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77-86, 2007 77
RESUMO
O ensaio propõe uma discussão acerca da emergência da
recuperação da memória como estratégia política e cultural
no mundo e, em especial, na América Latina. Através do
jogo entre o esquecer e o lembrar, o texto aborda dois teste-
munhos dos anos 90: Tejas Verdes, do chileno Hernán Valdéz,
e Memórias do esquecimento, do brasileiro Flávio Tavares.
U
m dos fenômenos mais surpreendentes a que temos assistido neste fim/
início de século tem sido a emergência da recuperação da memória como
estratégia política e cultural. Esta volta ao passado, contrasta radicalmen-
te com o característico olhar para o futuro que permeia, desde as vanguardas, a
vida e produção cultural do século XX.
Em muitos aspectos da vida cotidiana e cultural percebemos uma obsessão
de resgate do passado na construção do presente. Em todo o mundo, na América
Latina e, particularmente, no Brasil de hoje, não são poucos nem isolados os
movimentos de recuperação do patrimônio histórico nacional. Antigas cidades
renascem sob as luzes e as tintas das mais modernas técnicas de restauração. Pro-
liferam documentários, novelas e mini-séries televisivas, nas quais se percebe um
sério trabalho de reconstituição de época e da história. Uma onda “retrô” toma
conta da indústria da moda, levando-nos de volta ao passado recente. A indústria
da música também participa deste movimento dando novas roupagens a formas
prestigiadas em outras épocas, enquanto o cinema recupera histórias mitificadas,
até mesmo de fracassos, como o naufrágio do navio Titanic, que invadiu todo o
mundo há poucos anos. Há uma certa nostalgia no ar.
78 Reis, Lívia. Testemunho e construção da memória
balhadora. No Brasil, alguns dos frutos de tais práticas culturais e políticas foram
o “cinema novo” de Gláuber Rocha, além de vários grupos de teatro estudantil,
com destaque para o grupo que se tornou conhecido como Teatro do Oprimido,
liderado por Augusto Boal. Na mesma época, no Chile e por toda a América
Hispânica, surgia a nueva trova, personificada na emblemática figura de Violeta
Parra.
Neste cenário emergem os estudantes como atores políticos no cenário
mundial, disputando a hegemonia, até então nas mãos dos partidos tradicionais
de direita ou esquerda. Quase simultaneamente, em 1968, na Europa, nos EUA e
em diferentes países da América Latina eles ganham as ruas, impondo novas for-
mas de prática cultural que acabam por resultar em uma grande onda que inclui
desde a música de protesto ao feminismo, à contracultura e à explosão do rock n’
roll como fenômeno de massas.
No campo de criação literária, na América Latina assiste-se à emergência de
formas de representação não canônicas: testemunhos, documentários, autobio-
grafia e histórias íntimas. À diferença dos escritores do boom, que falavam “pela
América Latina”, os sujeitos subalternos assumem a construção textual como
sujeitos e objetos de seu texto e de sua história.
Essa mudança radical proporcionada pelas condições históricas que se de-
ram na década de 60, aliada à introdução na América Latina dos conceitos do pós-
estruturalismo francês, do marxismo gramsciano, da escola de Frankfurt e, um
pouco mais tarde, aos avanços dos estudos culturais da Escola de Birmingham,
dirigida pelo jamaicano Stuart Hall, fizeram com que, segundo palavras de Ángel
Rama”, os latino-americanos [começassem] a criticar a persistência de sistemas
coloniais e neocoloniais na representação da América Latina”4
O campo intelectual que se conformou na América Latina mudou o rumo
do projeto criador do continente, na medida em que as novas práticas culturais
vigentes permitiram, de forma inédita, a conquista da voz, do espaço letrado e da
representação aos subalternos, mulheres, homossexuais e prisioneiros políticos,
entre outros.
No caminho percorrido até aqui, de forma ampla e abrangente, tentamos
desenhar as condições históricas que proporcionaram, na América Latina, o
florescimento do testemunho, um gênero de fronteira que, na definição de Hugo
82 Reis, Lívia. Testemunho e construção da memória
Notas
1
HUYSSEN, Andreas. La Cultura de la Memoria: Medios, Politica, Amnesia. Revista de Crítica Literaria,
jul. 1977, n. 18, p. 86.
2
ADORNO,Theodor. Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1973. p. 64.
3
Cf. MANIFIESTO, 1998. p.89 (trad. Livre)
4
RAMA, Angel. Transculturacion narrativa en América Latina. México: Siglo XXI, 1982, p. 201.
5
Cf. ACHUGAR, Hugo e John Beverley, orgs. La voz del otro: testimonio, subalternidad y verdad
narrativa. Lima/Pittsburg: Latinoamaricana Editores, 1992, p. 50.
86 Reis, Lívia. Testemunho e construção da memória
6
VALDÉS, Hernán. Tejas Verdes, diario de un campo de concentración en Chile. Santiago: LOM
Ediciones, 1996, p. 3 (trad. livre)
7
TAVARES, Flávio. Memórias do esquecimento. São Paulo: Globo, 1999. p. 11
8
VALDEZ, H. op. cit., p. 114.
9
TAVARES, F. op. cit., p. 13.
ABSTRACT
This essay proposes a discussion revolving around the
emergence of the recuperation of memory as a political and
cultural strategy in the world and, in especial, Latin America.
Through the dual movement of forgetting/remembering,
the text examines two narratives published in the 1990s: Tejas
Verdes, by Chilean author Hernán Valdéz, and Memórias do
esquecimento, by Brazilian author Flávio Tavares.