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O sentimento dum ocidental

O poema é escrito para celebrar o tricentenário da morte de Luís de Camões e está


dividido em quatro partes («Ave-Marias», «Noite fechada», «Ao gás» e «Horas mortas»)
que correspondem à descrição dos momentos da noite em que o sujeito deambula pela
cidade, descrevendo-a.

I
Ave-Marias
Dá-se início à primeira parte – «Ave Marias» – procedendo-se à localização espacial
e temporal da deambulação do sujeito poético : digressão pelas ruas da cidade de Lisboa,
iniciada ao final do dia. Pelo uso do determinante possessivo « nossas», constatamos que
o eu lírico é português e que procura incluir o leitor na sua viagem solitária.
O ambiente citadino e a sua agitação são referidos na enumeração presente em
«Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia». Estes aspetos despertam, no sujeito
poético, «um desejo absurdo de sofrer».
Através da sinestesia («as sombras, o bulício») e do recurso constante a expressões
reveladoras da sensação visual («o céu parece baixo», «Toldam-se d’uma cor monótona,
londrina»), o sujeito poético mostra -nos, por um lado, a agitação dominante na cidade e,
por outro, os tons cinzentos que cobrem o céu lisboeta, que intensificam o seu desejo de
sofrimento. Com o recurso à sensação olfativa, presente nas expressões «maresia» e «o
gás extravasado enjoa-nos», o sujeito lírico revela-nos o mal-estar físico crescente que o
domina.
O uso do adjetivo «Felizes» bem como a exclamação têm como objetivo mostrar
que aqueles que abandonam a cidade, que fogem dela viajando de comboio, estão alegres,
sugerindo que a fuga da cidade é motivo de felicidade, já que o espaço citadino se
descreve como um ambiente castrador e fechado.
Faz-se a enumeração gradativa de diferentes capitais da Europa (até ao Báltico),
geograficamente cada vez mais distantes da capital portuguesa, culminando na expressão
«o mundo». Essa enumeração revela um desejo de evasão física por parte do sujeito lírico,
que inveja aqueles que fogem da realidade castradora da cidade mais ocidental da
Europa.

Esta passagem textual apresenta uma transfiguração poética do real, na medida em


que a perceção angustiada e sufocante que o s ujeito poético tem da cidade opressora se
espelha nos próprios edifícios («gaiolas») e nas pessoas («morcegos») que ele vai
observando. Assim, é o próprio sujeito lírico que se sente preso na cidade e, como tal,
transporta para os elementos observados as s uas emoções.
Prossegue a deambulação pela cidade de Lisboa, sugerida pelo uso dos verbos
«embrenho-me» e «erro», que nos indicam movimento e ausência de um rumo definido.
Dá-se a evasão psicológica para outra época – os Descobrimentos –, através da
enumeração gradativa de vários elementos deste período da nossa História: «Mouros,
baixéis, heróis, tudo ressuscitado!». Esta passagem, que corresponde à sexta quadra do
poema, evidencia a dimensão épica do mesmo, sendo esta ativada pelo recurso à memória,
já que remete para um passado grandioso que o sujeito poético não verá nunca
recuperado. Portanto, a impossibilidade de os feitos grandiosos da epopeia se repetirem
traz desalento e desencanto ao sujeito lírico.
A antítese presente em «inspira-me» e «incomoda» demonstra que o sujeito
poético é duplamente afetado pelo final da tarde: a dor decorrente do que observa
«incomoda», o que o obriga a evadir-se na evocação do passado («inspira -me»).
A alusão a «um couraçado inglês» põe em evidência o declínio do poder político do país,
isto é, representa uma outra opressão sentida na cidade: a sujeição dos portugueses ao
poder do império britânico.

Os hotéis da moda e a suas loiças remetem para uma nova classe social – a burguesia – e
denunciam momentos de ociosidade que contrastam com a dureza e a sujidade
características do trabalho dos operários anteriormente descritos: os carpinteiros e os
calafates, o que demonstra a crítica sociomoral presente em «O sentimento de um
ocidental».
Prossegue a descrição do ambiente citadino ao final do dia.

Surge nova transfiguração poética do real : as varinas (peixeiras) lembram ao sujeito


poético um «cardume», pelo facto de serem várias e estarem juntas. Esta metáfora é
extremamente sugestiva uma vez que decorre do cruzamento de dois campos lexicais: o
dos peixes e o das profissionais que os comer cializam, as varinas. O uso de adjetivos na
caracterização deste grupo social, nomeadamente, «negro» e «hercúleas» (fortes e
musculadas), contribui também para a criação da dimensão plástica do poema, dada a
exploração da sensação visual.
A comparação dos corpos das varinas com «pilastras» mostra não só a dureza desta
profissão, que as obriga a serem fortes e resistentes, mas também aponta para o facto de
estas mulheres pertencerem a um dos grupos sociais que está na base da economia
nacional: elas vendem o peixe, um dos alimentos essenciais para as camadas populacionais
mais desfavorecidas, e transportam o carvão, o combustível responsável pelo
desenvolvimento industrial.
Nestes versos, temos a presença de uma metáfora que confirma a dureza d a
profissão anteriormente referida, pois os filhos das varinas agora embalados nas
canastras, serão em adultos os pescadores «embalados» pelas tempestades marítimas que
os farão naufragar, condenando-os à morte. As tormentas podem ainda constituir
referência quer às Descobertas marítimas do século XVI quer a Camões, também ele vítima
de um naufrágio e autor da epopeia que elege os Descobrimentos como ação principal.
Destaca-se nesta passagem textual a extrema pobreza desta classe trabalhadora, a
quem não bastava já a profissão difícil. As suas condições de vida são miseráveis e indignas
para um ser humano. A descrição sinestética da sua realidade mostra a solidariedade do
eu poético para com as varinas.
II
Noite fechada
Dá-se início à segunda parte do poema, «Noite fechada», que nos remete para o
segundo momento da deambulação do sujeito lírico, a fase em que este mergulha na
escuridão da cidade.
Explora-se a sensação auditiva na descrição da realidade percecionada, com a
referência ao som das grades nas prisões, que provoca uma certa morbidez e loucura,
flagelando («mortificando») quem o ouve. É uma outra forma de opressão que a cidade
vai revelando na noite cada vez mais escura.
A prisão («o aljube») foi transformada num asilo para crianças e velhi nhas, o que
nos mostra que este local alberga sempre os mais frágeis na hierarquia social e raramente
os grupos favorecidos.
Estes versos remetem para a primeira estrofe de «Ave -Marias», na qual o desejo de
sofrer e a sensação de aprisionamento provocada pela cidade eram os sentimentos
predominantes. A morbidez e o estado doentio do eu voltam a ser referidos, desta feita,
são hiperbolizados.
Essa metáfora hiperbólica revela-nos o sofrimento psicológico e físico que a cidade
causa no sujeito poético: chora, enchendo-se de abismo, diante das prisões, por sentir
precisamente que a própria cidade o aprisiona.
A estrofe remete-nos indiretamente para o título desta parte, uma vez que, com a
chegada da noite, é necessária a iluminação artificial, que se vai espalh ando,
progressivamente, pelas casas e estabelecimentos comerciais, como um lençol branco que
se estende sobre uma cama, cobrindo tudo. Com a exploração da sensação visual
(cromática e cinética), cria-se uma nova transfiguração da realidade, que não só cont ribui
para exploração da dimensão plástica do poema (Impressionismo), mas também permite
uma evasão momentânea do eu à opressão da cidade.
A dupla adjetivação utilizada para caracterizar o clero – «negra e fúnebre», –
evidencia a visão negativa do sujeito poético, o que nos leva a pensar no período da
Inquisição, em que a ação da religião era castradora.
A evasão psicológica, que já se tinha manifestado junto ao cais, a partir do momento
em que o sujeito lírico avista os couraçados ingleses, volta a manifestar-se. Desta vez, não
se estabelece um contraste entre o presente percecionado e um passado glorioso, mas
constata-se, sim, um acentuar da opressão vivida no presente por associação a um passado
também ele opressor - «um ermo inquisidor e severo,/Assim que pela história eu me
aventuro e alargo.».
O eu lírico confirma a sua visão negativa da religião, que se coaduna com o seu
estado de espírito, uma vez que se sente aprisionado pelo espaço citadino.
A conjunção coordenativa adversativa «Mas», colo ca em evidência um contraste:
no meio da cidade opressora e castradora, surge algo positivo – a estátua de Camões. A
adjetivação usada para a descrever confirma a grandiosidade não só do poeta, mas
também a do período áureo que este viveu, caracterização o posta à do presente
decadente vivenciado pelo sujeito poético.
A evasão, motivada pela observação do real, permite estabelecer outra oposição
entre o presente negativo, defunto, sombrio e doente com o passado épico de Camões,
destacando-se também os conventos de outrora, que são agora quarteis militares,
tornando-se estes também agentes da ação opressora.
O paradoxo presente nas formas verbais «enlutam -me» e «sorrir» possibilita
evidenciar os sentimentos mórbidos vividos pelo sujeito poético, que contrastam com a
aparente felicidade das elegantes da cidade (as burguesas) quando observam as montras
dos ourives.
A enumeração destas mulheres trabalhadoras, que acumulam duas profissões
(algumas são, de dia, costureiras ou floristas e, de noite, são atrizes ou coristas), também
comprova que a cidade é um lugar triste e decadente.
O eu poético tem uma visão pessoal e atenta da cidade, cuja análise pormenorizada
lhe serve de matéria poética, considerando-se, por isso mesmo, capaz de fazer uma crítica
social.

III

Ao Gás

Dá-se início à terceira parte do poema, «Ao gás», que corresponde ao momento da
noite em que se começam a acender os lampiões públicos. Na época, estes eram
iluminados individualmente por mão humana.
Prossegue a deambulação do eu, que agora sai da «brasserie», restaurante
elegante, onde tinha entrado, como é referido na estrofe final de «Noite fechada».
A sensação avassaladora da cidade vai -se intensificando à medida que a noite
avança, como se o «sufoco» sentido ao final do dia fosse aumentando e ganhando corpo
com a passagem do tempo («A noite pesa, esmaga.»).

A alusão ao lado marginal da noite com um novo tipo social (as prostitutas) permite
evidenciar a decadência e a degradação moral da cidade. Estas mulheres são as primeiras
vítimas do peso esmagador da noite, vendo-se privadas da sua dignidade humana. É de
salientar o emprego expressivo da forma verbal «arrastam -se».
Ocorre nova transfiguração poética do real, associando -se o comércio destinado à
burguesia à religião, uma vez que as lojas levam o sujeito poético a idealizar uma catedral.
No fundo, é também uma crítica a uma sociedade que começa a adotar em relação ao
consumo uma postura veneradora (como se estivesse perante um altar).
Prossegue a denúncia sociomoral, ao comparar-se as «burguesinhas do catolicismo»
com freiras oprimidas por jejuns e, consequentemente, dominadas pelo histerismo. É um
outro efeito do presente decadente nas habitantes da cidade.

Ao contrário das estrofes anteriores, nesta destacam-se novamente elementos


positivos associados à cidade, podendo falar-se de uma apologia das classes
trabalhadoras, já que, através do uso do advérbio «rubramente», da adjetivação
expressiva («quente», «salutar» e «honesto», e da hipála ge («E de uma padaria exala-se,
inda quente,/Um cheiro»), se salientam a honestidade e a capacidade de trabalho
associados às classes operárias.

O eu revela o desejo de escrever um livro que espelhe com minúcia a realidade


observada, na qual abundam os contrastes («Casas de confeções e modas» destinadas à
burguesia «resplendecem», atraindo também aqueles que não têm acesso a esses luxos
(«um ratoneiro imberbe»). Pretende com esse livro despertar as consciências dos seus
leitores («que exacerbe»).
A tripla adjetivação enfatiza o tipo de poesia que o eu poético lamenta não poder
escrever, quando observa apenas as «longas descidas» sem a «mancha» do elemento
humano. Seria uma poesia «salubre», que reproduzisse a realidade idealizada, romântica.
As classes sociais superiores (a burguesia e aristocracia) são vistas de forma
negativa pelo sujeito lírico, que utiliza a metáfora «grande cobra» e os adjetivos «lúbrica»
(escorregadia, devassa, sensual) e «magnética» para descrever a superficialidade, a
dissimulação e o poder que estas classes ostentam.
Ocorre também um claro contraste entre as compradoras ávidas de luxo e os
vendedores sempre solícitos.
A perceção sensorial da realidade, com recurso à sinestesia permite, por um lado,
destacar o ambiente sufocador e hostil em que os vendedores estão constantemente
imersos, sugerindo ainda uma certa perda de vitalidade (um prenúncio de morte). Por
outro lado, contribui também, e porque associada à metáfora «nuvens de cetim», para a
criação da dimensão estética e plástica do poema.
Surge um cansaço súbito no eu. A cidade, antes iluminada, vai -se apagando. A ideia
de morte torna-se cada vez mais iminente.
Os candelabros são comparados com as estrelas por serem o último reduto de luz,
tal como as estrelas no céu noturno, a única réstia de esperança sobre uma cidade
opressora.
Dá-se nova transfiguração poética do real: os edifícios mergulhados na escuridão
da cidade assemelham-se a «mausoléus» (edifícios fúnebres), como se tudo mergulhasse
na morte.
O eu lírico tece mais uma crítica à realidade percecionada: o seu outrora professor
de latim é agora um pedinte, «sem descanso». Este facto confirma a caracterização da
cidade como um espaço cheio de miséria e de injustiça social, como um lugar opressor de
onde ninguém pode escapar.

IV
Horas Mortas

Em «Horas mortas», quarta e última parte de «O sentimento dum ocidental», a


madrugada é profunda e a cidade adormece sob o «teto fundo de oxigénio», o que
intensifica a náusea, a antevisão da doença e a iminência da morte que acompanham
gradualmente o sujeito poético desde o início.

A deambulação levou-o à escuridão mais profunda, todas as luzes se apagaram,


restando apenas os astros, cujas «lágrimas de luz» iluminam parca e difusamente a cidade.
Deste ambiente opressivo volta a surgir no eu o desejo de evasão («transmigrar»).

Os espaços vão-se reduzindo cada vez mais, o que contribui para a sensação de
encarceramento vivenciada na cidade, cuja noite intensifica ainda mais as sensações, de
tal modo que as próprias caleches (carruagens) sugerem algo fantasmagórico.
Impõe-se um outro lado da noite: a criminalidade (a população protege -se dos
possíveis assaltos - «Colocam-se taipais, rangem as fechaduras»).

O sujeito lírico alude ao ambiente campestre (« notas pastoris»), que surge como
paradigma de libertação, em oposição à clausura da cidade.

O eu exprime o desejo hiperbólico de ser capaz de encontrar a perfeição num tempo


futuro. Imagina mulheres/esposas puras que nada tenham a esconder, em contraste com
as «impuras» já referidas e que serão nesta parte posteriormente retomadas na expressão
«as imorais».

Recurso a um tom emotivo e exortativo, que revela esperança nas gerações


vindouras, capazes de alterar o rumo degradante da cidade.

O eu deseja que o futuro se inspire no passado glorioso português, que as gerações


vindouras sejam capazes de engrandecer o país novamente.

O tom eufórico da estrofe anterior é substituído pelo tom disfórico, presente


novamente na ideia de aprisionamento e sufoco («emparedados») e na privação de luz e
de felicidade que a cidade confere aos seus habitantes. Confirma -se de novo a ideia de
criminalidade e violência («na treva, as folhas das navalhas/E os gritos de socorro ouvir,
estrangulados»).

A adjetivação anteposta contribui não só para a descrição de um ambiente doentio,


sinistro dotado de agressividade, mas também para o impressionismo realista (a dimensão
plástica do poema), que nos comprova que o sujeito lírico é também um «pintor», que usa
esteticamente a palavra poética na reprodução plena da realidade percecionada.

A alusão aos guardas «que revistam as entradas» tem duas funcionalidades: por um
lado, são agentes de segurança, que fazem frente à criminalidade presente; por outro,
parecem também trancar a cidade em si, sugerindo, assim o facto de esta ser um espaço
fechado, que enclausura os seus habitantes.

As imorais parecem indiferentes ao ambiente da cidade, ao contrário do que


acontece com o eu poético. No entanto, elas também evidenciam sinais de decadência
física - «Tossem, fumando».

A metáfora hiperbólica «massa irregular/De prédios sepulcrais, com dimensões de


montes» permite confirmar que a cidade é um espaço onde a morte impera, uma vez que,
prendendo os cidadãos no seu interior, os consome, impedindo-os de procurar «os amplos
horizontes» que os libertariam. Por isso, a dor humana é «enorme» e «tem marés, de fel,
como um sinistro mar!».

Os homens ficam, assim, amargamente aprisionados, sem esperança, não


conseguindo evadir-se da cidade enclausurada na noite que os «esmaga».

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