade... Agora, a policia acaba de disparar gases lacrimogéneos que se espalham por toda Via Rizzoli... Escutem: a si- tuagdio é confusa, porém é magnifico que a cidade Teaja muito bem contra a provocacdo. Devolvo o te- lefone ao Gabriele..."’. RADIOS LIVRES 93 A trajetoria da Radio Alice, sua rota para trans- formar a vida e tornar suportavel a fabrica, tudo isso havia-se chocado com os aparatos politico-mili- tares do PCI-DC. O cidadao que se transforma em locutor apaixonado sempre foi um limite elétrico, O aparato-aparelho resolve nao mais deixar Alice exis- tir no cotidiano radiofénico de Bolonha e no dia se- guinte (12 de marco) a policia de Bolonha, sob or- dens da prefeitura do PCI, invade Alice. O texto que abaixo se reproduz sao os tiltimos minutos do pulsar de Alice: ... De todo jeito, a situagio continua a mesma. Os policiais estio tentando entrar, com seus casacos antibalas e pistolas na mo... Dizem que vio der- rubar a porta... Eh! Pedimos a todos os camaradas que conhecem nossos advogados que entrem em contato com eles e lhes digam que estamos sitiados como... nao sei se vocés assistiram Aquele filme... Eh, diabos, como se chama mesmo? Aquele de Boll,. na Alemanha... O caso de..., O caso de Katharina Blum. Pois bem, os mesmos tiras, os mesmos casa- cos, armados ou coisa assim... Eh! Verdadeiramen- te absurdo, verdadeiramente incrivel, algo tipico de cinema, E se nao estivessem aqui mesmo, esmur- rando a porta, eu acreditaria estar no cinema... Ei, me dé um disco para que possamos ouvir um pouco de musica, Meu Deus! (ruidos), O telefone esta to- cando o tempo todo; a verdade é que ele nao para de tocar. Temos alguma coisa de Beethoven. Se yo- c@s gostam Gtimo, se nfo gostam, bem... y4o bater punheta. (Fundo de rufdos e de musica de Beetho- ven.) Bem, do jeito que a policia yoltou e esmurra a porta... Eh! Cuidado!... Continue agachado!... (Ao fundo, berros dos policiais.) Esperem uns cinco mi- nutos que os advogados estéo chegando... Eles (os A. MACHADO/C, MAGRI/M, MASAGAO- policiais) estao dizendo: ‘Abram essa maldi = tal’ (Atendendo ao telefone)... Aqui Alles. poe quem € Alberto, mas... eh!... olha, eundo sou Mat- teo e além disso temos a policia em nossa porta... (outra voz ao fundo) “Esto entrando!’.., Jé entra- ram, j4 esto dentro, estamos com as maos para 0 alto! (ruidos)... o microfone... estamos com as mos para 0 alto! (ruidos € gritos... siléncio mortal).”” Um pouco de historia: as radios livres latino-americanas Garo é possivel, nada previsto nos manuais de politica, que onde a fome e a vida sao como lo- teria permanente, os homens da Latino-América pe- riférica, colonial, miseravelmente desigual € combi- nada, percebessem que é preciso, necessario e vital se comunicar? Pois é, mas os homens pensam e fa- zem muito mais do que pensamos que eles pensam e fazem (isso estava nos manuais, mas nao lhe de- mos a devida importancia...), Comunicar-se rein- ventando, transformando transistores e valyulas em sinais de fumaca, tambores, utilizando, muitas ve- zes, 0 que de mais avangado a tecnologia produz: desigual e combinado. Latino-América: poucas vezes a histéria foi tao intensamente uma apropriagao dos meios de comu- nicacao de massa, na luta para existir além da mar- gem e sem deslocar simplesmente a geometria para um outro centro (em geral, muda-se o centro, mas continua existindo o centro, um pouco mais ou um pouco menos abrangente, mas ele esta 1a). Dimensées continentais? Talvez, mas outros motivos levariam os mineiros da Bolivia, o bando 96 A, MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAQ. rebelde de Fidel Castro e ‘Che’ Guevara, os guer- tilheiros de El Salvador, os sandinistas da Nicaré- gua a construirem os seus transmissores. Vamos co- nhecer um pouco desses motivos. De antemdo, aler- tamos que niio buscamos explicacées, mas palavras de diferenca, onde cada experiéncia é encarada como singular: na oposigao, no cerco a Havana, na ocupagao da Radio Nacional (somozista) na Nica- fagua, na construgdo da voz mineira na Bolivia, no territério desterritorializado de El Salvador. Radio rebelde Foi “Che” quem teve a idéia de criar a Radio Rebelde. Entre 1958 e 1959, essa radio funcionou como instrumento de combate e uma arma politico- militar de eficiéncia comproyada. Eis o que diz Gue- vara: “A importancia da radio é capital. Num momento em que todos os habitantes de uma regiaio ou de um pais ardem na febre de combater, a forea da pala- vra aumenta essa febre e se coloca a cada um dos combatentes. Ela explica, ensina, excita, determina entre amigos e inimigos as futuras Posicdes. Mas o radio deve obedecer ao principio fundamental da Propaganda popular que é a verdade. Uma pequena verdade, mesmo quando tem pouco efeito, é prefe- rivel a uma grande mentira vestida de gala”. Claro que hoje sabemos serem muito discutiveis os principios fundamentais da propaganda popular afirmados por Che, mesmo porque outros exemplos RADIOS LIVRES 97 histéricos (mesmo na América Latina, as radios bo- livianas por exemplos) nos mostram aigo que nao esta na palavra pronunciada, mas na palayra revo- lucion4ria construida coletivamente. Mesmo assim, a Radio Rebelde revelou para a América Latina a importancia do radio no combate e sua fungao es- tratégica no plano politico-militar. Claude Collin tem uma definicao precisa nesse sentido: “A radio de um movimento de libertagao tem real- mente come papel primordial elaborar contrainfor- mag&o eficaz, desmontar as mentiras das radios oficiais (sejam elas da classe no poder ou da potén- eja imperialista) e fornecer os dados verdadeiros so- bre a situacdo militar, denunciando os assassinatos cometidos pelas forcas da repressiio”’. Em fevereiro de 1958, os guerrilheiros cubanos faziam sua primeira emiss&o no territ6rio liberado de Sierra Maestra. Algum tempo mais tarde, sob ordens diretas de Fidel, eles transmitem todas as tardes até o fim da guerra contra Fulgéncio Batista, a partir do quartel-general da Plata. Radio Rebelde teve, antes de tudo, uma importincia estratégica na luta revolucion4ria: ela foi o principal elo de ligagao entre o quartel-general e as varias frentes guerrilhei- ras. Além disso, através dela a populagdo cubana podia ter uma informa¢ao alternativa sobre 0 go- verno de Batista e as agdes dos rebeldes. Uma voz nova se afirmava no panorama da guerra civil e a sua simples existéncia j4 rompia o siléncio de sécu- los de dominagao da oligarquia espanhola. Os sinais de um tambor livre que podia, em algum momento, ser também a voz de cada cidadao cubano. 8 A. MACHADO/C, MAGRI/M. MASAGAO Na verdade, a Radio Rebelde era constituida por varios transmissores que avangavam na diregdo de Havana. Em cada territério tomado, um novo emissor era montado, sempre em conexdo com o quartel-general. Essa pratica seria retomada pelas radios Sandino e Venceremos, respectivamente dos movimentos rebeldes da Nicaragua e El Salvador, constituindo uma pratica radiofénica de guerra re- yolucionaria. O proprio Fidel Castro assim se ex- Ppressou sobre o papel dessas radios: “A Radio Rebelde foi para nés um meio de divul- gagdo massiva. Ela nos permitiu comunicar com o Povo € se tornou uma estacao de grande audiéncia. (...) Mas a Radio Rebelde nao era apenas um meio de informagao, muito itil nesse sentido. Ela era também um meio de comunicacio entre nds pré- prios. Foi através dela que nés nos mantivemos em contato com todas as frentes ¢ espagos ocupados. Foi, portanto, um meio de comunicagao muito itil também no plano militar e isso teve uma importan- cia decisiva durante a guerra”. As radios mineiras na Bolivia No prefacio deste volume, Felix Guattari afir- ma que, ¢m oposicao ao que acontece hoje na Euro- Pa, as centenas de milhdes de marginalizados do continente latino-americano s6 poderio afirmar o seu direito 4 existéncia reinventando as formas de luta e de expressiio. A prépria histéria deste conti- nente nos mostra essa constituigao de novos espagos de reconhecimento através do questionamento dos RADIOS LIVRES 99 métodos tradicionais dos velhos partidos e sindica- tos. A Bolivia tem avancado nesse terreno gracas so- bretudo A experiéncia das radios dos trabalhadores mineiros que, tanto em tempo de luta como de “paz'', se converteram rapidamente em niicleo de aglutinacdo politica e cultural desses trabalhadores. Selecionamos abaixo alguns trechos de uma en- trevista que Jorge Mancilla Romero deu aos jorna- listas Héctor Schmucler e Orlando Eneinas (vide bi- bliografia), onde se dd uma sintese muito feliz do processo de construgdo das radios mineiras na Boli- via. O proprio Mancilla esteve diretamente ligado a Radio Vanguardia no centro mineiro de Colquiri. Que os préprios radioamantes bolivianos falem de si mesmos: “P: Como se poderia explicar 0 surgimento e a per- manéncia de um meio de comunicagao tao poderoso como o radio nas maos de trabalhadores? R: Eu ereio que as radios mineiras da Bolivia constituem um dos fendmenos mais importantes da comunica¢ao mundial, porque nao existe experién- cia similar em radiofonia, Tanto por suas motiva- goes, como por suas projecdes e sem que tenha acontecido uma diregHo expressa, sem que tenha acontecido um mandato (concessao) ou uma deter- minagAo governamental ou de autoridade superior. O complexo das emissoras mineiras nasce como uma necessidade de baixo, da base, logo depois do triunfo da Revolugiio Nacional de 9 de abril de 1952. Na realidade, a necessidade de comunicagao e con- tato entre os bolivianos j4 havia sido sentida apés a guerra do Chaco, que durou de 1932 a 35. Antes, a Bolivia era um pais desarticulado, incomunicdvel e dividido em regides... Eu creio que nasce dai essa necessidade de integrar o pais, necessidade que até 98 A, MACHADO/C, MAGRI/M. MASAGAO Na verdade, a Radio Rebelde era constituida por varios transmissores que avancavam na direcio de Havana. Em cada territério tomado, um novo emissor era montado, sempre em conexao com o quartel-general. Essa pratica seria retomada pelas radios Sandino e Venceremos, respectivamente dos movimentos rebeldes da Nicaragua e El Salvador, constituindo uma pratica radiofonica de guerra re- volucionaria. O préprio Fidel Castro assim se ex- pressou sobre 0 papel dessas radios: “A Radio Rebelde foi para nés um meio de divul- gacio massiva. Ela nos permitiu comunicar com o Povo € se tornou uma estacdo de grande audiéncia. (...) Mas a Radio Rebelde nao era apenas um meio de informacio, muito itil nesse sentido, Ela era também um meio de comunicagio entre nds pro- prios. Foi através dela que nés nos mantivemos em contato com todas as frentes e espagos ocupados. Foi, portanto, um meio de comunicacao muito util também no plano militar e isso teve uma importan- cia decisiva durante a guerra”. As radios mineiras na Bolivia No prefacio deste volume, Felix Guattari afir- ma que, em oposi¢ao ao que acontece hoje na Euro- Pa, as centenas de milhées de marginalizados do continente latino-americano sé poderio afirmar o seu direito 4 existéncia reinventando as formas de luta e de expressao. A prépria historia deste conti- nente nos mostra essa constitui¢do de novos espacos de reconhecimento através do questionamento dos RADIOS LIVRES 99 métodos tradicionais dos velhos partidos e sindica- tos. A Bolivia tem avangado nesse terreno gracas so- bretudo a experiéncia das radios dos trabalhadores mineiros que, tanto em tempo de luta como de “paz’’, se converteram rapidamente em nticleo de aglutinac¢ao politica e cultural desses trabalhadores. Selecionamos abaixo alguns trechos de uma en- trevista que Jorge Mancilla Romero deu aos jorna- listas Héctor Schmucler e Orlando Encinas (vide bi- bliografia), onde se d4 uma sintese muito feliz do processo de construgio das radios mineiras na Boli- via. O préprio Mancilla esteve diretamente ligado a Radio Vanguardia no centro mineiro de Colquiri. Que 0s préprios radioamantes bolivianos falem de si mesmos: “P; Como se poderia explicar o surgimento € a per- manéncia de um meio de comunicagio tao poderoso como 0 radio nas maos de trabalhadores? R: Eu creio que as radios mineiras da Bolivia constituem um dos fendmenos mais importantes da comunicacao mundial, porque nao existe experién- cia similar em radiofonia. Tanto por suas motiva- gdes, como por suas projegdes e sem que tenha acontecido uma direg&o expressa, sem que tenha acontecido um mandato (concessao) ou uma deter- minacdo governamental ou de autoridade superior. Ocomplexo das emissoras mineiras nasce como uma necessidade de baixo, da base, logo depois do triunfo da Revolugao Nacional de 9 de abril de 1952. Na realidade, a necessidade de comunicagao e con- tato entre os bolivianos ja havia sido sentida apés a guerra do Chaco, que durou de 1932 a 35. Antes, a Bolivia era um pais desarticulado, incomunicavel e dividido em regides... Eu creio que nasce dai essa necessidade de integrar o pais, necessidade que até A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO. ent&éo nao havia sido reparada por nenhuma forca social. Cada soldado que participou daquela guerra é uma testemunha viva daquela tormenta na qual morreram mais de 50000 bolivianos e vieram a sa- ber, trés ou quatro anos depois, que haviam lutado por determinac’o de companhias petroliferas es- trangeiras que jogavam com sangue boliviano seus problemas financeiros. Através de poesias, cancdes econtos de guerra do Chaco, os bolivianos comeca- ram a se conhecer. P: Entdo, a partir da experiéncia da guerra do Chaco se identifica na Bolivia uma linha naciona- lista? R: Precisamente em 1941, nasce o MNR (Mo- vimento Nacionalista Revolucion4rio) ecomele uma das primeiras tentativas de comunicagdo, através da chamada Radio Bolivar, que servia aos interes- ses desse partido sem declar4-lo, logicamente. Atua- va esbocando a revolucao de 1952. P: Era um trabalho clandestino... R: Nao era exatamente clandestino porque era uma emissora ptblica, S6 que nela trabalhavam aqueles que depois seriam os lideres e idedlogos do MNR, como Carlos Montenegro, editorialista da radio, José Felmen Velarde e outros que tinham in- quietagdes politicas e culturais. Eles necessitayam de um instrumento para difundir massivamente a experiéncia do Chaco eo grande acontecimento que fora a criagio de um partido politico a partir da guerra. Entéo, ainda que a Radio Bolivar tiyesse cardter comercial, nela se colocou pela primeira vez opinides politicas contra o ‘Super-Estado Mineiro’ composto por Patifio, Hoschild e Aramayo. P: Isso ocorre, portanto, fora das minas. E o que ocorre nos centros mineiros? R: Em 1948-49, aparece uma emissora clan- destina nas minas chamada Radio Sucre. Nunca se conseguiu entender por que essa clandestinidade. RADIOS LIVRES 101 Ela respondia a interesses do setor falangista, na- cionalista de direita, encabecado principalmente por mestres egressos da Escola Normal Superior do Sucre. Nessa época, a empresa Patifio levava seus melhores mestres e médicos as minas de Siglo XX. Era uma espécie de prémio a esses profissionais...". O nascimento das radios mais propriamente mineiras esteve ligado a construgao do movimento revolucionério que explode em 1952. E a partir das experiéncias de luta e de guerra civil (Chaco) que o rAdio se constitui numa alternativa de intervengao politica. Outra questo que nos parece importante é a passagem de um plano de escuta (escuta de opo- sicdo, palavra de oposi¢ao) para a pratica da oposi- cao, uma pratica onde a propria comunidade é en- gajada. Essa é a diferenga qualitativa das radios mi- neiras em relagio a outras experiéncias latino-ame- ricanas. Voltemos a Jorge Mancilla Romero: “As radios Sucre e Bolivar correspondem aos ante- cedentes mais imediatos das radios mineiras. Na realidade, elas aparecem em 1952 e ji em 1953saem do ar. A Voz do Mineiro, da mina Siglo XX, é a pioneira dessa experiéncia em radiofonia, Era a época imediatamente posterior ao triunfo de abril, em que se deu a nacionalizacio das minas. Enquan- to a mina fica em Siglo XX, 0 local onde se processa o estanho é Catavi, o que representa duas realida- des distintas num mesmo contexto social. Na pri- meira est4 a gente “‘dura’’, a gente “‘bruta’’ e mais explorada, que é 0 pessoal do interior da mina. Na segunda, em Catavi, ficam os empregados da admi- nistragdo e os trabalhadores das segdes mecaniza- das, além dos eletricistas. Em Catavi, aparece outra 102 A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO radio, a 21 de Dezembro, em homenegem aos mi- neiros mortos na primeira matanga de 21 de dezem- bro de 1942. Imediatamente depois, surge a Radio Nacional de Huanuni, sempre com a mesma forma- ¢ao de base: de baixo. Isso provoca uma febre de emissoras sindicais que se espalha especialmente nos setores mineiros. A maioria dos sindicatos se apressa para conseguir facilidades técnicas e legais do governo para instalar suas emissoras. A ativi- dade se multiplica... Chega um momento em que os sindieatos entram em competigao entre si para ver quem tinha a emissora mais potente, a maior quan- tidade de diseos ¢ os melhores microfones. (...) Em 1963, havia 23 emissoras funcionando em todo pais, entre as quais A Voz do Mineiro de Siglo XX, Radio Nacional de Huanuni, San José de Oruro, 21 de Di- ciembre de Catavi, Colquiri, Vanguardia de Colqui- ri, Santa Fé, Morococala, Milluni, Bolsa Negra, Animas, 9 de Abril, Chorolque, Siete Suyos, Chi- chas de Atochas, Pulacayo e a famosa Pio XII de que falarei mais adiante. P: Que superficie do territério nacional co- briam essas radios? R: Isso € muito importante porque, curiosa- mente, essas 23 estacdes de radio se encontram con- centradas em 20% do territério nacional e entram em competic¢ao, quase sem querer, com as emisso- Tas comerciais que estao em La Paz. As ridios mi- neiras, claro, tém outra estrutura: so mais “loca- listas"’, sua poténcia, em geral, aleanca somente 500 watts. Em meu povoado, por exemplo, na pro- vincia de Bustillos, onde esto as maiores minas de estanho (Llallagua, Siglo XX, ete.), numa época de 1961, chegaram a existir cinco emissoras para uma populacao de 50000 habitantes. Essas emissoras es- tavam separadas entre si por algumas quadras de distancia. Porém, cada emissora era uma ilha com seu transmissor, seus pressupostos, sua programa- RADIOS LIVRES 103 go, seus problemas particulares, quando o proble- ma, na verdade, era comum, Nao hayia uma enti- dade que as coordenasse... P: Em termos gerais, podemos dizer que essas 23 radios estZo nas maos dos trabalhadores minei- ros da Bolivia, Porém, os custos de manutengio ou opera¢ao de uma estacao de radio sao bastante ele- vados... Como fazem os mineiros para financia-las com seus salarios que estio abaixo do minimo ne- cessdrio para viver? R: As emissoras subsistem com o apoio direto dos trabalhadores, apesar da sobrecarga que isso Ihe significa, Os trabalhadores determinam que se desconte quinzenalmente uma porcentagem de seus salarios ja aviltados. Eles mantém suas emissoras sem pedir contas do que se faz com seu dinheiro. P: Mas alguém deveria se encarregar da admi- nistragao das emissoras... R: Durante os primeiros anos, até 1963 mais ou menos, © diretor de uma emissora mineira era uma pessoa sem preparagdo alguma em questdes radiofénicas. Em geral, esse cargo era ocupado pelo secretario de cultura do sindicato. E quem os traba- lhadores escolhiam como secretério de cultura? O mais letrado do povoado, ou seja, o professor. E entre os professores, aquele que grita mais, 0 que mais fala, ainda que nao seja necessariamente um tipo culto, O diretor, por sua vez, escolhia o pes- soal. Buscava os locutores em fungao da voz. Nao havia nenhum problema em colocar gente sem pre- paragao técnica ou politica, isso nao era um requi- sito. O que se exigia era que as pessoas tivessem algum talento: podia ser um rapaz que sabia recitar ou um senhor que sabia cantar... P: Isso poderia trazer conseqiiéncias negativas ao proprio sindicato, naio? R: As organizagées sindicais maiores, como a Federagio de Sindicatos Mineiros, nado fez uma A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO. aniilise desse fendmeno. Menos ainda a Central Operaria Boliviana. As radios sao esforgos isolados, Com pressupostos particulares, sem precisar dar sa- tisfagdes a ninguém, tudo A mereé dos secretérios de cultura dos sindicatos. As vezes, pouco a pouco, a emissora se “desviava’, porque o secretario de cul- tura, que para o povo é uma espécie de ‘dono’ da radio, interrompia o programa Para colocar discos para uma festa de seu compadre ou amigo, P: Além de satisfazer esse gosto particular do compadre do diretor, havia uma Programacio re- gular? R: Geralmente as transmissdes de uma emis- sora mineira S40 de 6 ou 8 horas difrias, com inter- valos. Normalmente, as emissoes comegam as 5 da madrugada, que é a hora em que se inicia o traba- lho nas minas. As primeiras transmissdes vao das 5 4s 8 da manha. Depois reiniciam As 12 horas e vio até as 14. A tarde, as emissdes yao das 18 as 22 horas. Em sua maioria, a programacio é constitui- da de misica rancheira mexicana, misica argentina e misica boliviana, com leitura de comunicados e noticias sindicais e esportivas. (.,.) Entretanto, mes- mo nessas condigdes, as emissoras conseguiam, As vezes, centralizar poder e mesmo por cima do pré- prio sindicato. As vezes, os locutores tornavam-se mais populares e até mais importantes que os lide- res sindicais. Por exemplo: um trabalhador podia chegare denunciar o seu dirigente sindical maximo para o locutor. Para os mineiros, 0 locutor tem tan- ta ou mais importincia que seu proprio dirigente sindical e, de fato, esse dirigente pode até cair se o locutor se empenha em desacredita-lo”. Dentre as varias experiéncias das radios minei- ras bolivianas, uma que merece destaque A parte é certamente a Pio XII. Criada em 1959 pela Missao RADIOS LIVRES 105 Oblata de Maria Imaculada em Siglo XX por padres canadenses, ela marcava claramente sua diferenca em relagdo as radios sindicais. Desde 0 Prédio em que foi instalada, um verdadeiro forte especialmente construido para ela, enquanto as radios sindicais eram instaladas em quartinhos dentro do prédio do sindicato, a Pio XII era inacessivel a quem quer que fosse. Mais parecia um monastério radiofénico, on- de os sacerdotes formavam os locutores para a pro- Paganda anticomunista e preparavam quadros para combater caso se instaurasse uma revolugao esquer- dista. A Radio Pio XII contratou os melhores locu- tores do pais e se tornou responsavel pela introducao da divisao de trabalho nas emissoras bolivianas: dis- cotecarios, programadores, redatores; locutores, téc- nicos de gravagdo, ete. Num certo momento, a sua impostagao “‘profissional’’ chegou a afetar as radios mineiras, que passaram a se perguntar por que nao podiam atingir o brilho técnico da Pio XII. De fato, houve até uma melhora do padrao técnico das radios mineiras depois que a Pio XII come¢ou a emitir. Por outro lado, a verdade é que a RAdio Pio XII se tornava uma ameaca cada vez mais visivel as or- ganizacdes operarias. Como resposta, militantes sin- dicais chegaram a dinamitar varias vezes a sede da radio e perseguir os seus locutores, Razées nao fal- tavam para isso: a radio da Missdo Oblata defendia com unhas e dentes o COMIBOL (Corporacao Mi- neira da Bolivia), uma espécie de sindicato patro- nal; seus sermoes didrios eram violentamente anti- comunistas e neles Fidel Castro aparecia como a re- enearnagao do deménio; sem falar nos discursos moralistas contra as drogas, os vicios e 0 alcoolismo. Evidentemente, tudo isso se chocava com a dura realidade da mina e quanto mais a Pio XII en- 106 A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO feitava a situacfio, mais despertava a indignagdo po- pular. Chega um momento em que se produz um conflito entre os sacerdotes da Missao, e uma parte deles comega a se recusar a colocar no ar OS progra- mas que chegavam prontos da Holanda ou da Ale- manha e que tratavam dos grandes avancos cienti- ficos para uma populacdo que se defrontava com uma tragédia econémica. A cisio se aprofundaria a partir de 1965, quando se deu o primeiro grande massacre de mineiros, com demissdes em massa, de- portagoes de dirigentes, confinamentos, desapareci- mentos € colocagdo de tropas nas minas. Tudo isso para garantir o achatamento salarial imposto pelo FMI. E nessa ocasiao que se dé a primeira grande ofensiva contra as ridios mineiras: a maioria delas foi literalmente destruida pelos militares, com Taja- das de metralhadoras sobre os equipamentos e ins- talagdes e a prisio de seus animadores. A tinica emissora que sobra do massacre € a Pio XII, nessa época em fase de transformacdo. Ela ha- via enveredado pelo campo da educacéo popular e tinha distribuido uns 1500 receptores com freqiién- cia modulada eativa (ou seja, as pessoas que os pos- suiam s6 podiam sintonizar a Pio XII). Em junho de 1967, da-se o chamado Massacre de San Juan, uma resposta violenta dos militares aos mineiros que ex- Pressaram apoio moral A guerrilha de ‘“‘Che’’ Gue- vara. A Pio XII, nessa época ja acusada pelo governo de “comunista”, assumiu a aberta defesa dos traba- lhadores, Ela era entao a tinica emissora que podia contestar o governo, protegida que estava pela rela- tiva inviolabilidade da Igreja. Seus locutores j4 nao eram mais gente trazida de fora, mas pessoas nasci- das no seio da prépria classe trabalhadora. Ela sobre- viveria até o golpe militar do coronel Hugo Banzer em RADIOS LIVRES 107 1971, ocasi&io em que é fechada, mas voltaria ao ar novamente em 1973, sendo outra vez fechada em 1975, mas nunca inteiramente destruida. A trajetoria das radios sindicais mineiras de cer- ta forma segue o destino da Pio XII: aparecem e desaparecem ao sabor dos sucessivos golpes de Es- tado e da incansavel reconstrucao do movimento po- pular. Mesmo durante o regime Banzer, com 0 pais em estado de sitio, elas conseguem sobreviver, ainda que sob ferrenho controle do governo. Em 1978, elas teriam papel importante na derrubada de Banzer por meio de uma vitoriosa greve geral de trabalha- dores. i Vamos agora dar um pulo cronolégico a 17 de jutho de 1980. Cronolégico mas nao Politico, porque nesse dia/noite o General Garcia Meza fazia sua en- trada na histéria da Bolivia pela porta de sempre: ogolpe militar. Foram assassinados, na sede da Cen- tral Operdria Boliviana, por gangues paramilitares, Marcelo Quiroga Santa Cruz, Carlos Flores, Gual- berto Vega e presos quase todos os dirigentes sindi- cais e politicos da esquerda boliviana. Nessa ocasido, as radios mineiras inventam uma nova forma de in- fervir nos acontecimentos, entrando em didlogo, ao vivo, através de cadeia nacional. Inicialmente, trés radios intervém: a Radio Nacional de Huanuni (que se encontrava ameagada pelo avanco das tropas do exército), a Radio Animas e a Pio XII. As trés fun- cionavam em centros mineiros diferentes, distantes um do outro, mas conseguiram estabelecer contato entre si, incorporando-se em cadeia de retransmis- S40. A populacdo trabalhadora inteira estava sinto- nizada com as radios, pois eram a tinica fonte segura de informacao com que podiam contar naquele mo- mento. Segue abaixo alguns trechos desse dialogo A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO. hertziano, reconstituidos por Alfonso Gumuncio Dagron (vide bibliografia): Rédio Animas: “(...) no dia de ontem, comecaram a ingressar neste distrito, atravessando Siete Suyos, as forcas do Regimento de Loa. Seu objetivo ¢ tomar a Radio Animas. Mas gragas A decidida ag&o das donas-de- casa e das criancas [os homens estavam nas minas], os militares até agora nfo conseguiram chegar. (...) Posteriormente, 4 tarde, outro contingente chegou de Tupiza numa outra ag&o mais decidida. Quise- ram entrar mas encontraram a mesma barreira de donas-de-casa... Aconteceram outras acées simul- taneas, com trinta caminhdes de Telemayu. (...) Ha decisaio de neutralizar esta emissora e os organis- mos sindicais. Por isso, apressamo-nos em nossa de- fesa. As forcas armadas esto rodeando todo o setor de Chocaya... Ha mobilizacao total dos trabalha- dores de Santa Ana, Siete Suyos, Anima e estamos informados de que partiram grupos de Taena, Ro- sario, Buen Retiro, Chorolque, Quechisla e San Vi- cente. Chegaram mil camponeses da regido de Sud Lopez. Vai em frente RAdio Nacional de Huanu- ni + Radio Nacional de Huanuni: “Obrigado companheiros da Radio Animas, que continuam defendendo os interesses da classe trabalhadora, lutando pela defesa do processo de- mocratico. Nés os felicitamos. Estamos extrema- mente preocupados com a situacZo que vive atual- mente o Conselho Central Sul, no distrito de Hua- nuni... Queriamos que os companheiros de outros distritos nos dissessem exatamente o lugar onde es- tao as tropas do exército. Adiante, companheiros da Radio Animas.”” RADIOS LIVRES 109 Rédio Animas: “As tropas esto aproximadamente acinco qui- [metros de Siete Suyos, muito Perto de Santa Ana, Por isso, apressamos em nos defender. O nimero de pessoas presas chega a 31 e foram levadas a Tpi- za... Esta éa Radio Animas para todo o sul do Pais. Estamos numa hora crucial, as senhoras donas-de- casa tém ajudado muito na construcao de nossa de- fesa... Vamos até as tiltimas conseqiléncias, porque essa é a nossa miss&io, Nés estamos nos defendendo, nao temos insultado, no estamos provocando nada nesta situagao... Irm&o que tem graduacdo militar baixa, tenha consciéncia de que 0 povo boliviano é seu irm&o. Nao dispare contra seus irmaos e seus pais. Os camponeses do norte estao respondendo ao bloqueio, est4o levando adiante um plano que pode dar certo... O pais necessita de um respiro demo- cratico. Adiante, Huanuni,” Radio Nacional de Huanuni: “Perfeito, companheiros da Animas. (..) Do mesmo modo, queremos aproveitar estes instantes para dizer a nosso ponto B que sintonize a Radio 21 de Diciembre. Estamos certos de que lana Siglo XX © pessoal esta recebendo todas as informagées e po- demos realizar uma cadeia mais ampla..." Radio Pio XII: “Companheiros da RAdio Animas. Aqui é Pio XII chamando R&dio Animas,., Estamos em sinto- ‘nia ¢ a qualquer momento, quando quiserem, en- traremos em contato, Aqui Radio Pio XII..." Rédio Nacional de Huanuni: “A Federacio Nacional dos Trabalhadores Mi- neiros da Bolivia lanca o seguinte apelo: a qualquer momento, podem calar nossas emissoras, porém o 110 A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO Povo boliviano e em especial os trabalhadores mi- neiros devem continuar sua greve geral indefinida- mente, até obtermos a demoeratizagao de nosso pais. Adiante, Radio Animas.” Radio Animas: “Aqui continua aflitiva a situagio. Queremos saber algo sobre os companheiros dirigentes da Cen- tral Operaria.” Radio Nacional de Huanuni: “De acordo com as tiltimas informacoes de La Paz, trés companheiros da COB foram presos, entre eles o companheiro Simén Reyes. Emissoras do ex- terior dizem que ele foi assassinado. Ha choques Sangrentos nos bairros populares de La Paz. Radio Fides caiu completamente. A Forga Aérea lancou bombas sobre a Radio Vanguardia de Colquiri, Gualberto Vega foi morto na sede da COB. (...) Juan Lechin Oquendo foi preso e conduzido a local desconhecido. Trabalhadores da Siglo XX prepa- ram manifestagao de repidio.”’ Radio Chichas: © . recebemos informagies de que neste cen- tro mineiro estariam se mobilizando efetivos milita- tes. Os trabalhadores esto saindo para dialogar, pois nao esto querendo enfrentar soldados irmaos. Tentam didlogo entre os dirigentes sindicais e ofi- ciais do exército. Tomara que cheguem a um enten- dimento.”" Radio Animas: “Atencao, informacio de ultima hora: come- ¢ou-o tiroteio perto de Santa Ana, Deve-se agrupar forgas nesse setor para impedir que os militares en- trem nos distritos mineiros,” RADIOS LIVRES 11 Radio Nacional de Huanuni: “Estamos tentando sintonizar as emissoras nu- ma grande cadeia mineira: Radio Pio XII, Radio 21 de Diciembre e La Voz del Minero em Llallagua. Ja estamos sintonizando as ondas das radios Corocoro, Viloco e Vanguardia.” Quase desnecessario completar qualquer coisa: Deixemos pois que Domitilia Chungara encerre este relato: “‘?Pero, que pas6? Los trabajadores se para- ron como un solo hombre y dijeron: mientras no nos devuelvan las radios, no entramos a trabajar. Y se declararon en huelga.” As radios-guerrilheiras de El Salvador E Salvador, meio selva, meio civilizacio, pais de cerca de cinco milhées de habitantes e pouco mais de vinte mil quilémetros quadrados. Nele, todas as radios televisdes entram em cadeia nacional para os comunicados oficiais, os tnicos permitidos, versdes oficiais da guerra civil que assola o pais. O controle a imprensa nacional e internacional é absoluto; exis- tem restricgdes 4 entrada de correspondentes estran- geiros no pais. Assassinato, perseguicao, seqiiestroe tortura a jornalistas e trabalhadores dos meios de eomunicacdo sao atos comuns em sua hist6ria, além da constante violacao da liberdade de imprensa. As instalagdes dos jornais Independiente e La Crénica del Pueblo e da Radio YSAX, que mantinham uma linha independente, foram destruidas por agoes ter- toristas dos “‘ecuadrones de la muerte’. Tudo em decorréncia da guerra civil que j4 dura SO anos. M2 A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO. A partir desse bloqueio 4 liberdade de informa- ¢ao ea ignorancia generalizada imposta pelo regime, o povo salvadorenho inventou também as suas for- mas de resposta: os muros de todo o pais se tornaram canais de expressdo, ao mesmo tempo em que a opo- sigdo constituia os seus préprios meios de comunica- ¢40, compostos pela Radio Farabundo Marti, Sis- tema Radio Venceremos e Radio Unidad. Transmitindo em varias faixas e em diferentes classes de ondas (curtas, médias e freqiéncia modu- jada), as radios livres de El Salvador atingem o cam- po, as cidades, as zonas controladas pelos guerrilhei- ros, a retaguarda inimiga e, As vezes, até mesmo os acampamentos militares e os paises vizinhos. Essas emissdes se dao, é claro, sob condigdes de guerra, ou seja, sob o fogo dos morteiros jogados pelas Forcas Aéreas. Sao verdadeiras rddios-guerrilheiras e no contexto da guerra civil de El Salvador nao poderia ser diferente. Por sua penetracao e eficacia, elas se tornam objetivos militares fundamentais do inimigo, que nao se cansa de rastrear os seus sinais e tentar “queima-los”’ com interferéncias. Em uma situa¢o como a salvadorenha, em que © pais se encontra literalmente dividido em regides controladas pela guerrilha e pelo governo, em terri- torios em disputa e verdadeiras terras-de-ninguém, as radios se inserem no cotidiano de ‘‘dois” paises e “dois” mundos. Nao ha, nessas circunstancias, qualquer outro senso de ‘‘profissionalismo”’ que nao seja aquele estritamente politico-militar. A popula- Gao que se engaja na defesa e manutencdo das radios éconhecida, muito apropriadamente, como “corres- pondentes de guerra", como se pode observar no se- guinte comunicado da frente Farabundo Marti de Libertacdo Nacional: RADIOS LIVRES | g f i RADIO VENCEREMOS Erdio Vencaramor 3 cere ines en Frecuencia Modulada, en ah TRANSMITE EN FM puede captasse especialmente E17 mos did inici en San Salvador y la zona central del pais, los 97 megahereios, cuya sei OnPrY + Wid Ue souuaaUEA, 2 todo nuestra pueblo, Radio siempre de todas las demandas de ido las grandes éxitos militares alcan- do un importante papel en la orien- iptura del cerco desinformativa al que la Respecto a la nucva frecue = Comendante Nercodes cle! Carmen Letona, “Luisa” huestro pueblo, 2 2 é zados por el Fi imentos que conducirdn a la wicta construir los ‘ i i E dio Vanceramos 40 FM - Radio Venceremos on FM- Radio Vancsremox an FIA. Fledio Vencaramon on FM. Radio Vanceremoa aa FM. fladia Vene A. MACHADO/C, MAGRI/M. MASAGAO “Os nossos correspondentes de guerra junto ao povo, organizados em grupos de ‘correspondentes popula- Tes’, so os encarregados de cobrir todos os eventos Politicos e militares, recolher toda informacio ge- rada no préprio local dos fatos. Sao eles que trans- mitem a central da Radio Farabundo Marti toda informagao de carter Politico, militar, social, cul- tural, econdmico e outros temas relacionados com a vida nas zonas controladas pelo poyo. (...) Eo povo mesmo o dono e principal locutor da radio". Escutar as radios livres também se torna um ato de guerra, se considerarmos que até mesmo a au- diéncia é proibida. Nas cidades onde nao existe con- trole revoluciondrio, a escuta é clandestina,. pois a policia reprime as pessoas que sintonizam as radios revoluciondrias. Dificuldades? Muitas, mas a Principal esta no proprio espago das ondas hertzianas: a interferéncia, Ela é praticada de forma sistematica pelo governo, com sofisticado material radiofénico enviado pelos EUA, para confundir a popula¢ado com falsas emis- ses rebeldes. Essa pratica se deu também na Boli- via, hos momentos de maior acirramento da luta politica, mas o governo boliviano nao tinha imagi- nagao para falsificar as radios sindicais e © povo per- cebia logo quando se tratava de interferéncia. Em El Salvador, entretanto, a ajuda militar norte-ameri- cana inclui também moderno know how na area de interferéncias radiofénicas, quase sempre esquecido nas criticas que se costuma fazer ao governo Reagan. Equipamentos de “queima” de Sinais s4o dirigidos diariamente as emissies tebeldes, obrigando os guer- rilheiros a reajustarem constantemente seus trans- missores para mudar a faixa de onda, RADIOS LIVRES Esse breve relato de al fonicas em Cuba, Bolivi: apenas alguns exemplos nentes centro e sul-ame: fonia alternativa. Outra ticas, sobretudo no Equ riam também ser lembr. dos mais sistematicos a Magc6es s&o esparsas e das préprias circunstan radios. Uma outra hist ¢4o de massa, bem dife: af, ainda esta por ser es gumas experiéncias radio- ia e El Salvador constitui do que ja se fez nos conti- icano em termos de radio- Ss experiéncias igualmente adore na Nicaragua, deve- ‘adas, mas faltam ainda estu- respeito do assunto. As infor- desencontradas, em virtude cias em que acontecem essas oria dos meios de comunica- que circulam por 1° Manifesto da Radio Trip 0 tenes & un assepre, quer ver 0 barre 2 Homes bo rhdio, 2 rhdic & 2 Komen 0 eabeis ao Honan Ea astens de ridio ArLinds Amadeu,"0 Perigo du Wserive* (mamuscrite endomtrads ex uaa enter ‘Barta dd Inst, de Paiquiatria de #0) -———— A liberdade esta no ar (Manifesto da Radio Livre-Gravidade) Nosso ar esta poluido. Tanta informacao na cidade ea solido continua. Falta daquela que excita, Liberdade no radio é gente diferente uma das outras, indo ao ar. Colocando as diferencas no are no chao... Sem leis, Sem medo do medo, eae See See et eee | 118 A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAQ: SS SS Sem destino certo, Ea vida na cidade, no cérebro enoutro lugar qualquer. Livre transmissdo da criagdo e da destruicao. Acontecimentos, Acontecimentos marginalizados. No livre transmissor, tem cor, suore imagens. Eo mito dos deuses da terra, do are do espaco vai-se acabando As nossas espaconaves comecam a voar. Nd&o queremos concessao do Ministério para comunicar, Ele e seus sistemas de concessdes servem somente 4s grandes empresas de comunicacao, aquelas que vivem atras do lucro. Que tenham fim as redes globais de sufocamento das idéias. Que todos tenham hora e vez para gravitar suas idéias. Vamos gravitar porque o ar é livre. Chegar através do vazio com ritmos e noticias de novidades, Que vivam as radios livres! Viva a Livre-Gravidade! O consciente e o inconsciente do radio Quando falamos em inconsciente a primeira coisa a que associamos é ao Sr. Freud que, mais do que ter elaborado uma teoria acabada sobre o inconsciente, deparou-se com os limites da conscién- cia. Ele abriu uma porta na histéria da razao, dizen- do que no somos seres completamente racionais, conscientes, com poderes totais sobre as mil-e-uma ligagdes de nossos neurénios em nossos cérebros. Mas o que seria o inconsciente? Uma caixinha preta que fica do lado esquerdo do cérebro ou atras da orelha direita? Nao pretendo aqui discorrer sobre a teoria psi- canalitica, mas tentar observar de que forma essa coisa a que chamarei “energia inconsciente” se mo- biliza quando nossos ouvidos entram em conexfo com a musica. O inconsciente estaria mais ligado ao desconhe- cido, ao surpreendente, 4 intrusdo, ao fantastico, ao acaso, ao porvir sabemos 14 de onde, ao fio da meada de uma situacao conflitante, 4 possibilidade miulti- pla, ao écio (quando ficamos sem atividade pensa- 120 A. MACHADO/C, MAGRI/M. MASAGAQ mos tantas asneiras!), a inexisténcia de tempo cro- nolégico, a irracionalidade enfim. Afinal, os loucos falam coisas to estranhas: é como se pusessem a caixinha preta na ponta da linguae com um toque de saliva a abrissem, mostrando a todos um pouco de sua tempestade interior. Pois bem, creio que quando os nossos ouvidos se conectam com a musica é como se as caixinhas pre- tas se multiplicassem, espalhando-se pelo corpo todo, e comegassem a cutucar a consciéncia e seus infinitos probleminhas do “mundo de fora”. Quero dizer que 0 consciente e o inconsciente nao funcionam separadamente, o tipo de registro é que é diferente, O sonho traz, em meio a seus deva- neios, pessoas, fatos, detalhes que sdo situacées da vida real e consciente. Da mesma forma, em nossas miudezas conscientes do dia-a-dia, trazemos em nos- sos discursos a confusfio, a ansiedade, a contradicao. Esses dois tipos de registros precisam ser am- pliados e desenvolvidos, j4 que a historia os limita, escondendo, por exemplo, o inconsciente debaixo do trayesseiro, no hospital psiquiatrico, no diva do psi- canalista ou ainda dentro de um copo de pinga. Uma forma de promover o retorno do incons- ciente seria utilizar esse requinte da eletronica, que possibilita a um simples mortal escutar outro a gran- des distincias: o rddio. © radio abre a possibilidade de socializar as nossa subjetividades individuais ou grupais. Se os trabalhadores aprendem a reivindicar menor tempo de trabalho, é preciso que o maior tempo de écio seja preenchido com miisica. E quando falo de musica nao me tefiro 4 estrondosa baboseira que tocam as FM e que deixam profundamente irritado nosso in- consciente, fazendo com que a medula envie rapida- RADIOS LIVRES 121 mente uma ordem a nossos dedos Para que inocen- temente procurem outra coisa... “Segure-se lingua Porque vocé nasceu sem patria! Controle-se porque de vocé s6 queremos um belo comercial! Fale-nos mas nao diga nada!" A resposta das radios livres: “controlem-se Yo- c@s. policiadores do imaginario, porque nés vamos falar muito em nossas faixas”. Quero Arrigo Barnabé, quero nostalgia, quero valsa, quero rock alemio e nacional, quero, quero, quero... Se considero importante, por um lado, muita musica nas emissdes, justamente Por ser esse o es- Pago mais préprio do inconsciente, acho também im- Portante que, conscientemente, tentemos sistemati- zar nossos delirios, abrindo espaco para que os pas- sivos ouvintes se tornem ativos locutores. Nao ser mais 0 psicélogo quem faré uma interpretaco nar- cisica das razdes por que a doméstica gasta todo seu salarioem produtos de beleza, nem 0 socidlogo dira que ela é explorada e alienada. Que a doméstica te- nha acesso ela mesma ao microfone e que psicélogos © socidlogos se contentem em entrar em conexao. Que pinte a gagueira eo branco, pois em cima dele coloriremos, Que haja conexiio das subjetivida- des e nao das interpretagdes. E da conex4o das mu- lheres, dos negros, das bichas, dos psiquiatrizados, dos ecologistas e de tantos outros grupos sociais, in- cluindo obyiamente o grupo majoritario dito dos nor- mais, que nascer4 a possibilidade de sistematizar os nossos delirios, assimilandoa diferenca e nao a trans- formandoem matéria de fofocas. 122 A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO. Criar cultura, em nosso tempo, é fazer florescer esse movimento de conexao coletiva a nivel de toda a sociedade € n&o apenas nos bastidores atomizados. S6 assim sera possivel fazer explodir toda essa sub- cultura da barbarie, que produziu fendmenos como 0 nazismoe ostalinismo. Mais do que 1é-la, a histéria deve ser feita. Co- mece essa historinha montando seu transmissor... Manifesto da Radio Tereza 124 A. MACHADO/C, MAGRI/M. MASAGAO Tereza €acorda feita de lengol para fugir da cadeia, e estamos ocupando o ar, saindo da cadeia global que norteia a comunica¢ao neste pais. A idéia surgiu durante a greve dos bancarios realizada em setembro de 1985, quando alguns fun- cionariose militantes do Sindicato, acompanhando a transmissiio da Radio Xilik, ao vivo na assembléia da Praca da Sé, pensaram em estender essa trans- missdo para todos os grevistas, sendo utilizada pelo comando de greve para passar os informes e orien- tacdes. Baseados na experiéncia da RADIO NO AR, programa desenvolvido em 81 e 82 pelo Departa- mento Cultural do Sindicato dos Bancarios, um ser- vico de alto-falantes mével pelo centro da cidade, pretendemos, agora com um transmissor, retratar todas as loucuras que acontecem no coracio da metrépole. Ser uma opeao de infarmacao, princi- palmente do que rola no meio politico-sindical, dar dicas de programag&o cultural, novelas, muita en- trevista, abobrinhas variadas, tudo isso recheado com muita musica da boa, aquelas que nao tocam por ai. Radio Tereza, em 106.8 MHZ, com seus trans- missores ambulantes e 120 watts de poténcia, fez sua primeira apari¢do no finzinho do mostrador de seu FM no dia 23/10/85, transmitindo o ato contra a divida externa e o FMI, diretamente do Centro Sin- dical dos Bancérios. Chegamos para ficar, livres, e dizendo a todos: VAMOS OCUPAR O ARI (ot Ve ee eile SE) Terceira intervencao da Radio Xilik Roteiro do “Sombra” (27/7/85) ES Entra o texto inicial de “Almustafa, the Belo- ved’ (Billi Cobhan/ George Duke Band). Para no fim da fala. Entrao “Temade Amor’ de Blade Runner. Vai a BG. S/D/BG S/D/BG SOMBRA: (gargalha- da) S: Feliz sbado, guris. Feliz sabado, gurias. Aqui, Estidios TAN. RAdio Xilik, Radio Li- yre Urgente. Fique com amente. §: Operando na fre- qiéncia de 106 ponte 04 Megahertz. $: Aqui, adoraveis ci- dadaos, somente para 0 mel de vossos ouvidos, é a voz do Sombra, de 126 A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAQ. S/D/BG Stop brusco. Entra “Walk on the Wild Si- de”, Vaia BG. S/D/BG quem costuma-se di- Bete S: ... que s6 ele sabe... aquele mal oculto... no cora¢ao humano. S: Velvet Underground, um subter de yeludo, olhos cocainémanos, uma gruta de lingua de gato, uma historia exci- tante e febril. Todas aquelas noites, chuvas nas ruas, estavam 14, Abismos blues, piscina morna, camera lenta. Modorras no metré da mente: tropicalquimia da imagem, teu corpo (sussurro em Radio Ci- ty) € chewing-gum com tatuagem. 5: E anticonstitucional, mas também antimen- tal mentir sé por vil me- tale dizer que a emissio fatal da radio insurre- cional é algo menos le- gal que dentéis e todo seu mal, que querem a pa de cal pras ondas deste local, de onde com graga e sal, emite Xilik, atal. RADIOS LIVRES 127 S/D/BG Entra brusco “Allalong the Watch- tower” de Hendrix. Vai a BG, apés a intro- ducdo instrumental e os primeiros versos canta- dos. S/D/BG Corta seco. Entra “‘Bi- ko"' de Peter Gabriel. Apés algum tempo, BG. ‘CINDERELA: Ope- rando em 106 ponto 04 Megahertz. S: “Sou prisioneiro do /amor. Aqui na jaula, aguardo /ahora de me libertar. O que existe entre nds E apenas um felino édio Eum repentino salto, Driblando a morte, Esgrimindo perto da /paix&o total, Correndoaum passo Das garras da tigresa, Essa maldita princesa, /judia princesa.”” S: Ah, Salomé... Tu pedes muito por tua /danga. O que de mim, depois, / dirioos povos? S: E assim vos conta o Sombra. Joao Batista perdeu sua cabega e en- trou na eternidade. Por 128 A. MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAQ. Corta seco. Entra “Jewish Princess"’de Zappa. Depois de algum tem- po, vaia BG. S/D/BG Corta seco. Entra “Aqua” dos Eurithmics. uma serpente lasciva e feminina, uma semita odalisca, uma isca de malicia, uma princesa judia. S: Enlouquecidos cida- daios de Paupéria, VI- /VAA RADIO XILIK, A VIDA SEM MAGICLICK. Aqui, adocicados, cheios de mel e conha- que, na tua presenga, Estidios TAN. Operan- doe rockoperando para 106 ponto 04 Mega- hertz. Fiquecom a mente. S: Como agora, quando a voz dilata o meu espi- rito delirio até yocés. Ao Sombra resta o fim da histéria. A tua presenca lateja comigo agora, aqui, depois de ter ido embora ce o lencol ainda guarda uma esséncia de tua... inteligéncia, RADIOS LIVRES 129, Depois de algum tem- po, BG. S/D/BG Fusdo, ou 0 mais perto que for possivel, para “Candy's Room” de Springsteen. Vai a BG apos inicio da parte cantada. S: Tenebroso é o desti- no daqueles que sio possuidos por uma pai- xfo negra. Um amor clandestino, a Medusa de cabelos desgrenha- dos, a esfinge na mais alta madrugada, povoa- da pelos touros € se- reias. Os dragdes estado no ar. Um sussurro es- tatelante, um orgasmo deslumbrante e estas vezes em que a mente chega a ter a intensida- de do teu corpo. S: As historias que dio Sombra, doceouvidos, sao fatais. Mas o mal dos coracées mortais € uma trama de gemidos eais. A floresta dos pra- zeres e das sombras em que brilha, amortecido, o quarto dela. S: Este foi o meu dom, o dom do Sombra. Eu espero ja ter sido per- doado por Billi Cobhan, 130 A, MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAQ Sobe BG. Vai até o fim. Stop. George Duke, Vange- lis, Lou Reed, Jimmi Hendrix, Peter Gabriel Frank Zappa, The Eu- rithmics e Bruce Spring- steen, de quem abusa- mos durante esta irra- diacao. Osexoéa maldicao. Osexoéaredencao, Amor, vocé é um tesio. Xilik no coracao. Grande baci. Foto: Manica Mai RADIOS LIVRES 131 Monica Maia 13 de outubro de 1985; 0 comicio do Partido dos Trabalhadores, por ocasido das eleicfes municipais de $40 Paulo, foi colocado no ar, ao vivo, pala ridio Se Ligue, Suplicy. Na pagina seguinte, @ antena livre. Constituicao da Radio Patrulha de Ermelino Matarazzo Racio Patrulha 106.3 MHz EM Livre. Estamos no ar de segunda a sexta, das 18 as 20 horas e domingos das 16 as 18 horas, falando para todo o Ermelino Matarazzoe adjacéncias. OBJETIVO: Abrir espago para diversos grupos que queiram Participar de comunicagdo popular através de pro- gramas de radio livre, Q Estamos levando o microfone até a comunidade abrindo assim mais um espaco para as manifestagdes populares dos mais diversos segmentos da sociedade. permitindo que o cidadao, a patroa, a empregada, o trombadinha e todos os demais se manifestem, fa: lem, ougam, opinem e participem das necessidades do bairro, enfim se coloquem livremente, sem medo esem censura. Para isso, estamos programando uma série de debates, entrevistas, mesas-redondas, cobertura de assembléias e reunides com transmissées ao vivo. Em nossa Programacio terdo voz os trabalhadores, os li- deres sindicais, artistas da regio, transeuntes, etc. Teremos radionovelas, critica e humor, além de in- RADIOS LIVRES. 133 formagées completas sobre os movimentos popula- res, culturais e demais acontecimentos do dia-a-dia de nosso bairro. Tudo isso com muita musica popu- lar, regional e bandas de fundo de quintal. Histérico da radio Ha alguns anos, ressurgiu na regido os servi- cos de alto-falantes, com um jeito diferente de prati- car a comunicacdo, dando o microfone ao povo para que ele discutisse sua situaco no bairro. A propria populacdo fazia os programas e se transformava em agente ativo de suas lutas. No final de 1984, um grupo dejovens da regido, cansado de ouvir as coisas de sempre nas FM e in- centivado pela experiéncia dos alto-falantes, sentiu a vontade e a curiosidade de montar um transmis- sor, Queriamos atingir nfo apenas a regiiio abran- gida pelos alto-falantes, mas um espaco bem maior eisso s6 poderia acontecer com uma radiolivre. Foi um momento muito dificil para o grupo, pois estavamos inseguros e nao sabiamos se teriamos pique para segurar uma radio livre, mas mesmo as- sim resolvemos avangar. Fizemos os primeiros con- tatos, muito timidos no inicio, mas logo descobrimos que a barra nao era aquela que imaginavamos. Re- solvemos investir alto na coisa, mesmo ainda nao sa- bendo direito qual o risco que corriamos. Empolgados com a idéia de montar nossa pré- pria radio, conseguimos localizar um técnico que se dispés a construir nosso transmissor. No final de fe- yereiro de 1985, ele nos ligou para dizer que o apa- relho j4 estava pronto, s6 faltava instalar. Ai foi 134 A. MACHADO/C. MAGRI/M, MASAGAO: aquele corre-corre para arrumar um local. Ficamos sabendo que irlamos operar na freqiiéncia de 106.3 MHz. Depois de tudo instalado, partimos para os tes- tes de som. A sala estava no auge da agitacio, a ex- pectativa era grande. Fizemos a ligagio de um apa- relho trés-em-um no transmissor. Tudo mudo. Subs- tituimos por um amplificador e, entéo, no primeiro toque ao microfone, as caixas responderam. Um pouco mais calmos, comecamos os testes de voz. Na nossa sala, o som saia absolutamente limpo. Partimos para os telefonemas. Ligamos para va- rios conhecidos e pedimos para eles sintonizarem o 106.3 MHz. Pelas respostas dos ouvintes, percebe- mos que estavamos chegando mais longe do que es- peravamos. Atingiamos as regides de So Miguel, Itaim Paulista, Parque Paulistano, Ermelino Mata- razzo, Cangaiba, Penha (baixo), Vila Matilde, Vila Ré, Cumbica e Guarulhos. Saimos de carro para sen- tir a nossa forga e percebemos que estavamos tao nitidos como qualquer FM comercial. Operamos em cardter experimental durante o més de abril. Depois, a radio ficou desativada du- rante um més, pois o grupo se dissolveu. Voltamos aos testes com um grupo novo, mas novamente ndo demorou muito. Na nossa terceira forma¢ao, quando famos entrar no ar, percebemos que haviam mexido nos aparelhos e eles nao funcionavam mais. A triste- za tomou conta da sala. Telefonamos para o técnico e ele constatou que uma bobina e um transformador estavam queimados. Ficamos mais um bom tempo sem o transmissor e mais um grupose dissolveu. Ago- ra, com o transmissor pronto ¢ um grupo de pessoas realmente comprometidas, voltamos a atividade com forga total. RADIOS LIVRES 135 PIRATAS SAO ELES QUE NOS ROUBAM A LIBERDADE DE EXPRESSAO. Grupo de Comunicacdo de Erm elino Matarazzo Uma televisao para mil vozes At ha pouco tempo, o conceito de televisio que cultivavamos era tao rigido quanto o sistema de transmissdes em que se baseava. Em primeiro lugar, considerando que a televisdo utilizou, desde a sua origem, as ondas eletromagnéticas como meic de dis- tribuicZo, a maioria esmagadora dos governos nacio- nais, sejam eles baseados em democracias formais, autocracias militares ou oligarquias burocraticas, instituiu de imediato sistemas de controle das emis- sdes, declarando-se por antecipagao a unica autori- dade com poderes para emitir sinais de TV (op¢ao européia) ou para conceder licencas de emiss4o (op- gao americana). A estrutura da transmissao eletro- magnética — que parte de um polo irradiador aos milhdes de receptores individuais — eria as condi- des mais favoraveis para a homogeneizagao politica e a pasteurizagao cultural. Dezenas de milhdes de aparelhos receptores distribuidos por toda uma na- gio recebem diariamente a mesma informagao, ou quando muito um leque de no maximo doze op¢des diferentes, autorizadas todavia pela mesma autori- dade governamental monolitica. O paradoxo criado RADIOS LIVRES 137 poressaestrutura de TV é que ela torna a experiéncia privada de assistir TV um evento plublico, partilhado ao mesmo tempo por milhdes de outros cidadaos da Republica. As residéncias privadas tornam-se forte- mente ligadas a esfera publica, o que transforma qualquer emissio de TV num acontecimento politico jndubitavel. $6 que um acontecimento politico de tipo autoritario: cada cidadao individual nao tem meios para responder, intervir ou exercer influéncia sobre a emissao, ja que ela é one way, unidirecional, irreversivel. Imagine uma estrutura de TV desse tipo implantada numa na¢ao africana, com suas centenas de diferentes grupos étnicos, com suas centenas de linguas, culturas e religides particulares, para se ter nogdo do poder devastador que o meio pode exercer em escala nacional. Imagine também o destino de uma democracia, com toda a riqueza de suas dife- rentes correntes de opiniao e o leque inesgotavel do pluralismo ideolégico, entregue a centralizagao uni- direcional dessa estrutura de produgao. Certo, esse esquema é um pouco simplista e nao dA conta das contradigdes que sacodem o meio. Nu- ma sociedade abalada por conflitos da mais diversa natureza, a televisdio acaba, mesmo a custa de muita resist@ncia e na rabeira da convulsio social, por re- fletir os problemas que a comunidade enfrenta. Mas dado o papel central que ela exerce sobre as trocas simbélicas de uma na¢ao, as forgas politicas mais avangadas nao podem contentar-se com um feed back atenuado, privado de suas arestas cortantes € imensamente atrasado em relagao ao volume de res- postas politicas e culturais que a sociedade est4 po- tencialmente apta a dar. Se nao houyer uma virada radical na propria estrutura de producgio da imagem eletrénica, a televisao seguira, bem ou mal, cumprin- 138 A, MACHADO/C. MAGRI/M. MASAGAO do seu papel de regulador homeostatico das tensdes interpessoais e sociais. Intervir, sempre que possivel, na programacdo comercial da TV, criar canais de re- sisténcia e pressio e mesmo combater a autoridade do Estado para conceder faixas de onda — tudo isso pode estar colocado no rol das tarefas democraticas pelas quais se empenham as forgas progressistas da nacio, mas essas tarefas todas podem resultar ind- cuas se elas nao forem capazes de fazer implodir a propria estrutura monolitica e unidirecional disso que até aqui nés conheciamos como felevisdo. Ultimamente tém surgido algumas mudangas substanciais no conceito de televisio. Em primeiro lugar, a televisiio baseada num sistema de transmis- sio eletromagnética e expandida pelas redes de re- transmissdo, isso que os americanos batizaram de network broadcast, ja no mais esgota a amplitude do termo. Mesmo no terreno das emiss6es ondulares, j4 esta havendo uma reversfo no sistema das faixas de onda. Até aqui, os grupos politicos e comerciais de interesses autoritarios apoderaram-se do regime de transmissdo em VHF (Very High Frequency), pois trata-se justamente de uma modalidade de transmis- sao que permite atingir a maior amplitude geogra- fica. Uma outra modalidade, entretanto, denomi- nada UHF (Ultra High Frequency), até aqui negli- genciada e utilizada apenas para retransmissdes em pequenas cidades do interior, comega a despertar o interesse de produtores independentes e alternati- vos. Tecnicamente, a coisa funciona mais ou menos assim: se dividimos todo o espectro eletromagnético destinado a televisio em faixas de onda de grande alcance, s6 podemos contar com poucos canais, pois eles ocupam porgdes demasiado amplas do espectro. Se, pelo contrario, renunciamos 4 ambicfo de emitir RADIOS LIVRES 9 para grandes massas distribuidas em regides distan- tes, podemos dividir o espectro num numero muito maior de faixas de onda e contar com uma quanti- dade muito maior de canais de pequeno aleance e destinados apenas 4s populacdes locais. Em UHF, podemos utilizar ao mesmo tempo 70 canais, en- quanto em VHF sé podemos utilizar no maximo 12 canais (do 2 ao 13). Considerando ainda que os ca- nais de UHF tém um alcance limitado, cidades com as extensdes de Sao Paulo ou Rio podem contar com programacoes diferentes numa mesma faixa de on- da, desde que os transmissores estejam colocados em bairros diferentes: isso permite multiplicar os 70 ca- nais quase ao infinito. E se os recursos de produ- fio e transmissao sao simples e baratos, os proprios espectadores, se estiverem motivados para isso, po- dem cotizar-se num regime de subsericoes, para manter o seu canal alternativo no ar, sem que este precise recorrer ao atrelamento da publicidade co- mercial. Televisdes mantidas pelos seus proprios es- pectadores j4 sao uma realidade em muitos paises. Falando agora politicamente, 0 regime UHF tem poucas afinidades com os conglomerados e as grandes redes nacionais. Ele parece se dirigir, com maior naturalidade, a segmentos especificos da po- pulagao, oferecendo transmissoes diferenciadas, vol- tadas as aspiragées de cada estrato social ou aos in- teresses de cada grupo cultural. A programagio no regime UHF tende a ser diversificada na mesma am- plitude da diversidade do piblico, enquanto as redes que operam em VHF s6 podem se dirigir a média indiferenciada e amorfa dos cidadaos abstratos. No limite, a ampliagao das programacoes localizadas ¢ diferenciadas poderia mesmo abalar a estrutura mo- nolitica da transmissao ondular, pois seria quase

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