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REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA EM CANTE LÁ QUE EU CANTO CÁ

Josué Rocha da Silva


Sarah Lígia de Andrade Albuquerque
Stélio Torquato Lima

Introdução

Os elementos naturais sempre foram objeto de representação literária. Desde as


mais antigas obras de que se tem notícia, os escritores se detiveram na descrição da
natureza, seja como cenário seja como personagens. As fábulas, por exemplo, valem-se
dos animais como representações das virtudes e dos defeitos do ser humano. Também na
Bíblia observa-se uma referência constante à natureza, desde as descrições do Jardim do
Éden no livro do Gênesis até a presença de elementos da natureza nas mensagens de
Jesus, de que é exemplo a célebre parábola do semeador.
No Arcadismo, a opção do campo como cenário das poesias pastoris acompanha
a lógica do fugere urbem e a ideia do bom selvagem de Jean-Jacques Rousseau, para
quem “O homem nasceu livre, e em toda parte se encontra sob ferros” (ROUSSEAU,
2002, p. 10). Nessa perspectiva, a escolha do campo se impõe como contraponto e crítica
ao artificialismo no mundo citadino, passando a representar a nostalgia dos tempos
pretéritos, quando a sede do lucro teoricamente ainda não havia corrompido os valores:

A poesia pastoral, como tema, talvez esteja vinculado ao desenvolvimento da


cultura urbana, que, opondo as linhas artificiais da cidade à paisagem natural,
transforma o campo num bem perdido, que encarna facilmente os sentimentos
de frustração. Os desajustamentos da convivência social se explicam pela
perda da vida anterior, e o campo surge como cenário de uma perdida euforia.
A sua evocação equilibra idealmente a angústia de viver, associada à vida
presente, dando acesso aos mitos retrospectivos da idade de ouro. Em pleno
prestígio da existência citadina os homens sonham com ela à maneira de uma
felicidade passada, forjando a convenção da naturalidade como forma ideal da
relação humana. (CANDIDO, 2004, p. 58. Grifos do autor)

É com o Romantismo, no entanto, que a natureza deixa de ser um mero pano de


fundo, um mero lugar de refúgio, para ganhar status de personagem, frequentemente
acompanhando o mundo anímico das protagonistas, a sucessão de sentimentos que estes
atravessam. Todavia, mesmo com o fim do Romantismo, e também com a crescente
fixação dos homens nos espaços urbanos, os escritores continuaram a fazer da natureza
um objeto de representação literária. É o que demonstram as várias obras ficcionais
citadas e comentadas por Raymond Williams em O campo e a cidade, obra que tem
como perspectiva o entendimento de que

Em torno das comunidades existentes, historicamente bastante variadas,


cristalizaram-se e generalizaram-se atitudes emocionais poderosas. O campo
passou a ser associado a uma forma natural de vida — de paz, inocência e
virtudes simples. À cidade associou-se a ideia de centro de realizações — de
saber, comunicações, luz. Também constelaram-se poderosas associações
negativas: a cidade como lugar de barulho, mundanidade e ambição; o campo
como lugar de atraso, ignorância e limitação. O contraste entre campo e
cidade, enquanto formas de vida fundamentais, remonta à Antiguidade
clássica. (WIILIAMS, 1990, p. 11)

Devido à constância e à variada forma de tratamento com que a natureza tem


sido empregada no âmbito literário, uma parte da crítica literária foi se engajando numa
área específica de análise dessa temática: a Ecocrítica. Nascido da junção das palavras
“Ecologia” e “Crítica”, e aparecendo pela primeira vez em 1978 num artigo de William
Rueckert, o termo designa o novo ramo dos estudos de literatura anunciado com a
publicação, em 1996, do primeiro volume de artigos sobre o assunto. (Cf.
CARABALLO, 2009).
Muitas das questões discutidas nos artigos orientados pela perspectiva ecocrítica
podem ser encontradas no âmbito da literatura popular. No cordel, uma das
manifestações dessa modalidade literária, são frequentes as epifanias diante da natureza,
as descrições da fauna e da flora, o questionamento da ação deletéria do homem sobre o
meio ambiente e a crítica em relação aos efeitos da sede do lucro sobre a devastação da
natureza. Da mesma forma, à semelhança das fábulas, muitos cordelistas recorrem a
elementos da natureza, principalmente os animais, como forma de questionar
determinados procedimentos do homem. Exemplo disso são os seguintes folhetos de
Leandro Gomes de Barros (1865-1918), considerado o “pai do cordel”: “Casamento e
divórcio da lagartixa”, “A noiva do gato” e “O casamento do bode com a raposa”.
A literatura popular, portanto, constitui terreno fértil para investigações que
tenham como temática as questões ligadas à relação do homem com a natureza. Nessa
perspectiva, esta pesquisa se desenvolve a partir da análise de poemas do livro Cante lá
que eu canto cá, publicado originalmente em 1978 por Antônio Gonçalves da Silva
(1909-2002), mais conhecido como Patativa do Assaré.
Para melhor expor as análises dos poemas selecionados como corpus de
trabalho, a pesquisa acha-se dividida em três seções. Na primeira, mostra-se como o eu-
lírico dos poemas de Patativa, enquanto ser integrado plenamente na natureza, celebra a
fauna e a flora da sua região, mostrando a natureza como mãe provedora de bens e de
beleza. Na segunda seção, mostra-se como a mãe dadivosa pode também mostrar-se
terrível, castigando o sertanejo com o flagelo da seca. Não obstante, Patativa mostra que
o principal agente do drama do camponês não é a natureza em si, mas o homem poderoso
que deixa de socorrer os mais necessitados. Por fim, como fechamento das análises, o
trabalho se detém na análise de como a natureza se evidencia na poética de Patativa como
excelência de virtudes, colocando-se como contraponto à artificialidade, ao progresso, à
mecânica, à civilização e à ciência representada pela cidade.

A Encantadora e Dadivosa Mãe-Natureza.

A análise do conjunto de poemas que compõem Cante lá que eu canto cá


demonstra que o eu-lírico dos textos dessa obra é fundamentalmente um homem
integrado à natureza. É no meio natural que ele se identifica, enraíza sua memória, traça
sua trajetória e busca referências para construir seu discurso poético. Entre as várias
passagens que ratificam essa assertiva, citamos o soneto “Minha Serra”:

Quando o sol ao nascente se levanta/ Espalhando os seus raios sobre a terra/


Entre a mata gentil da minha serra/ Em cada galho um passarinho canta
Que bela festa! que alegria tanta!/ E que poesia o verde campo encerra/ O
novilho gaiteia, a cabra berra/ Tudo saudando a natureza santa
Ante o concerto desta orquestra infinda/ Que o Deus dos pobres ao serrano
brinda/ Acompanhada de suave aragem
Beijando a choça do feliz caipira/ Sinto brotar de minha rude lira/ O tosco
verso do cantor selvagem (ASSARÉ, 1978, p. 248)

Como se vê com clareza no soneto citado, o eu-lírico de Cante lá que eu canto


cá é substancialmente um contemplador da natureza. Natureza esta que se apresenta
como um presente de Deus aos homens, o que vem a comprovar a característica marcante
do apego à religiosidade do povo sertanejo. Nessa perspectiva é que nasce a condição do
eu-lírico do poema citado como um cantor selvagem, produtor de um verso tosco e de
uma lira rude. Dessa forma, o vate enraíza sua identidade dentro de uma polarização com
o poema erudito, urbano, refinado, expondo assim as referências com as quais constrói
seu fazer poético.
Ao revelar as bases de seu fazer poético, Patativa diversifica o uso de elementos
da natureza para exemplificar situações ou repassar valores morais, como vemos no
trecho a seguir do poema “Pau d’arco”, no qual o poeta afirma a sintonia entre seu
mundo interior e o meio ambiente como base de seu exercício poético:

Aquela árvore, pobre e ressecada,/ Pelos feios carrunchos corroída,/ Foi


outrora, na luz da sua vida,/ Qual rainha do campo coroada.
(...)
Aqui dentro do peito eu também tenho/ Infeliz coração – fiel desenho/ Do pau
d’arco daquela soledade
Com o peso dos anos abatido/ Sem prazer, sem amor e carcomido/ Dos
carrunchos cruéis de uma saudade. (ASSARÉ, 1978, p. 249)

Como vemos, o poeta assemelha sua condição de vida atual com o estado de
decadência do pau d’arco, árvore símbolo de beleza e resistência à seca. Essa associação,
além de base de uma metáfora, assinala uma constante ao longo de toda a obra Cante lá
que eu canto cá: a ligação estreita do eu-lírico com a fauna e com a flora, ressaltando a
não dissociabilidade entre a voz poética patativana e a natureza. Em relação aos bichos,
tanto como com as plantas, essa ligação é profunda, como se observa no poema “O
rouxinol e o ancião”:

Meu filho és um passarinho/ A quem paternal carinho/ Envolve na santa paz/


Nesta poesia rasa/ A gaiola é a nossa casa/ Onde feliz viverás
Enquanto os conselhos sábios/ Escutares dos meus lábios/ Ouvindo minhas
lições/ Como filho obediente/ Não cairás facilmente/ Nas garras das seduções.
(ASSARÉ, 1978, p. 262)

Como uma legítima fábula, com parentesco também com as parábolas cristãs, o
poema citado vale-se de uma imagem natural para transfigurá-la em exemplo de vida: a
morte de um rouxinol liberto da gaiola por um gavião serve de argumento para o eu-lírico
mostrar que a aparente “prisão” doméstica é, na verdade, uma forma de proteção dos
filhos. Portanto, conclui-se que Patativa, numa atitude mimética, utilizou uma situação
envolvendo a fauna como elemento da natureza para repassar valores familiares aos
leitores, o que é muito comum percebermos quando lemos obras exemplares, como
fábulas, apólogos, parábolas, etc.
Outra característica da natureza presente em alguns poemas de Patativa é a
condição da natura como espelho do mundo interior das personagens. É o que vemos, por
exemplo, em "A morte de Nanã":
E, enquanto nós assistia/ A morte da pequenina, / Na manhã daquele dia, /
Veio um bando de campina, / De canaro e sabiá/ E começaro a cantá/ Um hino
santificado,/ Na copa de um cajuêro/ Que havia bem no terrêro/ Do meu
rancho esburacado.
Aqueles passo cantava,/ Em lovô da despedida,/ Vendo que Nanã dexava/
As misera desta vida,/ Pois não havia ricurso,/ Já tava fugindo os purso,/
Naquele estado misquinho,/ Ia apressando o cansaço,/ Seguido pelo
compasso/ Da musga dos passarinho. (ASSARÉ, 1978, p. 42)

Como é possível observar na passagem citada, a natureza torna-se solidária à dor


do eu-lírico, passando a expressar o que vai no fundo da alma do pai que chora a morte
da pequena filha por inanição. Todavia, no mesmo poema, vê-se que a natura também é
espelho da alegria, ou espelho que traduz alguma virtude das personagens:

Nanã tinha mais primô/ De que as mais bonita joia,/ Mais linda do que as fulô/
De um tá de Jardim de Tróia/ Que fala o dotô Conrado./ Seu cabelo cachiado,/
Preto da cô de viludo./ Nanã era meu tesôro,/ Meu diamante, meu ôro,/ Meu
anjo, meu céu, meu tudo. (ASSARÉ, 1978, p. 39)

Como vimos, a beleza de Nanã recebe perfeita tradução na natureza. Esse apelo à
natura para dar ideia da beleza das personagens, principalmente as femininas, é bem
frequente nos poemas de Cante lá que eu canto cá.
Por fim, cabe destacar que a grande intimidade do eu-lírico patativano com a
natureza permite que este saiba interpretar a voz da natura: tal como os antigos nautas,
que se guiavam pelos astros, ou, mais propriamente, como os “profetas da chuva’, que
detectam sinais de inverno ou estiagem a partir da observação da natureza, também o eu-
lírico de Cante lá que eu canto cá sabe ler a natureza. Exemplo é o poema "A festa da
Maricota":
Veja a coã como sabe/ É como eu digo ou não é?/ Ela, quando gargaiava,/
Com certeza me contava/ Que a desgraça ia se dá,/ Mas porém ninguém
compreende,/ Ninguém sabe nem entende/ A língua dos animá. (ASSARÉ,
1978, p. 68)

A contrário do que afirma, entretanto o eu-lírico é sim um intérprete da voz dos


bichos e de outros gestos da natureza. No caso da a ave acauã, ou simplesmente coã, a
crença popular a identificou como ave de mau presságio, tal como o vim-vim (Cf.
ASSARÉ, 1978, p. 139) e outras tantas. Acauã, como destaca uma das canções de Luiz
Gonzaga, “chama a seca para o sertão”. Dessa forma, Patativa, trazendo de memória as
crenças de sua terra, reafirma a necessidade de o homem estar sempre atento aos avisos
da natureza.
A Face “Madrasta” da Mãe-Natureza.

Embora, como foi destacado na seção anterior, a relação do eu-lírico com a


natureza em Cante lá que eu canto cá seja principalmente de celebração, respeito e
devoção, observa-se em alguns poemas um retrato da natureza oposto a esse. Ou seja,
não é somente bela a natureza; ela também pode se mostrar carrancuda e atroz, como se
vê em “Dois quadros”:

Na seca inclemente do nosso Nordeste,/ O sol é mais quente e o céu mais azul/
E o povo se achando sem pão e sem veste,/ Viaja à procura das terra do Sul.
De nuvem no espaço, não há um farrapo,/ Se acaba a esperança da gente
roceira,/ Na mesma lagoa da festa do sapo,/ Agita-se o vento levando a poeira.
(ASSARÉ, 1978, p. 55).

Outro exemplo é o poema “ABC do Nordeste flagelado”, do qual foram


extraídas as seguintes passagens:

A – Ai, como é duro viver/ Nos Estados do Nordeste/ Quando o nosso Pai
Celeste/ Não manda a nuvem chover./ É bem triste a gente ver/ Findar o mês
de janeiro/ Depois findar fevereiro/ E março também passar,/ Sem o inverno
começar/ No Nordeste brasileiro.
(...)
F – foge o prazer da floresta/ O bonito sabiá,/ Quando flagelo não há/
Cantando se manifesta./ Durante o inverno faz festa/ Gorjeando por esporte,/
Mas não chovendo e sem sorte,/ Fica sem graça e calado/ O cantor mais
afamado/ Dos passarinhos do norte. (ASSARÉ, 1978, p. 308-309 e 310)

Nestes e em outros trechos de poemas de Cante lá que eu canto cá, Patativa nos
mostra que a mesma mãe dadivosa pode se transformar em verdadeira “madrasta”, ou
seja, como alguém que se mostra cruel para com o sertanejo. Essa face terrível da mãe-
natureza se evidencia principalmente, como já se observa no trecho dos dois poemas há
pouco citados, quando entra em cena os quadros da “seca terrível que tudo devora”, como
descreve o célebre poema “A triste partida”:

A treze do mês ele fez a experiença,/ Perdeu sua crença/ Nas pedra de sá./ Mas
nôta experiença com gosto se agarra,/ Pensando na barra/ Do alegre Natá.
Rompeu-se o Natá, porém barra não veio,/ O só, bem vermeio,/ Nasceu munto
além./ Na copa da mata, buzina a cigarra,/ Ninguém vê a barra,/ Pois barra não
tem. (ASSARÉ, 1978, p. 89)
Nesse conhecido poema, depois popularizado em composição interpretada por
Luiz Gonzaga, a natureza se apresenta como algoz do sertanejo, sendo a causadora da
partida do homem do campo e sua família para as terras do Sul em busca de melhores
horizontes.
Nesse contexto, a natureza também pode servir como exemplo da maldade,
como se vê no poema “O sabiá e o gavião”:

As Escritura não diz,/ Mas diz o coroação meu:/ Deus, o maió dos juiz,/ No dia
em ressorveu/ A fazê o sabiá/ Do mió materiá/ Que havia inriba do chão,/ O
diabo, munto inxerido,/ Lá num cantinho, escondido,/ Também fez o gavião.
(ASSARE, 1978, p. 227).

Passagem interessante que mostra o esforço de Patativa de compreender esse


lado “madrasta” da natureza se observa no poema "Meu castigo":

De qualquer um camarada/ Sempre eu ganhava a parada,/ Não errava uma


balada,/ Era escopeiro exato/ No bodoque já fui rei/ E no tempo em que cacei,/
Muitas pernas eu quebrei/ De passarinhos no mato.
Aquelas aves, coitadas!/ Com suas pernas quebradas/ Por minhas cruéis
badaladas,/ Perdiam até seus ninhos./ Estas causas recordando,/ Eu fico triste
pensando/ Que agora é que estou pagando/ As pernas dos passarinhos.
(ASSARÉ, 1978, p. 264-265)

O poema, escrito quando Patativa se recuperava de fraturas ocasionadas por um


acidente automobilístico, registra uma forma interessante de justificar o lado “mau” da
natureza: entendida como um braço da ação divina, a natureza pune as más ações do
homem, instaurando a lei da reação.
Do mesmo modo, esse processo de “suavização” do poder deletério da natura se
formula através de uma interpretação sociológica e crítica do sofrimento do sertanejo:
mais do que resultante das secas, o problema maior advém da impiedade do patrão em
tempos difíceis e da forma como o governante administra as alternâncias cíclicas do
clima, como é mostrado em “Emigrante nordestino no sul do país”:

[Na seca,] Fica tudo transformado,/ Sofre o velho e sofre o novo/ Falta pasto
para o gado/ E alimento para o povo./ Neste drama de tristeza/ Parece que a
natureza/ Trata tudo com rigor./ E nesta situação,/ O desumano patrão/
Despreza o seu morador.
(...)
Cheia de necessidade/ Sem rancor e sem malícia/ Entra a turma da cidade/ E
sem temer a polícia/ Vai falar com o prefeito./ E se ele não der um jeito,/
Agora o jeito que tem/ É os coitados famintos/ Invadirem os recintos/ Da feira
e do armazém. (ASSARÉ, 1978, p. 325-326).

Vemos, portanto, que o poeta, como um filho amoroso, não se sente à vontade
para criticar a mãe-Natureza. Afinal, como veremos a seguir, mesmo madrasta às vezes, é
sempre dela que depende para alimentar tanto o corpo quanto o espírito.

A Excelência do Campo no Embate Natura x Cultura.

A despeito do casual retrato da natureza como mãe terrível, a zona rural ganha
em Cante lá que eu canto cá um retrato em tudo superior à zona urbana, mostrada como
lugar de degradação moral, em o progresso não produz apenas riqueza e conforto, mas,
sobretudo, ganância e desunião. Trata-se, no fundo, de um embate entre natura e cultura,
ao qual o eu-lírico não hesita em tomar partido, mostrando-se inteiramente favorável à
vida simples e sofrida, mas também solidária e honesta, junto à natureza.
Essa discussão é claramente expressa no poema “Ingém de ferro”, no qual a
inserção no meio rural da máquina produzida na cidade é posta como fonte geradora de
desarmonia na sociedade campesina. Para mostrar isso, a voz poética desenvolve seu
discurso a partir de um confronto entre o ingém de ferro e o ingém de pau:

Ingém de ferro, você/ Com seu amigo motô,/ Sabe bem desenvorvê,/ É munto
trabaiadô./ Arguém já me disse até/ E afirmô que você é/ Progressista em alto
grau;/ Tem força e tem energia,/ Mas não tem a poesia/ Que tem o ingém de
pau. (ASSARÉ, 1978, p. 92)

Para reiterar a superioridade do ingém de pau, o eu-lírico compara até mesmo o


ruído que cada um dos mecanismos emite ao ser acionado:

O ingém de pau quando canta,/ Tudo lhe presta atenção,/ Parece que as coisa
santa/ Chega em nosso coração./ Mas você, ingém de ferro,/ Com este
horroroso berro,/ É como quem qué brigá,/ Com a sua grande afronta/ Você tá
tomando conta/ Dos nossos canaviá. (ASSARÉ, 1978, p. 93)

Como se observa, para além de mostrar a diferença entre os ruídos emitidos


pelos dois engenhos, a voz poética mostra o quanto a recepção desses sons por parte dele
(e, logicamente, dos demais sertanejos) é distinta: recepção de encantamento ao som do
ingém de pau; recepção desagradável ao “horroroso berro” do ingém de ferro. Em
seguida, detalhando como a máquina urbana promove a desarmonia no cotidiano
sertanejo, mostra-se como a camaradagem que marcava o trabalho com a cana
anteriormente é abruptamente apagada com a introdução do ingém de pau:

Do bom tempo que se foi/ Faz mangofa, zomba, escarra./ Foi quem expulsou
os boi/ Que puxava na manjarra./ Todo soberbo e sisudo,/ Qué governá e
mandá tudo,/ É só quem qué sê ingém./ Você pode tê grandeza/ E pode fazê
riqueza,/ Mas eu não lhe quero bem.
Mode esta suberba sua/ Ninguém vê mais nas muage,/ Nas bela noite de lua,/
Aquela camaradage/ De todos trabaiadô./ Um falando em seu amô/ Outro
dizendo uma rima,/ Na mais doce brincadêra,/ Deitado na bagacêra,/ Tudo de
papo pra cima. (ASSARÉ, 1978, p. 93)

A prevalência da natura sobre a cultura, representando esta as coisas e pessoas


da cidade, é frequente nos poemas de Patativa. O bardo se utiliza do seu verso direto e
rasteiro para afirmar de diversas maneiras sua ojeriza diante do que pensa ou faz o
homem da cidade, como se vê em vários poemas de Cante lá que eu canto cá.
Exemplo do que foi afirmado é o poema “A vida é assim”, por exemplo, o autor
externa o repúdio ao fiscal do algodão vindo da cidade, classificado pelo poeta como
“gente com cara de saibo” que a ele não engana. Fiscais que se utilizam da astúcia para
classificar algodão bom em ruim, ou receber propina do dono do armazém para terem o
algodão produzido pelo camponês rebaixado em sua classificação:

Aquele povo que veve/ Nas ruas da capitá/ Não sabe o quanto padece/ Os
trabaiadô de cá/ Esse povo da cidade/ Que só veve de vaidade/ Nunca foi
agricultô/ Uma roça não conhece/ Não sabe o quanto padece/ O povo do
interiô.
Aqui pra nós sempre tá/ Chegando de quando em vez/ Gente com cara de
saibo/ Embruiando os camponês. / Causa raiva e dá desgosto/ A gente pagá
imposto/ Cobrado contra a razão/ E além de certos direito/ Ainda vivê sujeito/
Ao tá fiscá de argodão.
Esse espertaião sem arma/ Sabe fazê trapaçada!/ Com o dono do armazém/
Veve de língua passada/ E se o dono do armazém/ É um esperto também/ Lhe
dá logo uma gorgeta,/ E na classificação/ É o dono do argodão/ Quem aguenta
a buzuleta. (ASSARÉ, 1978, p. 81)

O mal, portanto, vem da cidade. É lá que mora o governador, distante do homem


do sertão, preocupado sobretudo com o povo da capital. Até mesmo, em muitas
situações, os prefeitos das pequenas cidades. Não é demais lembrar que foi exatamente
por se queixar da ausência do prefeito de Assaré que Patativa veio a ser preso em 1943.

Considerações Finais.
Em sua “poesia matuta”, como foi destacado nesta breve análise de alguns
poemas de Cante lá que eu canto cá, Patativa celebra a beleza da fauna e da flora de seu
torrão natal, abstrai lições profundas a partir da contemplação da natureza, lamenta os
efeitos degradantes do progresso sobre o meio natural. Para tanto, o bardo do Cariri parte
da oposição entre natura e cultura para exaltar o campo como um locus superior à urbe
no tocante à preservação das virtudes morais, etc.
Esse entendimento constitui um dos pilares centrais da arquitetura de Cante lá
que eu canto cá e de toda a criação de Patativa. Tanto é assim, que o poema que dá título
à obra se desenvolve a partir da oposição entre a modalidade que representa a urbe e
aquela que representa o sertão, respectivamente, a obra erudita e a obra popular:

Mas porém eu não invejo/ O grande tesôro seu,/ Os livro do seu colejo,/ Onde
você aprendeu./ Pra gente aqui sê poeta/ E fazê rima compreta,/ Não precisa
professô;/ Basta vê no mês de maio/ Um poema em cada gaio/ E um verso em
cada fulô.
(...)
Canto as fulô e os abróio/ Com todas coisa daqui:/ Pra toda parte que óio/ Vejo
um verso se bulí./ Se as vêz andando no vale/ Atrás de curá meus male/ Quero
repará pra serra,/ Assim que eu óio pra cima,/ Vejo um diluve de rima/ Caindo
inriba da terra. (ASSARÉ, 1978, p. 27-28).

O trecho citado, assim, é fundamental para compreendermos como a a ligação


direta e íntima com a natureza marca e singulariza a obra de Patativa do Assaré. A natura,
dessa forma, não é apenas tema de sua obra, mas a própria essência que o singulariza
como poeta, que marca de maneira indelével sua “lira selvagem”.

Referências
ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá. Petrópolis: Vozes, 1978.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, v. I e II.
9. ed. Belo Horizonte, MG: Itatiaia, 2004. (Reconquista do Brasil, v. 177-8).
CARABALLO, Germán Bula. ¿Que és la ecocrítica? In: Revista Logos, nº 15, jan./jun.
2009, p. 63-73.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem da desigualdade. Trad. Maria
Lacerda de Moura. Edição eletrônica: Ridendo Castigat Mores, 2002. (Disponível em:
<http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/desigualdade.pdf> Acesso em 10 de junho de
2019).
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na História e na Literatura. Trad. Paulo
Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

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