Você está na página 1de 7

COTÉ, Jean-François.

The Function of Contemporary Travel


Narratives in the French, Anglo and Latin Americas: Mixing and
Expanding Cultural Identity. New York/London: Mellen Press,
2011, 170p.

BENESSAIEH, Afef (ed.). Transcultural Americas/Amériques Trans-


culturelles. Ottawa: University of Ottawa Press, 2010, 261p.

Roland Walter1

Submetido em 31 de outubro, aprovado em 4 de novembro de 2012.

dem mundial de fluxos trans-regionais,


transnacionais e transcontinentais “o lo-
cal humano” é “constituído por desloca-
mento e estase”. Distinguindo entre di-
versos tipos de viajantes em diferentes
épocas, Clifford argumenta que “viajar
[...] denota uma série de práticas mate-
riais e espaciais que produzem conhe-
cimento, histórias, tradições, comporta-
mentos, músicas, livros, diários e outras
expressões culturais”2. Os sete ensaios
e o prefácio do livro The Fiction of
Contemporary Travel Narratives in the
French, Anglo and Latin Americas: Mi-
xingand Expanding Cultural Identity,
editado por Jean-Françõis Coté, insere-
sen essas reflexões de Clifford ao exa-
James Clifford (1997, p. 2) ale- minar e problematizar diversos aspectos
ga que “viagens e contatos são locais de narrativas de viagem contemporâ-
cruciais para uma modernidade inaca- neas a partir de diferentes perspectivas
bada”. Segundo ele, na nossa nova or- pan-americanas.

Interfaces Brasil/Canadá. Canoas, v. 12, n. 15, 2012, p. 183-189.


184 Roland Walter

“Seria absurdo dizer”, pergunta pessoas limparem a bagunça que fize-


Jean-Françõis Coté na “Introdução” ram”, revela o custo moral desastroso
(2011, p. 9) que “as Américas nasce- em hipocrisia e selvageria que carac-
ram nas narrativas de viagem?” Para teriza a civilização no seu momento
Coté, desde os tempos da colonização mais opulento, ou seja, se esse sonho
até os nossos tempos de mobilidade como “futuro orgíaco”, para Fitzge-
mais generalizada, o continente ame- rald, “esquivou-se de nós no passado”,
ricano foi continuamente reinventado então muitos nativos e imigrantes con-
por “travel stories”. Os colonizadores, tinuam nas trilhas desse sonho, pés nos
os cronistas, os missionários, os colo- desertos, nas selvas, nas cidades e nas
nos, os cientistas, os escravos (aque- estradas da zona da NAFTA, tentan-
les que Édouard Glissant chamou de do escapar da miséria e da fome sem
“migrante nu”), as tribos indígenas nunca verdadeiramente chegar como
(desde os tempos pré-colombianos), diz um trabalhador migrante de des-
os imigrantes multi-étnicos, os aven- cendência mexicana no romance Y no
tureiros e as aventureiras (penso em se lo trago La tierra/ ... And the earth
Flora Tristan, por exemplo, que narra did not part (1977, p. 115) do escritor
sua viagem a cavalo atravessando o chicano Tomás Rivera. Mesmo assim,
Peru em Pérégrinations d’une paria, continuam chegando: ao cruzar os oce-
1838), revolucionários, artistas e mo- anos dos quatro cantos do mundo ou
chileiros, entre outros, através de suas colocar os pés nas estradas em bus-
experiências distintas e histórias conta- ca de realizar seus sonhos nas terras
das (de maneira oral, escrita, modelada americanas. Como os ensaios do livro
e pintada), todos contribuíram e conti- editado por Coté demonstram, existem
nuam contribuindo para este constante diversos mitos de diferentes sonhos
renascimento das Américas. Se para F. pan-americanos. Enquanto que uns,
Scott Fitzgerald, no seu clássico The como Jack Kerouac em Onthe Road e
Great Gatsby (1925), já na Jazz Age Ché Guevara em Diarios de motocicle-
o mito do American Dream, profana- ta – duas narrativas que, segundo Coté
do por “pessoas descuidadas” como (2011, p. 13), “inauguram” um “novo
Tom e Daisy que “quebraram as coi- tipo de narrativa de viagem nas Améri-
sas e destruíram as pessoas e depois cas” – realizam esses sonhos (pelo me-
retiraram-se para seu dinheiro ou seu nos momentaneamente), outros, como
descuido enorme” deixando “outras os protagonistas em Pedro Páramo de

Interfaces Brasil/Canadá. Canoas, v. 12, n. 15, 2012, p. 183-189.


Coté, Jean-François. The Fiction of Contemporary Travel Narratives in the French,
Anglo and Latin Americas: Mixing and Expanding Cultural Identity. 185

Juan Rulfo, Los pasos perdidos de Ale- em Montreal focalizaos “transitional


jo Carpentier e Esta Terra de Antonio places” na obra do escritor canaden-
Torres, entre outros, não conseguem se ÉmileOllivier – lugares que “falam
traduzir sua “desterritorialização em sobre as contiguidades imaginárias (e
reterritorialização”, para usar a frase de transculturais) do Québec contempo-
Roland Walter da Universidade Fede- râneo”; Jaap Lintvelt da Universidade
ral de Pernambuco, Brasil, no prefácio de Groningen problematiza o tema da
(2011, p. 3). Walter, ao abrir a trilha viagem em oito romances de escritores
histórica, literária, étnico-cultural e até quebequenses entre 1981 e 2001com
pessoal da leitura dos ensaios do livro enfoque específico na relação entre o
via elaboração de ideias do crítico pe- “nomadismo” e o “sedentarismo”. Pa-
ruano Antonio Cornejo-Polar e do lí- trick Imbert da Universidade de Otta-
der tribal brasileiro Ailton Krenac, ar- wa trabalha a relação entre o nacional
gumenta que a “contínua transcultura e o transnacional em ensaios e roman-
– a travessia de culturas em contínuo ces pan-americanos entre o século 19
processo dentro da rede de relações de e o presente. Doeko Bosscher da Uni-
poder – transforma as Américas, entre versidade de Groningen fala sobre o
outras partes do mundo, num entre- encontro entre americanos e alemães
espaço de epistemes culturais contra- durante a Guerra Fria, destacando
ditórias” (2011, p. 3). Nesse sentido, como as duas culturas se inter-relacio-
Christian Riegel da Universidade de naram, ou melhor, se transculturaram.
Regina examina o desenvolvimento Jean-François Coté, da Universidade
tecnológico e industrial do Canadá em de Québec, em Montreal, examina a
relação à migração e seus efeitos sobre “nova forma de cosmopolitismo” que
o pensamento e o agirdos personagens caracteriza a relação entre a cidade e
em dois romances da literatura cana- a estrada na obra de Jack Kerouac. O
dense contemporânea. Sebastiaan Fa- que liga os ensaios em sua diferença é
ber do Oberlin College, Ohio, analisa a problematização de uma mobilidade
diversos casos de “crossed cultures” escolhida ou imposta que constitui o
– republicanos espanhóis no México terreno pan-americano intersticial so-
e latinos nos Estados Unidos – ao in- bre o qual, como o subtítulo do livro
vestigar o deslocamento geográfico e conota, a identidade cultural era e con-
identitário entre o exílio e a viagem; Si- tinua sendo construída. Nesse sentido,
mon Harel da Universidade de Québec os ensaios que compõem o livro The

Interfaces Brasil/Canadá. Canoas, v. 12, n. 15, 2012, p. 183-189.


186 Roland Walter

Function of Contemporary Travel Nar- Mudanças nas práticas mate-


ratives in the French, Anglo and Latin riais, nos meios de comunicação, bem
Americas examinam o hífen transcul- como um aumento significativo de mi-
tural que liga e separa as múltiplas cul- gração e outras formas de mobilidade
turas do continente americano. entre regiões, nações, continentes e
O livro Transcultural Ameri- culturas provocam transformações na
cas/Amériques Transculturelles edi- consciência e no imaginário de pessoas
tado por Afef Benessaieh, composto e povos no mundo inteiro. Em conse-
por oito ensaios além daqueles da quência disso, o discurso crítico – ins-
Introdução e Conclusão, problema- pirado pela forma “nômade” de pensar
tiza abordagem teórica desse hífen que Gilles Deleuze e Félix Guattari
transcultural: como teorizar o encon- (1972) propuseram para substituir raí-
tro de culturas, ou melhor, a dinâmi- zes por rizomas – redescobriu a lógica
ca inerente aos fluxos interculturais diferencial das zonas de contato, pano-
que fazem com que nos nossos tem- ramas, rizomas, espaços fronteiriços,
pos de intensa mobilidade,fragmentos limen, entre-lugar, sincretismo, hibri-
culturais,entrem em contacto. Se, se- dismo, amalgamation, mestiçagem,
gundo Spivak (1999, p. 239-240), “um créolisation e transculturação, entre
dos aspectos mais fascinantes da pós- outros, para explicar os fluxos conjun-
colonialidade numa ex-colônia é o pa- tivos e disjuntivos das transferências
limpsesto da continuidade pré-colonial culturais e seus resultados: novas for-
e pós-colonial fraturada pela imposi- mas e práticas culturais fractais entre
ção imperfeita da episteme iluminista”, e dentro de fronteiras permeáveis e
então o entendimento dos efeitos do seus espaços fronteiriços. Nesse sen-
passado no presente se produz não so- tido, os oito ensaios em Transcultural
mente por meio de um enfoque analíti- Americas/Amériques Transculturel-
co sobre a relação colonizador-coloni- les examinam essas formas e práticas
zado (ou qualquer outro tipo de relação fractais (sua natureza ambígua e mul-
dominador-dominado), mas também tidimensional, seu cronotopoheterotó-
de um exame das relações intragrupais pico) mediante a análise da dinâmica
em termos de assimilação, internaliza- transcultural em lugares caracteriza-
ção de valores, mímica, cooptação e dos por múltiplos e complexos pro-
resistência na ambígua e ambivalente cessos de troca. Afef Benessaieh, da
interface de identidade e alteridade. Universidade de Quebec, em Montre-

Interfaces Brasil/Canadá. Canoas, v. 12, n. 15, 2012, p. 183-189.


Coté, Jean-François. The Fiction of Contemporary Travel Narratives in the French,
Anglo and Latin Americas: Mixing and Expanding Cultural Identity. 187

al, ao relacionar os termos de “multi- dores para interessar-se pelas relações


culturalismo”, “interculturalidade” e sociais conflituosas, pedagógicas ou
“transculturalidade”, problematiza as sedutoras em função de novas metá-
definições clássicas da noção ‘cultura’ foras policromáticas e animalescas
herdadas da antropologia e distingue portadoras de evidências argumen-
entre a ‘transculturalidade’ e a ‘trans- tativas”; nesse sentido, ela “mistura
culturação’. No capítulo da conclusão, a razão e a emoção, além de ser “um
Afef Benessaieh e Patrick Imbert re- ato linguístico performativo que leva
sumem essa diferença da seguinte ma- a criar relações menos conflituosas”.
neira: enquanto a transculturação no Em seu ensaio de abordagem sócio-
sentido de Fernando Ortiz e Bronislaw etnográfica, Julie-Anne Boudreau do
Malinowski visa “às funcionalidades National Scientific Research Institute
da reprodução cultural de uma dada (INRS-Montreal) explora a experiên-
sociedade presumida como um con- cia da mobilidade simbólica e geográ-
junto relativamente coerente ou estável fica de migrantes latino-americanos
e capaz de internalizar a diferença”, a em Los Angeles. Ela argumenta que
transculturalidade não tem por obje- “encontros entre indivíduos móveis
tivo a reprodução, a estabilidade ou a constituem momentos transculturais”
funcionalidade de uma paisagem cul- – momentos estes que “emergem da
tural sem contornos claros, mas tenta energia afetiva fluindo através destas
compreender essa paisagem em pleno interações sociais e espaciais” (2010,
movimento, sugerindo a natureza tan- p. 76) e, dessa forma, participam na
to permanente quanto transitória do constituição de subjetividades políti-
relacionamento das culturas conside- cas. Nesse sentido, segundo Boudreau,
radas como correntes polissêmicas” “é importante analisar as consequên-
(2010, p. 235-236). Patrick Imbert, da cias políticas das trocas transculturais
Universidade de Ottawa,apresenta a no nível das relações de poder globa-
transculturalidade como força de ca- lizadas e da experiência individual”
maleão no contexto literário e histó- (2010, p. 85). Pascal Gin, da Univer-
rico das Américas. Ele destaca quatro sidade Carleton, numa tentativa de
características principais do conceito: atualizar o conceito de transculturação
“a transculturalidade impõe-se pelo elaborado por Ortiz em Cuba mediante
estreitamento planetário”; ela “escapa uma justaposição deste com o conceito
à metáfora vegetal dos mitos funda- da créolisation glissantiana para poder

Interfaces Brasil/Canadá. Canoas, v. 12, n. 15, 2012, p. 183-189.


188 Roland Walter

aplicá-lo às produções cinematográfi- base nos possíveis temas seguintes –


cas e literárias em Quebec, alega que temas estes que abrangem perspecti-
“a transculturalidade caracteriza-se por vas transculturais de diversas zonas de
transformações culturais plenamente contato: os “remapeamentos indígenas
desprendidas de qualquer imperativo do continente, as rotas pós-escravidão
de territorialidade” e de “cultura úni- e as conexões de Quebec com a Amé-
ca” (2010, p. 94, 104). Para Jean-Fran- rica Latina” (p. 191). A pesquisadora
çois Coté, da Universidade de Quebec, independente DotTuere seu trabalho
em Montreal, na sua análise compara- étnico-histórico sobre o santo híbrido,
tiva entre o conceito de transcultura- San La Muerte, no Nordeste da Argen-
ção de Ortiz e o de hibridismo de Can- tina examina as transformações mútuas
clini, os dois conceitos são menos um da religiosidade com base no conceito
efeito da contemporaneidade cultural de transculturação de Fernando Ortiz,
do que uma característica histórica do Angel Rama e Mary Louise Pratt. Ela
desenvolvimento cultural das Amé- argumenta que “a crença popular no
ricas. O enfoque analítico de Nicolas santo serve como exemplo de como
Van Schendel do National Scientific o imaginário social da transculturali-
Research Institute (INRS-Montreal) dade é a reapropriação estratégica de
é uma contextualização da identidade um passado colonial que resiste ao pa-
cultural de Quebec como parte integral radigma oposicionista da modernidade
das Américas transculturais. Ao distin- mediante a difusão local e a mistura de
guir entre “o ser mestiço” e “o ser mo- diferenças culturais” (2010, p. 209).
saico” (2010, p. 150), o autor propõe O que todos os trabalhos enfa-
conceber a transculturalidade como tizam em sua diferença, ao discutir a
uma potencialidade que provem da transculturalidade numa perspectiva
mestiçagem e uma visão de vida que interdisciplinar, é como o trans da
reconhece a pluralidade cultural como natureza transitória da identidade cul-
base da identidade quebequense. Win- tural designa a tradução dinâmica das
fried Siemerling, da Universidade de confluências culturais que atravessa e
Sherbrooke, e Sarah Philip Casteel, da constitui a encruzilhada da formação
Universidade Carleton, no seu artigo identitária entre lugares e epistemes
sobre estudos interamericanos, enfati- diferentes. Assim, esse processo trans-
zam a importância de incluir o Canadá cultural da transculturalidade traduz
nesses estudos interdisciplinares com a lógica dos “fluxos culturais ligados

Interfaces Brasil/Canadá. Canoas, v. 12, n. 15, 2012, p. 183-189.


Coté, Jean-François. The Fiction of Contemporary Travel Narratives in the French,
Anglo and Latin Americas: Mixing and Expanding Cultural Identity. 189

uns aos outros, a partir de um lugar lo- DELEUZE, Gilles e Felix Guattari.
cal” que informa e estrutura os cruza- L’Anti-Oedipe. Paris: Les Éditions de
mentos culturais. Como tal, a transcul- Minuit, 1972.
turalidade é “um equilíbrio relacional FITZGERALD, F. Scott. The Great
frágil continuamente recriado na con- Gatsby. New York: Charles Scribner’s
figuração do momento” (2010, p. 237). Sons, 1925.
The Fiction of Contemporary
RIVERA, Tomás. Y no se lo tragó la
Travel Narratives in theFrench, Anglo
tierra/… And the earth did not part.
and Latin Americas: Mixingand Expan-
Berkeley: Ed. Justa Publications, 1977.
ding Cultural Identity (2011) e Trans-
SPIVAK, Gayatri Ch. A Critique of
cultural Americas/Amériques Transcul-
Postcolonial Reason: Toward a His-
turelles (2010) são duas obras valiosas
tory of the Vanishing Present. Cam-
que fortalecem a base de conhecimento
bridge: Harvard UP, 1999.
de pesquisadores interessados em as-
suntos interamericanos; uma área de es-
tudos que está crescendo cada vez mais
e representada, aqui no Brasil, pela re-
vista Interfaces Brasil-Canadá.

Notas
1
Professor da Universidade Federal do Per-
nambuco, pesquisador do CNPQ e coorde-
nador do Núcleo de Estudos Canadenses de
Pernambuco. walter_roland@hotmail.com
2
As traduções nesta resenha são minhas.

Referências
CLIFFORD, James. Routes: Travel and
Translation in the Late Twentieth Cen-
tury. Cambridge: Harvard UP, 1997.

Interfaces Brasil/Canadá. Canoas, v. 12, n. 15, 2012, p. 183-189.

Você também pode gostar