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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras e Direitos Humanos, no 33, p.

77-86, 2007 77

Te st e m unho c om o Const ruç ã o da M e m ória

Livia Reis (UFF)

RESUMO
O ensaio propõe uma discussão acerca da emergência da
recuperação da memória como estratégia política e cultural
no mundo e, em especial, na América Latina. Através do
jogo entre o esquecer e o lembrar, o texto aborda dois teste-
munhos dos anos 90: Tejas Verdes, do chileno Hernán Valdéz,
e Memórias do esquecimento, do brasileiro Flávio Tavares.

Palavras-chave: narrativas testemunho; América Latina; di-


taduras

U
m dos fenômenos mais surpreendentes a que temos assistido neste fim/
início de século tem sido a emergência da recuperação da memória como
estratégia política e cultural. Esta volta ao passado, contrasta radicalmen-
te com o característico olhar para o futuro que permeia, desde as vanguardas, a
vida e produção cultural do século XX.
Em muitos aspectos da vida cotidiana e cultural percebemos uma obsessão
de resgate do passado na construção do presente. Em todo o mundo, na América
Latina e, particularmente, no Brasil de hoje, não são poucos nem isolados os
movimentos de recuperação do patrimônio histórico nacional. Antigas cidades
renascem sob as luzes e as tintas das mais modernas técnicas de restauração. Pro-
liferam documentários, novelas e mini-séries televisivas, nas quais se percebe um
sério trabalho de reconstituição de época e da história. Uma onda “retrô” toma
conta da indústria da moda, levando-nos de volta ao passado recente. A indústria
da música também participa deste movimento dando novas roupagens a formas
prestigiadas em outras épocas, enquanto o cinema recupera histórias mitificadas,
até mesmo de fracassos, como o naufrágio do navio Titanic, que invadiu todo o
mundo há poucos anos. Há uma certa nostalgia no ar.
78 Reis, Lívia. Testemunho e construção da memória

A síndrome do memorialismo, segundo palavras de Andreas Huyssen1 que


se alastra por todos os campos da vida cultural, também se faz notar no campo da
produção literária, tema que nos interessa tratar neste ensaio. Nunca se escreve-
ram tantas novelas históricas, escrituras da memória, confissões, diários, biogra-
fias, autobiografias e testemunhos como hoje. Basta abrir um jornal ou revista e
nos deparamos com César, Cleópatra, Ramsés, navegantes, heróis e degredados
de origem nacional ou importada. O fenômeno da explosão editorial dos roman-
ces históricos que assistimos em 1994 na América Hispânica, repetiu-se no Brasil,
em torno aos preparativos e comemorações dos 500 anos de descobrimento. Sem
dúvida, paralelo ao problema de mercado que está por trás do fenômeno em tela,
no caso da América Latina, o resgate da memória em sociedades pós ditatoriais
vem carregado de outro tipo de questões que apontam para problemas de viola-
ção de direitos humanos, justiça e responsabilidade coletiva que colocam no palco
de discussão estratégias de memória, esquecimento e trauma.
Na Europa, a literatura testemunho ganha impulso a partir dos relatos de
sobreviventes do holocausto e se articula sobre a linha tênue da necessidade de
narrar a barbárie e a insuficiência de linguagem diante do horror e do trauma,
paradoxo que põe em cheque a relação entre o real e o ficcional, entre história e
ficção. É possível a realidade verbal, de linguagem, traduzir um excesso de realida-
de “vivida”?
No pós-guerra, Adorno questionava, no paradigmático ensaio Engagement,
se “há sentido em viver quando existem homens que batem até que os ossos se
quebrem no corpo”, ao mesmo tempo em que se perguntava “se a arte ainda
pode existir, se uma regressão do intelecto no conceito de literatura engajada não
é sujeitada pela regressão da sociedade mesma”; e contesta sua pergunta afirman-
do que “a poesia precisa resistir a este veredicto; ser portanto de tal modo que não
tome a si pela sua simples existência depois de Auschwitz, o cinismo o excesso de
sofrimento real não permite o esquecimento”.2
O conceito de literatura engajada de Adorno colabora de maneira consoan-
te com outro conceito, originário de outro tempo e de outra história, que vem a
ser o florescimento e expansão dos textos-testemunho na América Latina a partir
dos anos 60, singularmente impulsionado pelo triunfo da revolução cubana que
alterou os modelos e paradigmas vigentes até então.
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Na América Latina, o momento ao qual se atribui importância histórica ao


se tratar do que hoje nos referimos como narrativa-testemunho é o ano de 1970,
quando a Casa de las Américas, pela primeira vez, incluiu entre suas categorias, a
premiação de um gênero não canonizado. Até 1969, as obras que correspondiam
às características das narrativas testemunho concorriam, segundo cada caso, entre
os gêneros tradicionais, sobretudo romance e ensaio.
Ao longo dos anos 60, obras como Manuela la mexicana, da cubana Aída
García Alonso; Biografía de un cimarón, do antropólogo cubano, Miguel Barnett;
Hasta no verte Jesus mio, da mexicana Elena Poniatowska; e Operación masacre, do
argentino Rodolfo Walsh, para citar apenas algumas obras que se tornaram
“paradigmas”, da narrativa de testemunho vinham delineando um gênero ao qual
o Prêmio outorgou um nome, que carecia. Está claro que a Casa de las Américas
não criou um novo gênero, apenas o legitimou e, ao fazê-lo, criou um marco de
referência.
Na ata de criação do Premio Testimónio de 1970, há uma definição das
características gerais do gênero e entre elas ressaltam-se “os méritos literários, a
atualidade do tema e a transcendência política e social dos textos”. O testemunho,
como sabemos, tem uma conotação política muito marcada que se traduz em
permitir o uso da palavra por aqueles que tradicionalmente se encontram excluí-
dos. Porém, este comprometimento em nada resolve os problemas que se estabe-
lecem nas relações entre o ético e o estético, ou do literário e do não-literário, o
ficcional e o não ficcional, apenas para citar algumas das características conside-
radas relevantes aos instituidores do Prêmio.
Consoante com os problemas inerentes à literatura-testemunho na América
Latina, na sua maioria relatos da barbárie das ditaduras, na Europa, a literatura
pós-Auschwitz incorpora dimensões e intensidades semelhantes, que colocam sob
os holofotes as relações entre a linguagem e o real. Narrar o inenarrável, contar o
inverossímil acarreta um complexo jogo entre o narrador/testemunha, seu texto
e o público leitor, pois narrar implica um engajamento moral e ético que tenta
preencher os espaços deixados em branco pela historiografia oficial, implicando,
portanto, um contar a partir da margem, do não autorizado – tarefa árdua, que
coloca em confronto a tragédia e o trauma que significam negação da memória,
lado a lado com a tentativa de resgatar a história, por necessidade de sobrevivên-
cia e reconstrução de uma memória fragmentada pelo mesmo trauma por ela
80 Reis, Lívia. Testemunho e construção da memória

gerado. Portanto, narrar, esquecer, lembrar, contar são procedimentos ambíguos


em constante luta no interior do sujeito narrador e na exterioridade dos textos-
testemunho. A memória existe ao lado do esquecimento, um complementa e ali-
menta o outro. Para quem conta, a narração combina memória e esquecimento.
Muitos exemplos seguem ao de Jorge Semprum, liberado de um campo nazista
em 1945, cujo testemunho foi publicado somente em 1994. A explicação deste
atraso deve-se ao desejo de esquecer, para poder viver, como observa Márcio
Siligmann-Silva em seu estudo sobre os testemunhos do holocausto.
Paralela ao debate memória/esquecimento redimensionados a partir dos
estudos sobre testemunhos da experiência do nazismo, na América Latina, o
florescimento do testemunho como gênero, após o impulso dado pela Casa de las
Américas, se relaciona ao surgimento de novas condições, principalmente a partir
dos anos 60, que propiciaram, radicalmente, os estudo sobre subalternidade.
É essencial compreender a década de 60 para qualquer tentativa de análise
dos fenômenos políticos e culturais da atualidade. A conjunção de fatos e ações
que se desenvolveram naquela década colocou no palco novos atores em papeis
inéditos na história recente. Desde o início do século, a revolução mexicana já
havia trazido ao cenário protagonistas que desestabilizaram o modelo eurocêntrico,
oligárquico, branco e patriarcal, pois se fundava na articulação de índios e mesti-
ços, não apenas como soldados, mas também como líderes do movimento. O
triunfo da Revolução Cubana representou o impulso inicial em direção à emer-
gência do sujeito subalterno no contexto pós-colonial, não-europeu. Segundo o
Manifesto do grupo latino-americano de estudos subalternos, “a releitura feita
por Roberto Fernández Retamar de Franz Fanon e do discurso nacional em seu
ensaio Calibán é um exemplo de uma nova conceitualização da historia e da iden-
tidade latino-americanas”.3 Esse texto influenciou os escritores do boom, como
García Marquéz, Vargas Llosa e Carlos Fuentes – além de ter tido grande impacto
entre cientistas sociais e políticos, porque se vislumbrava a viabilidade de se esta-
belecerem na América Latina modelos econômicos e sociedades que, teoricamen-
te, romperiam com os sistemas dominantes, dando abertura para os sujeitos su-
balternos.
A Revolução Cubana também inspirou em todo o continente práticas cultu-
rais e políticas por parte de sujeitos que, insatisfeitas com as estratégias de repre-
sentação que sempre privilegiaram as elites, podiam agora, voltar-se à massa tra-
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balhadora. No Brasil, alguns dos frutos de tais práticas culturais e políticas foram
o “cinema novo” de Gláuber Rocha, além de vários grupos de teatro estudantil,
com destaque para o grupo que se tornou conhecido como Teatro do Oprimido,
liderado por Augusto Boal. Na mesma época, no Chile e por toda a América
Hispânica, surgia a nueva trova, personificada na emblemática figura de Violeta
Parra.
Neste cenário emergem os estudantes como atores políticos no cenário
mundial, disputando a hegemonia, até então nas mãos dos partidos tradicionais
de direita ou esquerda. Quase simultaneamente, em 1968, na Europa, nos EUA e
em diferentes países da América Latina eles ganham as ruas, impondo novas for-
mas de prática cultural que acabam por resultar em uma grande onda que inclui
desde a música de protesto ao feminismo, à contracultura e à explosão do rock n’
roll como fenômeno de massas.
No campo de criação literária, na América Latina assiste-se à emergência de
formas de representação não canônicas: testemunhos, documentários, autobio-
grafia e histórias íntimas. À diferença dos escritores do boom, que falavam “pela
América Latina”, os sujeitos subalternos assumem a construção textual como
sujeitos e objetos de seu texto e de sua história.
Essa mudança radical proporcionada pelas condições históricas que se de-
ram na década de 60, aliada à introdução na América Latina dos conceitos do pós-
estruturalismo francês, do marxismo gramsciano, da escola de Frankfurt e, um
pouco mais tarde, aos avanços dos estudos culturais da Escola de Birmingham,
dirigida pelo jamaicano Stuart Hall, fizeram com que, segundo palavras de Ángel
Rama”, os latino-americanos [começassem] a criticar a persistência de sistemas
coloniais e neocoloniais na representação da América Latina”4
O campo intelectual que se conformou na América Latina mudou o rumo
do projeto criador do continente, na medida em que as novas práticas culturais
vigentes permitiram, de forma inédita, a conquista da voz, do espaço letrado e da
representação aos subalternos, mulheres, homossexuais e prisioneiros políticos,
entre outros.
No caminho percorrido até aqui, de forma ampla e abrangente, tentamos
desenhar as condições históricas que proporcionaram, na América Latina, o
florescimento do testemunho, um gênero de fronteira que, na definição de Hugo
82 Reis, Lívia. Testemunho e construção da memória

Achugar, “se encontra a cavalo entre a autobiografia e a biografia, disputado pela


antropologia e pela literatura e que assume modalidades próprias tanto do discur-
so histórico quanto da narrativa”.5
Nesse espaço híbrido entre o documental, o histórico e o ficcional, se loca-
liza um grande número de narrativas produzidas no Brasil, na Argentina e Chile
que vieram a público a partir dos anos 70, sobretudo depois da volta dos exilados
e início da redemocratização dos anos 80 e 90.
Os textos que passarei a examinar fazem parte de um tipo de testemunho
que mais tem contribuído para o vigor do gênero: são narrativas de presos políti-
cos, que relatam a violência das ditaduras. Tejas Verdes, diario de un campo de concentración
en Chile, de Hernán Valdés, foi publicado em Barcelona, em 1974, e somente em
1996 teve sua primeira edição no Chile. Memórias do esquecimento, do jornalista bra-
sileiro Flávio Tavares, de 1999, recebeu uma ampla divulgação na mídia, além de
elogiosas críticas em revistas e em jornais especializados.
Como era de se esperar, nas obras em tela percebe-se o esforço no resgate
da memória, tanto na tentativa de preencher os espaços em branco da historiografia
oficial, quanto na reconstrução da história íntima dos sujeitos narradores. Em sua
nota preliminar, Valdés afirma que seu texto foi escrito “no calor da memória,
sem maior elaboração literária, e sem outra pretensão, se não a de comover a
opinião pública sobre a situação chilena”.6 Ao explicitar o modo de produção e
objetivo de sua narrativa, o chileno quer aproveitar o calor da memória ainda
fresca dos acontecimentos para transmitir toda a contundência de sua história.
Por sua vez, Flávio Tavares na introdução de seu livro declara:
São 30 anos que esperei para escrever e contar. Lutei com a
necessidade de dizer e a absoluta impossibilidade de escrever. A
cada dia adiei o que iria escrever ontem. A idéia vinha à memória,
mas, logo, logo se esvaía naquele cansaço imenso.....Tornei-me um
esquizofrênico da memória ou de mim mesmo....Tendo tudo para
contar, sempre quis esquecer. 7

Em ambos, embora o tempo de gestação do testemunho tenha sido distin-


to, percebe-se a obsessão com a memória e com o esquecimento. No primeiro,
narrar imediatamente é imperativo para a sobrevivência da memória; enquanto no
segundo, o trauma é inenarrável e a experiência escamoteada ao longo de 30 anos.
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No livro de Tavares observa-se o mesmo procedimento de impossibilidade de


narrar que foi comentado anteriormente a respeito de Jorge Semprum, que prefe-
re esquecer para sobreviver, e somente após anos de elaboração a tragédia pode
ser verbalizada.
Como na maioria dos relatos testemunho, sejam eles com ou sem mediado-
res, em Tejas Verdes há um prólogo em que o autor explica as motivações e objeti-
vos do texto, além de uma introdução, por outro escritor, neste caso Manoel
Antonio Garretón, na qual se localizam historicamente tanto o relato quanto o
narrador, além de se reafirmar a importância da publicação, ainda que com 20
anos de atraso. O livro abre com o mapa do campo de concentração Tejas Verdes,
um dos muitos que existiram clandestinamente no Chile na ditadura do general
Pinochet. Em seguida, seguem-se os capítulos, datados em forma de diário, o que
justifica o subtítulo da obra: diario de un campo de concentración en Chile.
O livro narra, em uma linguagem contida e sem excessos, o drama vivido
no cotidiano do autor durante sua passagem pela prisão que empresta nome ao
livro. Desde sua inexplicável prisão, em casa, os interrogatórios iniciais, a transfe-
rência para o campo, as sessões de tortura, percebemos uma narração rigorosa e
honesta que não pretende construir heróis ou vítimas. É antes de tudo um relato
da perplexidade e vulnerabilidade de um cidadão comum diante da arbitrariedade
e brutalidade e ignorância daqueles que têm o poder sobre sua vida e que, tampouco,
conhecem o motivo de sua detenção.
Com o uso acurado da linguagem, expresso no uso da frase enxuta e da
sintaxe direta, Valdés, descreve o clima do campo, os maus-tratos, a mentalidade
dos militares e, sobretudo, a comovedora multiplicidade de figuras humanas de
detentos como ele. Homens oriundos de diferentes estratos da sociedade, profes-
sores, advogados, camponeses, operários, estudantes que, juntos, estabelecem pac-
tos de solidariedade e alianças a partir da necessidade de inventar um cotidiano
dentro da escassez e do confinamento de um mesmo espaço exíguo que têm que
compartilhar:
No sé como decir, estoy temblando sin que eso parezca una figura retórica. Las
rodillas, los hombros, el pecho, los músculos del cuello y la nuca se estremecen
cada cual independiente, con contracciones distintas. Sé que me duele mucho la
espalda, pero el dolor no me hace sufrir. 8
84 Reis, Lívia. Testemunho e construção da memória

O relato de Valdés acaba por construir um testemunho com qualidades es-


téticas, humanas e éticas, por não permitir que o passado seja esquecido e apaga-
do da memória pela pressa e superficialidade impostas pela modernidade do coti-
diano. Reviver e narrar são formas de resistência à brutalidade e injustiças de um
passado que não se quer ver no futuro.
A obra de Flávio Tavares, Memórias do esquecimento, traz em si um paradoxo a
partir do próprio título, que se relaciona com a reflexão que vimos esboçando ao
longo deste ensaio: a impossibilidade de a linguagem representar o trauma, o
horror e o seu reverso: a necessidade de contar. Explicitando a dualidade, logo na
Introdução, que não chega a ser um prólogo e sim um convite à mulher amada e
aos leitores para penetrar no universo das suas memórias, o autor estabelece um
jogo de linguagem entre o negar as recordações para narrá-las em seguida, e ter-
mina por fazer um resumo das histórias que povoam sua memória e sua narração,
prestes a começar.
O momento do amor é o momento que faz desencadear a torrente de me-
mórias e dor que jaziam esquecidas por três décadas. Ainda na Introdução o liris-
mo da poesia em diálogo com outro poeta, Drummond, expõe o martírio provo-
cado pela recordação:
Esquecer? Impossível, pois o que eu vi caiu também sobre mim, e
o corpo e a alma sofridos não podem evitar que a mente esqueça
ou que a mente lembre. Sou um demente escravo da mente. Rima?
Rima, sim, e até pode ser uma rima, mas não uma solução. A única
solução é não esquecer. 9

Na luta entre recordar e esquecer, a memória é o único caminho para a


construção do indivíduo e sua libertação da escravidão do sofrimento e da dor. A
narração recorre ao artifício da rememoração de toda a experiência vivida, no
momento em que o personagem/narrador encontra-se no avião militar, com des-
tino ao México, depois de liberado em troca do Embaixador americano, Charles
Elbrick, seqüestrado no Rio de Janeiro. A partir desta viagem, rumo à nova vida e
à liberdade, Flávio constrói sua narração com uma estrutura de relato ficcional, ao
estilo de novela de ação, onde se mesclam aventura, horror, torturas, viagens,
prisões e uma profunda reflexão sobre a vida e a natureza humana. Tudo muito
bem urdido no questionamento que percorre todo o livro: a urgência de narrar
como ato necessário para reconquistar a si próprio conjugado com uma profun-
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da autocrítica da opção pela luta armada empreendida pela esquerda brasileira


daqueles anos.
Embalado em uma linguagem elegante, com um ritmo próprio da ficção, a
história que se conta é fascinante, dramática se não fosse real. Não há como per-
manecer isento ao percorrer o relato, repleto de citações a episódios de nossa
história recente que a leitura resgata da nossa memória, também fadada ao es-
quecimento, à amnésia.
O testemunho de Flávio Tavares é mais do que apenas uma contribuição à
rica galeria de relatos sobre a ditadura militar no Brasil. Trabalhando na tênue
linha que separa memória do esquecimento, recuperando os fatos ainda pouco
esclarecidos e completando os vazios da historia oficial, Flávio ilumina nossa com-
preensão sobre nossa história.
História e memória podem nem sempre estar de acordo, mas os testemu-
nhos são a garantia da continuidade da vida. Os testemunhos na América Latina,
além de permitirem o conhecimento de histórias ainda não contadas, têm um
compromisso com a ética para mais além da estética em questão. O movimento
de resgatar envolve a dor de reviver o que se quer esquecer, mas sem o qual não se
consegue a libertação.
Em nosso continente, a urgência na reorganização no campo dos estudos
literários se justifica em função da realidade da produção textual do continente.
Os limites do cânone e o corpus produzido nas nações pós-coloniais se expan-
dem em direção às margens, forçando os limites, transformando corpus em cânone.

Notas
1
HUYSSEN, Andreas. La Cultura de la Memoria: Medios, Politica, Amnesia. Revista de Crítica Literaria,
jul. 1977, n. 18, p. 86.
2
ADORNO,Theodor. Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1973. p. 64.
3
Cf. MANIFIESTO, 1998. p.89 (trad. Livre)
4
RAMA, Angel. Transculturacion narrativa en América Latina. México: Siglo XXI, 1982, p. 201.
5
Cf. ACHUGAR, Hugo e John Beverley, orgs. La voz del otro: testimonio, subalternidad y verdad
narrativa. Lima/Pittsburg: Latinoamaricana Editores, 1992, p. 50.
86 Reis, Lívia. Testemunho e construção da memória

6
VALDÉS, Hernán. Tejas Verdes, diario de un campo de concentración en Chile. Santiago: LOM
Ediciones, 1996, p. 3 (trad. livre)
7
TAVARES, Flávio. Memórias do esquecimento. São Paulo: Globo, 1999. p. 11
8
VALDEZ, H. op. cit., p. 114.
9
TAVARES, F. op. cit., p. 13.

ABSTRACT
This essay proposes a discussion revolving around the
emergence of the recuperation of memory as a political and
cultural strategy in the world and, in especial, Latin America.
Through the dual movement of forgetting/remembering,
the text examines two narratives published in the 1990s: Tejas
Verdes, by Chilean author Hernán Valdéz, and Memórias do
esquecimento, by Brazilian author Flávio Tavares.

Key words: testimónio writing; Latin America; dictatorships

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