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Introdução
Como vemos, o poeta assemelha sua condição de vida atual com o estado de
decadência do pau d’arco, árvore símbolo de beleza e resistência à seca. Essa associação,
além de base de uma metáfora, assinala uma constante ao longo de toda a obra Cante lá
que eu canto cá: a ligação estreita do eu-lírico com a fauna e com a flora, ressaltando a
não dissociabilidade entre a voz poética patativana e a natureza. Em relação aos bichos,
tanto como com as plantas, essa ligação é profunda, como se observa no poema “O
rouxinol e o ancião”:
Como uma legítima fábula, com parentesco também com as parábolas cristãs, o
poema citado vale-se de uma imagem natural para transfigurá-la em exemplo de vida: a
morte de um rouxinol liberto da gaiola por um gavião serve de argumento para o eu-lírico
mostrar que a aparente “prisão” doméstica é, na verdade, uma forma de proteção dos
filhos. Portanto, conclui-se que Patativa, numa atitude mimética, utilizou uma situação
envolvendo a fauna como elemento da natureza para repassar valores familiares aos
leitores, o que é muito comum percebermos quando lemos obras exemplares, como
fábulas, apólogos, parábolas, etc.
Outra característica da natureza presente em alguns poemas de Patativa é a
condição da natura como espelho do mundo interior das personagens. É o que vemos, por
exemplo, em "A morte de Nanã":
E, enquanto nós assistia/ A morte da pequenina, / Na manhã daquele dia, /
Veio um bando de campina, / De canaro e sabiá/ E começaro a cantá/ Um hino
santificado,/ Na copa de um cajuêro/ Que havia bem no terrêro/ Do meu
rancho esburacado.
Aqueles passo cantava,/ Em lovô da despedida,/ Vendo que Nanã dexava/
As misera desta vida,/ Pois não havia ricurso,/ Já tava fugindo os purso,/
Naquele estado misquinho,/ Ia apressando o cansaço,/ Seguido pelo
compasso/ Da musga dos passarinho. (ASSARÉ, 1978, p. 42)
Nanã tinha mais primô/ De que as mais bonita joia,/ Mais linda do que as fulô/
De um tá de Jardim de Tróia/ Que fala o dotô Conrado./ Seu cabelo cachiado,/
Preto da cô de viludo./ Nanã era meu tesôro,/ Meu diamante, meu ôro,/ Meu
anjo, meu céu, meu tudo. (ASSARÉ, 1978, p. 39)
Como vimos, a beleza de Nanã recebe perfeita tradução na natureza. Esse apelo à
natura para dar ideia da beleza das personagens, principalmente as femininas, é bem
frequente nos poemas de Cante lá que eu canto cá.
Por fim, cabe destacar que a grande intimidade do eu-lírico patativano com a
natureza permite que este saiba interpretar a voz da natura: tal como os antigos nautas,
que se guiavam pelos astros, ou, mais propriamente, como os “profetas da chuva’, que
detectam sinais de inverno ou estiagem a partir da observação da natureza, também o eu-
lírico de Cante lá que eu canto cá sabe ler a natureza. Exemplo é o poema "A festa da
Maricota":
Veja a coã como sabe/ É como eu digo ou não é?/ Ela, quando gargaiava,/
Com certeza me contava/ Que a desgraça ia se dá,/ Mas porém ninguém
compreende,/ Ninguém sabe nem entende/ A língua dos animá. (ASSARÉ,
1978, p. 68)
Na seca inclemente do nosso Nordeste,/ O sol é mais quente e o céu mais azul/
E o povo se achando sem pão e sem veste,/ Viaja à procura das terra do Sul.
De nuvem no espaço, não há um farrapo,/ Se acaba a esperança da gente
roceira,/ Na mesma lagoa da festa do sapo,/ Agita-se o vento levando a poeira.
(ASSARÉ, 1978, p. 55).
A – Ai, como é duro viver/ Nos Estados do Nordeste/ Quando o nosso Pai
Celeste/ Não manda a nuvem chover./ É bem triste a gente ver/ Findar o mês
de janeiro/ Depois findar fevereiro/ E março também passar,/ Sem o inverno
começar/ No Nordeste brasileiro.
(...)
F – foge o prazer da floresta/ O bonito sabiá,/ Quando flagelo não há/
Cantando se manifesta./ Durante o inverno faz festa/ Gorjeando por esporte,/
Mas não chovendo e sem sorte,/ Fica sem graça e calado/ O cantor mais
afamado/ Dos passarinhos do norte. (ASSARÉ, 1978, p. 308-309 e 310)
Nestes e em outros trechos de poemas de Cante lá que eu canto cá, Patativa nos
mostra que a mesma mãe dadivosa pode se transformar em verdadeira “madrasta”, ou
seja, como alguém que se mostra cruel para com o sertanejo. Essa face terrível da mãe-
natureza se evidencia principalmente, como já se observa no trecho dos dois poemas há
pouco citados, quando entra em cena os quadros da “seca terrível que tudo devora”, como
descreve o célebre poema “A triste partida”:
A treze do mês ele fez a experiença,/ Perdeu sua crença/ Nas pedra de sá./ Mas
nôta experiença com gosto se agarra,/ Pensando na barra/ Do alegre Natá.
Rompeu-se o Natá, porém barra não veio,/ O só, bem vermeio,/ Nasceu munto
além./ Na copa da mata, buzina a cigarra,/ Ninguém vê a barra,/ Pois barra não
tem. (ASSARÉ, 1978, p. 89)
Nesse conhecido poema, depois popularizado em composição interpretada por
Luiz Gonzaga, a natureza se apresenta como algoz do sertanejo, sendo a causadora da
partida do homem do campo e sua família para as terras do Sul em busca de melhores
horizontes.
Nesse contexto, a natureza também pode servir como exemplo da maldade,
como se vê no poema “O sabiá e o gavião”:
As Escritura não diz,/ Mas diz o coroação meu:/ Deus, o maió dos juiz,/ No dia
em ressorveu/ A fazê o sabiá/ Do mió materiá/ Que havia inriba do chão,/ O
diabo, munto inxerido,/ Lá num cantinho, escondido,/ Também fez o gavião.
(ASSARE, 1978, p. 227).
[Na seca,] Fica tudo transformado,/ Sofre o velho e sofre o novo/ Falta pasto
para o gado/ E alimento para o povo./ Neste drama de tristeza/ Parece que a
natureza/ Trata tudo com rigor./ E nesta situação,/ O desumano patrão/
Despreza o seu morador.
(...)
Cheia de necessidade/ Sem rancor e sem malícia/ Entra a turma da cidade/ E
sem temer a polícia/ Vai falar com o prefeito./ E se ele não der um jeito,/
Agora o jeito que tem/ É os coitados famintos/ Invadirem os recintos/ Da feira
e do armazém. (ASSARÉ, 1978, p. 325-326).
Vemos, portanto, que o poeta, como um filho amoroso, não se sente à vontade
para criticar a mãe-Natureza. Afinal, como veremos a seguir, mesmo madrasta às vezes, é
sempre dela que depende para alimentar tanto o corpo quanto o espírito.
A despeito do casual retrato da natureza como mãe terrível, a zona rural ganha
em Cante lá que eu canto cá um retrato em tudo superior à zona urbana, mostrada como
lugar de degradação moral, em o progresso não produz apenas riqueza e conforto, mas,
sobretudo, ganância e desunião. Trata-se, no fundo, de um embate entre natura e cultura,
ao qual o eu-lírico não hesita em tomar partido, mostrando-se inteiramente favorável à
vida simples e sofrida, mas também solidária e honesta, junto à natureza.
Essa discussão é claramente expressa no poema “Ingém de ferro”, no qual a
inserção no meio rural da máquina produzida na cidade é posta como fonte geradora de
desarmonia na sociedade campesina. Para mostrar isso, a voz poética desenvolve seu
discurso a partir de um confronto entre o ingém de ferro e o ingém de pau:
Ingém de ferro, você/ Com seu amigo motô,/ Sabe bem desenvorvê,/ É munto
trabaiadô./ Arguém já me disse até/ E afirmô que você é/ Progressista em alto
grau;/ Tem força e tem energia,/ Mas não tem a poesia/ Que tem o ingém de
pau. (ASSARÉ, 1978, p. 92)
O ingém de pau quando canta,/ Tudo lhe presta atenção,/ Parece que as coisa
santa/ Chega em nosso coração./ Mas você, ingém de ferro,/ Com este
horroroso berro,/ É como quem qué brigá,/ Com a sua grande afronta/ Você tá
tomando conta/ Dos nossos canaviá. (ASSARÉ, 1978, p. 93)
Do bom tempo que se foi/ Faz mangofa, zomba, escarra./ Foi quem expulsou
os boi/ Que puxava na manjarra./ Todo soberbo e sisudo,/ Qué governá e
mandá tudo,/ É só quem qué sê ingém./ Você pode tê grandeza/ E pode fazê
riqueza,/ Mas eu não lhe quero bem.
Mode esta suberba sua/ Ninguém vê mais nas muage,/ Nas bela noite de lua,/
Aquela camaradage/ De todos trabaiadô./ Um falando em seu amô/ Outro
dizendo uma rima,/ Na mais doce brincadêra,/ Deitado na bagacêra,/ Tudo de
papo pra cima. (ASSARÉ, 1978, p. 93)
Aquele povo que veve/ Nas ruas da capitá/ Não sabe o quanto padece/ Os
trabaiadô de cá/ Esse povo da cidade/ Que só veve de vaidade/ Nunca foi
agricultô/ Uma roça não conhece/ Não sabe o quanto padece/ O povo do
interiô.
Aqui pra nós sempre tá/ Chegando de quando em vez/ Gente com cara de
saibo/ Embruiando os camponês. / Causa raiva e dá desgosto/ A gente pagá
imposto/ Cobrado contra a razão/ E além de certos direito/ Ainda vivê sujeito/
Ao tá fiscá de argodão.
Esse espertaião sem arma/ Sabe fazê trapaçada!/ Com o dono do armazém/
Veve de língua passada/ E se o dono do armazém/ É um esperto também/ Lhe
dá logo uma gorgeta,/ E na classificação/ É o dono do argodão/ Quem aguenta
a buzuleta. (ASSARÉ, 1978, p. 81)
Considerações Finais.
Em sua “poesia matuta”, como foi destacado nesta breve análise de alguns
poemas de Cante lá que eu canto cá, Patativa celebra a beleza da fauna e da flora de seu
torrão natal, abstrai lições profundas a partir da contemplação da natureza, lamenta os
efeitos degradantes do progresso sobre o meio natural. Para tanto, o bardo do Cariri parte
da oposição entre natura e cultura para exaltar o campo como um locus superior à urbe
no tocante à preservação das virtudes morais, etc.
Esse entendimento constitui um dos pilares centrais da arquitetura de Cante lá
que eu canto cá e de toda a criação de Patativa. Tanto é assim, que o poema que dá título
à obra se desenvolve a partir da oposição entre a modalidade que representa a urbe e
aquela que representa o sertão, respectivamente, a obra erudita e a obra popular:
Mas porém eu não invejo/ O grande tesôro seu,/ Os livro do seu colejo,/ Onde
você aprendeu./ Pra gente aqui sê poeta/ E fazê rima compreta,/ Não precisa
professô;/ Basta vê no mês de maio/ Um poema em cada gaio/ E um verso em
cada fulô.
(...)
Canto as fulô e os abróio/ Com todas coisa daqui:/ Pra toda parte que óio/ Vejo
um verso se bulí./ Se as vêz andando no vale/ Atrás de curá meus male/ Quero
repará pra serra,/ Assim que eu óio pra cima,/ Vejo um diluve de rima/ Caindo
inriba da terra. (ASSARÉ, 1978, p. 27-28).
Referências
ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá. Petrópolis: Vozes, 1978.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, v. I e II.
9. ed. Belo Horizonte, MG: Itatiaia, 2004. (Reconquista do Brasil, v. 177-8).
CARABALLO, Germán Bula. ¿Que és la ecocrítica? In: Revista Logos, nº 15, jan./jun.
2009, p. 63-73.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem da desigualdade. Trad. Maria
Lacerda de Moura. Edição eletrônica: Ridendo Castigat Mores, 2002. (Disponível em:
<http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/desigualdade.pdf> Acesso em 10 de junho de
2019).
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na História e na Literatura. Trad. Paulo
Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.