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INTRODUÇÃO
O conservadorismo e as formas inovadoras coexistem
na base das manifestações populares
Antonio Gramsci
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Doutor em Letras pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB – e professor de Literaturas
Africanas de Língua Portuguesa na Universidade Federal do Ceará – UFC. É cordelista e coordena
o grupo de estudos Literatura Popular – GELP. Endereço eletrônico: profstelio@yahoo.com.br
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literatura ao mesmo tempo rústica e singela, que questiona e que entretém. Nesse
pormenor, Diegues Júnior enfatiza o contexto sócio-histórico nordestino como fator
decisivo para o surgimento da literatura de cordel:
[...]
Em toda repartição
Tem uma mulher mandando
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Embora não haja limites para a verve poética de Salete Maria, a autora tem
privilegiado as questões de gênero, feminismo, direitos humanos e outros assuntos
marginais e periféricos. Ratificam isso os títulos de algumas de suas obras: "Habeas
bocas, companheiras!"; “Cidadania, nome de mulher”; “Dia do orgulho gay”; “Do
direito de ser gay (ou condenando a homofobia)”; “Embalando meninas em tempos
de violência”; “Mulher também faz cordel”; “Mulher, amor não rima com AIDS”;
“Mulheres do Cariri: mortes e perseguição” e “O grito dos "mau" entendidos”.
Portanto, os cordéis da autora procuram intervir no seu entorno social
através da defesa dos direitos humanos. Nessa perspectiva, sua produção
cordelística acha-se intimamente integrada ao seu ativismo político, voltando-se para
o resgate das vozes marginalizadas, tendo como ênfase o tema da
homossexualidade e questões de caráter feminista, com ênfase sobre a denúncia da
violência contra a mulher. Nessa perspectiva,
Só agora a gente vê
Mulher costurando rima
É necessário dizer
Que de limão se faz lima
Hoje o que é limonada
Foi águas podre, parada
Salobra com lama em cima
Tempo de patriarcado
Também de ortodoxia
À mulher não era dado
Sair pela cercania
Exibindo algum talento
Pois iria a julgamento
Quem não a condenaria? (SILVA, s.d.-c)
Querem do governador
Do juiz, do promotor
Atitude que arrosta
(...)
Terezinha de Jesus
De uma queda foi ao chão
Alguém viu um cavalheiro
Com uma faca na mão
Depois um tiro certeiro
Dilacerou por inteiro
O seu jovem coração
(...)
(...)
(...)
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Importa anunciar
(Preste muita atenção)
A justiça não é cega
Fala e tem audição
Esta arte entre em vigor
Com sua publicação. (SILVA, 1999)
Intercalando um bendito
Com leituras do meu ser
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Uma delas, inclusive, é mostrada como devota do Padim, razão pela qual
não se esquece de vestir luto nos dias 20, alusão ao 20 de julho de 1934, data da
morte do Patriarca do Juazeiro:
(...)
Ao verso final, que soa como provocação, podem ser agregados outros,
revelando o fanatismo religioso expresso pelas beatas como um símbolo de
hipocrisia, intolerância e/ou alienação. É exemplo o trecho a seguir, extraído do
cordel Mulher, Amor não rima com AIDS:
Da mesma forma que as fiéis, também os líderes religiosos que agem com
intolerância são alvo do verso crítico e incisivo da autora, que em várias obras
manifesta uma denúncia da prática religiosa, especialmente a católica, que termina
por contradizer o amor que proclama. Exemplo é o cordel Agora são outros 500 –
mentira tem perna curta, publicado propositalmente em primeiro de abril de 2000, dia
da mentira do ano em que se comemoravam os 500 anos do descobrimento do
Brasil. É dessa obra a estrofe a seguir, na qual a poeta expressa uma visão bastante
dura acerca da missão jesuítica nos primeiros anos da colonização:
Um jesuíta otário
Veio nos domesticar
Nos índios botou rosário
Obrigou-os a rezar
Impôs língua e cenário
Mas nunca pagou salário
Pro nativo trabalhar (SILVA, 2000-b)
Nesse contexto, convém destacar que nem mesmo a figura do Padre Cícero
é poupada como uma expressão de intolerância contra o público LGBT. É o que se
observa no cordel A história de Joca e Juarez, dois homens que acabam se
apaixonando um pelo outro. O trecho a seguir trata da reação do Padim à revelação
da relação homossexual por parte de Juarez:
“Isso é a tentação
Você precisa rezar
Peça logo a Deus perdão
Tire moça pra casar
Veja Sodoma e Gomorra
O castigo contra a zorra
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"Ademais eu advirto
E esclareço a você
Em assunto desse tipo
Nada posso lhe dizer
É tema que não me meto
E com o devido respeito
Eu não me deixo meter." (SILVA, 2001-a)
A ideia começa a perturbar Juca, uma vez que já o padre havia advertido
que aquela forma de amor seria antinatural. Nesse contexto, a metamorfose, tão
comum em cordéis que tratam da punição ao pecado (Cf. SILVA, 2010), viria a se
processar como castigo, transformando os amantes em um monstro:
A crítica tanto aos líderes religiosos quanto aos fiéis, assim, é frequente em
cordéis de Salete Maria, acusando, nestes casos, um aparente embate entre o
sagrado e o profano. Importa destacar, no entanto, que a obra da autora não se trata
obrigatoriamente de uma poesia iconoclasta ou mesmo anticlerical: em vez de uma
crítica à igreja enquanto instituição, a crítica se volta para o exercício da fé que
produz intolerância em vez de compreensão, marginalização em vez de
acolhimento. Tanto é assim que, em O grito dos “mau” entendidos, a autora mostra
um padre que acolhe um personagem gay:
“Falsa é a sociedade
Que nos cospe e abomina
Eu lhes digo, em verdade
Ser ‘alegre’ é minha sina
Se um dia nasci homem,
Mesmo que tudo me tomem
Eu sempre quis ser menina”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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Mau-Ditos, s.d.-c. (Versão eletrônica do texto disponível em:
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_______. Mulheres do Cariri: mortes e perseguição. Juazeiro do Norte, CE:
Sociedade dos Poetas Mau-Ditos, 2004. (Versão eletrônica do texto disponível em:
<http://cordelirando.blogspot.com/2008/07/mulheres-do-cariri-mortes-e-
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_______. O grito dos “mau” entendidos. Juazeiro do Norte, CE: Sociedade dos
Poetas Mau-Ditos, 2001-c. (Versão eletrônica do texto disponível em:
<http://cordelirando.blogspot.com.br/2008/>. Acesso em 25/05/2018).
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VASSALO, Lígia. O sertão medieval: origens europeias do teatro de Ariano
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