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O termo transculturação surge pela primeira vez em 1940, no livro Contrapunteo

cubano del azúcar y del tabaco, de Fernando Ortiz. O vocábulo tornou-se referência
obrigatória, sobretudo, na área da antropologia, para toda reflexão sobre o fenômeno da
mestiçagem não apenas em Cuba, mas, por analogia, em toda a América.

‘’Não existiam precedentes, nem vocabulários científicos adequados à descrição dos


fenômenos que investigava’’ (Otero, 1982, p. 35)

A partir da necessidade gerada pela carência de uma terminologia científica própria,


para as então nascentes ciências sociais, Ortiz criou novos termos como transculturação,
empregado pela primeira vez no ensaio em tela. Nesta obra Ortiz analisa a história
econômica de Cuba, intimamente ligada à cultura da cana e do tabaco.

Ao traçar uma arqueologia da formação do povo cubano, o autor visita os diversos


grupos que se mesclaram e resultaram no que hoje chamamos de cubanos. Desde as
origens pré-históricas, marcadas pela presença de diversos povos indígenas, nativos da
ilha, até a chegada dos europeus com seu ‘’furacão cultural’’ e, por último, dos negros,
oriundos de várias etnias africanas, a história de Cuba foi a história do encontro
múltiplo e variado.

O ponto principal e a razão pela qual Ortiz advoga a criação de um novo vocabulário
são a inexistência de um termo que possa abarcar e significar este processo sempre em
movimento, que é o encontro dos povos e de suas culturas.

Este ensaio de Ortiz, bem como grande parte de sua obra, teve como inspiração o
interesse do antropólogo/sociólogo, pela cultura negra que, transplantada da África,
floresceu em Cuba, gerando inúmeros fenômenos culturais. Para Ortiz, embora o
processo seja doloroso para todos, os negros, por sua condição de absoluta
subalternidade em um sistema escravocrata, foram os que mais sofreram no movimento
de transplantação espacial e cultural, corte radical com usa raízes, enfim,
transculturação.

Para o autor, a necessidade do neologismo proposto é vital, pois a noção de


transculturação ultrapassa a visão limitada de mestiçagem racial, para significar o
movimento que subjaz o encontro de culturas. É interessante perceber que na mesma
época, no Brasil, o antropólogo Gilberto Freyre produzia reflexões que mantêm um
nítido diálogo com o pensamento de Ortiz, sem que seus autores tivessem conhecimento
entre si.

A forma pouca ortodoxa com que Ortiz analisa o processo civilizatório que se deu em
Cuba, em nada faz lembrar as teorias de corte positivista. Ortiz logrou construir uma
obra síntese, de equilíbrio teórico e metodológico, sustentada por uma reflexão original,
desvinculada das amarras teóricas das principais correntes da época. O antropólogo
cubano foi pioneiro ao elaborar um edifício teórico capaz de entender e explicar os
paradoxos culturais que fazem parte da origem e formação dos povos latino-americanos,
sempre buscando uma forma de ver o homem em sua multiplicidade, de ressaltar seu
potencial ativo e criativo.

A partir do conjunto de dados históricos e culturais específicos do momento de


inquietação que caracterizam os anos 60, podemos localizar a contribuição de Ángel
Rama, o crítico uruguaio desenvolve um aparato teórico que dá sustentação à sua
reflexão sobre a narrativa do continente do século XX. O ponto de partida de Rama é a
descrição e discussão do conflito entre vanguardismo e regionalismo. Para Rama a
introdução de novas formas literárias pelos vanguardistas durante a segunda metade dos
anos 30, nos conglomerados urbanos da América Latina, significou o ‘’cancelamento do
movimento narrativo regionalista que predominava na maioria das áreas do continente’’.
Diante do impacto e da pressão modernizadora de inspiração estrangeira, são três as
respostas dos regionalistas: uma delas é o que ele vai chamar de literatura de
transculturação.

O conceito de ‘’transculturação narrativa’’ nasce na transposição do conceito


antropológico/cultural elaborado por Ortiz às obras literárias. A partir deste ponto, Rama
elabora seu conceito partindo de correções no conceito original: para o uruguaio, a visão
de Ortiz é geométrica, de acordo com três momentos. Para Ramas, esta seleção obedece
a um comportamento peculiar das sociedades latino-americanas que, ao se tornarem
independentes, no processo de formação de sua identidade, procuraram selecionar
justamente os elementos que as sociedades europeias e americanas postergaram em seu
processo evolutivo, destacando-os de seus contextos para os fazerem seus, numa
operação arriscada e abstrata.

Aprofundando o entendimento da teoria de Ángel Rama, percebe-se que, para o autor


uruguaio, três operações fundamentais ocorrem no interior das narrativas por ele
consideradas transculturadas: o uso da língua, a estruturação literária e a
cosmovisão.

A primeira operação ocorre no na língua. Desde o final do século XIX, com o primeiro
impacto modernizador provocado pelo modernismo na América Hispânica, a língua
surge como um escudo de defesa e prova da independência.

A estruturação literária é, segundo Rama, outro mecanismo utilizado pelos narradores


transculturados que, neste caso, tiveram que enfrentar problemas que pediam soluções
mais complexas que aquelas encontradas no nível de uso da língua. O romance
regionalista, que tinha sido elaborado sobre o modelo do naturalismo do século XIX, se
vê frente a uma variedade de recursos vanguardistas, que já haviam sido absorvidos pela
poesia e logo depois disseminados na narrativa urbana, especialmente, no caso
argentino, no fantástico.

Ainda no nível das estruturas literárias, o regionalismo retrocedeu ainda mais ao


manancial da cultura tradicional na busca de ‘’mecanismos literários próprios,
adaptáveis às novas circunstâncias e suficientemente resistentes à erosão
modernizadora. A singularidade das respostas corresponde a uma sutil oposição às
propostas modernizadoras. ‘’ Dessa forma, em vez da fragmentação da narração ao
estilo James Joyce, que dominou o panorama das narrativas das vanguardas, João
Guimarães Rosa, em Grande sertão veredas, resgata o tradicional monólogo discursivo.
Outro exemplo, apontado por Rama, é García Márquez que, para resolver a equação de
conjugar, em um plano de verossimilhança histórica, as ações que se realizavam no
plano do maravilhoso, em Cem anos de Solidão, encontrou uma solução simples e
original: lembrou-se de uma de suas tias que, diante de situações inusitadas, reagia de
forma natural, sem o menor sinal de espanto. Esta naturalidade diante do irreal, do
fantástico, do extraordinário, aliada às fontes da narrativa oral e de uma visão de mundo
que rege seu comportamento estilístico, foi a chave que o autor colombiano utilizaria
em grande parte de sua obra.

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