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Resumos Cesário Verde - Português 12º

A REPRESENTAÇÃO DA CIDADE E DOS TIPOS SOCIAIS

• A cidade surge como um espaço que se opõ e ao campo. O espaço urbano é visto como opressivo e
destrutivo (por exemplo, nos poemas «Num bairro moderno» e «O sentimento dum ocidental»), tanto
para o sujeito poé tico como para os populares que para aı́ se deslocam em busca de melhores
condiçõ es de vida, na sequê ncia do enorme ê xodo rural que ocorreu nesta é poca. Em contrapartida, o
campo é perspeti- vado como um local de liberdade — sendo que o espaço rural nã o é idealizado,
mas descrito de forma realista e concreta.
• Mesmo nos poemas que se concentram no espaço citadino, sã o feitas referê ncias frequentes ao
campo — como que a lembrar que a vocaçã o do ser humano se orienta para uma vida harmoniosa e
natural, que só no campo se encontra, e que a vida na cidade o desumaniza. Deste modo, no espaço
urbano há sempre um desejo de eva- sã o para o campo.
• A oposiçã o cidade/campo alarga-se també m ao campo amoroso: enquanto a cidade está associada à
ausê ncia, impossibilidade ou perversã o do amor, o campo representa a possibilidade de vivê ncia
plena dos afetos.
• As pró prias figuras femininas da obra de Cesá rio se associam a esta dicotomia: o eu poé tico sente-se
atraı́do por dois tipos opostos de mulher — a mulher fatal e a mulher frá gil e inocente. No primeiro
caso, temos figuras femininas que se enquadram perfei- tamente no espaço citadino (e que surgem,
por exemplo, no poema «O sentimento dum ocidental»). Pertencem a um estrato social superior ao
do sujeito poé tico e osten- tam riqueza e elegâ ncia. O desejo que estas mulheres suscitam no sujeito
poé tico é investido de ambiguidade, na medida em que a sua altivez, ao mesmo tempo que o seduz,
provoca nele um sentimento de revolta. No segundo caso, temos personagens simples, inocentes,
frá geis e desamparadas, que, pelas suas caracterı́sticas, nã o se enquadram no espaço urbano, visto
como um local de corrupçã o (cf., por exemplo, o poema «A dé bil»). Assim, ao contrá rio da mulher
fatal, a vulnerabilidade desta figura feminina desperta no eu o instinto de proteçã o, o desejo de se
redimir das suas faltas e de levar com ela uma existê ncia honesta e tranquila.
• No que diz respeito aos tipos sociais representados na obra de Cesá rio, temos claramente um
sentimento de empatia do sujeito poé tico em relaçã o aos ele- mentos das classes mais baixas (cf., por
exemplo, os poemas «O sentimento dum ocidental», «Num bairro moderno» e «Cristalizaçõ es»). Com
efeito, é feita uma crı́tica à s condiçõ es degradantes em que os elementos do povo viviam: as varinas
de «O sentimento dum ocidental» «apinham-se num bairro aonde miam gatas / E o peixe podre gera
os focos de infeçã o» (vv. 43-44) —, bem como à exploraçã o a que estavam sujeitos — os calceteiros
sã o descritos, em «Cristali- zaçõ es», como «bestas [...] curvadas» que tê m uma «vida [...] custosa» (vv.
61-62); quanto à vendedeira de «Num bairro moderno», é humilhada por um criado que lhe «[a]tira
um cobre ignó bil, oxidado» (v. 29) e se recusa a pagar-lhe mais pela mercadoria.
• O poema «Cristalizaçõ es» parece, num primeiro momento, contrariar este sentimento de compaixã o
em relaçã o aos elementos mais vulnerá veis da socie- dade. De facto, o eu mostra-se pontualmente
satisfeito com a cidade mercantil — isto é , com uma sociedade que se centra apenas no progresso a
nı́vel econó - mico, ignorando as necessidades das classes mais desfavorecidas: «E engelhem muito
embora, os fracos, os tolhidos, / Eu tudo encontro alegremente exato» (vv. 46-47). Contudo, esta
perspetiva é posteriormente contrariada pela contem- plaçã o mais demorada dos calceteiros e pela
reflexã o sobre a dureza que marca o seu percurso existencial. Assim, o sujeito poé tico acaba por
mostrar a sua admiraçã o por estes trabalhadores: «Que vida tã o custosa! Que diabo!» (v. 62).
• A injustiça social denunciada na poesia de Cesá rio torna-se mais gritante pelo contraste que nela se
estabelece entre o labor permanente dos elementos do povo, que é visto como a força ativa da
sociedade, e o ó cio que caracteriza as classes dominantes. Com efeito, no poema «Num bairro
moderno», a azá fama da vendedeira e dos trabalhadores da cidade contrasta com a «vida fá cil» (v.
12) dos habitantes deste luxuoso espaço, que à s dez da manhã ainda esta- vam a começar a
despertar. També m em «O sentimento dum ocidental» este contraste é visı́vel: a descriçã o dos
trabalhadores que regressam a casa ao fim da tarde e dos que se encontram ainda no local de
trabalho torna mais gritante a inatividade das classes dominantes, que jantam nos «hoté is da moda»
(v. 28) ou se entregam ao consumismo nas «casas de confeçõ es e modas» (v. 107).

DEAMBULAÇÃO E IMAGINAÇÃO: O OBSERVADOR ACIDENTAL

• Cesá rio Verde representa nos seus versos a cidade (e o campo) atravé s do registo de
perceções sensoriais: embora predominem as referê ncias visuais, o eu lı́rico caracteriza
també m o espaço urbano pelas constataçõ es que lhe chegam atravé s do ouvido, do olfato e
do tato (cf. «O sentimento dum ocidental» e «Num bairro moderno», nas pá ginas 278-283 do
manual). Em vá rias situa- çõ es essas sensaçõ es cruzam-se em sinestesias.
• A caracterizaçã o da cidade é feita enquanto o eu lı́rico caminha pelas ruas, anotando em
movimento o que vê , ouve, cheira e sente. O facto de deambular, de se deslocar no espaço,
permite-lhe uma perceçã o dinâ mica e um conheci- mento mais completo da realidade
urbana, na medida em que passa por vá rios lugares e encontra diferentes personagens (cf.
«A representaçã o da cidade e os tipos sociais», nas pá ginas 65-66 deste livro).
• Mas Cesá rio nã o se contenta em apresentar a realidade «como ela é », ou seja, de forma
«objetiva». O sujeito poé tico coloca a sua subjetividade nessa descriçã o e fá -la acompanhar
de insinuaçõ es apreciativas e de comentá rios avaliativos: «Como animais comuns, que uma
picada esquente, / Eles [os trabalhadores de rua], bovinos, má sculos, ossudos,»
(«Cristalizaçõ es»).
• Esse olhar subjetivo sobre o real e a cidade concretiza-se em vá rios casos numa representação
imaginativa das figuras, dos elementos e dos espaços que sã o descritos. A imaginaçã o do sujeito
poé tico leva-o, por exemplo, a comparar a atriz elegante e intimidada de «Cristalizaçõ es» a uma cabra
fugidia («Com seus pezinhos rá pidos, de cabra!») ou a falar, no mesmo poema, das «á rvores
despidas» do inverno como «uma esquadra [fundeada] em fria paz».
• Esta é uma té cnica de representaçã o do real que se propicia à aná lise e à crítica social: atravé s da
comparaçã o, da metá fora e da imagem condena-se a desu- manizaçã o do trabalho quando se
encontram semelhanças entre os calceteiros e os animais de carga: «Assim as bestas vã o curvadas!»
(«Cristalizaçõ es»), denuncia-se o «consumismo» da mulher abastada, comparando-a a uma «grande
cobra, a lú brica pessoa», alude-se aos habitantes da cidade, que vivem em pré dios, como
encarcerados («os emparedados») — ambos de «O sentimento dum ocidental». (cf. «Perceçã o
sensorial e transformaçã o poé tica do real», nas pá ginas 67-68 deste livro.)
• Por outro lado, a imaginaçã o criativa e a subjetividade do sujeito poé tico manifestam-se també m na
utilizaçã o da técnica impressionista para represen- tar a realidade. Tal sucede quando a
caracterizaçã o de um lugar ou de uma personagem é inicialmente definida por caracterı́sticas suas
(normalmente associadas à luz e à cor) que o observador perceciona para só num segundo momento
esse elemento ser identificado: «Reluz, viscoso, o rio», «Lançam a nó doa negra e fú nebre do clero».
• Por fim, note-se que a imaginaçã o do sujeito lı́rico é també m responsá vel por trazer para o presente
alusões ao passado da cidade, seja esse passado glorioso ou sombrio: «Assim que pela Histó ria eu
me aventuro e alargo». Os grandiosos tempos idos da pá tria emergem pela evocaçã o de «Mouros,
baixé is, heró is, tudo ressuscitado» ou de Camõ es; os perı́odos de obscurantismo revelam-se quando,
por exemplo, duas igrejas recordam os tempos da Inquisiçã o: «um ermo inqui- sidor severo»
(exemplos de «O sentimento dum ocidental»).
• Tal significa que esta imaginaçã o poé tica contribui decisivamente para dar sig- nificado
(valorizaçã o, crı́tica, sentido, etc.) à realidade que o sujeito poé tico descreve. Of scar Lopes (1987: 470-
473) sugere mesmo que essa imaginaçã o funciona atravé s da interseçã o, do cruzamento de
diferentes planos: objetivo e subjetivo, realidade e imaginaçã o, ou presente e passado.

PERCEÇÃO SENSORIAL E TRANSFIGURAÇÃO POÉTICA DO REAL

• Na poesia de Cesá rio, há um sujeito poé tico que se encontra em permanente deambulaçã o e cujo olhar, à
semelhança de uma câ mara de filmar, vai cap- tando imagens, como instantâ neos cuja rá pida sucessã o é por
vezes sugerida atravé s do recurso ao assı́ndeto (recurso expressivo que consiste na omissã o da conjunçã o
coordenativa entre os constituintes, que se separam apenas por vı́r- gulas). Assim, a visã o desempenha um
papel fundamental nestes poemas. O pró prio sujeito poé tico tem consciê ncia deste facto, afirmando, no
poema «Nó s»: «Pinto quadros por letras, por sinais.»

• No entanto, o sujeito poé tico nã o se limita a descrever objetivamente a realidade que observa nas suas
deambulaçõ es. A «luneta de uma lente só » («O senti- mento dum ocidental», v. 85) pode ser entendida como
uma metá fora de um olhar criador, que tem o poder de transfigurar tudo o que o rodeia. Ef nesta sequê ncia
que assistimos, por exemplo, ao aparecimento de um corpo formado pelas frutas e pelos legumes da
vendedeira no poema «Num bairro moderno» — atravé s do qual o sujeito poé tico como que reverte a
humilhaçã o a que esta figura feminina é sujeita pelo criado, na medida em que substitui, por momen- tos, todo
o espaço citadino — bem como a exploraçã o do campo que ele repre- senta — por uma imagem associada à
vitalidade do espaço rural. A realidade é també m transfigurada, no poema «Cristalizaçõ es», no momento em
que o eu configura as camisas dos calceteiros como uma bandeira, que se institui como um sı́mbolo de todo o
sofrimento inerente à sua vida, funcionando, portanto, como uma forma de denú ncia das injustiças sociais.
Finalmente, é possı́vel també m considerar o momento de transfiguraçã o das lojas que o sujeito poé tico
observa em «O sentimento dum ocidental» como um passo que tem subjacente uma intençã o crı́tica, dado que
a sua configuraçã o como uma imensa catedral com diversas capelas pode ser interpretada como uma
condenaçã o da elevaçã o do consumismo à condiçã o de algo sagrado.

O IMAGINÁRIO ÉPICO (EM «O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL»)

• O poema «O sentimento dum ocidental» foi publicado em 1880 no nú mero especial do perió dico
Jornal de Viagens, que nessa ediçã o pretendia comemorar o terceiro centená rio do falecimento do
autor d’Os Lusíadas. (Já aqui se vislum- bra alguma ligaçã o entre a composiçã o de Cesá rio e a epopeia
camoniana.)
• «O sentimento dum ocidental» é um poema longo que se centra na experiência de vida na Lisboa
da segunda metade do sé culo XIX, como cidade ocidental moderna, bem como nos sentimentos de
melancolia, desâ nimo e até desespero que tal vivê ncia desencadeia.
• Quanto à estrutura externa, o poema encontra-se organizado em quatro partes, cada qual com
onze quadras, formadas por um decassı́labo e trê s alexandrinos. Na ediçã o de O livro de Cesário
Verde, as quatro partes receberam os tı́tulos: «Ave-Marias» (seis da tarde), «Noite fechada», «Ao gá s e
«Horas mortas».
• Em termos de estrutura interna, assistimos ao percurso de um sujeito poé tico que percorre Lisboa à
medida que as horas passam e a noite se vai adentrando. As quatro partes correspondem, pois, a
fases do fim do dia: fim da tarde, chegada da noite, noite instalada e iluminada pelos candeeiros a gá s
e a noite cerrada das «Horas mortas».
• «O sentimento dum ocidental» é predominantemente um poema lírico, na medida em que
representa a vivê ncia de um eu (poé tico) numa cidade moderna do mundo ocidental. Contudo, o
poema conté m marcas que recordam o estilo épico mas que acabam por o subverter (ou seja, por o
contrariar). Essas carac- terı́sticas emergem logo por se tratar de um poema longo com um forte
pendor narrativo, como sucede numa epopeia: o eu poé tico relata o seu percurso pela cidade. Mais
ainda, esse sujeito podia estar a celebrar Lisboa e a vida dos seus habitantes; mas, na verdade, está a
criticá -la: a cidade é um lugar decadente, sem brilho nem valor.
• Há , contudo, uma dimensão épica no poema; mas essa nã o pertence ao pre- sente, à Lisboa
moderna. O Tejo, a está tua de Camõ es e alguns outros elemen- tos remetem para um passado em que
Portugal conheceu a grandeza e a gló ria. As alusõ es aos Descobrimentos e ao Impé rio Marı́timo sã o,
assim, um esboço de uma epopeia do passado, que o presente torna amarga porque já nã o é essa a
realidade moderna.
• Como sucederia com Camõ es, se tivesse vivido no fim do sé culo XIX, o sujeito poé tico perdeu o motivo
para celebrar a pá tria decadente e a cidade sem brilho. No presente do eu poé tico, a viagem que se
pode fazer já nã o é a das Desco- bertas, plena de aventura, mas a fuga, a evasã o para outro lugar
diferente: «Levando à via-fé rrea os que se vã o. Felizes! / [...] Madrid, Paris, Berlim, Sã o Petersburgo, o
mundo!»
• Por fim, també m as personagens que povoam a cidade moderna nã o sã o já os heró is militares,
cı́vicos, polı́ticos e artı́sticos de outrora. Sã o agora personagens decadentes como burgueses,
dentistas ou gente que trabalha mecanicamente, que nã o trazem estatuto é pico à cidade.
• O estilo de Cesá rio é prosaico e de tom coloquial, o que o situa longe do estilo elevado, retó rico e
grandiloquente das epopeias. O pró prio vocabulá rio do quo- tidiano da cidade («varinas»,
«boqueirõ es», «becos») em nada se confunde com o lé xico rico e ostentató rio de um poema é pico.

LINGUAGEM, ESTILO E ESTRUTURA

1. Estrutura

• Cesá rio Verde investe grande cuidado na busca da perfeição formal dos seus poemas. Essa
é uma das razõ es que levaram alguns estudiosos a aproximar a poesia deste autor da dos
poetas do Parnasianismo (ver glossá rio).
• Em termos de estrutura estró fica, Cesá rio recorre frequentemente à quadra, sejam os
poemas longos («O sentimento de um ocidental», «Nó s») ou curtos («Sardenta»). Mas o
poeta revela també m o seu gosto pela quintilha (estrofe de cinco versos), com que compõ e
«Cristalizaçõ es» ou «Num bairro moderno».

• Quanto à mé trica, a preferê ncia de Cesá rio incide nos versos alexandrinos (verso de doze sı́labas
mé tricas) e nos decassílabos. Em alguns poemas — como «Cristalizaçõ es» ou «O sentimento dum
ocidental» — surgem os dois tipos de verso na mesma estrofe. Os alexandrinos e os decassı́labos sã o
versos mais extensos e permitem ao poeta, de forma mais folgada e distendida, descrever a cidade e
refletir sobre as perceçõ es que dela tem; mas estas sã o també m estruturas mé tricas usadas porque
permitem criar uma cadê ncia musical.
• As composiçõ es poé ticas de Cesá rio recorrem sempre à rima como forma de as organizar
formalmente e de lhes incutir musicalidade. Nos poemas constituı́dos por quadras, encontramos
rima cruzada (abab) ou interpolada e emparelhada (abba). As quintilhas estruturam-se geralmente
num tradicional e ritmado abaab.

2. Linguagem e estilo

• Cesá rio Verde inovou a literatura portuguesa, em fins do sé culo XIX, ao trazer para o domı́nio da
poesia uma nova linguagem, menos retó rica e menos elevada. Esta coaduna-se com o tratamento
original e novo de temas antigos (campo, mulher) e modernos (cidade) e com o tipo de arte que o
autor cultivava.
• Uma estranheza imediata que um leitor do sé culo XIX teria sentido ao entrar na poesia de Cesá rio
Verde emergiria do discurso pouco ornamentado e pouco rebuscado que contrastava com a
retó rica pesada e sentimental de alguma lı́rica româ ntica. Ao representar a realidade moderna da
segunda metade de Oitocentos, Cesá rio socorre-se de vocá bulos e expressõ es da vivê ncia citadina,
sobretudo a que se associa ao povo. E a poesia começa a ser frequentada por termos que até entã o
nã o tinham aı́ entrada, como «via-fé rrea», «varinas», «infeçã o», «esguedelhada», «macadamizada »,
etc.
• A lı́rica de Cesá rio Verde aproxima-se da prosa nã o apenas pelo seu tom coloquial e
antideclamató rio mas també m, e como vimos, pelo uso do verso longo — como o decassı́labo e o
alexandrino e do encavalgamento.
• Ainda assim, a poesia de Cesá rio nã o é despida de recursos expressivos. O poeta cultiva a
comparação e a metáfora, em muitos casos, de forma a pro- por semelhanças entre aspetos da
cidade (e os seus habitantes) e outros ele- mentos que dã o sentido ou criticam: «Semelham-se a
gaiolas, com viveiros / As edificaçõ es», «Como morcegos [...] Saltam de viga em viga os mestres car-
pinteiros», «Que grande cobra, a lú brica pessoa», «E tem maré s, de fel».
• Algumas metá foras tê m uma natureza fortemente visual ou pictó rica, decor- rente do cará cter
descritivo desta poesia e de ela ter pontos de contacto com a pintura; muitas destas ocorrê ncias sã o
mesmo imagens: «homens de carga», «Lançam a nó doa negra e fú nebre do clero».
• També m o recurso à enumeração se associa ao cará cter descritivo de alguns poemas de Cesá rio
Verde («O sentimento dum ocidental», «Num bairro moderno»). Nestas composiçõ es, o poeta elenca
elementos do real, em muitos casos de forma justaposta, para depois os analisar ou criticar: «Cercam-
me as lojas [...] Com santos e fié is, andores, ramos, velas.» As enumeraçõ es contribuem para criar o
efeito de que o eu poé tico procura representar a totalidade do real.
• Já a sinestesia (o cruzamento de perceçõ es sensoriais de tipos diferentes) resulta do processo de
captaçã o de sensaçõ es para a caracterizaçã o da vivê ncia de um lugar: «brancuras quentes», «luz
macia» (visã o e tato). Desta forma se dá conta do modo complexo como algué m experiencia, por
exemplo, a cidade ou a relaçã o com uma mulher.
• Nã o sendo um recurso muito comum, a hipérbole surge para representar de forma expressiva e
gritante alguns aspetos da cidade: «De pré dios sepulcrais, com dimensõ es de montes, / A Dor
humana busca os amplos horizontes».
• Ef de forma surpreendente e original que Cesá rio utiliza os adjetivos, sobretudo quando surgem
antes de nomes ou quando ocorrem em pares ou em grupos de trê s: «E sujos, sem ladrar, ósseos,
febris, errantes, / Amareladamente, os cã es parecem lobos» («O sentimento dum ocidental»). A
sucessã o de quatro adjetivos assume uma forte expressividade e representa uma tentativa de definir
com rigor o elemento que caracterizam. Como antecedem o nome, adquirem um significado que vai
para alé m do seu sentido literal.
• O advérbio é també m muito usado de forma surpreendente e, por isso, muito expressiva: «Amo,
insensatamente, os á cidos, os gumes / E os â ngulos agudos». Nos versos «E sujos, sem ladrar, ó sseos,
febris, errantes, / Amareladamente, os cã es parecem lobos», o advé rbio traduz engenhosamente a
condiçã o faminta e enferma destes animais que erram pela cidade.
• Ef de forma muito criteriosa que Cesá rio seleciona os adjetivos e os advérbios que utiliza. A
subjetividade no uso destas classes de palavras representa, em vá rios momentos, uma té cnica da
pintura impressionista aplicada à literatura. Com o advé rbio «amareladamente», a cor ganha
importâ ncia e, como numa tela impressionista, o elemento é retratado tal como o observador o
perceciona e nas condiçõ es (de visibilidade, do clima) que o rodeiam. Vejamos outros exemplos do
uso da té cnica impressionista: «Mas, todo púrpuro a sair da renda / [...] O ramalhete rubro de
papoulas» («De tarde»), e «Mas, depois duns dias de aguaceiros, / Vibra uma imensa claridade crua.»
(«Cristalizaçõ es»).
• A aproximaçã o entre a poesia e a pintura afirma-se també m pelo facto de Cesá rio explorar uma
linguagem plá stica, com um forte apelo visual, e cultivar o recurso expressivo da imagem com um
acentuado valor simbó lico: «Cercam-me as lojas, té pidas. Eu penso / Ver cı́rios laterais, ver filas de
capelas.» («O sentimento dum ocidental») Ao observar uma realidade (a rua iluminada pelas lojas), a
imaginaçã o leva-o a conceber uma outra cena (as capelas, lado a lado, iluminadas): é claro que esta
justaposiçã o de elementos convida a uma relaçã o crı́tica entre ambos.

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