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Uma Análise Comparativa dos Poemas de Bocage de Visões Contrastantes

Sophia Siqueira Silva

Introdução:

O movimento árcade, que floresceu no século XVIII, proporcionou uma resposta


literária à rigidez e artificialidade da sociedade da época, através da celebração da natureza
e da busca pela simplicidade. Do vasto repertório arcádico, destacam-se dois poemas que,
embora compartilhem a mesma matriz estética, oferecem visões contrastantes da relação
entre o homem e a natureza. O primeiro poema, “Convite a Márcia” de Bocage, inundado
por uma atmosfera exuberante, convida a amada para compartilhar a alegria da Primavera,
enaltecendo a beleza dos campos e rios. Em contrapartida, o segundo poema, “O céu de
opacas sombras abafado”, mergulha nas profundezas do Sublime, pintando um quadro
noturno e tempestuoso que reflete o tumulto emocional interno do eu lírico.

Esta análise comparativa busca desvendar as nuances que permeiam esses


poemas árcades, revelando como as dualidades presentes em suas representações da
natureza e das emoções humanas oferecem perspectivas divergentes dentro do mesmo
movimento artístico. Examinaremos cuidadosamente as diferenças na tonalidade
emocional, na expressão de sentimentos e na abordagem do sublime, desvendando assim
as distintas interpretações que esses poetas árcades oferecem sobre o equilíbrio entre a
exaltação da natureza e as complexidades do ser humano. Ao desbravar esses contrastes,
será possível compreender de maneira mais profunda as múltiplas facetas e interpretações
que o Arcadismo pode oferecer, transcendendo as fronteiras de uma única visão estética.

À medida que nos aprofundamos no universo arcádico, é imperativo considerar não


apenas a celebração da natureza, mas também a intrincada relação entre esta e as
emoções humanas. O Arcadismo, como resposta à artificialidade da sociedade do século
XVIII, apresenta-se como um repositório de nuances, onde a visão idílica da natureza
coexiste com uma exploração mais sombria e introspectiva. A dualidade entre o primeiro
poema, imerso na exuberância primaveril, e o segundo, mergulhado nas tormentas do
Sublime, lança luz sobre os matizes complexos dessa expressão artística.

Neste contexto, é crucial destacar que a busca pela simplicidade no Arcadismo não
é uma jornada linear, mas sim um trajeto sinuoso que atravessa os extremos das emoções
humanas. A exaltação da beleza natural no primeiro poema é complementada pela imersão
nas profundezas do Sublime no segundo, formando um diálogo rico entre o êxtase e o
terror. Assim, esta análise propõe desvendar não apenas as divergências aparentes, mas
também as conexões intrínsecas que existem entre essas perspectivas opostas,
proporcionando uma compreensão mais holística do papel da natureza como musa e
espelho das complexidades humanas no âmbito arcádico.
Desenvolvimento:

O poema árcade “Convite a Marília” de Bocage, exibe características típicas do


movimento literário conhecido como Arcadismo ou Neoclassicismo. O poema reflete a
influência das ideias iluministas e a busca por uma expressão artística mais simples e
próxima à natureza. O poema incorpora elementos clássicos, como a personificação de
elementos naturais, a referência aos ventos (Zéfiros e Nordeste) e a utilização de métrica e
rima regulares. Essa busca pela forma clássica reflete a influência da literatura greco-latina
sobre o movimento arcádico.

O poema destaca a beleza da natureza, apresentando uma visão idealizada e


harmoniosa dos campos, flores e do rio Tejo. Essa idealização é uma característica comum
no Arcadismo, onde a natureza é vista como um refúgio puro e intocado. Com isso em
mente a Primavera é personificada como "a mãe das flores" e descrita de maneira
exuberante. Esta estação simboliza não apenas a renovação da natureza, mas também a
renovação espiritual e cultural, uma vez que os árcades buscavam uma fuga da
artificialidade urbana. O convite para a amada (Marília) se juntar ao eu lírico na apreciação
da natureza ressalta a valorização da vida simples e do amor sincero, em contraste com a
ostentação da corte e a vaidade. A referência à "vã grandeza da corte" sugere uma crítica
ao artificialismo e à corrupção da sociedade urbana e aristocrática, algo característico das
obras arcádicas que muitas vezes expressavam descontentamento com as complexidades
da vida na cidade. Portanto, este poema arcádico apresenta uma visão idealizada da
natureza como refúgio da artificialidade da sociedade, enquanto também expressa valores
de simplicidade, amor e crítica à vida na corte.

Já o poema “O céu de opacas sombras abafado” de Bocage, evoca elementos do


Sublime, uma estética que busca expressar emoções intensas e, muitas vezes, mistas de
terror e fascínio diante da grandiosidade da natureza. O poema pinta uma cena noturna e
tempestuosa, descrevendo um céu abafado, um mar agitado e o vento furioso. Esses
elementos naturais são utilizados para criar um ambiente sublime, exprimindo emoções
poderosas e, ao mesmo tempo, uma apreciação estética pelo terror da natureza. A noite
feia, o mar mugindo e o vento irado contribuem para uma atmosfera melancólica e sombria.
Essa tonalidade melancólica é uma característica comum no Arcadismo, refletindo um
estado de espírito muitas vezes associado à saudade e ao desencanto. O cipreste,
frequentemente associado à morte e luto, e a referência ao ciúme e saudade indicam um
tema de solidão e sofrimento. Esses elementos simbólicos eram frequentemente explorados
pelos árcades para expressar emoções profundas.

A descrição da natureza violenta pode ser interpretada como uma projeção do


estado emocional do eu lírico. A natureza turbulenta reflete e intensifica os sentimentos de
tristeza e ciúmes. A última estrofe, em que o eu lírico afirma que a Natureza se cansa em
vão de tentar igualar seu estado de escuridão e tristeza, sugere um toque de subjetivismo.
Aqui, a natureza é personificada como se tentasse rivalizar com as emoções intensas do eu
lírico. Em suma, este poema árcade explora a estética do Sublime, utilizando a descrição
intensa da natureza para transmitir emoções complexas de melancolia, solidão e
sofrimento. O eu lírico se torna parte integrante desse cenário, refletindo sua própria
tormenta interior na natureza tempestuosa ao seu redor. E no seguinte verso: "Quer no
horror igualar-me a Natureza; / Porém cansa-se em vão, que no meu peito / Há mais
escuridade, há mais tristeza.", o eu lírico se coloca numa posição acima da natureza que
não chega aos seus pés em questão de tristeza e escuridão.

Ambos os poemas analisados anteriormente pertencem ao movimento literário do


Arcadismo, compartilhando características comuns, como a idealização da natureza, a
busca pela simplicidade e a rejeição das artificialidades da sociedade urbana. No entanto,
apresentam nuances distintas em termos de tom, tema e ênfase emocional.

Por mais que os poemas se distingam em algumas partes, existem também algumas
semelhanças entre eles, como a idealização da natureza em que ambos os poemas
celebram a natureza como um refúgio puro e intocado, destacando elementos como
campos, flores e rios de maneira idealizada. Outro exemplo de semelhança está no fato de
que os dois poemas incorporam elementos clássicos, como personificação de elementos
naturais e referências a ventos, associando-se à estética greco-latina. Podemos citar
também que ambos os poemas fazem uma crítica à sociedade urbana, crítica à
artificialidade da sociedade urbana, destacando a preferência por uma vida simples e em
comunhão com a natureza.

Ambos os textos têm suas semelhanças, como citado acima, porém se diferem em
diversas características, como a tonalidade emocional, o primeiro poema, mediante uma
tonalidade mais leve e exuberante, abraça uma atmosfera de celebração, onde a Primavera
é personificada como "a mãe das flores," evocando uma sensação de renovação e alegria.
O convite à amada para compartilhar a beleza dos campos e árvores transmite uma
serenidade e amor pela natureza, como podemos ver nos versos: "A fértil Primavera, a mãe
das flores / O prado ameno de boninas veste.” Em contraste, o segundo poema assume
uma tonalidade mais sombria e melancólica ao descrever uma cena noturna e tempestuosa.
O uso de termos como "medonha", "irado" e "fereza" contribui para uma atmosfera de
intensidade emocional, mergulhando o leitor em um estado de inquietação e tristeza, vemos
isso nos seguintes versos: "Desfeito em furacões o vento irado; / Pelos ares zunindo a solta
areia.".

Na expressão do sentimento também há diferença, o primeiro poema expressa


sentimentos de amor, alegria e apreciação pela beleza da natureza de maneira mais direta
e otimista. A presença da amada, Marília, é convidada a compartilhar a experiência,
sugerindo uma expressão mais extrovertida e compartilhada de emoções, podemos ver isso
nos versos: "Vem, ó Marília, vem lograr comigo / Destes alegres campos a beleza.". Já o
segundo poema revela um mergulho profundo nas emoções internas do eu lírico,
destacando sentimentos de saudade, ciúme e tristeza. A referência à natureza que tenta
"igualar-me" sugere um toque de subjetivismo, indicando uma relação intrínseca entre o
estado emocional do eu lírico e a representação da natureza tempestuosa, os versos:
"Formam quadro terrível, mas aceito, / Mas grato aos olhos meus, grato à fereza / Do ciúme
e saudade, a que ando afeito.", são um exemplo disso.

Enquanto ambos os poemas incorporam elementos clássicos e personificam a


natureza, o segundo poema destaca-se por sua explícita abordagem do Sublime. A
descrição da tempestade marítima, o vento irado e o cipreste como símbolo de luto
intensificam a representação do terror e da grandiosidade da natureza. O primeiro poema,
embora idealize a natureza, não mergulha tão profundamente na expressão desses
elementos intensos e simbólicos associados ao Sublime. Em resumo, ambos os poemas
compartilham elementos comuns do Arcadismo, mas diferem na tonalidade emocional, na
expressão dos sentimentos e na abordagem do sublime, oferecendo assim interpretações
distintas da relação entre o homem e a natureza.

Conclusão:

Ao percorrer as trilhas poéticas desses dois exemplares do Arcadismo, emerge uma


complexidade de visões que transcende a aparente uniformidade do movimento. O primeiro
poema, em sua exuberância primaveril, nos conduz a um idílio pastoral onde a natureza é a
musa que inspira o louvor. Em contraste, o segundo poema, impregnado de tormenta e
sombras, mergulha no âmago do Sublime, revelando uma perspectiva que transcende a
simples celebração para adentrar as profundezas do sofrimento e da melancolia.

Essa comparação expõe as dualidades que coexistem sob guarda-chuva do


Arcadismo. A simplicidade e a exuberância do primeiro poema contrastam com a
intensidade emocional e o terror sublime do segundo. Contudo, ao invés de representar
antagonismos inconciliáveis, essas dualidades oferecem uma tapeçaria de interpretações
dentro do universo arcáde. A visão otimista e celebratória dialoga, de maneira harmoniosa,
com a obscuridade e a inquietação exploradas na contraparte sombria.

Assim, concluímos que o Arcadismo não é uma moldura estática, mas sim um
cenário fluido onde as dualidades se entrelaçam, proporcionando ao leitor uma experiência
multifacetada. Nesse universo, a natureza é tanto um Éden luminoso quanto uma
tempestade enigmática, e as emoções humanas transcendem a simples alegria para
abraçar as profundezas da tristeza. Em última análise, essa exploração revela que, dentro
do movimento arcáde, a diversidade de perspectivas e a capacidade de harmonizar
dualidades constituem um aspecto intrínseco que enriquece a compreensão e apreciação
dessa expressão literária.
Referências:

BOCAGE, Manuel du. Poemas escolhidos. São Paulo: Cultrix, 1974.

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