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Nº 21JAN/JUN

OLLANTAY, A TRAGÉDIA DOS ANDES: O ENCONTRO DRAMÁTICO


ENTRE DOIS MUNDOS1

Débora Almeida de Morais2


Brenda Carlos de Andrade3

RESUMO: O presente trabalho visa analisar a obra dramática Ollantay a partir das três hipóteses
levantadas para sua autoria anônima: a hipótese incaísta ou autoctonista, a hipótese hispanista e a hipótese
intermediária, identificando a coexistência de métodos e características incas e a influência espanhola,
sobre a construção do texto enquanto drama e sobre as próprias personagens. Tais análises permitirão que
se sistematizem essas literaturas, a literatura autóctone e a literatura hispano-americana colonial,
considerando a importância de uma memória histórica e literária da América hispânica. Para isso, a
metodologia adotada para a elaboração desse trabalho foi essencialmente de pesquisa documental e
bibliográfica, atentando para algumas questões como a invenção da América e suas consequências
(O’Gorman); mestiçagem das produções culturais na América Latina e compreensão do que é ser mestiço
(Gruzinski; Ortiz; Cornejo Polar); a organização da literatura e, ainda mais especificamente, do teatro
inca (Baudot; Inca Garcilaso de la Veja; Cáceres Romero); a literatura hispano-americana colonial
(Luciani); uma análise geral do corpus (Bendezú) e uma mais especifica, tomando como base estudos
relacionados as três hipóteses supracitadas (Lara; Macchi; Lienhard; Villagra; Del Estal; Macarrini).
Dessa maneira, pretende-se recuperar o que poderia ser considerado uma literatura quéchua e o que
poderia ser considerado uma literatura criolla, compreendendo que a conjugação dos métodos e costumes
espanhóis aos métodos e costumes indígenas deu origem a um novo fazer literário, que podemos chamar
literatura criolla ou literatura americana.

PALAVRAS-CHAVE: literatura autóctone; teatro inca; literatura hispano-americana; mestiçagem

RESUMEN: El presente trabajo tiene por objetivo analizar la obra dramática Ollantay a partir de las tres
hipótesis levantadas para su autoría anónima: la hipótesis incaísta o autoctonista, la hipótesis hispanista y
la hipótesis intermedia, identificando la coexistencia de métodos y características incas y la influenza
española, acerca de la construcción del texto en cuanto drama y acerca de los propios personajes. Ese
análisis permitirá que se sistematice esas literaturas, la literatura autóctona y la literatura
hispanoamericana colonial, considerando la importancia de una memoria histórica y literaria de la
América hispánica. Para eso, la metodología adoptada para la elaboración de este trabajo fue
esencialmente de investigación documental y bibliográfico, atentando para algunas cuestiones como la
invención de América y sus consecuencias (O’Gorman); el mestizaje de las producciones culturales en
América Latina y comprensión de lo que es ser mestizo (Gruzinski; Ortiz; Cornejo Polar); la organización
de la literatura y, aún más específicamente, del teatro inca (Baudot; Inca Garcilaso de la Vega; Cáceres
Romero); la literatura hispanoamericana colonial (Luciani); un análisis general del corpus (Bendezú) y
una más específica, tomando por base estudios relacionados a las tres hipótesis citadas anteriormente

1
Ensaio de Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Letras da UFRPE como
requisito para obtenção de grau em Licenciatura em Letras (Português/Espanhol), sob a orientação da
Profa. Dra. Brenda Carlos de Andrade (UFRPE).
2
Graduada do Curso de Licenciatura Plena em Letras/Espanhol da Universidade Federal Rural de
Pernambuco (UFRPE). E-mail: debbie.morais@hotmail.com.
3
Professora de Literatura de Língua Espanhola na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e
Professora Colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE).

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(Lara; Macchi, Lienhard; Villagra; Del Estal; Macarrini). De esta manera, se pretende recuperar lo que
podría ser considerada una literatura quechua y lo que podría ser considerada una literatura criolla,
comprendiendo que la conjugación de los métodos y costumbres españoles a los métodos y costumbres
indígenas originaran un nuevo hacer literario, que podemos llamar literatura criolla o literatura americana.

PALABRAS-CLAVE: literatura autóctona; teatro inca; literatura hispanoamericana; mestizaje.

1. Considerações Iniciais

De acordo com o Diccionario Enciclopédico de las lenguas de América Latina,


Ollantay seria uma “historia o leyenda auténticamente inca, pero que el texto y
estructura para su escenificación corresponden al teatro español” (1998, p. 3466), quer
dizer, esse drama de autoria desconhecida possuiria tanto imagens do mundo inca
quanto do mundo ocidental, mais especificamente espanhol, responsável pela
colonização – e invenção – do que hoje chamamos América.

Havendo surgido a partir de uma lenda, Ollanta ou ainda Ollantaytambo, teria


evoluído até o drama encenado pelos incas e sido transcrito – e adaptado – para as letras
ocidentais. Embora não seja possível precisar a origem de Ollantay, muitas4 hipóteses
sobre sua autoria/origem foram levantadas e, independente de qual se adote, não se
pode, sob nenhuma circunstância, ignorar a importância de Ollantay para o mapeamento
e a compreensão de uma literatura colonial, entendendo-a seja como primeira literatura
americana ou como literatura indígena.

Sendo assim, a motivação principal desse ensaio é a de recuperar, a partir dessa


situação de mestiçagem de Ollantay e de suas hipóteses de autoria, elementos indígenas
e elementos europeus resultantes do processo de transculturação sofridos no período
colonial, tanto por parte de colonizado como por parte de colonizador (e suas
respectivas produções). Mapear essas imagens põe em relevo um documento histórico-
literário e dramático de singular importância para os estudos em literatura colonial e
pré-colombina. Os estudos sobre Ollantay permitirão que se sistematizem essas
literaturas considerando a importância de uma memória histórica e literária hispano-
americana, como já o fazia ao trabalhar com Inca Garcilaso de la Vega e Guamán Poma
de Ayala no projeto Mapeando imagens, configurando espaços: visões da América
Hispânica Colonial, com o trabalho Criando um Inca: pensando modelos possíveis de
nativo no Peru Colonial, mapeando identidades possíveis de nativos e mestiços, onde
percebi a importância de dissecar esse povo, seus costumes, sua cultura e,
principalmente, sua literatura.

Mas quais são os elementos que levaram teóricos como Georges Baudot e Jesús
Lara a sustentarem que o drama de Ollantay “es [...] de origen inkano, compuesto en
tempos anteriores a la llegada de los españoles al Perú” (LARA apud. BENDEZÚ,
1996, p. 9)? E, na contramão, o que levou o general Bartolomeu Mitre, durante o século
XIX, a ver em Ollantay “un drama cristiano y caballeresco, ‘de capa y espada’, hecho a
la manera de los de Lope de Vega y Calderón de la Barca, negando toda raigambre
indígena en la obra” (MACCHI, 2009, p. 256)? Por fim, como esses elementos podem
ser mutualmente considerados e quais outras imagens surgem a partir disso, de tal
maneira que emerge daí uma terceira hipótese, a hipótese intermédia – a qual defendo –,
que vê Ollantay, como afirma Martín Lienhard (1990), como “cualquier manifestación
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Hipótese inca, hipótese hispânica e hipótese intermediária/mestiça.

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cultural andina [que] surge en un horizonte hibrido, caracterizado por el predominio de
la cultura oficial y la resistencia de unas culturas autóctonas marginadas que se nutren
tanto de su pasado autónomo como de su historia en el marco colonial o semicolonial”
(1990, p. 218)?

A partir destes questionamentos se mostrou importante dividir o presente


artigo/ensaio em algumas seções. A primeira delas, “Interpenetração cultural: a
mestiçagem dos povos” tem o intuito de analisar certos aspectos do “descobrimento da
América”, ou, como propõe O’Gorman (2003), invenção da América, que levou os
povos indígenas e aos próprios colonizadores ao fenômeno da transculturação,
neologismo que apareceu pela primeira vez na década de 40, pelas mãos do antropólogo
Fernando Ortiz em seu Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Surge como
substituto do termo aculturação que, dizia, “se quiere significar el proceso de trânsito de
una cultura a outra y sus repercusiones sociales de todo género” (ORTIZ, 1987, p. 93),
definição para a qual, afirmou, transculturação seria vocábulo mais apropriado.

para expresar los variadísimos fenómenos que se originan [...] por las
complejísimas transmutaciones de culturas que [...] se verifican, sin conocer
las cuales es imposible entender la evolución del Pueblo [...], así en lo
económico como en lo institucional, jurídico, ético, religioso, artístico,
linguístico, psicológico, sexual y en los demás aspectos de su vida (ORTIZ,
1987, p. 93).

Refere-se a Cuba, mas que bem cabe no contexto de qualquer país e povo em
processo de trânsito cultural (como pode ser facilmente observado nos registros de
Álvar Nuñez Cabeza de Vaca, Naufrágios e comentários, por exemplo). Nesse trabalho,
chamaremos apenas de mestiçagem – dadas as devidas proporções e aos problemas com
tal termo – de acordo com a definição de Gruzinski (2001).

Para que fosse possível melhor compreender tal mestiçagem, se viu necessária a
inserção de uma segunda seção, “A porção sul do Atlântico na literatura: as letras pré-
colombinas”, que trata de recuperar/resumir um pouco do que são as literaturas
americanas autóctones, aqui mais especificamente incas, podendo-se entender, dessa
maneira, os diversos gêneros e termos utilizados para definir/categorizar tal literatura.
Para isso, estudiosos como Baudot (1979) e o próprio cronista Inca Garcilaso de la Vega
(1985) foram essenciais para se fizesse possível a sistematização de uma literatura tão
rica, ainda que de poucos registros que tenham chegado até os dias de hoje. Por último,
tem-se uma terceira seção, intitulada “O Novo Mundo e a velha literatura: literatura
hispano-americana de influência europeia”, cujo intuito é precisar que momento vivia a
literatura hispânica que poderia ter influenciado a literatura indígena, baseando-se em
Luciani (2006).

Na seção seguinte, “Ollantay: o encontro dramático entre dois mundos” partiu-se


efetivamente para a análise de Ollantay, buscando observar a presença de elementos
literário-culturais incas e espanhóis tomando por base as hipóteses de sua autoria, com o
intuito de verificar até que ponto elas podem ser consideradas pertinentes ou não. Para
isso, fez-se uso de estudiosos da literatura indígena hispano-americana como Lara,
Macchi (2009), Lienhard (1990) e Villagra et al. (2011).

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2. Interpenetração cultural: a mestiçagem dos povos

Gonzalo Aguirre Beltrán, ao referir-se a mestiçagem de europeus e indígenas,


afirma que tal mistura é resultado de um enfrentamento cultural, cujos elementos
contrários, quando em contato, tendem (ambos) a se excluírem, quer dizer, “se
enfrentam e se opõem uns aos outros; mas, ao mesmo tempo, tendem a se interpenetrar,
a se conjugar, e a se identificar”. Foi esse enfrentamento que permitiu “a emergência de
uma cultura nova – a cultura mestiça [...] – nascida da interpenetração e da conjugação
dos contrários” (BELTRÁN apud. GRUZINSKI, 2001, p. 45). Tal conjugação, no
entanto, não é assim tão simples como o faz parecer a citação de Beltrán desligada do
contexto sociocultural de uma América Colonial.

Segundo O’Gorman em seu livro La invención de América, a descoberta da


América “no se trata de un hecho, sino meramente de la interpretación de un hecho”
(O’GORMAN, 2003, p. 16), dessa maneira, fica subtendida que a ideia de
descobrimento do continente americano é a construção de um discurso histórico,
construção que se estende para os povos e para suas produções culturais e literárias.
Nesse sentindo, a invenção da América seria uma invenção discursiva iniciada no ano
de 1492, que culminou na criação de um “Novo Mundo” baseado na própria concepção
europeia do que era o mundo – nesse caso, os limites da Europa e as Índias Orientais,
onde Colombo acreditava estar.

Assim, pode-se afirmar que o processo de transculturação foi resultado dessa


invenção de um Novo Mundo baseado nas crenças que já tinham em si os
colonizadores. Tal processo não se deu em um ambiente de conciliação, onde ambas as
culturas prevaleceram, mas em um ambiente de pressão, imposição e destruição das
formas culturais indígenas. Como já vimos anteriormente na fala de Beltrán, essas
culturas se mestiçaram, criando um novo paradigma, que é um processo bidirecional.
Ou seja, o dito enfrentamento cultural que afetará esses povos e culturas resultando em
perdas e incorporações.

A compreensão desses processos de transculturação resultante do fenômeno da


invenção americana permite que percebamos como foi complexa a colonização
espanhola. Surge então uma ideologia colonial com estratégias de dominação,
manifestadas através do encobrimento de práticas e expressões culturais dos povos
indígenas, principalmente no que diz respeito às suas tradições orais. Esse era, então, o
contexto sociocultural da América Colonial, desse contexto, dessa exclusão e
conjugação mútua é que surgiram os diversos modelos de indivíduos coloniais, dos
quais nos interessa os mestiços e os criollos.

Não se pode ignorar a problemática da ideia de mistura/mestiçagem. Ora,

a ideia que remete a palavra ‘mistura’ não tem apenas o inconveniente de ser
vaga. Em princípio, mistura-se o que não está misturado, corpos puros, cores
fundamentais, ou seja, elementos homogêneos, isentos de qualquer
“contaminação”. Percebida como uma passagem do homogêneo ao
heterogêneo, do singular ao plural, da ordem a desordem, a idéia de mistura
carrega, pois, conotações e a prioris dos quais convém fugir com o diabo da
cruz (GRUZINSKI, 2001, p. 42).

Sabe-se por definição que mistura é a conjugação de substâncias/componentes


puros. Nesse sentido, pensar na mestiçagem dos europeus com os indígenas seria o

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mesmo que sustentar a frágil noção de que esses povos eram, antes de se
interpenetrarem, homogêneos. Crer na homogeneidade de um povo é ignorar milênios
de história anterior à linearidade da história ocidental.

A história não costumava levar em conta as mestiçagens [...] Em geral, o


historiador europeu privilegiou a história do Ocidente em detrimento a
história do resto do mundo, a história da Europa em detrimento da ocidental,
e, ainda mais amiúde, a história nacional em detrimento da história de seus
vizinhos (GRUZINSKI, 2001, p. 55).

Não podemos rejeitar o fato de que os homens todos são a mistura de outros
homens originados de um mesmo lugar/marco comum, esses, sim, até poderíamos
chamá-los homogêneos – ainda que não o fossem. Os homens não evoluíram de
maneira homogênea ou conviverem somente com seus iguais – em cultura e em raça –,
mas foram, sim, justapostos uns aos outros, coexistindo por um período até que as
culturas se entrelaçassem em um novo universo cultural mestiço/híbrido. É o que passa
com colonizados e colonizadores, que seguem coexistindo assim como descendentes de
outra mestiçagem quiçá mais complexa e difícil de delimitar (o que me leva a crer que
desde antes de seu enfrentamento, europeus e índios já possuíam semelhanças de
métodos e costumes). Como afirma Gómez Martinez, “as culturas podem se misturar
quase sem limites e não apenas se desenvolver, mas igualmente se perpetuar” (apud.
GRUZINSKI, 2001, p. 44-45). Houve, portanto, um período no qual europeus e índios
ocuparam o mesmo espaço, e o conjunto de costumes e métodos desses dois povos
conviveu lado a lado e brigou pela sobrevivência. Essa supervivência de dois mundos
está no que Gruzinski chamou mestiçagem, com a acepção de coexistência de povos em
um mesmo espaço.

Dessa maneira, não é possível “resumir a história da conquista da América a um


enfrentamento destruidor entre os bons índios e os malvados europeus, com a convicção
e a boa-fé a que outrora se recorria para contrapor os selvagens da América aos
conquistadores civilizados” (GRUZINSKI, 2001, p.48), a conquista da América foi
muito mais além do enfrentamento físico de homens bons e homens maus. Em primeiro
lugar, como dissemos acima, os homens já eram heterogêneos antes do encontro; em
segundo, eles já possuíam semelhanças entre si, ainda que mínimas. Em outras palavras,
se a cultura europeia imperou no período colonial americano, a cultura indígena
tampouco foi dizimada, pois impregnou os visitantes, levando ao nascimento desse
indivíduo dualista que Guamán Poma de Ayala chamou de criollo. Por que não poderia
ser criolla também a arte? Os textos, a música, o teatro? Uma arte mestiça, como
situação em que duas coisas se encontram, contiguamente, sem se separarem.

Para perceber a justaposição desses povos não é necessário ir muito longe.


Malinche, índia nahuatl, que dominava o idioma asteca, o maia e aprendeu o espanhol,
é uma prova clara da supervivência de muitos povos em um só indivíduo. Não podemos
refletir a história de maneira linear, pois a história como a conhecemos surge com a
chegada dos europeus, e se faz necessário pensar mais além da história do Ocidente e
observar a história do resto do mundo.

Ora, as mestiçagens quebram essa linearidade. Surgindo na América do


século XVI, na confluência de temporalidades distintas – as do Ocidente
cristão e dos mundos ameríndios –, elas as colocam brutalmente em contato e
as imbricam umas nas outras. Aqui, deixa de valer a metáfora do
encadeamento, da sucessão ou da substituição, que serve de base à

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interpretação evolucionista, pois não apenas o tempo dos vencidos não é
automaticamente substituído pelo dos vencedores, como pode coexistir com
ele séculos a fio. Ao juntar abruptamente humanidades há muito separadas, a
irrupção das misturas abala a representação de uma evolução única do devir
histórico e projeta luz nas bifurcações, nos entraves e nos impasses que
somos obrigados a levar em conta (GRUZINSKI, 2001, p. 59).

Não é difícil, pensando dessa maneira, de se supor que Ollantay seja também
uma justaposição de culturas e métodos. “Na medicina, na literatura, na filosofia, na
ciência e nas artes, descobriram-se múltiplas formas de sincretismo [...] sincrético não
seria, pois, o conjunto do real?” (GRUZINSKI, 2001, p. 47). É possível de se perceber
ainda em nível superficial, quando consideramos se tratar de personagens e
personalidades indígenas escritas com um sistema alfabético que os incas não possuíam
e um idioma que não dominavam, impondo o ritmo de uma narração linear, que
Ollantay é sincrética, justaposta, mestiça. Pode-se levantar o questionamento de que
Ollantay esteve presente na oralidade quéchua e que, quando da chegada dos espanhóis,
a mesma ainda se transmitia, o que a levou até a sua transcrição. Se considerarmos a
resistência peruana à colonização espanhola, não será difícil de acreditar em tal
afirmação. É necessário, no entanto, mostrar isso textualmente. Não se pode perder a
referência e, portanto, o seu significado. Ollantay não é o encontro de culturas, “mas
fragmentos de Europa, América e África. Fragmentos e estilhaços que, em contato uns
com outros, não ficavam intactos por muito tempo” (GRUZINSKI, 2001, p. 87), o
objetivo desse artigo/ensaio é mostrar que tal fragmentação gestou um drama criollo.

3. A porção sul do Atlântico na literatura: as letras pré-colombinas

Se recuperar a literatura medieval espanhola já não é dos trabalhos de


investigação mais fáceis, dado o poder de decomposição que tem o tempo e os
acontecimentos que o atravessam – guerras, principalmente –, tampouco o é – e
provavelmente em grau superlativo – recuperar as literaturas americanas autóctones,
quando se considera o período da colonização. Entendo a colonização, aqui, como o
período de encontro entre as culturas ocidental europeia e indígena, na qual o europeu
superou o índio, quer dizer, impondo o seu poderio não somente na forma de guerra
física, mas também, e principalmente, na guerra cultural, que levou a destruição de
registros pré-colombinos, fossem eles de cunho literário ou não, pois, afinal, a cultura
de um povo estar diretamente ligada ao poder dele. É o caso, por exemplo, da conquista
do México por Hernán Cortés, que levou a destruição principalmente dos ícones
religiosos e dos templos, considerados pagãos e/ou demoníacos. Mais próximo ao nosso
estudo, não se pode esquecer a literatura oral que foi perdida ao longo dos anos, fosse à
razão a dizimação daqueles responsáveis por transmitir essa tradição oral ou a perda
inevitável que se deu quando da transcrição dessa tradição, através da própria tradução
ou da exclusão de elementos indígenas e adição de tradições espanholas.

Ainda que mapear as literaturas americanas autóctones não seja uma tarefa fácil,
pois se sofre de uma insuficiência de fontes primárias, cronistas5 da época colonial,
através de seus escritos, puderam manter registros aceitáveis das literaturas indígenas.
Pensando mais especificamente a literatura inca, de expressão essencialmente oral, as
dificuldades para recuperar fontes se complicam com “las lagunas de conocimiento que
5
Interessante ter-se em conta, desde já, a questão da mestiçagem cultural, que será tratada mais adiante
nesse mesmo texto.

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tenemos sobre el ejercicio literario propiamente dicho, sobre su organización, si es que
tuvo una, sobre su lugar en la sociedad inca, sobre sus autores y sus fórmulas”
(BAUDOT, 1979, p. 201). Lacunas que estudiosos como José María Arguedas tentam
completar, partindo de cronistas do eixo andino como Inca Garcilaso de la Vega, Felipe
Guamán Poma de Ayala, Cristóbal de Molina e outros, que realizaram um maravilhoso
trabalho de reconstrução de uma literatura inca destruída e/ou perdida no tempo e na
guerra, “sacando de la tradición oral viva de las poblaciones andinas narraciones y
composiciones poéticas de inspiración precolombina” (BAUDOT, 1979, p. 201) e
ajudando, assim, “a comprender mejor la existencia de una verdadera literatura inca”
(BAUDOT, 1979, p. 201).

O que sim se sabe é que a literatura quéchua6 estava principalmente ligada a


manifestações do culto religioso dirigido ao deus Sol, como os jaillis (canto de triunfo,
etimologicamente), composição poética mais conhecida dentre as composições líricas
incas. Traçando um paralelo com a literatura ocidental, os jaillis se equiparariam aos
hinos ou à poesia litúrgica. Os jaillis eram essencialmente poesias sagradas, por isso
comumente são chamados jaillis sagrados, diferenciando-o de suas formas derivadas,
como o jailli geórgico. No caso dos jaillis sagrados, se dedicavam a Wiracocha7, a
Mama Pacha8, Illapa9, ao Sol e a Lua10 (e aos/a outros wacas11), e eram recitados em
cerimônias religiosas ao longo do ano, na presença do imperador e da nobreza inca.
Como destacada Baudot, eram poemas “tanto como oraciones [...] alcanzan con
frecuenia, por la profundidad de su pensamento y el vuelo lírico, la hermosura de los
mejores salmos, y todos respiran una excepcional voluntad de paz y armonía” (1979, p.
206). Já os jaillis geórgicos, uma derivação dos sagrados, eram poemas rimados
cantados na celebração de trabalhos agrícolas. Existem também o jailli colonial, estilo
de influência inca com temática cristã, devido a chegada dos espanhóis – processo de
colonização cultural/literária citado anteriormente.

Para além dos jaillis que, de uma maneira ou de outra, tinham vínculo com
temas religiosos, havia também gêneros poéticos recitados durante festas, como o
qhaswa, que era um poema de temática agradável cantado em festas para expressar
ironia, picardia e a alegria de se viver, representando ao mesmo tempo ação de graças e
humor, foi um estilo poético dançável aparentemente popular entre os jovens, e o
wawaki, que foi um canto construído a partir de diálogos entre dois coros, um
masculino e outro feminino, cujo tema mais popular era o do amor rápido e das
conquistas amorosas.

6
Entender literatura quéchua como sinônimo de literatura inca.
7
“Es el más cospicuo de los dioses del ámbito andino. Es posible que su difusión se debiera a los
religiosos católicos que buscaban un nombre para explicar a los naturales el concepto de Dios […]
añadieran a su apelativo diversas palabras para esclarecer su calidad de Ser Supremo”
(ROSTWOROWSKI, 2016, p. 28), nesse sentido, seria em equivalência para o universo occidental o deus
criador de tudo. Na cultura inca, no entanto, encontramos diversos deuses maiores e outras divindades
subalternas.
8
“En el seno de Pachamama [...] se gestaba la vida” (ROSTWOROWSKI, 2016, p. 17) e por isso “no en
vano llaman en quéchua Pachamama a la tierra” (ROSTWOROWSKI, 2016, p. 61). Seria, então, a deusa
que representaria a mãe terra, encarregada de propiciar fertilidade.
9
“Decían que era un hombre que estaba em el cielo con una honda y una porra y que tenía el poder de
hacer llover, granizar y tronar, además de dominar todo lo que pertenecía a ‘la región del aire donde se
hacen los nublados” (ROSTWOROWSKI, 2016, p. 35).
10
O Sol e a Lua eram as principais deidades do povo inca.
11
Divindades incas menores. Realizavam-se cerimônias para eles ao longo do ano.

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Havia ainda outros poemas cujo tema era o amor desgraçado, tal como o arawi,
estilo poético presente em Ollantay, na forma de três poemas que serão melhor
analisados adiante, mas que trata essencialmente do desespero romântico. Havia
também o wayñu, que foi ao mesmo tempo poema, música e dança, gênero que cantava
a beleza da natureza ou da mulher amada. Diferentemente do arawi, que cantava o
desespero amoroso, o wayñu “expresaba el estado de ánimo del poeta delante de la
grandeza de la creción o de la belleza de la criatura” (BAUDOT, 1979, p. 236). Já o
urpi, tratava-se de um poema curto e refinado que falava da dor do desaparecimento da
mulher amada, cuja simbologia sempre se dava na forma de uma pomba.

Nesse sentido, o que sobreviveu da literatura poética inca até os dias de hoje
pode ser dividido, como o faz Baudot (1979), em três aspectos/três temáticas: o de uma
poesia sagrada que fazia parte das celebrações litúrgicas; o de criações líricas e
dramáticas profanas cujo objetivo era uma representação coletiva que enquadrava
atividades populares julgadas essenciais, como os trabalhos no campo e as tarefas de
construção de obras públicas, de maneira cultural; e uma produção orientada à vida
íntima, sobre o amor desgraçado. Fosse de uma ou de outra temática, a linguagem
adotada, como veremos no caso dos arawis de Ollantay, era simples e de fácil
compreensão para todos indiscriminadamente, “de ahí la repetición visible de metáforas,
símbolos y procedimentos literários. Como si esta poesía […] debiera constituir
obligatoriamente un modelo […] formal destinado a usos posteriores de orden general”
(BAUDOT, 1979, p. 202).

Para além da lírica, a literatura inca também transitava pelo drama, como
recupera o cronista mestiço Inca Garcilaso de la Vega ao registrar, em seus Comentarios
Reales (primeira edição de 1609, 78 anos após a chegada dos espanhóis no Peru), que
“no les faltó habilidad a los amautas12 […] para componer comedias y tragedias” (1985,
p. 114), ou seja, aranway e wanka13, respectivamente. Inca Garcilaso, herdeiro da
nobreza inca por parte de mãe, também detalha como se constituía o representar teatral
desses textos dramáticos:

que en días y fiestas solemnes representaban delante de sus Reyes y de los


señores que asistían en la corte. Los representantes no eran viles, sino Incas y
gente noble, hijos de curacas y los mismos curacas y capitanes, hasta maeses
de campo, porque los autos de las tragedias se representaban al propio, cuyos
argumentos siempre eran de hechos militares, de triunfos y victorias, de las
hazañas y grandezas de los Reyes pasados y de otros heroicos varones. Los
argumentos de la comedias eran de agricultura, de hacienda, de cosas caseras
y familiares. Los representantes, luego que se acababa la comedia, se
sentaban en sus lugares conforme a su calidad y oficios. No hacían
entremeses deshonestos, viles y bajos: todo era de cosas graves y honestas,
con sentencias y donaires permitidos en tal lugar. A los que se aventajaban en

12
Parafraseando Baudot (1979), o amauta é uma espécie de filósofo, historiador e professor que servia ao
estado como encarregado de instruir a nobreza inca, preservar a história oficial e transmitir as tradições
orais e os rituais. Foram os criadores dos jaillis, do aranway e do wanka. Havia, também, outro tipo de
criador inca, chamado arawicuj ou haravicus, que seria uma espécie de poeta popular autor do arawi, do
urpi, mas também de muitos jaillis, wawakis e qhashwa, provavelmente havendo sido anteriormente
escolhido por um grupo de amautas pela qualidade de seus trabalhos literários. Para mais, ver BAUDOT,
G. Las letras pré-colombinas. México: Siglo Veintiuno, 1979.
13
Não confundir com seus equivalentes poéticos, homônimos. Baudot levanta a hipótese de que as
versões dramáticas poderiam tratar-se de composições mais completas que teriam surgido inicialmente
como ensaios poéticos.

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la gracia del representar les daban joyas y favores de mucha estima (1985, p.
114).

O teatro inca, dessa maneira, como se pode observar pelo relato de Inca
Garcilaso, constituía a parte mais importante da literatura inca pré-colombina, pois toda
a nobreza – e não somente os amautas – estavam envolvidos na sua concepção. Se a
lírica estava intimamente ligada a uma parte dos rituais religiosos, o drama, por sua vez,
era uma literatura cuja representação tinha por finalidade a própria literatura de
entretenimento.

Geralmente, as cerimônias festivas contavam com a representação de comédias,


chamadas aranways, que eram “una representación jocosa que utilizaba frecuentemente
la música y el canto para enriquecer el juego escénico” (BAUDOT, 1979, p. 204),
encenados na forma de trabalhos campesinos e vida familiar. As tragédias, por sua vez,
chamadas wankas, que seriam um “drama histórico, consagrado en general a personajes
ilustres ya desaparecidos, pero sin que se excluya, en este género, la intriga amorosa”
(BAUDOT, 1979, p. 252), também eram encenados, como é o caso de Ollantay. Sobre a
representação dos aranways e dos wankas, sabe-se que aconteciam em um local amplo
chamado aranwa, cujo centro simulava um jardim formado por plantas reais cortadas ou
plantas artificiais, que se chamava mallki, onde os atores representavam seus papéis.

De toda a arte dramática inca, pouco resta. Embora tenha continuado sendo
composta e representada ao longo do século XVII, “a veces coexistiendo, y a veces
mezclándose con los temas, las formas dramáticas y la lengua española en si misma”
(LUCIANI, 2006, p. 280), além dos autos sacramentais compostos majoritariamente por
clérigos espanhóis seguindo o estilo indígena, se recuperaram poucos, como Ollantay,
um wanka, somente descoberto tardiamente no século XVIII, e que será mais
detidamente analisada adiante.

4. O Novo Mundo e a velha literatura: literatura hispano-americana de influência


europeia

Se no território hoje chamado de Peru, como vimos, existiu uma tradição


dramática autóctone, o mesmo passava no Velho Mundo, e no mesmo período temporal,
com as formas dramáticas medievais. Essas formas medievais, no entanto, não nos
interessarão, mas sim as inovações que a sucederam, no período renascentista, que
coincidiu com a chegada dos espanhóis ao Novo Mundo. Tais inovações chegadas do
além-mar, como vimos na primeira seção, se conjugaram com a tradição autóctone,
numa espécie de mestiçagem cultural entre colonizado e colonizador. Na presente
seção, entrementes, cabe relembrar um pouco da tradição dramática renascentista e
como ela influenciou a América Hispânica enquanto colônia.

As noções artísticas do período renascentista se fortaleceram na Espanha durante


o século XVI, motivado pelo financiamento vindo das colônias americanas. Tal
movimento de “idas e vindas”, da Espanha para as colônias hispano-americanas,
permitiu que, não só a Espanha fosse artisticamente financiada, como também que a arte
renascentista fosse levada até as colônias – aqui, não levantaremos a questão de se
houve ou não um renascimento americano, levando em consideração somente a chegada
de influências literárias que não a indígena ao Novo Mundo. Nesse período, o teatro
espanhol experimentou um processo de secularização, “la antigüedad clásica se

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convirtió en fuente tanto de inspiración temática como de modelos formales […] El
teatro histórico, la comedia de costumbres, la comedia romántica, las obras pastorales y
las mascaradas cortesanas florecieron todos en el renacimiento teatral español”
(LUCIANI, 2006, p. 282). Ou seja, afasta-se de um teatro de caráter religioso, que
imperou durante o medievo, e aproximou-se de um teatro popular de caráter cômico e
burlesco, com a exploração de diversos temas que mesclavam o profano e o sagrado,
recuperando o período clássico. Esse teatro era apresentado fora das igrejas, para a corte
e para o povo.

O período e o teatro renascentista foram muito complexos e apresentaram, como


qualquer outro período, uma grande quantidade de diferenças cronológicas, regionais e
sociais, que fica bastante claro quando voltamos o olhar para a América hispânica e nos
damos conta que esse Renascimento hispano-americano em muito diferia do
Renascimento surgido na Itália. Aqui, o estilo entrara em contato com regionalismos e
outras camadas sociais – a dos índios.

Nesse sentido, parece importante compreender a necessidade de um teatro de


corte, que desabrochou no mundo renascentista. Importante porque através deste tipo de
teatro, um teatro mais popular, era possível que os membros da sociedade participassem
de um mundo que se apresentava como um outro mundo – e daí que Ollantay, por
exemplo, apresenta um jogo teatral onde aconteciam estranhamentos e reconhecimentos
(mestiçagem do corpus) que permitiam tanto o divertimento como o questionamento
sobre a ordem pré-estabelecida, como discutiremos na próxima seção. O encontro com o
Novo Mundo ocorreu, portanto, quando o teatro espanhol entrava em uma nova fase de
expansão, diversificação e codificação.

Ao contrário do teatro quéchua que, como vimos na seção anterior, pouco


sobreviveu até os dias de hoje, o teatro espanhol de expressão renascentista não só
sobreviveu, como também exerceu influência dominante no teatro colonial (podemos
perceber isso mesmo nos dias atuais, se observarmos como se constitui o fazer teatral),
ou seja, enquanto um desaparecia ou era assimilado, o outro se fortalecia, devido ao
“tráfico continuo de textos, compañías de teatro e incluso dramaturgos que aseguraban
el domínio de las modas teatrales de la madre pátria sobre sus posesiones de ultramar”
(LUCIANI, 2006, p. 282-283).

O teatro europeu chegou a terras americanas já com os primeiros exploradores e


conquistadores, pela atuação dos próprios como modo de distração, ainda nas caravelas,
de curtas obras cômicas. Esse, no entanto, não foi o primeiro encontro artístico das
culturas espanholas e quéchuas. Os missioneiro-jesuítas, que seguiram os
conquistadores, usaram o teatro como modo inicial de comunicação para instruir os
índios no cristianismo, mesclando as línguas nativas com o espanhol, e o estilo
renascentista com o estilo autóctone. Poucos desses textos sobreviveram, mas pode-se
dizer que esse seria o gérmen de um teatro hispano-americano e mestiço.

5. Ollantay: o encontro dramático entre dois mundos

Conhecido desde o século XIX, mais precisamente desde o ano de 1837, quando
da publicação de fragmentos no diário Museo erudito, Ollantay foi publicado
integralmente pela primeira vez somente dezesseis anos depois, em 1853. Registros

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mais antigos, no entanto, apontam um manuscrito boliviano de 1735, mais de um século
antes da publicação de seus primeiros fragmentos. Como vimos anteriormente,
recuperar a literatura da América Colonial não é dos trabalhos de investigação mais
simples, em razão do poder decompositor do tempo, o que, de antemão, nos dá uma
forte pista para a imprecisão do momento exato de composição do drama quéchua.
Quando haveria surgido Ollantay? Quais suas origens? Quem é seu autor? Miguel Ortiz,
António Valdés, Juan de Espinosa Medrano, Vasco de Contreras Valverde, Blas Valera
ou nenhum deles? Seria colonial ou pré-colonial? Não são perguntas fáceis de
responder. Nessa seção, não pretendemos respondê-las, mas discutir as hipóteses
concebidas com base no que se conhece do drama, levando em consideração as
particularidades da literatura indígena e da hispano-americana, já mencionadas nesse
trabalho.

A tragédia ou wanka (como o chamavam em quéchua) Ollantay se passa ao


longo de dez anos, entre os anos 1461 e 1471, se tomamos por base os principais
personagens históricos presentes na narrativa, o imperador Pachacutec14 e seu sucessor,
Tupac Yupanqui15. Narra o amor impossível entre Ollanta, cuja nobreza, talentos
militares e serviços à coroa elevaram ao cargo de general e a ñusta16 Cosi Ccoyllur,
filha de Pachacutec. Contrariando as tradições incaicas que diziam que membros da
família real só poderiam casar-se com outros membros da realeza, Ollanta pede a
Pachacutec permissão para contrair matrimônio com Cosi Ccoyllur, pedido que é
negado, mas não sem antes provocar a ira e o desgosto do imperador, que tinha grande
estima por Ollanta e não esperava tamanha “traição”. Pachacutec, então, prende sua
filha mais querida na casa17 das virgens consagradas ao deus Sol com o intuito de
mantê-la longe de Ollanta, ignorando – até aquele momento – que Ollanta já havia
desposado a Cosi Ccoyllur e consumado o casamento que culminaria no nascimento de
Ima Súmac. Tomado pela raiva a negativa de Pachacutec e procurado por seus crimes,
Ollanta foge da capital, sendo seguido por seus companheiros que se estabelecem em
Ollantaytambo, fortaleza na qual o também general Rumiñahui, sob ordens de
Pachacutec, tenta conter a rebelião de Ollanta. Todas as investidas, no entanto, são
frustradas, e Pachacutec morre sem vencer a Ollanta.

Quando morre Pachacutec, Túpac Yupanqui, irmão de Cosi Ccoyllur, é eleito


como sucessor, tornando-se o novo imperador inca. Rumiñahui, adotando uma nova
estratégia, se finge inimigo do imperador, cometendo o crime de invadir a casa das
virgens do Sol e sendo condenado ao exílio. Rumiñahui, então, segue para
Ollantaytambo, onde alega ter sido maltratado pelo novo imperador. Desse modo,
Rumiñahui é recebido na fortaleza de Ollanta e integrado entre o grupo de maior
confiança do mesmo. Durante a noite, no entanto, Rumiñahui abre os portões da
fortaleza que sigilosamente é invadida pelos exércitos de Túpac Yupanqui, que vencem
a Ollanta e o levam de volta a capital inca, como prisioneiro. Chegando a Cusco,
Ollanta é apresentado ao novo imperador que, diferentemente de seu predecessor,
perdoa a Ollanta, alegando que este já havia recebido seu castigo. Paralelamente a esses
acontecimentos, Cosi Ccoyllur é encontrada por sua filha, Ima Súmac, em uma
masmorra e levada ao imperador, que concedia o perdão a Ollanta. Túpac Yupanqui,

14
Nono imperador inca, governou de 1438 a 1471, sucedido por Tupac Yupanqui.
15
Décimo imperador inca, governou de 1471 a 1493.
16
Princesa.
17
Espécie de templo semelhante a conventos, onde mulheres – em geral da realeza – dedicavam-se a
cultuar ao Sol. Não podia ou deveriam manter contato com o mundo exterior.

67
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então, dá seu consentimento para a união da princesa e do general, permitindo que
vivam felizes.

Como se pode perceber, ao observar mais atentamente a obra anônima, o amor


entre Ollanta e Cosi Ccoyllur assume características de pano de fundo para a história
principal, profundamente política, e possivelmente baseada na lenda de Ollanta que, ao
contrário do wanka, não possui final feliz, aproximando-se muito mais do que
entendemos por tragédia. A lenda que teria dado origem ao drama narra o amor entre
um importante general, Ollanta, e uma virgem consagrada ao Sol, amor impossível, pois
fere a estrutura de funcionamento do império incaico. Ollanta pede a Túpac Yupanqui
que passe por cima da lei imperial e aceite a união entre ele e a virgem da casa do Sol.
O imperador não permite e se inicia uma guerra entre Ollanta e Túpac Yupanqui. Aqui,
surge o general Rumiñahui, que viola a lei imperial e, após sua condenação, foge da
prisão e pede exílio a Ollanta, que fora seu amigo. Ollanta recebe Rumiñahui e este o
trai, levando-o a derrota. Antes que Ollanta se mate, Rumiñahui o prende, para que o
imperador possa castigá-lo como devido.

Desse modo, podemos perceber que Ollantay possui um foco duplo, como
pontua Macchi, por um lado temos Ollanta “quien se rebelará contra Pachacutec
levantando el Antisuyu, pero será finalmente derrotado, condenado y perdonado por
Tupac Yupanqui” (MACCHI, 2009, p. 258-259) e, por outro lado, Cosi Ccoyllur, amor
de Ollanta e filha do imperador

quién será encadenada durante diez años en una recluida celda en la casa de
las vírgenes del Sol por haber sido pedida por Ollanta en matrimonio. Allí
será descubierta por Ima Sumaj […] su hija […] [que] resolverá la segunda
intriga cuando, arronjándose a los pies del Inca, salve a su recién descubierta
madre de la muerte y del cautiverio: encuentra a su padre y permite una
bendecida unión de Ollanta y Kusi Qóyllur con el auspicio y la protección del
nuevo inca (MACCHI, 2009, p. 258-259).

Ambas as intrigas possuem um fundo romântico, mas que se separa em


determinado momento. A princesa é retirada de cena e o enfoque do drama passa a ser
no espaço público do império. Questões políticas são ressaltadas, a respeito da posição
do próprio Ollanta na sociedade inca e também do papel dos soldados na pirâmide
social (de sair em expedição para conquistar novas regiões e novos povos, aumentando
assim o império), tema discutido por Ollanta e Orcco-Huarancca como justificativa para
a rebelião contra o imperador, presente no trecho abaixo.

Orcco-Huarancca – […] Que no llegue aquel día en que cada año salgamos a
aquellos remotos pueblos a derramar nuestra sangre; para cortar al Inca y a
los suyos la provisión de víveres que han menester.
Ollanta – ¡Capitanes! Escuchad las órdenes de Orcoo-Huarancca que manda
que descanséis. Conservadlas en vuestra memoria, aun cuando se cubra de
luto todo Anti-Suyu. Tengo bastante coraje para hacer saber al Inca que
desista este año de acometer a Anti-Suyu. (BARRANCA, 1996, p. 51)

Que é o inverso do que diz anteriormente Ollanta quando da negativa de


Pachacutec a seu pedido de contração de matrimônio: “Ollanta – [...] Desde hoy en
adelante he de ser tu implacable enemigo: romperé tu pecho sin piedad, rasgaré en mil
pedazos tu corazón: les daré de comer a los cóndores a ese Inca, a ese tirano […]
¿Todavía me dirás: no te doy a mi hija?” (BARRANCA, 1996 p. 43), que se pautava
pelo ódio de não ter seu pedido aceito e não pelas crueldades de Pachacutec (inversa a

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bondade de Tupac Yupanqui, que representa a restauração da normalidade política –
não sem modificar-se para adaptar-se as exigências do momento).

Tanto a lenda de Ollanta como o próprio drama Ollantay, em muito se


assemelham ao que ocorreu com Atahualpa18, que não possuía direito ao trono, pois não
era o sucessor direto do Huayna Capac de acordo com a estrutura governamental do
império, mas que, apesar disso, aspira ao poder, recorrendo à nobreza do mérito e não a
do sangue. Quando Ollanta se rebela contra Pachacutec, ele está rompendo com o
círculo de poder. Pachacutec representa a perpetuação de uma tradição e Túpac
Yupanqui, e não Ollanta, representa a quebra de tal tradição, pois surgem novos
interesses políticos. Como aponta Bendezú:

se puede pensar [...] que el nuevo inca tenía interés en contar a su favor con
las excepcionales cualidades políticas y miliares de Ollántay […] Túpac
Yupanqui mostraba un razonamiento político diferente al de Pachacútec, con
mayor visión de futuro y apertura (BENDEZÚ, 1996, p. 18).

Mas, afinal, qual a importância do motivo histórico-político de Ollantay para sua


análise literária? Como já dissemos anteriormente, Ollantay é um wanka, ou seja,
“drama histórico, consagrado en general a personajes ilustres ya desaparecidos, pero sin
que se excluya, en este género, la intriga amorosa” (BAUDOT, 1979, p. 252), o que
justifica, para nós, a importância de se atentar para os motivos históricos que se
interpenetram a/em Ollantay. Outro ponto, é compreender melhor as três hipóteses de
autoria do drama, que podem ser observadas dentro do próprio texto, tanto em sua
estrutura – mestiça/criolla, como observaremos –, como em sua história – de motivo
intrinsecamente inca – ou em seu registro no alfabeto ocidental – de responsabilidade
espanhola ou, no mínimo, de um mestiço que dominasse tanto o quéchua como o
espanhol.

A primeira das hipóteses autorais sustenta que Ollantay é de origem inca,


baseando-se no fato de que a história (como vimos anteriormente, Ollantay é
profundamente político, e em muito se assemelha com o que vivia o povo inca,
característica própria do wanka, que se baseia em fatos históricos), os personagens (em
sua maioria, baseados em personalidades reais, como por exemplo, para além dos
imperadores, o próprio Rumiñahui, que foi um general inca de grande prestígio), a
ambientação (chamo atenção, mais especificamente, para o local de exílio de Ollanta,
Ollantaytambo, cidade inca que serviu como forte durante a conquista espanhola) e a
linguagem, que podemos observar na pureza idiomática e na perfeição da expressão
poética (os arawis presentes na obra), próprios da literatura inca, e que tornariam
impossível uma origem espanhola.

Em Ollantay, há três arawis. O primeiro deles, que aparece no quinto quadro do


primeiro ato, canta o amor desgraçado de Ollanta pela princesa proibida, evocando os
perigos de paixão amorosa por meio da simbologia da tuya, que é um pássaro
(calandria) de cor negra e amarela que sofreria ameaça de morte ao comer um grão a
mais de milho do que lhe é permitido. Podemos interpretar como uma analogia a aquilo
que lhe é cabido, aquilo que lhe é permitido. A Ollanta e a Ccosi Ccoyllur não lhes era
18
Décimo terceiro e último imperador inca. Irmão de Huascar, herdeiro legítimo. Foi assassinado por
Francisco Pizarro durante o frágil período que foi a conquista do povo inca, permeado por guerras
internas em razão da legitimidade (ou não) da posição de Atahualpa como imperador e externas, com a
chegada dos colonizadores.

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permitido contrair matrimônio, sob ameaça de morte, assim como a tuya não podia
comer um grão sequer a mais de milho, pois seu destino seria o mesmo: o castigo. Em
sua edição de 199419, versão de José Sebastián Barranca, observamos a seguinte
construção poética deste primeiro arawi mencionado, como pode ser visto no fragmento
a seguir:

De mi Princesa la mies
Pajarillos no comáis,
Ni terminéis con el maíz
Que sin dudarlo tierno es.
¡Ay Tuya! ¡Tuya!
Es él blando en su interior,
Aunque su corteza es dura;
De sus hojas la ternura
No marchitéis con ardor.
¡Ay Tuya! ¡Tuya!
Cuidado pues golosillos,
Que a millares os cojamos
En la trampa, que os hagamos
Lanzar tristes chirridillos.
¡Ay Tuya! ¡Tuya!
[…] (BARRANCA, 1996, p. 36-37)

Que difere da que se pode ver na versão mais antiga de Jesús Lara, presente em
La literatura de los quechuas, de 1961, como pode ser observado no fragmento a
seguir:

No comas ya, pajarillo,


tuyita, tuyita mía,
en el predio de la infanta,
tuyita, tuyita mía,
no vayas a consumir,
tuyita, tuyita mía,
el apetecible maíz,
tuyita, tuyita mía,
está blanco aún el grano,
tuyita, tuyita mía,
y enjustas aún las mazorcas,
tuyita, tuyita mía,
muy blanda está la sustancia,
tuyita, tuyita mía, [...]
(LARA apud. BAUDOT, 1979, p. 230)

E, se nos aproximamos no tempo ao invés de nos distanciarmos, sequer podemos


estabelecer uma comparação, pois na versão de César Miró e Sebastián Salazar Bondy,
uma adaptação ao teatro moderno publicada em 2008, nenhum dos três arawis
sobreviveu, havendo sido eliminados os três do texto final. Com isso, podemos chegar à
conclusão de que, a medida em que se distancia da versão publicada pela primeira vez
em 1853, mais se perdem características quéchuas. Nas versões de Barranca e de Lara,
no entanto, podemos perceber em comum algumas características próprias dessa poesia
inca. Primeiramente, a presença do tema intimista, que não canta o sentimento do eu-
lírico diante da natureza andina, mas do próprio sentimento amoroso do eu-lírico diante

19
Reimpressão em julho de 1996.

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de um outro alguém, em geral seu amor impossível. Em segundo lugar, a presença de
assonâncias que dá aos arawis de Ollantay uma musicalidade própria da oralidade, que
teria a ver com sua origem indígena, oral, cujas assonâncias seriam mais fáceis de
declamar em cena que os versos brancos (embora estes também estejas presentes em
Ollantay).

O mesmo pode-se observar nos outros arawis cantados no drama. Como


podemos observar também no segundo deles, que pinta um caminho dramático
realizado por duas pombas apaixonadas separadas pela neve e pela morte, pintando a
tragédia da ausência, característica temática dos arawis.

Dos queridas palomitas


Tienen pesar, se entristecen,
Gimen, lloran, palidecen,
Con un inmenso dolor
Ambas fueron sepultadas.
De la nieve en la espesura,
Y cuya guarida dura
Era un árbol sin verdor.
La una a su compañera
Perdióla súbitamente,
Un día que fue inocente
Su mantención a buscar.
Al pedregal va tras ella
Pero la encuentra ya muerta
Empezando, al verla yerta,
Triste en su lengua a cantar:
-¡Corazón! ¿do están tus ojos?
¿Y ese tu pecho amoroso/
¿Do tu corazón virtuoso
Que con ternura me amó?
¿Y dónde tus dulces labios
Que adivinaban mis penas?
Sufriré, pues, mil condenas;
Ya mi dicha concluyó. (BARRANCA, 1996, p. 38).

Registro diferente do que pode ser visto na versão de Lara:

Dos enamoradas palomas


suspiran, lloran y se afligen,
porque la nieve las separa
en un tronco seco y carcomido.

La una ve que se ha perdido


en la soledad del páramo
su tierna y dulce compañera,
que nunca de ella se apartaba.

La otra paloma también sufre


con el recuerdo de la amada,
cree que ya ella ha perecido
y de esta manera le canta:

–¿Dónde, paloma, están tus ojos,


dónde tu pecho delicado,
tu corazón que me envolvía en su ternura,
tu voz que tierna me nombraba? (LARA apud. BAUDOT, 1979, p.
231)

71
Encontros de Vista, Recife, 21 (1): 57-75, jan./jun. 2018
E que sequer está presente na de Miró e Bondy. Podemos perceber em ambas as
edições a recorrência desse tema que evoca não apenas o ser amado, mas também as
coisas e a paisagem que fazem do ser amado um ser ligado com a natureza ao redor –
vemos isso seja pela menção a pássaros (a tuya, a pomba) ou mesmo no que diz respeito
ao próprio cenário (a neve, os paramos, as montanhas, etc.) e a comparação da amada
com elementos da natureza (a lua, o sol, as flores, etc.). Vale ressaltar que o sentimento
aqui não seria de misticismo, como se vê nos jaillis sagrados, e sim emocionais, ou seja,
com o intuito de representar o amor entre um homem e uma mulher de todas matizes
possíveis.

No terceiro arawi presente em Ollantay, temos a volta da pomba, dessa vez


usada como simbologia para exaltar a beleza da mulher amada que chora por uma
paixão sem esperanças. Mais uma vez, os registros da poesia diferem nas edições
analisadas.

Canto
Una paloma he criado,
Que perdí en un momento,
Busca en la comarca atento.
Y averigua donde está.
Pues, ella tiene por nombre
Por su rostro tan gracioso
Ccoyllur, nombre armonioso
Que dice con su beldad.
Su lozana frente iguala
A la Luna en hermosura,
Cuando brilla en la tersura
De la celestial región
Y las dos resplandeciendo
Con singular bizarría,
Causando están alegría
Y hechizando el corazón.
Y sus cabellos reflejan
Del blanco y negro, colores
Que ornan sus sienes cual flores,
Resaltando su esplendor
Y sus dos hermosas cejas
En su rostro inmaculado
Son el iris matizado
De la mañana al albor.
Y sus ojos son dos soles
Fijos en su faz radiante;
Su mirada penetrante
Hace llorar y gemir. (BARRANCA, 1996, p. 45-46)

Enquanto na versão de Lara vemos:

En un paraje deshabitado perdí de pronto


a la paloma que me crié.
Búscala siempre por estos valles: tal vez te sea
dado encontrarla.

De amor florece su hermoso rostro,

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se llama Estrella.
No te equivoques delante de otra,
fácil es verla.

Luna y sol surgen sobre su frente


como rivales;
Juntos la bañan, y el inefable
su regocijo.

Su cabellera, tan suave y negra,


gana en las trenzas:
El negro prieto y el noble blanco se sus orejas,
cómo rutilan. (LARA apud. BAUDOT, 1979, p. 232)

Como nos outros dois casos, a edição de Miró e Bondy suprimiram o canto.
Pode-se observar nos três arawis presentes em Ollantay que o sentimento amoroso
ultrapassa os limites dos versos e das estrofes, associando-se a vida, a natureza e até a
religião, traço comum ao estilo quéchua. Ainda que o tema do amor doloroso em razão
da separação dos amados seja comum a literatura universal, nos arawis, como pontua
Cáceres Romero, esse sentimento é expresso de maneira:

secuencial, ritualizado en el acto de amor de algún modo es escenificado, de


acuerdo a la carga emotiva que lo genera; de ahí que las descripciones
poéticas, para dar la imagen del hecho poético, no siempre se expresan en
forma detallada, sino en un conjunto de carácter alegórico con el que procura
definirse en un contexto más generalizado. Así, si pudiera existir algo
anecdótico en la separación o despedida de los enamorados, se daría en una
peculiar modulación que, a veces […], se traduce en efectos otomatopéyicos
(CÁCERES ROMERO, 2009, p. 21).

Naturalmente, o fato de que tais cânticos estão em língua espanhola – e não em


quéchua – não pode ser desconsiderado. Para além da primeira hipótese mencionada,
existe uma segunda que defende a origem puramente hispânica de Ollantay. Ou seja, a
obra teria surgido pós-conquista, por mãos espanholas ou criollas, que apenas usam o
cenário inca, sem a ele pertencer. Como aponta Bendezú, a hipótese “se ha defendido en
alusión a los notables elementos léxicos y retóricos españoles que se hallan en el drama
[…] en el importante nivel de la forma la composición métrica ostenta el verso
octosílabo y la rima regular, inherentes a la literatura española” (1996, p. 10).

Ao longo de todo o período colonial espanhol, fosse em território inca ou não, a


língua representou um retrato do poder. O espanhol era a língua do dominador,
enquanto o quéchua era o dialeto do colonizado, de tal modo que a comunicação escrita
se dava na língua dominante, o espanhol. Não quer dizer que não se publicaram textos
em dialeto indígena, mas este tipo de produção acontecia dentro da igreja, com fins
catequizantes. Sendo assim, desde o século XVI o espanhol ocupa a posição de língua
oficial e, portanto, foi por meio dele que se escreveu sobre o mundo inca e dos demais
povos colonizados.

Mas não é esse o único motivo apontado como prova de uma origem espanhola.
Como pontua Maccarini:

Desde la transgresión a leyes sociales y religiosas, hasta la sublevación


militar; con el tabú de una maternidad prohibida, el ostracismo de la magra y
el triste destino de la niña bastarda; en fin, con la familia del Inca quebrada,

73
Encontros de Vista, Recife, 21 (1): 57-75, jan./jun. 2018
más las intrigas de una guerra, que ha de abarcar dos reinados y a la que solo
podrá ponerle fin la traición, todo, hasta el mismo momento en que es
tomado prisionero Ollanta, corresponde a la estructuración de un drama
trágico, como lo entiende el mundo europeo (VILLAGRA et al., 2011, p.
315).

Olivares, por outro lado, recorda que

El drama Ollantay, tal como existe ahora, fue arreglado para la


representación, dividido en escenas, y perfeccionado con los conocimientos
teatrales de la época hispánica; pero quichuistas competentes piensan que la
mayor parte de los diálogos, discursos y trozos líricos, datan de un período
anterior a la conquista (OLIVARES apud. VILLAGRA et al., 2011, p. 314).

Referindo-se, assim, a uma literatura situada no conflitivo cruzamento entre duas


sociedades e duas culturas, dando lugar a terceira hipótese: a de que Ollantay é de
origem mestiço e resultado do processo de transculturação. Cornejo Polar, sobre a
heterogeneidade da literatura, diz que “la duplicidad o pluralidad de los signos socio-
culturales de su proceso productivo: se trata, en síntesis, de un proceso que tiene por lo
menos un elemento que no coincide con la filiación de los otros y crea, necesariamente,
una zona de ambigüedad” (CORNEJO POLAR, 1978, p. 12), o que em muito tem a ver
com a zona ambígua em que se encontra o texto Ollantay, que se aproxima e se
distancia de ambas culturas viventes no período, afinal, a literatura indígena não deixou
de ser produzida paralelamente a espanhola, e naturalmente, convivendo, elas se
misturariam, se mestiçariam.

Assim, pode se supor que Ollantay foi escrito por um criollo que dominava a
língua espanhola (que até poderia ser algum dos possíveis autores mencionados no
início dessa seção), tendo como base um texto oral (a lenda) de origem inca, porque é
aceitável que “el copista haya recreado el drama insertando elementos españoles y su
perspectiva propia, de tal modo que la obra final resulta ser tanto de origen incaico
como de origen colonial” (BENDEZÚ, 1996, p. 10). Já observamos diversas vezes que
é muito difícil, para não dizer impossível, inscrever Ollantay a uma origem homogênea,
a criação ou recriação de Ollantay nada mais é que uma literatura inscrita em um
universo heterogêneo e, portanto, também heterogênea, mestiça, transcultural.

6. Considerações finais

Ao iniciar os estudos de Ollantay, ficou clara a necessidade de se destacar e


explorar a importância do contexto sociocultural no qual estava inserido. Pensar no
local de criação e de circulação do drama andino tem muito a ver com seu processo de
produção, ou seja, as características indígenas e espanholas inscritas nesse texto
colonial.

Não se pode esquecer que este ambiente no qual se encontrava o drama


corresponde a um ambiente de grandes choques culturais, superposições de expressões,
extinção de métodos antigos e criação de novos. Este fenômeno, que discutimos neste
ensaio, passou pelo processo de transculturação, quer dizer, uma interculturalidade, a
conjugação de opostos criando um novo produto que obedeceria – e obedeceu – a outras
regras, como podemos observar não somente em Ollantay, mas em outros textos
literários e projetos culturais da época. Não é possível identificar esses textos e estes

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projetos como pertencente a uma ou a outra cultura, e sim como interculturais, um
legado híbrido, mestiço, ou mais bem criollo.

Essa impossibilidade de se precisar a origem de Ollantay gestou uma série de


hipóteses que levou o texto ao centro de várias polêmicas. Qual é a origem de Ollantay?
Quem é seu autor? Essas polêmicas, no entanto, não são o que motivaram esse
artigo/ensaio e nem devem ser a razão primordial para o estudo dessa obra ímpar. O que
importa aqui é a interculturalidade de Ollantay, as modificações causadas pelo
transpasso linguístico da oralidade para o texto escrito, as informações de uma cultura a
outra, seus muitos vínculos com a cultura da época e com a cultura do passado. Um
material muito complexo e muito rico que deve ser a razão de se estudar esse texto: a
possibilidade de se reconstruir uma cultura apagada ou, ao menos, esquecida em
detrimento a cultura europeia, que é a cultura indígena e a que se desenvolveu a partir
da conjugação das duas.

7. Referências

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BAUDOT, Georges. Las letras precolombinas. México: Siglo Veintiuno, 1979.
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Ollantay; relectura de una obra dramática colonial como legado histórico teatral.
Disponível em: http://www.repositorio.uchile.cl/handle/2250/117521.
CORNEJO POLAR, Antonio. El indigenismo y las literaturas heterogeneas: su doble
estatuto socio-cultural. Revista de Crítica Literária Latinoamericana, Lima-
Berkeley, año 4, n. 7/8, p. 7-21, 1978.
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literatura hispanoamericana colonial: del descubrimiento al modernismo. Madrid:
Gredos, 2006. p. 280-304.
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ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Caracas: Biblioteca
Ayacucho, 1987.
ROSTWOROWSKI, María. Estructuras andinas del poder: ideología religiosa y
política. Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 2016.
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nacional de ensayos teatrales: Alfredo de la Guardia. Buenos Aires: Inteatro, 2011.

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