Você está na página 1de 5

Português

Cânticos do Realismo, Cesário Verde

Vida e obra de Cesário Verde

Nascido em Lisboa, a 25 de fevereiro de 1855, no seio de uma família burguesa dedicada ao comércio de
ferragens, Cesário repartiu a sua existência entre a cidade e o campo (Linda-a-Pastora), onde a família
possuía uma quinta, na qual se recolheu, no verão de 1857, para fugir à febre-amarela.

Em 1873, durante o único ano de frequência universitária, conheceu Sílvia Pinto, que apresentou ao círculo
literário do Café Martinho. Porém, as críticas levaram-no a abandonar esta tertúlia.

Em 1884, a tuberculose galopante de Cesário Verde começou a manifestar-se de forma mais violenta.
Cesário Verde morreu a 19 de julho de 1886 e foi a sepultar no Cemitério dos Prazeres, sem direito a
grandes referências nos obituários da imprensa escrita. As suas poesias foram reunidas e publicadas
postumamente, em1887, pelo amigo Silva Pinto em “O Livro de Cesário Verde”.

Contextualização histórico-cultural

Do ponto de vista económico-social, a época em que Cesário viveu é marcada por vários acontecimentos:

Contexto político-social Contexto cultural


 Rápido aumento populacional das  Analfabetismo da população, superior
cidades, provocado pelo êxodo rural – de 80%
nascimento do proletariado urbano  Desprezo dos políticos e intelectuais
 Proliferação de doenças (como a pelas raízes e pelo povo
tuberculose) devido a uma precária  Gosto da burguesia por uma poesia
saúde pública sentimentalista e grandiloquente
 Contraste acentuado entre riscos e  Papel preponderante da Geração de 70,
pobres em especial de Antero de Quental,
 Desenvolvimento contraditório e revelando já uma faceta de
desumanizado da cidade: os candeeiros empenhamento social
a gás e a eletricidade, a água canalizada  Surgimento da técnica impressionista da
a par das ruas de terra batida, apreensão do real na pintura e que se
malcheirosas e escuras alastra à literatura
 Expansão do setor terciário, pelo  Aparecimento do quotidiano e das
desenvolvimento industrial e comercial questões sociais na criação artística
 Crescente desenvolvimento dos (literatura e pintura)
transportes e vias de comunicação
 Aparecimento dos bairros dos burgueses
e dos subúrbios populares
 Nascimento e propagação da causa
republicana e dos movimentos operários
de inspiração socialista, consequência do
clima de descontentamento político-
social que dominava o país
 Aparecimento do anticlericalismo

“O sentimento dum Ocidental”

Em Cesário, encontramos os sons da cidade, os cheiros da vida quotidiana de uma Lisboa pulsante e
geradora de tensões sociais. Ao deambular pela cidade, o poeta apreende o real que servirá de ponto de
partida para a sua produção literária – “A mim o que me rodeia é o que preocupa”.

1
Português

“O sentimento dum Ocidental” será o primeiro poema a ser analisado, visto que nos quatro
andamentos/secções se congregam os tópicos estruturantes da sua vida literária, como se verá
posteriormente.

o “O sentimento dum Ocidental”

O poema longo

Ao longo das 44 estrofes que compõem este longo poema, embrenhamo-nos na Lisboa asfixiante e
castradora da qual Cesário não consegue fugir. Percorrendo os diversos espaços físicos, desde o final da
tarde até altas horas da madrugada, o poeta conduz o leitor desde as amplas margens do rio Tejo, de onde
partiram as naus para um futuro glorioso, até aos becos escuros e simbólicos do presente disfórico.

Desta forma, neste poema, Cesário mostra o sentimento de clausura que a cidade lhe provoca, com a
impossibilidade de escapar aos espaços exíguos, quer sociais quer físicos, que o confinam a uma existência
sufocante – “Muram-me as construções retas, iguais, crescidas”. Assim, a cidade, símbolo do
desenvolvimento e do progresso, metáfora do Ocidente, aparece, paradoxalmente, como a Babel opressora,
paradigma de todos os males e promotora da discrepância social.

Estruturação do poema

O poema é composto, como referido anteriormente, por 44 quadras, dividido em quatros secções (I – “Ave
Marias”; II – “Noite fechada”; III – “Ao Gás”; IV – “Horas Mortas”), cada uma com onze estrofes, através das
quais é dada a conhecer a deambulação do poeta pelas ruas da capital, entrelaçando o real observado com a
sua interpretação simbólica desse organismo vivo que é a cidade que o aprisiona.

Apresenta-se, de seguida, o resumo das quatro secções, com referências aos versos exemplificativos.

I “Ave Marias”

Este primeiro andamento sugere, em termos de tempo, o fim de tarde e o início da noite (“ao anoitecer”, 1ª
estrofe; “E o fim da tarde”, “ao jantar”, 7ª estrofe), momento dedicado à oração e escolhido pelo sujeito
poético para iniciar a sua errância e observar os vários espaços que vai descrevendo, nomeadamente os
edifícios, as edificações, os boqueirões, os becos, as varandas, os arsenais, as oficinas e os hotéis da moda,
numa deambulação solitária e crítica por uma cidade que lhe provoca um “desejo absurdo de sofrer” (verso
4), fazendo surgir a insatisfação e o nojo (“incomoda”, verso 25; “enjoa-me, perturba”, verso 6).

Nessa errância, o sujeito poético vai analisando também, de forma subjetiva, algumas personagens,
revelando simpatia e solidariedade para com as classes mais desfavorecidas: os carpinteiros, os calafates, os
dentistas, as obreiras e as varinas.

A observação do presente evoca no sujeito poético o passado heroico dos Descobrimentos, esse período
cantado por Camões, poeta que celebrizou em verso épico os feitos gloriosos tão arredados do tempo
vivenciado pelo sujeito poético.

A visão das varinas, com a sua força hercúlea, não obstante a vida penosa que levam, encerra esta primeira
secção de forma bastante sensorial, com a referência ao “peixe pobre” que “gera os focos de infeção” (verso
44).

II “Noite fechada”

O passeio continua, agora num espaço mais confinado, com a referência à cadeia do aljube, à velha Sé, a
igrejas, a quartéis, a andares, a tendas, a palácios que rivalizam com espaços mórbidos, negros e metafóricos
da ideia de enclausuramento e de solidão, numa perfeita sintonia com o título. O fechamento progressivo do

2
Português

espaço é notório nesta secção, estando o mesmo conotado com a ideia de tristeza, de morbidez, de
fechamento.

Ao anoitecer (“ao acender das luzes”, verso 6), a realidade circundante sofre projeção imaginativa do “eu”
poético, que vislumbra na cidade do presente a jugo do clero negro e fúnebre do passado. Os prédios que
“muram” o narrador são os que se ergueram sobre os corpos soterrados no terramoto de 1755, numa
explícita denúncia de uma sociedade opressora e que agoniza o viandante. E é nessa mancha negra que o
sujeito poético vislumbra, “num recinto público e vulgar” (verso 21), a estátua do invulgar Camões, por entre
“bancos de namoro”.

Na estrofe 7, a evocação das doenças (“Cólera” e “Febre”) é justaposta ao regresso dos soldados aos
quartéis. Para além disso, há a observação denotativa de um palácio que expressa de forma conotativa a
visão crítica do narrador perante uma sociedade em que grandes edifícios coabitam com casebres.

O olhar de Cesário também se detém nas figuras femininas, realçando o contraste entre as mulheres do
mundo artificial da moda e as empregadas (estrofes 9 e 10), numa perceção sensorial fina, que passa não só
pelas sensações visuais como pelas auditivas: “Toca-se às grades, nas cadeias” (verso 1); “Som/Que
mortifica” (versos 1 e 2); “sinos dum tanger monástico e devoto” (verso 20).

Ao entrar numa “brasserie” (verso 43), o narrador autorretrata-se de forma irónica, pois está consciente de
que a sua “luneta de uma lente só” (verso 41) o faz ter uma visão pessoal (e limitada); porém, também sabe
que é necessário fazer a denúncia social.

III “Ao Gás”

A escuridão é agora evidente – “A noite pesa, esmaga.” (verso 1) -, o que cria uma atmosfera de alucinação,
conduzindo à interpenetração da realidade externa com a realidade subjetiva do sujeito poético na sua
errância. Os espaços são agora os passeios, as lojas, a padaria, as casas de confeção, as longas descidas, as
esquinas, a catedral, e as personagens femininas que desfilam:

 As “impuras” (verso 2) – mulheres levianas de uma sociedade doente


 As “burguesinhas” (verso 9) – lembram freiras, pois só sabem tocar piano e rezar
 A “cobra, a lúbrica pessoa” (verso 25) – mulher sensual e escorregadia
 A “velha, de bandós” (verso 29) – mulher solitária

Por oposição à visão doentia das impuras, surge o forjador e o cheiro do pão no transmite vigor,
honestidade, saúde (estrofe 4), numa clara referência à dicotomia cidade/campo, com a elevação deste
último espaço, para onde o sujeito poético gostaria de se evadir. Também deseja escrever um livro no qual
pudesse ver uma cidade diferente: “E eu medito um livro que exacerbe,/ Quisera que o real e a análise mo
dessem” (versos 17 e 18). Mas a cidade que ele observa é perpetradora de agudas diferenças sociais, numa
sociedade em que o comércio atrai a cobiça do pobre “ratoneiro” (verso 20), enquanto os ricos fazem as
suas compras (estrofes 7 e 8). Este mundo luxuoso de compradores altivos e solícitos vendedores é
sintetizado na estrofe 8.

Na estrofe 10, a cidade mergulha na escuridão e nela surge o pedido suplicante de um mendigo (estrofe 11),
“eterno, sem repouso” (verso 42), um fantasma bem real de um velho professor de Latim que terminou os
seus dias a mendigar pelas ruas de Lisboa, votado à marginalidade.

IV “Horas Mortas”

Na quarta e última secção, há um claro afunilamento espacial – “Por baixo, que portões! Que arruamentos!”
(verso 5);”rangem as fechaduras” (verso 7); “emparedados” (verso 25); “Os ventres das tabernas” (verso 30);
“E, enorme, nesta massa irregular/De prédios sepulcrais, com dimensões de montes” (versos 41 e 42) – e ao

3
Português

e leitor são dadas as sensações auditivas da cidade que dorme – “Um parafuso cai nas lajes” (verso 6),
2rangem as fechaduras” (verso 7), “sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,/ As notas pastoris de uma
longínqua flauta” (verso 11 e 12).

Na cidade “às escuras” (verso 6), caminha-se de lanterna. A noite da cidade já não sufoca, porque
reintegrada na noite natural, mas, por baixo do “teto fundo de oxigénio” (verso 1), a ideia de prisão está lá,
com os portões e os bloqueios.

A cidade é percorrida pelos bêbados, pelos guardas e pelas imorais e a perspetiva do amor é uma quimera,
visto que a morte é inexorável e a esperança está confinada às gerações vindouras (estrofe 5).

O singular dá lugar ao coletivo, num apelo vão de esperança (estrofe 7), pois a cidade é representativa da
solidão, do confinamento e da morte.

A transfiguração do real é notória, com os faróis próximos de uma carruagem que são olhos sangrentos, em
contraste com o som pastoril de uma flauta distante, paradigma de libertação associada ao campo (estrofe 1
e 2). Cada vez mais embrenhado na cidade, o sujeito poético capta de forma impressionista os cães
famélicos que erram pelas ruas, registando imediatamente a cor “amarelada” destes animais.

A estrofe 11 conclui a ideia de aprisionamento, com a imagem de enormes prédios que projetam sombras
sobre o vale escuro onde a dor humana está aprisionada. Assim, tal como para os filhos das épicas varinas, a
desesperança é uma certeza e a “raça ruiva do porvir” (verso 21) continuará a nascer para ser transformada
nos marinheiros naufragados do futuro.

O imaginário épico – Subversão da memória épica: o Poeta, a viagem e as personagens

Ao longo das quatro secções, há uma clara dicotomia realidade/fantasia, já que disforia do presente leva ao
desejo de evasão do “eu” lírico através do sonho, da evocação de um passado glorioso que já não tem lugar
no presente, como podemos observar nas estrofes 3,5,6 e 7 da primeira secção “Ave Marias”.

O caminhar pela cidade-prisão presente é também revisitar da cidade-promessa do passado, dessa cidade
que já foi palco da abertura cosmopolita. É persicamente esse contraste entre a realidade objetiva e
disfórica do presente e a sua interpretação subjetiva para o narrador que mescla o tema da clausura citadina
coma deriva que as viagens dos Descobrimentos representaram, rumo à liberdade desconhecida, como
podemos observar na estrofe 6. O presente disfónico opõe-se à glória passada.

Este tema prossegue na segunda secção, “Noite fechada”, na qual o narrador continua a evocar o tempo
passado, despertado que foi pela observação de locais que invocam momentos negros de outrora,
nomeadamente, a velha Sé, com toda a sua conotação clerical e opressora. Daí a necessidade de evocar os
grandes heróis portugueses para fazer frente à miséria do presente. Neste contexto, a estátua de Camões
relembra que houve um outro passado bem diferente do passado sinistro da Inquisição e do terramoto.
Contudo, no presente, restam o mar e a saudade, restam a melancolia e o desencanto, porque a esperança
de superar o agora taciturno e fechado esfuma-se perante o olhar triste do narrador.

Na quarta e última secção, “Horas Mortas”, as incursões no tempo atingem o seu ponto máximo nas
referências aos heróis dos Descobrimentos (passado) e ao futuro “raça ruiva” (estrofe 6). Apesar do desejo
do sujeito poético em vislumbrar um futuro diferente, projetar um futuro glorioso sustentado pela grandeza
do passado (estrofe 4 e 5), a certeza é só uma: naquela “massa irregular/De prédios sepulcrais, com
dimensões de montes” (estrofe 11), a esperança de repetir a história e encetar nova epopeia é minada pelo
“sinistro mar” e pelas suas “marés, de fel”, sem que “A Dor humana” possa extinguir-se em “amplos
horizontes”. A evasão não é possível e os novos “heróis” são o povo trabalhador.

4
Português

Como podemos observar, este longo poema evidencia as grandes linhas temáticas da poesia de Cesário
Verde. No entanto, iremos ver de forma mais orientada como outras das suas composições ilustram essas
mesmas linhas estruturantes.

A representação da cidade e dos tipos sociais

“A mim o que me rodeia é o que me preocupa”, escreve Cesário Verde ao seu amigo Silva Pinto, o que me
revela a sua determinação em documentar a realidade socia. Efetivamente, na sua poesia, pressente-se um
sujeito poético atento a tudo o que o rodeia, captando instantes do quotidiano e da realidade social, e
revelando, ao mesmo tempo, empenhamento em causas sociais:

 Simpatia pelas classes oprimidas


Ex.: os calceteiros – “De cócoras, em linha, os calceteiros,/Com lentidão, terrosos e grosseiros” (in
“Cristalizações”)
 Identificação com os mais pobres
Ex.: as peixeiras – “Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,/Disseminadas, gritam as
peixeiras” (in “Cristalizações”)
Ex.: os pedintes – “Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,/ Meu velho professor nas aulas de
latim!” (in “O Sentimento dum Ocidental” – “Ao Gás”)
Ex.: os marginais (as prostitutas) – “Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros” (in “O sentimento
dum Ocidental” – “Horas Mortas”)
Ex.: os camponeses – “Os fruteiros, tostados pelos sóis,/Tinham passado, muita vez, a raia,/E espertos,
entre os mais da sua laia,/-Pobres campónios – eram uns heróis.” (in “Nós, II”)
 Revolta contra sociedade pela miséria social
Ex.: a engomadeira – “[…] Ali defronte mora/Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;/[…] E
engoma para fora .” (in “Contrariedades”)
 Solidariedade com as vítimas das injustiças sociais
Ex.: “E os povos humilhados, pela noite,/ Para a vingança aguçam os punhais.” (in “Deslumbramentos”)

O interesse de Cesário Verde por cenas do quotidiano cruza-se com a temática social – a vida nos bairros
burgueses e proletários, a venda de produtos pelas ruas, a construção de edifícios, a pavimentação das ruas,
o descarregar dos navios, os trabalhos agrícolas, as lides económicas.

No seu olhar de “luneta de uma lente só”, o poeta revela a sua simpatia para com as classes oprimidas,
repudiando a vida burguesa das casas apalaçadas.

o “A débil”

Tópicos de análise

Você também pode gostar