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Cesário Verde

O poema longo e a sua estrutura:


Ao longo das 44 estrofes deste poema, embrenhamo-nos numa Lisboa asfixiante e castradora da
qual Cesário não consegue fugir. Percorrendo os diversos espaços físicos, desde o final da tarde
até altas horas da madrugada, o poeta conduz o leito desde as amplas margens do rio Tejo de
onde partiram as naus para um futuro glorioso, até aos becos escuros e simbólicos do presente
melancólico. Ao longo do poema, Cesário mostra o sentimento da clausura que a cidade lhe
provoca, com a impossibilidade de escapar aos espaços fechados, quer sociais quer físicos, que o
deixam sentir-se sufocado. O poema é composto por 44 quadras, cada uma com 11 estrofes
através das quais é dada a conhecer a deambulação do poeta pelas ruas da capital, entrelaçando o
real observado com a sua interpretação simbólica de que a cidade o sufoca.

A representação da cidade e dos tipos sociais


• A cidade surge como um espaço que se opõe ao campo. O espaço urbano é visto como
opressivo e destrutivo (por exemplo, nos poemas «Num bairro moderno» e «O
sentimento dum ocidental»), tanto para o sujeito poético como para os populares que
para aí se deslocam em busca de melhores condições de vida, na sequência do
enorme êxodo rural que ocorreu nesta época. Em contrapartida, o campo é
perspetivado como um local de liberdade — sendo que o espaço rural não é idealizado,
mas descrito de forma realista e concreta.
• Mesmo nos poemas que se concentram no espaço citadino, são feitas referências
frequentes ao campo — como que a lembrar que a vocação do ser humano se orienta
para uma vida harmoniosa e natural, que só no campo se encontra, e que a vida na
cidade o desumaniza. Deste modo, no espaço urbano há sempre um desejo de evasão
para o campo.
• A oposição cidade/campo alarga-se também ao campo amoroso: enquanto a cidade está
associada à ausência, impossibilidade ou perversão do amor, o campo representa a
possibilidade de vivência plena dos afetos.
• As próprias figuras femininas da obra de Cesário se associam a esta dicotomia: o eu
poético sente-se atraído por dois tipos opostos de mulher — a mulher fatal e a mulher
frágil e inocente. No primeiro caso, temos figuras femininas que se enquadram
perfeitamente no espaço citadino. Pertencem a um estrato social superior ao do sujeito
poético e ostentam riqueza e elegância. O desejo que estas mulheres suscitam no
sujeito poético é investido de ambiguidade, na medida em que a sua altivez, ao mesmo
tempo que o seduz, provoca nele um sentimento de revolta. No segundo caso, temos
personagens simples, inocentes, frágeis e desamparadas, que, pelas suas
características, não se enquadram no espaço urbano, visto como um local de
corrupção. Assim, ao contrário da mulher fatal, a vulnerabilidade desta figura feminina
desperta no eu o instinto de proteção, o desejo de se redimir das suas faltas e de levar
com ela uma existência honesta e tranquila.
• No que diz respeito aos tipos sociais representados na obra de Cesário, temos claramente
um sentimento de empatia do sujeito poético em relação aos elementos das classes
mais baixas. Com efeito, é feita uma crítica às condições degradantes em que os
elementos do povo viviam, bem como à exploração a que estavam sujeitos.
• O poema «Cristalizações» parece, num primeiro momento, contrariar este sentimento de
compaixão em relação aos elementos mais vulneráveis da sociedade. De facto, o eu
mostra-se pontualmente satisfeito com a cidade mercantil — isto é, com uma sociedade
que se centra apenas no progresso a nível económico, ignorando as necessidades das
classes mais desfavorecidas. Contudo, esta perspetiva é posteriormente contrariada
pela contemplação mais demorada dos calceteiros e pela reflexão sobre a dureza que
marca o seu percurso existencial. Assim, o sujeito poético acaba por mostrar a sua
admiração por estes trabalhadores.
• A injustiça social denunciada na poesia de Cesário torna-se mais gritante pelo contraste
que nela se estabelece entre o labor permanente dos elementos do povo, que é visto
como a força ativa da sociedade, e o ócio que caracteriza as classes dominantes.

Deambulação e imaginação: o observador acidental


• Cesário Verde representa nos seus versos a cidade (e o campo) através do registo de percepções
sensoriais: embora predominem as referências visuais, o eu lírico caracteriza também o espaço
urbano pelas constatações que lhe chegam através do ouvido, do olfato e do tato. Em várias
situações essas sensações cruzam-se em sinestesia.
• A caracterização da cidade é feita enquanto o eu lírico caminha pelas ruas, anotando em
movimento o que vê, ouve, cheira e sente. O facto de deambular, de se deslocar no espaço, permite-
lhe uma perceção dinâmica e um conhecimento mais completo da realidade urbana, na medida em
que passa por vários lugares e encontra diferentes personagens.
• Mas Cesário não se contenta em apresentar a realidade «como ela é», ou seja, de forma
«objetiva». O sujeito poético coloca a sua subjetividade nessa descrição e fá-la acompanhar de
insinuações apreciativas e de comentários avaliativos.
• Esse olhar subjetivo sobre o real e a cidade concretiza-se em vários casos numa representação
imaginativa das figuras, dos elementos e dos espaços que são descritos. A imaginação do sujeito
poético leva-o, por exemplo, a comparar a atriz elegante e intimidada de «Cristalizações» a uma
cabra fugidia ou a falar, no mesmo poema, das «árvores despidas» do inverno como «uma esquadra
[fundeada] em fria paz».
• Esta é uma técnica de representação do real que se propicia à análise e à crítica social: através da
comparação, da metáfora e da imagem condena-se a desumanização do trabalho quando se
encontram semelhanças entre os calceteiros e os animais de carga: «Assim as bestas vão
curvadas!» («Cristalizações»), denuncia-se o «consumismo» da mulher abastada, comparando-a a
uma «grande cobra, a lúbrica pessoa», alude-se aos habitantes da cidade, que vivem em prédios,
como encarcerados («os emparedados») — ambos de «O sentimento dum ocidental».
• Por outro lado, a imaginação criativa e a subjetividade do sujeito poético manifestam-se também na
utilização da técnica impressionista para representar a realidade. Tal sucede quando a
caracterização de umlugar ou de uma personagem é inicialmente definida por características suas
(normalmente associadas à luz e à cor) que o observador percepciona para só num segundo
momento esse elemento ser identificado: «Reluz, viscoso, o rio», «Lançam a nódoa negra e fúnebre
do clero».
• Por fim, note-se que a imaginação do sujeito lírico é também responsável por trazer para o
presente alusões ao passado da cidade, seja esse passado glorioso ou sombrio: «Assim que pela
História eu me aventuro e alargo». Os grandiosos tempos idos da pátria emergem pela evocação de
«Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado» ou de Camões; os períodos de obscurantismo revelam-
se quando, por exemplo, duas igrejas recordam os tempos da Inquisição: «um ermo inquisidor
severo» (exemplos de «O sentimento dum ocidental»).
• Tal significa que esta imaginação poética contribui decisivamente para dar significado (valorização,
crítica, sentido, etc.) à realidade que o sujeito poético descreve.

Perceção sensorial e transfiguração poética do real:


• O sujeito poético encontra-se em permanente deambulação e o seu olhar, capta imagens cuja
rápida sucessão é por vezes sugerida através do recurso ao assíndeto (recurso expressivo que
consiste na omissão da conjunção coordenativa entre os constituintes, que se separam apenas por
vírgulas).
Assim, a visão desempenha um papel fundamental nestes poemas tendo o sujeito
poético consciência deste facto.

O imaginário épico (em «o sentimento dum ocidental»)


• O poema «O sentimento dum ocidental» foi publicado em 1880 no número especial do periódico
Jornal de Viagens, que nessa edição pretendia comemorar o terceiro centenário do falecimento do
autor d’Os Lusíadas. (Já aqui se vislumbra alguma ligação entre a composição de Cesário e a
epopeia camoniana.)
• «O sentimento dum ocidental» é um poema longo que se centra na experiência de vida na Lisboa
da segunda metade do século XIX, como cidade ocidental moderna, bem como nos sentimentos de
melancolia, desânimo e até desespero que tal vivência desencadeia.
• Quanto à estrutura externa, o poema encontra-se organizado em quatro partes, cada qual com
onze quadras, formadas por um decassílabo e três alexandrinos. Na edição de O livro de Cesário
Verde, as quatro partes receberam os títulos: «Ave-Marias» (seis da tarde), «Noite fechada», «Ao
gás» e «Horas mortas».
• Em termos de estrutura interna, assistimos ao percurso de um sujeito poético que percorre Lisboa à
medida que as horas passam e a noite se vai adentrando. As quatro partes correspondem, pois, a
fases do fim do dia: fim da tarde, chegada da noite, noite instalada e iluminada pelos candeeiros a
gás e a noite cerrada das «Horas mortas».
• «O sentimento dum ocidental» é predominantemente um poema lírico, na medida em que
representa a vivência de um eu (poético) numa cidade moderna do mundo ocidental. Contudo, o
poema contém marcas que recordam o estilo épico mas que acabam por o subverter (ou seja, por o
contrariar). Essas características emergem logo por se tratar de um poema longo com um forte
pendor narrativo, como sucede numa epopeia: o eu poético relata o seu percurso pela cidade. Mais
ainda, esse sujeito podia estar a celebrar Lisboa e a vida dos seus habitantes; mas, na verdade, está
a criticá-la: a cidade é um lugar decadente, sem brilho nem valor.
• Há, contudo, uma dimensão épica no poema; mas essa não pertence ao presente, à Lisboa
moderna. O Tejo, a estátua de Camões e alguns outros elementos remetem para um passado em
que Portugal conheceu a grandeza e a glória. As alusões aos Descobrimentos e ao Império Marítimo
são, assim, um esboço de uma epopeia do passado, que o presente torna amarga porque já não é
essa a realidade moderna.
• Como sucederia com Camões, se tivesse vivido no fim do século XIX, o sujeito poético perdeu o
motivo para celebrar a pátria decadente e a cidade sem brilho. No presente do eu poético, a viagem
que se pode fazer já não é a das Descobertas, plena de aventura, mas a fuga, a evasão para outro
lugar diferente: «Levando à viaférrea os que se vão. Felizes! / [...] Madrid, Paris, Berlim, São
Petersburgo, o mundo!»
• Por fim, também as personagens que povoam a cidade moderna não são já os heróis militares,
cívicos, políticos e artísticos de outrora. São agora personagens decadentes como burgueses,
dentistas ou gente que trabalha mecanicamente, que não trazem estatuto épico à cidade.
• O estilo de Cesário é prosaico e de tom coloquial, o que o situa longe do estilo elevado, retórico e
grandiloquente das epopeias. O próprio vocabulário do quotidiano da cidade («varinas»,
«boqueirões», «becos») em nada se confunde com o léxico rico de um poema épico.

O Sentimento de Um Ocidental - Poema


Na leitura que fazemos de «O sentimento dum ocidental», destacando as manifestações da
consciência nele presentes, seguimos a via de considerar que o texto dispõe de todos os
ingredientes poético-narrativos necessários para contar uma história.

Mas trata-se de uma história que, à primeira vista, quase não é história: é a história do Poeta
que não cabe em casa, nem cabe em si, e sai de casa e de si, deparando, fora, com um
cenário humano preocupante e desolador, causa principal do mal estar que o aflige e de que
ele vai tomando (e revelando) consciência passo a passo. Esse cenário humano geral, com
que o poeta depara, potencia o aparecimento de muitos outros cenários. E isso porque a
história que ele conta não é sequencial nem linear, mas encerra em si muitas outras histórias,
carregadas de vivências pessoais do Poeta, embora literariamente transformadas.

Em O sentimento dum ocidental, há tempo, espaço e personagens, como há narrador e ação. O


tempo, o espaço e as personagens estão claramente presentes. O narrador é o próprio sujeito
poético, como acontece em muitos outros textos de Cesário Verde, que se desdobra nos
relatos que insinua e na interioridade que explora. Alguma dificuldade surge com a
narração/ação, sendo necessário o contributo empenhado do leitor para a constituir e organizar
e dar sentido às suas partes. No texto de Cesário, deparamos com quatro cenários – Ave-
Marias, Noite Fechada, Ao Gás, e Horas Mortas, a que correspondem, respetivamente, o Cair
da Tarde, o Acender das Luzes, a Fixação da Noite, a Noite Segura.

Considerando cada um destes conjuntos, e procedendo a um levantamento direto do texto,


vejamos como, em O sentimento dum ocidental, as manifestações da consciência (reveladas
através dos estados de alma do sujeito poético / narrador) aparecem ligadas, de modo
interativo, aos elementos poético-narrativos referenciados (tempo, espaço, personagens).

O TEMPO

Relativamente ao tempo, revela-se:


● Consciência da sua passagem, entre as Avé-Marias (ao cair da tarde), a Noite Fechada
(o acender das luzes), o Ao Gás (fixação da noite) e as Horas Mortas (noite segura).
● Consciência de um tempo real, progressivamente negativo: o anoitecer, as sombras, a
preparação da noite, o cair das badaladas, o fim da tarde, a hora de jantar, a hora de
acender as luzes, a temperatura baixa, a noite que esmaga, a palidez romântica e
lunar, a ocasião de fechar as lojas, a noite de céu limpo em que os astros libertam
lágrimas de luz, a cidade às escuras, o tempo de silêncio.
● Consciência de que ao tempo real, negativo, se contrapõe um tempo de evasão (o
tempo dos Descobrimentos) e um tempo imaginado de treva (folhas das navalhas e
gritos de socorro estrangulados, na escuridão da noite real em que o Poeta se move).
● Consciência de que o tempo real negativo diz respeito, simbolicamente, a um tempo,
primeiro de decadência nacional, e depois de decadência civilizacional, correspondendo
a evasão a uma necessidade de compensação da situação (ao mesmo tempo se
aponta uma chave para a solução dos problemas), mas não se deixando antever
grande margem para otimismo.
● Consciência da progressão e do adensar da noite: à medida que o tempo passa e o
bulício diminui, aumenta o sentimento de dor, angústia e frustração.
● Consciência de que o pessimismo instalado não dá mostras de recuar.
O ESPAÇO
Predomina o ambiente físico real, revelando-se a consciência do Poeta/narrador acerca
de:
● ruas, Tejo e maresia, céu baixo e de neblina, gás extravasado, edifícios com
chaminés, cor monótona e londrina, carros de aluguer, casas que parecem
gaiolas, boqueirões, becos, cais a que se atracam botes, escaleres de um
couraçado inglês, hotéis da moda, um trem de praça, as varandas das casas, as
lojas, os arsenais e as oficinas, o rio que reluz viscoso, as cadeias, o aljube, as
prisões, a velha Sé, as Cruzes, os andares iluminados, as tascas, os cafés, as
tendas, os estancos iluminados, a lua, duas igrejas, um largo, as construções
retas, as íngremes subidas, o toque dos sinos, o Largo com a estátua de
Camões, o espaço da rua, o Quartel Militar, um palácio diante de um casebre,
os Quartéis de Cavalaria, a cidade a esvaziar-se, os lampiões, as montras das
ourivesarias, os magasins, a brasserie, os passeios de lajedo, os hospitais, as
embocaduras, as lojas, sons de pianos, candelabros que se apagam, frontarias
dos prédios, esquinas, ruas estreitas, prédios com trapeiras, astros que libertam
lágrimas de luz, portões e arruamentos particulares, lajes onde se ouve cair um
parafuso, taipais, uma caleche de luzes acesas, fachadas das casas, ruas como
nebulosos corredores, tabernas, escadas dos prédios, o andar superior dos
prédios, as sacadas de pedra.
Segue-se o ambiente humano real, com:
● bulício de gente, gente que parte de comboio, pessoas em viveiros (em casa),
dois dentistas que arengam, os guardas das prisões, velhinhas e crianças
recolhidos no aljube, os ourives, os emigrados às mesas da brasserie, os pobres
mal vestidos e os doentes, um cutileiro, a fábrica de cutelaria a funcionar, a
padaria a fabricar pão, as casas de confeções e moda, a loja de luxo com
balcões de mogno, as lojas da moda, as plantas ornamentais nos mostradores
das lojas, um velho professor de latim que pede esmola, os trabalhadores da
noite, o som de uma flauta triste, a vida interior das tabernas, os guardas que
revistam os prédios, as imorais em roupão que tossem e fumam.
Há ainda particularidades acerca do espaço físico de evasão (positiva: Descobrimentos,
Idade Média; negativa: espaço da cidade, com práticas repressivas da Igreja da Inquisição),
espaço físico imaginado (a catedral de comprimento imenso, círios, capelas com santos,
andores, ramos, velas; o chão da cidade minado pelos canos); espaço humano imaginado (os
fiéis na catedral de comprimento imenso).
A consciência revelada, tanto sobre o ambiente físico real, como sobre o ambiente
humano real, não tem toda ela o mesmo valor. A sensibilidade do Poeta/narrador vai
estabelecendo diferenciações, revelando-se positiva, negativa ou neutra, consoante as
circunstâncias. A sensibilidade neutra é simplesmente caracterizadora, a sensibilidade positiva
vai para os desfavorecidos pela sorte, e a sensibilidade negativa para os favorecidos por ela.
O ambiente humano real vai ter continuidade nas personagens apresentadas.

AS PERSONAGENS

As personagens (os "outros") de O sentimento dum ocidental vão desde a tipificação


(gente nas ruas, a turba, o povo em geral) até à individualização (cada uma delas
caracterizada com traços rápidos e fortes.
Deparamos com cinco grupos de personagens:
● - Personagens do Povo Positivas (gente desprotegida, frágil, vítima da má sorte,
com os seus pontos fracos e as suas misérias, que representa a dor humana):
os mestres carpinteiros, os calafates, um trôpego arlequim, os querubins do lar,
o operariado, as operárias, as varinas, os filhos das varinas, as velhinhas e as
crianças do aljube, os presos nas prisões, as pessoas que chegam a casa, os
frequentadores das tascas, dos cafés, das tendas, dos estancos, as pessoas
que vivem nos "viveiros" (inferidas), os padeiros no fabrico do pão (inferidas),
um tocador de flauta (inferido), o Cólera e a Febre, as pessoas de corpos
enfezados, os emigrados, as impuras, os pobres, as costureiras e as floristas, as
imorais, um forjador, o ratoneiro imberbe, o cauteleiro solitário, o professor de
latim, os tristes bebedores, os dúbios caminhantes, os cães.
● - Personagens Burguesas Negativas (gente favorecida pela sorte, ou andando
na sua roda e vivendo à sua custa): dois dentistas, os comerciantes, os
frequentadores dos hotéis da moda, a mulher de "dom", as modistas das casas
de confeções e moda (inferidas), os ourives (inferidas), as elegantes, as
burguesinhas do catolicismo, a pessoa lúbrica, a velha de bandos, os
mecklemburgueses, os clientes e os caixeiros.
● - Personagens de Regulação Social (representantes da manutenção da situação
vigente, não sendo apresentados em si mesmos, na sua realidade humana, mas
na função que desempenham, do lado dos favorecidos da sorte e da vida): os
soldados (sombrios e espectrais, recolhem ao Quartel), as patrulhas a cavalo e
a pé (saem dos Quartéis, espalham-se por toda a capital), os guardas (revistam
as escadas, caminham de lanterna, carregados de chaves), os padres e a sua
influência ancestral na sociedade.
● - Personagens Conscientes e Sensíveis (conhecedores da realidade vigente, o
Poeta e quantos se solidarizam com ele, que vivem a realidade do vale escuro
das muralhas, sem árvores, entre folhas de navalhas e gritos de socorro
estrangulados, na treva, mas nada podem fazer): os emparedados.
● - Personagens de Compensação (servem de escape à tensão desencadeada
pelo grau crescente de consciência que afeta o Poeta: personagens de evasão
(mouros, heróis ressuscitados, Camões a salvar Os Lusíadas a nado),
personagens visionadas (as vítimas da repressão da Igreja, os frequentadores
da catedral visionada, as freiras de antigamente, as esposas, filhos, mães e
irmãs estremecidas, a raça ruiva do porvir, os avós com as suas frotas, os
nómadas ardentes), personagens imaginadas (os astros personificados,
solidários com os homens conscientes, chorando lágrimas de luz), personagem
da memória (uma paixão defunta).
Numa antevisão de como virão a proceder, nos ainda distantes anos 30 e 40 do século
seguinte, o neorrealismo, e, um pouco mais tarde, o existencialismo, o Poeta/narrador
apresenta as personagens da sua história de um modo perfeitamente organizado, em termos
de consciência.
Ele configura a dialética social entre desfavorecidos e favorecidos, cada um sofrendo
de inconsciência à sua maneira, com os poderes político e religioso a garantirem a
continuidade da situação vigente, e os emparedados nada podendo fazer contra isso, a não ser
contrapor consciência à inconsciência e sonhar vitórias futuras, de certa maneira preparando o
terreno para que, quando o tempo chegar, a transformação desejada se torne possível.
Essa consciência, por parte do Poeta/narrador, reflete-se através de estados de alma
diversificados.
OS ESTADOS DE ALMA DO POETA.
Perante a realidade, a consciência do Poeta manifesta-se através dos mais variados
estados de alma, reflexo interior das variações exteriores vivenciadas, refletidas no tempo,
espaço e personagens.
O Poeta deseja-se alguém que não morresse nunca, qual Sísifo que, de existência
eterna, estivesse condenado a renovar continuamente o trabalho-sonho que tem em mãos,
nunca suscetível de ser concluído, dada a finalidade de renovação do mundo, a que se propõe,
e o jogo constante entre o pessimismo e a esperança que caracterizam as realizações
humanas.
São sentimentos direta ou indiretamente verificados:
● Soturnidade e melancolia.
● Desejo absurdo de sofrer.
● Enjoo pelo gás extravasado.
● Tristeza provocada pela cor monótona e londrina.
● Felicidade pelos que partem e infelicidade pelos que ficam.
● Desejo de viajar entre capitais europeias.
● Sentimento de que a felicidade só está onde não se está.
● Ensimesmamento, na deambulação a esmo pelos espaços da cidade.
● Ânsia de evasão.
● Inspiração e incómodo pelo cair da tarde.
● Simpatia pelos desfavorecidos e hostilidade pelos bafejados da sorte.
● Comiseração com a vida das varinas, cujo naufrágio futuro dos filhos se antevê.
● Mortificação e loucura pelo tocar às grades, nas cadeias.
● Pena pelas velhinhas e crianças que se recolhem ao aljube.
● Morbidez (a pontos de desconfiar de um aneurisma).
● Tristeza, pela vida na velha Sé, junto às Cruzes.
● Antipatia por igrejas e clero,devido às suas práticas opressoras, passadas e
presentes.
● Consideração pela História (evasão da realidade que dói, embora nem sempre
para motivos felizes).
● Sentimento de estar "murado". Desejo de dar resposta a problemas do presente
com soluções do passado.
● Sensibilidade pelo sofrimento das pessoas que sofrem de cólera e febre.
● Sentimento de pouca simpatia pelos soldados.
● Sensibilidade pelas contradições e afrontas sociais.
● Nostalgia pela Idade Média (evasão).
● Comiseração pela tristeza da cidade.
● Repulsa perante favorecidos e sobressalto perante aqueles que a vida não
favoreceu.
● Reprovação das modas estrangeiras.
● Sensibilidade para com os quadros revoltados da cidade.
● Desconforto perante o ambiente de riso e jogo da brasserie.
● Peso e esmagamento provocado pela noite.
● Solidariedade com o sofrimento no interior dos hospitais, com os pobres mal
trajados e os doentes.
● Comiseração pela sorte (submissão) das burguesinhas do catolicismo.
● Apreciação das coisas autênticas e salutares da vida.
● Aspereza perante os que, favorecidos pela sorte, se deixam atrair pelo luxo.
● Compaixão pelos mais fracos e desfavorecidos.
● Desejo de evasão perante a realidade crua.
● Crítica à propriedade privada opulenta.
● Susto e espanto (por exemplo, pelos "olhos sangrentos", as luzes de uma
caleche).
● Consciência dos ínfimos pormenores da cidade.
● Anseio e saudade pelo ambiente pastoril.
● Sonho com um mundo perfeito.
● Idealização de uma sociedade purificada (família, filhos, esposas e irmãs).
● Náuseas, provocadas pelo interior das tabernas.
● Compaixão pelos tristes bebedores, de regresso a casa.
● Irmanação com os revoltados e os tristes.
● Solidariedade com a dor humana e desejo de a superar.
Como se repara, não estamos perante apenas "uma" história, no sentido de uma unidade
narrativa, de que poderíamos estar à espera, mas de muitas histórias dentro (a propósito)
dessa história. O sujeito poético / narrador conta a história de cada personagem recriada (que
traz à "vida"), conta a sua própria história, histórias da história (do passado, do presente e... do
futuro), de entes reais e recriados, da realidade e dos sonhos, da vida (da má vida), histórias
de Lisboa e de espaços específicos de Lisboa, histórias do país e do mundo...E nenhuma
destas histórias é linear, antes todas elas são complexas, sugeridas pelo Poeta, no seu estilo
digressivo/impressionista, não dispensando a cumplicidade do leitor para que se tornem
consistentes.
Todos estes elementos poético-narrativos, com reflexo nas manifestações de consciência,
presentes em O Sentimento dum Ocidental, oferecem-se, com a maior vantagem, para serem
"descobertos" pelos alunos. Afigura-se, por essa via, perante eles, uma oportunidade única de
desenvolverem espírito crítico e competência de leitura, aproveitando, ao mesmo tempo, linhas
de pensamento do melhor e do mais criativo que a literatura portuguesa produziu até hoje,
respondendo às finalidades formativas em que a escola não poderá deixar de se mostrar
empenhada.

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