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Colepio: Linguagem/Critica ' OSWALD DUCROT Diresdo: Charlotte Galves Eni Pulcinelli Orlandi Eni Pulcinelli Orlandi (presidente) Marilda Cavalcanti Paulo Otoni O DIZER E O DITO Revisdo Técnica da Tradugto: Eduardo Guimaraes FICHA CATALOGRAFICA Dados de Catslogagio na Publicaso (CIP) Internacional (Cimara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Consetho Editorial: Charlotte Galves Ducrot, Oswald. ‘0 dizer e 0 dito / Oswald Ducrot ; revisio técnica da tradusio Eduardo Guimaries, — Campinas, SP : Pontes, 1987. (Linguagem/critica) Bibliografis ISBN 85-7113-002-7 L. Lingusgem — Filosofia 2. Linglistica 3. Semintica 1. Titulo. I. Série. epp4o1 “410 87-1898 412 Indices para catélogo sistemitico: 4, Linguagem : Filosofia 401 1 2. Linguistica 410 3. Semintica : Lingtistica 412 1987 Capitulo VIII ESBOGO DE UMA TEORIA POLIFONICA DA ENUNCIACAO I. 0 objetivo deste capitulo & contestar e, se possfvel, substituir — um postulado que me parece um pressuposto (geralmente implici-| to) de tudo 0 que se denomina atualmente “lingtifstica moderna”, termo que recobre ao mesmo tempo o comparativismo, o estrutura- lismo © a gramética gerativa. Este pressuposto é 0 da uricidade do sujeito falante, Parece-me, com efeito, que as pesquisas sobre a lin-[/ ‘guagem, hé pelo menos dois séculos, consideram como ébyio — sem sequer cogitar em formular a idéia, de tal modo ela se mostra evi- dente — que cada enunciado possui um, € somente um eutor, Uma crenga andloga durante muito tempo reinow na teoria lite- réria, e nfo foi questionada explicitamente sendo a partir de uns cin- giienta anos, notadamente depois que Bakhtine elaborou 0 conceito de polifonia, Para Bakhtine, hd toda uma categoria de texios, € nota- | damente de textos literérios, para os quais € necessério reconhecer // que vétias vozcs falam simultaneamente, sem que. uma dentre_elas. || seja preponderante e julgue as outras: trata-se.do que ele chama, em oposigio & literatura clissica ou dogmética,.a-literatura_popular, ou. ainda carnavalesca, e que as vezes cle qualifica de mascara dendo por isso que 0 autor assume uma série de méscaras diferentes. Mas esta teoria de Bakhtine, segundo meu conhecimento, sempre foi ) aplicada a textos, ou seja, a seqiiéncias de enunciados, jamais aos enunciados de que estes textos so constitufdot nfo chegou a colocar em dtivida o postulado ‘lado isolado faz ouvir uma tinica voz. _-_E justamente a este postulado que ew gostar Para mostrar até que ponto ele esté ancorado na tradigao lingufstica, 161 ( chamarei a atencdo rapidamente para uma pesquisa americana, que, no préprio momento em que esté para abandoné-lo, reestabelece-o in extrimis, como se se tratasse de um dogma intocdvel. Tratase do estudo de Ann Banfield (1979), sobre o estilo indireto livre. Rom- pendo com a descrico habitual de estilo indireto livre como uma das, formas do discurso relatado, Ann Banfield vé nele a expressio de um ponto de vista, que pode nfo ser o da pessoa que é efetivamente, ‘empiricamente, autor do enunciado, e ela emprega o termo “sujeito de consciéncia” para designar a fonte deste ponto de vista. Mas, alcan- ‘sando este ponto, quer dizer, o momento em que uma pluralidade de sujeitos poderia ser introduzida no enunciado, Banfield formula dois princfpios que descartam a ameaca. Ela coloca inicialmente que, para tum dado enunciado, s6 pode haver um sujeito de consciéncia, colo- cando de imediato no dominio do anormal os exemplos que fariam aparecer uma pluralidade de pontos de vista justapostos ou imbrica- dos. E em seguida, para tratar os casos em que 0 sujeito de conscién- cia nfo 6 0 autor empfrico do enunciado, diz que ndo hé locutor nestes enunciados. Certamente nfo censurarei Banfield — muito a0 contrétio — por distinguir 0 locutor, ou seja, 0 set designado no enunciado como seu autor (através, por exemplo, de marcas da pri- meira pessoa), € 0 produtor empirico, ser que nfo deve ser levado ‘em conta por uma descrigao lingifstica preocupada somente com indi- ccagdes seménticas contidas no enunciado, O que censurarei em Ban- field € a motivagio que a leva a esta distinglo, a saber, o cuidado fem manter a qualquer prego a unicidade do sujeito falante, jé que este mesmo cuidado — depois de té-la levado a fazer abstragio do produtor empirico (posigao que & também a minha) — vai levé- decisées que gostaria de evitar. Quando o sentido de um enunciado comporta a indicago incontestvel de um locutor (atestada pela pre- senga de pronomes de primeira pessoa) mas que, no entanto, 0 enun- ciado exprime um ponto dé vista que nfo pode ser identificado a0 do locutor — por exemplo, quando alguém tendo sido chamado de imbecil, responde “Ah, eu_souum imbecil, muito bem, voce _vai ver...” — Banfield é obrigada a excluir estas “retomadas” do cam- "po do estilo indireto livre considerando-as um dos modos do discurso relatado (desctevendo 0 “eu sou um imbecil” do discurso precedente ‘como um “voce diz que eu sou imbecil”). Gragas a tais exclusdes, ela pode formular um prinefpio segundo o qual, quando hé um locutor, ‘este 6 necessariamente também o su nfo tem outra justificative, a meu ver, sendo salver uma unicidade 162 to de conscincia, prinefpio que | el admitida a priori como um dado de bom senso: “nfo se pode, em uum enunciado que se apresenta como préprio, exprimir um ponto de vista que néo seja 0 préprio”. Os estudos de Banfield sobre o estilo indireto livre forafa recen- temente discutidos em detalhe por Authier. (1978) e’Plénat (1975). Estes dois estudos colocam em diivida os dois principios“tim enun- ciado — um sujeito de consciéncia” e “se hé um locutor, ele , idén- tico a0 sujeito de consciéncia”. Minka propria teoria da polifonia, que deve muito aos dois autores. que acabo de citar, visa a construit um quadro geral onde se poderia introduzir sua critica a Banfield, quadro que constitui ele mesmo, digo-o desde jé, uma extensio_(ba tante livre) & lingifstica dos trabalhos de Bakhtine sobre.a-literatura_} 11, Gostaria, inicialmente, de definir_a_disciplina — chamo-a tpragmética semantica”, ou. “pragmética lingiifstica”— no interior da tica a ago humana em geral, 0 termo pragmética da linguagem pode servir para designar, neste conjunto de investigagdes, as que dizem respeito & ago humana realizada pela linguagem, indicando suas con- digdes € seu alcance. O problema fundamental, nesta ordem de estu- dos, € saber porque € possivel servir-se de palavras para exercer uma influéncia, porque certas palavras, em certas circunstincias, sfo dote- das de eficécia. & 0 problema do centuriio do Evangelho, que se es- panta por poder dizer a seu criado “venha!”, € 0 ctiado vem. F tam- bém a questo tratada por Bourdieu (1982), questo que esté, na ver- dade, no dominio da sociologia, e sobre 0 qual 0 lingitsta, enquanto lingiiista, tem pouca coisa a dizer — exceto se ele cré em um poder intrinseco do verbo. Mas, uma vez colocado de ado este problema, resta um outro, que me parece, este sim, propriamente lingiifstico, e que faz parte justamente do que chamo “pragmética lingifstica”. N&o se trata mai do que se faz quando se fala, mas do que se considera que a fal segundo © proprio enunciado, faz. Utilizando um enunciado interro- gativo, pretende-se obriger, pela propria fala, a pessoa # quem se dirige a adotar um comportamento particular, o de responder, e, do mesmo modo, pretende-se incité-lo a agit de uma certa maneira, se se recorre a um imperativo, etc. O ponto importante, a meu ver, € ‘que esta incitagdo para agi ou esta obrigagao de responder sto dadas como efeitos da enunciagao. © que generalizarei dizendo que todo 163 ( ‘enunciado traz consigo uma qualificacao de sua enunciagfo, qualif cagio que constitui para mim o sentido do enunciado. O objeto da\ pragmética semantica (ou lingiistica) é assim dar conta do que, se-| gundo o enunciado, é feito pela fala. Pata isto, & necessdrio-descrever- sistematicamente-as-imagens-de-ernmiciac20" que 880" v is pelo emunciado. IIT. Para Jevar a bom termo esta descrislo, parece-me necessé- rio estabelecer e depois manter (mesmo se isto custa um pouco) uma \(\ istingGo rigorosa entre “o enunciado” ¢ a “frase”. O que eu chamno |} “frase” € um objeto te6rico, entendendo por isso, que ele nfo per- | tence, para o lingiista, ao dominio do observavel, mas constitul uma fnvengéo desta ciéncia particular que é a gramética. O que o lingtista pode tomar como observavel ¢ 0 enunciado, considerado como a ma- {| nifestacio particular, como a ocorréncia hic ef nunc de uma frase. ‘Suponhamos que duas pessoas diferentes digam (“faz bom tempo”, ou que uma mesma pessoa o diga em dois momentos diferentes: encon- | framo-nos em presenga de dois enunciados diferentes, de dois obser véveis diferentes, observaveis que a maior parte dos lingtiistas expli- | cam decidindo que se trata de duas ocorréncias da mesma frase de ‘uma Iingua, definida como uma estrutura lexical e sintética, e da qual se supde que ela € subjacente. i Dizer que um discurso, considerado como um fendmeno obser- vavel, € constitufdo de uma seqiiéncia linear de enunciados, € fazer a hipétese ("hipétese externa”, no sentido definido no Cap. IIT) de / que © sujeito falante o apresentou como uma sucesso de segmentos ” ‘em que cada um corresponde a uma escolha “relativamente aut6no- ‘ma” em relagio & escolha dos outros. Direi, entaio, que um intérprete, para segmentar em enunciados um dado discurso, deve admitir que esta segmentagdo reproduz a sucesso de escolhas “relativamente au- tOnomas” que o sujeito falante julga ter efetuado. Dizer que um dis- curso constitul um s6 enunciado é, inversamente, supor que 0 sujeito falante © apresentou como o objeto de uma tinica escotha, Falta precisar agora a nogo de “autonomia relativa” da qual acabo de me servir. Ela esté, para mim, na satisfagdo simultfnea de duas condigdes, de coesio e de independéncia. Hé coesio em um segmento se nenhum de seus segmentos ¢ escolhido por si mesmo, quer dizer, se a escolha de cada constituinte € sempre determinada pela escolha do conjunto. £ 0 caso de uma seqiitncia como Pedro estd 164 ‘aqui, pelo menos quando se admite que as trés palavras que a cons- {uem so escolhidas para produzit a mensagem total, ¢ que @ ocor- réncia da palavra Pedro, por exemplo, néo se justifica pelo simples desejo de pronunciar 0 nome de Pedro. Mas € também o caso para a prépria palavra Pedro, na medida em que o aparecimento dos fo- rnemas que a compéem € motivado somente pelo desejo de formar 0 nome completo Pedro. Para evitar ter de considerar esta ocorréncia de Pedro como um enunciado, deve-se, entio, acrescentar & coesio, uma segunda condicfo, que chamarei “independéncia”. Uma seqiién- cia € independente se sua escolha nao ¢ imposta pela escolha de um ‘conjunto mais amplo de que faz parte. O que exclui imediatamente a palavra Pedro tal como aparece na seqiiéncia analisada. Alguns exemplos. Quando, para inciter & temperanga uma pes- soa muito gulosa, se Ihe recomenda “Coma para viver!”, 0 coma nio constitui um enunciado, porque € escolhido somente para produzir a mensagem global: 0 sujeito falante nao deu primeiro 0 conselho “co- ma!” ao qual teria actescentado em seguida a especificagéo “para vviver”. Mas se a mesma seqiiéncia serve para aconselhar a um doente sem apetite a comer pelo menos alguma coisa, o coma deve ser com- preendido como um enunciado, assumido pelo sujeito falante, e refor- ado em seguida por um segundo enunciado que tre Para apoiar o conselho dado. Comparemos os dois A: O Pedro, a gente néo tem visto muito, B: Mas como!. Eu o vi esta manhi,/A propésito, ele acaba de comprar um carro. ‘A: Eu acho que Pedro esté com problemas de dinheiro neste ‘momento. B: Mas como!. Eu o carro. i esta manha. Ele acaba de comprar um No primeito dislogo, o Ew o vi esta manhd atende & condiglo de independéncia. Néo se pode admitir que B tenha primeiro procurado dar a conhecer que ele tinha encontrado Pedro, mensagem que tem uma fungio por si s6, j& que foi suficiente replicar ao que dissera A. No segundo diélogo, ao contrério, 0 segmento Eu o vi esta manhd dado s6 como uma preparagio destinada a tornar mais confiével a informaglo que vem em seguida, e escolhida em virtude da decisio de fornecer esta informacio. Nao hé, entiio, a independéncia exigivel 165 de um enunciado (0 conectivo a propésito, que aparece no primei- 10 diflogo © que seria impossivel no segundo, tem entre suas fun- 6es, exatamente, marcar a dualidade dos enunciados — mesmo quen- do ele serve para mascarar hipocritamente que o sujeito falante que: ria, desde 0 “dizer 0 segundo enunciado). N.B. — Esta definigéo do enunciado pela autonomia relativa, ela propria fundada no duplo critério de coesdo © independéncia, leva a duvidar que se possa segmentar em “texto” em uma pluralidade de enunciados sucessivos. O que se chama “texto” é na verdade, ha tualmente, um discurso que se supde ser objeto de uma tinica escolha, cujo fim, por exemplo, jé € previsto pelo autor no momento em que redige 0 comeso (caracteristica que leva Barthes (1979) a negar ‘tie um disrio intimo possa constituir num texto). Assim, um poema dificilmente poderé aparecer como algo diferente de um enunciado ‘inico se for caracterizado, ao modo de Jakobson, pela enumeragio de ‘um paradigma cujos diferentes elementos esto dispersos ao longo do desenvolvimento sintagmético. Conclusio idéntica, no que diz respei to a uma peca de teatro se se admite, de acordo com a tese de A. Reboul-Moeschler (1984), que ela traz, ao lado da fala que as per- sonagens se dirigem umas as outras, uma fala do autor ao ptiblico. Porque esta segunda fala, que constitui a linguagem teatral propria- mente dita, manifesta escolhas cuja expresso pode estender-se em ‘uma larga seqiiéncia tinica, e em todo caso ir muito além das répli- cas das personagens. Um exemplo elementar é fornecido pelo que Larthomas (1980, p. 316), chama as “dialogias cruzadas”, Cléante © ‘seu eriado Covielle se lamentam separadamente, no ato III, cena 9, do Bourgeois Gentilhomme, de suas decepgdes amorosas, mas suas réplicas, auténomas se se considera 0 diélogo entte as personagens, figadas do ponto de vista da linguagem teatral, Cf. Cléante: Que ii versées & ses genoux!” — Covielle: “Tant de seaux i tirés du puits pour elle”, otc *. IV. Assim definido — como fragmento de discurso ciado deve ser dis da frase, que € uma construc ta, e que permite dar conta dos enunciados. Na base da ciéncia lin- giilstica hé, com efeito, a decisio de reconhecer nos enunciados rea- lizados hic et nunc, todos diferentes uns dos outros, um conjunto de * Cléonte: “Quantas légrimas derramei em “Tantos baldes 166 centidades abstratas, as frases, em que cada-uma & suscetivel de ser manifestada por uma infinidade de enunciados, Fazer a gramética de uma lingua é especificar e caracterizar as frases subjacentes aos enun- ciados realizados através desta lingu: Insisto na idéia de que a separacio entre a entidade observével © a entidade te6rica néo diz respeito a uma diferenca empfrica entre estas duas entidades, em que uma seria de ordem perceptiva ea outra de ordem intelectual, mas a uma diferenga de estatuto metodolégico, que , pois, relativo ao ponto de vista escolhido pela pesquisa: para tum historiador da gramética, a frase, tal como a concebe um dado gramético, € um observével, enquanto que para este gramético ela ceria um principio explicativo. Por isso ndo seria posstvel fundamen- far-se em critétios intuitivos, em uma espécie de “sentimento lingi tico”, para decidir se vérios enunciados realizam ou nfo a mesma frase: a mera identificago das frases mobilize, ao contrério, uma teoria, Iustrarei esta idéia com um exemplo escolhido em virtude de seu aspecto paradoxal, ¢ relativo a um problema te6rico assinalado ‘no capitulo VI. Segundo Anscombre e eu, néo € possivel realizar um ato de linguagem pelo simples fato de se declarar explicitamente rea- liz&-o. Ora F. Récanati objetou-nos que se pode efetuar 0 ato de dizer obrigado * através da f6rmula “Eu te digo obrigado”, ou seja, afirmando que se realiza este ato. Para responder a esta objecio, que aa identificar, em certos casos, 0 que os medievais chamavam actus exercitus e actus designatus, nossa tinica solugio era sustentar que 0 predicado que intervém na f6rmula “Eu te digo obrigado” é di- ferente do que designa 0 ato de agradecer [remercier]. Assim, para iro valor da formula é Eu te digo “obrigado”: tr to falante, de se apresentar pronunciando: “Obrigado!”, Tese que conduz a dizer que os enunciados transcritos “Digo obriga- do!” podem resultar de duas frases diferentes. Uma comporta o pre- dicado [dizer “obrigado”] significando pronunciar a palavra “Obriga- dot”. Ela aparece no didlogo: — AaB: Vamos, diga obrigado a C! * Em Portugués nfo hé entre obrigado e agradecer as relagtes existentes (istéricas, derivago delocutiva) entre merci e remercier em frances. Mas ps jumentagio aqui desenvolvida a tradugo nfo traz maiores difi- ‘culdades. (N. do T.) 167 ) ciagao nos capitulos I, III e IV). B, pois, cor — B a C: Vocd foi muito gentil. — A a B: Nao, diga obrigado! A outra frase, cujo predicado [dizer — obrigado] significa a rea- lizagio do ato de agradecer [remercier] aparece em: — AaB: Vamos, diga obrigado a C! — Ba C: Voc8 foi muito gentil. — AaB: Ainda bem! Estes dois diélogos de forma nenhuma provam, insisto neste pon- ‘que nos encontramos diante de duas frases distintes: certamente ficam explicados se tal dualidade for admitida, mas poder-se-ia decidir ‘que hé neste caso duas utilizagdes diferentes de uma mesma frase. Se escolhemos, Anscombre © cu, dar a estes didlogos um valor discrimi- natério [discriminante] € porque, de uma maneira geral, nossa tese sobre a performatividade nos obriga a supor que ha na lingua dois predicados diferentes [dizer “Obrigado”] © [dizer-obrigado] 0 que torna plausfvel, em contrapartida, que enunciados “Digo Obrigado” possam ser a manifestagio de duas frases distintas. (Este exemplo discutido nas pp. 122, 123 e 130). V. Da frase © do enunciado distinguirei ainda “a enunciacio” /Trés acepgdes pelo menos podem ser atribufdas a este termo. Ele pode primeiramente designar a atividade psico-fisiolégica im- plicada pela producéo do enunciado (acrescentado-the eventualmente © jogo de influéncias sociais que @ condiciona). Este no 6 0 tipo de problemas que considero como meus — 0 que nao implica, é enhuma desvalorizagéo de tais problemas, mas somente a hipdtese ( dé que os meus podem ser tratados separadamente, Em uma segunda \ acepeio, a enunciagao & o produto da atividade do sujeito falante, quer dizer, um segmento de discurso, ou, em outros termos, 0 que acabo de chamar.“enunciado” (tal é 0 sentido dado a palavra_enun- qiie ficarei, © que designarei por este termo € 0 acontecimento cons- | € dadp existéncia antes de se falar © que néo existiré | / ima coisa que nfo exis - depois. # esta apariggo momentanea que chamo “enunciagao”. Ressaltar-se-6 que no fago intervir na minha caracterizagéo da enun- 168 ciagdo a nogio de ato — a fortiori, néo introduzo, pois, a nogio de _ “unr sujeite autor da fala ¢ dos ates. de fala, Nao" digo qué @ enuncia- ‘gio € 0 ato de alguém que produz um enunciado: para mim ¢ sim- plesmente o fato-de-que-umenunciado aparece, e eu no quero tomar nivel nigGes_preliminares, em relagéo ao pro-_| p eds enanclada NEG halo que osc ws AE oe ToS jornar menos estranha minha nogfo de enunciagéo (0 que s, nem necessério nem suficiente para legitiméta), assin | larei simplesmente que expresses muito banais fazem as vezes alusio \a um conceito da mesma ordem, Suponhamos que eu relate a voces ‘uma conferéncia que tenha assistido ¢ durante a qual um certo X interveio para fazer uma pergunta a0 conferencista. E possivel que feu comente 0 fato dizendo-hes, por exemplo: “Esta intervengio me surpreendeu muito". Meu enunciado pode ser compreendido de diver- sas maneiras. O que et qualifiquei de surpreendente pode ser 0 pré- prio contedido das palavras de X, 0 que ele diz. Pode ser também 0 desempenho apresentado por X, as qualidades intelectuais, morais, articulatérias que ele apresentou a0 falar. Mas pode tratar-se igual- mente do acontecimento enuinciativo que presenciei (portanto a enun- ciagio, no sentido definitivo acima): eu estou surpreso por tal dis- ‘curso ter podido se dat, seja porque nao é habitual, na sua forma ou ‘no seu teor, seja, simplesmente, porque normalmente nenhuma inter- vengio € tolerada em conferéncias deste tipo. (O que precede nfio im- plica de modo nenhum, de minha parte, a idéia bizarra — e espero que nio me tenha sido imputada — que um enunciado possa ape- recer por geracéo espontinea, sem ter na sua origem um sujeito fa- ante que procura comunicar alguma coisa a alguém, este sigo sendo precisamente o que denomino o sentido. Mas acontece que tenho ne- cessidade, era sonstruit uma tors do sentido, una teria do que € comunicado, de um conceito de enunciagio que néo encerre em si ‘deste inicio, @ niocho de sujeito Talante). Reegeeot VI. Em correlagio com a oposigao da frase e do enunciado, devo agora introduzir a diferenca entre a significagio e o sentido — espe- cificando que escolho estas duas «iltimas expressées de modo absolu- tamente arbitrétio, sem me referir a seu emprego na linguagem ordi- néria ou na tradigfo filos6fiea. Quando se trata de caracterizar seman- ticamente uma frase, falarei de sua “significacdo”,e reservarei a Palavra “sentido” para a caracterizagio semAntica. do. enunciado. ee 169 Oy we “tempo es Entre 0 sentido e a significagio hé para mim, ao mesmo tempo, uma diferenga de estatuto metodolégico e uma diferenga de natureza. De estatuto metodolégico porque, no trabalho do lingiiista semanticista, o tido pertence ao dominio do observavel, ao dom{nio dos fatos: 0 ato que temos de explicar 6 que.tal_enunciado.tem-tal(is) sentido(s), (Ses), O que nao | pe espero que seja desnecessério acrescentar, que tomaremos este fato semantico por um dado, fornecido por uma intuigo ou um sen- timento imediatos: como todo fato cientifico, ele € construfdo através | simplesmente as hipéteses constitutivas do fato de- izuidas das hipsteses explicativas destinadas a dar conta dele. E justamente dessas hipéteses explicativas que resulla a ficagto da frase. Para dar conta de modo sistemético da associagio | “observada” entre sentidos e enunciedos, escolho associar as frases realizadas pelos enunciados um objeto tedrico etiquetado “significa- go”. A manobra me parece interessante na medida em que suponho possivel formular leis, de um lado para calcular a significagio das frases a partir de sta estrutura Iéxico-gramatical, e de outro lado para prever, a partir desta significagio, 0 sentido dos enunciados. Independentemente mesmo desta diferenga metodoldgica, estabe- leca, entre 0 sentido e a significacio, uma diferenca de. natureza, Quero assim fincar pé contra a concepsao habitual segundo a qual ‘0 sentido do enunciado € a significagao da frase temperada por alguns ingredientes emprestados a situacio de discurso. Segundo esta con- cepgdo, se encontrariam pois, no sentido, de um lado a significagio € de outro os acréscimos que The trazem a situagéo. Por mim, recuso — sem que possa aqui justificar tal recusa — fazer da significago ‘uma parte do sentido. Prefiro representé-la como um conjunto de instrugbes dadas &s pessoas que tém que interpretar os enunciados da frase, instrugées que especificam que manobras realizar para associar tum sentido a estes enunciados. Conhecer a significagio da frase por- tuguesa subjacente a um enunciado "O tempo esté bom” € saber 0 ‘que 6 necessério fazer, quando se esté em presenga deste enunciado, para interpreté-lo, A significago_contém, pois, por exemplo,, uma lando. © que explica que um enunciado do tipo “o no pode ter por sentido que esté fazendo tempo bom em qualquer parte do mundo, mas significa sempre que faz ‘bom tempo, em Grenoble, ou em Paris, ou em Waterloo, ete, ou seja, 170 de_que lugar_fala 0. locutor,-e— no lugar sobre © qual 0 locutor fala ¢ que pode freqiientemente, mas nem sempre, ser 0 lugar de onde ele esté falando. Do mesmo modo, a significagio de uma frase no presente do indicativo prescreve a0 interpretante determinar um certo perfodo — que podé ser de dura- 0 bastante diversa, mas deve incluir 0 momento da enunciaséo — e relacionar a este perfodo a asseryao feita pelo locutor. A natureza instrucional da significagio aparece nitidamente quan- do nela se introduzem, como Anscombre.e ett fazemos. sistematica- mente, “varidveis argumentativas”. Um exemplo de variével argumen- tativa tum pouco diferente daquelas (mas e mesmo) com que temos apresentado a nogio: a descricao semantica das Trases francesas con- tendo 0 morfema trop *. Que se diz quando, a propésito de um objeto , enuncia-se uma frase do tipo O est trop P** onde O é uma des- ctigdo do objeto e onde P é um adjetivo exprimindo uma propriedade, a P-idade?. Sem pretender ser exaustivo, direi que tal enunciado tem, centre outras caracteristicas, a de ser refutativo (sobre os diferentes modos da refutagdo ver Moeschler, 1982). Seu autor se apresenta co- mo considerando uma proposi¢o r, € como refutando-a através des- te enunciado, que tende, entio, para uma conclusio nao — r. E cle apresenta como razio decisiva contra r 0 fato de que O ultrapassa tum certo grau D de P-idade, abaixo do qual se poderia ainda, ou ‘mesmo, em certos casos, se deveria admitir r: o grau D aparece assim como um limite argumentativo. O que, nesta descricéo, ilustra minha concepgdo da frase, & 0 caréter de variével argumentative que pos- sui a conclusdo r. Uma frase do tipo O est trop P, ndo estaria dizen- do qual € 0 r contestado por tal ou tal de seus enunciados, mas ela apresenta um aviso, quando se vai interpretat um enunciado desta frase, para se procurar que r determinado o autor do enunciado tinha fem mente, A significagio da frase no constitui, pois, um contetido intelectual, ou seja, objeto de uma comunicagéo possivel. Certamen- te cle atribui a P-idade de O um grau excessivo, mas no hé excesso Por si mesmo. E’somente em relacdo a uma certa conseqiiéncia argu- ‘mentativa que af pode haver excesso, € a frase ndo estaria dizendo qual é esta conseqtiéncia; tudo 0 que diz a frase € que € necessério determinar se se quer constituir o sentido do enunciado, ou seja, se se quer descobrir 0 “algo” que 0 sujeito falante busca comunicar. Nes- © sentido no aparece, portanto, como a adigio da demasiado, (N. do T.) ++ 0 & muito (demasiado) P. (N. do T:) 171 ¥ signiticasio c de alguma outra coisa mas como uma construcio reali ly zada, levando em conta a situagio de discurso, a partir das instrugdes & “especificades” na significagao. VIT. Em que consiste este, sentido’ do enunciado, que o lingiista { gostaria de explicar a partir da sighificagao da frase?. A concepgio de ntido sobre a qual fundamento meu trabalho no é, propriamente 97 falando, uma hipstese, suscetivel de ser verificada ou falscada, mas resulta sobretudo de uma decisio que justifica, unicamente, o traba- Tho que ela tora possivel. Ela consiste em considerar-o-sentido-como uma_descri ic v ciado, Idéia paradoxal na aparéncia, j4 que supde que toda enuncia- gio faz através do enunciado que veicula, referencia a si mesma. Mas esta autoreferéncia nio é mais ininteligivel que aquela que todo livro faz a si mesmo, na medida em que seu titulo, parte integrante do li- vro (como 0 enunciado é um elemento da enunciaclo), qualifica o livro como um todo, Nem mais ininteligivel também que a expressio pela presente (inglés: hereby) que, inserida em uma carta ("Solicito- vos pela presente que..."), serve para qualificar a fungio da carta tomada na sua to A frente alguns detalhes sobre as indicagdes forneci- iado relativamente as fontes da enun (indica. | ges contidas, segundo meu ponto de vista, no sentido do enunciado), mostrar Como o enunciado assinal na medida em que € imposstvel substituir, no seu interior, uma defi- nigdo tdo pouco precisa de um ato ilocutério qualquer, pela expresso “alo A". Admitamos, por exemplo, a titulo de definigio, que ordenar seja “apresentar sta enunciago como obrigando o outro a fazer algu- ‘ma coisa”, Como sustentar, entéo, que 0 sentido do enunciado Jussi vv, 0 que & comunicado ac interlocutor, € que sujeito falante faz 0° ato de ordenar, a saber, que ele “apresenta sua enunciagéo como obrigando. .."?, © sentido do enunciado € simplesmente que # enun- ciagdo obrige... Quando um sujeito falante faz um ato ilocut6rio, © que ele faz saber ao interlocutor é que sua enunciaglo tem tal ou tal virlude juridica, mas nao que apresente como tendo esta vite tude *. O semanticista, que descreve 0 que 0 sujeito falante diz de sua enuneiagéo no enunciado, nao pode, pois, introduzir em suas descrigdes do sentido a indicagio de um ato ilocut6rio, mas uma ca- racterizagdo da enunciagéo vinculada ao enunciado, e que leva a com- preender porque 0 sujeito falante pode efetivamente, ao produzir o ‘enunciado, realizar 0 ato. Vé-se, por isso, porque chamo “pragmati- 4! cas” minhas descrigfes do sentido dizendo que’ sentido é algo que |) se comunica ao interlocutor: estas descrigdes so pragméticas na me- | — A | dida em que levam em conta o fato de que 0 sujeito falante realiza ’ ‘tos, mas realiza estes atos transmitindo ao interlocutor um saber — que € um saber sobre sta prépria enunciagio. Para fixar a termino- logia, ditei que interpretar uma produgéo lingifstica consiste, entre utras coisas, em reconhecer nela atos, e que este reconhecimento se faz atribuindo ao enunciado um sentido, que é um conjunto de indi- cages sobre a enunciago. CS j4 que € 0 objeto préprio de uma concepgao polifénica_do “=| gio de diversas voresMas gost 16 estudo da argumentasio fornecerd, um segundo exemplo da que 0 a, serenade 5 ven. emancrnan a manele &, maneira pela qual o sentido pode apresentat a eniinciagao. Anscombre indicafOUTTOs aspectos desta_representacdo.Dizer-que-um_enunciado_ | © eu temos sustentado freqiientemente que 0 efeito, em uma frase, de segundo os termos_da_filosofia-dalinguagem,-umaforsa_ilo-. | morfemas cotho quase, apenas, pouco, um pouco, etc, & de impor cer- e para mim dizer que ele atribui a sua enunciagéo um poder tas restrig6es sobre o potencial argumentativo dos eventuais enuncia- “juridico", o de obrigar a agir (no caso de uma promessa ou uma doa deata frase. Imaginemoe assim uma situacks de dleure em que ordem), o de obrigar a falar (no caso da pergunta), 0 de tornar Ifcito 0s interlocutores~aceitam_Ufi_lugat_comum _geral (um topos no sen-_ © que nfo era (no caso da permissfo), etc. Ter-se-, talver, notado “tide _de_Arist6teleg), no qual quanto. mais. ha, menos sua ) ‘uma diferenga entre esta formulagéo © a que dei em momentos ante titagho 6 lena Be pledsde, ¢ nvenease Se oe ae riores e que eta mais fiel 8 letra de Austin. Eu dizia que um enun- TaD gle Inclins 6 inedoatetc ie sie ae a clado que serve para realizar um ato llocutério A (por exemplo, orde- Ses : nat) tem por sentido indicar que o sujeito falante realiza o ato A por * Esta mesma observagfo fol utilzads, no capitulo 6, pare uma erin do meio deste enunciado, de modo que A é exibido no pr6prio enunciado conceio de performativo explcto. Aqui ela serve, pare discui, de une destinado a realizé-lo, Esta formulasio pareceme agora muito livre, raneira geral, as relagdes ene 0 sentido e 0 Hocutéro. 172 173 se recorreré a0 enunciado de uma frase como “A ganha quase X ruzados por més”, por mais baixa que seja a soma X cruzados — enquanto que o argumento seria adequado substituindo quase por apenas. Para generalizar esta observacdo, atribuimos as frases com a ‘expresso quase X a seguinte propriedade: para que um de seus enun- cindos possa servit para argumentar para uma certa conclusio r (aqui 1 6 “B necessério ter piedade de A"), & necessétio que 0 topos que fundamenta a argumentagio implique que wma quantidade superior a X forneceré razio melhor que X para se admitir r. Ora, no meu exemplo, 0 topos em questo quer, a0 contrério, que quanto mais 0 ‘ganho aumenta, menos a situacdo é digna de pena — o que impede, entio, de se utilizar um quase. ‘Tal como acaba de ser formulado, meu exemplo é, no entanto, muito discutivel, e 6 justamente sua discussio que far surgit a con- cepetio semfintica que defendo nesta exposigio. O que & contestével Ik dizer que, na situagio imagineda, é proibido utilizar um quase para | incitar 0 interlocutor a piedade. J4 que € claro que, muito freqtien- temente ao contrério, se a soma de X cruzados é suficientemente bai: xa, 0 enunciado “A ganha quase X cruzados” poderd apresentar a cfcia desejada, pode ser até que nfo tenha a forma candn ganha apenas X cruzados”. Eu néo deveria dizer que com este enun- ciado nao se poderia incitar & piedade, mas que nfo é possfvel apre- ‘sentar-se como procurando justificar a piedade, ou ainda, na minha “A terminotogi _ como-agumesiande net sido, A argumentago, com feito, muito diferente do esforgo de persuasio, é para mim um ato piblico, aberto, néo pode realizar-se sem se denunciar enquanto tal. Mas isto € dizer que um enunciado argumentative apresenta sua enun- nelusio. Se, pois, se admi= te sentido (0 que me parece tanto mais diftcil d eu o mostrei @ propésito de quase, é utilizado em relago & frase), chege-se & mesma conclusio & qual levaria 0 estudo do ilocutério: 0 sentido é uma qualificago da enuncia¢lo, e consiste notadamente-em— atribuir & enunciago certos poderes ou certas conseqiiénci “Terceiro exemplo: as frases exclamativas — entendendo por isso tanto as interjeigdes (Akt, Xi!) *, quanto as exclamativas “completas” que apresentam, ao mesmo tempo, um tipo de descriglo da realidade Os exemplos em francés sio CHIC!, BOF! (N. do T.) 174 € um torneio exclamativo (Como Pedro é inteligente!). Como descre- ver o que distingue semanticamente seus enunciados dos enunciados que, através de froses indicativas, trazem grosso modo as mesmas in- formagées (Eu estou muito contente, isto nao tem nada de extraordi- ndrio, Pedro é muito inteligente)?. A tradigho lingiistica possul os ter- mos “expressio” e “representaco” para opor estas duas formas de comunicagio. Mas o que se quer dizer exatamente quando se diz. que © autor de uma exclamagéo, “expressa” o que ele sente?. Para definir esta nogio, tem-se conientado habitualmente em falar de um efeito de cidade": a expressio, segundo Bally, ¢ a linguagem da vida, do sentimento, ¢ nfo a do pensamento. Para explicar melhor a intuigo aque leva os graméticos a isolar estes torneios “expressivos”, utilizarei a concepgio de sentido e de enunciagao que me serviu para o ilocut6- € a argumentagao. Que diferenga hé entre exclamar “Como Pedro ¢ inteligente!” afirmar "Pedro € muito inteligente”?. Trate-se, para mim, do modo pelo qual o sujeito falante, em um cetto caso € no outro representa a propria enunciagio que esté realizando, Ao dizer “Pedro € inteligen- te”, pode-se apresentar a enunciagdo como resultando-totalmente-de ‘uma escolha, ou seja, da decisio tomada de fornecer uma.certa infor: magio a propdsito de um certo objeto. Com “Como Pedro € inteli- gente!”, ela € dada, ao contrério, como motivada pela representagto deste objeto: & a inteligéncia mesma de Pedro que parece levar a dizer Como Pedro € inteligentet”. (No caso das interjeigées, um sentimento, sofrimento, prazer, espanto, etc. serve de relé entre a situagio e a enunciaglo; A interjeigo Ah! se dé como provocada pela ‘alegria sentide no momento em que o locutor experimenta um certo fato, como um efeito da alegria: a alegria “explode” nela). Uma objegio possivel se fundamentaré sobre o fato de que as exclamativas servem com freqliéncia na conversagao para responder perguntas: “O que voc€ pensa do Pedro? — Como ele € inteligentel”. Jé me foi ressaltado que mesmo certas interjeigdes, como Xi!, podem {er também esta fungio: “Como vo indo as coisas? — Xi!”. O pro- blema esté em que a resposta, enquanto tal, deve apresentar-se como resultado de uma deci de dar seqiiéncia a pergunta que a ante- vede — 0 que parece incompativel com a naturcza aqui atribulda & exclat que, segundo penso, descreve, 20 contrério, a enunciaso como “escapade” [échappée] a0 seu autor. 175 Para resolver esta contradi¢do, distinguirei 0 tema e 0 propésito pendentemente daquilo que se diz dela. Ora, o sujeito falante que co- das respostas. O tema (no meu exemplo, as qualidades defeitos de munica por seu enunciado que sua enunciagao é tal ou tal poderia Pedro) € aquilo sobre que a resposta deve incidir para poder satisfa- representar a enun ‘como independente do enunciado que a carac: zer a exigéncia de resposta que constitui a pergunta. O propésito & fechnarss cuimetadky 2 lel pie wunciagéo — com- ‘© que se diz concernente a0 tema (o fato de Pedro ser inteligente).. parivel deste ponto de vista, j4 propus esta imagem, a0 titulo e & Seo ato de resposta implica uma decisio do sujeito folante, « de indieagio do autor que, na capa de um romance, nfo poderia “asse- submeter-se ao ato de interrogagio realizado por seu interlocutor, esta verar” que é escrito por Flaubert ¢ se chama Médame Bovary, i que 1° decisio diz respeito escolha do tema, e € deste ponto de vista que icagdes dadas no livro fazem parte do livro. Isto néo signi. uma vez aceito 0 tema, 0 is, que elas no podem ser fals Propésito pode aparecer como imposto ao sujeito falante pela repre- ro no préprio livro, um autor que n&o € o seu) mas que se sentagdo que € feita do tema. Para obedecer as regras da conversacio, dio como infalseéveis, jé que néo sto destacéveis da realidade que ele escolhe responder ao tema proposto pelo interlocutor, mas a forma qualificam. Dé-se 0 mesmo, para mim, com o que é dito, no sentido (nada impede de se atribuir de sua resposta néo resulta mais (ou € sobretudo da ‘de um enunciado, sobre a enunciago do enunciado, Na medida em resultando mais) da escolha, e como imposta, a0 contrétio, ‘que 0 enunciado e seu sentido so veiculados pela enunciacto, as pelo estado de coisas que se relata: decidese responder, mas, pi propriedades juridicas, argumentativas, causais, etc, pot eles atribut- responder, “deixam-se falar” seus sentimentos. A enunciagko €, pois, das a ela, no poderiam ser vistas como hipéteses feitas a propésito ainda, descrit la pela representagéo de uma da enunciaglo, mas como a constituindo. Certamente ninguém esté situago (€ 0 especifico da exclamacio), mas o fato de se representar obrigado a acreditar que a enunciagio apresentada por seu entinciado esta situacio — que é o tema da pergunta e da resposta — € dado como obrigando tem como efeito real obrigar, mas esta colocagéo em ‘como 0 produto de uma decisio conversacional (0 que esté vinculado dtivida nao aparece, no enunciado, como uma possibilidade a ser con- a propria nogio de resposta) siderada, Esta solugdo implica distinguir dois grupos nas interjeigées. Al- ‘gumas, como Xit, sfo compativeis com a idéia de que a representagio , N.B. | — Para caracterizar este estatuto_ particular do sentido, an cisarey decid cio eifcta filets fe elas poder sin” wose™ tenho, em trabalhos anteriores (por exemplo em Ducrot, € outros, tentarse como rerpotat, ouiras (como Ah!) exigem que esta repre: 1980, Cap. I, ¢ aqui mesmo Cap. VII) utilizado 0 conceito de “mos- sentacio surja inopinadamente (e nfo podem aparecer em respostas). trar” que, em filosofia da linguagem, opde-se a0 conceito de “afir- Mas tanto para umas como para outras, ¢ também pata as exclame- mat” [asserter] ou de “dizer”. E comparava o modo pelo qual o enun- tivas completas, o enunciado comunica uma qualificagéo de enum || ciado “mostra” a enunciagdo, & maneira pela qual a interjeigfo mos- ciagio, dada como efeito do que ela inform fa qualificagso da fala por sua causa faz parte do sentido da enunciagio, como sua inaceitével na medida em que mostrar o sentimento pela interje d is prolongamentos (isto 6, disse-o mais acima, como causa da enunciac#o) nao constitui a senfo uma possibilidade particular da caracterizagao da enunciagio ‘VIII. Uma altima especificagio no que concerne ao sentido do pelo enunciado, e, pois, uma forma particular do sentido e isto colo- cenunciado, antes de abordar 0 problema do sujeito da enunciaclo, ou card um problema te6rico complicado, 0 de ter af 0 prototipo de todo ae ‘exatamente do sujeito da enunciaggo tal como se_apresenta_no| este discurso sobre a enunciac&o que constitui para mim o sentido. interior do sentido do enunciado. Esta representagao da enunci ‘A nova concepg&o que acabo de apresentar é inspirada em Berren- PS que constitui o sentido do enunciado, e que s6 através dela ele pode | eid. donner (1981, p. 127 € 88). NB. 2 — Minha decisio de nao considerar o sentido (descriglo { dda enunciagao) como afirmar pelo enunciado € uma das razGes que me levam a recusar a teoria dos performativos explicitos, e notadamente tra 0 sentimento que expressa. Esta comparagio parece-me agora mado, € necessério que um sujeito se apresente como garan- tindo que © que diz corresponda a uma realidade considerada 176 7 ee x idéia segundo a qual se pode realizar um ato pelo fato de se afi mar explicitamente realizé-lo. Daf minha anélise de Dizer-obrigado * no comego deste capitulo © no Cap. VI. IX. Uma vez apresentado 0 quadro geral do qual acabo de indi- ee as caractert tulo, que é, retembro, « ‘sufeito da_e1 . E esta teoria, “um enunciado — um sujeito”, ‘que petmite empregar a expresso “o sujeito”, pressupondo como uma evidéncia que hé um ser tinico autor do enunciado e responsével pelo que é dito no enunciado, Entio, sno se tem escriipulo ou relicénci davida a unicidade da origem da enunciacéo. I Quais so as propriedades deste sujeito?. Primeito ele € dotado de toda atividade psico-fisiolégica necesséria & produgao do enuncia- do. Assim, dizer que um certo X é 0 sujeito do enunciado “O tempo esté bom” dito em um certo momento, num certo lugar, é atribui Xo trabalho muscular que permitiu tornar audiveis as palavras 0 tempo esid bom; e € atribuir-lhe também a atividade intelectual sub- jacente — formacao de um julgamento, escolha das palavras, utili- ‘ago de regras gramaticais. Segundo atributo do sujeito: ser 0 autor, ‘2 origem dos atos ilocutérios realizados na produgio do enunciado {atos do tipo da ordem, da pergunta, da assergio, etc.). © sujeito € aquele que otdena, pergunta, afirma, etc. Para voltar a0 exemplo pre- cedente, dir-se-4 que o mesmo X que produziu as palavras O tempo esté bom é também aquele que afirmou o bom tempo. Na medida em que uma 86 pessoa € 0 produtor do enunciado, seré necessério admi- tir que hé uma s6 pessoa na origem dos atos ilocutérios realizados através dele. Vai-se, aliés, freqiientemente mais longe nesta via e se pretende — ou sobretudo pretende-se como evidente — que cada enunciado realiza um s6 ato ilocut6rio (donde a espécie de escin- dalo que resulta da existéncia dos atos indiretos). Uma tal suposi iio é certamente necesséria para admitir que hé uma s6 origem para 4 atividede ilocutéria realizada através de um enunciado, mas ela 6, em todo caso, suficiente para justficar esta tese. Seja dito entre paréntesis, a crenga na unicidade do ato ilocuté- rio é uma das razdes que levaram muitos filésofos da linguagem a repelir [repousser] como francamente leviana a concepgao da pressu- posigao desenvolvida em Dire et ne pas Dire. E isto porque falo de ‘um ato Hlocutério de pressuposicio. A que se tem imediatamente obje- 178 1s principais, posso ir ao tema proprio deste capi- sriticarc substituir a teoria da _unicidade do ! pararempregar esta expresso, € porque sequer se cogita colocar em//\* tado: “Quando voc’ pergunta Quem veio?, seu enunciado comporta © pressuposto que alguém veio. Entdo, segundo vocé, ele serve para realizar um ato de pressuposicao. Mas ¢ imposstvel, porque todo mun- do sabe que 0 enunciado Quem veio? serve para realizar um ato de perguntar. Se 0 ato realizado € a pergunta, nfo pode ser a pressupo- siglo.” Vé-se de imediato que @ objesio repousa no principio segun- do 0 qual o envnciado deve, ser caracterizado por um inico ato ilo- cutdtio, Certamente fao agora certas reserves & noso de um ato de Pressuposigao, ou, pelo menos, nés 0 veremos, eu a apresento dife- rentemente da época de Dire et ne pas Dire *. mas 0 que me orienta nesta retratagdo nao é certamente 0 receio de dever admitir, se hou- ver um ato ilocutério de pressuposicao, a existéncia de varios atos ligados a um s6 enunciado. Ao contrétio, divido ainda mais que anteriormente a atividade ilocutéria em uma pluralidade de elemen- tos pragméticos disjuntos. Além da produgio fisica do enunciado ¢ a realizagao dos atos ilocutérios, € habitual atribuir ao sujeito falante uma terceira pro- priedade, a de ser designado em um enunciado pelas marcas da pri- meira pessoa — quando elas designam um ser extralingtifstico: ele ahs, neste caso, o suporte dos processos expressos por um verbo cujo sujeito € eu, © proprietério dos objetos qualificados por meus, é ele que se encontra no lugar denominado aqui... Considerase como Sbvio que este ser designado por eu & ao mesmo tempo o que produz ‘© enunciado, e também aquele cujo enunciado expressa as promessas, cordens, assergdes, etc, Certamente chocamo-nos neste caso com con. tra-exemplos do discurso relatado em estilo direto, onde muito fre- aiientemente © pronome eu nao refere pessoa que o pronuncia, Mas, para eliminar este contra-exemplo, basta recorrer a uma cqncep¢o do discurso relatado direto (ctiticado aqui mesmo no § XI) segundo a qual as ocorréncias que aparecem entre aspas néo referem seres extr lingifsticos, mas constituem a simples menc&o de palavras da lingua. Assim, 0 ew de Pedro disse “ew venho” designaria uma entidade gra- matical, o pronome de primeira pessoa, e 0 enunciado global signifi caria somente que Pedro empregou este pronome, seguido da palavra portuguesa verho. + A concepsio desenvolvide em Dire et ne pas Dire € a do artigo de 1969 179 erro, retruca: Admitamos, provisoriamente, esta concepcdo do discurso rela: tado direto. E tio evidente que as trés propriedades de que acabo de falar sio, nos outros tipos de discurso, atribuidas a um ser tinico?. ‘Que possa ser assim, quando se trata de enunciados simples, produzi- dos em contextos simples, nfo procurarei discutir (eu nfo penso que se possa me censurar por utilizar aqui, sem defini¢ao, uma noo tio pouco clara que a de simplicidade: néo a utilizo com efeito para esta- belecer minha propria tese, mas para fazer uma concess4o a meus adversérios — 0 que poderia exprimir — se, recorrendo & termino- Togia que introduzirei daqui a pouco, dizendo que 0 enunciador do que eu digo aqui nio é assimilavel a0 locutor enquanto tal). Como exemplo de enunciado simples em um contexto simples, tomemos a réplica “Na semana passada, eu estava em Lyon”, utilizada para tes- ponder & pergunta “Onde voc8 estava na semana passada?”. Nao hé dificuldade em atribuir & mesma pessoa as trés propriedades consti- tutivas do sujeito falante. Se representamos por “L” 0 individuo a quem a pergunta € enderecada e que articula a resposta, é L que ¢ designado por eu (€ de L que se diz que estava em Paris) e é ainda L que assume a responsabilidade do ato de afirmacao veiculado pelo enunciado. (: Mas, desde que se emprega um enunciado, mesmo simples, em ‘um diélogo um pouco mais complexo, a tese da unicidade comeca a ‘apresentar dificuldade. Por exemplo, quando hé uma retomada (em ‘um sentido muito largo deste termo, e que ndo implica nem repeticao literal, nem paréfrase). L, a quem se censurou por tet cometido um “Ah! cu sou um imbecil; muito bem, voc8 néo perde © por espérar!”. L é aqui ainda 0 produtor das palavras e é ele igual- mente que ¢ designado pelo eu. Mas a responsabilidade do ato de afirmagio realizado no primeiro enunciado nfo é certamente L. que assume — jé que justamente L tem a imodéstia de o contestar: 20 contrétio, Lo atribui a seu interlocutor I (mesmo que I nfo tenha, de fato, falado de bobeira. Mas somente feito uma censura que, se- undo L, implica em boa légica para I, a crenca na imbecilidade de L). Assim, pois, desde que haja uma forma qualquer de retomad (@ nada é mais freqiiente que a retomada na conversacio), a att so das trés propricdades a um sujcito falante tinico, torna-se proble- mética — mesmo quando se trata de um enunciado sintaticamente simples. A demonstracio 6 ainda mais fécil com enunciados comple 1x08, por exemplo, com enunciados constitufdos através da conjuncao 180 > aaa ‘mas. Todo tropeiro, uma vez. ou outra, ouviu em um refdgio, ao ama- nhecer, um diélogo como o que segue. A alguém que tenha impru- dentemente afirmado nfo ter pregedo os olhos & noite, um compa- nheiro responde amavelmente: Pode ser que voce nfo tenha dormido, de qualquer forma, voce, roncou solenemente”. O autor, no wen- | tido ffsico, deste enunciado, no poderia ser visto como responsével, a0 mesmo tempo, pelas duas afirmaces que af séo feitas uma depois da outra, Se parece razodvel atribuir-lhe a segunda, no se poderia fazer 0 mesmo com a primeira, a que € corrigida pelo “mas...” E € deste modo para um grande némero de empregos de mas, notade mente para aqueles que entram nos enunciados de estrutura “Pode ser p mas q” (0 que eu digo aqui de mas, € 0 fago de passagem, constitui uma certa modificagdo na descrigéo que J. C. Anscombre ¢ eu temos dado freqtientemente para mas, descrigao que modificamos atualmente introduzindo-a na nossa teoria da polifonia) +. x. Best teoria da polifonia que vou agora apresentar de uma | ‘maneita positiva, depois de ter mostrado as dificuldades da concep¢ao “unicitéria” & qual cla se opde. Para isto desenvolverei certas indi- | ‘ages que se podem encontrar no primeiro capitulo de Les Mots du scours, cottigindo-as em alguns aspectos. | Relembrei hé pouco que 0 sentido de um enunciado, para mim, | € a descrigfo de sua enunciagfo. Em que consiste esta descricio?. ‘enho assinalado alguns de scus aspectos mencionando as indicagées argumentativas ¢ ilocutérias, assim como as relativas as causes da fala. Estas indicagdes, de que falei para levar a compreender 0 que entendo por “descricao da enunciacao”, so, na verdade, secundéri fem relagdo as indicagdes mais primitivas que estio pressupostas por tudo que se pode dizer sobre os aspectos ilocutério, argumentativo €, 7 expressive da linguagem. Tratese de indicagSes, que o enunciado \"=.e apresenta, no seu proprio sentido, sobre (ou 0s) autor(es) even.) + tual(ais) da enunciagio, Certamente quando defini a nosio de ent ciagdo tal como a utilizo enquanto lingtista que descreve a linguagem, recusei.me explicitamente, de af.introduzir a idéia de um produtor da fala: minha noglo € neutra em relagdo a tal idéia, Mas no se | 1, No que diz respeito aos enunciados de estrutura “Certamente p més 4", val Jo 9 XVIIL. Eles apresentam um acordo sobre a verdade de D, fomada de posicto argumentativa de p. Nko poderei ‘explictar a oposipo destas duas noses senko depois de ter, no $ XII, ‘nalisado © conceito do locutor distinguido Le A. 1 d& 0 mesmo com esta descrigéo da enunciagio que ¢ constitutiva do |_ sentido dos enunciados — a que € constitutiva do que o enunciado | quer-dizer e nfo mais do que o lingiiista diz. Ela contém, ou pode | conter, a atribuicao & ‘enunciagdo de um ou varios sujeitos que se- | tiem sua origem. A tese que quero defender aqui € que € necessério tinguir entre estes sujeitos pelo menos dois tipos de personagens, ‘os enunciadores e os locutores; apresentarei primeiro a nogio de “locutor”. Se falo de locutores — no plural — nio é para cobrir os casos em que 0 enunciado é referido a uma vor coletiva (por exemplo, quando um artigo tem dois autores que se designam coletivamente por um 163). Visto que, neste caso, os autores pretendem constituir tuma 86 pestoa moral, falante de uma tinica voz: sua pluralidade apre- senta-se fundida em tuma personagem tinica, que engloba os individuos diferentes. O que me motiva o plural é a existéncia, para certos enun- | imedutiveis. Assim, nos fendmenos de dupla enunciagio (§ XI), prin- | cipalmente no discurso relatado em estilo direto. Por definicao, enten- do por locutor um ser que é, no préprio sentido do enunciado, apre- sentado como seu responsdvel, ou seja, como alguém a quem se deve | imputar a responsabilidade deste enunciado. E a ele que refere 0 pro- | nome eu e as outras marcas da primeira pesson. Mesmo que nf se leve em conta, no momento, o discurso relatado direto, ressaltar-se-4 que 0 locutor, designado por eu, pode ser distinto do autor empirico do enunciado, de seu produtor — mesmo que as duas personagens coincidam habitualmente no discurso oral. H& de fato casos em que, de uma mancira quase evidente, o autor real tem pouca relagfo com © locutor, ou seja, com o ser, apresentado, no enunciado, como aquele a quem se deve atribuir a responsabilidade da ocorréncia do enun- ciado. ‘Suponha que meu filho me trage uma circular da escola, em que ‘est escrito: “Eu, abaixo-assinado,... autorizo meu filho af...]. As- sinado...” S6 terei pessoalmente que escrever meu nome no branco que segue a expresso abaixo-assinado (a menos que meu filho tenha tido 2 cortesia de fazé-lo por mim) e assinar (a menos que meu filho tenha tido a imprudéncia de faz8-lo ele mesmo). Ora, é claro que nfo ‘sou o autor empfrico do texto-autor, alids, dificil de identificar: € 0 diretor, sua secretéria, a secretéria da educagio, etc?. Quando muito corto © risco de ser o autor da ocorréncia de meu nome depois de 182 abaixo-assinado e, em situagio “normal”, da assinatura. Mas, desde que eu tenha assinado, aparecerei como o locutor do enunciado (lem: ‘bro que considero “enunciado” uma ocorréncia particular da frase) Por um lado me responsabilizarei por ele — ¢ o proprio enunciado, ‘uma vez assinado, indicaré que assumi esta résponsabilidade. Por outro tado, serei o ser designado pelas marcas da primgira pessod, serei quem autoriza seu filho a fazer isto ou aquilo, Tenffd assinado, a administragio da escola poderé me dizer: “O senhor nos mandou ‘um documento em que autoriza seu filho a...” Um paréntesis a este propésito, sobre o papel da assinatura. Pat que serve a assinatura?. Baseando-me em trabalhos de Christian Pla tin, considerarei dupla sua fungdo. Em primeiro lugar, ela serve algu- mas vezes para indicar quem € 0 locutor, o ser designado pelo eu e a quem & imputada a responsabilidade do enunciado. Mas este papel acessério e circunstancial, somente: ela o realiza sé quando é leg{- vel (0 que nfo é de forma nenhuma necessfrio: Cf. os riscos que servem muitas vezes para assinar) ¢ quando o texto que a precede nao contém indicago do locutor (indicagéo que ¢ dada, no meu exemplo, desde que a férmula “abaixo-assinado. ..” tenha sido preen- chida). A segunda fungdo, essencial, € a de assegurar a identidade ‘entre o locutor indicado no texto e um individuo empfrico, e a assi- natura realiza tal fungfo em virtude de uma norma social que exige que a assinatura seja “auténtica” (mew filho no tem o direito de ‘assinar por mim), entendendo por isto que o autor empirico da assi- natura deve set idéntico ao ser indicado no sentido do enunciado, como seu locutor. Na conversagao oral cotidiana, é a voz que realiza as duas funges da assinatura, Por um lado ela pode servir para dar 1 conhecer quem 6 0 locutor, ou seja, quem é designado pelos mor- femas de primeira pessoa (Cf. os diflogos “quem esté af?” — “Eu”). E, por outro lado, ela autentica a assimilagao do locutor a um indi- vidwo empfrico particular, aquele que produz efetivamente a fala. ‘Como no caso da assinatura, é, aliés, uma norma social que torna possivel esta segunda fungio, 2 norma impedindo “contradizer” a vor _de qualquer outra pessoa. Nio somente 0 locutor pode ser diferente do sujeito falante efe- ivo, mas pode ser que certas enunciagdes, tal como sio descritas no sentido do enunciado, no aparecam como o produto de uma subjeti- vidade individual (€ 0 caso dos enunciados que Benveniste chama “histéricos”, enunciados caracterizados pelo fato de nfo veicularem 183 x. nem marca explicita, nem indicacfo implicita de primeira pessoa, nao atribuindo, pois, a nenhum locutor, a responsabilidade de sua enun- ciaglo). Vé-se porque escolhi uma definiggo da enunciagao que nio contenha nenhuma sluso a uma pessoa que fosse seu autor, nem ‘mesmo & uma pessoa a quem fosse enderecada — jé que € essencial para mim que @ enunciaséo, na‘medida em que cla € 0 tema do sentido, o objeto das qualificagées contidas nos sentidos, néo seja vis- ta, enquanto objeto destas qualificagdes, como devendo ter necessaria- mente uma fonte ¢ um alvo. Quero poder dizer que a existéncia de uma fonte ¢ de um alvo esto entre as qualificagdes que 0 sentido atribui (ow no) & enunciago. Assim poderei descrever as “enunci ‘g6es histéricas” como nfo comportando, no seu sentido, nenhuma mengo a sua origem — entendendo por isso, nfo que o sentido des- tes enunciados atribui a origem de sua enunciacdo a alguma subjetivi dade superindividual, mas simplesmente que ele nfo diz nada sobre sua origem, que no exibe nenhum autor de sua fala. Se eu fizesse intervir um autor na minha definigéo de enu ‘sdo, a existéncia deste autor se tornaria um tema das qualificacdes contidas no sentido, ou seja, sua especificagéo seria uma das tarefas necessérias da semantica do enunciado, uma das quest6es que 0 sen- tido deveria responder, ¢ deveria imaginar, entio, que o enunciado histérico dé a estes quesides uma resposta de ordem metafisica. Pre- firo poder dizer simplesmente que ele deixa na sombra a origem de sua enunciagio, ¢ isto me € possivel na medida em que esta origem nfo € um tema necessério das indicagées semanticas, mas uma das caracteristicas que podem atribuir (ou ndo) & enunciagdo. Se, util zando com alguma liberdade uma palavra de Jakobson, denomina-se “embrayeur” 0 aspecto da realidade extra-lingifstica relativa as indi- cages interiores ao sentido (quer dizer, sityada na jungao do lingits- tico e do extra-lingiistico), direi que € a enunciagao tal como a defini — abstracto feita, pois, do sujeito falante — que & o embrayeur das Sndicagées seménticas: a existéncia eventual de uma fonte responsé- ‘vel pela enunciagéo depende sé destas indicagées. XI. Sustentei mais acima que a presenga de marcas da primeira pessoa apresenta a enunciagio como imputével a um locutor, assimi- lado & pessoa & qual remetem. Este principio deve receber certas nuances w fim de dar conta da possibilidade sempre aberla de fazer aparecer, em uma enunciacao atribufda a um locutor, uma enunciago atribufda a um outro locutor. E isto que se vé de uma maneira evi- 184 dente no discurso relatado em estilo diteto. Se Pedto diz “Jofo me disse: ew virei”, como analisar, no que concerne ao locutor, 0 discurso de Pedro tomado na sua totalidade?. Encontram-se af duas marcas de primeira pessoa que remetem a dois seres diferentes. Ora, néo se pode ver af dois enunciados sucessivos, 0 segmento Jodo me disse | no pode satisfazcr @ cxigén definiglo de enunciado: ele no se apresentaria como “escolhido por i mesmo”. Sou, pois, obrigado a dizer que um enunciado tnico apresenta aqui dois locutores diferentes, o primeiro locutor sendo assimilado a Pedro ¢ 0 segundo a Jodo. Assim, € possivel que uma parte de um enunciado imputado globalmente a um primeiro locutor entretanto, imputado a um segundo locutor (do mesmo modo que, num romance, o narrador principal pode inserir no seu relato © relato que the fez um segundo nartador). Esta possibilidade de desdobramento é utilizeda nfo somente pi ra dar a conhecer o discurso atribufdo a alguém, mas também para produzir um eco vo (A: “Eu ndo estou bem” — B: “Eu ndo estou bem; nfo pense que vocé vai me comover com isso”), ou part apresentar um discurso imaginério (“Se alguém me dissesse vow sair, cu the responderia..."). E ela também que permite organizar um {eatro, no sentido préprio, no interior de sua prépria fala, pergun- tando € respondendo (procedimento freqiientemente utilizado por cer- tas personagens de Moliére, Sosié por exemplo, que na cena I, do Primeiro ato do Amphitryon, se representa contando a batalha de Aleméne, organizando assim um teatro dentro do teatro). © mesmo \desdobramento do locutor permite ainda @ alguém fazer-se 0 porta- ‘vor de um outro e empregar, no mesmo discurso, eus que remetem |tanto ao porta-voz, quanto & pessoa da qual é porta-voz. Quando, em Iartarin sur les Alpes, Pascalon, atemorizado pelas imprecagdes de Excourbaniés (“Outre!”), as faz acompanhar pela férmula hipécrita Utarasconnaise] “... que vous me feriez dite”, 0 locutor da férmul pronunciada por Pascalon, quer dizer, a pessoa designada pot me, é a que praguejou “Outre!”, a saber, Excourbanits. ‘O que nfo impede Pascalon de, no mesmo discurso, empreger eus que designam ele ‘mesmo. Em lugar de considerar o relato em estilo direto (abreviado RED) como um caso particular de dupla enunciagao, ele € descrito com freqiiéncia de modo isolado, independentemente dos fendmenos que classifiquei na mesma categoria — deixa em seguida tomé-lo como 185 modelo quando se trata de caracterizar estes outros fenémenos, vistos ‘como sendo formas truncadas, desviantes, até anormais. Esta prética leva a dar 20 RED uma imagem que me parece as vezes banal ¢ de forma nenhuma evidente, e a desfigurar por ricochete os fatos que pprocedem também, segundo penso, da dupla enunciagfo: eles apare- ‘cem como uma cépia de mé qualidade, feita a partir de um original id desbotado. Se, de fato, contrariamente a0 que proponho, considerase sepa- rademente o RED, duas particularidades se impdem logo de inicio. ‘A primeira, que ele tem por funcéo informar sobre um discurso efe- tivamente realizado [tenu]. A outra, que ele contém em si mesmo os termos de um discurso suscetivel de ser realizado [tenu] por um lo- \cutor diferente daquele que faz o relato. A aproximagao destas duas \observacées conduz facilmente & idéia — em geral admitida sem dis- ‘cussiio — de que o RED procura reproduzir na sua materialidade as | palavras produzidas pela pessoa de quem se quer dar a conhecer 0 | discurso, O que se expresse, por exemplo, recorrendo & nogéo I6gica do mengao, Para um ldgico, uma ocorréncia particular de uma palavra constitui uma menedo quando seu autor nao a utiliza para signific © sentido desta palavra mas para significar a propria palavra, con: derada como uma entidade lingifstica. Este € 0 caso nos exemplos sempiternos do tipo “Mesa tem quatro letras” onde a ocorréncia da palavra mesa serve para designar este elemento da lingua portuguesa que € a palavra mesa. O mesmo se daria no RED. A parte final da sequncia Pedro disse: “estou contente” (a que esté entre aspas) de- signaria simplesmente uma frase da lingua, ¢ o sentido global da se- aliéncia seria que Pedro pronunciou esta frase, produzindo um enun- ciado. Relatar um discurso em estilo direto seria, pois, dizer que palavras foram utilizadas pelo autor deste discurso. Quanto sos outros fendmenos que classifiquei na rubrica “dupla enunciagao”, (0s eos, (08 didlogos internos, os mondlogos, 0 apagamento do ports-voz em relagio & pessoa que ele faz falar), tudo isto no seria senio uma forma enganosa do RED — enganosa seja porque ele nao se reconhe- ‘ce como tal, seja porque o discurso que se pretende relatar jamais ‘8 deu, ou foi realizado em termos diferentes. De minha parte, prefiro caracterizar primeiro a categoria toma- / da na sua totalidade, € direi que ela consiste fundamentalmente em [uma spresentacio da enunciagio como dupla: o préprio tenido do ‘enunciado atribuiria & enunciagao dois locutores distintos, eventual- ) 106 mente subordinados — 0 que nao © mais extravagante que atribuir- the propriedades juridicas, argumentativas ou causais de que falei mais acima. Certamente do ponto de vista empfrico, a enunciagao é ago de um dnico sujeito falante, mas a imagem que o enunciado dé dela é a de uma troca, de um diélogo, ou ainda de uma hierarquia as falas, Nao hé paradoxo neste caso senéo se se confunde o lo- cutor — que para mim € uma ficgfo discursiva — com 0 sujeito falante — que € um elemento da experiéncia. Esta tese tem conse- giigncias quando se trata de descrever 0 relato em estilo direto, se este € visto no interior da categoria geral da dupla enunciagio. Segu- ramente manterei que ele visa informer sobre um discurso que foi efetivamente realizado. Mas nada mais obriga a sustentar que as ocor- réncias colocadas entre aspas constituem uma mengo que designam entidades lingiifsticas, aquelas que foram realizadas no discurso ori- inal. Pode-se admitir a0 contrério que o autor do relato, para infor- mar sobre o discurso original, coloca em cena, dé a conhecer uma fala que ele supde, simplesmente, que ela tem alguns pontos comuns com aquela sobre a qual ele quer informer seu interlocutor. A verda- de do relato nao implica, pois, se o RED € um caso particular de dupla enunciagao, uma conformidade material das falas originais ¢ das falas que aparecem no discurso daquele que relata. Jé que este no visa necessariamente @ uma reproducao literal, nada impede, por exemplo, que, para dar a conhecer os pontos importantes da fala ori- ginal, ele coloca em cena uma fala muito diferente, mas que dela conserva, ou mesmo acentua, 0 essencial (pode-se, no estilo direto, relatar em dois segundos um discurso de dois minutos: Ent uma pala- vra, Pedro me disse “eu tenho o suficiente"). A diferenca entre estilo direto ¢ estilo indireto ndo € que o primeiro daria a conhecer a forma, (© segundo, 6 0 contetido, O estilo direto pode também visar s6 0 contetido, mas para fazer saber quel € 0 conteddo, escolhe dar a conhecer uma fala (ou seja, uma seqiiéncia de palavras, imputada a um locutor). E suficiente, para ser exato, que este manifeste efetiva- mente certos tragos salientes da fala relatada (por isso os historiado- tes antigos, ¢ boa parte dos historiadores modernos, no tém escri- pulos de reescrever os discursos que relatam). Porque 0 estilo direto implica fazer falar um outro, atribuirthe a responsabilidade das falas, isto néo implica que sua verdade tenha uma correspondéncia literal, termo a termo. XII. 14 que 0 locutor (ser do scurso) foi distinguido do sujeito falante (ser empi ), proporei ainda distinguir, no préprio interior 187 da nogio de locutor, © “Jocutor enquanto tal” (por abreviagio "L") e 0 locutor enquanto ser do mundo ("A"). L 6 0 responsével pela enunciagio, considerado unicamente enquanto tendo esta pro- Priedade, A € uma pessoa “completa”, que possui, entre outras pro- priedades, a de ser a-origent do enunciado — 0 que nao impede que Le A sejam seres de discurse, constiuidos no sentido do enunciado, fe cujo estatuto metodolbgico é, pois, totalmente diferente daquele do sujeito falante (este iiltimo deve-se a uma representagio “externa” da fala, estranha aquela que é veiculada pelo enunciado). Para fazer apa- recer esta distingo, retomarei primeiro o exemplo terjeigdes tal pressa. Isto implica que este sentimento é apresentado néo somente por meio, mas através da enunciagio de que a origem pretendid: ‘Ao dizer Ai de mim! ou Ah!* colore-se sua propria fala de tristeza se a fala dé a conhecer estes sentimentos, € na medida em que é, ela propria triste ou alegre, A alguém que se contenta em dizer “Estou thuito triste” ou “Estou muito alegre”, pode-se even- tualmente fazer notar que ele nfo tem a aparéncia, tomando-o na sua atividade de fala, nem triste nem alegre. Isto porque 0 sentimento, no caso dos entinciados declarativos, apsrece como exterior & enun- ciago como um objeto da enunciagdo, enquanto que as interjeigdes 0 situam na prépria enunciagio — ja-que esa € apresentada como o feito imediato do-sentimento- que ela expressa. Direi, pois, que © ser a quem se atribui o sentimento, em uma interjeigdo, ¢ L, 0 locutor visto em seu engajamento enuncitativo, E é a X, no contrério, que ele € atributdo nos enunciados declarativos, isto é, a0 ser do mundo que, entre outras propriedades, tem_a.de enunciar sua tristeza ou sua ale- aria (de um modo geral o ser que 0 pronome ew designa € sempre %, mesmo se a identidade deste A s6 fosse acesstvel através de sew apa: recimento como L). i Uma outra ilustrago da distingio ML, desta feita retirada da retérica, e para a qual me apoiarei em Le Guern (1981). Um dos segredos da persuasio tal como é enalisada a partir de Aristételes 6, para o orador, dar de si mesmo uma imagem favordvel, imagem que seduziré 0 ouvinte e captaré sua benevoléncia. Esta imagem do orador é designada como etfios. F necessitio entender por isso 0 caréter que 0 orador atribui a si mesmo pelo modo como exerce sua * No original Hélas! CHIC! (N. do 7.) 188 atividade oratéria. Nao se trata de afirmagées auto-clogioses que ele pode fazer de sua propria pessoa no contetido de seu discurso, afir- mages que podem ao contrétio chocar o ouvinte, mas da aparéncia que the confere a fluéncia, a entonac&o, calorosa ou severa, a escolha das palavras, os argumentos (0 fato de escolher ou de negligenciar tal argumento pode parecer sintomética de tal qualidade ou de tal defeito moral). Na minha terminologia, direi que o ethos esté ligado 4 L, 0 locutor enquanto tal: € enquanto fonte da enunciaglo que ele se v8 dotado [affublé] de certos caracteres que, por contraponto, tor- na esta enunciagio aceitével ou desagradavel. O que o orador poderia dizer de si, enquento objeto da enunciagéo, diz, em contrapartida, respeito a A, 0 ser do mundo, e no € este que eété em questéo na parte da retdrica de que falo (a distancia entre estes dois aspectos do locutor € particularmente sensfvel quando L ganha a benevoléncia de seu publico pelo préprio modo como humilha A: virtude da autocrf- tica). N.B. — A teoria da construgéo do orador por sua fala é explo- rada por Declereg (1983) para anélise do teatro de Recine. A distingéo de Le A me permitiré precisar minha posigdo a res- peito dos “performativos explicitos”, tese & qual fiz alusio no § 4 (trata-se do que Récanati (1981) Cap. IV, chama a “conjectura de Ducrot”). A expressio “performativos explicitos” — que nfo quero fetomar por minha conta — dé a entender que € possivel efetuar um alo ilocutério pelo simples fato de se asseverar explicitamente que se efetua tal ato. Seja, por exemplo, o ato de desejar (augurar), consistindo em assumir o que um outro deseja, ou mesmo, na medida em que se atribui ao ato, de desejar uma eficécia empirica, em con- tribuir verbalmente para sua satisfagio. Para efetuar éste ato, parece suficiente afirmar que se o realiza. E 0 que parece ser‘feito quando Eu te desejo boas férias”, se desejar significa. aqui “realizar to de desejer”. Para mim, ao contrério, desejar, nesta f6rmula, significa primeito “desejar”, no sentido psicol6gico do termo. Dizen- do “primeira”, considero que este sentido esté na origem de seu valor de acio, e assegura & {6rmula a possibilidade de realizar este papel. Se a {6rmula permite 0 ato de desejar, & porque ela é assergo de um desejo, em um contexto em que 0 objeto deste desejo & 0 su- ccesso do interlocutor. Seguramente uma evolugio semantica levou verbo desejer [souhaiter] a tomar, por derivacéo delocutiva. 0 valor “efetuar 0 ato que pode ser efettiado, pimcipalmente, dizendo a al- guém “Eu te desejo..." ("Je te souhaite...". E, uma vez que esta derivagio foi produzida, tornou-se possivel reler a férmula, dando a 189 desejar (souhaiter] este novo sentido, 0 que leva a ver af # assercio da realizacdo de um ato. Mas nfo é esta assergao que esté na origem da eficécia pragmética da formula. N.B. — Récanati objetou a esta explicago que o verbo desejar [souhaiter], acompanhado de um dativo, nfo pode significar sendo reslizagao do ato de desejar [souhait], € nunca o desejo. Mas encon- tramse de fato desejar [souhaiter], puramente psicolégicos e, no en- tanto, acompanhados de um dativo. Assim, em O Avarento, cena 7, do ato Ill, Cléante diz a Marianne, que deve, segundo os projetos de Horpagon, tornar-se sua sogra: “C'est un titre que je ne vous souhaite point” (no sentido de “dont je ne désire pas qu'il devienne le vétre”). Tudo o que se pode dizer 6 que a presenca de um pronome dative de segunda pessoa com o verbo “psicolégico” desejar [souhaiter], fol particularmente freqiiente, por razes faceis de compreender, quando ste verbo foi utilizado nas férmulas usedas para realizar 0 ato de desejar {souhait]: em seguida, 0 segundo verbo desejer [souhaiter] afetado, por delocutividade, pelo valor “realizar 0 ato de desejar”, adquiriu a possibilidade de uma combinago com 0 dativo como ca- racteristica sintética — 0 que reforga em conseqiiéncia, a tendéncia fem crer estar este verbo presente na f6rmula Se resumi aqui a critica da performatividade apresentada com detalhe no capitulo VI, é porque a disting’o A-L permitiré ume me- hor formulagéo dela. Se concordarmos, com efeito, que 0 verbo desejar [souhaiter] da f6rmula “Eu desejo...” [Je souhaite. .."] € ulilizado primeiro para uma assercio de ordem psicolégica, € ne- cessério dizer que seu sujeito, o pronome ew [je], remete a A: nfo é fenquanto locutor que se experimenta o desejo, mas enquanto ser do mundo, ¢ independentemente da assergao que sc faz dele. Por outro ado, 0 ato de desejar, que nio existe sendio na fala em que se realiza, pertence tipicamente a L: L realiza o ato de desejar afirmando que » deseja. E ao reler a fSrmula atribuindo ao verbo desejar [souhaiter] seu segundo sentido que se € levado ao mesmo tempo a compreender ‘0 Eu [el como uma designagio de L, ou seja, do sujeito do ato de desejar, Trata-se de uma espécie de ilusto retroativa, ‘devida 20 fato de a férmula ter sido dotada de uma eficécia ilocut6ria — mas que nfo explica esta eficécis Ve-se como esta tese sobre os performativos se liga & diferenca que fiz entre a mostrago da enunciagao, que constitui globalmente © sentido, © as diferentes assergdes sobre o mundo que se realizam 190 através da qualificagdo da enunciagio. Que a consi uma feats tena» efcka necstrin pre 2 ralzngto oto do de sejar, € 0 que o enunciado mostra sobre @ enunciagio, e 0 sujeito deste ato nio pode ser sendo locutor visto no seu papel de locutor, isto é, como 0 responsdvel pelo enunciado. Mas quando a assergio la nesta {6rmula, € que concerne ao mundo, toma como objeto © ser particular do mundo que, entre outras propriedades, tem a de ser L, € de A que se treta: L pertence a0 comentério da enunciagio feita globalmente pelo sentido, A pertence & descrigio do mundo fei ppelas assergdes intetiores ao sentido, O que é caracteristico dos pe Formativos, dios “explicios’,€ que as asergbes sobre + sio a uti zadas para mostrar as modalida is zt fa eect ides segundo as quais a enunciago XIII. J assinalei uma primeira forma de polifonia, quando assi- nai a existencia de dois Bisa dition ang esacs ue ciio” — fenfmeno que w torna poe! elo fat de 0 lositr ser um ser de discurso, pertcipendo desta imagem da enunciag forncide pelo enuncnds.'A nogto de enuncater me permed er, crever uma segunda forma de polifonia bem mais freqiente. No exemplo do eco tomado hé pouco, alguém pronunciara as palavras “Bu no estou bem”, ¢ uma segunda pessoa as retomara por um Ew nao estou bem: Nio ereia que vocé vai me comover com iss0”, operando no seu discurso em desdobramento do locutor (cujo indice 6 a mudanca de rere do provame eu). Mas & sina mle te Wéente que se encontre em um discurso a vor de al tenha as propriedades que atribut a0 locutor. Na Sat acta Britannicus, Agrippine ironiza os propésitos de sua confidente Al- bine, que alribui 8 virtude © comportamenta independente de Néron. ‘Agrippine: Et ce méme Néron, que la vertu conduit. Fait enlever Junie au milieu de la nuit. F claro que este enunciado, e particularmente a relativa, apresentado como ridiculo, & claro também que todas as marcas da Primeira pessoa, na fala de Agrippne, designam a si mesma, © me rigam, pois, a identifica a0 locutor (e, nos versos que eitei, se introduzisse uma marca de primeira pessoa, por exemplo um “sans me prévenir”, © me remeteria também a Agrippine). Donde a idéia 191 de que 0 sentido do enunciado, na representago que ele dé da enun- ciaglo, pode fazer surgit af vozes que néo sio as de um locutor. ‘Chamo “enunciadores” estes seres que so considerados como se ex- |) pressando através da enunciaglo, sem que para tanto se the atribuam Palavras precisas; se eles “falnm” € somente no sentido em que a tenunciagio € vista como expressando seu ponto de vista, sua posigéo, sua atitude, mas nfo, no sentido material do termo, suas palavras. Para definir a nogio de enunciador, tenho por vezes (Cf. Ducrot € outros, 1981, Cap. 1) dito que eles s80 08 sujeitos dos atos iloculs- ios elementares, entendendo por isso alguns alos muito gerais mar- cados na estrutura da frase (afirmagio, recusa, pergunta, incitagio, desejo [augtirio], exclamagdo). Definigdo que é, pobre de mim, difi- cil de introduzir na teoria de enunciago que acabo de propor. Pera mim, com efeito, realizar um ato ilocut6rio é, de uma maneira geral, “apresentar sua enunciagéo como obrigando...” — e € a0 sujeito falante que reservei, na presente exposicéo, a realizacdo dos atos ilocutérios: escolhendo um enunciado, cle “apresenta sua enunciaglo ‘como obrigando...”. Na medida em que a existéncia de um enun- cciador pertence a imagem que o enunciado dé da enunciacéo, seria necessério, para alribuir os atos ilocutérios ao enunciador, dizer: “o enunciado atribui & enunciagio a propriedade de ser apresentada por um enunciador como 1) 2 sua, 2) obrigando. ..". Mas esta f6rmula 6 muito pouco inteligivel. Vé-se, mal, principalmente, como a enun- celagio poderia ser atribuda a um enunciador enquanto este tiltimo, diferentemente do locutor, nao se define em relagio & ocorréncia de palavras (no se The atribui nenhuma palavra, no sentido material do termo). Incapaz para o momento de suplantar estas dificuldades no quadro de uma construgio te6rica, eu me contentarei com compara- ‘g6es, primeiro com 0 teatro, depois com o romance. Direi que 0 enunciador esté para o locutor assim como a per- sonagem esté para 0 autor. autor coloca em cena personagens que, fem relagéo 20 que chamei no § 3, a partir de Anne Reboul, uma “primeit ", exercem uma acdo lingiifstica e extralingiifstica, ago ‘que no é assumida pelo proprio autor. Mas este pode, em u gunde fala”, dirigirse a0 pablico através das personagens: scja por {jue se assimnila a esta ou aquela pelo préprio autor. Mas este pode, em uma “segunda fala”, dirigirse a0 piiblico através das person: gens: seja porque se assimila a esta ou aquola que ole parece fazer seu representante (quando o teatro é diretamente didético), seja por- 192 que mostra como significative 0 fato de as personagens f comportarem de tal ou tal modo. De uma maneira anéloga, o locutor, responsdvel pelo enunciado, dé existéncia, através deste, a enuncia- dores de quem ele orgeniza os pontos de vista ¢ as atitudes. E sua posigio propria pode se manifestar scja porque cle se assimila a este ‘ou aquele dos enunciadores, tomando-o por representante (0 enun- ciedor € entao atualizado), seja simplesmente porque escolheu fazé-los parecer, € que sua eperico mantém-se significative, mesmo que ele no se assimile a cles (2 existéncia discursiva que thes é dada assim, © fato de que alguém assume uma certa posigéo, dé importéncia a esta posigdo, mesmo pera aquele que nfo a leva na propria conta: hé, alids, uma outra importéncia poss{vel para um conteddo lingifst- £0, ligado as palavras cujo valor intrinseco impossfvel de fixar ou limitar?). Seria mesmo possivel levar mais longe 0 paralelo: como 0 ‘enunciador nao € responsével pelo material lingtifstico utilizado, que € atribuido a0 locutor, do mesmo modo nao se vé atribufda & perso- rnagem de teatro @ materialidade do texto escrito pelo autor e dito elewalorcs Seppe sumo; em Ls fener Seventy GRE cine atores se expressam em verso, € evidente que as personagens tenindesfalsm habitunimente tm prota, E quando em Gado momento 4 personagem Trissotin recita versos, isto deve ser indicado por uma dicgao particular do ator e, da parte do autor, por uma forma de icacdo particular. Devo sublinhar que a aproximacio da dupla locutor/enunciador ¢ da dupla autor + ator/personagem diz. respeito somente 20 papel ‘que desempenham as duplas nestes modos de comunicagéo que sio a finguagem teatral ¢ a linguagem néo-teatral: eles tém, segundo pen- s0, a mesma fungo semiolégica. Suponhamos agora que se deixe de lado este ponto de vista semiol6gico e que se descreva o que se passa nna cena, no mais como um modo de comunicagao especifico, mas como uma utilizagao, ertre outras, da linguagem ordinéria, do mesmo modo que na conversa;o ou no discurso polftico. Seré necessério, entao, considerar as personagens, jé que elas so os referentes dos eus pronunciados na cena, como os locutores — o autor € os atores aparecendo desta vez como sujeitos falantes. £ a mesma distingao, na linguagem ordinéria, do locutor © do cujeito falante que a torna apta & utilizagfo particular que faz dela o teatro: o préprio do tea- to, relacdo & narrativa pura, isto é, & narrativa sem didlogo relatado em estilo direto, € que a func&o semiolégica de enunciador é neste 193 caso preenchida por um ser, a personagem, que, no que diz respeito ‘a0 emprego feito da linguagem ordinéria, é um locutor — de modo que um sujeito falante, ator de sua posigio, pronuncia os eu que remetem a Don Didgue, senhor espanhol. E muito mais, a possibili dade de uma dupla enunciagdo (Cf. § 11) ligada & distingio do su- jeito falante e do locutor, explica por que 0 mesmo ser, na cena, pode ‘algumas vezes falar ao mesmo tempo como petsonagem e enquanto representante da personagem, fazendo, por exemplo, comentérios sobre ‘seu papel: em uma parédia do Cid, 0 representante de Don Ditgue pode, no proprio interior da peca, lastimarse que seu companheiro, ‘0 esbofetes-lo, tenha tido a méo pesada, assim se distinguiria: 1. O ator X, sujeito falante; 2. Um primeiro locutor, para o qual reservo o termo de "‘intér- prete”, definido pelo fato de ter tal papel particular, e que pode dizer ‘eu enquanto titular deste papel. / 3. Um segundo locutor, a personagem vivida pelo “intérprete”, Personagem que se designa igualmente a si mesmo por eu) *. XIV. A teoria da narrativa apresentada em Genette (1972) me forneceré uma segunda comparacfo para procurar fazer compreender minha distinggo do locutor e do enunciador. Com efeito, esta teotia fax aparecer na narrativa dois tipos de insténcias narrativas, corres- pondendo sob muitos aspectos ao que chamei, no estudo da linguagem ordinéria, “locutor” e “enunciador”. O correspondente do locutor € © narrador, que Genette opde a0 autor da mesma maneira que opo- ho 0 locutor ao sujeito falante empfrico, isto é, ao produtor efetivo do enunciado, © autor de uma narrative (romancista ou novelista) representa, segundo Genette, um narrador, responsével pela narrativa © que tem caracteristicas bem diferentes daquelas que a histéria lite- réria ou a psicologia da criego romanesca devem reconhecer ao autor. Assinalo trés, das quais's6 a primeira € desenvolvida por Genette. Esta primeira caracteristica, sobre @ qual passo rapidamente, diz respeito & atitude do narrador em relagio aos acontecimentos relata- dos. Enquanto 0 autor imagina ou inventa estes acontecimentos, 0 narrador os relata, entendendo por isso, por exemplo, ou que ele reprodu lembrancas (supastas) — no caso de uma narrativa no pas- Em francés Duerot usou “comédien", que traduzi por ator, e “acteur, que traduzi por intérprete. (N, do T.) 194 sado — ou que ele dé uma forma lingiifstica ao que ele foi levado 1 viver ou @ constatar — em certas narratives no presente, Insistirei, sobretudo, em uma segunda diferenca entre © narrador € 0 autor, diferenca ligada A primeira. Trata-se de sua relagéo com ‘¢ tempo. Em seu estudo sobre o tempo gramatical, Weinrich (1964) ressalta que os romances de antecipagio so sempre escritos em um. tempo gramatical do pessado — o importante para mim € que aliés somente possam sélo. Escrevendo hoje um romance sobre 0 ano 2000, nada me impede de comesar: “A cette époque la France était un terrain vaque que se disputaient...” Vé-se nisto, por vezes, uma extravagincia ou um paradoxo, sob 0 pretexto que o autor, mesmo escrevendo no passado, nfo procura dissimular que fala de seu fu- uro. Mas 0 paradoxo desaparece desde que se tenha distinguido autor ¢ narrador. Porque o tempo gtamatical utilizado pode muito bem tomar como ponto de refréncia o momento em que o autor escreve, mas aquele em que 0 narrador relata, € 0 autor, vivendo em 1985, pode imaginar um narrador, vivendo no ano 3000, que relata o que '8e passou no ano 2000, Esta distingfo do narrador (equivalente literétio de meu “lo- cutor”) e 0 autor (correspondendo ao que chamei o “produtor efe- tivo”, e exterior & narrativa como o produtor é exterior ao sentido do. ‘enunciado) permite mesmo — é a terceira diferenga que assinalaret — fazer realizar 0 ato de narracéo por alguém de quem se diz, a0 ‘mesmo tempo, que ele néo existe ou nao existe mais. Se para escrever € necessério existir, isto ndo € necessério par Por isso a possibilidade das narrativas em primeira pessoa e nas quais se relata a morte da personagem designada por esta primeira pessoa, como no filme de Wilder, Sunset Boulevar, filme narrado por uma persona- gem que é, no entanto, assassinada pouco antes do fim. A existén empirica, predicado necessétio do autor, pode ser recusada ao narra- dot. Na medida em que este & um ser ficticio, interior & obra, seu papel se aproxima do que atribu/ ao locutor — que para mim é um ser do discurso, pertencente ao sentido do entinciado, e resultante desta descri¢éo que 0 enunciado dé de sua enunciagio. ‘Ao enunciador igualmente posso fazer corresponder um dos pa- péis propostos por Genette. Vou colocé-lo em paralelo com o que Genette denomina as vezes “Centro de perspectiva” (0 “sujeito de consciéneia” dos autores americanos), ou seja, a pessoa de cujo pon- (o de vista so apresentedos os acontecimentos. Para distingui-lo do 195 narrador, Genette diz que 0 narrador 6 “quem fala”, enquanto que 0 centro de perspectiva € “quem vé", E cita numerosos exemplos em que os dois papéis nio podem ser atribuidos a um ser tinico. Assim, em A la Recherche du Temps Perdu, ocotre que 0 narrador apre- senta acontecimentos que relatam uma visio que néo pode ser nem a ‘sua, no momento em que narra a hist6ria, nem a de um individuo designado por eu [je], ou seja, do ser em que era no momento em que vivia a hist6ria: a visio relatada pelo narador € assim as vezes ‘a de Swan ou de Charlus, e isto mesmo que o narrador seja identifi- ‘ado, através da primeira pessoa, a uma outra personagem da narra tiva, Esta situago me parece préxima da que procurarei descrever, no nivel do enunciado, dizendo que 0 locutor apresenta uma enunciago de que se declara responsével — como exprimindo atitudes de que pode recusar a responsabilidade. O locutor fala no sentido em que © narrador relata, ou seja, ele 6 dado como a fonte de um discurso. Mas as atitudes expressas neste discurso podem ser atribufdas @ enun- ciadores de que se distancia — como os pontos de vista manifestados nna narrativa podem ser sujeitos de consciéncia estranhos ao narrador. Para ilustrar esta relago entre 0 enunciador ¢ 0 centro de pers- pectiva, comentarei as primeiras linhas de L’Education Sentimentale, consagradas & safda do navio que vai subir o Sena, a partir de Paris, levando a bordo Fredéric Moreau: “Le 11 septembre 1840, Vers six heures du matin, la ville — de — montereau, pres de partir, fumait A gros tourbillons devant le quai saint-Bernard”. Segue uma descri- ‘glo do cais que se pretende absolutamente “objetiva” e faz surgir, com 0 auxflio de uma confusio de notagdes isoladas, os encontrdes _ Ubousculades] e a animacao geral que precedem a partida. Descri¢io que & interrompida pelo enunciado que vou comentar com detalhe: “Enfin, le navire partit; et les deux berges, peuplées de magasins, de chantiers e d'usines, filérent comme deux larges rubans que Y'on dé- roule”, Encontro neste enunciado pelo menos duas marcas que trazem ‘A tona a presenga de uma personagem que no é o narrador (por co- modidade, suporei que hé aqui um narrador — 0 que esté longe de ser evidente). A primeira € 0 enfin, que no serve somente para assi- nalar que um certo acontecimento € 0 termo de um desenvolvimento ceronolégico (como se encontraria em Pedro chegou, depois Joao enfim [enfin] Paulo). Ele tem além disso um valor exclamat a interjeigo de alguém que vé terminar uma longa espera: ele dé a 196 ‘entender 0 suspiro de um enunciador a quem ele é, para retomar o ‘que disse sobre exclamagio ¢ a expressividade, “arrancado” pela situagdo. Ora este enunciador, que deve assistir a cena descrita, que deve vivéla, é evidentemente distinto do narrador que no tem ne- nhuma razio para se impacientar ou exclamat Segundo indicio de uma subjetividede que ndo é a do narrador, a metéfora que fecha 0 enunci lex deux berges (...) fildrent comme deux larges rubans que I'on déroule”. Para ver as chalupas se derouler”, € necessério observé-las de um lugar muito particular, ‘8 coberta da popa do navio. Deste lugar com efeito, e somente daf, de um lado se véem os dois cais de uma s6 vez, © de outro, esté a vista rio abaixo obstrufda pela itha Saint-Louis ¢ a itha de la Cité, estes cais “se alongam” & medida que o navio se distancia das ilhas. Como, exatamente depois da passagem que analisei, o narrador apre- senta Fredéric Moreau othando Paris, da popa do navio, € quase auto- mitico atribuir-he, numa leitura retroativa, a visio das chalupas que se desenrolam e, voltando um pouco mais no texto, a impaciéncia do enfin. Vé-se, espero, neste exemplo, quanto estio préximas a nogio de enunciador e a de centro de perspectiva: elas servem para fazer aparecer no enunciado um sujeito diferente néo somente daquele que fala de fato, (romancista/sujeito falante], mas também daquele de que se diz que fala [narrador/locutor]. XV. Primeiro exemplo, destinado a mostrar a pertinéncia lin- siiistica da nogdo de enunciador: a ironia. Darei dela uma desctigo inspirada de perto no artigo, muito importante para mim, de Sperber- Wilson (1978) € pelo capitulo 5 de Berrendonner (1981). Freqiiente- mente a ironia é tratada como uma forma de antifrase: diz-se A para levar a entender ndo—A, sendo considerados idénticos 0 responsé- vel por A © 0 por ndo—A. Neste caso se trataria de uma figu modificando um sentido literal primitivo para obter um sentido deri vado (como 0 litotes transforma um sentido “um pouco” literal em um sentido “muito” derivado), a tinica diferenca é que a transforma- cio irénica € uma inversio total. Sperber © Wilson rejeitam esta con- cepefo figurativa. Para eles, um discurso irénico consiste sempre em fezer dizer, por alguém diferente do locutor, coisas evidentemente absurdas, a fazer, pois, ouvir uma voz que no é a do locutor € que sustenta o insustentével. F poss(vel que minha apresentagio da tese de Sperber e Wilson seja um pouco infiel, na medida em que substi- tuf sua expressio original “mencionar um discurso” pela expresso 197 “fazer ouvir uma voz". Se fiz esta substituigto € porque 0 termo “mencionar” me parece ambiguo. Ele pode significar que a ironia & ‘uma forma de discurso relatado. Ora, com este sentido do verbo ‘mencionar, a tese de Sperber e Wilson nao é de modo nenhum admis- sivel, jé que nfo hé nada de irdnico em relatar que alguém sustentou ‘um discurso absurdo. Para que nasca a ironia, € necessério que toda ‘marca de relato desapareca, € necessério “fazer como se” este discur- so fosse realmente sustentado, ¢ sustentado na prépria enunciaclo, Esta é a idéia que procuro deixar dizendo que 0 locutor “faz ouvir” um discurso absurdo, mas que 0 faz ouvir como © discurso de um outro, como um discurso distanciado. Minha tese — mais exatamente, minha versio da tese Sperber- ‘Wilson — se formularia facilmente através da distingo do locutor ¢ dos enunciedores. Falar de modo irdnico é, para um locutor L, apre- sentar a enunciagio como expressando a posiglo de um enunciador. Posigao de que se sabe por outro lado que o locutor L nfo assume a responsabilidade, e, mais que isso, que ele a considera absurda. Mes- mo sendo dado como o responsével pela enunciagio, L nfo é assimi tado a E, origem do ponto de vista expresso na enunciacéo. A dis- tingo do locutor e do enunciador permite assim explicitar o aspecto paradoxal da ironia colocado em evidéncia por Berrendonner: de um lado, a posigao absurda é diretamente expressa (¢ no mais relateda) na enunciagéo irdnica, e ao mesmo tempo ela nao é artibuida a L, jé ‘que este 86 € responsivel pelas palavras, sendo os pontos de vista manifestados nas palavras atribuidos a uma outra personagem, E. Para distinguir a ironia da negagfo — de que felarei em segui acrescentarei que € essencial a ironia que L nao coloque em cena um outro enunciador, B', que sustentaria 0 ponto de vista razo6vel. Se L. deve marcar que é distinto de E, é de uma maneira totalmente dife- rente, recorrendo, por exemplo, a uma evidéncia situacional, a ento- rages particulares, e também a cerios torneios especializados na iro- nia como “Que étimo!”, ete, Anuncieithes, ontem, que Pedro viria me ver hoje, e vocts se recusaram a acreditar. Posso hoje, mostrando-Ihes Pedro efetivamente presente, hes dizer de modo irbnico: “vooés véem, Pedro i me ver”. Esta enunciagdo irdnica de que assumo a responsal enquanto locutor (¢ a mim que o me designa), apresento-a como u expresso de um ponto de vista absurdo, absurdidade de que néo sou © enunciador podendo até mesmo, neste caso, serem voces (6 esta assi- 198 milagao do enunciador ao alocutério que torna esta ironia agressive): faso-os sustentar, na presenca de Pedro, que Pedro no esté presente. Para ilustrar melhor minha concepeéo, gostaria agora de aplicé- ta a um exemplo menos artificial (ou, sobretudo, que o artificio seja \dependente do meu cuidado ao expor minha teoria). Trata-te de uma mnedota”, citada e analisada em Fouquier, 1981. Em um restaurante de luxo, um fregués sentou-se & mesa tendo como tinica companhia seu cachorro, um pequeno teckel. O gerente vem estabelecer uma conversacio ¢ elogia a qualidade do restaurante: “o senhor sabia que nosso mestre € 0 antigo cozinheiro do rei Farouk?” — “muito bem!” iz. simplesmente 0 fregués. O gerente, sem desanimar: “e © nosso despenseiro € o antigo despenseiro da corte da Inglaterra... Quanto ‘8 nosso pasteleiro, nés trouxemos o do imperador Bao-Dai”. Diante do mutismo do fregués o gerente muda de conversa: “O senhor tem a tum belo teckel”. Ao que o fregués responde: “Meu teckel, senhor, ¢ ‘um antigo Séo-Bernardo”. Para descrever esta resposta no quadro que propus, é necessério admitir que 0 fregués, tomado como 0 locutor L, ‘expressa por um enunciador, assimilado ao gerente, a opinifio, sobre (© passado do teckel. Uma andlise mais detalhada deveria precisar 0 que marca, aqui, a assimilagdo do enunciador e do alocutétio: uma marca, entre outras, seria a identidade de estrutura semantica entre fa enunciagéo ir6nica e as que o gerente realizara antes por sua pro- pria conta. Ou seja, na minha terminologia, de modo sério (enten- dendo por isso que, locutor das enunciagdes, ele se assimilava tam- bém a seu enunciador). Dizer que a resposta do fregués ¢ irdnica é dizer, entre outras coisas, que € necessério, para interpreté-la, assimi- lar a duas pessoas diferentes a locutor da enunciagao ¢ o enunciador que se expressa neste enunciagio, Nos dois exemplos que precedem, o enunciador 6 assimilado a uma pessoa precisa e, nos dois casos, a0 alocutério. Mas a assimilacio pode envolver alguém diferente do alocutério, como € 0 caso na auto- ironia, quando se zomba de si mesmo. Eu Ihes havia dito que cho- veria hoje, e faz um tempo étimo, 0 que me leva a zombar de minha competéncia metereol6gica: mostrando-lhes 0 céu azul, observo “Vo- cés véem bem, esté chovendo”. O enunciador ridfculo ¢ aqui assi- milado a mim mesmo, 0 que parece contradizer a descricto da ironia proposta hé pouco. De fato, a solugio ¢ imediata desde que se aceite a distinglo de Le de A (Cf. § 12). O ser a quem L, responsdvel pela enunciago, € s6 por ele, assimila o sujeito enunciador do ponto de 199 ! vista absurdo é A, 0 metereologista ignorante que se meteu prever (© tempo sem ser capaz. Mas justamente L, enquanto € responsével pela enunciagao, e escolhe o enunciado, nfo escolhe agit como mete- reologista: 0 que ele faz € um ato de zombatia, ¢ isto apresentando ‘uma previsio realizada por um enunciador de que se distancia no interior de seu proprio discurso (mesmo se deve identificarse a cle ‘no mundo). Por isso, o interesse estratégico da autoironia: L ti proveito das besteiras de A, proveito de que A se beneficia em segui da, como conseqiiéncia, jé que L é uma de suas multiples figura Allids, no € necessério que o enunciador absurdo seja assimilado a alguém precisamente. O essencial € que seja claro que 0 locutor néo ‘assume nenhuma das posigSes expressas em seu enunciado. Poder- sevia, penso eu, definir 0 humor como uma forma de ironia que no considera ninguém em particular, no sentido em que © enunciador ridfculo nfo tem identidade especificavel. A posi¢lo claramente insus- tentével que o enunciado supostamente manifesta aparece por assim dizer “no ar”, sem sustentagio. Apresentado como o responsével por ‘uma enunciagio em que os pontos de vista nfo so atribufdos @ nin- guém, o locutor parece entio exterior & situagio de discurso: defi- nido pela distincia que estabelece entre si e sua fala, ele se coloca fora de contexto e adquire uma aparéncia de desinteresse desen- voltura. XVI. Recorrendo, para expor a distingao do locutor e do enun- ciador, a0 fendmeno da ironia, expus-me A censura de ter pecado con- tra Saussure, e confundido lingua e fala. “A ironia, me dirdo, 6 tipi- camente um destes jogos que a fala permite, mas que so subversGes, ou, pelo menos, deformagdes da estrutura da lingua. Do ponto de vista da lingua, € necessétio admitir, no exemplo anterior, que ¢ 0 fregués, ou seja, 0 individuo designado pela primeira pessoa, que se responsabiliza pela afirmagio sobre o teckel e que é seu sujeito falan- te, ao mesmo tempo locutor e entnciador. Se se considera, que ela deve de fato ser atribuida ao getente, é 0 efeito de uma inversfo, alte- rando depois 0 dado propriamente lingiifstico, inversio andloga a do jogo infantil (Eu, eu serei a mame, voc’, voct serd o bebé)”. Para responder as objegdes deste tipo, observarei primeiro que elas repousam sobre uma concepcio da frase (clemento da lingua) diferente da que propus no inicio. O que Ihe dé uma eparéncia de evidéncia 6 que se decidiu ver na significapao da frase algo que pa- rega tanto quanto possfvel a uma interpretagao, ou seja, a um valor 200 semintico completo, suscetivel de ser comunicado, Notadamente, a frase j6 deveria indicar quem € 0 responsével pelas posig6es nela ex- pressas, responsével que nfo poderia ser 0 locutor, aquele que ¢ de- signado pelo ev. Se 0 enunciado, realizado em uma situagdo dada, implica uma outta imputagio, isto seria como reflexo da significagio. De minha parte, fiz a escolha oposta. Partindo do fato de que a sig- hi ‘nunca poderia, de modo nenhum, constituir plenamente uma interpretacio (antes, ela nfo especficaria quem & efetivamente 0 lo- cutor), postulei que seria necessério ver nela_somente_ um conjunto de_instrugdes pera a interpretacio de seus enunciados: no hé por- tanto, mais nenhuima razo para querer que estipule quem € o.respon- savel pelos pontos de vista. F suficiente que cla marque o lugar de tal respons4vel (que chamo “enunciador”), ao mesmo tempo em que = especificando even- ¢ esta imputagdo. Escolhendo papéis, nflo se reencontra um {i constitufdo: constituise um, talvez inabitual, mas que ndo é nem mais nem menos “conforme a lingua” que a interpre- tagio “‘séria” habitual. Certamente nao é, no discurso irBnico, ao nivel da lingua, que se atribuem os dois papéis a atores diferentes, mas nio € princfpio a este nivel que se faz, no discurso sério, sua atri- buigdo a um tnico ator. ‘duos a quem it jualmente certas restrig6es pat individuos diferentes para estes doi A cesta primeira resposta, que nao faz senio explorar, sem pro- curar justificé-la, minha concepsao da frase e da significaglo, acres- centarei um argumento mais empftico, ou, mais exatamente, mais dire- tamente ligado a fatos de experiencia (sem ser, é claro, imposto por eles), argumento que buscarei no fenémeno da negagéo. Ninguém contestaré que a negagio € um “fato de lingua”, inscrito na frase (sendo raramente 0 caso no que diz respeito a ironia). Ora, parece-me interessante, para descrever a negagio, recorter & distinglo do locutor ‘e do enunciador. Propus efetivamente, em Les Mots du Discours, des- crever um enunciado declarativo negativo, por exemplo, “Pedro nfo & gentil”, como a apresentagio de dois atos ilocut6rios distintos. O pri- meiro, Ar, 6 uma assergao positiva relativa & gentileza de Pedro, 0 ‘outro, Az, é uma recusa de Ar. Ora, € claro que Ar ¢ Az nfo podem set imputados a0 mesmo autor. Geralmente, o enunciador de As € assimilado a0 locutor, e 0 de A: a uma personagem diferente do 201 Tocutor, que pode ser tanto o alocutério quanto um terceiro. O locutor L que assume a responsabilidade do enunciado “Pedro nfo é gentil” coloca em cena um enunciador E: que sustenta que Pedro € gentil, © um outro, E2, a0 qual L é habitualmente assimilado, que se opde a E:. Fata tese de Les Mots du Discours, sou obtigado a retoméla agora, em outros termos, jé que no posso mais atribuir aos enunci dores tum ato ilocut6rio como @ afirmago — nfo estando os enuncia- dores ligados a nenhuma fela. Torna-se necessétio, entio, compreen- der A: e Az, nfo como atos, mas como pontos de vista opostos. No entanto, 0 essencial da descricio permanece. Sustento, pois, que a maior parte dos enunciados negativos (explicatei mais & frente porque digo somente “a maior parte”) faz aparecer sua enunciagéo como 0 choque de duas atitudes antagénices, uma, positiva, imputada a um enunciador E:, a outra, que é uma recusa da primeira, imputada a Es. ‘Mesmo supondo admitido 0 que acabo de dizer na negaco, nfo resulta ainda que a lingua conhece a distingao do locutor € do enun- ciador, e que esta distingao deva ser introduzida na significagio das frases negativas. Isto, pois, pode-se me objetar que descrevi somente ‘um efeito da negagio na fala, perceptivel certamente no sentido dos enunciados negatives, mas que néo deve nada a sua estrutura lingiifs- tica, Este efeito se deve, acrescentar-se-6, a uma lei de discurso geral, segundo a qual, toda vez que se diz algo, imagina-se alguém que pensaria o contrério € 90 qual se se opée. Lei que se aplica muito bem aos enunciados positivos: dizendo-the “Pedro é gentil”, suponho gerelmente que tém alguma razio para néo acreditar nisto, de modo que uma resposta indelicada habitual consiste, de sua parte, em me responder “Mas eu nunca disse 0 contrério” — 0 que parece mostrar ‘que meu enunciado apresentava um enunciador, diferente do locutor, ‘© que supunha que Pedro no é gentil. Como no se pode, neste caso, apresentar no interior da frase uma marca qualquer deste enunciador, nfo hé nenhuma razio, me dirdo, para supor que o morfema nao, na frase negative, marca a presenga de um enunciador distinto do lo- cutor: ele marca somente, como o signo de negacfo nas Iinguas 16gi- as, a inverso de uma proposicio em sua contraditéria. E necessério, pois, que cu mostre, para justificar minha tese, uma dissimetria entre enunciados afirmativos e negativos, e faga ver que ‘uma afirmagao € apresentada na negago de uma maneira mais fun- damental que negagio na afirmagao, Entre os-signos desta dissime- 202 tfa, assinalarei somente as condigdes de emprego da expresso ao con- trério. Depois de um enunciado negativo “Pedro nfo € gentil”, pode- se encadear “ao contrério, ele ¢ insuportével”. A que o segundo enun- i0 a0 primeiro tomado na sua totalidade, mas a0 ponto de vista positivo que este, segundo penso, nega ¢ veicula a0 ‘mesmo tempo. Ora, esta possibilidade de encadeamento ¢ exclufda se © primeiro enunciado € positivo. Nao se teré nunca “Pedro & gentil. Ao contratio, ele € adorével”, Muito bem, dizendo “Pedro € gentil”, deixo entender geralmente que alguém acteditou ou declarou que ele nfo era, mas no posso fazer alusio a atitude deste enunciador virtual, para opor-me a ele através de ao contrdri. Do que se pode concluir que tal enunciador tem uma presenca e um estatuto diferente no enunciado positivo © no enunciado negativo. E minha teoria da negagio dé conta desta diferenga colocado que, no segundo caso, 0 lugar deste enunciador jé esté marcado na frase — cuja significagio impOe que seja petsonalizado, mesmo de forma vaga — no momento em que se interpreta 0 enunciado. A esta andlise, retomada de trabalhos anteriores, gostaria de acrescentar algumas observagées. Primeiro preci forma, no quadro da concepcéo polifénica, minha antiga distingfo entre negacao polifénica e negacao descritiva (Cf. Ducrot, 1972, p. 38, Moeschler, 1982, Cap. 1). Chamava “descritiva” a negagéo que serve para tepresentar um estado de coisas, sem que seu autor apresente sua fala como se opondo a um discurso contrdrio, (Exemplo: N_pergun- tou a Z, que acabara de abrir as janelas, como estava o tenipo, ¢ Z responde “nfo hé nenhuma nuvem no céu”. Ou ainda, N, que nfo conhece Pedro, pergunta a Z o que pensa dele, e Z afirma “ele néo & inteligente”. Os dois enunciados poderiam ser parafraseados, sem perda de sentido, por enunciados positives “o céu esté absolutamente impo” e “Pedro € um imbecil”). E eu opunha a esta negagéo a nega- do “polémica”, destinada a opor-se @ uma opinifo inversa — que seria 0 caso se os dois enunciados negativos precedentes replicassem afirmagies de N, “devia haver ainda algumas nuvens no cfu” € “Creio que Pedro ¢ inteligente”. Hoje distingo trés tipos de negalo. As duas primelras corres- pondem a uma subdivisio da antiga “negaso polémica”. 1. Chamo “metalingtifstice” uma negagdo que contradiz os pré- prios termos de uma fala efetiva a qual se opée. Direi que o enun- ciado negativo responsebiliza, entéo, um focufor que enunciou seu 203 : Positive correspondente. £ esta negagdo “metalingiiistica” que permite, por exemplo, anular os pressupostos do positivo subjacente, como € 0 caso em “Pedro nfo parou de fumar; de fato, ele nunca fumou na sua vida”. Este “nfo parou de fumar”, que nao pressupée furava antes”. 36 € possivel como resposta a um locutor que acaba de dizer que Pedro parou de fumar (e, de outro lado, exige que se explicite 0 ques- tionamento do pressuposto anulado sob a forma, por exemplo, de um “ele nunca fumou na sua vida"). E igualmente neste quadro da refu- tagao de um focutor contrétio que @ negagéo pode ter em lugar de seu efeito habitual “de abaixamento” um valor de elevacio. Pode-se dizer “Pedro no é inteligente, ele € genial”, mas somente, como res- posta a um focutor que tenha efetivamente qualificedo Pedro de inte- ligente 2. Reservo agota 0 termo “polémico” para a negagio cuja ané- lise relembrei hé pouco, € digo que ela corresponde “a maior parte dos enunciados negativos”. Neste caso, 0 locutor de “Pedro nio inteligente”, assimilando-se ao enunciador Es da recusa, opéese nao ‘a. um Jocutor, mas a um enunciador E;, que coloca em cena no seu proprio discurso, e que pode nfo ser assimilado a0 autor de nenhum discurso efetivo. A atitude positiva & qual o locutor se opée é interna 0 discurso no qual é contestada. Esta negacio “polémica” tem sem- pre um efeito rebaixador e mantém os pressupostos. 3. Como terceira forma de negagio, retomo minha antiga i de negagio descritiva, conservando, aliés, seu nome. Acrescentando, simplesmente, que a considero como um derivado delocutivo da ne- gacio polemica. Se posso descrever Pedro dizendo “ele nfo 6 inteli- gente”, € porque Ihe atribuo propriedade que justificaria » posic&o do locutor no diélogo cristalizado subjacente a negacio polémica: dizer de alguém que ele no é inteligente, € atribuirthe a (pseudo) propriedade que legitimaria opor-se a um enunciado que tivesse afir- mado que ele € inteligente. A delocutividade tem, neste caso, 0 mesmo feito que no exemplo analisado em Anscombre (1979): dizer que Pedro € um matuv € atribuir-lhe o (pseudo) trago de caréter que eva a colocar eternamente a questées “M’as-tu vu?” (Na origem, tra- ta-se mesmo, como Anscombre mostrou, de uma alusio a um gracejo bem preciso, feito contra certos atores acusados de perguintarem, constantemente "M’as tu vu dans Le Cid?", “M’as-tu vu dans Don Juan?”, etc). 204 Minha segunda observagao diré respeito aos fenémenos de pola- . Sabe-se que, em um grande nimero de lingues, cer- tas expresses no podem ser inseridas em um enunciado afirmativo, ‘mas somente em um enunciado morfolégico, ou semunticamente ne- gativo. Tal € 0 caso de fazer grande coisa, levantar um dedo para aju- dé-lo, e, em francés, pour autant, etc. Estes fatos parecem colocar em xeque minha descrigo da negagio polémica, que leva a let a afirma- ‘elo sob a negagio: a afirmagdo subjacente 20 enunciado “Pedro no fez grande coisa” nfo constitui de fato um enunciado portugués pos- sivel. Vé-se imediatamente, no entanto, (tenho @ presungéo de supé- lo) que a objecio no afeta nossa hipétese — na medida em que o elemento positivo que considero subjacente ao enunciado negativo néo 6 um enunciado (isto & uma seqiiéncia de palavras), imputével a um ocutor, mas uma atitude, uma posicéo tomada por um enunciador tendo em vista um certo conteido, quer dizer, uma entidade semin- tica abstrata, Quando falo de uma proposigéo subjacente a “Pedro nao fez grande coi se trata de uma proposigéo gramatical, ‘mas de uma proposicdo no sentido légico, ou seja, de um objeto de pensamento, da opinido segundo a qual Pedro teria muito o que fazer. Uma vez refutada esta objegdo, reste explicar 0 fato, bastante bizarro, ¢ de qualquer modo fortemente contrério aos principios de uma economia saudével, que certas expresses so utilizadas somente em um contexto negativo. Mas é necessério ver, que a formula “ser utilizada em um contexto negativo” pode recobrir duas idéias, bas- tante diferentes. A primeira que assimila a polaridade negativa as diversas “dependéncias” fonéticas ou sintéticas que impedem tal som ou tal morfema de “combinar-se” a tal outro som ou morfema. Em termos de gramética gerativa, poderia falar de um “trago contex- tual” [—Aff.] que pertenceria, por exemplo, as expresses grande coisa, em portugués, ou pour autant, em francés, e que interditaria suta insergiio em um contexto afirmativo. Compare-se, a este respeito, Pour tant e pour autant. A ambos setiam atribuidos os mesmos “tra- 03 inerentes”, ¢ principalmente 0 mesmo valor semantico de oposigéo (© de cependant). A diferenga eerie simpleamente quo © enuinciado modificado por pour antant deve ser negativo. De modo que *Pierre € grand” pode set seguido por “Mais il n'est pas fort pourtant”, por “Mais il n'est pas fort pour autant”, por “Mais il est faible pourtant”, © no por “Mais il est faible pour antant”. 205 HG, todavia, uma segunda solugio — que no quero justificar ‘aqui por ela mesma, ¢ da qual mostrarci somente que ela 6 facilmente formulada na teoria polif6nica da negacio. Els, consiste em dizer que ‘Pour autant tem 0 mesmo valor semantico que de ce fait, pour cette raison, ou ainda (se se quer levar em consideracio a nocio de grau ligada a autant) cela suffit a faire conclure. Pour autant aparece assim como um conectivo de consecugao (e nao mais de oposi¢do), m conclusio que introduz ¢ a de um enunciador ao qual o locutor se opée: sua polaridade negativa nao consiste em uma restrigao combi- natéria que imporia associar-Ihe somente um enunciado negativo; ela diz respeito & colocago em cena pelo locutor de um enunciador E1 de que o locutor se distancia, ¢ que completa um movimento conclu- sivo recusado pelo enunciador Ez 20 qual o locutor se assimila. Gene- ralizando esta idéia, proporei considerar as expresses de polaridade negativa como as marcas de um ponto de vista rejeitado, ponto de vista que 0 locutor declara inadmissivel no préprio momento em que coloca em cena o enunciador que o sustente. NB. 1, — Objetar-me-fo que o enunciado A, mais non — B pour ‘autant no refuta somente o movimento dedutivo que leva de A a B, ‘mas sugere fortemente a falsidade de B — ainda que os fatos nfo sejam totalmente niftidos. Minha resposta € que 0 uso ordinério da Iingua — e¢ esta € uma das caracteristicas da argumentagio na lingui gem — nfo distingue bem “negar a coisa conclufda” e “negar 0 mo- vimento de concluséo”: em todo caso, um procedimento argumenta- tivo muito utilizado, quando se trata de invalidar um movimento ‘conclusivo, consiste em mostrar a falsidade da proposicéo concluida, NB. 2. — Se pour autant exige combinar-se com um morfema negativo ou uma expressio de valor grosseiramente negativo, ndo 6, id 0 disse, em virtude de uma restrigo sintética, mas porque este morfema ou esta expresso implicam a apresentagéo e a refutagio de um enunciador que adota a atitude positive. Esta antlise deixa Prever que se encontraré pour autant quando a presenga deste enun- ciador, sem pertencer ao proprio sentido do enunciado, tal como re- sulta das instrugdes ligadas & significagéo da frase, € simplesmente considerada pelo locutor no momento em que fala. E 0 que aparece, por exemplo, neste trecho de um artigo de Le Monde: “La R.A.T.P. demande un renforcement des mesures de sécurité dans le métro. Pour autant une action efficace reléve aussi de la responsabilité de chaque 206 usager”. O redator, ao redigir o tltimo enunciado, pensava, sem di- em opor-se a um enunciador que do primeiro teria conclufdo rresponsabilidade dos usuétios. pela Se minha anélise das expresses de polaridade negativa € aceite, se € levado a ver nela a manifestagio, © uma espécie de cristalizago gramatical, de uma tendéncia bastante geral que atribui como fungao 4 certas expresses marcar um ponto de vista do qual se assinala, 20 mesmo tempo que néo € 0 do locutor. Esta tendéncia nfo se observa somente nos enunciados negativos. Ela opera igualmente na ironia, que pode também ela, recorrer a construgées especiti 6 alids de espantar, jé que apresentei para a negagio crigées bastante préximas. Sua diferenca principal & que, na ironia, a recusa do enunciador absurdo € diretamente executada pelo locutor / (€ ligada a sua entonagio a suas caretas, a0 fato de que chama a atengao para os elementos da situago que exigem imediatamente 0 ponto de vista apresentado, etc), enquanto que na negacdo, a recuse, / se dé através de um outro enunciador colocado em cena pelo locutor € a0 qual este, na maioria dos casos, se assimila. Ora, hé que se res- saltar que, na ironia, a escolha de certas palavras (escolha, relembro, imputada a0 locutor) tem como valor quase convencional marcar a repugnéncia do locutor pelo ponto de vista de um enunciador que le apresenta — e que apresenta sem opor-the um ponto de vista con- corrente. E 0 caso de expresses francesas, como C'est du propre!, Crest du Joli! (analisadas em Ducrot e outros, 1980, p. 120); fazendo aparecer um enunciador que apreciatia de modo favorsvel o estado de coisas do qual se fala, estas expresses marcam que locutor tem a opinido inversa. Poder-seia falar a seu respeito de “polaridades indi De modo mais geral ainda, observa-se que a maior parte das co- letividades ideoldgicas possuem expresses que nfo podem ser apli- ceadas a um certo tipo de objeto sem que esta aplicagfo seja denun- ciada ao mesmo tempo como absurda. Encontrei assim, em um artigo do Le Monde, este resumo de um discurso do presidente Carter: “Pour Carter, Ia démocratie est une panacée”. A propria escolha da palavra.panacée faz. surgir 0 desacordo do jornalista com 0 ponto de vista relatado (o de Carter). Isto porque. no mesmo contexto ideolé- ico, se deveria considerar como quase analitico o enunciado negative La démocratie n'est pas une panacée”, jé que o enunciado positive correspondente “La démocratie est une panacte”, j& € dado como 207 evidentemente inadmissfvel: a negagio tem duplo emprego com a uti lizagio da palavra panacéia. Na terminologia apresentada neste artigo, € necesséiio dizer que 0 locutor, empregando esta palavra, jé marca ‘que se opde ao enunciador ao qual atribui uma erenga na virtude uni- versal da democracia: redundante, a negagio € impossivel de ser refutada, ‘ Gostaria, enfim, de assinalar que este mesmo fenémeno de pola- ridade ideol6gica de que falei a propésito de enunciados declarativos egativos é reencontrado em certos empregos dos imperativos nega tivos. Para mostré-lo, devo primeiro estender aos segundos a des ctigio que propus para os primeiros — limitando-me, aliés, aos casos ‘em que o imperativo negativo solicita ao interlocutor que no realize tuma ago que ele pretende fazer ou ja comegou a fazer. O enunciado traz, entdo, & cena, segundo penso, pelo menos dois enunciadores. O primeito, E1, descreve a ado que esté questo, e que € 0 tema do enunciado (apresentado, as vezes, além disso, como legitima ou em todo caso motivada, Cf. Ducrot ¢ outros, 1980, p. 128). Quando Z diz a N “Nao me abandone!”, Es representa, seja como um possivel pretendido, seja como o jé iniciado, a partida de N; a situagio evoce- da por Er sendo aquela que constatariam ou anunciariam os enuncia- dos declarativos positivos voce me abandonard ou voce me abandona correspondendo ao imperativo negativo nao me abandone!. Quanto a Ez, a0 qual o locutor tem a inabilidade de assimilar-se, ele solicita a anulagio da partida evocada por Ex (encontrarse-4 uma anflise do ‘mesmo tipo para os enunciados interrogativos em Anscombre-Ducrot, 1981, p. 17). Ora, acontece freqilentemente que as palavras utilizadas pi impedir uma ago, ao mesmo tempo que descrevem esta agio, fazem- nna aparecer como inaceitével. Suponhamos, continuando a triste his- téria de Z ¢ de N, que N respondesse a Z: “Nao seja crianca!”: 0 comportamento que se censura em Z (néo aceitar a separagio) é, de safda, apresentado por N como infantil, quer dizer, em um certo nivel de lugares comuns, como evidentemente ridfculo € digno da reprov s#o dos sébios. Falarei, pois, ainda, da polaridade negativaideol de um discurso redundante, analitico até, jé que a prépria maneira pela qual o locutor N formula a situago evo- cada por Es torna necessério que N se assimile ao enunciador Ex que a ele se opse (0 cardter redundante do imperativo negativo 6 clar mente visto, se se supde que “néo seja crianca!” tem exatamente a 208 mesma fungio, vendo-se sistema de lugares comuns que nos servem habitualmente de referéncia, que “voce é infantil!”), Minha terceira e siltima observagio visa somente a tornar evi- dente uma alternativa tedrica colocada pelo que precede, sem que eu tenha os meios de resolyé-la. O problema aparece quando se considera ‘um enunciado ao mesmo tempo irdnico © negative. Z considerou que poderia terminar seu artigo @ tempo, Z, a0 apresenté-lo a N, comenta ironicamente: “Vocé vé, nao terminei o artigo a tempo”. Hé pelo me- nos duas solugSes para analisar este iiltimo enunciado no quadro da teoria polifénica apresentada aqui. A primeira seria analisélo como qualquer enunciado negativo dizendo que seu locutor coloca em cena dois enunciadores, E: e Ex. E1, assimilado & personagem do locutor na sua primeira conversa com N, prevé a conclusdo do artigo no pra- 20. Ez, assimilado a N nesta mesma conversa, coloca em divida esta certeza, dei da segunda conversa. que L nao se assi- mila a nenhum dos enunciadores, ott seja, na minha terminologia, a que nenhum deles € atualizedo (sublinho com efeito que a persona- gem a que E; é assimilado é um protagonista da primeira convers ‘nfo & portanto, L responsével pela enunciagéo que surgiu na segun- da conversa, mas 2, 0 ser histérico do qual L € somente o diltimo avatar). |, produtor de tum didlogo que retoma em eco uma conversa anterior, nio esté investido, pois, em nenhuma destas personagens que faz falar, © que cortesponde bem a minha def Um ponto, ao menos, nesta anélise, deixa-me insatisfeito. O ‘enunciador ridiculo Es seria assimilado & personagem N da primeira conversa, Aquela que, num momento, colocou em divida as cettezas de Z. Ora, podese pensar que néo & isto que € colocado em causa diretamente. Isto porque a posicéo ridicula 6 a que consistiria, na segunda conversa, a0 momento, pois, em que Z entrega o artigo, para negar sua capacidade de terminé-lo: Es é, entdo, assimilado ao N desta segunda conversa. Mas entio 0 enunciador Es, a0 qual Es se opde absurdamente, deveria ser também assimiledo a um protagonista da segunda conversa, ou seja, a Z no momento em que apresenta o artigo. Ora, para Z, no momento em que entrega o artigo, ¢ dificil distan- se de L, 0 locutor do enunciado irdnico — 0 que nfo esté muito de acordo com minha definigéo da ironia, definigéo que exclut a assi- ‘milago de qualquer enunciador ao locutor enquanto tal. 209 Mesmo que esta dificuldade possa ser superada, parece-me inte- ressante imaginar, para descrever o enunciado negativo irénico, uma solugéo bastante diferente. Em lugar de situer todos os enunciadores milado a N no momento da segunda convers sistiré, néo mais somente em refutar uma assergao de Z rel término do artigo, mas a colocar em cena, em um segundo nivel, dois enunciadores E; ¢ Ez, protagonistas de uma troca negativa completa. E,, assimilado a Z no momento da entrega do artigo, constataria que tinha sido concluido, e Es, ao qual Eo (é, pottanto, indiretamente N) se assimilaria, recusatia esta afirmacio. E1, nesta perspectiva, nfo corre o risco de ser assimilado a L, pois ele proprio é uma construgio de Es. Vé-se a diferenca em relacdo & solugdo precedente, O ridfculo atribuido a N no é mais o de negar uma evidéncia mas, 0 de imag nér, no momento da entrega do artigo, uma troca completa na qual ‘um enunciador Es teria como papel negar a evidéncia sustentada por um enunciador razoével E:, de que Eo (assimilado a N) é também o encensdor. O que se reprova, entao, em N, nio é adotar diretamente (= enquanto E:) uma das posigdes, a recusa, implicadas pelo enun- ciado negativo, mas de desempenhar, enquanto Eo, as duas atitudes, afirmagdo ¢ recusa, pera assumir, ainda Ey, o que justamente, na situ ‘Go, € insustentavel. © problema ’tedrico levantado por esta segunda solugdo é que ela implica a possibilidade de subordinar enunciadores uns a0s outros (subordinago compardvel so encaixe que segundo Bal (1981), pode reunir as diferentes focalizagdes de um texto). O que poderia compro- meter, parcialmente, pelo menos, a oposicao que estabeleci entre lo- cutor e enunciador: 0 enunciador se aproxima perigosamente do lo- ccutor se ele tem, como este siltimo, 0 poder"de colocar em cena enun- ciadores. Mas por outro lado, ao se dar a liberdade de subordinar sem fim enunciadores a enunciadores, dispensa-se de postular, na base do sentido, os “contesidos”, objetos das atitudes emprestadas aos enun- cindores, ¢ que representariam diretamente a realidade. Os “conted- dos” poderiam sempre ser considerados como os pontos de vista de enunciadores de grau inferior. Vantagem importante se se quer che- gar a dizer que as “coisas” de que parece felar 0 discurso sfo elas proprias a cristalizacao de um discurso sobre outras coisas, resolviveis por seu turno em outros discursos. 210 XVII. A distingfo do locutor e do enunciador, que acabo de utilizar para tratar da ironia e da negago, fornece, de um modo mais geral, um quadro para situar em lingifstica o problema dos atos de linguagem. Retornemos & metéfora teatral do § 13. Para dirigir-se 1 seu piblico. o autor (que corresponde, nesta metéfora, a0 locutot) coloca em cena as personagens (correspondentes aos enunciadores). Fazendo isto, ele tem, como assinalei, duas meneiras diferentes de “dizer alguma coisa". Primeiro pelo fato de assimilar-se, neste mo- mento, a tal personagem de quem se faz porta-voz. Assim, no teatro de Molitre, tém-se freqiientemente certas declaragdes de personagens secundérias, apresentadas como sébias, por declaracdes do proprio autor que daria através delas seus préprio ponto de vista. Uma leitura tradicional do Misanthrope pretende, por exemplo, que seja Molitre que, por atrés de Philinte, declara: La parfaite raison fuit toute extrémité Et veut que l'on soit sage avec sobriété. (Nao me importa saber o que pretende esta leitura: o essencial & que ela seja possivel). De uma mancira arbitréria chamarei “primi- tivas” estas falas que o autor ditige a0 piblico assimilando-se a uma ersonagem. Mas © autor pode dirigirse a0 piiblico de uma mancira bastante diferente — e, sem david, teatralmente mais satifetéria. Quando os céntemporineos de Moliére denunciavam Don Juan como uma pega impia, 0 que eles reprovavam no autor ndo era ter feito Don Juan seu porta-voz, censura fécil de rejeitar na medida em que Molitre cuidou de acentuar 0 aspecto inaceitével da personagem. A censura essencial era a de ter confiado a defesa da religifo a Sganarelle, per- sonagem grotesca, ¢ grotesca na medida exatamente em que a defende. © que constitui a impiedade de Moliére 0 fato de ter colocado em cena Sganarelle e t8-o feito dizer o que disse. Molitre fala a0 puiblico através de Sganarelle, mas nfio de maneira como the fala através de 6 a existéncia dada a uma personagem, ¢ o ridiculo da personagem faz parecer ridfcula a tese que sustenta (de uma maneira simétrica, se poderia dizer, igualmente, que Molitre ataca a religido pelo fato de que elesfaz Don Juan atack Ja, personagem sob muitos aspectos prestigioso, riesmo se seus aspec- tos negativos aconselhassem nfo assimiléo a0 autor). Chemarel 2 las desta segunda categoria, aquelas que 0 autor en- mais pela mediagio de suas personagens, mas pelo préprio fato de representar suas personagens, pela escolha que faz delas Ora, vou mostrar que esta classificagio, estabelecida a propé- sito da Tinguagem tcatral, tem um anflogo na linguagem cotidians ‘Quando se diz que um enunciado manifesta um ato, pode-se querer dizer duas coisas. Primeiro, pode tratar-se dos atos que uma persona- ‘gem, identificada com o locutor, realiza pelo fato de que este locutor 6 assimilado a tal, ou tal enunciador: tais atos serio chamados “pri- mitivos” (como é “primitiva” a fala atribulda a Moliére pelo fato de que ele ¢ assimilado a sua pesonagem Philinte). Em seguida chamaret “deri izado pela personagem identificada a0 lo- 1do 0 fato de que o locutor, enquanto res- ponsével pelo enunciado, escolheu colocar em cena tal ou tal enun- ele nao for assimilado a nenhum deles (da mesma “derivada” a fala atribufda a Molidre pelo fato de colocar em cena Sganarelle e Don Juan — embora ele nfo seja assimilado a eles). Terminarei este capitulo mostrando alguns exem- plos em que se vé se superporem estes dois tipos de atos. Comesarei pelos atos chamados, a partir de Austin, “ilocut6rios”. Um dos grandes problemas que eles levantam se deve & possibilidade de serem realizados de duas maneiras diferentes. Primeiro, de uma ma- neira dita “primitiva” ou “direta”, através de frases que sio mais ou menos especializadas para sua realizacio (assim, farse-& um pedido pelo enunciado de uma frase imperativa, dizendo, por exemplo, a um jornaleiro: “Me dé a Folha!”. Por outro lado, de maneira “derivada” ‘ou “indireta”, com frases que parecem especializadas para atos dife- rentes (pode-se pedir a Folha ao jornaleiro pelo enunciado de uma frase interrogativa como “Voc tem a Folha?").. A segunda possibilidade, & do ponto de vista teSrico, mais em: baragosa. Com efeito, (1) parece, freqiientemente, artificial dizer que © locutor realizou efetivamente 0 ato, para o qual a frase & especiali- zada (ato do qual as vezes sc diz que a frase & “marcada” para ele); seria artificial, no meu exemplo, dizer que o comprador fez uma per: gunta ao jornaleiro. Mas, 20 mesmo tempo, (2) pretende-se geral- mente derivar o ato efetivamente realizado (neste caso 0 pedido) a partir do ato “marcado” na frase (neste caso, a pergunta) através de uma lei de discurso como “o fato de realizar um ato de pergunta ‘mostra que se tem interesse em saber a resposta. Ora, mostrar inte- 212 resse em saber se alguém € ou nfo capaz de fazer alguma coisa (neste caso, se 0 jornaleiro esté ou no em condicées de vender a Folha) no tem sentido, em certas situagées, sendo se se quer pedirthe para neste caso, pedirlhe o jotnal)”. Vé-se imediatamente que cil conciliar (1) e (2). Para obter, como pretende (2), uma deri- vacéo do pedido a partir da pergunta através de uma lei de discurso, 6 necessétio admitir que a enunciagao realizou efetivamente um ato que € negado em (1). Distinguindo locutor e enunciador, abre-se © caminho para uma solugo, da qual indicarei somente as linhas gerais € mantendo-me no ‘caso particular que me serviu de exemplo. Direi que uma frase inter- rogativa dé, em virtude de sua significagdo, as duas instrucdes seguin- tes aos ouvintes que devem construir 0 sentido dos enunciados desta frase: a) estes enunciados devem fazer aparecer um enunciador que exprime stia divida no que concerne & proposicio sobre a qual incide a interrogacio; b) quando este enunciador é assimilado ao locutor, a exptessio da divida deve ser relida como uma pergunta, ou seja, a enunciagdo deve ser desctita como obrigando o alocutério a responder. A partir deste valor da frase, pode-se prever duas possibilidades no que concerne 0s atos ilocut6rios ligedos & enunciagio, Haveré tanto um ato “primitivo” de pergunta, quanto um ato “derivado” — {que pode ser, entre outros, um ato de pedido. Volto & frase “Voce tem a Folha?”. Em virtude de (a), seus enunciados apresentam um enunciador que expressa sua duivida quanto ao jornaleiro ter exem- plares da Folha. Se este enunciador pode ser assimilado ao locutor, , se se pode atribuir a ele, enquanto escolheu o enunciado, @ intengio de expressar a dtivida, entdo o enunciado deve ser, em vit- tude de (b), visto como uma pergunta (realizada de maneira “primi- , “direta”). Este seria claramente o caso se 0 enunciado apa- revesse numa pesquisa sobre a distribuico da imprensa. Suponhamos fem compensaglo que ndo se posse atribuir ao locutor a intengo de ‘que falei (6 0 enso se a frase & pronunciada por um eventual cliente), ©, pois, que nao se possa assimilé-lo 20 enunciador. A frase, ent&o, nfo ‘obriga mais a compreender o enunciado como uma pergunta. Mas isto nio impede de fazé-lo servir para um outro ato ilocutétio. Isto 23 porque préprio fato de colocar em cena um enunciador, expressan- do sua incerteza, pode aparecer em virtude de uma lei de discurso, como servindo para fazer uma pergunta. O locutor “representa” a divida — no sentido em que Moliére, por intermédio de Sganarelle “representa” um certo modo de defender a religifo — e por esta re- resentagao revela uma outra intencao. Ve-se a diferenga entre esta concepsao € a concepgio habitual, segundo a qual a lei de discurso transforma um ato “primitivo” do ocutor, em um outro ato de locutor, dito, entio “derivado” — 0 que sup6e, contra a evidéncia, que o ato “primitive” é efetivamente realizado pelo locutor. Na minha concepeao atual, a lei de discurso deriva 0 ato indireto atribuido a0 locutor a partir da colocagéo em cena, pelo proprio locutor, de um enunciador do qual se distanci cra, esta colocagio em cena, ligada & frase, permanece um fato incon- testével, mesmo se 0 locutor nfo € assimilado a0 enunciador. N.B. — No Cap. IV, que retoma um artigo antigo em que utilizo concepsio habitual dos atos indiretos, diz-se que a frase interroga- ra néo serve fundamentalmente para a expresséo de uma incertez mas € marcada para a realizagio de um ato ilocut6rio primitivo de pergunta, Certamente sou levado agora a abandonar esta maneira de ver — jé que (a) situo a expresso de uma incerteza na propria signi- ficagao da frase, ¢ que (b) subordino 0 ato primitivo de pergunta & assimilacéo do locutor e do enunciador. Mas esta mudanga nfo afeta © argumento que tiro, neste Cap. IV, dos atos ilocut6rios. Permanece ue @ significagio da frase intetrogativa, de um lado, no comporta a ‘assergao de uma incerteza, e, de outro, faz mais que expressar tal incerteza: éthe inerente prever uma possivel descri¢o da enunciago . coino criando uma obrigago de resposta — no caso em que o locutor © 0 enunciedor sfo assimilados. Permanece-se, pois, no “estruturali mo do discurso ideal”: o valor semintico de uma entidade lingiifstica € sempre definido em relago A continuidade que se pretende dar. XVIII. A distingio dos atos primitivos (realizados pela assimi- lasao do locutor e do enunciador) ¢ dos atos derivados (que 0 locutor realiza por colocar em cena enunciadores expressando sua prépria ati- tude) extrapola o dominio do que se chama habitualmente “ilocuté- tio”. Retomo primeiro o exemplo da ironia de que me servi hé pouco. © fregués, na réplica, apresenta o gerente do restaurante (no sentido em que Molitre apresenta Sganarelle defendendo a religifo) susten- 214 tando, 0 propésito do teckel, uma posicéo absurda. & esta apresenta- so que permite ao fregués, locutor da réplica, realizar um ato deri- vado de zombaria, do qual se beneficia enquanto locutor: ele se apre- senta como inteligente, desprendido, agradével, divertido, etc. © enun- ciado irénico (diferentemente do enunciado negativo), na medida em que néo mostra nenhum enunciador 20 qual 0 locutor possa ser milado, no serve para realizar nenhum ato primitivo — particulari- dade que deveria ser introduzida na definigdo geral da ironi Segundo exemplo, o da conjungao mas. Desde muito J. C. Ans- combre e eu descrevemos os enunciados do tipo “p mas q dizendo ‘que © primeiro segmento (p) € apresentado como um argumento para uma certa conclusio (t), ¢ 0 segundo para a conclusio inverse. Mas este quadro geral, que mantemos, admite um grande ntimero de casos lates bastante diferentes. Isto principalmente nos casos em que roduzido por um certamente. Vocés me propéem irmos esquiar, € ett recuso seu convite respondendo “certamente o tempo esté bom, mas estou com um problema nos pés”. O emprego de certamente me serve aqui para atribuir a vocés, uma argumentagio do tipo “O tem- po esté bom, devemos ir esquiar”, argumentago que vocés podem no ter formulado explicitamente, mas eu hes credito ao mesmo tem- po em que a rejeito através do contraargumento “estou com proble- ma nos pés”. Anscombre e eu descrevemos os enunciados deste tipo dizendo que eles colocam em cena dois enunciadores sucessivos, Ex ¢ Es, que argumentam em sentidos opostos, 0 locutor se assimilando a Ex, © assimilando seu alocutério a Ex. Embora o locutor se declare de acordo com o fato alegado por Es, ele se distancia, no entanto, de Ey: ele reconhece que faz bom tempo, mas nao o afirma por sua propria conta. Ora, tal distingdo € imposta pela significacéo da frase, e, mais precisamente, pelo emprego de certamente, impossivel se 0 locutor se assimila ao enunciador asseverando p. Eu pego a vocés para me descreverem seus esquis, que nfo conhego. Vooés poderio me responder “Eles sio compridos, mas leves", ainda que fosse bi- zarro, na mesma situacdo, anunciar-me: “eles so certamente compri- dos, mas leves”. E que cerlamente marcaria, de sua parte, um acordo tardio com a assergao de outra pessoa, atitude que néo corresponde bbem ao que pego a voces, a saber, fazer uma descrigo. Aqui ainda é, pois, Util, para descrever a frase, quer dizer, a entidade lingiifstica, supor que ela distingue entre o locutor e 0 enunciador, e comporta, centre suas instrugdes, diretivas para determinar, no momento em q se interpreta 0 enunciado, a quem se deve atribuir estes papéis. 215 A partir desta distingfo, aparece uma disting%o como cotolitio, que concerne a0s atos realizados. Disse que 0 enunciado complexo “certamente o tempo esté bom, mas estou com problemas nos pés", cuja responsabilidade global é atribuida ao locutor X, coloca em cena dois enunciadores. O primeiro ergumento a favor de esquiar, dizendo que faz bom tempo. Mas o locutor se assimila a um segundo enunci dor, ao que argumenta contra a safda planejada, ainda que o primel- 10 seja assimilado a outra pessoa, talvez, por exemplo, ao alocutério, Isto nao impede que se realize um ato de linguagem tanto na primeira parte do enunciado quanto na segunda. Na segunda, realizase um ato “primitivo”, ato de afirmagao, e, mais particularmente, de afirmacio ‘argumentativa. O que se faz, na primeira, € um ato derivado, que chamo “ato de concessio”: ele consiste em fazer ouvir um enunciador argumentando no sentido oposto ao seu, enunciador do qual se dis- tancia (dando-the, no caso, pelo menos das concessdes introduzidas por cerlamente, uma certa forma de acordo). Deste ato tira-se proveito do mesmo modo que do ato de zombaria de que acabo de falar. Gra- sas concessio, possivel construit-se a personagem de um ho- mem de espirito aberto, capaz de levar em consideracio 0 ponto de vista dos outros: todo mundo sabe que @ concessio é, entre as estra- tégias de persuasio, uma das mais eficazes, essencial em todo caso, 20 comportamento dito “liberal”, Meu iltimo exemplo relativo aos fendmenos de pressuposigo ‘que podem ser tratados melhor, espero, do que tenho feito até aqui, ‘no quadro da polifonia e da concepcao “teatral” dos atos de lingus- gem. Seja 0 mais tradicional dos enunciados com pressupostos: “Pedro parou de fumar”, Em Dire et ne pas Dire, propunha ver neste caso a realizago pelo locutor de dois atos, um de pressuposicao, relativo a0 pressuposto “Pedro furava anteriormente”, e outro de assergio, rele- tivo a0 posto “Pedro nao fuma atualmente”. Eu o descreverei hoje de um modo um pouco diferente. Diria que ele apresenta dois enun- ciadotes, E: e E2, responsaveis, respectivamente, pelos contetidos, pres- suposto ¢ posto. © enunciador Es ¢ assimilado ao locutor, © que per- mite realizar um ato de afirmago. Quanto ao enunciador Ex, aquele segundo 0 qual Pedro fumava anteriormente, ele é assimilado a um certo SE *, a uma voz coletiva, no interior da qual o locutor esté loca Tizado (utilizo neste ponto as idéias de Berrendonner. 1981. Cap. II). * Tradurimos aqui o ON francés. Este SE, entfo, € relative & forma de inde- terminagio. 216 Assim, no nivel dos enunciadores, nfo hé, pois, 0 ato de pressupo- sigdo. Mas 0 enunciado se presta, entretanto, para realizar este ato, de um modo derivado, na medida em que faz ouvir uma voz coletiva denunciando os erros passados de Pedro. A pressuposi¢ao entraria, assim, na mesma categoria dos atos de zombaria ¢ concesséo. Espero ter mostrado, a partir destes trés exemplos, 0 que a ana- logia, ou a metéfora teatral pode fornecer ao estudo estritamente lin- giiftico. Dizendo que o locutor faz de sua enunciaglo uma espécie de representagio, em que a fala ¢ dada a diferentes personagens, enunciadores, alarga-se a nogaio de ato de linguagem. Nao hé mais nenhuma razo para privilegiar aqueles que sio realizados de maneira ilagéo do locutor a um enunciador), € se pode considerar como igualmente “normais” aqueles que sio realizados pela prépria escolha dos enunciadores, aqueles que sto realizados enquanto encenadores da representago enunciativa. Nem num caso nem no outro se fala de modo imediato, mas sempre com a mediagéo dos enunciadores. N.B. 1. — Este tratamento da pressuposigio permite precisar 0 estatuto pragmético das nominalizagées: que engajamento pessoal esté implicado pela utilizagao, como sujeito gramatical de um enunciado, de um grupo nominal do tipo “a degradagao da situacdo” ou “a me- Ihoria do nfvel de vida”. Antes, dispondo s6 dos conceitos de afir- magéo ¢ de pressuposigio, teria respondido que se pressupde que a situagdo se degrada ou que o nivel de vida melhora. Resposta que levanta dificuldades porque se pode continuar o discurso negando a tealidade destes fatos: assim, “A melhoria do nivel de vida é uma pura invengao do governo”. Diria agora que 0 caracterlstico da no- ‘minalizagao 6 fazer aparecer um enunciador, a0 qual 0 locutor nfo esté assimilado, mas que € assimilado a uma voz coletiva, a um SE. Quando a incluso do locutor neste SE, 0 fenémeno sintético da no- ‘minalizagao nio diz. nada a respeito, nem positiva nem negativamente. Se, por tal ou tal razio exterior & frase, fica claro que o locutor faz parte do SE, obter-se-& um ato derivado de, pressuposi¢ao, mas isto nao € senéo uma possibilidade entre outras N.B. 2, — Destas observagées sobre 0 ato de pressupor resulta, ainda, quanto € necessério distinguir — como propus na seccfio X1T — entre o locutor enquanto ‘tal (L) e 0 locutor enquanto ser do mun- do @). Acabo de dizer, com efeito, que quando hi pressuposicfo, assimila-se um dos enunciadores a um SE, no interior do qual o 217 locutor esté localizado. Objetar-mefo que a pressuposigio torna-se, esta concepsao, um caso particular das afirmagdes que chamei “pri. mitivas", quer dizer, daquelas que sio realizadas pela assimilagao do locutor e de um enunciador. Para responder, & necessétio especificar que o locutor integrado 20 SE néo € L, o locutor enquanto tal, mas A, i jstente fora do discurso (mesmo se for identificével somente por seu papel de L no interior do discurso). O ‘que significa que © contetido pressuposto nfo é mais levado em conta nna escolha do enunciado (escolha imputada a L). Explico, assim, que dizendo “Pedro Parou de fumar", nfo se presenta como afirmando, na sua fala atual, que Pedro fumou antes. Simplesmente representa-se esta erenga no interior de seu discurso, € se Ihe dé como sujeito, entre outras pessoas, o individuo que estava © esté ainda fora de sua enunciagdo. Do que resulta esta caracteristica da pressuposi¢o: Assumindo a responsabilidade de um contetido, niio ‘se assume a responsabilidade da assergdo deste contetido, no se faz desta assercao o fim pretendido de sue propria fala, (0 que implica ‘2 impossibilidade, definidora, para mim, da pressuposigéo, de enca- dear com os pressupostos). (Tradugdo: Eduardo Guimar 8) 218 BIBLIOGRAFIA ANSCOMBRE, J. 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