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Maria Esther Maciel. » SETTE LETRAS MEMORIAL. Pensar formas contempordneas de identifica- ¢Go assumidos pelos atores culturais na América Latina 6 0 objeto deste livro. A dindmica que a ques- {Go comporta néo se resume d diversidade de pers- pectivas e propostas de leitura apresentadas, muito distintas entre si. Antes se produz — América em movimento — enquanto instdncia de interlocucio e nfersecGo discursiva, marcada pela heterogeneida- que confere co literdrio um suplemento de signi- ficactio étnica, sexual ou politica. Na sua singularidade geografica e simbélica, 0 1 de enuncia¢o dos textos aqui reunidos 6, mais "do que uma circunstancia historica inelutdvel, um ~ construto que revela ser, ao mesmo tempo, condi: dio e producio de alteridade. De forma ora mais, fa menos intensa, 0 que se dé o ver 6 0 modo. Como poetas, ficcionistas, dramaturgos e viojantes operam deslocamentos no espaco candnico da tra- Pisin Jafino-americana ¢ ocidental, instaurando ex- pansdes ¢ descentramentos, rearticulacoes e novas os de sentido. ® Esse movimento da América tem como deman- 4 travessia de fronteiras culturais, a que o texto sponde com a formulacGo de micropoliticas entendidas como invencio de linguagens las, copazes de contraporse 4 dominante dora. £0 que este livro compésito procura luralizando tradicoes, problematizando jando, enfim, a radicalidade do ex- id. Wander Melo Miranda AMERICA EM MOVIMENTO AMERICA EM MOVIMENTO Ensaios sobre literatura latino-americana do século XX Organizadores Maria Esther Maciel * Myriam Avila * Paulo Motta Oliveira SETTE LETRAS Copyright © 1999 Maria Esther Maciel Projeto gréfico e capa Tatiana Brasil Produgio Grafica Flavio Estrella MACIEL, Maria Esther et alii América em movimento ~ Ensaios sobre lite- ratura latino-americana do século XX ~ Maria Esther Maciel et alii — Rio de Janeiro : Serre Letras, 1999. 268p. 1. Critica da literatura hispano-americana. I, Tieulo CDD 860.09HA 1999 Viveiros de Castro Editora Ltda. Rua Visconde de Carandaf, 6 — Jardim Botanico Rio de Janeiro — RJ — CEP 22460-020 e-mail: sette@ism.com.br ‘Tel/Fax: (021) 540-0037/ 540-0130 /540-7598 Niicleo de Estudos Latino-Americanos Faculdade de Letras da UFMG Av. Anténio Carlos, 6627 Belo Horizonte - MG - CEP 31270-901 e-mail: cel@letras.ufmg br Tel.: (031) 4995133 NUCLEO DE ESTUDOS LATINO-AMERICANOS (NELAM) DA FACULDADE DE LETRAS DA UFMG Diretora Maria Esther Maciel de Oliveira Conselho administrativo Adriana Silvina Pagano Georg Otte Graciela Inés Ravetti de Gomez Mariangela Andrade Paratzo Sara del Carmen Rojo de la Rosa Grupo de pesquisa Adriana Silvina Pagano Ana Maria Clark Peres Eliana Lourengo de Lima Reis Georg Otte Gléucia Renate Gongalves Graciela Inés Ravetti de Gémez Liicia Helena de Azevedo Vilela Luis Alberto Ferreira B. Santos Maria Esther Maciel de Oliveira Mauricio Salles de Vasconcelos Myriam C. de Aratijo Avila Paulo Motta Oliveira Sandra Regina Goulart Almeida Sara del Carmen Rojo de la Rosa Silvana Maria Pesséa de Oliveira Departamentos Letras Anglo-Germénicas Letras Romdnicas Letras Vernéculas Semiética e Teoria da Literatura Vinculo institucional Centro de Estudos Literdrios da Faculdade de Letras da UFMG wwwiletras.ufmg.br/cel SUMARIO APRESENTAGAO Maria Esther Maciel ..... INTERSECOES POLITICAS DE INTERAGAO CULTURAL NA AMERICA LATINA: a tradugio no didlogo Brasil-Argentina Adriana Silvina Pagano .... CARTOGRAFIAS DO PRESENTE: POESIA LATINO-AMERICANA NO FINAL DO SECULO XX Maria Esther Maci OS ESTUDOS CULTURAIS E O TEATRO LATINO-AMERICANO DO FINAL DO SECULO Sara Rojo de la Rosa 49 ALITERATURA INFANTIL LATINO-AMERICANA: Brasil ¢ Argentina Ana Maria Clark Per . 69 TERRITORIOS TEXTUAIS, REGIOES CULTURAIS: mulheres intelectuais na narrativa feminina latino-americana contemporanea. Graciela Ravetti IDENTIDADES PERIPATOGRAFIAS: Consideracées sobre o motivo da viagem na literatura latino-americana contemporanea, a partir de Héctor Libertella Myriam Avila ... HISTORIA, CULTURA E IDENTIDADE: O CASO DO MEXICO Georg Otte ..... UM CACHORRO CORRE NA CIDADE VAZIA Luis Alberto Brandao Santos..... CONTAR HISTORIAS, NARRAR A BRASILIDADE Gléucia Renate Gongalves MEMORIA E MONTAGE! de Silviano Santiago Eliana Lourengo de Lima Reis. INTERLOCUGOES NA BARRIGA DE UM MONSTRO?: os rumos da critica literdria feminista na América latina no final do milénio Sandra Regina Goulart Almeida 195 VOZES DAS AMERICAS: as narrativas dos povos indigenas do Brasil, Estados Unidos e Canada Liicia Helena de Azevedo Vilela .... . 211 i-Strauss e Caetano Veloso . 223 TERRA DE SOL: ENTRE PORTUGAL EAAMERICA Paulo Motta Oliveira ..... vse 235 3 LUGARES DIFERENTES Mauricio Salles Vasconcelos ... woe 257 APRESENTACAO Este livro reine ensaios de quinze professores integrantes do projeto de pesquisa América em movimento: relagées interculturais da Kiteratura latino-americana no sec. XX, vinculado ao Nicleo de Estudos Latino-Americanos (NELAM) da Faculdade de Letras da UFMG e¢ financiado pela Fundagao de Desenvolvimento da Pesquisa (UFMG) entre 1997 e 98. O projeto, que envolveu docentes de quatro departamentos da Faculdade de Letras da UFMG, buscou investigar, sob o prisma do comparativismo contempordneo, as confluéncias culturais da América Latina ao longo do século XX. Elegendo a literatura como ponto de refer€ncia e o Brasil deste final do século como lugar de enunciagao, pretendeu-se estudar a multiplicidade de tragos e tendéncias que se entrecruzam na literatura latino-americana (em suas vertentes brasilei- ra e hispano-americana), bem como suas relagdes com outras culturas dos demais continentes. Para isso, foram investigados, 4 luz dos referenciais histéricos e tedricos deste final de século, varios campos de produgfo literdrio-cultural: as literaturas canénicas, a literatura de mu- lheres, a literatura infantil, 0 teatro, a tradugdo, os relatos de viajantes, o periodismo literério, a critica literdria ¢ as expressdes poéticas da con- temporaneidade. Essa opgao pela multiplicidade procurou atender as exigéncias do préprio contexto atual, marcado pela flexibilizagao das fronteiras econémicas ¢ culturais entre povos ¢ nagées, ¢ pluralizado estetica- mente pela confluéncia de linguagens, lugares e temporalidades di- versas. Daf esta coletanea funcionar como uma espécie de constelagao, uma combinatéria de vozes em movimento, advindas do Brasil, Uru- guai, Argentina, México, Chile, Cuba, Franga, Portugal, Estados Uni- dos e Canada. Vozes que tém como ponto de intersegao o continente latino-americano. Ainda que a prépria noga’o de América Latina tenha estado sempre associada a idéia de multiplicidade, tanto no campo cultural quanto geografico e histérico, pode-se dizer que s6 nestas dltimas décadas ela comegou efetivamente a problematizar-se e a ser proble- matizada enquanto um universo plural, uma realidade em continuo movimento rumo a uma identidade cada vez mais repleta de singula- ridades dissonantes. E importante, inclusive, observar como o conceito de América Latina tem se flexibilizado ¢ expandido para além de seus préprios limi- tes geogréficos ¢ das questées de ordem lingiifstica ou histérica. Como explica Ana Pizarro, se, por um lado, assiste-se 4 “incorporagao dos indi- genismos e afroantilhismos” que compéem a cultura do continente, além dos universos transculturais, como os dos latinos e chicanos que vivem nos Estados Unidos, por outro, “o Brasil e a América Hispanica come- gam a desenvolver um reconhecimento mituo, ainda que lento e, curi- osamente, mais dificil do que as diferengas idiomdticas podem expli- car”.' Dificuldade esta, entretanto, que vem sendo arrefecida nao sé pela criagao e o incremento do chamado Mercosul, que acaba por ampliar seu significado como bloco econémico ao funcionar também como pélo de trocas culturais e como fator de integragdo, mas sobretudo pelo cres- cente didlogo critico-criativo que escritores, artistas, criticos, tradutores ¢ intelectuais vém mantendo — fora do controle do poder econdmico — com as alteridades culturais dos territ6rios vizinhos. Como afirma ainda Ana Pizarro, “o estudo das fronteiras cultu- rais € um dos campos mais abertos e necessdrios para o desenvolvimen- to dos estudos latino-americanos em nosso 4mbito, por nos conduzir aos problemas que se desenham atualmente em torno dos processos de desterritorializagao ¢ das novas mestigagens produzidas pela globaliza- ¢40”? Daf a nossa proposta de investigar, a partir da literatura, tanto as ' PIZARRO, Ana. América Latina: Palavra, literatura ¢ cultura, Sao Paulo, Edito- ra da Unicamp/Memorial da América Latina, 1995, p. 27. ? Idem, ibidem, p. 28. 10 relagées culturais entre o Brasil ¢ outros paises latino-americanos, quanto as da América Latina com o contexto internacional, procurando anali- sar os contatos culturais como trocas, como rotas de méo-dupla, enfim como processos de transculturaga4o. Foi sob essa perspectiva que optamos por leituras em contrapon- to, a partir de instrumentais teéricos da Literatura Comparada, esta compreendida como processo de iluminag&o recfproca de textos de procedéncias e temporalidades diferentes. Ou, como elucida Eneida Maria de Souza, como um caminho teérico capaz de “conjugar a tradi- ao de culturas nacionais com as estrangeiras — abstraindo-se da con- cepgdo estreita de lugares regionalmente marcados — e produzir obje- tos tedricos que revelem o efeito desconstrutor das relagées intercultu- rais”.? Nesse didlogo com outras tradigées culturais, o pesquisador lati- no-americano contemporaneo deve estar consciente de seu lugar de enunciagao. Nao falamos simplesmente como o outro do Ocidente ou do que se convencionou chamar de Primeiro Mundo. Se somos um outro constitufdo da assimilagao de vozes e herangas distintas, como pontuou Eliana Lourengo Lima Reis, somos também sujeitos ativos, capazes de produzir nossos préprios discursos. Mais do que nunca cabe A América Latina assumir-se como um locus de enunciagao alterna- tivo (colonial, pés-colonial ou periférico) que nao esté situado fora do chamado centro, mas num outro centro em confluéncia com varios ou- tros. Daf este trabalho que ora apresentamos se configurar como uma tentativa de marcar o Brasil como ponto de referéncia intelectual, como um locus em relago dialégica com outros /oci de enunciagio. Diante dos discursos globalizantes ¢ globalizados, em relacao aos quais nao podemos nos furtar de uma visdo critica, acreditamos que deste continente hibrido e multifacetado devem partir discursos que recusem a hegemonia e desmontem a nogio apaziguante de totalidade. Como sugere Myriam Avila, € na diregao da diversificagao das vozes, ¢ nunca na de uma uniio artificial e conciliadora, que deve atuar 0 tedri- co latino-americano, se quer que sua interlocug4o com outros centros produtores ultrapasse a mera “politica da boa vizinhanga”. SOUZA, Eneida. Trago critico. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1994, p. 21. igo ll Os ensaios aqui reunidos se distribuem em trés segGes tematicas. A primeira, “Intersecdes”, entrecruza literaturas do Brasil ¢ da América Hisp4nica, com énfase na produgao contemporanea nos campos da nar- rativa, do teatro, da poesia, da literatura infantil e da traducdo. A segunda, “Identidades”, volta-se para espagos culturais especificos, que podem ou nao coincidir com os limites da nacao, enfocando-os desde a Argentina, o México, o Uruguai e o Brasil. A tltima, “Interlocugées”, busca comparar expressdes culturais do Brasil e da América Hispanica com as de outros continentes, no 4mbito do periodismo, dos relatos de viagem, da proble- mitica indfgena, das poéticas contempordneas e do feminismo. Nossos agradecimentos 4 FUNDEP que financiou o projeto e contribuiu para o fortalecimento do Niicleo de Estudos Latino-Ameri- canos (NELAM) enquanto espago de pesquisa e intercAmbio cultural; ao Centro de Estudos Literérios (CEL) da Faculdade de Letras da UFMG, ao qual o NELAM esté vinculado, pela atengao dispensada as nossas atividades; ¢ ao Memorial da América Latina, que, através de Marina Heck e Reynaldo Damazio, apoiou a publicagao deste livro. Agradecemos também, de maneira especial, a Ana Liicia Almeida Gazolla, professora do Depto. de Letras Anglo-GermAnicas e atual Vice- Reitora da UFMG, pelo incentivo que nos deu durante o desenvolvi- mento do projeto; e a Marcio Pimenta, secretdrio do Centro de Estudos Literdrios, pela dedicagdo e competéncia com que nos auxiliou ao lon- go de todo o trabalho. Maria Esther Maciel Coordenadora do Projeto INTERSECOES POLITICAS DE INTERACAO CULTURAL NA AMERICA LATINA: A TRADUCAO NO DIALOGO BRASIL-ARGENTINA Adriana Silvina Pagano A diferenga de abordagens literdrias ensaiadas em décadas ante- riores, estudar a América Latina no contexto dos anos 90 requer um redimensionamento nio apenas do objeto de estudo como também das perspectivas utilizadas para indagar esse objeto. Se a necessidade de tecer uma rede de significagdes que conformasse a unidade da América Latina era a pedra de toque de projetos literérios das décadas de sessen- tae setenta (por ex. América Latina en su literatura),' estudar a diversida- de dentro dessa unidade tornou-se imperioso no contexto dos anos oitenta, como 0 ilustra o projeto dirigido pela pesquisadora Ana Pizarro (América Latina: palavra, literatura e cultura).’ Nos anos 90, a tensio unidade/diversidade j4 nao mais constitui o principal foco dos estudos, passando-se a examinar diferentes formas de identificagao associadas ao latino-americano. Juntamente com essa mudanga de énfase, a necessidade de se reformular a abrangéncia dos estudos latino-americanos também vem sendo colocada, principalmente no que diz respeito a integragao efe- tiva de outros espagos — como o brasileiro e o caribenho — ao bloco hispano-americano, geralmente associado ao rétulo “latino-america- no”. Historicamente, a separagao desses espagos tem sido motivada pela experiéncia ¢ pelo vinculo lingiifstico ¢ cultural estabelecido pelo colonizador. Embora diversos projetos tenham reiteradamente apon- tado para os pontos comuns as empresas colonizadoras ¢ para uma experiéncia pés-colonial andloga, a integragio do Brasil e do Caribe nos estudos latino-americanos realizados na América Hisp4nica ain- da apresenta um cardter incipiente. Dentre as tentativas de integrar, por exemplo, os corpus brasileiro ¢ hispano-americano, podemos sa- lientar o trabalho do critico Angel Rama, que tem uma continuidade no percurso da pesquisadora Ana Pizarro, o trabalho do critico Anto- nio Candido, as pesquisas desenvolvidas em centros académicos, como 15 o Centro de Estudos Latino-Americanos Angel Rama na Universida- de de Sao Paulo, e 0 trabalho desenvolvido nos cursos de pés-gradu- agao de diversas universidades brasileiras ¢ hispano-americanas. Em muitos desses casos, entretanto, prevalece uma abordagem de inclu- s4o ou abertura para a insergo do Brasil junto 4 América Hisp4nica, sendo escassos os estudos comparados ou de entrecruzamento de ambos esses espagos. No Brasil, por exemplo, destacam-se os estudos pioneiros dos criticos Jorge Schwartz? e Raul Antelo,' que conside- ram as vanguardas brasileira e hispano-americanas sob uma perspec- tiva interativa e de significagées negociadas. Um fato histérico ocorrido na década atual tem, entretanto, con- tribufdo para uma nova experiéncia de aproximagao do Brasil ¢ de al- guns dos pafses da América Hisp4nica. Trata-se do projeto de integra- ¢a0 dos pafses do cone sul, o Mercosul, que, embora rememorando antigos projetos de integracionismo latino-americano, o faz num con- texto hist6rico, cultural e tecnolégico diferente. Para ilustrar a relevan- cia do contexto no qual esté inserido esse projeto de integracio, pode- mos ressaltar algumas das propostas formuladas nas reuniées das auto- ridades culturais do Mercosul, como a celebrada em 1992 em Brasflia.> Nesse encontro, assinalam-se como agées prioritérias “o apoio a utiliza- ¢40 dos meios de comunicagio de massa [...] como meio de aproxima- gao e integragao” dos paises membros do Mercosul, “a interconexao informatizada das Bibliotecas Nacionai: ” dos respectivos pafses ea “cria- go de um banco de dados culturais regionais”. A luz das transforma- g6es produzidas pelos avangos tecnolégicos ocorridos nestas tltimas décadas, essas propostas adquirem um alto grau de exeqilibilidade, & diferenga de propostas similares realizadas varias décadas atras. Duas outras propostas dentre as formuladas nesse encontro re- vestem-se de grande significagao no Ambito dos estudos latino-ameri- canos dos anos 90: a proposta de realizagdo de “levantamentos, em cada pafs, das obras de arte oriundas dos demais paises membros” ¢ a “promogao de um fundo editorial do Mercosul, com os livros mais representativos de cada pafs, e suas respectivas tradugées”. Essas ini- ciativas apontam para uma abordagem concreta de integragao, qual seja o entrecruzamento dos acervos culturais dos paises latino-ameri- canos membros e a promogio do intercdmbio editorial, incluindo-se 16 a tradugio como forma de intercdmbio efetivo entre os paises de fala espanhola e 0 Brasi A emergéncia um tanto tardia do estudo da tradugao enquanto processo relevante nas relacées interculturais latino-americanas estd vin- culada, em parte, 4 propria incipiéncia dos Estudos da Tradugio, disci- plina que se consolida nos anos oitenta e que aborda a tradug3o sob uma perspectiva interdisciplinar, entendendo-a, nao meramente como fato lingiifstico, mas como processo de transformagio intercultural. O carter limitado da abordagem tradutolégica tradicional, que reduzia a traducio a um processo inter-lingiifstico e cuja unidade operacional era sobretudo a palavra, sempre exerceu pouca atragao aos estudos lite- rarios e culturais. Nesse sentido, a mudanga de foco tem aberto diversos caminhos para o estudo da tradugio, transcendendo o mero conceito de transferéncia interlingiifstica: a tradugdo enquanto transformagao do texto original, deslinearizagao da histéria; a tradugdo enquanto interligagdo entre duas culturas diferentes e, por vezes, assimétricas; a tradugio como processo de criagio literéria, ou seja, como geradora de novas formas textuais e novas formas de conhecimento; a tradugao como introdutora de novos paradigmas culturais.* Como processo de transferéncia intercultural ¢ de reescrita de tex- tos que opera nos encontros de diferentes culturas, histrias ¢ memérias, a traducio constitui-se numa pritica discursiva que deixa entrever al- guns dos processos decorrentes das tentativas de conformagao de uma identidade prépria ¢ de interagéo com 0 Outro. Traduzir envolve uma forma de estabelecer um didlogo com uma cultura alheia, didlogo este que reatualiza um texto oriundo de um momento histérico—cultural determinado eo insere num novo contexto, num movimento nao ape- nas unidirecional de transplante do texto original para a cultura receptora, mas, sobretudo, bidirecional, devolvendo a cultura do texto original uma leitura renovada do mesmo. Em sua selegao de textos, a tradugio, tam- bém, legitima os textos originais escolhidos, uma vez que os reafirma enquanto representativos da cultura com a qual se esta dialogando. O didlogo intercultural estabelecido através da tradugao aponta também para aspectos extrinsecos, contextuais, dos contatos entre diver- sas culturas, tais como as circunstancias histéricas que rodeiam os mo- mentos de aproximacio entre duas culturas, as representagdes cons- 7 trufdas da cultura outra, a forma de introdugdo de uma cultura alheia, etc. Nesse sentido, o que, como, por que ¢ para que uma cultura traduz outra sao perguntas cujas respostas nos permitem compreender muitos dos processos pelos quais uma cultura passa, processos que s6 podem ser visualizados através de praticas especfficas como a tradugio. Os estudos criticos ¢ culturais contemporaneos vém apontando o papel da traducAo nos contatos interculturais, especificamente no de- senvolvimento das chamadas literaturas nacionais, como chave para apreender a hist6ria da construcio discursiva de uma nagio e da cons- trugao de identidades inter-nacionais ou transnacionais, como, por exem- plo, a constituida pelo referente “América Latina”. Nessa perspectiva, podemos refletir sobre os didlogos interculturais estabelecidos entre na- g6es latino-americanas ¢ outras nagées do mundo, bem como a interagao entre as nagées latino-americanas entre si. Esses processos permitem capturar a complexidade das formagées discursivas nacionais da Améri- ca Latina e a propria rede discursiva que sustenta tal identidade supranacional. Examinar esses processos a partir do “entre-lugar” da traducio ¢ do tradutor permite um tratamento da identidade como pro- cesso dindmico, nao cristalizado em dicotomias bindrias, tais como ori- gem/cépia, e caracterizado por uma tentativa de resoluco da tensio produzida pela incorporagao de um texto outro numa cultura nacional. Nos contatos interculturais, todavia, o estudo da tradugéo pode também evidenciar. momentos de aproximagio de uma nagdo com ou- tra € estes, por sua vez, podem constituir-se em momentos de reajuste das imagens que cada nagio constr6i da outra. Focalizando o caso espe- cifico do didlogo Brasil-Argentina, os momentos de tradugdo mitua entre essas duas nagées podem ser analisados como sinais de redimen- sionamento das relagées interculturais que essas nagées estabelecem. A presenga da tradugio no contato Brasil-Argentina reveste-se de significagao, uma vez que, por se tratar de uma situagdo na qual se poderia dispensar a tradug3o — baseando-se num argumento que in- dica a mitua inteligibilidade das linguas faladas —, esta se torna um gesto explicito de interagao cultural. Em outras palavras, nos momen- tos em que a tradugao € chamada a exercer um papel nesses contatos interculturais, ela envolve um gesto deliberado de intervengao cultural, uma vontade explicita de incorporar a literatura do outro ao corpus de obras escritas na lingua nacional. 18 O mapeamento de tais momentos de interag’o através da tradu- Gao reveste-se de um cardter de pesquisa arqueolégica, de indagacao do passado para nele iluminar caminhos pouco trilhados pela pesquisa historiografica da traducao e das relagées interculturais entre os dois paises considerados. Essa tarefa de releitura do passado vem ao encon- tro das propostas de Lawrence Venuti para os Estudos da Tradugio. Trata-se, para Venuti, de “tragar a genealogia do momento presente en- quanto examinamos o passado & procura de safdas, teorias ¢ praticas alternativas de tradugao”.” No caso especifico do projeto Mercosul, a idéia de se fazer um levantamento de acervos revela, também, uma modalidade especifica de planejamento do intercambio cultural, que envolve o mapeamento do passado, a investigacao dos gestos de integragao latino-americana que outrora existiram. Trazer A luz esse passado, revisar uma historia pouco focalizada pelos holofotes da critica latino-americana pode re- presentar uma forma de reescrever a hist6ria dos diversos momentos de integragao entre as nacées latino-americanas. Diante da classica lamentagao sobre o desvio do olhar latino-americano para os espagos europeu ¢ norte-americano, a reconstituigao das relagées interculturais intralatino-americanas pode fornecer elementos relevantes para com- preender o complexo processo de olhares ¢ identificagées pelo qual atravessaram e ainda atravessam as nagées latino-americanas. O mapeamento do passado, mais especificamente do passado que ora focalizo — o das relagées interculturais Brasil-Argentina através de tradugées literdrias — precisa abranger diferentes percursos, que, em- bora provenham de esferas diferentes, podem ser interpretados conjun- tamente. No caso especffico do intercambio cultural Brasil-Argentina, evidenciado pela tarefa tradutéria entre esses dois paises, podem ser observadas duas fontes principais de pesquisa: *o intercAmbio cultural institucional através de polfticas institucionais de tradugdo ou co-edigao; * 0 intercambio cultural nao institucional, que obedece a iniciativas comerciais ou empreendimentos culturais que estao inseridos no con- texto do mercado editorial do momento; * ¢ os entrelagamentos de ambos, quando existentes. 9 Neste trabalho, gostaria de mostrar a andlise de um levantamento feito sobre o intercdmbio tradutério Brasil—Argentina no perfodo com- preendido entre as décadas de 30 e 50. As condigdes que propiciaram o didlogo Argentina—Brasil nesses anos podem ser localizadas tanto na esfera histérico—politica como na esfera artistica, tendo como ponte prin- cipal diversos géneros literdrios. Para compreender e contextualizar a tarefa tradutéria levada a cabo nesse perfodo histérico, cumpre tragar um breve panorama do contexto polftico~cultural dessas décadas. As décadas de 30 a 50 significaram, no Brasil e na Argentina, um Processo de industrializagao crescente, urbanizagao e surgimento de um dos meios de comunicagao de massa, 0 radio, que naquela época teve uma repercussao similar 4 que tem hoje seu sucessor a partir da década de 50: a televisio. Houve também um aumento no consumo pelas faixas da populagao que até entdo estavam exclufdas do circuito comercial; um aumento do némero de alfabetizados, gracas a polfticas de fomento a escolaridade, ¢ um ntimero crescente de leitores de livros revistas populares.* A diferenga dos leitores eruditos ou pertencentes a uma classe social mais afluente, que geralmente tinha acesso a volumes importa- dos ou de valor elevado, o novo piblico leitor nao tinha acesso a livros importados ou de dificil obtengéo. Também nio lia livros importados em linguas estrangeiras, necessitando, assim, de sua tradugao. Curiosa- mente, o novo ptblico leitor estava aproximando-se da leitura, nao sé por necessidade escolar ou profissional, mas também como forma de lazer. Estava-se caracterizando, assim, uma demanda por livros de en- tretenimento ou ficcio ligeira, de baixo custo ¢ adquiriveis no espaco de convivéncia cotidiana do leitor. A demanda por artigos de consumo tais como livros e revistas, anteriormente restritos apenas a alguns setores da sociedade, levou A necessidade de traduzir romances, folhetins, tratados, textos académi- cos, todos eles destinados a um ptiblico que expandia sua escolaridade © comegava a vivenciar suas primeiras experiéncias de recepcao massiva de informagio, sobretudo através da literatura de lazer. As editoras traduziam livros didaticos, tratados académicos ¢ ma- nuais; os jornais publicavam romances em folhetim traduzidos; as r4- dios traduziam roteiros de radionovelas, e as empresas cinematogréfi- 20 cas traduziam e adaptavam roteiros de cinema, sendo que muitas das estérias em quadrinhos, género em crescimento, eram também traduzidas.’ Assim, 0 00m tradutério ¢ editorial registrado na Argenti- na e no Brasil naquelas décadas est4 vinculado a ascensao das classes médias ¢ ao seu acesso ao estudo € aos meios de imprensa. No perfodo escolhido para esta investigagdo, aquele compreen- dido entre as décadas de 30 ¢ 50, momento de ouro da tradugdo no Brasil e na Argentina, podemos observar, em ambos os paises, iniciati- vas que, além da tradugao de textos das literaturas européia, norte-ame- ricana, indiana e asiatica," propiciaram o didlogo intra-latino-america- no Argentina—Brasil, tanto na esfera institucional como na esfera nao institucional. Para compreender e contextualizar essas iniciativas, tor- na-se necessdrio observar o lugar dos pafses latino-americanos no con- texto politico mundial dessas décadas. A década de 30, marco inicial deste levantamento, representa 0 que podemos denominar de virada “introspectiva” dos pafses latino- americanos apés a crise mundial de 1929, qual se acrescenta 0 efeito de isolamento da América Latina produzido pela Primeira Guerra Mundial. Como o crftico Gerald Martin'' aponta, a crise econdmica mundial de 1929 teve uma repercussio significativa na politica dos Estados Unidos em relagao aos paises da América Latina. Os Estados Unidos concentram-se em sua polftica doméstica, assim como uma Europa reestruturada apés a Primeira Guerra Mundial mantém-se ocupada na reconstrugio de seus sistemas econdmicos e de aliangas politico-diplomaticas. Nesse contexto, os pafses latino-americanos sen- tem-se fora do foco internacional ¢ dirigem sua atengio para a reflexao acerca das representagées da prépria identidade, concentrando-se na definigdo de conceitos tais como a argentinidade, a brasilidade, a mexicanidade, etc. Esse “olhar introspectivo” dos pafses latino-ameri- canos — movimento recorrente ao longo do século XX, geralmente em consonancia com momentos de grandes mudangas em nivel interna- cional e nacional — suscita, na Argentina e no Brasil, o nascimento de empreendimentos culturais, como é 0 caso do surgimento de institui- g6es, casas editoriais e grupos intelectuais que buscam repensar a cultu- ra nacional no contexto internacional.” 21 No Ambito editorial, fatores tais como a Guerra Civil Espanho- la, que motivou o traslado de numerosas editoras espanholas para a Argentina” (Sudamericana, Emecé, Losada)," e a Segunda Guerra Mundial, que dificultou a importagao de livros'® e o contato com as metropoles européias, propiciaram a efervescéncia editorial ¢ tradutéria dessas décadas.'* Longe de operar em detrimento das pu- blicagdes de escritores nacionais, a tarefa tradutéria contribuiu, tanto no Brasil como na Argentina, para a consolidagéo do mercado do livro como um todo, incluindo a produgao nacional,’ ¢ ativou a for- magio e expansao do piblico leitor.'* Signo do crescimento do mer- cado editorial nesse perfodo é o surgimento de editoras como a Globo ea José Olympia, no Brasil ¢ Claridad, Iman, Americalee e Santiago Rueda, na Argentina. Em ambos os paises, verifica-se uma iniciativa institucional, go- vernamental, de expansao da educagao para um setor mais amplo da populagao. Assim, a educagio e a disseminagao do livro somam-se a expansio literdria propiciada pela tradugdo. A expansao das ativida- des editoriais ¢ tradutérias dessas décadas est4 acompanhada de refle- xées intensas a respeito da linguagem e de sua especificidade nacio- nal. Sao célebres os questionamentos de Monteiro Lobato sobre a lin- gua utilizada nos livros editados em Portugal e utilizados no Brasil, criticas estas também levantadas por escritores e tradutores argenti- nos, com relagio aos livros traduzidos e publicados na Espanha. Em decorréncia disso, tornam-se prementes, para o olhar dessas décadas, as tradugées e re-tradugées de textos publicados na Espanha e em Portugal para um espanhol e um portugués conforme o uso dessas linguas na Argentina e no Brasil. O isolamento do contexto mundial € a precariedade da legislagao da época fazem também com que, tanto na Argentina como no Brasil, alguns editores da época, como Zamora da editora argentina Claridad e Henrique Bertaso e Erico Verfssimo da Globo, nao pagassem os direitos autorais no caso de tradugées nao sofressem punigGes legais, uma vez que a lei de direitos autorais ndo tinha entrado ainda em vigor." Na realidade, o contexto internacional favoreceu, em grande me- dida, o mercado editorial argentino, que assumiu uma posigio de lide- ranga na edig&o de livros na América Hispanica. Com o isolamento 22 produzido pela Segunda Guerra Mundial ¢ a situagdo da Espanha, as editoras argentinas converteram-se em abastecedoras do mercado mun- dial de livros em espanhol, juntamente com México e Chile. Segundo Hallewell, 0 crescimento editorial no mercado hispano-falante teve um efeito lateral para os autores brasileiros, uma vez que “editoras agora présperas, com ambiciosos programas para publicar obras literdrias modernas traduzidas, passaram a interessar-se, como parceiras latino- americanas, pela inclusao da literatura brasileira contemporanea”.” A tradugio ¢ a edigo de livros de autores brasileiros em espanhol sem duvida abriam o mercado destes para outras Iinguas, uma vez que o espanhol era uma Ifngua de maior difusdo no mercado editorial mundial. No marco de um discurso latino-americanista intenso, de uma identificagio ideolégica transnacional, como foi a do movimento anar- quista em diversos paises da América Latina, e de um mercado editorial em expansdo que demandava a tradugao de obras norte-americanas, européias ¢ brasileiras, a partir dos anos 30, editoras argentinas como Im4n, Americalee, Santiago Rueda, Sudamericana, dentre outras, tra- duzem e publicam autores brasileiros classicos e contemporaneos. A Editora Claridad de Buenos Aires, filiada ao grupo anarquista francés Clarté, que tinha sua representagéo também no Brasil, cria uma série liter4ria especial, denominada “Biblioteca de novelistas brasilefios”, € traduz autores hoje consagrados, como Jorge Amado (Cacao, Mar muerto) e Montciro Lobato, e autores de grande popularidade no mo- mento, tais como Joracy Camargo, Lticio Cardoso, etc. Nos catdlogos de obras traduzidas do portugués de outras editoras constam nomes tais como os de José de Alencar (E/ guarani, Iracema), Manuel Anténio de Almeida (Memorias de um sargento de milicias), Jorge Amado, Alufsio Azevedo (O mulato), Carlos Drummond de Andrade, Graga Aranha, Jorge de Lima, José Lins do Rego, Machado de Assis, Graciliano Ra- mos, Erico Verissimo,! alguns deles ganhando varias tradugées ¢ edi- gées, fato inaudito se se pensa no custo elevado da tradugao no processo de publicagao de um livro. Como exemplo da aproximacao Brasil-Ar- gentina naquele perfodo podemos citar também a publicagao de anto- logias de poesia brasileira editadas na Argentina, como Poetas brasilenos e Nueve poetas del Brasil ¢ 0 volume Diez escritores de Brasil. Ainteragao Brasil—Argentina, realizada através de canais nao ins- titucionais ou respondendo a iniciativas empresariais, como a das edi- toras mencionadas, est4 complementada pelo didlogo entre as duas na- goes, através de polfticas institucionais de intercambio cultural bilateral. Exemplo do didlogo institucional é a criagao, na década de 30, do Instituto Argentino—Brasilefio de Cultura, com sede em Buenos Aires,” e do Instituto Cultural Brasil-Argentina, no Rio de Janeiro. Dentre seus objetivos, esto os de promover o intercAmbio cultural entre as duas nagoes ¢ forjar a solidariedade ¢ a irmandade latino-americana diante do panorama desolador de uma Europa desmembrada e belige- rante. Ambos os institutos promoveram atividades, tais como homena- gens em dias festivos das duas nagées, cursos de lingua e literatura, prémios a tradugoes e publicagées sobre a outra nacio. Visitas presiden- ciais eram acompanhadas da nomeacio de ruas com nomes patridticos brasileiros ¢ argentinos e a construgao de monumentos em homena- gem a homens ilustres das duas nagées. A radiofonia constitufa também um canal de comunicagio co- mercial e institucional. E através da rédio que se evidencia também esse didlogo Brasil-Argentina, através de programagées especfficas como “O abraco da América” (pela Radio Belgrano), a “Hora interamericana” (Radio El Mundo), e a “Hora Brasileira” (Radio Splendid). Essas emissées enfatizavam o espfrito americanista da épo- ca, a exaltagao da idéia de confraternidade, a aproximagio espiritual, a afinidade racial, espiritual e moral. No contexto dos Institutos Culturais de ambos os pafses, das ho- menagens miituas, do espfrito americanista daquelas décadas, hé duas iniciativas institucionais de intercdmbio cultural através de tradugdes entre Brasil e Argentina. Estas esto vinculadas a um convénio assinado na década de 30 entre os dois paises para a revisao dos textos de ensino de histéria e geografia utilizados nos dois pafses.* Conforme esse acor- do, ambos os governos comprometer-se-iam a “uma revisdo dos textos adotados para o ensino da histéria nacional em seus respectivos paises, expurgando-os daqueles t6picos que sirvam para excitar no Animo des- prevenido da juventude a adversdo a qualquer povo americano”. As- sim, os textos para o ensino nao podiam “conter comentérios depri- mentes de referéncia a povos estrangeiros”, deviam prever “capitulos 24 referentes as relagdes de paz ¢ comércio entre o Brasil ¢ as nagGes estran- geiras, notadamente Americanas”, destacar “atitudes, iniciativas ¢ fatos, que formam a consciéncia americanista da nossa civilizagao e consti- tuem uma seguranga dos destinos pacfficos do novo mundo.” Para atingir esses objetivos, os textos deveriam excluir “sistematicamente os temas controversos, comentérios ¢ divagacées, limitando-se 4 indicagao dos fatos. Tratando-se de assuntos internacionais, evitarao as qualificagées ofensivas e os conceitos que atinjam a dignidade dos Estados e os seus melindres nacionais”. Uma decorréncia interessante desse projeto, que encontramos documentada em publicagées, é a iniciativa de promover tradugées de livros relevantes de cada nagao em termos da construgao de uma ima- gem e explicagao da cultura, da historia e do pensamento de cada pais. Aselec&o de autores ¢ obras a serem traduzidas, possivelmente orienta- da pelo conhecimento que os escritores participantes tinham da outra nagio, revela a decisao de se estabelecer uma leitura especffica da hist6- ria e geografia nacionais. O Ministério da Justiga e Instrugdo Publica da Argentina, através de sua comissio revisora de textos de histéria e geografia americanas, edita a “Biblioteca de autores brasilefios traducidos al castellano”. O primeiro volume é traduzido e publicado em 1937 € 0 tiltimo em 1943. Sao ao todo oito textos (vide Anexo), sendo que dois deles, Os sertées e Casa-grande e senzala, foram publicados em dois tomos cada. A selegdo privilegia explicages da histéria e da cultura brasileiras, como as ofere- cidas por Pedro Calmon, Oliveira Vianna, Euclides da Cunha, Gilber- to Freyre e Ronald de Carvalho. Os autores selecionados tinham em sua maioria relagées institucionais com a Argentina, ¢ as vezes diplomati- cas, como € 0 caso de Rui Barbosa. Em contrapartida, 0 Servigo de Publicagdes do Ministério de Relagdes Exteriores do Brasil comega a publicar, em 1938, a “Colecdo brasileira de autores argentinos”. Analogamente 4 selegao de obras feita na Argentina, sdo escolhidos autores ¢ titulos representativos de uma determinada leitura e interpretagao da histéria e da cultura argentinas. Os textos, que totalizam dez (vide Anexo), abrangem desde obras clas- sicas como Bases e pontos de partida para a organizagéo politica da Repu- blica Argentina, de Juan Bautista Alberdi ¢ Recordagées da provincia, de 25 Domingo F. Sarmiento, a obras contemporaneas a esse projeto como Sintese da hist6ria da civilizagao argentina, de Ricardo Levene. Nomes que definem a selegao de obras traduzidas sao Euclides da Cunha e Gilberto Freyre, no caso brasileiro, e Sarmiento e Ricardo Gitiraldes, no argentino. Em cada caso, temos a combinagao de um autor do passado com um contempor4neo, de uma visdo do passado histérico com uma interpretagao do presente da nagao. Os sertes (1902) e Recordagées da provincia (1850) so textos representativos de uma ten- tativa de explicagao da nagio através de seus espagos e tempos interiores. Estes sao considerados elementos-chave na compreens4o da complexi- dade dos novos contornos que Brasil e Argentina estavam assumindo, a medida que os espagos urbanos cresciam e se pluralizavam lentamente, preparando o terreno para as forgas modernizadoras que irdo eclodir nas décadas subseqiientes. JA Casa-grande e senzala (1933) e Dom Segundo Sombra (1926) oferecem explicagées de duas nagdes que j4 se encontram em pleno processo de modernizagao ¢ que precisam de ancorar seu presente a um passado que fundamente e legitime um entendimento sobre a for- magio da identidade nacional. A economia “colonial” de Casa-grande e senzala e a economia “gauchesca” de Dom Segundo Sombra — eco- nomia de corpos e trocas, de sentimentos ¢ ideais — s4o apresentadas como alicerces da nagao em tempos de mudangas. Os textos brasileiros selecionados para a “biblioteca argentina”, assim como os textos argentinos escolhidos para a “colegao brasileira”, no contemplam visées problematizadoras daquelas apresentadas pelo status quo. Outras visdes € representagdes da nagdo podem ser encontra- das na selegao de obras traduzidas e publicadas pelas editoras comer- ciais que atendiam a demanda de um piblico interessado especial- mente no romance, no conto ¢ em outros géneros de leitura. Os prefacios e introdugées das séries argentina e brasileira evi- denciam a preocupagio dos organizadores com relagao ao escasso did- logo entre as duas nagGes ¢ 4 necessidade do miituo conhecimento. Em sua leitura das relagées interculturais, os prefaciadores vasculham o passado a procura de gestos de comunicagao entre Argentina e Brasil. O passado € invocado em prol de uma idéia de continuidade que, ignora- das as desavengas e conflitos, se dé como linha ininterrupta até o mo- 26 mento presente.” Assim, por exemplo, a figura de José da Silva Lisboa, Visconde de Caird, é resgatada do passado ¢ destacada por ter exercido o papel de tradutor ¢ mediador das duas nagées, ao utilizar um texto argentino, que traduz para o portugués, para enfrentar os monopolistas portugueses que defendiam o fechamento dos portos e a restrigio a0 livre comercio do Brasil.” Analogamente 4 situagao com a qual nos deparamos nas atuais discussdes sobre o Mercosul, os depoimentos dos intelectuais argenti- nos € brasileiros das décadas de 30 a 50, incluindo-se os agentes cultu- rais, tais como editores, membros da diplomacia ¢ tradutores, registram uma persistente queixa com relagao ao escasso intercmbio entre as duas nagées, apesar de sua proximidade geogréfica, histérica ¢ lingiifs- tica, Trata-se de uma queixa “persistente”, no sentido de que ela jé apa- rece em escritos anteriores ¢ serd reiterada em décadas subseqiientes até © momento atual. Frente ao panorama vasto de duas culturas que se aproximam de tempos em tempos, numa interagdo nunca de todo sufi- ciente, as avaliagées apenas enxergam a insuficiéncia do intercAmbio, sem observar a prépria trajetéria desse intercambio, que, como este tra- balho busca sugerir, pode des-velar ou mesmo compor uma histéria pouco registrada ou documentada, talvez pela prépria oscilagao dos olhares que, em alguns momentos, se encontram e, em outros, se bifur- cam ¢ se distanciam. A reconstrugao da trajetéria da critica literdria latino-americana mostra, sem divida, sua lenta caminhada rumo ao seu reconhecimento enquanto produgao auténoma e em diélogo com a critica literaria mundial. A historiografia das relagdes interculturais la- tino-americanas, juntamente com a historiografia da tradugdo na Amé- rica Latina, também podem contribuir para a insercao da histéria dos contatos intra-latino-americanos, como os que foram, sao ¢ serao teci- dos entre Argentina e Brasil, na meméria cultural das nagées latino- americanas. Trata-se, em Ultima instAncia, de reler ¢ recriar iniciativas de integragao ¢ diélogo que, embora renovadas e diferentes conforme o contexto histérico—cultural, sempre estiveram presentes. 27 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS. ANDRADE, O. de S. O livro brasileiro desde 1920. Rio de Janeiro: Catedra; Brasilia: INL, 1978. ANTELO, R. Na itha de Marapatd; Mario de Andrade !é os hispano-americanos. Sao Paulo: Hucitec; Brasflia: INL, 1986. BORELLO, R. A. Autores, situaci6n del libro y entorno material de la literatura en la Argentina del siglo XX. Cuadernos Hispanoamericanos, n.322/323, p.35- 52, abr.-mar. 1977. BRAZILIAN AUTHORS TRANSLATED ABROAD. 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Rio de Janeiro: Servigo de Cooperagio Inte- lectual/MRE, 1938. 2. De Caseros ao 11 de setembro, de Ramén Cércano; trad. J. Paulo Medeyros. Rio de Janeiro: Servigo de Cooperagio Intelectual/MRE, 1939, 3. Oragoes seletas, de Bartolomé Mitre; trad. J. Paulo de Medeyros. Rio de Janeiro: Servigo de Cooperacio Intelectual/MRE, 1940. 4. Bases e pontos de partida para a organizagao politica da Reptiblica Argentina, de Juan B. Alberdi; trad. J. Paulo de Medeyros. Rio de Janeiro: Servigo de Cooperacao Intelectual/MRE, 1941. 5. Vidas argentinas, de Octavio R. Amadeo; trad. J. Paulo de Medeyros. Rio de Janeiro: Servico de Cooperagao Intelectual/MRE, 1942. 6. Seis figuras do Prata, de Juan Pablo Echagiie; trad. Eduardo Tourinho. Rio de Janeiro: Servigo de Cooperagao Intelectual/MRE, 1946. 7. O santo da espada, de Ricardo Rojas; trad. Lauro Escorel. Rio de Janeiro: Servigo de Cooperacao Intelectual/MRE, 1948. 8. Mitre-uma década de sua vida politica, de Rodolfo Rivarola; trad. J. Paulo de Medeyros. Rio de Janeiro: Servigo de Cooperagao Inte- lectual/MRE, 1950. 9. Recordagées da provincia, de Domingo F. Sarmiento; trad. Acécio Franca. Rio de Janeiro: Servigo de Cooperacao Intelectual/MRE, 1952. 10. Dom Segundo Sombra, de Ricardo Giiraldes; trad. Augusto Meyer. Rio de Janeiro: Servigo de Cooperagio Intelectual/MRE, 1952, 31 32 BIBLIOTECA DE AUTORES BRASILENOS, TRADUCIDOS AL CASTELLANO COMISION REVISORA DE TEXTOS DE HISTORIA Y GEOGRAFIA AMERICANA — MINISTERIO DE JUSTICIA E INSTRUCCION PUBLI- CA DE LA REPUBLICA ARGENTINA 1. Historia de la civilizacién brasilefia, de Pedro Calmon; trad. J. E Payr6. Buenos Aires, 1937. 2. Evolucién del pueblo brasilefio, de Oliveira Vianna; trad. J. E Payr6. Buenos Aires, 1937. 3. Los sertones, de Euclides da Cunha; trad. Benjamin de Garay. Buenos Aires, 1938. (Vol. 1) 4. Los sertones, de Euclides da Cunha; trad. Benjamin de Garay. Buenos Aires, 1938. (Vol.II) 5. El emperador Don Pedro II, de Afonso Celso; trad. J. E. Payré. Buenos Aires, 1938. 6. Conferencias y discursos, de Rui Barbosa; trad. J. E. Payré. Buenos Aires, 1939. 7. Mis memorias con los otros, de Rodrigo Otavio de Langaard Menezes; trad. Benjamin de Garay. Buenos Aires, 1940. 8. Casa-Grande y senzala, de Gilberto Freyre; trad. Benjamin de Garay. Buenos Aires, 1942. 9. Casa-Grande y senzala, de Gilberto Freyre; trad. Benjamin de Garay. Buenos Aires, 1942. 10. Pequefia historia de la literatura brasilefia, de Ronald de Carva- tho; trad. J. E. Payr6. Buenos Aires, 1943. CARTOGRAFIAS DO PRESENTE: POESIA LATINO-AMERICANA NO FINAL DO SECULO Xx Maria Esther Maciel vocé, cuja vida sempre ‘foi fazer/catar 0 novo talvez veja no defunto coisas néo mortas de todo Joao Cabral de Melo Neto Sob a imaginagdo que indaga esse cristal se quebra Duda Machado lL. MARGENS E CONTEXTOS A experiéncia de abandono vivida por Baudelaire em meio ao processo de expansio do capitalismo industrial na Europa do século XIX, aliada ao fascinio do poeta pelas novidades que esse mesmo processo desencadeava no cen4rio cultural da época, nao apenas mar- cou a condigio atépica da poesia no contexto da modernidade bur- guesa, mas sobretudo evidenciou a relagao contraditéria que os poetas modernos sempre mantiveram com o seu préprio tempo. Mesmo ex- cluidos da nova ordem, por nao se adequarem & ideologia da produ- tividade, dado o cardter de inutilidade (do ponto de vista pragmatico) inerente ao oficio poético, nao deixaram de também repensar € reinventar o seu préprio fazer, a luz dessas transformagées contextuais. Em outras palavras, ao mesmo tempo que seus atos de rebeldia contra a realidade convertiam a poesia em um universo verbal auténomo, refdgio alternativo e sagrado para o poeta exilado da sociedade, incor- poravam — nao sem modific4-los — muitos dos valores que susten- tavam o imagin4rio moderno, como a busca do novo, o apelo a razao critica e 0 culto da idéia de mudanga. 33 Com 0 avango da revolugao tecnolégica ¢ do processo de mer- cantilizagdo da sociedade industrial no infcio do século XX, essa rela- ¢4o contraditéria dos poetas com o seu tempo se radicalizou. Se, por um lado, eles buscaram reforcar o carater auténomo da poesia diante da realidade, através da énfase na desreferencializagao e na auto- reflexividade da linguagem poética, por outro passaram a incorporar de maneira mais efetiva no trabalho com a palavra os recursos que as tecnologias do tempo ofereciam, abrindo a criag4o poética ao influxo de outras artes e campos disciplinares. Essas intersegées, j4 antecipadas por Mallarmé através do poema “Un coup de dés”, acabaram por disse- minar-se, de diferentes maneiras, pelos movimentos de vanguarda des- te século, na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina, confi- gurando-se também como rupturas das formas canonizadas de tradi- des poéticas do passado. Ou seja, tanto o experimentalismo, através do qual os poetas buscavam formular novas maneiras de composigao € organizagao do poema (para isso valendo-se dos varios materiais dispo- niveis na vida cotidiana), quanto o projeto utépico de difundir uma estética nova pelos diversos setores sociais, assumiram, nesse momento, uma dimensio esteticamente revoluciondria. Ao que se soma ainda a atitude de inconformidade de muitos poetas de vanguarda com a or- dem polftico-social da época e que os levou a conjugar, de forma expli- cita, a prética poética e a militancia politica. Nesse sentido, a poesia se afirmou mais uma vez, nos planos intra e extratextuais, como espago de insubordinagao e¢ dissidéncia, sendo que 4 realidade da palavra conti- nuou sendo conferida a tarefa de subverter a realidade das coisas. Hoje, apés o desgaste de muitos preceitos estéticos das poéticas de ruptura disseminadas ao longo deste século, acontecido em decor- réncia nao sé da fetichizagao ¢ do esvaziamento da prépria idéia de novidade, mas também da diluig&o de certos experimentos vanguar- distas na teia do capitalismo de consumo, um outro cen4rio poético se delineia. Ou seja, com o incremento, nestas tltimas décadas, das es- tratégias politicas e econémicas do capitalismo de mercado, que im- plica, dentre outras coisas, a indiscriminada expansio social dos meios de comunicagao de massa, o préprio projeto vanguardista, ao atingir, de certa forma, sua “utopia de disseminagdo”! — acabou por ser tam- bém absorvido pelo circuito de produgao e consumo do sistema cul- 34 tural dominante. Além disso, muitos dos procedimentos estéticos in- ventados na fase heréica dos movimentos de vanguarda e levados as Ultimas conseqiiéncias pelos movimentos posteriores, como as técni- cas do simultanefsmo, a fragmentagao, a montagem e a colagem, den- tre outras, converteram-se em praticas rotinizadas — porque esvazia- das de seu efeito transgressor — dentro do que passou a ser designado pés-modernidade. Sem divida, essa nova ordem passou a exigir, no campo especifi- camente da poesia, uma reconfiguragdo de territérios. Da propensio utépica de aposta no futuro surge um efetivo investimento na tempora- lidade espacializada do agora, este compreendido como topos de con- fluéncia de linguagens e tradigées diversas. O que requer uma sintonia mais incisiva do poeta com a atualidade das coisas do mundo, visto que, como pontuou Haroldo de Campos, “ao principio-esperanca, voltado para o futuro sucede o principio-realidade, fundamento ancorado no presente”.? Acrescente-se a isso a auséncia, neste final de século, de movimentos literdrios ¢ de grupos poéticos organizados, diante do qué muitos poetas passaram a procurar caminhos préprios, convertendo o fazer poético — antes vivido como experiéncia compartilhada em tor- no de propostas afins — em experiéncia solitdria, confinada em espagos cada vez mais particulares ¢ restritos. Assim, se a poesia continuou sendo uma pratica marginalizada dentro do grande circuito cultural do presente — e esta € uma das peculiaridades que a definem — isso se dé agora dentro de um outro contexto marcado pelo processo de mercantilizagéo de praticamente todos os setores artisticos e culturais deste final de século, em todo o mundo. Como diz Mike Featherstone, “o termo cultura do consumo” nao apenas assinala a produgio ¢ o relevo cada vez maiores dos bens culturais enquanto mercadoria, mas também o modo pelo qual a maio- ria das atividades culturais e das praticas significativas passam a ser medidas através do consumo”? Se o mercado, ao converter de forma inflexivel ¢ impessoal todo e qualquer objeto simbélico em bem de consumo, dando-se o poder de controlar os gostos, das consciéncias e dos desejos, pode-se dizer que a poesia, sobretudo a que se propée ao questionamento da légica cultural predominante, transforma-se, sob essa égide, em uma arte cada vez mais 35 minoritéria no campo geral das trocas culturais do presente. Proposi- Ao esta também sustentada por Marjorie Perloff, quando diz que os poetas, especialmente os que se rebelam contra o “official cultural space of diversity”, no qual os paradigmas dominantes de representaco per- manecem quase intactos, poetas que acreditam que tal questionamento se da nao apenas através do que 0 poema diz, mas através das escolhas formais, modais e genéricas de que é feito, continuam relegados 4 mar- gens.’ Todos esses fatores, entretanto, nao bastam para que seja decreta- da a iminente exting3o ou a suposta enfermidade da poesia no mundo contempordneo, € muito menos da capacidade critica dos poetas, pois, curiosamente, na mesma proporcdo do avango do processo global de mercantilizagao das sociedades contempordneas, da institucionalizagio crescente das expressdes culturais, das tentativas de subtragao do estéti- co em nome do “politicamente correto”, a pratica poética e 0 exercicio critico continuam existindo e demonstrando tracos de vitalidade, em especial no Brasil ¢ outros paises latino-americanos. Esses tragos vitais, que ndo se vinculam propriamente ao surgimento de um canone poético dos anos 90 — é dificil pensar na viabilidade ou na possibilidade de se constituir algo parecido neste fi- nal de século — se fazem ver sobretudo na grande diversidade pottica que marca a produgao contempordnea. Diversidade que, como diz o poeta cubano Orlando Gonzdlez-Esteva, pode ser indicio tanto de ri- queza quanto de desconcerto, tendo-se em vista tudo o que hoje busca —em nome de um certo cliché da diversidade ao qual Perloff se referiu — alojar-se sob o rétulo de poesia, em todos os campos estéticos ¢ cultu- rais. O que nos obriga a demarcar 0 territ6rio do “diverso” enquanto espaco de construgao de linguagens poéticas de diferentes matizes esté- ticos e comprometidas com propostas alternativas e conscientes de tra- balho com a palavra ou com as relagées entre esta ¢ outros cédigos nao- verbais. Ou, como coloca Horacio Costa, diversidade como variedade “de formas ¢ de diccdo, de posigées estéticas que revelam miltiplas aproximagées ou apropriagées da tradicao e da cultura, do horizonte do sensfvel ¢ da experiéncia vivencial”.’ Nesse sentido, a diversidade aqui considerada nao prescinde necessariamente do rigor, da consciéncia e da lucidez no processo de transfiguragio da experiéncia ou de invengo 36 ¢ manipulagio da linguagem, seja esta predominantemente verbal ou esteja numa zona fronteiriga em relac4o a outros campos semisticos. Sob esse prisma so notdveis hoje as varias experimentagées poé- ticas que se valem de recursos oriundos das artes visuais e sonoras, das altas tecnologias eletrénicas e da informdtica, bem como o trabalho di- ferenciado de revisdo e retomada de poéticas do passado ¢ as reflexes dos préprios poetas a respeito das mudangas de parametros para a poe- sia deste fim de século. Tudo isso, j4 nao mais vinculado 4 ortodoxia vanguardista, o que nao significa, necessariamente, uma abertura indis- tinta a euforia do vale-tudo. Como pondera muito bem Anténio Risério, “a suspensao ou o arquivamento da ortodoxia vanguardista nao signifi- ca, como querem alguns, a aposentadoria definitiva dos critérios estéti- cos” e “a adesio automatica a um ‘laissez-faire’ qualquer” Assim, desobrigados de estabelecer pactos coletivos e progra- miticos, desiludidos com a promessa utépica das vanguardas, abertos aos influxos de outras tradigées que nao apenas a moderna, muitos poetas latino-americanos de hoje — conscientes de que “a superagao das ortodoxias nao € sinénimo de arquivamento do rigor”” —empe- nham-se em inventar sua prépria dicgdo ¢ imprimir uma marca dife- rencial no trabalho que realizam. Sem deixar, contudo, como ja se disse, de continuar aproveitando o legado de seus precursores, de revisar criticamente as tradig6es do passado e de dialogar com outras esferas culturai: O didlogo de poetas contemporaneos com as tecnologias de pon- ta e outros campos artfsticos, € bom marcar, nao est4 associado 4 desva- lorizagdo ou ao desaparecimento da palavra escrita e do poema intei- ramente verbal. Se muitos poetas, mais “intermididticos”, conseguem conjugar as duas coisas (cito, dentre varios, os brasileiros Arnaldo An- tunes e Philadelpho Menezes, e os hispano-americanos Clemente Padin ¢ Luis Bravo), outros j4 optaram por uma retomada mais efetiva da palavra escrita e até mesmo de uma certa narratividade, compreen- dida como forma poética alternativa. Este grupo do “verbal” integra, a meu ver, a maioria dos poetas latino-americanos destas dltimas dé- cadas, inclusive aqueles que receberam, mais diretamente, influxos dos movimentos de vanguarda. 37 No Ambito da poesia escrita, pode-se dizer que o surgimento de pequenas editoras alternativas voltadas especialmente para a publica- g4o de livros de poemas ¢ sobre poesia muito tem contribuido para a redefinigdo do horizonte poético do continente. Definidas, por Octavio Paz, como “anticorpos para a defesa do organismo”,* essas editoras de- safiam a légica imperante do grande mercado editorial, valendo-se de algumas estratégias adotadas pelo mesmo. Ou seja, através de um invé- lucro atraente, conseguido gracas a projetos graficos sofisticados, edi- tam — muitas vezes em parceria com o autor — livros de qualidade poética ¢ visual que, mesmo tendo que competir com a avalanche de livros descartaveis langados diariamente no mercado, acabam conquis- tando e formando um piblico selecionado de leitores (que Paz cha- mou, no rastro de Juan Ramén Jiménez, de uma “imensa minoria”). Editoras como as brasileiras “Sette Letras”, “Iluminuras”, “34 Letras”, “Orobé”, as hispano-americanas “Visor”, “El Tuc4n de Virginia’, “Equilibrista”, “Aldus”, dentre outras, ao criarem coleg6es de poesia contempor4nea, passaram a dar um novo impulso a produgio e & re- cepgao de livros de poemas. Para no falar das revistas € jornais de poe- sia que, nao mais vinculados a movimentos programiticos, vém ocu- pando as frestas deixadas pelo grande mercado — inclusive no circuito privilegiado da Internet. Sao maneiras alternativas encontradas pelos autores contempor4neos de burlar as estratégias de dominagao do gran- de mercado, ainda que, para isso, utilizando-se dele. Mais uma vez, um gesto paradoxal dos poetas em relagao ao seu préprio contexto. Assim, continuar sendo uma voz interrogante, olhar e dizer a reali- dade por vias transversas, criar linguagens dentro e fora das linguagens instituidas continuam sendo condigées importantes para a existéncia da poesia. Mas, ao mesmo tempo, nao se pode esquecer que essa existéncia est4 também condicionada 4 adequacio do poeta, sua imaginagio ¢ seus instrumentos de criago 4 roda viva do nosso tempo, as demandas das novas geragées e As mudangas no plano geral da cultura. E disso, creio eu, tém consciéncia muitos poetas contemporaneos da América Latina. 38 L.A CRITICA COMO NECESSIDADE Quando, ainda em 1990, dezessete poetas latino-americanos reu- niram-se no Memorial da América Latina, em Sao Paulo,’ para discutir os rumos da poesia contemporanea do continente, houve uma certa unanimidade entre eles quanto ao que consideravam um imperativo importante para a poesia contempor4nea: continuar afirmando-se como espaco de lucidez e experimentagio criativa da linguagem. Em outras palavras, todos eles — advindos de uma linhagem que inclui nomes paradigmaticos como Huidobro, Vallejo, Neruda, Girondo, Oswald, Lezama, Cabral, Paz, Augusto e Haroldo de Campos, dentre outros — se afinavam em torno da mesma proposta de preservagao daquilo que se configurou como um elemento vital da poesia de todos os tempos e que, na modernidade, se afirmou como um valor: a critica. Essa insisténcia no legado critico da modernidade poderia dar margem para que nés — participes de uma outra realidade na qual a crise do conjunto de valores que constituiu a tradigao moderna se con- juga a uma espécie de “abalo sismico” das hierarquias e dos paradigmas liter4rios — considerdssemos os jovens poetas integrantes do encontro como meros epigonos retardatérios do c4none poético de ruptura. O que, obviamente, nao procede, j4 que quase todos — e isso se faz ver nos textos que apresentaram na ocasiao — nao demonstraram qualquer ilusZo quanto a uma permanéncia efetiva, em nosso tempo, da tradigao com a qual dialogam mais de perto, mas a concebem como uma heran- ¢aa ser reinterpretada, reinventada e, inclusive, subvertida. Cientes de pertencerem a uma época marcada pela confluéncia de tradigdes ¢ linguagens diversas e, ao mesmo tempo procurando ex- trair dessa variedade formas alternativas de dicg4o poética, eles buscam deslocar, para o contexto deste final do século, o espirito critico € inventivo que nutriu poeticamente seus precursores. Deslocar, no sentido de des- colar esse principio do conjunto de princfpios que constituiu o projeto moderno e dar-lhe um outro sentido no agora deste fim de milénio, buscando evidenciar também a importancia que esse “espfrito critico” sempre teve enquanto elemento constitutivo da arte de qualquer tem- po. Enfim, recontextualizar, a luz do hoje, um procedimento tradicio- nalmente vinculado 4 modernidade, para dele se valer para ler a 39 pluralidade contraditéria do nosso tempo e conjugé-lo aos novos parametros da contemporaneidade. Quase todos os poetas do encontro enfocaram a necessidade desse deslocamento, por consider4-lo nao apenas uma via possivel para a so- brevivéncia da praxis poética num mundo cada vez mais dominado pela légica do mercado — o que nao implica uma atitude de reptdio simplista, mas de desafio — como também um antfdoto eficaz contra as “armadilhas” do epigonismo, da repetigao estéril de linguagens j4 pros- critas e da pratica complacente do que se convencionou chamar de “anything goes”, o famoso “vale tudo” que impulsiona uma das verten- tes da chamada pés-modernidade e que define o jé referido cliché da “diversidade”. Como afirmou o poeta Hordcio Costa, organizador do evento: Somos uma gerac4o que aprendeu com a histéria recente tanto a desconfiar da ordem das palavras — como o fizeram, diga-se de pas- sagem, desde sempre os poetas — quanto das palavras de ordem, sejam elas ideolégico-politicas, estético-formais ou comportamentais — ainda mais na conjuntura da acelerada transformagao em escala mundial que vivemos."” Como se pode depreender, longe de se configurar uma mera rea- ¢ao contra o estado de coisas contempor4neo, esse viés descortina uma maneira nao conformista de se ajustar a ele. Tanto que varios outros poetas do encontro, como Eduardo Milan, Victor Manuel Mendiola, Carlos Avila, Frederico Barbosa, Hordcio Costa falaram da necessidade de o poeta contempor4neo estar em uma espécie de “sintonia vigilante” com as linguagens e as inquietagées do seu tempo, ter uma participagio ativa (pér-se em risco) no contexto em que vivem, sem necessariamente assumir uma postura radicalizada (seja de hostilidade ou de reverén- cia) diante das tradigGes e linguagens que se interseccionam no cenério atual. Como diz Carlos Avila, ao poeta cabe continuar sendo um olho critico da sociedade, fazer da sua poesia “instrumento de aferigao das contradigées e ambigitidades do processo cultural a que assiste”.'' Ou, nas palavras de Mendiola, cabe a cle manter os olhos e ouvidos bem abertos, optar por “una accién que tiene como energia basica estar despierto y, por tanto, la luz”. 40 Ao que eu acrescentaria: no abdicar da liberdade de imaginagao e de pesquisa, saber aproveitar de forma criativa os recursos tecnolégicos dispontveis e as experiéncias do cotidiano, permitir-se 0 delfrio da luci- dez € 0 exercicio lticido da sensibilidade. Enfim, praticar aquilo que Paul Valéry colocou como o cerne de sua prépria trajetéria intelectual e poéti- ca: “fazer pensar, a contragosto, 0 leitor; provocar atos internos”.!? Foi em respeito a isso, por exemplo, que o argentino Ricardo Piglia, uma das referéncias medulares da literatura contemporanea da América Latina, defendeu — enquanto escritor — o exercicio, ainda hoje, da pratica experimental da linguagem e a “ruptura nio estriden- te” com as formulas literdrias em circulagdo. Sintonizado até o osso com © seu tempo, sempre arguto na avaliagao do passado e do contexto cul- tural e polftico em que vive, Piglia nao hesita em considerar o que chama de “espirito de ruptura” como ainda pertinente 4 nossa €poca. Diz ele, em entrevista, concedida ao jornal O Estado de Sao Paulo: Hoje, a posigdo de ruptura no passa mais pela vanguarda, mas est guardada em pequenos espacos menos estridentes. (...) O espirito de ruptura segue vivo, mas a idéia de estridéncia nao interessa mais. A idéia de experimentacao, a ruptura com as normas, tradicionalmente consideradas herangas da vanguarda, continuam existindo."* Tanto a posi¢ao assumida pelos jovens poctas-criticos latino- americanos, quanto a colocacio de Piglia (e € importante reafirmar que a ruptura a que ele se reporta j4 € outra em relagdo 4 que marcou a modernidade), permitem-nos pensar que o trabalho empreendido por muitos autores latino-americanos, de filiagéo moderna ou vanguardista, no sentido de arejar, descentralizar e pluralizar o conceito de tradiga0, sob o prisma da critica e da imaginagao, ainda é de extrema atualidade neste fim de século. E pode ser util para que o olhar sobre o contempo- Fanco nao se deixe paralisar pelos discursos apocalfpticos que, nao bas- tasse investirem, com animosidade, contra tudo o que possa se associar a vertente libertaria do moderno, no plano das artes e da politica, fazem o que Néstor Canclini designou de “celebragées acriticas” da “ideolo- gia do consumo”. Quando me refiro a autores que relativizaram ¢ pluralizaram o conceito tradicional de tradig4o, penso sobretudo em escritores-criticos 41 como Borges, Lezama Lima, Severo Sarduy, Octavio Paz e Haroldo de Campos, dentre outros, que se detiveram especialmente sobre o proble- ma, ¢ dentre o quais escolho Paz como referéncia pontual para minhas reflexdes. 4. OS PARADOXOS DA TRADICAO Ao adotar — como muitos poetas-criticos latino-americanos deste século — o método analégico (préprio da criag4o poética) para tratar de questées variadas em campos interdisciplinares, Paz contri- buiu sensivelmente para a derrocada do discurso racionalista de fei- ¢4o linear-evolutiva que, por muito tempo, marcou o perfil da critica ocidental. Além de romper — pela via do paradoxo — com os bina- rismos redutores que ainda atravessam muitas teorias sobre a comple- xa rede cultural da América Latina. O que nfo significa, contudo, uma filiagdo do poeta mexicano ao rol dos pensadores pés-modernos que defendem e exercem a légica do descentramento e¢ da dissemina- ¢4o0. Como estes, Paz questiona a légica homogénea e totalizadora do projeto iluminista da modernidade, renuncia as hierarquias legiti- madoras, proclama “a decrepitude do telos do progresso” e reconhece a pluralidade como trago necessério dos discursos da contemporanei- dade. Mas nao abre m§o de certos princfpios (alguns inclusive de feigdo idealista), herdados da sua vivéncia moderna. O aprego pela critica, convertida por ele em uma espécie de “paixao” (no que ela se desveste portanto de seu carter inteiramente racional) ¢ 0 culto da liberdade criativa, uma vez que, para ele, critica ¢ criagao devem “vi- ver em perpétua simbiose”, destacam-se como tragos visfveis desse vinculo ainda ativo com a tradigao moderna que o autor preserva na sua leitura do presente. Reconhecendo que vivemos um agora de confluéncias e sem horizonte utépico, no qual emergem “realidades e alteridades enterra- das e reprimidas”, tradigdes advindas de varios passados recentes € re- motos, Paz considera imprescindivel a reabilitagao da forga critica den- tro desse contexto (“pensar el hoy significa, ante todo, recobrar la mira- da critica”, diz ele). Posico que guarda similitudes com certas propo- sigdes mais recentes de Haroldo de Campos, quando este, constatando 42 que, ao projeto totalizador da vanguarda “sucede a pluralizago das poéticas possiveis”,'* afirma, em relagao ao presente, que “o tinico resi- duo utépico que nele pode e deve permanecer é a dimensio critica e dialégica que inere a utopia”. E. completa: “A admissao de uma ‘hist6ria plural (aqui, no sentido benjaminiano), nos incita A apropriagio critica de uma “pluralidade de passados”, sem uma prévia determinagio exclusivista do futuro”.'” Sob esse prisma, a tradicao ou as tradigdes devem ser vistas em sua condigao de mobilidade (ou como diz Haroldo de Campos, como uma “partitura transtemporal”), nunca de cristalizagao. “Una tradicién que se petrifica s6lo prolonga a la muerte”, diz Paz.'® Do que se depreende que toda tradicao viva € sempre outra e s6 tem assegurada a sua perma- néncia no processo da meméria (que, para Paz, € também criadora) eda recep¢ao presentificada que, no caso, funciona também como uma tra- dugio feita simultaneamente de desvios, repetigdes ¢ transgressdes. Como acrescenta Paz, “al negar la tradici6n, la prolongamos; al imitar a nuestros predecesores, los cambiamos. La imitacién es invencién; la invencién, restauracion.”” Do que se pode depreender que toda tradigao sobrevi- vente ou rediviva o é também em condigio de pluralidade. Ao assumir essa “leitura partitural” da tradigao — que lembra em certa medida uma outra afirmagio de Ricardo Piglia, segundo a qual “um escritor é alguém que trai o que lé”,” que “enfrenta a conven- 40”, Paz retraduz, de alguma maneira, 0 procedimento que ele mesmo atribuiu aos poetas modernos do Ocidente (Ocidente, aqui, no sentido plural, j4 que envolve inclusive a chamada “ocidentalidade paradoxal” dos latino-americanos), no livro Los hijos del limo. Poetas que se atri- bufram o duplo papel de realizar rupturas com a ordem presente ou o passado imediato, e, simultaneamente, recuperar, em nome do futuro, o antigo como novidade. O que, por sua vez, configurava-se como recu- sa paradoxal das idéias modernas de futuro e de progresso, visivel na controvertida tese de Valéry segundo a qual o poeta moderno “entra no futuro 4 marcha ré,." E mais ou menos esse movimento que se faz ver no conceito paziano de tradigao ¢ que atravessa a leitura feita pelo poeta dos signos culturais da contemporancidade. Adepto da légica combinatéria, in- vestiga as relagdes possiveis entre diversas culturas, valendo-se, para tal, 43 da idéia de sradugéo, compreendida como “una transmutacién”, “una manera de asegurar la continuidad de nuestro pasado al transformarlo en didlogo com otras civilizaciones”,” j4 que para ele, traduzir € uma tarefa andloga 4 criagao. Nio obstante essa énfase na mediagio da criatividade e da critica nas relagées entre culturas e linguagens — ponto de confluéncia de Paz com outros poetas-criticos latino-americanos de sua gerac4o € que ates- ta a sua inquietante modernidade “pés-moderna” — ndo se pode dei- xar de questionar certas “recafdas” do poeta no idedrio surrealista, de feigao romntica, sobretudo quando insiste no poder redentor da poe- sia, colocada como um “modelo de fraternidade césmica”, a tinica ca- paz de transformar a humanidade do século XXI.¥ ‘Ao se agarrar a uma espécie de “utopia pés-ut6pica” e, daf, con- ferir um poder sagrado & poesia, Paz no deixa de se resguardar diante das novas possibilidades estéticas do nosso tempo. Seus contidos elo- gios aos artefatos tecnolégicos deixam transparecer mais resisténcia que expectativa, como se pode atestar em um de seus ensaios (“El pacto verbal”) sobre a televisao. Mas de qualquer modo, a contribuigéo paziana para que se formasse uma geracao de poetas-criticos capazes de dialogar com a tradigao moderna sem deixarem de ser contemporaneos do seu pré- prio tempo é inegdvel. Como foi também a de Haroldo de Campos no contexto especificamente brasileiro, mas com resson4ncias em outros territérios do continente. Muitos dos poetas participantes do encon- tro do Memorial da América Latina evidenciam, pelo trabalho que vém desenvolvendo ao longo dos anos 90, essa contribuigdo. E aos quais se somam outros poetas deste final de século no Brasil e nos pafses hispano-americanos, que também dialogam vivamente com a “tradigdo da ruptura” mas sem deixar de subverté-la através de outras rupturas no estridentes com o legado moderno, da reciclagem cria- tiva de passados que as vanguardas negaram, desprezaram ou esque- ceram”, e sobretudo do aproveitamento de repertérios advindos de varios setores culturais da contemporaneidade. Creio que essa postura flexivel mas ao mesmo tempo seletiva desafia as visées dogmaticas do problema da tradigdo, tanto na linha conservadora (que sustenta uma relagio museol6gica com o passado), 44 quanto na linha diluidora (que ndo vé qualquer diferenga entre uma tradig’o perdida e uma conservada, por considerar que toda tradiga0 estd irremediavelmente destrufda). Como afirma Eduardo Milan: La batalla contra lo nuevo — le gustaba decir a Leminski — es una guerra perdida. Y lo nuevo pasa hoy por una revaloracién del pasado. Revaloracién, no retorno. Y revaloracién implica una re-historizacién, un darle al César pasado lo que es de! César presente.” Negar completamente a presenga de tragos libertarios ¢ inovado- res na cultura contempor4nea, como se 0 novo e a critica fossem ele- mentos obsoletos, exclusivos de um tempo e de uma tradigdo que os converteram em valores estéticos privilegiados, € desprezar toda a potencialidade critica e inventiva que marcou artistas de todos os sécu- los e que ainda se faz ver nas dobras, nas frestas € no interior mesmo do sistema cultural predominante. Uma coisa € a conversao desses ele- mentos em valores cultuados, como no caso da modernidade estética; outra, é seu deslocamento dessa esfera canénica para um contexto no qual passa ter uma fungio, eu diria, mais subterranea, menos estridente € n3o mais comprometida com um projeto estético como o que consti- tuiu toda a chamada “tradigdo da ruptura”. Assim, ainda cabe aos poetas contempor4neos a tentativa de ca- tar/fazer 0 novo (este, j4 esvaziado de seu contetido utépico e tomado como “o que cada um pode acrescentar de seu” em meio as vozes hfbri- das do presente). Mas, isso, a partir nao s6 da incorporagao dessas vozes, como também da retomada critica do que, do passado, resta como coisas no mortas de todo. 45 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS AVILA, Carlos. Poesia ¢ sociedade de consumo. In: COSTA, Horécio (org.).A palavra poética na América Latina. Sao Paulo: Memorial da América Latina, 1992. CAMPOS, Augusto de. Paul Valéry: a serpente eo pensar. Sio Paulo: Brasiliense, 1984, CAMPOS, Haroldo de. Pocsia c modernidade: da morte do verso A constelagio. O poema pés-utépico. O arco-iris branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997. CAMPOS, Haroldo. Minha relagao com a tradigo € musical. Metalinguagem e outras metas. Sao Paulo: Perspectiva, 1992. COSTA, Horicio (org.). 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CAMPOS, 1997, p. 268. 3 FEATHERSTONE, 1995, p. 110. * PERLOFF, 1991, p. 11. 5 COSTA, 1992, p. 26. 6 RISERIO, 1998, p.p. 78-79. 7 RISERIO, 1998, p 79. * PAZ, 1990, p.99. ° Os participantes foram, a saber: Hordcio Costa, Régis Bonvicino, Nelson Ascher, Fernando Paixao, Carlos Avila, Duda Machado, Frederico Barbosa e Jilio Castafion Guimaraes (brasileiros), Eduardo Mildn ¢ Roberto Echavarren (uruguaios), Ma- nuel Ulacia ¢ Victor Manuel Mendiola (mexicanos), Arturo Carrera ¢ Néstor Perlongher (argentinos), Ratil Zurita (chileno), Orlando Gonzélez-Esteva (cuba- no) e Juan Malpartida (0 nico espanhol do grupo). © COSTA, 1992, p. 26 4 AVILA, 1992, p. 115-116. ® MENDIOLA, 1992, p. 132. 4 CAMPOS, 1984, p. 92. “ PIGLIA, 1997, p. D-2. 5 PAZ, 1992-b, p. 20. "6 CAMPOS, 1997, p.269. "’ CAMPOS, 1997, p.269. PAZ, 1991, p. 7. 9 PAZ, 1992, p.147. » PIGLIA, 1994, p. 69. 47 2\VALERY, 1991, p.120. » PAZ, 1992-b, p. 165. ® CE PAZ, 1990, p. 138. ™Cabe reproduzir aqui, em terceira mao, um fragmento de Adorno, citado por Jauss: “Af nos deparamos com o verdadeiro tema do sentido da tradigio: aquilo que é relegado 4 margem do caminho, desprezado, subjugado; aquilo que é coletado sob o nome de antiqualhas, € af que busca refiigio o que hé de vivo na tradigéo...” Cf. CAMPOS, 1993, p. 237. 2 MILAN, 1990, p. 35. 48 OS ESTUDOS CULTURAIS E O TEATRO LATINO- AMERICANO DO FINAL DO SECULO Sara Rojo de la Rosa Nas tltimas décadas, a América Latina, ainda que tenha sofrido transformagées radicais, conservou certas estruturas. Se, por um lado, as artes cénicas elaboram e modificam as propostas estéticas existentes nas décadas anteriores — ao olhar o que acontece na metrépole ou ao buscar outros referenciais — por outro, mantém algumas estruturas ¢ ideologias correspondentes a concepgées € praticas usuais na moderni- dade latino-americana: As relagdes de encontro ou desencontro entre a América Latina ea pés-modernidade séo particularmente complexas. |. Pela dificuldade de esbogar os tragos que denominem uma configuragio dispersa cha- mada pés-modernidade, sem a garantia de uma definigio fie (...).2. Pela auséncia de homogeneidade na trama latino-americana que in- tegra processos hist6rico-culturais ndo-equivalentes em cada pais." Paralelamente, e com a mesma ambigiiidade, observa-se que di- versos movimentos vém se articulando na teoria e na critica literdria: Certamente, hé claros indfcios de que hé mais de uma década, nos encontramos diante de um novo paradigma na ciéncia literéria, em- bora a desconstrugao — qualificada pejorativamente de niilista ou andrquica — seja mais uma atividade heterogénea e desafiante (uma nova forma de ler ¢ enfrentar os textos) que uma proposta auténticae homogénea.? Parece-me fundamental esclarecer, dentro desta diversidade, um dos pontos polémicos que € 0 termo pés-modernidade. Neste trabalho, utilizo-o como um conceito teérico-cultural, e nao cronolégico. Isto me leva a afirmar que nem todas as pegas representadas na América Latina, neste final de século, séo p6és-modernas. Com efeito, entre as obras recentemente estreadas no continente, observam-se reminiscén- cias de outras praticas. Por exemplo, Querida mamde de Adelaide Amaral 49 (1996) dirigida por José Wilker, em Sao Paulo, corresponde estetica- mente ao realismo psicolégico stanislavskiano da melhor estirpe. Acon- tece o mesmo com Aeroplanos, do dramaturgo argentino Carlos Gorostiza, que foi encenada pelo “Teatro Circular de Montevideo” e se apresentou com grande sucesso de piblico e de critica no III Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte, em 1997. A primeira pega referida envolve identificatoriamente o espectador na relagio agressiva ¢ dependente entre mie e¢ filha; a segunda trata da problematica — sempre presente, qual espada de Damocles — da velhice e da morte. Estas produgées, encenadas com personagens que funcionam verossimilhantemente, tém como objetivo a revelacio de intimidades destrutivas, porque silenciadas. Dessa maneira, sao validas dentro de sociedades que reprimem as caracterfsticas humanas, as quais repre- sentam um perigo moral ou afetivo ao funcionamento eficiente do sis- tema. Outra experiéncia, que remete a uma pratica surgida na moder- nidade, € O sonho da razéo produz monstros, do grupo “TET”, da Venezuela, trabalho apresentado no XXIX Festival de Inverno da Uni- versidade Federal de Minas Gerais, em 1997. A peca, através de formas préprias ao teatro do absurdo, elege como intertexto O processo, de Kafka. Logicamente, ambas as pegas poderiam ser consideradas re-escrituras, mas na realidade nio o so, ¢ constituem, ao contrrio, praticas rema- nescentes tanto pela estética utilizada como pela proposta. Pode-se ob- servar, junto a estas montagens, outras que sao parte de processos inver- Sos, tais como a busca da recriagao de um texto representante da moder- nidade. Por exemplo, Flor de obsesso (1997), do grupo “Pia Frauss”, de Sao Paulo, constr6i o universo de Nélson Rodrigues, reescrevendo-o através de um didlogo entre bonecos e atores. James Joyce — Carta ao artista quando joven (1994), adaptagio de Martin Acosta e Luis Moncada (“Teatro Arena”) é apresentado na cidade do México como um trabalho experimental e intertextual, entre linguagens de contextos diferentes, a partir de fragmentos de dois textos de Joyce (Retrato do artista quando Jovem ¢ Ulises). A este respeito, argumenta José Ramén Enriquez: “Tal- vez propostas como Carta ao artista quando jovem nos revelem que o teatro mexicano vem, no final do século, entrando na modernidade. Creio que isso demonstra que a pés-modernidade mexicana possibilita entrar ¢ sair da modernidade sem adjetivos, sem complexos, quando se 50 quer € sem pedir permissao a ninguém”.’ Gerald Thomas, no Brasil, trabalha neste mesmo sentido; mas amplia seu espectro mais além da modernidade, chegando assim a recriagées intertextuais de obras e de personagens como Electra, Fausto, Don Juan, etc. As transposig6es, ci- tagdes € reescrituras, explicitas ou nao, sao o material de novas propostas pés-modernas, as quais questionam territérios geogrdficos e noges de autoria, pelo menos nos termos do eu enunciador (0 artista), frente a histéria, segundo foi entendido por escritores tais como Neruda, que em Alturas de Macchu Picchu, apresenta 0 eu enunciador como a voz que falard pelos subalternos. Essas mobilidades que existem no teatro de fim de século sus- tentam-se gracas 4 maneira pela qual o artista ou 0 critico se enten- dem a si mesmos como produtores de conhecimento ou saber. Por exemplo, o questionamento de conceitos tremendamente cristaliza- dos, como o de verdade ou o de sujeito, significa que o criador ¢ 0 critico se assumem e assumem 0 objeto artistico, a partir de um lugar diferente, que nao 0 da identidade ou nagao concebidas como essén- cias irremoviveis, eternas. Percebe-se este questionamento na seguin- te afirmagio de Deleuze e Guattari: Nao existe enunciado individual, nunca h4. Todo enunciado € 0 pro- duto de um agenciamento maquinico, quer dizer, de agentes coletivos de enunciagio (por agentes coletivos nao se deve entender povos ou sociedades, mas multiplicidades). Ora, o nome proprio nao designa um individuo: ao contrério, quando o individuo se abre as multiplicidades que o atravessam de lado a lado, ao fim do mais severo exercicio de despersonalizagio, é que ele adquire seu verdadeiro nome préprio. O nome préprio é a apreensdo instantinea de uma multipli- cidade.‘ Esta nova realidade exige uma reflexdo sobre a problematica identitdria, a partir de novos referentes criticos. Ao analisar algumas idéias de Eugenio Barba, quis estabelecer uma aproximagio entre estas € outras expressées teatrais da América Latina, as quais, conforme mi- nha leitura, se inscrevem em uma possfvel reflexdo identitéria de final de século, a qual passa, logicamente, pelo estudo de seus modos de construgio dentro dos imagin4rios culturais latino-americanos. 51 As idéias de Barba com a quais trabalharei foram expostas em sua conferéncia realizada em 08/06/1998, em Belo Horizonte, durante o Encontro Mundial das Artes Cénicas. Tais idéias podem ser assim sin- tetizadas: * “A estética e a ética so parte do trabalho teatral. * Ser verossimil € equivaler-se 4 vida, e nao a sua imitagao. * preciso possuir um suporte cultural para ensejar o didlogo com outras culturas. * As culturas atravessam 0 sujeito € nao € o sujeito que as possui”.® Quando se observam determinadas produgées do teatro latino- americano, vé-se que grande parte dos grupos discute o papel da ética ¢ da estética em suas pegas. A América Latina explicita ou implicitamente est presente nesta discussio ¢ isto se manifesta, mesmo a contragosto, nas montagens, as quais geram quase sempre um didlogo com os pafses latino-americanos. Tal didlogo se dé algumas vezes conscientemente, outras, de modo absolutamente inorganico e desestruturado. Ser ético, no sentido de atuar de acordo com uma moral consciente do contexto €m que se situa, muitas vezes diz respeito a uma necessidade imposta pelo espago que sc habita (as teorizagées do brasileiro Augusto Boal confirmam tal hipétese). O estético, sem dtivida, ergue-se como bandei- ra diferenciadora (as produgées pés-modernas do argentino Alberto Félix Alberto sao um bom exemplo disto) e a cada vez que isso acontece, ques- Gonam-se as linguagens criadas na América Latina, com uma interroga- 40 que j4 se transformou em cliché: esta produgao € uma cépia de formas européias ou corresponde a inquietagées préprias da América Latina? Tal pergunta, tantas vezes formulada, deixa implicita uma ne- cessidade de especificidade, igualmente reiterada em miltiplas ocasides no didlogo com as teorias desenvolvidas nos pafses industrializados. O postulado de Barba, segundo o qual ética ¢ estética fazem parte do trabalho teatral, pode parecer ébvio, na medida em que se sabe da existéncia de grupos latino-americanos que hd muito tempo trabalham nessa linha; mas, mesmo assim, penso que colocar esta reflexdo em primeiro plano e associé-la A necessidade de incorporar ambos os as- pectos ao trabalho. Esta posigao parece-me valida em um continente onde as urgéncias nacionais (parodiando o titulo de uma antologia da 52 dramaturga brasileira Consuelo de Castro) fazem que os grupos optem por um ou outro aspecto, estabelecendo, assim, um falso binarismo. O grupo cubano “Buendia”, com sua produgao A outra tempestade (1997- 1998), que teve diregao de Flora Lauten e foi escrita por Raquel Carrié, parece, inversamente, um bom exemplo. Etica e estética conjugam-se nesta montagem que recupera tanto as rafzes ocidentais como as afro- cubanas. Este trabalho comega com A tempestade (1616), pega que é considerada o pice da carreira dramatirgica de Shakespeare; continua com outras obras do referido autor inglés e culmina com um 4rduo trabalho de pesquisa dos rituais afro-cubanos. Desta maneira, a monta- gem, no “espago da afro-cubanidade”, discute as racionalidades que se entrecruzam na constituigao do “imagindrio pafs-ilha” e o faz através de uma forma plastica (expresso corporal, miisica, vestudrio e cenogra- fia), que implica novas buscas estéticas. A opgio de reescritura dos classicos e, particularmente, de Shakespeare, a partir de contextos culturais latino-americanos, foi reali- zada por outros criadores, entre os quais destacam-se: o chileno Andrés Pérez com seu grupo “Gran Circo teatro”; o projeto “Milkshakespeare”, encabecado pelo brasileiro Ulisses Cruz; o argentino Veronese, com seu grupo “Periférico de objetos”. Existem, na América Latina, alguns diretores polémicos, tanto Por suas criagdes quanto por suas teorizagées. Gostaria de fazer referén- cia a alguns deles: penso, por exemplo, em Ramén Griffero, no Chile, ouem Luis Tavira, no México, mas por razées de espaco, darei priorida- de aquele que rompeu com todos os esquemas possiveis: trata-se do diretor José Celso Martinez Corréa, definido pela Folha de Sao Paulo como a “firia do teatro”.‘ Este diretor, que tem como referencial 0 pen- sador de teatro mais importante da modernidade, o francés Antonin Artaud, montou nos anos 60 a pega O rei da vela, de Oswald de Andrade. Atualmente, apés passar por torturas, exilios e reconstrugées, retoma, ancorado pelas novas condigées contextuais, sua antiga proposta. José Celso afirma, na entrevista que da origem ao comentdrio que inicia estas reflexdes, que a abordagem teérica explicitada em suas montagens — ao contrério do que diz a critica que o qualifica de irracionalista— € racional: “Meu trabalho é profundamente racional. S6 que a raz4o af nao é a do colonizador”.’ Para este diretor, a raz4o ocidental constréi o 53 sistema atual, que se pode definir, segundo tal pensamento, como um sistema excludente. José Celso Martinez Corréa almeja criar uma pro- posta que nasga de uma nova ética, a partir da qual seja possivel contra- por-se aquela fundada pela razao do colonizador. O diretor afirma que “o teatro Oficina” materializa uma réplica 4 ordem liberal na sua geografia urbana, no seu estilo de interpretagio, no seu repertério. Se vocé nao entender que este ponto pulsante pode, junto com os maiores arquitetos do Brasil (...) sonhar com um oAsis de fertilidade pablica, e achar que a tinica safda é 0 shopping center... E importante entender a fungao do teatro. A minha insisténcia em ficar tem o sentido de demonstrar que o teatro tem poder, que o homem pode mexer com as engrenagens* O importante no pensamento desse diretor € que este propée, através da cultura, uma resposta para uma ordem globalizada que pare- ceria impossfvel de ser desconstrufda a partir da razao ocidental. Na sua versao de As Bacantes, apresentada em Sao Paulo, em 1996, assiste-se aum ritual dionisfaco do teatro, 4 semelhanga dos rituais indigenas, no sentido de que em ambos raz4o e emogio néo sao universos excludentes. Acarnavalizago cultural, a busca de uma raz4o diferente da do coloni- zador, a incorporagao minimamente dirigida do espectador e a energia contida na proposta chamada homoerética, gracas & forga da apelagio ao instinto, inscrevem-se em uma nova estética que conecta sua produ- ¢4o artistica as idéias de Barba, mesmo quando José Celso as rechaga de forma explicita” Por outro lado, sua posigao teérica e sua produgio artfstica vinculam sua criag4o tanto ao pensamento dos teéricos da pés- colonialidade latino-americana quanto aos postulados pés-modernos. Por exemplo, Lyotard propée a criagdo de “um teatro de energias, ao invés de um teatro de signos, edificado sobre “deslocamentos de libido” € nao sobre substituigdes representativas”."° O verosstmil, 0 realismo e a imitagao s4o conceitos recorrentes nas discussées sobre teatro. Que é ser verossimil? Pode-se ser realista sem imitar a vida? Osvaldo Pelletieri cria 0 conceito de realismo reflexivo, para referir-se, entre outras, 4s produgées da consagrada dramaturga argentina Griselda Gambaro. Para 0 critico, trata-se de um tipo de pro- dugo que, sem ser uma imitaco da vida, estabelece um didlogo cons- 54 tante com o contexto e acaba por postular um tipo de utopia. Por exem- plo, a peca E necessdrio entender um pouco, dirigida por Laura Yusen, em Buenos Aires (1995), mostra a recriagdo da “histéria verdadeira de John Hau, um letrado chinés levado de Cantao a Franga, por um jesuita fran- cés, em 1722”.'' Esta obra problematiza o choque cultural e o desen- contro lingiifstico que os teéricos da globalizagao pretendem esquecer. Griselda Gambaro observa que sua pega (esta) articulada, na maior parte de sua estrutura verbal, sobre a incompreensio entre duas linguas (através de uma Gnica linguagem na ficgo), a obra atravessa aquela espessura, minima e taxativa, que existe entre as palavras ¢ os atos ¢, em outra vertente, aproxima-se da velha presungao que acredita que falar a mesma Ifngua nao significa, por forca, falar o mesmo idioma.” A singularidade desta produgao é que, ao falar de outra época € de outros povos, fala-se da Argentina e da América Latina atuais. Como entender, a partir de nossas culturas, este mundo globalizado, para nao perecer? Como criar articulagées sociais capazes de se converter em novos regacos maternais? Articulagdes que possam reproduzir cadeias de solidariedade e fraternidade, além das fronteiras geogr4ficas ou de mercado ¢ as palavras especificas de cada lingua. Os textos de Griselda Gambaro questionam a maneira ocidental de entender e construir a histéria e possibilitam a desmontagem dos alicerces fundadores de um sistema social que se legitimou através do uso arbitrério do poder. A pega procura estabelecer um paralelo entre as imagens dos despossufdos do mundo, de modo que lagos emancipatérios sejam possiveis. Esta tese, apoiada no pluriculturalismo da representacao do diferente como préximo, propugna a desintegragao de fronteiras nao somente geogra- ficas, mas também culturais, entre os subalternos. Trata-se da utopia (nos termos de Pelletieri) de pretender ouvir e “fazer falar” os exclufdos da sociedade, com finalidades emancipatérias. A peca A rainha Isabel cantava rancheras (1997-1998), dirigida por Gustavo Meza, recriou um romance do chileno Hernan Rivera Letelier (1997), baseada na experiéncia pessoal do autor nas minas de salitre. O enunciador (autor-narrador) est presente no espago da aco dramitica e a partir daf estabelece conexdes com 0 mundo externo, ou 55 seja, com a histéria do Chile ou com os “gringos” proprietérios das minas de salitre. A reescrita do texto espetacular'’ rompe com o descri- tivismo co | ‘ismo do romance para reproduzir os eixos estruturadores do relato em imagens realistas ou simbélicas, que permitem, em seu conjunto, gerar identificagdes que, ainda que partam do espago espe- cifico das minas de salitre chilenas, projetam-se além de suas frontei- ras. A problematica identitdria, na montagem, adquire um cardter mais amplo que na narrativa, pois a estética empregada conjuga o “pré- prio” com as linguagens lidicas da fragmentagao e da reescritura, hoje generalizadas nas produgées de final do século. Desta maneira, as identificagdes transcendem os trabalhadores das minas ou prosti- tutas do norte chileno, para engendrar o didlogo com todos os que dependem do dinheiro oriundo do mundo desenvolvido. Tal fato possibilita um olhar critico em diregéo daqueles que, no passado ¢ no presente, destroem os recursos em nome de uma “modernizagao”, que nunca chega a grande maioria da populagdo. A questao da credibilidade, por sua vez, relaciona-se com a capacidade de se esta- belecer uma convengio que seja aceita como possfvel pelos especta- dores. Sem diivida, isto se conecta com a relagdo entre o interno € o externo, que impulsiona um determinado espetéculo. Por exemplo, A Maratona, do francés Claude Confortés (1998), € apresentada no Chile pelo grupo “El sombrero Verde”, com diregao de Willy Semler, gerando processos identificatérios que a converteram em verossimil, ainda quando a légica do cotidiano questiona a existéncia de trés ho- mens disputando uma maratona existencial. A pega é uma alegoria da luta — frustrada — pelo triunfalismo em sociedades desumaniza- das. Franga ou Chile nao se diferenciam no que respeita ao tratamen- to de exclusdo que dispensam aos perdedores; por isso, o piablico pode ver a obra e solidarizar-se, reconhecer-se e sofrer o embate final. O diretor dessa pega disse: “o texto nos fez mais licidos e a nés, artis- tas, no nos resta mais que represent4-lo com a mesma forga"’ com que explodiu em nossa cara. D4-nos a oportunidade de recordar, com verdadeira consciéncia, que nem tudo é triunfo ou fracasso, que a felicidade nao depende de atrelar-se ao outro, que na vida ha espaco para todos”.'5 Penso que a credibilidade ou o realismo nao séo produ- tos da imitagao, como se lé em Aristételes, mas se caracterizam por 56 gerar uma relacdo entre o interno ¢ 0 externo, que sensibiliza o espec- tador, ao falar de sua vida, da sociedade, de suas dores € fracassos. Nao faz sentido o teatro do final do século XX continuar buscando a légi- ca da verossimilhanga, tampouco faz sentido entrar em discussdes ret6ricas a respeito de estilo; importa antes a preservagao cénica e a forca do apelo, em um mundo onde as paixées (inclusive a do teatro) esto sendo abandonadas em detrimento do rentavel. E preciso possuir uma base cultural solida para inspirar-se em outras culturas, Esse ponto parece-me fundamental. O teatro latino-america- no tanto moderno como pés-moderno reflete acerca do que o conti- nente possui para dialogar e negociar com outras culturas. Minas, pdtria (1998), pega de J. D'Angelo (direcao e autoria), resgata o imagindrio cultural das regides de Minas Gerais, Brasil, que se dissemina cada vez mais nas formas culturais hegeménicas. Percebe-se que isso € impor- tante na medida em que a questdo identitdria € mével e cambiante, de acordo com os apelos que surgem no ambiente onde se vive. Se um grupo trabalha com o resgate das tradigées e outro procura criar pro- postas pluriculturais como o grupo “Galpao”, que em Romeu e Julieta (1992), une Shakespeare as tradigées de Minas Gerais, a cultura abre-se, entio, A festa mével e nao-excludente das diversas identidades dentro de uma mesma comunidade. Stuart Hall afirma que na pés-moderni- dade “a identidade torna-se uma “celebragao mével”: formada e trans- formada continuamente em relagio as formas pelas quais somos repre- sentados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”.'* Trabalhando nessa linha, o grupo “Teatro dos Andes” (Bolivia) articula um didlogo de vozes provenientes de diversas fronteiras geogrdficas. Um discurso multicultural de resgate e encontro. Seu trabalho de in- corporagao dialdégica de técnicas européias ¢ rituais latino-americanos configura um sujeito que afirma seu carater multiplo. Cesar Brie, o diretor do grupo, autodefine-se assim: Quem sou? Qual é a minha cultura? Nao sou boliviano. Sou um latino-americano nascido na Argentina, descendente de emigrantes de varios paises europeus. Vivi na Europa ¢ lé me formei no oficio de ator e diretor. Trabalho no teatro de uma forma que nao € a tradicio- nal, e cujas origens concretas tém apenas trinta anos, mas cujas fontes so tio antigas que foram praticamente esquecidas. Sou o resultado 57 dessa prdtica, que encarno sob a forma no de um método, mas de uma ¢tica (...). Vivo na Bolivia com bolivianos ¢ estrangeiros, consci- ente de ser um estrangeiro, e fago com que esta condi¢’o nao seja uma limitag&o, mas uma vantagem. Quero criarem meu teatro uma rela- Ao potente entre vanguarda e tradigao."” Esta caracteristica aparece em suas produgées teatrais. Por exemplo, Ubu na Bolivia (criada em 1993 ¢ apresentada no Brasil em 1995) exprime j4no titulo essa dimensao. A pega, representavel em qualquer lugar, reescre- ve a obra de Jarry — no contexto das ditaduras latino-americanas — com um grupo de atores que faz acrobacias, fala, canta, etc. A forma ca ideologia buscam transformar as praticas e pensamentos existentes, atualmente, na América Latina. A experiéncia, em um duplo movimento, universaliza o local e particulariza o universal. A enunciacio parte de um sujeito que verbaliza sua natureza multicultural ¢ estabelece um didlogo semiotica- mente decodific4vel em diferentes contextos: Bolivia, Brasil, etc. Quando se defende a necessidade de uma base de sustentagao prépria, tal atitude no significa fechar-se em determinadas idéias ou concepgées. Trata-se, antes, de construir uma base a partir da conscién- cia ativa do lugar de enunciag4o. Brie postula a unido de prdtica-refle- x4o-documentagio, através de sua revista El tonto del pueblo. Nota-se que a fronteira entre o fazer teatral e a teorizagao a respeito de onde e como produzir arte nao pode ser uma barreira intranspontvel; pelo contrério, ela deve estimular um didlogo continuo capaz de propiciar a criag4o e A critica novas experiéncias. Essa postura de vaivém continuo permite que outros trabalhos realizados na América Latina possam funcionar como pontas de langa culturais. E o caso das produgées O stinel, de Ernesto Sabato, dirigida por Andrés Bazallo, que se transformou em uma espécie de embaixada cultural argentina na Europa e no Chile, onde participou do XXXII Congresso Internacional de Literatura Ibero-americana (1998), e do polémico diretor argentino Alberto Félix Alberto, do “Teatro del Sur”, que apresentou suas pegas em diversos festivais internacionais. Este Ultimo criador estabelece cruzamentos temporais nas suas pegas. Por exemplo, em Tango Varsoviano (1987) carrega j4 no titulo a condigéo transfuga que une semanticamente desde o tango até experiéncias vivi- das além do mar. A pega, quase sem palavras, seduz os sentidos através 58 do mito e do melodrama e nos lembra os mundos borgianos. Nos saguéos, anjos mortos (1989), Alberto Félix Alberto utiliza a falta de comunica- ¢4o entre os homens para golpear o espectador com a coergio cultural e sexual. A pega mostra como os sistemas repressivos fazem uso das lin- guas como fronteiras de discriminagao e segregacio. A passageira (1995) marca a condic4o errante do sujeito pés-moderno, em um periodo em que o conceito de instante de Borges est4 em pleno vigor: o amanha nao existe € nao hd limites entre sonho e realidade Agora, sim, podemos ser passageiros em transito: habitar a ficgdo com a mesma liberdade com o qual nos animamos a acordar a cada ma- nhi, ¢ atrevemos a nomear — que € como dizer viver e morrer — aquilo que nos parecia inominével; passageiros que se permitem so- nhar sabendo que sonham, possuidores da ousadia de uma momen- tanea entrega que jamais ficar4 registrada ¢ s6 por isto sabemos que existimos um dia."* Estas produgées geram deslocamentos artisticos em diregdo a outros Ambitos culturais ¢ lingiifsticos. Isto s6 se torna possivel se se tem, como nestes casos, uma proposta que, sem encerrar-se em si mesma, oferece uma “identidade prépria”. Por isso, nao se pode manter-se iso- lado até que a produgio artistica esteja amadurecida. O esforgo de cons- trugdo de uma estrutura sustentavel ¢ a abertura a outras culturas sao processos relativamente convergentes. Faz-se necessdrio que nesses pro- cessos esteja presente a busca da especificidade da produgio latino- americana, o que necessariamente passa pelo reconhecimento do lugar a partir do qual se fala. O mundo teatral, ha j4 algumas décadas, conhece certos métodos desenvolvidos na América Latina, os quais partem da prépria realidade do continente. Por exemplo, o “Teatro do Oprimido” e, nos tiltimos anos, o “Teatro Terapia” do autor e diretor brasileiro Augusto Boal. Este autor desenvolveu uma metodologia que, a partir de Piscator e Brecht, tem orientado linhas de trabalho teatral na Argentina, no Brasil, no Chile, no Peru, dentre outros pafses; mas Boal nao é 0 Gnico. Em 1998, Antunes Filho (outro renomado autor brasileiro) langa o método de interpretacao chamado “Nova Teatralidade” (que ser4 publicado em livro por Sebas- tido Milaré)," cujo objetivo € mudar a forma de atuacdo e criagio de 59 espetdculos. Esses exemplos demonstram como a preocupag4o com uma técnica e uma reflexdo prépria € constante € envolve mais de um criador teatral latino-americano. Pode-se mencionar também o colombiano San- tiago Garcfa, diretor de “La Candelaria”, e Cesar Brie, como exemplos de diretores que procuram, nao somente através de suas montagens, refletir sobre a especificidade prépria do teatro latino-americano. As culturas atravessam o sujeito e ndo é 0 sujeito que as possui. Esta frase de Barba remete 4 importancia do modo como se realizam os processos de integragao de outras culturas no fazer artistico. Penso que a posico de Barba é muito taxativa, pois sabe-se que o movimento tem nuances. Algumas culturas ingressam no sujeito, inclusive sem que esse eu o queira ou o procure ¢, por razées ideolégicas ou estéticas, esse mesmo sujeito busca aproximagées com outras. Um dos objetivos do “Teatro Nacional Chileno” € promovera apro- ximagao de uma outra cultura, através do teatro. Tive a oportunidade de assistir Brincar com fogo (1998) de August Strindberg (1849-1912), peca dirigida pelo sueco Staffan Valdamar Holm. Sao palavras do diretor: Aeestréia de Brincar com fogo realiza-se em um dia de grande importin- cia para os suecos, ¢ em especial para August Strindberg. Também na Suécia, hoje € noite de Sao Jodo, mas sobretudo € verao, quando o dia é maiorea noite mais curta. (...) Esta data sempre € celebrada com festi- vidades selvagens desde os tempos do paganismo. Nesta noite elimi- nam-se as barreiras eréticas ¢ sociais. E quando o todo se exila de si mesmo. Brincar com fogo nao se passa nesta noite, mas na véspera dela. Os personagens esto literalmente no exilio em relago ao contexto so- cial e também existencial.” A aproximagio ensejada se torna possivel porque a pega relacio- fa-se semanticamente com um dos grandes problemas da sociedade chilena: a repressao erética. O interessante € que essa montagem de uma peca de 1897 tenha éxito em 1998, tanto por sua qualidade estética quanto pela manifestacao dos desejos presos nas amarras sociais presentes no enredo € na fria noite chilena de Sao Joao. No mesmo perfodo, na mes- ma cidade, assisti a outra pega intitulada Ninguém é profeta em seu espe- tho, de Jorge Diaz, dirego de Alejandro Goic, a qual também relaciona- se A temAtica da repressAo erética, desta vez entre um heterossexual e um travesti chilenos. Os personagens sao influenciados pela hist6ria politica do pais. O que é possivel se se aceita a tese de Nelly Richard O imaginério artistico que gira em torno da figura do travesti (..) irrompe sob a ditadura, em um Chile que agrupa em uma mesma imagem duas sinalizagées opostas dos géneros: a ativa (dominagio) € a passiva (submissio). Por um lado, o Chile da tomada do poder e da gesta armada que impée o discurso militarista-patriarcalista, exacer- bandoas identificagées viris ¢ a retérica do mando. E por outro lado, 0 Chile submisso a obediéncia ao modelo disciplinario ¢ rendido as ordens (como mulher) em um siléncio obrigatério. (...) A figura do travesti chileno que emerge nestes anos de clandestinidade do desejo reprimido a sombra mais tortuosa dos cédigos de controle do sentido, é a figura que mina 0 duplo ordenamento dessa masculinidade feminilidade institucionais ¢ de fachada” Com o segundo exemplo, observa-se que a presenga de determi- nados topicos nao est conectada necessariamente com culturas especi- ficas e sim com 0 tratamento, a perspectiva e as imagens escolhidas, que respondem aos macrossignos de cada espetaculo. No caso em questao, os travestis correspondem a um imaginério de ruptura social, que per- mite a conex4o com a histéria polftico-social chilena. O caso da obra de Strindberg nao é isolado, uma vez que existem outras propostas de aproximagées culturais que nascem de reflexes ou interesses estéticos que mostram idéntico processo de busca de outras culturas: Kathakali — teatro sagrado de Malabar,” apresentado pelo Tea- tro Minimo — Brasil e {ndia — no III Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte, em 1997, € um bom exemplo de tais praticas. A montagem é a reelaboragao de uma histéria do Mahabharata e se apre- senta através do Kathakali, em sua expresso plastica de movimento € vestudrio. O diretor e ator hindu, Kottakkal Nanda Kumaran, e dois atores brasileiros fazem o espetéculo, a partir de Duryodhna Vadham, histéria desconhecida no Ocidente, mas que faz. parte do imagindrio que nas palavras de Peter Brook “congrega ecos de toda a humanida- de”. O diretor, que realizou, em 1987, a montagem do Mahabharata argumenta: O Mahabharata (..) recupera algo incomensurével, poderoso c radiante: a idéia de que existe um conflito incessante em cada individuo, em cada 61 grupo humano, em cada expressfiodo universo; o conflito entre a possi- bilidade que sechama “dharma” ea negagio dessa possibilidade. (..) O Mahabharata nio intenta explicar o segredo do dharma, mas o converte em uma presenga ativa ¢ viva. E o faz através de situagées dramaticas que trazem o dharma a luz. Em sintese, este final de século latino-americano caracteriza-se por uma multiplicidade de propostas provenientes de diversas ideolo- gias e estéticas. Destacam-se aquelas propostas que mesclam diversas enunciagGes, pensamentos, contextos, etc. Nas propostas que so aqui analisadas, podem-se vislumbrar certos movimentos na pratica teatral que anunciam um pensamento diferenciador (nao-excludente) daquele da metrépole: Cesar Brie e seu grupo “Teatro de los Andes” plasmam uma enunciagio que define seu trago nos rastros das diversas culturas, constroem um dizer que faz seu o ritual indfgena e a heranga greco- romana. Griselda Gambaro escreve sobre a Argentina com as palavras do “outro” subalterno, um chinés levado em 1722 para a Franga. As articulagées solidarias no se estabelecem no interior das “nagdes ima- ginadas”,” mas sim nas desterritorializagGes realizadas pelo poder, que silencia os discursos ao respeito de todos aqueles que nao pertencem a seu niicleo constitutivo. O diretor Alberto Félix Alberto, através de lin- guagens recriadas ou com o poder da palavra interrompida, constréi uma textualidade que se potencia na ruptura da semAntica do cédigo lingiifstico como tnico construtor de discursos. E um tipo de teatro que se liga desconstrutivamente a um mundo globalizado, no qual cada vez mais se apreende ¢ se aprende, assimilando através da imagem (daf os temores expressos por Beatriz Sarlo em Cenas da vida pés-moder- na). © Kathakali abre portas a outras maneiras de entender a vida ¢ ensina que dentro daquelas formas que se considera como sendo mais alheias, h4 elementos comuns. A experiéncia teatral nascida em uma cultura distinta estimula a existéncia do didlogo em diferenga. Os seres humanos nio so totalmente iguais, mas também nio so tio distintos. “O Teatro Oficina” e José Celso Martinez Corréa buscam uma recepga0 din4mica na qual o publico se integre ao espetaculo. Entendem a arte e a cultura como respostas a um sistema, no qual se pretende que tudo o que se pensa ou se deseja relaciona-se com as estruturas dominantes. Penso que teatro pode ser um espaco de liberdade, onde o espectador se 62 manifesta, dentro de seus préprios limites, como um ser criativo e nao meramente receptivo. O desafio € saber como praticar essa proposta, sem coergao. Nas Bacantes, dirigida por José Celso Martinez Corréa, 0 ptiblico entra em um jogo erético parcialmente conduzido e estabelece lagos que pretendem ir além do corporal. Talvez o mais interessante seja constatar que trata-se de uma busca ut6pica, que desafia o niilismo que atualmente predomina entre artistas, criticos, etc. Edward Said alerta contra esse niilismo em Representagoes do intelectual: “Lyotard seus seguidores outra coisa nao fazem que reconhecer sua prépria inca- pacidade ¢ inércia, ¢ até talvez sua indiferenga, sem avaliar corretamen- te o leque verdadeiramente amplo de oportunidades que, apesar do pés-modernismo, esto ao alcance do intelectual”. O grupo cubano “Buendfa” realiza uma montagem que recupe- ra tanto as raizes ocidentais como as afro-cubanas. Essa montagem, no “espago da afro-cubanidade”, discute as racionalidades que se entre- cruzam na constituigao do “imagindrio pafs-ilha” ¢ o faz através de novas buscas estéticas. A rainha Isabel cantava rancheras € um romance que foi adaptado para teatro, prdtica hoje em dia bastante usual no teatro latino-americano. Outra experiéncia vitoriosa idéntica 4 anterior foi Ninguém escreve ao coronel, apresentada em Belo Horizonte, no ano de 1995, pelo grupo venezuelano “Rajatabla”, no Festival Internacional de Teatro. Ambas as pegas tratam de problemas relativos aos setores subalternos da sociedade: trabalhadores das minas de salitre ¢ velhos abandonados pelo Estado. Estas montagens, como os romances que Ihes dao origem, propdem um olhar critico a suposta “modernizagao” latino-americana. As montagens de A maratona de Claude Confortés € Brincar com fogo de August Strindberg geram processos identificatérios que extrapolam as fronteiras do Chile, o lugar onde foram encenadas. Minas, patria e Ninguém é profeta em seu espelho, pelo contrario, inse- rem-se em um movimento de percepgao do local, que busca resgatar 0 imagin4rio cultural regional ou nacional. Os conflitos surgem ¢ estao atravessados pela histéria cultural e politica de seus lugares de origem. Desta maneira, se alguns grupos trabalham no resgate do local ¢ outros o fazem procurando um contato com outras culturas ou produzindo propostas pluriculturais como o grupo “Galpao”, que em Romeu e Julieta une Shakespeare As tradigdes de Minas Gerais, o teatro se abre 3 63 pluralidade cultural. Estes discursos diferentes permitem, em seu con- junto, pensar na cultura como potenciadora de um pensamento que traga um caminho de construgao das sociedades a partir de lugares distintos (e ndo-excludentes) daqueles esculpidos a “sangue e fogo” pela utilizac4o “interessada” da raz4o iluminista. Eu insisto no concei- to de nao-excludente, porque nfo se trata de fechar as portas, mas de abrir todas as que possam permitir oferecer propostas — nao-glo- balizantes— que nos levem a praticas diversas das hier4rquicas e elitistas a que estamos acostumados. Por fim, cabe dizer que as idéias de Barba estdo presentes nas propostas do teatro na América Latina, inclusive antes que 0 te6rico italiano fosse conhecido na regiao. Coloc4-las hoje em destaque é uma contribuigao ao didlogo entre ambos os referenciais. A América Latina enuncia e produz um teatro que, com diversas tendéncias, negocia com os sistemas € culturas existentes dentro e fora do conti- nente. Espet4culos performéticos latino-americanos criados baixo diversas concepgGes estéticas ¢ ideolégicas (congados, mes da praca de Maio, rituais mapuches) e pecas encenadas apés longos perfodos de pesquisa (Vereda da salvagéo — escrita em 1944 — dirigida por Antunes Filho; ou A negra Ester, dirigida por Andrés Pérez, em 1990) sao parte de coordenadas espetaculares, que desenvolvem processos criativos reveladores dos mecanismos pelos quais a América Latina foi oprimida e reprimida. Quando falo de mecanismos refiro-me a rede que sistemas, instituigées, hierarquias e categorias fixas estabele- cem entre si. A elaboragio e articulagao das ideologias hegemdnicas, que mutilam o pensamento e impedem a liberdade transgressora, realiza-se através de um emaranhado, que vai desde a linguagem até as estruturas institucionais. De diversas maneiras e com distintas me- todologias, o teatro latino-americano continua produzindo signos que levam a discussao das identidades postas em relagdo com os contextos que as atravessam. No fim do milénio, essa discussao se trava a partir de perspectivas novas, as quais exigem uma critica capaz de dialogar com a criag4o artistica de maneira aberta e nao impositiva. Tradugao Silvana Maria Pesséa de Oliveira BIBLIOGRAFIA ANDERSON, Benedict. Nagdo ¢ consciéncia nacional. Sio Paulo: Atica, 1989. ANZALDUA, Gloria. Borderlands La frontera. San Francisco: Aunt Lute Books, 1987. AUSTIN G. Feminist Theories for Dramatic Criticism. 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Programa de E necessério entender um pouco. 2 Idem. ¥ Entendo texto espetacular como o conjunto de discursos que constituem a montagem 4 Nota da tradugo: no espanhol néo existe a palavra forga na cita referida, mas acredita-se que o sentido seja este. ' SEMLER, W. Programa de A maratona. “ HALL, Stuart 1997. p.13. ”” BRIE, 1995. p.71. '’ STELLA, Talio. Programa de A passageira. °° Informagées extraidas da revista Cenfrio, ano II, N° 9. » HOLM, Staffan. Programa de Brincar com fogo. 2 RICHARD, 1933. p.65. 2 © Kathakali, teatro danga hindu de caréter religioso, ¢ a reelaborago de uma das formas draméticas mais antigas, o Kuddiyattam. * BROOK, 1995. p. 181. * Termo usado por ANDERSON, 1989. % SAID, 1996. p. 35. 67 A LITERATURA INFANTIL LATINO-AMERICANA: BRASIL E ARGENTINA Ana Maria Clark Peres Nao escrevo “para” criangas. Minha limitagaoé maior que o mundo endo possuo a ousadia — ou coragem —, ao chegar em casa, de puxar uma cadeira e dizer: “Vou escrever mais uma hist6ria para as criancinhas”. Nao sei fazer texto de auto-ajuda (...) [e] ndo sou parémetro para coisa alguma. Escrevo pelo prazer de escrever e fago.o melhor de mim nesse gesto. Se meu texto é eleito pela crianga, sinto-me realizado pelo que hd de honesto na infaincia. (...) Espantam-me as pessoas capazes de tragar cainones, normas, ensinando como construir um texto para os “pequenos” — muito didlogo, muita agao, frases curtas, sem esquecer o humor. Nada de tristezas. (..) Escuto sempre, daqueles envolvidos diretamente com a formagio do leitor, a seguinte frase: “Nao dou esse livro para as criangas porque elas niio vito entender o que o.autor quis dizer”. E por acaso o professor, o orientador, os pais, entenderam? Cada um lé no texto a sua experiéncia Bartolomeu Campos Queirés 1. O SURGIMENTO DE UM NOVO “GENERO” A Literatura Infantil € uma invengao da Idade Moderna. Na civi- lizagéo medieval ¢ mesmo no inicio da era moderna (até aproximada- mente o século XVII), nao se escrevia para criangas, pois estas nao se distinguiam dos adultos, com quem compartilhavam lazer e trabalho. Como indica Philippe Ariés, em Histéria social da crianga e da familia, assim que podiam viver sem os cuidados constantes da mae ou da ama, os pequenos eram imediatamente introduzidos na sociedade dos adul- tos (em torno dos sete anos de idade), misturando-se aos mais velhos. Nao havia um traje especifico para essas criangas, tampouco brincadei- ras diferenciadas. Elas nao freqiientavam regularmente a escola, dan- do-se a aprendizagem através da experiéncia, ou seja, do contato direto com os adultos, que nao se preocupavam em censurar o que seria visto e/ou praticado pelos mais novos. Nao se percebia, enfim, uma separa- ¢4o nftida entre o mundo infantil e o mundo adulto. 69 Pouco a pouco, entretanto, essa situagao comega a se alterar, sendo que os primeiros sinais de uma grande mudanga de costumes coinci- dem, na Europa, com 0 inicio da Era Moderna, na segunda metade do século XV. Transforma-se a estrutura social, econdmica, politica ¢ reli- giosa, alteram-se os habitos. O regime feudal cede lugar as monarquias absolutas, a familia se torna base desse poder monérquico. E as criangas finalmente vao sendo descobertas. No final do século XVII, uma nog&o fundamental acaba por se impor: a debilidade e a irracionalidade da infancia, e em nome delas surge a da inocéncia infantil. Séo destacadas igualmente a fragilidade, necessidade de uma rigida educagao, que preserve a inocéncia desses Pequenos seres e ao mesmo tempo fortalega seu carter e sua razao. Essa crianga precisa agora ser isolada de uma sociedade “suja”, para que nao vivencie, entre outros, os “perigos” do sexo. Ela nao trabalha mais; vai para a escola (de preferéncia, para os internatos, a fim de se isolar me- Ihor do mundo adulto, capaz de “corrompé-la”). Jé tem um traje espe- cffico e diversdes diferenciadas, uma vez que varios jogos ¢ brincadeiras foram censurados, ¢ sua pratica, proibida. A igreja determina a moral a ser seguida, ¢ as incipientes pesquisas psicopedagégicas estipulam a nova forma de as criangas serem tratadas, para que se tornem adultos “normais”. Religiao, familia e escola se preocupam excessivamente com a crianga, reduzindo-a, entretanto, a um ser inocente, puro, angelical, (assexuado?), ingénuo, ignorante, frigil, débil, dependente, inferior, inca- paz, irracional, imperfeito. E para essa crianga que é inventada a Literatura Infantil: uma crianga que precisa atender aos ideais do adulto, ler os textos mais “ade- quados” a sua perfeita formagio intelectual e moral. Vale ressaltar que um dos marcos iniciais do género € a publicagéo, em 1697, na Franca, da obra de Charles Perrault, Histoires ou contes du temps passé avec des moralités (uma adaptagao de antigos contos folcléricos ou “contos de fadas”), enderegada ao pablico infantil e escrita com uma explicita in- tengo pedagégica: incutir nos pequenos leitores valores morais. ' Se no século XVII a crianga (pelo menos a da classe mais abastada) € particularizada, comegando a receber uma rigorosa educago, no sécu- lo XVIII ela acaba se transformando no centro de todo o sistema social politico. Com a ascenso da familia burguesa e o fortalecimento gradativo 70 da escola, responsdvel pela consolidagao dos ideais burgueses, as crian- as cada vez mais sao manipuladas por esse sistema, que nao cessa de incentivar a produgio de obras para a infancia, capazes de auxiliar no desenvolvimento fisico, mental e espiritual das “frageis” criaturas.’ No século XIX, 0 ensino se torna obrigatério na Europa, ea Lite- ratura Infantil, ainda predominantemente instrumental, continua cum- prindo exemplarmente sua fungao pedagégica e moralizadora. J4 que a crianga sé € considerada e valorizada pelo que ela serd um dia, todos os esforgos sao empreendidos para que seu progresso se faca rapida e efi- cazmente. Nos textos ditos “literrios”, contetidos doutrindrios, que as vezes se revestem de pretensa recreacio (0 “instrui-diverte” incentivado por Perrault), abafam qualquer inovago estética, ao mesmo tempo em que radicalizam a separaco entre o universo infantil e 0 adulto.* Vejamos o que nos diz Walter Benjamin, no inicio do século XX, a respeito dessa literatura: A atual literatura romanesca juvenil, criagdo sem rafzes, por onde circula uma seiva melancélica, nasceu no solo de um preconceito intei- ramente moderno. Trata-se do preconceito segundo o qual as criangas sao seres tao diferentes de nés, com uma existéncia tao incomensuravel 4 nossa, que precisamos ser particularmente inventivos se quisermos distraf-las [¢ educé-las, acrescentaria]. No entanto, nada é mais ocioso que a tentativa febril de produzir objetos — material ilustrativo, brin- quedos ou livros — supostamente apropriados as criancas.* 2. O PERCURSO BRASILEIRO No Brasil, a Literatura Infantil surge nos ultimos anos do século XIX, coincidindo com a aboligio da escravatura e com o advento da Repiblica. (Antes, o que prevalecia como literatura para criangas eram tradugGes portuguesas dos contos folcléricos e de obras pedagégicas européias.) Como indicam Regina Zilberman e Marisa Lajolo, em Um Brasil para criangas, intenta-se forjar, nesse perfodo, a imagem de uma nagdo em franco processo de modernizag4o, e a preocupagao com o ensino b4sico acarreta um grande avango da inddstria do livro “infan- til” e didatico. a Vale ressaltar que uma nova concepgio de crianga j4 vigorava no pafs desde o infcio do século, concepgao essa muito préxima da que passou a existir na Europa no final do século XVII. Segundo Jurandir Freire Costa, em Ordem médica e norma familiar, os responsAveis por esse novo olhar sobre a crianga foram os médicos higienistas, que pro- curaram revolucionar os costumes familiares, estimulando o interesse pela satide, mas, sobretudo, impondo a todos os membros da familia uma nova moral. Lutando contra a indiferenga dos pais em relagao aos filhos, caracterfstica do periodo colonial, esses higienistas buscaram cui- dar da infancia, através da educagao e da criagdo de habitos, que se tornaram, na pratica, o mesmo que disciplina e domesticagéo. O que almejavam atingir, em dltima inst4ncia, era a perfeita adequacgao da crianga as tarefas que iria desempenhar mais tarde: “Recebendo do pai a protegdo material e da mae a iniciagao na educagio, o infante prepara- se fisica, intelectual e moralmente para amar e servir 4 Humanidade, principio e fim de suas operagées”.* Na incipiente produgio nacional para criangas, essa “Humani- dade” acaba se confundindo com a patria brasileira. Escritores, inte- lectuais, pedagogos, se entregam, nesse momento, ao dever “civico” de escrever para criangas, incutindo-Ihes o amor pelo Brasil. Observe- se que a essa tarefa patriética “nao faltavam também os atavios da recompensa financeira: via de regra, escritores e intelectuais dessa época eram extremamente bem relacionados nas esferas governamen- tais, o que lhes garantia a dogo maciga dos livros infantis que escre- vessem”.® Dentre os varios autores que se destacam nesse perfodo, é importante ressaltar o nome de Olavo Bilac, que publica contos e poemas para criangas, marcados por um nacionalismo ufanista (ver- sos como “Ama, com fé ¢ orgulho, a terra em que nasceste! / Crianga! nao vers nenhum pais como este!” foram leitura obrigat6ria de gera- Ges e geracées de criangas brasileiras). Nos primeiros anos do século XX, o panorama nao se altera sig- nificativamente, e a Literatura Infantil permanece atrelada aos interes- ses do Estado ¢ da instituigao escolar. Encontramos, porém, na década de 20, o exemplo solitério de Monteiro Lobato, escritor que procura renovar o género — transformando-o, indiscutivelmente —, sem con- 72 tudo desistir de incorporar as suas produgées infantis o projeto nacio- nalista doutrindrio. Considerado por muitos o verdadeiro criador da Literatura Infantil brasileira, Lobato é até hoje reverenciado pela critica especializada, que nao aceita, comumente, qualquer tipo de questiona- mento As suas produgées. Na década de 30, alguns autores para adultos se dedicam a escre- ver também para criangas: José Lins do Rego, Erico Verissimo, Luis Jardim, Lucio Cardoso, Graciliano Ramos. Nos anos 40, dois conheci- dos poetas publicam igualmente obras “infantis”: Guilherme de Almeida e Henriqueta Lisboa.’ Nos anos 50, a Literatura Infantil nao atrai nenhum renomado escritor para suas fileiras, mas na década de 60 © panorama do género comega a se modificar, com a criagao de indme- ros programas e instituig6es voltados para o seu fomento (Fundagao do Livro Escolar, Fundagao Nacional do Livro Infantil e Juvenil, Centro de Estudos de Literatura Infantil e Juvenil, etc.).* A grande mudanga ocorrida com essa literatura sé vai se dar, no entanto, a partir da década de 70, nos anos do “milagre econémico”, auge da ditadura militar, quando hi o inicio do boom de textos para criangas, o qual atingiria seu dpice nos anos 80, quando comega a flores- cer igualmente uma vasta literatura dirigida aos jovens. Nao se trata agora do surgimento de um ou outro autor de destaque, mas de uma produgdo em massa — em parte bastante revitalizada — destinada aos mais novos. Dessa nova safra, destacam-se dentre varios: Ana Maria Machado, Bartolomeu Campos Queirés, Elvira Vigna, Jodo Carlos Marinho, Lygia Bojunga Nunes, Ruth Rocha, Zirado, etc. Eis 0 que nos diz Ligia Magalhiaes de tal periodo: Aatengio, o cuidado e a esperanga voltaram-se para o ensino bisico, reconhecido como decisive para a educacao. E a ago pedagégica junto & crianga voltou a privilegiar o livro como elemento imprescindi- vel ao crescimento intelectual ¢ & afirmago cultural. Surgem progra- mas culturais, tanto da iniciativa privada, quanto da iniciativa do Estado. E nesse cendrio que a literatura infantil passou a ser um fildo, para estudos, semindrios e publicagées.? 73 3.0 PERCURSO ARGENTINO, Na Argentina, a Literatura Infantil também surge no final do século XIX (em El cuento en la literatura infantil, de Dora P. de Etchebarne, a autora estabelece o ano de 1880 como ponto de partida dessa produgao). Tal qual acontece no Brasil, nao parece ser fortuito 0 aparecimento do género nesse final de século: trata-se de um momento marcado por um considerdvel incentivo ao ensino basico, o qual se manifesta, na pratica, através de intimeras campanhas de alfabetizacio, que visam a melhorar o nivel cultural da populagdo argentina. Como nao poderia deixar de ser, a Literatura Infantil passa a ser considerada excelente alavanca desse progresso. Entretanto, no se assiste no infcio do século XX a um imediato desenvolvimento do género, que s6 comega, de fato, a ganhar alento na década de 50. (Antes, nos anos 40, alguns autores j4 vinham se destacan- do, sendo o mais reconhecido Janvier Villafafie, autor do livro de poe- mas El gallo pinto.) O florescimento da Literatura Infantil argentina nos anos 50 se deve, ao que tudo indica, 4s campanhas de escolarizagao do governo peronista, as quais procuram incentivar a produgao de livros “infantis” € didéticos a serem estudados nas escolas. As obras do perfodo pregam obediéncia, disciplina e respeito 4 tradigao, sendo comum a presenga de um avé ou avé passando ligées a seus netos. Haja vista as produces de Julio Ferrari e Rafael Jijena SAnchez"® Na década de 60, Marfa Elena Walsh, a mais festejada autora “infantil” argentina, comega a publicar seus textos para criangas (desde os anos 40, ela j4 produzia obras para adultos). Poeta, ficcionista, tradu- tora, compositora, cantora, atriz, produtora de TV e feminista com atua- 40 destacada na Argentina e no exterior, Walsh privilegia em suas obras o folclore, bem como o humor, a ironia e a parédia, muitas vezes para escapar 4 censura do governo militar." Nos anos 70 ¢ 80, presenciamos um considerdvel reflorescimento do género, durante governos militares, o que contraria declaragdes como a de Susana Itzcovich (fundadora da “Associacién de Literatura Infantil y Juvenil Argentina”), que, em entrevista concedida ao escritor e critico cubano Antonio Orlando Rodriguez, declara: “Estadisticamente, se 74 genera una mayor produccién en cada momento democratico. La creatividad no dormida, pero sf guardada entre silencios, emerge com mayor furza. Nuestra literatura infantil crece en la medida en que la liberdad de expresién permanece como un camino politico democrati- co”.! Se se considera, por exemplo, o tiltimo governo militar argentino (de 1976 a 1983), constatamos que ele propiciou o surgimento de nu- merosos titulos “infantis” e “juvenis”, como bem atestam as pesquisas de Graciela Gallelli, em Panorama de la Literatura Infantil-Juvenil Ar- gentina. (S6 dentre obras langadas no mercado em 1981, a autora desta- ca 62 novos titulos significativos, quase o dobro dos assinalados no ano anterior: 35.) 4. A PRODUCAO CONTEMPORANEA E hoje, passados quase trinta anos do infcio do Boom da Literatu- ra Infantil tanto no Brasil quanto na Argentina, como se situaria esse género? Se as publicagdes das décadas de 70 ¢ 80 jé foram exaustiva- mente comentadas (sobretudo no Brasil), faltam pesquisas que apon- tem os rumos tomados pela indiistria e comércio do livro “infantil” na década de 90. Que convite a crianga latino-americana deste final de milénio, A sua subjetivacdo, traz essa literatura ? Que ideal de crianga busca resistir nesse tipo de material? Foi exatamente para responder a essas questes que eu me dispus a focalizar alguns titulos representativos da recente produgio literdria enderegada 8 infancia, que circulam atualmente no mercado editorial brasileiro ¢ argentino. 4.1. A SELECAO DO CORPUS No inicio de minha investigagio, pensei ser possivel focalizar toda a década de 90, mas a quantidade de titulos publicados neste pe- riodo, principalmente no Brasil, mostrou ser invidvel esse propésito. (Se levamos em conta apenas 0 ano de 1996, deparamos com 800 novas obras langadas no mercado brasileiro.) Optei, entio, por selecionar ape- nas titulos que tivessem sido publicados, em I*. edigéo, no ano de 1997. vp) Aescolha das obras argentinas (ainda em nimero bem menor que as brasileiras) ofereceu menos dificuldades do que a das brasilei- ras. Em visita a Buenos Aires, em agosto de 97, procurei percorrer 0 maior nimero possivel de livrarias, onde adquiri 15 titulos “infantis”, estrategicamente localizados em segées & parte, nas livrarias. Além da exclusdo das obras “juvenis”, busquei nao repetir autores, optando, dentro do possivel, por aqueles que j4 tinham obras publicadas ante- riormente. A comparagio entre os estoques das varias livrarias me fez concluir que os autores que j4 se impdem por sua produgio foram contemplados na minha escolha. Em princfpio, procurei igualmente nao repetir editoras, mas, para que um numero maior de autores pu- desse ser considerado, foi necessdrio, em alguns casos, adquirir mais titulos da mesma editora. No que concerne a produgio brasileira, optei por nao eleger uma cidade como referéncia, mas sim uma livraria virtual com sede em Sao Paulo, a qual atende, via Internet, a leitores das varias partes do Brasil. Levando em conta os mesmos critérios que nortearam a escolha dos titulos argentinos, cheguei também A selecao de 15 obras. 4.2. AS OBRAS BRASILEIRAS Apés a andlise dos 15 titulos selecionados, € possfvel destacar algu- mas das principais caracterfsticas que perpassam grande parte dessas obras: 4.2.1. O CUIDADO NA PREPARAGAO E IMPRESSAO DOS ORIGINAIS Em todos titulos, é flagrante uma preocupagio das editoras com os aspectos grAficos das produgées. Ilustragées sugestivas (que nao se restringem a uma reprodugio servil do enredo da hist6ria), paginagao e diagramagio cuidadosas, papel couché, boa impressdo, etc., se fazem presentes na maioria das obras. Duas delas tém capa dura, e a opgao mais freqiiente é pelo uso de cores nas ilustragdes. Apenas dois livros trazem ilustragées em preto e branco, e um, em duas cores. Os restantes optam pelas quatro cores. 76 4.2.2. A INOVACAO TEMATICA — AS MARCAS DA CONTEMPORANEIDADE Varios textos incorporam em seus enredos situagGes ¢/ou tipos caracteristicos da vida deste final de século. Sendo vejamos alguns des- ses exemplos: * A avé de Voué Delicia, de Zirado: “alegre, doce, forte (...), ama, sofre por amor e dé volta por cima (...). Nao est4 mais sentada numa cadeira de balango, vestida de preto, fazendo croché, dando conselhos ¢ suspi- rando de saudades”.'* © Joaninha, a Chapeuzinho Vermelho de Fadas que nao estdo nos contos (de Katia Canton): tem uma lancheira térmica, na qual guarda “uma Xuxa de marzipan, um danoninho e uma garrafa de Gatorade”."* En- contrando um lobo no caminho da escola (adepto de gindstica aerébica, comida integral e meditagao), acaba se interessando porele, mas decide nao se casar logo, preferindo morar com o namorado antes de qualquer compromisso mais sério. * A famflia paulista, de Domingao Jéia (de Flavio de Souza), que desce a serra para passar o fim de semana em Santos, “cantando e comendo frango assado nas curvas da estrada”,"" ¢ acaba vivendo as mais diversas peripécias durante sua estada no litoral. 4.2.3. PERMANENCIA DO DIDATISMO. Apesar dessas novas roupagens, sobretudo gréficas ¢ tematicas, encontramos ainda, nas produgées contempor4neas, tragos do didatismo que marca o género Literatura Infantil desde o seu inicio. As vezes, eles sao explicitos, apresentado-se sem disfarce no desenro- Jar da narrativa ou na construgao dos poemas e, em outras ocasides, recebem maquiagens variadas. No primeiro grupo, destaca-se, por exemplo, Fadas que nao es- tdo nos contos, jA citado, que finaliza com a seguinte observagio do narrador: “Importa [agora] que vocé saiba de onde surgiram os tradi- cionais contos de fadas, que todo mundo conhece, confunde ¢ adota como padrao de comportamento para a vida. Pois vire a pagina, € vamos ao glossério.”" Segue-se uma explicagio da origem de varios contos folcléricos. 77 Uma outra manifestagao, explicita, do didatismo nas obras anali- sadas pode ser verificada em determinados textos enderegados a crian- gas bem pequenas. Em O retrato, que integra a “Colegio Gato e Rato”, de autoria do casal Mary e Eliardo Franga, deparamos com frases bem curtas, formando um texto que mais se aproxima de uma cartilha. Veja- mos trechos dessa histéria: “Veio o gato com uma m4quina de retrato./ Ele queria tirar retrato do pato. / Mas o pato pulou no lago./ Ele queria tirar retrato do rato. / Mas o rato fugiu do rato. / Ele queria tirar retrato do bode. / Mas o bode falou: — Nada disso! Nao pode!”!” Considera- dos representativos da atual “Literatura Infantil” brasileira, em que di- feririam os livros da “Colegdo Gato e Rato” (j4 com 32 titulos) de cartilhas que ensinam a crianga a ler? Seriam as ilustragées sugestivas de Eliardo Franga? A produgio cuidadosa da Editora Atica? Ou ainda o endosso da critica especializada? Mais um tipo de didatismo explicito se apresenta em pelo menos um titulo analisado: trata-se de uma proposta de auto-ajuda, em que “se ensina” a crianga a vencer determinados obst4culos. O texto é Tenko medo mas dou um jeito, de Ruth Rocha (uma das mais festejadas escrito- ras da nossa Literatura Infantil) e de Dora Lorch, “mestre em psicologia clinica”. De acordo com essa tltima, o livro “pretende mostrar as crian- gas algumas situag6es do dia-a-dia que envolvem um perigo real — fogao aceso, objetos cortantes, rua com transito.... — mas, ao mesmo tempo, que existem maneiras de lidar com esses perigos”. A superagao dos medos, na narrativa, se dé de maneira simplista, a meu ver, e “magi- camente”, bastanto A crianga se conscientizar deles. Sendo vejamos al- guns trechos da obra: “Eu tinha medo de atravessar a rua, porque tinha medo de ser atropelado. Mas aprendi a atravessar com cuidado, a olhar para os lados, a atravessar na faixa e a obedecer o sinal”.!* E comum igualmente encontrarmos textos em que a preocupa- 40 pedagégica do autor se manifesta através de uma “moral da histé- ria”, a ser captada pelas criangas, no final da leitura, Em O passarinho engaiolado, de Rubem Alves, a “ligéo” a ser apreendida € também ada coragem: um passarinho engaiolado leva uma vida de tranqiiilidade € seguranga (para sossego de sua mae), mas sonha com a liberdade. Um dia, seu dono esquece aberta a porta da gaiola, e o passarinho escapa. Em liberdade, nao sabe o que fazer para sobreviver em meio 78 aos perigos do mundo e decide retornar a gaiola, situaco que serve de pretexto para o narrador apresentar suas ligées: “Somente podem go- zar a liberdade aqueles que tém coragem”. Ou: “E muito mais sim- ples nao ser livre”. As vezes, a moral nao vem tao explicitada no enredo, mas pode ser facilmente deduzida pela crianca. E. 0 caso de Menina bonita do laco de fita, de Ana Maria Machado. A personagem-menina em questo é ne- gra “linda, linda”, com olhos que parecem azeitonas brilhantes, cabe- los “feito fiapos da noite”, pele “escura e lustrosa, que nem o pélo da pantera negra”. Um coelho branco, seu vizinho, que a considera “a pessoa mais linda que ele tinha visto em toda a vida”, desejoso de ter filhos negros como a menina, resolve se casar com “uma coelhinha escura”, que lhe dé, entre outros filhotes, uma coelha “bem pretinha”, cuja beleza também é ressaltada pelo narrador. Se nos contos tradicio- nais “as meninas mais lindas que existem” so geralmente brancas ¢ louras, aqui se inverte simplesmente a situaco, idealizando-se as per- sonagens negras (sejam meninas ou coelhas), estas, sim, dignas de mais destaque do que as outras. Uma histéria que busca ser uma ligao contra o racismo continua, a meu ver, sendo t4o racista quanto as antigas. Em Minhas memérias de Lobato (prémio Jabuti de 1997), de Luciana Sandroni, as informagoes a serem passadas as criangas dizem respeito & vida e obra de Monteiro Lobato. Emilia, a célebre personagem do Sitio do Picapau Amarelo, retorna, nessa nova narrativa, decidida a escrever as memérias do escritor, com auxilio do Visconde de Sabugosa. Este, depois de minuciosa pesquisa, vai desfiando a biografia de Lobato, enquanto Emilia solta seus palpites recheados de humor. No final, hé uma disputa entre a boneca e o Visconde sobre quais trechos do livro agradarao mais as. criangas: o relato dele ou os comentarios dela. Nem Sonos de crianga, o tinico livro escrito por uma crianga — a atriz mirim da Rede Globo de Televisdo, Carolina Pavanelli —, es- capa ao tom didatico. Dedicado & sua familia ¢ a seu colégio, que lhe despertou “o prazer pela leitura”, contém varios contos que incorpo- ram ligdes, aprendidas (ao que tudo indica) dos adultos: ora depara- mos com um menino que perde o medo do vento, depois receber deste varias explicagdes, ora com um homem “reclamao”, que fica curado de seu mau humor depois de se machucar num acidente de 79 carro, provocado por sua imprudéncia em dirigir sem cinto de segu- ranga e, ainda por cima, bébado. Mesmo 05 textos que se pretendem mais Itidicos nao desistem de incorporar explicagées aos pequenos. Este é 0 caso de Histérias com poesia, alguns bichos & cia., de Duda Machado. “Neste livrinho que ensina ¢ diverte criangas de todas as idades” (conforme indicagio na “orelha” do livro), encontramos, por exemplo, entre outras, as seguintes informagées sobre a vida dos ursos polares: “Vocé conhece o urso polar? / Ele mora 14 no Pélo Norte / Onde faz um frio de rachar. / (...) No inverno ele s6 faz dormir / (...) Com dois metros de altura, / Pesando quase oitocentos quilos / (...) Passa horas a fio a nadar (...).””” Jé O dilema do Bicho-Pau, de Angelo Machado, procura mostrar as vantagens do mimetismo, tipico dessa espécie de insetos: ora o animalzinho é salvo por se fingir de pau; ora, por se fingir de bicho. No final da narrativa, vemos a personagem aceitando sua verdadeira na- tureza e, para complementar a licdo, na 4*. capa o autor explica como é o bicho-pau “na vida real”, assinalando as diferengas entre essa “vida real” ea ficcao por ele criada. Essa caracteristica — o autor explicar a seus leitores a historia inventada (como se eles nao fossem capazes de entendé-la sem sua pro- videncial intervengo) — est4 presente em vdrias outras obras analisa- das. Mesmo em Vou6 Delicia, texto irreverente ¢ anti-convencional (ja comentado), seu autor intervém, terminada a narrativa (em “A histéria da hist6ria”), explicitando o porqué de ter escrito seu texto, que, segun- do cle, visa a mostrar a existéncia de “um novo ser habitando entre nés. E avé deste final de século, uma coisa tio nova” E contada também a génese da hist6ria, a partir da idéia dada por uma pequena leitora de Santa Catarina. E Ziraldo acaba por fazer mengio a um fato muito comum entre os autores de Literatura Infantil: seu contato com as crian- gas, sobretudo nas escolas, que, antes da visita do escritor, se incumbem, de estudar suas obras ¢ sua biografia” Explicagées fornecidas pelo autor também podem ser encontradas em Um cédigo para lessen, de Lourengo Cazarré. Ficcdo cientifica que relata a vida depois da destruigao da terra, quando as criangas s6 so concebidas por inseminagio artificial, a narrativa visa a trazer A tona as verdadeiras origens de um menino, que, bem mais emotivo que seus 80 companheiros, foi concebido pelo método tradicional (e por pais amoro- sos), numa experiéncia cientifica singular. Caso algum leitor nao tem entendido a “moral da histéria”, o autor se propée esclarecé-la: “Nao quis apenas esbogar uma vida. Quis falar de uma coisa mais secreta e mais poderosa. Uns chamam essa coisa de amor. E garantem que é rara. Outros asseguram que ela desapareceu ou que vai desaparecer no futuro, como est4 contado neste livro”.4 Uma ficha de leitura integra a edigao da obra. Indmeras informagées sao igualmente fornecidas pelo autor de Juntos na aldeia, de Luis Donisete Benzi Grupioni. Trata-se de relatos de cenas da vida de indigenas brasileiros, origindrios da Amazénia. Além de uma apresentagio feita pelo autor, h4, apés cada relato, informagoes detalhadas sobre as diversas tribos mencionadas. Integrando uma cole- do que visa a transmitir “hist6rias sobre a sabedoria, as tradigdes, a vida cotidiana € os rituais dos indios brasileiros”,” o livro em alguns momen- tos insere tais narrativas no contexto de uma sala de aula de criangas brancas, com ligées de bom comportamento por parte da professora. Em um texto bastante irreverente, Domingdo J6ia, j4 citado, seu autor, Flavio de Souza, n4o se furta, da mesma forma, a “explicar” seu relato, ainda que com uma boa dose de humor. O préprio recurso utili- zado para narrar as varias cenas — a cada momento um “membro” da familia (af inclufdo 0 cachorro) “toma a palavra” — é esclarecido para as criangas leitoras. Em sintese, pode-se afirmar que, dentre as 15 publicagoes selecionadas, apenas duas nao contém quaisquer explicagdes: Ciranda de anel e céu, de Sylvia Orthof, e Sete cavalos na berlinda, de Sidénio Muralha, que, optando pela poesia, deixam bastante espaco para a in- vengao do leitor. 42.4. APELO AO “INFANTIL” As publicacées brasileiras apresentam, com freqiéncia, dados de catalogagao, que as caracterizam como “Literatura infantil” ou “Infanto- juvenil”. As vezes, é acrescida a esses dados a indicagao da faixa etaria qual a obra se destina, estipulando-se, assim, rigidamente, o seu ende- rego. Além dessa destinacio, é possivel verificar a presenga de caracteris- ticas que os especialistas do género estipulam como mais “adequadas” 81 ao piiblico infantil, a saber: a “simplicidade” da linguagem (frases cur- tas, registro coloquial, girias, discurso direto, etc.); o humor; a utiliza- ao de material folclérico; o final feliz, a resolugo de conflitos, a busca da harmonia. Vale ressaltar que a grande maioria das obras analisadas se enquadra nesses té6picos. 4.3. AS OBRAS ARGENTINAS Quanto aos 15 titulos argentinos analisados, destaco os seguintes aspectos: A3.1. A APRESENTACAO GRAFICA DOS LIVROS Assim como no Brasil, também as editoras argentinas vém cuida- do de suas publicagées, mas, ao que tudo indica, as edigdes (que t¢m de 2.000 a 4.000 exemplares)”* so menos dispendiosas que as brasileiras. Seno vejamos: apenas um livro foi impresso em papel couché; ne- nhum apresenta capa dura; oito trazem ilustragdes em preto ¢ branco; cinco usam quatro cores em suas ilustragées; dois, apenas duas cores. 43.2. A OPCAO PELO HUMOR O humor esté presente em intimeras das obras analisadas, e mui- tas vezes se trata de realizagdes bem sucedidas, como € 0 caso de Los colugos, de Luis Salinas. Numa critica aos saberes institufdos, muito especialmente ao saber cientifico e A sua pretensao de tudo abarcar, nar- ra-se a histéria de estranhos personagens — os “colugos — irredutiveis a quaisquer explicagées da ciéncia. Como indica a apresentagao do li- vro, na 4*. capa, “después de leer este tratado ‘coltigico’, los lectores no podr4n menos que encarinarse definitivamente com ellos” 2° Ja El libro de la risa, de Ricardo Marifio, opta por um humor mais explicito, ao focalizar o mundo infantil e tudo o que o cerca. Em vez de uma visdo idealizada desse mundo, confrontamo-nos com as mais diff- ceis situagdes por que passam as criangas em seu convivio com os adul- tos € com outras criangas: “Este libro aborda casos y temas diversos: diminutos de nueve afios que se enamoram de veteranas de once; (...) nifios tragas y amiguitos plomazos; nifias romAnticas, petisos egofstas y Proyectos de actores que vomitan el dfa de la fiesta patriética (...)”.” 82 Manuelita éDénde vas?, de Maria Elena Walsh, também recorre ao humor para narrar as aventuras da tartaruga Manuelita através do mundo, a qual, incansével, busca participar de variadas peripécias, en- trando em cena sempre com o mesmo bordao: “Manuelita, presente”. Encontramos igualmente tentativas de humor em El hombrecito verde, de Laura Devetach (um homenzinho vermelho erra de hist6ria e aparece no conto do homenzinho verde) ¢ em El tren mds largo del mundo, de Silvia Schujer (uma familia muito numerosa vai a um circo no tinico vefculo capaz de acolhé-la inteira: um trem). 43.3. O RESGATE DO FOLCLORE Bem mais presente na obras argentinas que nas brasileiras, o apelo ao folclore € marcante em varios dos titulos analisados. Muitas vezes, é 0 folclore da Argentina que est em questo, como em Un do li tud: rondas y canciones tradicionales infantiles, coletadas e adaptadas por Carmela Fischer, e em El puente del diablo, de Jorge Accame, coletanea de relatos de suspense: “Cualquier anciano — también cualquier joven que haya pasado su infancia en el noroeste argentino— conoce bien a los monstruos que habitan Ia regi6n y podré relatar alguna aventura al respecto”.”8 Em outras ocasiées, a narrativa fantdstica adaptada se origina de paises distintos, como em Huellas en la arena, de Maria Teresa Andruetto (coletanea de contos populares de varias regides do mundo), e de Banshee, la mensajera del mds alld, de Maria Cristina Thomson (adaptagao de um conto de suspense irlandés). 4.3.4. A BUSCA DA SUPERACAO DO MEDO Curiosamente, ao lado de publicagées que visam a “provocar medo”, como os relatos de suspense, deparamos com obras que levam 4 superacdo desse medo, as vezes de forma simplista. Como exemplo, temos a peca teatral Chau, Seftor Miedo, de Marfa Inés Falconi, que trata do medo de dois irmaos por fantasmas, medo esse enfrentado finalmente pelas criangas. A cangdo que encerra o espetdculo ilustra bem essa superagao: “El miedo se eché a volar, / Cuando empecé a jugar. / El miedo se asusté / Tanto que se escapé. / éQué miedo le di yo? / Hoy no me hard llorar, hoy no, /i No, sefior miedo, no!”® Um 83 outro exemplo é Miedo, de Graciela Cabal, que narra a histéria de um menino medroso que perde subitamente seu medo, com a ajuda de um cachorro. Mais uma forma de tentativa de superagao do medo é, a meu ver, © relato de de contos de suspense “atenuados”, ou seja, de histérias nas quais o mistério é esclarecido no final. Este é caso de El libro de los chicos valientes, de Pipo Pescador, no qual o préprio autor explicita, num pré- logo, sua op¢ao por “atenuar” o suspense: “Estos cuentos no son ‘terrrorificos hasta el temblor’, porque no quiero asustar a nadie, y me- nos a los chicos que aman Ia literatura”. 4.3.5. A BUSCA DA HARMONIA, PELA VIA DO SIMPLES £/OU DO NATURAL Assim como os exemplos citados acima, em que se buscar superar © medo, muitas vezes de forma “magica”, para que a hist6ria termine bem, sem maiores traumas para as criangas, outras obras também optam por focalizar situages de harmonia, com um final feliz e todos os con- flitos resolvidos. E 0 caso, por exemplo de Manuelita, j4 citado: depois de muito viajar, a tartaruguinha encontra um porto seguro e um amor em sua terra natal. J4 0 livro de poemas Un bosque en cada esquina, de Maria Cristina Ramos, procura resgatar a simplicidade e a harmonia da natureza: “Todo 4rbol que crece / mece la historia, / milenios de equilibrio, / sabia memoria. / (...) Tiene didlogo el agua/con las rafces, / que se saben con ella / siempre felices.”*! Diminutivos (“hilito”, “pasitos”, gotitas”, pastitos”, “cantito”, etc) acabam por dar o tom “in- fantil” aos poemas. A opgio pelo “simples” ¢ pela banalizagao do enredo se faz pre- sente também em Viaje en globo y Un pichén de avestruz, de Maria Granata. Trata-se de textos em letra cursiva (com frases curtas e bastante didlogo), enderegados a criangas bem pequenas. Narram aventuras de bichinhos, por terra e pelos ares, as quais terminam sempre bem e com muitas comemoragées, em razo do final feliz. 43.6. A PERSISTENCIA DO DIDATISMO Tal qual acontece com as obras brasileiras, varias das obras argen- tinas também no escapam do tom didatico. As vezes, o ensinamento é 84 explicito, como a coletanea de poemas Arrastrando zapatos, de Ricardo Fainerman. Com nitidas preocupagées ecoldégicas, os versos visam a alertar as criangas contra a extingZo de animais ¢ plantas: “Yo soy un hombre que siempre quiso volar. / Lo intenté de mil maneras / y como no lo logré, / decidi que los pajaros tampoco. / (...) Yo soy un hombre que siempre quiso ‘crecer’. / Lo intenté de mil maneras / y como no lo logré, / decidf que los 4rboles tampoco.” Em outro textos, a ligo € mais camuflada, mas nao deixa de se fazer presente. E 0 caso, ainda, de Manuelita, da consagrada Marfa Elena ‘Walsh. As aventuras da tartaruga pelas mais distantes regides do mundo me parecem, muitas vezes, pano de fundo para ligdes de geografia e,em outras, para alertas de ecologia. Por exemplo, na China, os ladrdes que ousam tentar roubar o urso panda do zoolégico de Pequim, para vendé- lo a um contrabandista de espécies em extingdo, recebem um castigo exemplar: “Los ladrones son condenados a cuarenta afios de trabajos forzados: deber4n bordar tres milliones de carpetas de seda y fabricar a mano seis millones de zapatillas de fieltro adornadas con lentejuelas”.* Mesmo numa obra marcada por um humor fino como Las colugos, o narrador no se furta a acrescentar, no final, sua ligao. Comparando €ssas personagens com os humanos, critica o comportamento desses Ultimos, que sempre querem se mostrar melhores do que os semelhan- tes. Insiste em que a suposta superioridade de uma raga sobre outra pode até levar a extingao de determinados grupos. Vale ressaltar que 0 tom didatico do final contrasta com a abertura e sugest4o de outras Ppassagens. Mais uma forma de aparecimento de licées é 0 gloss4rio que acom- panha alguns contos de Huellas en la arena. Explica-se, por exemplo, o que é “sultZo”, “samurai”, etc. J4 em El puente del diablo, encontramos, no final de todos os contos, a origem de varios personagens ou lugares citados na narrativa, explicitando-se, inclusive, a diferenga entre a figcdo do livro e a dita “realidade”. Em El libro de los chicos valientes, o autor se faz mostrar num Prélogo, no qual explica o titulo de sua obra e incentiva a formagao de uma biblioteca: “Si cada vez que lees un libro lo guardas, con el tiempo tendrds una biblioteca. Empezards con una tablita contra la pared, y terminar4s con una estanterfa. Hay cientos de libros interesantes. Cada 85 uno tiene algo diferente que contarte.”® A mesma preocupagdo com a aquisigdo de livros se manifesta em El libro de la risa: “En fin, querido lector, ojalé tus padres hayan comprado este libro como corresponde y no hayan pedido prestado 0, peor, fotocopiado y que la editorial no pueda consignarlo en sus cuentas”.* 5. ESCREVER PARA CRIANCAS, A anilise dos dois percursos (brasileiro e argentino), bem como do percurso europeu que os antecede, me leva a afirmar que a Literatu- ra Infantil surge e/ou floresce mais vivamente em governos autoritérios, ou naqueles momentos em que governos democrdticos se langam em campanhas de escolarizagao da populagao, usando o género como ins- trumento de formagéo da crianga. Nao é sem motivo, portanto, que ainda encontramos nas obras contempor4neas latino-americanas fortes tragos do didatismo que ca- racteriza a produgio para a infancia desde os seus primérdios. Ainda subjaz a muitos desses titulos, como se viu, um ideal de crianga débil, incapaz — o do século XVII? — que, sem a “ajuda” do adulto, nao conseguiria entender o texto, entender “o que o autor quis dizer”, ha- vendo, pois, a intromissdo constante de um adulto “explicador”. Mes- mo textos irreverentes e desmistificadores de uma ordem preestabelecida, nao se furtam, freqiientemente, a assumir essa posigao de tudo preten- der ensinar, esclarecer, sem deixar furos. (Apesar das novas roupagens temAaticas e grdficas, as produces brasileiras se apresentaram, no recorte feito, mais didaticas que as argentinas.) Lembro-me, neste ponto, da fungio do escrevente, evidenciada no classico ensaio de Roland Barthes, “Escritores e Escreventes”: “ que define o escrevente é 0 seu projeto de comunicago ser ingénuo: nao admite que a sua mensagem se vire € se feche sobre si mesma, e que se possa af ler, de uma maneira diacritica, outra coisa senao aquilo que ele quer dizer (...)”. E Barthes prossegue: “Ele considera que a sua fala poe fim a uma ambigiiidade do mundo, que institui uma explicagdo irreversfvel (...) ou uma informagio incontestavel”.* O escritor para crian- gas cré, com freqiiéncia, ser justamente este o seu papel. A grande quantidade de titulos editados atualmente nos dois pai- ses, sobretudo no Brasil (a produgio infantil brasileira em toda a sua hist6ria j4 soma cerca de 44.000 titulos), me indica que, além das moti- vagées polftico-educacionais observadas, existe hoje uma forte motiva- 40 econdmica em jogo, uma vez que a indistria e o comércio de livros infantis tornaram-se excelentes negécios, e as editoras nao se interessam em mudar esse estado de coisas. (No Brasil muitas vezes 0 critico de Literatura Infantil € também editor de obras para a infancia.) Coerente com a seu papel de “escrevente”, 0 adulto responsvel pela produgao dos titulos — seja ele autor ou editor — vai mais além: estabelece, a priori, “faixas de leitura”, a partir de pressupostos da psicologia do de- senvolvimento infantil, tornando menos dificil a escolha de livros por parte do professor, na escola, destino privilegiado de tal produgio. Esse adulto continua, pois, sabendo o que “é melhor” para as criangas (folclore, humor, final feliz, harmonia, ensinamentos v4rios), seres muito diferenciados dele, mantendo-se ainda, mais vivo do que nunca, neste final de milénio, o “preconceito moderno” denunciado por Benjamin no infcio do século. BIBLIOGRAFIA TEORICA: ARIES, Philippe. Histéria social da crianca ¢ da familia. Trad. Dora Flaksman. 2. ed. Rio de Janciro: Zahar, 1981. BARTHES, Roland. Ensaios criticos. Trad. Antonio Massano ¢ Isabel Pascoal. Lisboa: Edigées 70, 1977. p. 205-215. BARTHES, Roland. O rumor da lingua. Trad. Mario Laranjeira. Sao Paulo: Brasiliense, 1984. p.65-70: A morte do autor. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e politica; ensaios sobre literatura ¢ histéria da cultura. Obras escolhidas. Trad. Sérgio Paulo Rovanet. 3.cd. Sao Paulo: Brasiliense. v.1. p. 235-243: Livros infantis antigos ¢ esquecidos. COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica ¢ norma familiar. 2.¢d. Rio de Janciro: Graal, 1983. 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Campinas: Papirus, 1997. CANTON, Katia. Fadas que néio estéo nos contos. Sao Paulo: Difusao Cultural, 1997. CAZARRE, Lourengo. Um cédigo para lessen. Belo Horizonte: Formato, 1997. FRANCA, Mary, FRANCA, Eliardo. O retrato, Sao Paulo: Atica, 1997. GRUPIONI, Luis Donisete Benzi. Juntos na aldeia. Sao Paulo: Berlendis & Vertecchia, 1997. MACHADO, Ana Maria. Menina bonita do lago de fita. Sa0 Paulo: Atica, 1997. MACHADO, Angelo. O dilema do Bicho-Pau. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, MACHADO, Duda. Histérias com poesia, alguns bichos & cia. Sao Paulo: Ed. 34, 1997. MURALHA, Sidénio. Sete cavalos na berlinda. Sao Paulo: Global, 1997. ORTHOF, Silvia. Ciranda de anel e céu. Sao Paulo: Global, 1997. PAVANELLI, Carolina. Sonhos de crianga. Rio de Janeiro: Letras & Expressdes, 1997. ROCHA, Ruth, LORCH, Dora. Tenho medo, mas dou um jeito. Sao Paulo: Atica, 1997. 88 SANDRONI, Luciana. Minhas memGérias de Lobato; contadas por Emilia, Mar- quesa de Rabicé ¢ pelo Visconde de Sabugosa. Sao Paulo: Companhia das Letrinhas, 1997. SOUZA, Flavio de. Domingdo jéia. So Paulo: Companhia das Letrinhas, 1997. ZIRALDO. Vovd-Delicia. Sao Paulo: Melhoramentos, 1997. ARGENTINAS: ACCAME, Jorge. El puente del diablo. Buenos Aires: Sudamericana, 1997. ANDRUETTO, Marfa Teresa. Huellas en la arena, Buenos Aires: Sudamericana, 1997. CABAL, Graciela. Miedo. Buenos Aires: Sudamericana, 1997. DEVETACH, Laura. El hombrecito verde, Buenos Aires: Colihue, 1997. FAINERMAN, Ricardo. Arrastrando zapatos. Buenos Aires: Elizabeth Cura Edi- torial, 1997. FALCONI, Marfa Inés. Chau, Seftor Miedo, Buenos Aires: Plus Ultra, 1997. FISCHER, Carmela (Adap.). Un do li tud. Cérdoba, Rosario: Ameghino, 1997. GRANATA, Marta. Viaje en globo y Un pichén de avestruz. Buenos Aires: Sigmar, 1997. MARINO, Ricardo. El libro de la risa. Buenos Aires: Sudamericana, 1997. PESCADOR Pipo. El libro de los chicos valientes. Rosario: Ameghino, 1997. RAMOS, Marfa Cristina. Un bosque en cada esquina. Buenos Aires: Sudamericana, 1997. SALINAS, Luis. Los colugos; y todo lo que la ciencia atin no pudo demonstrar sobre ellos. Buenos Aires: Alfaguara, 1997. SCHUJER, Silvia. El tren mds largo del mundo. Buenos Aires: Alfaguara, 1997. THOMSON, Maria Cristina. Banshee, la mensajera del mds alld. Buenos Aires: Alfaguara, 1997. WALSH, Maria Elena. Manuelita é Dénde vas?. Buenos Aires: Espasa, 1997. Notas * Catélico convieto, advogado da corte de Lufs XIV; Perrault teria associado a mentalidade popular 4 mentalidade infantil, ambas pouco desenvolvidas: a pri- meira, devido as condigées sociais; a segunda, a idade. 89 2 Duas obras, no enderegadas inicialmente ao publico infantil, Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, e Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, escritas nesse século, escapam ao tom didatico das produgées “infantis” da época ¢ acabam se tornan- do cléssicos do género. 5 Alguns titulos, escritos ou nao para criangas, destacam-se entre as intimeras publicagGes “infantis” (ou “juvenis”) do século XIX, muitos deles escapando tam- bém ao didatismo vigente (outros, incentivando-o). Dentre varios, ressalto os se- guintes: contos de fadas adaptados pelos irmaos Grimm; Contos, de Hans Christian Andersen; As meninas exemplares, da Condessa de Ségur; Alice no pats das maravi- thas, de Lewis Carroll; obras de Jilio Verne; As aventuras de Tom Sawyer, de Mark ‘Dwain; A ilha do tesouro, de Robert Louis Stevenson; Pinéquio, de Collodi; Cora- ¢a0, de Edmond De Amicis; etc. * BENJAMIN, 1987. p. 237. 5 Trecho de tese da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, de 1882. In: COS- TA, 1983. B. 170. ® LAJOLO, ZILBERMAN, 1984. p. 29. 7 Nessa mesma época, Monteiro Lobato, que jé fazia um grande sucesso entre nés, nao mais publica livros novos no Brasil e, sim, na Argentina, para onde se muda por algum tempo. * Para o aprofundamento desse histérico da Literatura Infantil brasileira, remeto © leitor para as duas obras de Zilberman ¢ Lajolo, jé citadas: Um Brasil para criangas ¢ Literatura infantil brasileiras: historia & histérias. » MAGALHIAES, 1986. P11. 'Tais obras reproduzem, quem sabe, o modelo bem sucedido (em termos comer- ciais) da personagem Dona Benta, de Montciro Lobato, a qual ocupava, com suas intermindveis ligGes, o tempo de quantos se aventurassem a visitar 0 Sitio do Picapau Amarelo. " Eis o que a prépria autora declara em correspondéncia pessoal: “Gran parte de la literatura infantil h4 sido moralizante, escolar, pedagégica y burdamente socializante. Creo que los chicos encontraron en la mia elementos anarquicos, por ejemplo, la falta de respeto al poder y a la autoridad, que también les atraen”. In: LURASCHI, SIBBALD, 1993. p.59. ” Entrevista reproduzida eletronicamente. } ZIRALDO, 1997. (Texto da 4*. capa do livro.) “ CANTON, 1997. p. 5. "5S SOUZA, 1997. B 6. "6 CANTON, 1997. P19. ”” FRANGA, Mary, FRANCA, Eliardo, 1997. '* ROCHA, LORCH, 1997. ” ALVES, 1997. ® MACHADO, 1997. P. 16-17. 1 ZIRALDO, 1997. B78. 2 Diferentemente da proposta de Roland Barthes (formulada jé hd 30 anos), para quem o Autor-Deus esté morto, o Autor de Literatura Infantil, no Brasil, conti- nua, soberano, reinando nas escolas, nas fichas de leituras, nas conversas com os pequenos leitores, avides em descobrir o que ele realmente “quis dizer” em cada um de seus textos em série. CAZARRE, 1997, (Texto da “orelha” do livro.) * GRUPIONI, 1997. (Texto da 4*. capa do livro.) % Nas publicagées brasileiras nao hé indicagao do ntimero de exemplares impres- sos em cada edi¢o, como acontece com algumas publicagées argentinas, mas tem-se noticia de que 0s livros de autores consagrados, como Ruth Rocha, Ziraldo, etc, chegam a ter tiragens de até 15.000 exemplares. Um best-seller “juvenil”, O mistério do 5 estrelas, de Marcos Rey, jé teria vendido desde a sua publicagéo (na década de 80), um milho de exemplares. 2 SALINAS, 1997. ” FORTIN, 1997. p.7. ACCADAME, 1997. p.8. » FALCONI, 1997. p.78. * PESCADOR, 1997. p.13. 3 RAMOS, 1997. p. 33. 2 WALSH, 1997. p. 105. 3 PESCADOR, 1997. p. 13. * MARINO, 3 BARTHES, 1977. p. 211. 91 TERRITORIOS TEXTUAIS, REGIOES CULTURAIS: MULHERES INTELECTUAIS NA NARRATIVA FEMININA LATINO-AMERICANA CONTEMPORANEA. Graciela Ravetti Eu penso muito para ver se de comparagaéo em comparagao eu enxergo melhor. Marilene Felinto (As mulheres de Tijucopapo) Para uma definicao de intelectual, em sentido bem amplo, basta recorrer a Gramsci que, nos Cuadernos de la cércel, observa: “poder-se-ia afirmar, (...) que todos os homens sao intelectuais, embora nem a todos corresponda desempenhar na sociedade essa funga0”.' GianniVattimo, quando fala sobre o papel do artista na sociedade p6s-moderna,” assim como Italo Calvino, quando se refere ao intelectual,’ tém em mente todos os homens, a quem consideram artistas potenciais, do mesmo modo que qualquer espago € visto como espaco possivel da arte; e am- bos creditam a morte ou desaparecimento do papel protagdnico do intelectual na sociedade contemporanea & democratizagao dos proce- dimentos criticos que permitiu que as pessoas fossem consideradas, todas elas, criticos potenciais. A esse ponto de partida acrescento a refle- xo de Edward Said sobre o intelectual como um individuo que cum- pre uma fungio especifica na sociedade, dedicado “a representar, encarnar e articular uma mensagem, uma visao, uma atitude, filosofia ou opinido para e em favor de um piblico”.* Procuro, neste trabalho, a representagio, na narrativa contemporanea, de gestos ¢ perfis, rostos € corpos, de mulheres intelectuais, reconhecidas como tais em todo o Ambito da sociedade ou em alguns de seus setores. Acudo também a vertentes da teoria feminista que democrati- zam a fungio intelectual quando postulam que todo sujeito que se reconheca a si mesmo como feminino é, de fato, um/a intelectual femni- 93 nista, j4 que abre e mostra caminhos possiveis, tanto de vida como de pensamento. Em particular, interessa-me o papel de mulheres que fa- lam a partir dos novos movimentos sociais e do protagonismo que hoje assumem (ou lutam por assumir) os sujeitos que, por no ocuparem espagos consagrados, sao “clasificados” como alternativos, especialmen- te as mulheres que se posicionam contra a neutralidade genérica na enunciagao dos discursos, deixando ver que o escamoteio em tratar a questo de género nao é mais que uma mAscara que encobre uma falha pela qual se perdem sentidos. Examino posigdes de combate sobre o tema das (im) posigdes forgadas pelos processos de globalizagao do mercado e da cultura, as- sim como formas de perceber e/ou agir de acordo com ideais com parti- Ihados de emancipagao que tém em sua propria base a oscilacao, a pluralidade, a mutabilidade, a provisoriedade, préprios da contempo- raneidade; em sintese, como sao construfdos novos lugares de enuncia- 40 a partir dos quais seja possivel falar. A América Latina é um imenso espaco cultural heterogéneo, no qual se falam Iinguas — parentes ou nio, entrecruzadas no imaginério € na cultura — e onde se cozinham identidades e Posigées: na TV, no teatro, na poesia, na narrativa, nas artes plasticas, na musica... As mulhe- res véem-se envolvidas no debate cultural latino-americano geral, eno feminista especifico, ou no que Stuart Hall chama de “a feminizagao do social”, um dos tépicos que desperta maior nimero de reagGes negati- vas ¢/ou resisténcia em setores que j& hoje podemos tachar de tradicio- nais-monolégicos (incluindo as esquerdas), porque nao incluem, nem nunca o fizeram, a produgio artistico-intelectual daquilo que na con- temporaneidade se denomina “minorias”. O feminismo Promoveu, e ainda o faz, um espaco de corrosao dos relatos sociais modernos, pro- duzindo desestabilizages, desmoronamentos ¢ profundas fendas no sistema social. Cito Hall: “fundamentalmente, tem que ver com uma revolugio provocada pelo reconhecimento de que todas as Prdticas so- ciais e as formas de dominacio estéo inscritas sempre e, em alguma medida, asseguradas, pela posicao a identidade sexual. Se no aten- dermos ao modo pelo qual as identidades genéricas se formam e se transformam e como sio distribuidas politicamente, careceremos de uma linguagem cujo poder explicativo seja suficiente para entender a 94 institucionalizagao do poder em nossa sociedade e dos recursos de nos- sas resistencias para transformé-lo.”* Se aceitamos que as fronteiras territoriais nao podem ser toma- das como portadoras de estatuto epistemolégico aceitdvel para serem usadas a modo de critérios limitadores de processos culturais (pessoais ou de grupo), entdo os contatos entre territérios, embora marcados por ideologias nacionalistas — as nagées cuja origem se remonta ao século XIX —, e os florescimentos extra fronteirigos s40 os processos mais interessantes. O nativismo fechado e exclusivista sé existe ¢ existiu nas mentes febris de intelectuais nacionalistas que pretenderam dotar as culturas de suas comunidades de seguros de conservago, na pretensao da existéncia de um estado ideal de pureza ¢ supremacia, ou postulan- do a existéncia de elementos culturais vindos de tradigées antigas, privi- legiando as de transmissio oral, pretendendo passar a idéia da existén- cia de uma certa origem intocada, suposta garantia da identidade do povo. Nao que meu trabalho nao implique também em (des)fetichizar aescrita considerada como cultura “verdadeira ¢/ou alta” em oposigao a uma cultura oral, “atrasada, inculta, analfabeta”, visto que, na América Latina, a escrita foi imposta a sangue e fogo na época da conquista e colonizagéo européia, com a conseqiiente perda de protagonismo de vastos nticleos culturais. Pelo contrério, considero que o resgate da oralidade latino-americana é uma tarefa obrigatéria para quem preten- de entender e apreciar as matrizes das literaturas de nosso continente. Neste final de milénio, diante de processos culturais de tipo experimental (tentando fazer estourar os marcos impostos pelas lucu- brag6es teéricas sobre raga, género, nagao, sem desconhecer 0 ja con- quistado, mas tentando passos 4 frente) e diante de movimentos poli- tico-sociais como a globalizagéo, uma das perguntas €: o que vai so- brar das particularidades autéctones nacionais ou region no pro- cesso atual de mundializagao, de transformagao dos estados nacio- nais, de diluigdo das fronteiras?, o que € que vai restar de identidade, individual ou coletiva, quando a arte e a cultura nos devolvem ima- gens que nao entendemos, que assustam, que rejeitam a obediéncia a cAnones, que nao se encaixam nas ciéncias humanas tal como estabe- lecidas desde o século XIX? Frente a esses questionamentos, acredito na permanencia daquilo que a maioria, ou pelo menos amplos seto- 95 res de cada comunidade desejarem manter, e isso por varias razdes possiveis. Em primeiro lugar, por constitufrem praticas gratificantes, e razao pela qual as pessoas vao querer manté-las; em segundo lugar, Por servirem para criar um espago préprio da comunidade no cenario planetdrio globalizado, espagos que se mostrem apropriados para 0 desenvolvimento de projetos emancipatérios, por exemplo; em ter- ceiro, por significarem ou adquirirem um prego interessante no mer- cado internacional e, em quarto, por tais praticas demostrarem ser mais produtivas que outras nos encontros-contatos com outras cultu- ras do universo e da histéria. A principio, sao essas algumas das temAticas predominantes que as mulheres intelectuais — representadas nos romances — procuram analisar, definir, divulgar e, sob esse paradigma, desenvolver uma prag- mitica que se levanta contra binémios tradicionais do imagin4rio oci- dental, como o contraste natureza-cultura, masculino-feminino, forga- sensibilidade. J4 Durkheim, no final do século passado e comego do XX, colocava como umas das fontes de suas preocupagées como cien- tista as dificeis e talvez insoltiveis relagdes entre, por um lado, o corpo como base ultima da indi idualidade subjetiva ¢ origem dos impulsos €, por outro, a sociedade como inst4ncia objetiva de sua regulagio,* ou seja, as interrelagdes entre duas instncias: natureza (corpo) e sociedade (cultura). O tema, entio, se situa justamente nessa relagao de mo du- pla, na qual se entrecruzam e funcionam as linhas de forca que provém da natureza-corpo e da sociedade-cultura. Deleuze desterritorializa 0 termo rosto, rostidade, ¢ joga com esse conceito, afirmando que o rosto tem uma enorme importancia no sistema dominante na sociedade hu- mana onde “cada qual deve ter o rosto que corresponde a seu papel, a tal ou qual posigao entre as unidades elementares possfveis, a tal ou qual nivel nas escolhas sucessivas possiveis.”” Quem nio tiver esse rosto identificatério-satisfat6rio est4 perdido. As dificuldades pelas quais as mulheres passam para dar com esse “rosto” obrigatério que a sociedade reclama sao assinaladas em muitos romances, como em La ingratitud, de Matilde Sanchez, onde a narradora tem a sensagio de ser invisivel, um fantasma que atravessa as ruas; ou a de En breve cércel que “ni siquiera intenta adivinar su cara...”. A aceitago € 0 uso do rosto (metonimia de corpo-natureza) tém relagao direta com os processos de identidade/ 96 identificago, e se definem vinculados a consciéncia genérica (cultura): quanto mais enérgica for essa consciéncia, mais visivel e perceptivel sera o “rosto”. A luta permanente dos sujeitos ficcionais é justamente por nao se deixarem definir. “Jamais vou admitir que me definam”, diz Risia em As mulheres de Ty necess4rio mentir, mentir sempre, como a protagonista de Vaca Sagrada, de Diamela Eltit ou as narradoras de La ingratitud. Sao temas que difi- cilmente escapam das intelectuais: a tomada de consciéncia genérica, a copapo, ainda que para evitar esse risco seja aceitagio do corpo como produtor de significagées sociais ¢ culturais, a luta contra a fixagdo das identidades a partir do uso de estratégias de signo contrario as consagradas pelo idedrio ocidental (a mentira). Por um lado, poderia propor, como jé fiz em outros trabalhos, que a literatura escrita por mulheres neste final de milénio, por nao estar prisioneira de uma tradiggo que nunca a considerou, por nao ter uma histéria sedimentada de procedimentos ¢ figuracao, estaria, em teoria, mais livre para introduzir formas frescas de redefinicao.* Por outro, posso dizer que todo sujeito que escreve hoje a partir da pro- blematizacao da identidade genérica est4 na mesma situagao que as mulheres, assim como posso estender essa categoria de andlise a todos aqueles que escrevem a partir da consciéncia de algum tipo de marginalizagao ou desubalternidade. Tanto a reflexo genérica como as teorias da subalternidade buscam introduzir novos paradigmas de andlise (vocabulério redescritivo) que possam dar conta da multipli- cidade de movimentos sociais, do desejado protagonismo dos varia- dos sujeitos subalternos e, também, da insergdo possivel/obrigatéria dos intelectuais nos processos de rearticulagao emancipatéria. Estas linhas de pensamento podem ser inclufdas, /ato sensu, nos chamados “p6s-feminismos” ¢ nos estudos “pés-coloniais”, j& que ambos (pés- feminismo e pés-colonialidade), apesar das discussdes sobre a especi- ficidade dos discursos que incluem e projetam, possuem em comum a busca de caminhos fora dos confrontos ideolégicos tradicionais: novas formas de entendimento e de autoconhecimento, racionalidades localizveis nos territérios descolonizados (ou em processo de), assim como permanentes variagées nas possibilidades de encontros cultu- rais com outras comunidades. A LITERATURA E O MUNDO. Axperiéncia da heterogeneidade social, uma das marcas da sen- sibilidade contempordnea, alimenta-se, na literatura latino-americana, da especulagao constante sobre matérias em que se acreditar ou nas quais confiar. Nesse sentido é que penso o gesto de escrever/ler os cha- mados testemunhos narrativos e a autoficgdo na América Latina como uma nova forma de problematizar a questao tedrica das relagdes entre “experiéncia” / “hist6ria”, e “literatura” / “cultura”. Um texto paradig- matico desta problemética é o de Rigoberta Mencht, de “autoria” de Elizabeth Burgos, Me llamo Rigoberta Menchtt y ast me nacié la conciencia, que se oferece como testemunho no de casos congelados para a poste- ridade, mas como portador de representacao de processos nas fronteiras dos sistemas onde as linguas ¢ as visdes de mundo das distintas comu- nidades entram em colisao (diglossia) e/ou didlogo (bilingiiismo). E um discurso que deixa A mostra a impossibilidade da postulagéo de uma razao universal ou de um sujeito transcendente. Estou falando da posigao piiblica de mulheres intelectuais que partem de uma experién- cia identitéria, individual e grupal, uma escrita de membros de grupos subalternos, em processos que traduzem buscas identitérias, projetos de liberagao que, de algum modo, coincidem com as teorias feministas, preocupadas pela desconstrucio de identidades fixas, complicando a anélise com a multiplicidade, a mutabilidade e a contingéncia dos pa- Péis sociais, ¢ a importancia da experiéncia. Por outro lado, como os testemunhos sao escritos geralmente com a mediago de uma interlo- cutora-intérprete-tradutora, temos efetivamente dois papéis de intelec- tual feminina representados e, como a interlocutora no pertence & co- munidade do sujeito do testemunho, temos, nessa dupla, uma repre- sentagao miiltipla ¢ transcultural. Posso levantar a hipétese de que, na representagao do conjunto de ambas mulheres, a interlocutora e a que dé o testemunho, emerge uma possibilidade de representacdo do sujei- to subalterno, porque as lacunas de sentido de um dos sujeitos sao preen- chidas pelos excedentes do outro. Falo, entao, de modulagées autobio- gréficas, que se atrevem, na representagio literdria, a postular a conti- nuidade sensfvel com o mundo em que se habita, e fazem pensar, com Paul De Man,’ que 0 projeto autobiogréfico “produz e determina a vida” e nao ao contrario. Nesse sentido, De Man sugere que a autobio- grafia, no sendo um modo nem um género, € uma figura de leitura e de entendimento que aparece, de certo modo, em todo texto, especial- mente naqueles nos quais o autor se declara sujeito de seu préprio entendimento." Se o discurso autobiogrifico é, como quer De Man, um discurso de auto-restauragdo, acaba servindo necessariamente de auto-representagao social, aquilo que, nos dizeres de Ernesto Laclau, tanto Hegel como Marx jé sabiam muito bem, que “uma totalidade social que carece do espelho de sua prépria representagao é uma totali- dade social incompleta e, em conseqiiéncia, nao é uma totalidade social em absoluto”.'' Os movimentos reivindicativos das chamadas minori- as, A medida que chegam a ser escutados pelas sociedades nas quais se inserem, se autodefinem como novas sensibilidades, reclamando por cAnones que possam sentir préprios, exigindo o reconhecimento de sistemas de representag4o que sirvam a propésitos estéticos e identit4- rios, pessoais e culturais, que nao coincidem e habitualmente resultam incompattveis com os seus similares “ocidentais” ¢/ou “oficiais”. E isso que fundamenta a escrita, nado de memérias tranqiiilas, mas de teste- munhos desse movimento violento de se apossar de uma lingua, articul4- la e (re)coloca-la em circulagao. A autoficgao e o testemunho sao figuragées de um didlogo entre um narrador e uma personagem cuja assinatura, as vezes, os iguala, embora a tensio entre os dois seja o que acaba configurando o projeto de se autodescrever na escrita. O tipo de testemunho mediado por uma autora/compiladora/organizadora recoloca o problema da assinatura do nome préprio com a figura daquela (a antropéloga/intelectual entrevistadora) que aparece diretamente como autora do texto devido ao fato de que € quem realmente escreve, segundo a tradig4o autoral (autoridade) ocidental. Essa compiladora que instiga ¢ escreve o teste- munho de quem nio é “alfabetizada o suficiente”, pelo menos na Iin- gua “de exposi¢ao”, no caso o espanhol, permite que a utilizemos aqui como uma figuragao evidente do que realmente sucede em todo proje- to autobiogréfico. Trata-se de um “preenchimento” imagindrio dos de- senhos que se propdem como originais (origem) ¢ como “projetados” (em diregao ao publico e ao futuro), gerados ou por autoestimulo (autoficgao), ou por estimulo institucional (testemunho). ESTRATEGIAS DO CALANGO Afirma Said que o caréter subjetivo do intelectual e a generalida- de e publicidade de suas idéias determinam que seus atos sejam sempre uma mescla do piiblico ¢ do privado, devido ao fato de que a origem ea forga da luta do intelectual, de sua batalha piblica e de destaque na sociedade, surge das idéias que defende no mais intimo de seu coragao. Esse recorte de campo, entre o fntimo ¢ o pablico, é o privilegiado nos empreendimentos de mulheres como Violeta, de Antigua, vida mia, de Marcela Serrano, cujo pensamento se concentra particularmente “so- bre a forma mais justa de estar sobre esta terra”. As identidades politicas, nas sociedades latino-americanas (patriarcalistas tradicionais), proces- sam-se como piblicas ainda que infiltradas pelo familiar e o nacional/ regional/local. Frente as praticas coronelistas ou caudilhistas, as mulhe- res estao condenadas pela tradicao ao papel central de intermediérias, gestoras, negociadoras de favores polfticos, nas complicadas redes fami- liares e de clientelas, ou ao mais ignominioso de objeto de intercambio. As que aderiram ativamente 4 luta em si tendem a obrigar-se ao isola- mento quando propéem modificagées parciais ou radicais dos papéis genéricos e suas implicAncias sociais e politicas. Ou seja, o trabalho da mulher “que pensa e atua” situa-se nos limites das tensdes, nao sé nas bordas, muito mais no 4mbito coletivo do que no individual. Suscitam- se, entdo, propostas de formas inovadoras de pratica politica, que abrem espacos de participagao que resultam em novidades, geralmente pre- vendo 0 corpo € a mente, ambos como materiais. Uma pritica politica onde cabem poesia, critica social, humor, carnavalizagao de eventos importantes para consagrar histérias do desejo, detalhes que passaram em segredo pela histéria ¢ que, de algum modo as mulheres registra- ram ou registram, usando a estratégia do calango, imagem de Marilene Felinto: 0 pequeno animal mimetizado na 4rvore A qual se abraga para ver tudo sem ser visto. Estratégia/estratagema usada para conseguir, fi- nalmente, serem vistas e ocuparem espacos. Acredito que existe, entéo, uma rede de conexées, na forma de estratégias discursivas que buscam, ao mesmo tempo, um redimensio- namento das posigées identitdrias das mulheres em diferentes situagdes ¢ novas linguagens de representago que recusam a totalizagao e ado- 100

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