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Vida

O pente a percorrer, cuidadoso, a vasta cabeleira. Colete, paletó preto de casimira


inglesa, chapéu gelô. Enquanto dava um último retoque na grande gravata de
colorido espalhafatoso, o rapaz olhou-se de alto a baixo no espelho, dizendo:
”- Tremei, pais de família! Don Juan vai sair.”
Fechou a porta do quarto e dirigiu-se a passos lentos para o centro do Recife.
Sentia-se irresistivelmente belo em seus trajes finos e elegantes, não escondia o
prazer em ser reconhecido e cumprimentado.
Na praça, no entanto, ninguém reparou nele. As pessoas estavam atentas ás
palavras de um orador. O rapaz ficou ali, um pouco distante da multidão,
assistindo. Falava Antônio Borges da Fonseca, pregando idéias republicanas,
criticando o Governo, atacando a escravatura, denunciando o luxo dos aristocratas
e a miséria do povo. De repente, a polícia. Correria. Gritos. O orador é preso.
O rapaz ficou indignado e furioso. Esquecendo-se das conquistas amorosas
planejadas, subiu no primeiro banco que enxergou. E, aos poucos, todos o
rodearam, admirados com aquele jovem alto, esbelto, de olhar penetrante, o rosto
pálido e os cabelos negros, já caídos sobre a ampla testa. Não era um discurso. A
voz forte declamava uma poesia, improvisada ali, ao ver o povo expulso da praça :

”- A praça ! A praça é do povo


Como o céu é do condor !
É o antro onde a liberdade
Cria águias em seu calor.
Senhor, pois quereis a praça ?
Desgraçada a populaça !
Só tem a rua de seu...
Ninguém vos rouba os castelos,
Tendes palácios tão belos...
Deixai a terra ao Anteu.”

Mais pessoas se aproximaram para ouvir os versos, algumas ainda meio


temerosas. O poeta, entretanto, dominava a situação :
mesmo os policiais pareciam interessados em ouvi-lo.
”Mas embalde ... que o direito
Não é pasto de punhal
Nem a patas de cavalos
Se faz um crime legal...
Ah! não há muitos Setembros!
Da plebe doem-se os membros
No chicote do poder,
E o momento é malfadado
Quando o povo ensangüentado
Diz: já não posso sofrer.”

Com o esforço, a roupa amassara, a gravata borboleta se pusera torta.


”- Lançai um protesto, ó povo
Protesto que o mundo novo
Manda aos tronos e ás nações.”

Primeiro, o silêncio, em seguida os aplausos. E a notícia correu a cidade : o


acadêmico Antônio de Castro Alves aprontava uma das suas : fazia, em versos,
comícios republicanos.
 
Adeus, Boa Vista querida
Era um domigo, 14 de março de 1847, e Dona Clélia Brasília da Silva Castro
estava completando 21 anos. Mas os cumprimentos que recebia não eram pelo
seu aniversário. Ás 10 horas, atendida pelo marido, o médico Antônio José Alves,
dera á luz o segundo filho, Antônio Frederico.

Viviam na Fazenda Cabaceiras, hoje município de Muritiba (Bahia), e lá o menino


passou os primeiros cinco anos. Brincava com Gregório, filho de Leopoldina, sua
ama, e José Antônio, irmão um ano mais velho e que lhe pôs um apelido : Cecéu.
Os meninos começavam a progredir nos estudos quando o Dr. Alves se mudou
para Salvador, em 1854, convidado para lecionar na Faculdade de Medicina.
Estiveram no Colégio Sebrão por três e, em 1858, ingressaram no Ginásio Baiano.
A nova escola fora fundada por Abílio César Borges e começava com uma grande
inovação : o ensino seriado. Os alunos assistiam a várias matérias no mesmo ano,
e aprofundavam o estudo de cada uma no ano seguinte.

Cecéu e Zezinho, o irmão mais velho, iam a cavalo da chácara da Boa Vista, onde
moravam, á escola, e ficavam o dia inteiro aprendendo francês, história, inglês,
latim, filosofia. Cecéu detestava a matemática e vivia desenhando, escrevendo
versos, lendo poesias. Um livro logo tornou-se seu preferido : a antologia dos
poetas franceses, de Charles André, onde conheceu Lamartine, Vigny,
Chateaubriand, e, sobretudo, Victor Hugo, seu escritor predileto. Lia Camões,
Bocage, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Byron e maravilhava o professor de
latim traduzindo Horácio em versos.

Na chácara eram as correrias, brincadeiras, gritos do grupo de crianças : Zezinho,


Cecéu, Guilherme e as irmãs menores : Elisa, Adelaide e Amélia. A Boa Vista
marcaria para sempre o menino de treze anos : foi ali que viu pela primeira vez
uma senzala e o tronco para castigar escravos. Lá morreu Leopoldina, e Dona
Clélia, sua mãe. Quando a família se mudou para o Largo do Pelourinho, Cecéu
deixou escrito no portão : 'Adeus, Boa Vista querida ! Nunca mais te verei.'
A 9 de setembro de 1860, Antônio de Castro Alves, treze anos, recitava sua
primeira poesia em público : Ao Natalício do meu Diretor, o Ilmo. Sr. Doutor Abílio
César Borges.

”- Grato sempre à mocidade


Belo dia, hás de raiar,
Sempre ela muito contente
Mil flores te há de ofertar !”

Era dia de festa na escola, as festas de que tanto gostava o Dr. Abílio : discursos,
saudações, poesias. Sorridente e vaidoso, mostrava aos visitantes o progresso de
seus pupilos. Sua figura seria retratada depois, sob o nome de Aristarco, no
romance 'O Ateneu', de Raul Pompéia : 'Aristarco todo era um anúncio. Os gestos,
calmos, soberanos, eram de um rei - o autocrata excelso dos silábicos; a
pausa hierática do andar deixava sentir o esforço, a cada passo, que ele fazia
para levar adiante, de empurrão, o progresso do ensino
público...'

Mais tarde, já com o título de Barão de Macaúbas e dirigindo o Colégio Abílio, no


Rio de Janeiro, ele poderia lembrar com orgulho dois alunos que tivera na Bahia :
Castro Alves e Rui Barbosa.

Quando o Dr. Antônio Alves casou, pela segunda vez, com a viúva Maria Ramos
Guimarães, a 24 de janeiro de 1862, Cecéu e Zezinho estavam de malas prontas
esperando o vapor Oiapoque, que partiu no dia seguinte, levando-os para Recife.
Iam fazer os preparatórios para ingressar na Faculdade de Direito.
 
Três temas para definir a vida
Moravam, a princípio, no Convento de São Francisco, mas logo se mudaram para
uma pequena casa, ás margens de Capibaribe, que fora alugada por Luís Cornélio
dos Santos, um novo amigo.

Antônio e Luís Cornélio muitas vezes passearam juntos pelas margens do rio
perto da casa, a ler um pequeno caderninho de poesias. José Antônio não os
acompanhava nesses passeios. Ficava em casa, trancado no quarto, fumando,
tomando conhaque, lendo Byron e escrevendo poesias que escondia de todos.
Aquela lúgubre melancolia prenunciava seu triste fim : o suicídio, a 9 de fevereiro
de 1864.
Para entrar na faculdade, Castro Alves precisava passar nos exames. Preparava-
se para isso fazendo caricaturas, compondo versos e jogando bilhar. Por duas
vezes foi reprovado em geometria. Nem por isso se emendou. Em carta a um
amigo dizia :
”-Acho-me na insípida terra de Pernambuco. A razão ? Saí reprovado. Acharam
que eu não podia entrar numa academia tão ilustrada
!...(...) Minha vida, passo-a numa rede, olhando o telhado, lendo pouco, fumando
muito. Esta apatia mata-me.”

Sua vida, entretanto, não era tão insípida assim. A 23 de junho de 1862, cinco
meses depois de chegar, publicava o poema A Destruição de Jerusalém, no Jornal
do Recife, recebendo muitos elogios. E havia o Teatro Santa Isabel, centro onde
ocorriam os grandes lances da história da cidade. Nele se encontravam os atores,
representando no palco, e os jovens, que recitavam dos balcões elogios ás suas
intérpretes favoritas, observados pelos binóculos da alta sociedade. O teatro
tornara-se um prolongamento da faculdade; nos entreatos realizavam-se
verdadeiros torneios entre os estudantes, cada qual procurando ganhar para si os
aplausos.

Foi nesse ambiente que, em março de 1863, estreou a companhia de Antônio


José Duarte Coimbra, com Dalila, de Octave Feuillet. O personagem principal da
peça era o Sr. Carmoli, encarnado pelo famoso ator Furtado Coelho. O
entusiasmo dos jovens, no entanto, voltou-se para a Princesa Falconiére,
interpretada por Eugênia Câmara. E a cada nova peça apresentada crescia a
admiração dos estudantes. A 16 de abril, um rapazinho de dezesseis anos é
empurrado para a frente por seus colegas e declama :
”- Ergueste a voz em Dalila,
Contigo o artista adorei;
Depois em Lúcia choraste,
Contigo Lúcia chorei.

Era a primeira poesia de Castro Alves dedicada a Eugênia Câmara.


A 17 de maio o jornalzinho A Primavera revelava uma nova face de Cecéu :

”- Lá na úmida senzala,
Sentado na estreita sala,
Junto ao braseiro, no chão,
Entoa o escravo seu canto
E ao cantar correm-lhe em pranto
Saudades do seu torrão.”

Chegava ao público sua revolta contra a escravidão. Um mês depois, enquanto


compunha outra poesia para Eugênia, Castro Alves escarrou sangue pela primeira
vez. Eugênia, os escravos, a tuberculose : seriam as três constantes de sua vida
breve.
 
Entre as trevas e a luz
Se não era um estudante aplicado, era ao menos persistente : em março de 1864,
ainda abalado pela morte do irmão, ingressava na faculdade. Fora aprovado
simplesmente, enquanto seu colega Tobias Barreto recebia o plenamente. Em
torno dos dois giraria, em seguida, a vida acadêmica, ao masmo tempo que
nasceriam os germes do movimento mais tarde cérebre sob o nome de Escola do
Recife.
Era uma geração de jovens empenhados em transformar a fisionomia da cidade
através de novos programas culturais, sociais e políticos. Tobias era o teórico, o
erudito, o filósofo. Castro Alves, o orador, o poeta. Na faculdade, o que menos
atraía sua atenção eram as aulas. Preferia a convivência dos corredores, a
atmosfera das discussões, as atividades menos sérias. Em junho, com Luís
Ferreira Maciel Pinheiro e Antônio Alves de Carvalhal, criava o jornalzinho O
Futuro. Depois de alguns artigos sobre poesia, publicou, no quarto número, uma
sátira à academia e aos estudos jurídicos. À faculdade, preferia as noitadas do
Santa Isabel.

Sua vida, como diria mais tarde a um amigo, oscila entre 'trevas e luz, tormentos e
bonanças'. Dia 7 de outubro, á noite, provou o gosto da morte. Uma dor no peito,
aguda e opressiva, a tosse incontrolável, o sangue na boca. Lembra sua mãe,
morta pela tuberculose, o pai, fraco do peito, o irmão suicida, os poetas que
morriam aos vinte anos : Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu,
Junqueira Freire. E sente medo, o medo que lhe dita uma longa poesia. No início
de cada estrofe, a mocidade, suas esperanças :

”- Oh ! Eu quero viver, beber perfumes


Na flor silvestre, que embalsama os ares;
Ver minh'alma adejar pelo infinito,
Qual branca vela n'amplidão dos mares.

Nos dois últimos versos, a morte :


- Mas uma voz responde-me sombria :
Terás o sono sob a lájea fria.”

Chamou-lhe O Phtysico, depois publicada sob o título de Mocidade e Morte. E


acrescentou, á margem : 'No sótão ao toque da meia-noite, quando o peito me
doía e um pressentimento me passava n'alma'.

Vinte dias depois embarcava precipitadamente para a Bahia, faltando aos exames
e, portanto, perdendo o ano. Para ele, isso tinha pouca importância. Queria
recuperar a tranquilidade na paz do lar paterno.
 
O encontro com o jovem mestre
Em Salvador, pareceu recuperar-se. O poeta, pálido e de olheiras, entregou-se á
ociosidade da casa da Rua do Sodré, onde estava agora morando a família, e dos
círculos literários, sem escrever nem se preocupar.
Já não pensava na tísica quando, em março de 1865, embarcou no Oiapoque de
volta para Recife. No navio encontrou um rapaz pouco mais velho que ele, de
barba e cabelos longos, também pálido e poeta. Era Luís Nicolau Fagundes
Varela, já com dois livros publicados - Noturnas e Vozes da América - e famoso
pela boêmia que levara em São Paulo. Por ordem do pai, ia para Recife
matricular-se no terceiro ano de direito e tentar esquecer a bebida, os escândalos
amorosos, a prematura morte de um filho. Os conselhos paternos,
no entanto, se mostrariam inúteis : Varela voltaria para São Paulo, iria para a
fazenda da família no Estado do Rio, e terminaria sua vida perambulando pelas
estradas e tavernas da região. Foi um fim semelhante ao de muitos poetas de sua
geração : a boêmia desesperada, o desencanto pela vida, uma maneira de se
rebelar contra a sociedade.

Para Castro Alves, com dezoito anos, conhecer Fagundes Varela foi encontrar um
mestre. Mais tarde ele diria que seus dois poetas preferidos eram : dos mortos,
Casimiro de Abreu; e entre os vivos, Fagundes Varela. A alegria do encontro fez a
viagem mais breve. Logo estava em Recife, de volta ao curso de direito. Como já
conhecia a matéria - repetia o primeiro ano -, raramente aparecia na faculdade.
Vivia agora num quase refúgio, no bairro de Santo Amaro, com a misteriosa
Idalina.

Apesar de morar isolado e preferir uma rede preguiçosa e os carimhos da amada,


Castro Alves não se omitia dos conflitos do momento. Em maio, Luís Ferreira
Maciel Pinheiro era condenado pelo diretor da faculdade a quatro meses de prisão
escolar no andar térreo do Colégio das Artes. Seu crime : criticara a academia
num artigo do Diário de Pernambuco. Cecéu comanda os colegas que vão visitar
Maciel Pinheiro e fazem sua defesa apaixonada. E escreve o poema Pedro Ivo ,
exaltando o revolucionário da Praieira e o ideal republicano:

”- República !...Vôo ousado


Do homem feito condor!”

Novamente o condor aparece em sua poesia, simbolizando a liberdade. Mais


tarde, os críticos o chamariam de 'poeta condoreiro'.

No retiro da Rua do Lima, zona quase campestre, Castro Alves vai escrevendo as
poesias que formariam o livro Os Escravos. Dia a dia surgem poemas vibrantes
em que descreve a miséria do cativeiro e clama pela abolição e pela vingança :
”- Cai, orvalho de sangue do escravo,
Cai, orvalho, na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz.”

São os escravos que falam nestas estrofes de O Bandido Negro :

”- Somos nós, meu senhor, mas não tremas,


Nós quebramos as nossas algemas
Pra pedir-te as esposas ou mães.
Este é o filho do ancião que mataste.
Este - irmão da mulher que manchaste...
Oh, não tremas, senhor, são teus cães.”

A 11 de agosto de 1865, a abertura solene das aulas anuais. A sociedade


pernambucana reunia-se no salão nobre da academia para ouvir os discursos e
saudações de autoridades, professores e alunos. Mas foi com indisfarçável mal-
estar que ouviu a inflamada oratória do boêmio da Rua do Lima.
Estrofe após estrofe, o poeta desfila as disparidades sociais e injustiças do século
de aparente grandeza e progresso. As imagens são cada vez mais arrojadas,
cresce a violência:

”- Quebre-se o cetro do Papa,


Faça-se dele uma cruz !
A púrpura sirva ao povo
Pra cobrir os ombros nus.
(...)Banhem-se em luz os prostíbulos.
E das lascas dos patíbulos
Erga-se estátua aos heróis !”

Os mais velhos ainda olham espantados para aquele jovem bem trajado, de fartos
cabelos, com enorme gravata colorida. Os estudantes deliram.

Uma semana depois abria-se em Recife o voluntariado para a Guerra do


Paraguai. Cecéu foi dos primeiros a se alistar no batalhão acadêmico. Dia 20, no
Teatro Santa Isabel, oferecia-se uma festa cívica aos corajosos estudantes.
Castro Alves declamou Aos Estudantes Voluntários. Maciel Pinheiro, ainda preso,
quer partir para o campo de luta. É ainda Castro Alves que o elogia no poema A
Maciel Pinheiro. Mas as tropas não partem, e a vida continua.

No teatro, lá está ele saudando a atriz Adelaide Amaral, que mais tarde dividiria
com Eugênia Câmara a admiração dos jovens. Se nada de importante acontece,
ele se entrega completamente a Idalina, amando e escrevendo.
 
No teatro, uma guerra de amor
A vida do poeta baiano, como ele mesmo dissera, oscilava entre 'tormentos e
bonanças'. Um mês depois, a 23 de janeiro de 1866, morria o Dr. Antonio José
Alves, deixando cinco filhos menores de catorze anos. As responsabilidades
deveriam ficar divididas entre a viúva e o filho mais velho, agora com dezenove
anos. Ele, contudo, só sabia mesmo escrever poesias.

A casa dos Alves vivia dias tristes e sombrios. Mas defronte, onde morava o
rabino Isaac Amzalack, seguidamente ouviam-se acordes de um piano. Cecéu, da
janela, pôde ver quem tocava : as filhas de Amzalack, Simy, Ester e Mary, todas
muito bonitas. Apaixonou-se por elas, principalmente por Ester, enviando a poesia
Hebréia dedicada 'à mais bela das três', o que provocou brigas e choro entre as
irmãs. Cecéu passava os dias a espreitar a casa, esperando ver Ester :
”- Á tarde, quando chegas á janela,
Co'a trança solta onde suspira o vento,
Minh'alma de joelhos te contempla
A teus pés vai gemer meu pensamento.”

A faculdade, entretanto, o esperava para o segundo ano. Em março de 1866 já


estava de volta, fundando, com Augusto Álvares Guimarães, João Batista
Regueira Costa, Plínio de Lima, Luís Guimarães Júnior e Rui Barbosa, uma
sociedade abolicionista. Às palavras de seus versos juntava a ação organizada de
uma entidade. Por outro lado, começava a esquecer Idalina. Um novo amor
nascia: Eugênia Câmara. Dos balcões do teatro declama cada vez mais
apaixonado. Escreve um artigo - Impressões do Teatro -, onde se mostra
inconformado com o papel secundário dado a Eugênia em
Gaspar Hauser.

Em O Vôo do Gênio, escrito em maio de 1866, confessa que havia encontrado


Eugênia :
”- Um dia, em que na terra a sós vagava
Pela estrada sombria da existência,
Sem rosas - nos vergéis da adolescência,
Sem luz d'estrela - pelo céu do amor.”

Na mesma época fundou o jornal A Luz, onde publicou duas poesias, acusadas de
plágio pela Revista Literária. O crítico impiedoso não assinara, mas sabia-se quem
era o autor : Tobias Barreto. O poeta pediu confirmação da autoria e a resposta
veio :
”- Justamente, Sr. Castro Alves. Sou eu mesmo. Quer responder ? É um favor.
Peço-lhe que me encare sob todos os pontos de vista, a fim de que depois não me
chame pouco generoso. Sim, Sr.. Considere-me como homem, como escritor na
prosa e no verso, como cidadão e até como filho... Dê-me por todas as faces...
Assim espero. E para facilitar e abreviar mais a sua resposta, mandar-lhe-ei levar
alguns versos meus que um amigo tem reunido, pedindo-lhe o favor de que me
mande alguns seus, ao menos os que tem aqui publicado.

A guerra entre os dois líderes, deflagrada pela imprensa, se passaria


principalmente nos balcões do teatro. Tobias Barreto comandava um grupo que
defendia Adelaide Amaral e atacava Eugênia Câmara. Castro Alves liderava os
partidários de Eugênia, seu grande amor. A sociedade de Recife assistia
incomodada e escandalizada ao combate, travado com armas singulares :
poesias, vaias, batidas de pés, aplausos. E, depois das batalhas, os guerreiros
festejavam as vitórias com grandes jantares e bebedeiras.

A vitória final, no entanto, Castro Alves não conseguira. Extasiado com o mistério
e a sensualidade de Eugênia Câmara, mulher madura, exuberante e livre, o rapaz
de dezenove anos lança seus apelos :

”- Por que tardas, meu anjo ? Oh vem comigo.


Serei teu, serás minha... É um doce abrigo
A tenda dos amores !(...) Vem ! Serei teu poeta, teu amante...
Vamos sonhar no leito delirante,
No templo da paixão.”

Eugênia sorri, fascinada pela audácia daquele rapaz dez anos mais moço do que
ela. Sente que está se apaixonando pelo jovem. Hesita, entretanto, pois arriscará
sua carreira. Mas Castro Alves volta á carga :

”- Vamos Eugênia, fugindo,


A todos sempre sorrindo,
Bem longe nos ocultar.
Como boêmios errantes
Que repetem delirantes :
Pra ser feliz basta amar !”

Como resistir aos pedidos apaixonados de um belo poeta ? No fim de setembro


todo o Recife já sabia : Eugênia fora morar com o acadêmico Castro Alves numa
casinha retirada do Barro, um pequeno e pobre bairro entre Recife e Tejipió.

Numa manhã de novembro, novamente chegam os amigos, gritando : 'Castro


Alves ! Você está sendo chamado para o exame !' E o poeta, irritado : 'Que é isto !
Não façam barulho. Ela acaba de dormir agora...'.
Desta vez foi aprovado plenamente, respondendo com brilhantismo sobre Divisão
de Poderes e O Poder Temporal do Papa.

No Barro, o casal vive intensos momentos de felicidade que o poeta evocaria, em


1870, no poema Aves de Arribação. E o poeta acalentava novo projeto : um drama
para ser representado por sua amada. Era Gonzaga ou A Revolução de Minas, no
qual Castro Alves trabalhou febrilmente durante dois meses, auxiliado pela
experiência teatral de Eugênia. A luta de independência, no entanto, era
um pretexto para falar de seu tema favorito : a abolição da escravatura. O negro
Luís, envolvido na conspiração por amor á sua filha Carlota, sofrendo o peso de
sua condição desumana, era um personagem de protesto que Castro Alves atirava
a toda uma classe de dominadores e senhores escravistas.

Terminada a peça, tentou montá-la, mas o empresário de Eugênia, Duarte


Coimbra, não gostou do texto. Decidiu então partir para a Bahia, abandonando o
terceiro ano da faculdade.
 
Um drama percorre o Brasil
A 1º de junho de 1867, Castro Alves, Eugênia Câmara e sua filha, a pequena
Emília (cujo pai era o ator Furtado Coelho), desembarcavam em Salvador. A Bahia
Ilustrada noticiou : 'Entrou neste porto a Sra. Dona Eugênia Câmara, astro
rutilante do céu da cena, que vem acompanhada com seu satélite...'.

Apesar dos comentários, o poeta foi bem recebido pelos familiares e admiradores.
Todo dia era convidado para festas, reuniões literárias, comemorações. O
Conservatório Dramático elegeu-o sócio honorário, ao mesmo tempo em que
aprovava sua peça.

Enquanto cuidava da produção do Gonzaga, participava de atos públicos. A 2 de


julho saudou os heróis baianos da independência, entre os quais estava seu avô,
José Antônio da Silva Castro, comandante do famoso batalhão dos Periquitos. No
dia 3 de agosto, no Teatro São João, Eugênia declamou O Livro e a América.
A 7 de setembro, o teatro estava lotado, com a presença inclusive do presidente
da Província. Era a estréia de Gonzaga, com Eugênia no papel de Marília. Ao
final, sob aplausos, Castro Alves foi chamado ao palco e recebeu uma coroa de
louros com a inscrição : Ao Gênio. Depois, foi carregado em triunfo até o hotel.
Com a glória, vinham as preocupações. Em torno de Eugênia formava-se um
grupo de admiradores, dos quais o poeta sentia intensos ciúmes. Saiu do hotel
para a Boa Vista, reencontrando o cenário de sua infância. Lá escreveu A Boa
Vista e Sub Tegmine Fagi.
No início de 1868 decidiu levar o Gonzaga para o Rio de Janeiro, partindo com
Eugênia e uma carta de apresentação para José de Alencar.

A 17 de fevereiro visitou o famoso romancista em sua casa da Tijuca, lendo para


ele a peça e recitando várias poesias. Alencar, entusiasmado, escreveu no dia
seguinte uma carta para Machado de Assis, então o único crítico atuante na
imprensa, recomendando o jovem poeta baiano. Machado foi procurá-lo no hotel e
teve que esperar : Castro Alves estava nas ruas, divertindo-se no carnaval. O
poeta voltou cansado, mas fez questão de mostrar ao crítico suas produções.
No dia 22, Machado publicava um elogioso artigo no Correio Mercantil :
- Parece ao poeta que o tablado é pequeno; rompe o céu de lona e arroja-se ao
espaço livre e azul...Deve fazê-lo sem temor. Contra a conspiração da indiferença,
tem V. Exa. um aliado invencível : é a conspiração da posteridade.

Apadrinhado por Alencar e Machado, Castro Alves logo conquistou os círculos


literários, e também a multidão, quando declamou, da sacada do Diário do Rio de
Janeiro, o Pesadelo de Humaitá, saudando o heroísmo brasileiro na Guerra do
Paraguai.

Mas o objetivo da viagem fracassou : quem dominava o teatro carioca era Furtado
Coelho, o pai de Emília, que recusou o Gonzaga.
 
Na terra da garoa e da boêmia
Não conseguia encenar seu drama no Rio de Janeiro ? Pois bem, iria para São
Paulo, onde poderia inclusive retomar seus estudos. A 13 de março partia de
navio, no dia seguinte tomava o trem de Santos a Jundiaí. Poucas horas depois
estava no Hotel da Itália, perto da faculdade.

São Paulo era a cidade dos jovens intelectuais. De todo o Brasil eles vinham para
estudar direito, conversar e discutir nos corredores da faculdade, passar noites de
boêmia nas repúblicas, onde moravam desorganizadamente. Ali havia morado
Álvares de Azevedo, morto aos 21 anos; ali se comentavam as loucuras de
Fagundes Varela, agora vivendo na fazenda do pai. Cidade do pensamento
liberal, cujo mestre era o Professor José Bonifácio, o moço (sobrinho e neto do
Patriarca), e que contava entre os discípulos Nabuco e Rui Barbosa. Cidade
dominada pelos estudantes. Estavam todos ansiosos para ouvir o baiano recém-
chegado, que eles sabiam ser 'um dos seus'. Organizou-se uma reunião do
Arquivo Jurídico e Literário para a apresentação do poeta ao 'povo' de São Paulo.
Castro Alves recitou O Livro e a América, A Visão dos mortos e As Duas Ilhas.
Daí por diante ele seria presença obrigatória em todas as reuniões intelectuais da
Província.
Apesar de pouco frequentar as aulas, sempre ás voltas com Eugênia e a peça que
queria montar, torna-se grande amigo de José Bonifácio. Com Eugênia, as coisas
não iam bem. Repetiam-se as cenas de ciúme do poeta, a atriz já não tinha a
mesma afeição por ele. Por fim, irritada, Eugênia colocou os pertences do poeta
na rua e Castro Alves foi morar numa república, como os outros estudantes.
Marchava para o fim o maior amor de sua vida. Mas não abandonava sua luta. A
11 de junho lançava o grito :

”- Deus! Ó Deus! Onde estás que não respondes?


Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes...”

Eram as Vozes d`África, que por 114 versos, lamentavam, gemiam e bradavam a
dor do cativeiro. E continuava a declamar seus protestos. Nas reuniões que os
liberais promoviam, sempre se ouviam três vozes : Joaquim Nabuco, Rui Barbosa
e Castro Alves. Eram os líderes.

Após o 2 de julho, data que não deixava passar sem evocar os patriotas baianos,
chegava o 7 de setembro. Neste ano de 1868, Castro Alves tinha uma poesia
especial para a data : “Stamos em pleno mar...”

Nas primeiras filas do Ginásio Literário estavam as senhoras com suas filhas, os
poderosos fazendeiros. Diante deles, o poeta, flor na lapela, desfilou os horrores
de O Navio Negreiro. E terminou exaltado:

”- Existe um povo que a bandeira empresta


Pra cobrir tanta infâmia e cobardia!...(...)
Auriverde pendão da minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que á luz do sol encerra,
As promessas divinas da esperança...
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha
Que servires a um povo de mortalha!(...)
Andrada! arranca esse pendão dos ares!...
Colombo! fecha a porta de teus mares!...”

Aplausos, vivas, aclamações. Castro Alves foi carregado pelas ruas para a
república dos baianos, onde passou a morar com Rui Barbosa.
Sua grande preocupação, no entanto, continuava sendo o Gonzaga. Já tinha
financiamento do Barão de Iguape e procurava agora um grande ator para o papel
principal. Conseguiu finalmente a participação de Joaquim Augusto Ribeiro de
Sousa. Começaram os ensaios, onde encontrava Eugênia, sua Marília, e
relembrava a felicidade que conheceram juntos. Na mesma época, fins de
outubro, devia prestar exames na faculdade. Primeiro, foi a batalha para que os
professores abonassem suas faltas. Depois, tratou de procurar os colegas para
saber a matéria das provas e ouvir rápidas explicações sobre cada ponto. Um
dos companheiros, Rodrigues Alves, mais tarde presidente da República, foi seu
'professor' e Castro Alves conseguiu um bom... Sua oratória havia convencido os
mestres.

Domingo, 20 de outubro de 1868, foi representado o Gonzaga no Teatro São


José, para uma platéia repleta. O sucesso foi maior do que em Salvador. Mais
uma vez consagrava-se. No entanto, não estava mais feliz. Olhando para o palco,
sentia a distância que crescia entre ele e Eugênia. Na vida atribulada que levava,
ela sempre lhe voltava ao pensamento.

Passa alguns dias retirado. A 11 de novembro, numa manhã ensolarada, saiu em


direção ao Brás, espingarda a tiracolo. Ia caçar para passar o tempo. Ao saltar um
riacho, aconteceu o acidente : a arma disparou, atingindo-o com uma carga de
chumbo no calcanhar esquerdo. Recolhido á república, Castro Alves recebe a
visita dos amigos. São Paulo inteira se preocupa. A princípio, parece não ser
nada. Depois, o ferimento encontra um aliado na tuberculose que progredia.
Dores, febres, hemorragias, delírios, os amigos sempre á cabeceira. Durante
meses ele permanece na cama.
 
O fim de um amor
Por causa do frio e da garoa, os médicos resolveram levá-lo para o Rio. Aí, na
casa de Luís Cornélio, examinando o ferimento, decidiram que seria preciso
amputar o pé.

1º de junho, o médico diz para o pálido poeta : 'Coragem, meu filho!' E era preciso
muita coragem mesmo, pois a operação seria a sangue frio : seu estado pulmonar
não recomendava anestesia por clorofórmio. A amputação foi rápida, Castro Alves
comportou-se com incrível coragem, e dias depois já escrevia versos para todas
as moças que o rodeavam.

Em São Paulo, os amigos do poeta impediam Eugênia de representar, forçando-a


a abandonar a cidade. No Rio, ela entrou para o Teatro Fênix Dramática, onde
Castro Alves a reencontrou. Estivera onze meses em convalescença e apoiava-se
em muletas, disfarçando a falta do pé com uma botina cheia de algodão. Parece
que tudo voltaria a ser como antes. Ilusão. Ambos sabem que é impossível. A 17
de novembro ele escreve:
”- Adeus! Pra sempre adeus...
Sinto que vou morrer! Posso, portanto,
A verdade dizer-te santa e nua
Não quero mais teu amor! Porém minh'alma
Aqui, além, mais longe, é sempre a tua.”

Eugênia responde de madrugada, entre lágrimas:

”- Adeus! Se um dia o Destino


Nos fizer ainda encontrar
Como irmã ou como amante
Sempre! Sempre, me hás de achar!”

A separação era definitiva. O poeta partia para a Bahia, Eugênia ficava no Rio,
onde casaria com o Maestro Antônio Assis Osternoff. Em 1874 morreria de
encefalite, aos 37 anos. Até o fim declamou as poesias de seu antigo amado.
 
Um novo amor no fim

Com 23 anos, Castro Alves voltava para a Bahia, em busca de melhores ares para
seu combalido pulmão. Em fevereiro de 1870 já estava em Curralinho, na fazenda
dos parentes maternos onde passara suas férias em menino. Era agora um rapaz
muito magro, pálido, os ombros altos, cabeça inclinada, a tristeza de andar sobre
muletas. É quando escreve:

”- Só e triste, encostado á borda do navio, eu seguia com os olhos aquele


esvaecimento indefinido; minha alma apegava-se á forma vacilante das
montanhas - derradeiras atalaias dos meus arraiais da mocidade. É que lá, dessas
terras do sul, para onde eu levara o fogo de todos os entusiasmos, o viço de todas
as ilusões, os meus vinte anos de seiva e de mocidade, as minhas esperanças de
glória e de futuro;... volvia agora silencioso e alquebrado... trazendo por única
ambição - a esperança de repouso em minha pátria.”

Este texto seria o prólogo de Espumas Flutuantes, livro que Castro Alves se
empenharia em publicar. Preocupava-se com a sobrevivência de sua obra, até
então espalhada.

Enquanto vive em Curralinho, cavalgando, escrevendo cartas e poesias,


desenhando e passeando com Leonídia Fraga, amiga de infância agora
reencontrada, Álvares Guimarães trata da edição do livro.

O poeta piora. A 2 de julho, dia de tantas glórias, ele quer declamar sua ode aos
moradores de Curralinho. Mas tem que pedir a um amigo que leia a poesia,
enquanto chora. Quem sabe mais para dentro do sertão ? Vai para a fazenda do
irmão de Leonídia, em Santa Isabel. Escreve versos inspirados pela natureza
agreste que o cerca, mais tarde reunidos em A Cachoeira de Paulo Afonso. Evoca
as mulheres que tinha amado em Os anjos da Meia-Noite. E sente-se melhor.
Ansioso pela saída do livro, retornou a Salvador em setembro. Por algum tempo
voltava-lhe o otimismo.

O novo ano traz outra musa para o poeta : Agnese Trinci Murri, professora de
canto e piano de suas irmãs. 'Alta, esbelta, alva como um mármore de Carrara,
mãos aristocráticas, olhos e cabelos negros, boca e voz deliciosas', ela inspira
poesias apaixonadas. Mas faz que não entende : casada, embora o marido a
tivesse abandonado, era recebida na sociedade baiana por sua corretíssima
conduta.

Em fevereiro, na Associação Comercial, Castro Alves tomou parte em seu último


ato público: declama No Meeting do Comité du Pain em favor das vítimas
francesas da guerra franco-prussiana.

Até abril ele ainda frequentava salões, embora sem dançar, e acompanhou
Agnese ao teatro e a passeios na Barra. A 30 de abril publicou em O Abolicionista
uma Carta ás Senhoras Baianas, pedindo donativos para uma sociedade
antiescravista. Até o fim ele se manteve fiel a essa luta.

O inverno chegava. Diariamente, Cecéu espera sentado, enrolado num xale, a


chegada de Agnese. Ao seu cumprimento, ela responde com um sorriso distante.
Diariamente ele escreve poesias para ela, onde confessa sua paixão. Agnese lê
emocionada, mas resiste. Ele tenta beijá-la, ela recua : 'Mulher beijada, mulher
desonrada!' Vem o despeito, em Remorsos :
”Fria Carlota! cobre-te de pejo!...
Mataste á sede um'alma!
Fizeste o crime...de negar um beijo!
Chora que este remorso é sem remédio!!!”

Agnese não cede, colocando acima de tudo sua reputação.

Na véspera de São João, Cecéu quer chegar á janela onde outrora observara as
irmãs Amzalack. Quer ver a Fogueira, os fogos, as brincadeiras. Na sacada ele
aspira o ar noturno que traz o cheiro de madeira queimada. E tosse, sente
vertigem, quase tomba das muletas. Senta-se ao piano e recita, baixinho, quase
um lamento, os versos de Álvares de Azevedo:
“- Se eu morresse amanhã,
Viria ao menos
Fechar meus olhos
Minha triste irmã...”

Um novo 2 de julho encontra o poeta tossindo, quase sem forças. No Teatro São
João há comemorações e Agnese vai cantar. Ela hesita diante do estado de seu
admirador. Mas ele ordena que ela participe dos festejos. Sente o fim próximo e
pede que o coloquem no quarto da frente, onde poderia 'morrer olhando para o
infinito azul'. Proíbe a entrada de visitas, exceto os irmãos, Álvares Guimarães e o
médico. Agnese sente remorsos, é Adelaide quem conta:

”-Agnese quis vê-lo. Pediu-me que implorasse junto a Cecéu a permissão...Não


era justo...que a deixassem ficar perto dele, amparando-o nos últimos dias... Tanto
ela chorou que me resolvi a fazer o pedido...Quando o formulei a Cecéu,
iluminaram-lhe os olhos de lágrima. E tomando-me as mãos implorou : Não! Não a
deixe entrar... Ela, mais do que ninguém, não deve guardar de mim uma
lembrança de ruína. Que recorde como sempre me viu, como me conheceu... Não!
não a deixe entrar...”

Agnese só entraria no quarto na tarde de sexta-feira, 6 de julho de 1871. O poeta


estava morto.

Texto extraído de GRANDES PERSONAGENS DA NOSSA HISTÓRIA. Castro


Alves, São Paulo : Nova Cultural, n. 5, 1987.
CASTRO ALVES
           Antônio Frederico de Castro Alves nasceu em Curralinho,
Bahia, em 1987. Morreu em 1871 aos 24 anos de idade, após uma
vivência muito boêmia. Sempre foi um dos melhores alunos na
classe, logo estudou direito em Recife e depois em São Paulo. Com
o tempo se destacou como poeta dos escravos defendendo a
abolição da escravatura no Brasil. Seu principal hobby era atirar e
sua musa inspiradora era a paulistana Maria Amália.
           Castro Alves foi um poeta sensível aos graves problemas
sociais de seu tempo. Expressou sua indignação contra as tiranias e
representou o grito do povo. A poesia abolicionista é sua melhor
realização nessa linha ,denunciando a crueldade da escravidão
através de antíteses e hipérboles, estas quase sempre eram
empregadas à elementos da natureza que surgerem força e
imensidão. À esse estilo declamatório denomina-se condoreirismo.
           Sua obra prima é "O Navio Negreiro". Esta fora feita durante
uma viagem que ele fez de volta ao Brasil quando embarcou em um
navio de escravos trazidos da África. Ele escreveu ainda os
seguintes livros: Espumas Flutuantes, A Cachoeira de Paulo Afonso
e Os Escravos.
           Além de ter sido o maior representante da 3ª Geração
Romântica no Brasil, Castro Alves também se destacou no Teatro
fazendo o drama Histórico Gonzaga ou a Revolução de Minas.
Dentre suas obras classificadas como sociais estão: O Navio
Negreiro(18/4/1868) , Vozes d'África e Os Escravos. Suas obras
classificadas como líricas são: Espumas Flutuantes, Hinos do
Equador e Cachoeira de Paulo Afonso.
Espumas Flutuantes
Castro alves
Vida fugaz e intensa
(Biografia)
    Antonio Frederico de Castro Alves nasceu em 14 de março de 1847, na fazenda
Cabaceiras, em Curralinho, hoje Castro Alves, na Bahia.  Cursou Humanidades no
Ginásio Baiano, onde já recitava seus primeiros poemas.
    Em 1862, transfere-se para o Recife, a fim de ingressar na Faculdade de
Direito. Entusiasmado com as idéias liberais e abolicionistas dos jovens
acadêmicos da época, dedica-se à poesia e ao desenho, freqüenta os teatros e
começa a publicar seus versos na imprensa. Não conseguiu ingressar na
faculdade em 1863 (foi reprovado no exame de Geometria). Nesse ano, além de
estudar Geometria, publica seus primeiros versos abolicionistas, A Canção do
Africano, no jornal acadêmico A Primavera; conhece a atriz portuguesa Eugênia
Câmara, dez anos mais velha, por quem viria a se apaixonar, e apresenta os
primeiros sinais de tuberculose.
    Castro Alves entra na Faculdade de Direito em 1864, onde se destaca mais
pelos poemas recitados nos teatros e comícios estudantis, muitas vezes de
improviso, do que pelo afinco nos estudos. O seu primeiro grande sucesso público
acontece no aniversário dos cursos jurídicos, em 11 de agosto de 1865, quando
recita O Século no salão de honra da Faculdade. Nesse mesmo mês, começa a
preparar o livro Os Escravos. Divide seu tempo entre a poesia libertária, as
atividades acadêmicas e Idalina, companheira com quem vive num bairro retirado
do Recife.
    Em 1866, funda, com Rui Barbosa e outros colegas de curso, uma sociedade
abolicionista, e lança o jornal de idéias A Luz. Nesse mesmo ano, apaixona-se por
Eugênia Câmara e vai morar com ela nos arredores da cidade. Para a amada,
traduz peças francesas e compõe o drama Gonzaga ou a Revolução de Minas.
    Em 1867, mudam-se para Salvador, onde encenam a peça com grande
sucesso. Castro Alves dedica-se a terminar Os Escravos e cria A Cachoeira de
Paulo Afonso, poema que será o epílogo do livro. Nesse mesmo ano, escreve Sub
Tegmine Fagi e outras poesias.
Disposto a terminar o curso de Direito em São Paulo e animado pelo sucesso da
peça em Salvador, Castro Alves embarca, na companhia de Eugênia, para o Sul,
em fevereiro de 1868. De passagem pelo Rio de Janeiro, lê o seu drama e
algumas poesias a José de Alencar, que depois o apresenta a Machado de Assis.
Ambos ficam impressionados com seu talento e Machado o elogia publicamente
no Correio Mercantil.
    No final de março, já morando em São Paulo, Castro Alves é recebido como um
ídolo. Freqüenta pouco a Faculdade. Dedica-se a escrever poemas, como As
Vozes d'África e Navio Negreiro, recitá-los e preparar a representação do
Gonzaga por Joaquim Augusto, o maior ator brasileiro da época, o que viria a se
realizar com grande sucesso em outubro.
O relacionamento com Eugênia Câmara conturba-se: Eugênia retorna ao palco e
as brigas por ciúmes se sucedem. Eugênia o abandona definitivamente em
setembro. Angustiado e deprimido, Castro Alves pára de ler e escrever, somente
passeia e vai à caça, ainda que não dispare nem um tiro. Em 1 de novembro, sai
mais uma vez para caçar no Brás, nos arredores da cidade e, ao saltar uma vala,
a arma dispara e o tiro acerta-lhe o pé esquerdo. O ferimento infecciona e a
tuberculose volta a se manifestar. Em 19 de maio de 1869, embarca para o Rio de
Janeiro, onde, no começo de junho, seu pé é amputado, sem anestesia. A
convalescença é lenta e dolorosa.
    Em 25 de novembro, Castro Alves embarca para a Bahia, cercado de amigos e
parentes. Durante a viagem, contemplando a esteira de espumas que forma o
navio no mar, tem a idéia de reunir seus poemas num livro e lhe chamar Espumas
Flutuantes.
A conselho médico, em fevereiro de 1870, vai para Curralinho, no sertão baiano e,
depois, à fazenda Santa Isabel, no Rosário do Orobó, onde termina Cachoeira de
Paulo Afonso. A aparente melhora de saúde o faz retornar a Salvador em
setembro. Em outubro, é lançado o livro Espumas Flutuantes. Em janeiro de
1871, ele ainda faz versos, como A Violeta, que dirige à cantora Agnèse Trinci
Murri. No entanto, a doença se agrava.
    No dia 6 de julho de 1871, aos 24 anos, o Poeta dos Escravos morre, junto a
uma janela banhada de sol, para onde fora levado em cumprimento do seu último
desejo.
 

Condoreirismo
    Castro Alves foi o principal e mais popular representante do estilo romântico
que predominou na poesia brasileira entre 1850 e 1870, denominado condoreiro
por Capistrano de Abreu (1853-1927). É caracterizado por uma poesia retórica,
repleta de hipérboles e antíteses, em que se destacam os temas sociais e
políticos, principalmente a defesa da abolição da escravatura e a apologia da
república.
    Os poetas condoreiros foram influenciados diretamente pela poesia social de
Vitor Hugo - o Condoreirismo é o hugoanismo brasileiro. De teor declamativo e
pendor social, um de seus símbolos mais freqüentes é a imagem do condor dos
Andes, pássaro que representa a liberdade da América, o que sugeriu a
Capistrano de Abreu a denominação dada ao estilo.
    A forma mais típica dessa poesia é a décima composta de uma quadra (abab
ou abcb) e uma sextilha (ddeffe) de versos heptassílabos, como na poesia O Livro
e a América de Espumas Flutuantes:
 
Por isso na impaciência
Desta sede de saber,
Como as aves do deserto --
As almas buscam beber...
Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe -- que faz a palma,
É chuva -- que faz o mar.
    Outros poetas, como Tobias Barreto (1839-1889),  José Bonifácio, o Moço
(1827-1886) e Pedro de Calasãs (1837-1874) cultivaram e defenderam o
condoreirismo enquanto poesia de tese (científica), pública, política, rimando
artigos de fundo de jornal, metrificando manifestos do abolicionismo e
proclamações republicanas.
 

Espumas Flutuantes
    Espumas Flutuantes foi o único livro publicado em vida por Castro Alves.
Lançado no final de 1870, poucos meses antes de sua morte, abrange parte
importante da sua produção lírica. O livro reúne textos de caráter épico-social, de
amor, descritivos e traduções que revelam as influências do autor. Traça, assim,
um quadro geral da lírica do poeta, como se quisesse mostrar todas as
possibilidades de sua poética, documentando sua percepção do mundo e da
época em que vive. Apenas os poemas abolicionistas, pelos quais o poeta se
tornou tão conhecido, não constam do volume, pois esavam destinados ao volume
Os Escravos, que o poeta vinha organizando e não chegou a publicar inteiro
antes de morrer.
 

Ênfase social
    Castro Alves, o maior representante da última geração romântica, diferente dos
seus predecessores, como Junqueira Freire e Álvares de Azevedo, projeta o
drama interior do escritor (o eu), sua intensa contradição psicológica, sobre o
mundo. Enquanto que, para a geração anterior, o conflito faz o escritor voltar-se
sobre si mesmo, pois a desarmonia é resultado das lutas internas, para Castro
Alves, são as lutas externas (do homem contra a sociedade, do oprimido contra o
opressor) que provocam essa desarmonia. É outro modo de representar o conflito
entre o bem e o mal, tão prezado pelos românticos.
    Portanto, a poética deve se identificar profundamente com o ritmo da vida social
e expressar o processo de busca da humanidade por redenção, justiça e
liberdade. O poeta "condoreiro" tem um papel messiânico e afinado com o seu
momento histórico. Esse comprometimento faz a poesia se aproximar do discurso,
incorporando a ênfase oratória e a eloqüência.
    Nos poemas de caráter político-social de Castro Alves, como O Livro e a
América, Ode ao Dous de Julho e Pedro Ivo, a poesia é suplantada pelo discurso
político grandiloqüente e até verborrágico. Para atingir o alvo e persuadir o leitor e,
muito mais, o ouvinte, o poeta abusa de antíteses e hipérboles e apresenta uma
sucessão vertiniginosa de metáforas quie procuram traduzir a mesma idéia. A
poesia é feita para ser declamada e o exagero das imagens é intencional,
deliberado, para reforçar a idéia do poema. Os versos devem ressoar e traduzir o
constante movimento de forças antagônicas, como em Ode ao Dous de Julho:
 
Era no dous de julho. A pugna imensa
Travara-se nos cerros da Bahia...
O anjo da morte pálido cosia
Uma vasta mortalha em Pirajá
(...)
Era o porvir -- em frente do passado,
A Liberdade -- em frente à Escravidão,
Era a luta das águias -- e do abutre,
A revolta do pulso -- contra os ferros,
O pugilato da razão -- com os erros,
O duelo da treva -- e do clarão!...
        Resumindo, a poesia social de Castro Alves é caracterizada: pelo
discurso retórico, declamativo; uso exagerado de hipérboles e antíteses;
acúmulo sucessivo de metáforas; movimento, com o objetivo de demonstrar
concretamente o ritmo da luta da humanidade em busca da liberdade; e
impressionante capacidade de comunicação. A poesia, portanto, perde
terreno para a propaganda política. Pragmático, o poeta usa a poesia para
levar o leitor à ação, para transformar e não só para deleitar. Trata-se de uma
arte engajada no marketing das idéias sociais e políticas.
 

Lírica amorosa
    Castro Alves transformou a poesia lírico-amorosa do romantismo, mudando a
concepção temática do amor. Seus poemas, muitas vezes de fundo
autobiográfico, destacam-se pelo vigor da paixão, pela intensidade na expressão
do sentimento e da experiência amorosa realizada também no plano físico,
enquanto desejo e envolvimento sentimental e carnal. Isso o diferencia dos poetas
das gerações românticas precedentes, cuja poesia se dirige a uma amada
distante, idealizada, intocada e etérea. A amada do poeta é de carne e osso, não
é fruto da imaginação adolescente, como para os poetas que o antecederam. O
poema O "Adeus" de Teresa é um exemplo dessa amada, que passa a noite com
o eu lírico...:
 
Uma noite... entreabriu-se um reposteiro...
E da alcova saía um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus...
Era eu... Era a pálida Teresa!
"Adeus" lhe disse conservando-a presa...
E ela entre beijos murmurou-me: "Adeus!"
... e "tem o pé no chão", como no poema Adormecida:
Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.
    A paixão concreta, ardente e fecunda por Eugênia Câmara influenciou sua visão
poética do amor. Essa visão pode ser classificada não só como sentimental, mas
também como sensual, entendida como uma poesia que apela aos sentidos
(sensorial). É desse período o poema O Gondoleiro do Amor, em que a descrição
da amada é carregada de uma sensualidade sem precedentes no romantismo
brasileiro:
 
Teu seio é vaga dourada
Ao tíbio clarão da lua,
Que, ao murmúrio das volúpias,
Arqueja, palpita nua;
Como é doce, em pensamento,
Do teu colo no languor
Vogar, naufragar, perder-se
O Gondoleiro do amor!?
    A experiência do amor com a atriz inspirou seus mais belos poemas de
esperança, euforia, desespero e saudade, como É Tarde. Pela primeira vez, a
poesia é motivada pela paixão e pelo envolvimento do poeta, e a dor não se
traduz em lamentos e queixas. Seu sentimentalismo amoroso é maduro, adulto, e
se realiza em sua plenitude carnal e emocional.
    Castro Alves transforma a realidade imediata da sua experiência amorosa em
criação poética e utiliza-se, para traduzir esse movimento de união entre vida e
arte, de metáforas (imagens) ligadas à natureza, como revela o poema Aves de
Arribação:
 
É noite! Treme a lâmpada medrosa
Velando a longa noite do poeta...
Além, sob as cortinas transparentes,
Ela dorme, formosa Julieta!
Entram pela janela quase aberta
Da meia-noite os preguiçosos ventos
E a lua beija o seio alvinitente
-- Flor que abrira das noites aos relentos.
O Poeta trabalha!... A fonte pálida
Guarda talvez fatídica tristeza...
Que importa? A inspiração lhe acende o verso
Tendo por musa -- o amor e a natureza!
E como o cactus desabrocha a medo
Das noites tropicais na mansa calma,
A estrofe entreabre a pétala mimosa
Perfumada da essência de sua alma.
    Resumindo, a poesia lírico-amorosa de Castro Alves, reunida em Espumas
Flutuantes, diferencia-se dos românticos anteriores pela visão poética do
amor como sentimento plenamente vivenciado e concretizado no plano
emocional e no plano físico. O amor é descrito com vigor, desejo e
sensualidade, através de metáforas da natureza. A mulher amada é real, de
carne e osso e a paixão envolve e motiva o poeta a traduzir o relacionamento
amoroso em versos.
 

Herança
    Em vários poemas de Espumas Flutuantes, principalmente os de temática
existencial, evidencia-se ainda a influência do ultra-romantismo, de seu
conterrâneo Junqueira Freire e Álvares de Azevedo. As traduções de Lord Byron,
(ao lado das de Vitor Hugo) e algumas das epígrafes das poesias indicam a
importância dessa herança no fazer poético de Castro Alves. No entanto, - se na
geração do “mal-do-século”, a tônica era o pessimismo, o sentimento de
impotência diante da morte iminente, que, muitas vezes, representava uma saída
para o tédio da vida -, a visão de Castro Alves da existência é bem diferente:
demonstra uma imensa paixão pelo mundo, e a vida é vista com otimismo e
prazer. Na verdade, o poeta lamenta deixá-la, quando ameaçado pela doença que
o levaria à morte, pois viver é “glória!”, “amor!”, “anelos!”.
Enquanto Álvares de Azevedo afirma: “Eu deixo a vida como deixa o tédio / Do
deserto, o poento caminheiro”, Castro Alves “retruca”, no poema Mocidade e
Morte, escrito aos 17 anos, após as primeiras manifestações da tuberculose:
 
Oh! Eu quero viver, beber perfumes
Na flor silvestre que embalsama os ares
(...)
Morrer... quando este mundo é um paraíso,
E a alma um cisne de douradas plumas:
Não! O seio da amante é um lago virgem...
Quero boiar à tona das  espumas.
    Para Álvares de Azevedo, a vida é um deserto. Para Castro Alves, um paraíso.
Em Quando eu morrer, escrito em março de 1869, pouco antes de falecer, ele
repudia a morte, que afasta o morto do calor dos sentimentos da vida:
 
Quando eu morrer... não lancem meu cadáver
No fosso de um sombrio cemitério...
Odeio o mausoléu que espera o morto
Como o viajante desse hotel funéreo
(...)
Ei-la a nau do sepulcro -- o cemitério...
(...)
Ali ninguém se firma a um braço amigo
Do inverno pelas lúgubres noitadas...
No tombadilho indiferentes chocam-se
E nas trevas esbarram-se as ossadas...
Como deve custar ao pobre morto
Ver as plagas da vida além perdidas,
Sem ver o branco fumo de seus lares
Levantar-se por entre as avenidas!...
    E mesmo tratando da morte, Castro Alves lhe dá movimento e dinamismo ao
comparar os mortos, nesta mesma poesia, a:
 
Emigrantes sombrios que se embarcam
Para as plagas sem fim do outro mundo
    Castro Alves traduziu Byron, Musset e outros poetas que influenciaram o ultra-
romantismo da geração anterior. Porém, ao mesmo tempo em que traduzia seus
poemas, escrevia poesias como Aves de Arribação, A uma estrangeira e outras,
que demonstram uma reação poética aos traduzidos. Suas traduções estavam
muito ligadas às circunstâncias e sentimentos vividos no momento, mas também
representavam uma satisfação às solicitações da época. Traduzir bem era um
ponto de honra porque demonstrava cultura refinada e familiaridade com os
mestres do pensamento universal
    “Sou Don Juan!”, exclama Castro Alves em Os Três Amores. Em Os Anjos da
Meia Noite, adotando atitude tipicamente donjuanesca, dedica sonetos para uma
sucessão de sete mulheres. Daí supor que o Byron que inspirou Castro Alves
parece que foi muito mais o amante da liberdade, o nobre inglês que foi lutar,
heroicamente, pela independência da Grécia - e que escreveu o escandaloso
poema Don Juan -, do que o byronismo difundido pela geração romântica
precedente, através das traduções francesas adocicadas de Alfred de Musset,
caracterizado pelo aspecto mórbido e pessimista de se relacionar com a vida.
    Resumindo: Ainda há, em Castro Alves, influência da geração byroniana,
anterior a ele. Mas o poeta baiano encara a morte - e a vida - de outra
maneira: não é o escape, a solução para a dor vivente de Álvares de
Azevedo, e sim o fim do movimento e da alegria de viver. Herda de Byron
mais a atitude donjuanesca do que a tendência ao lamento.
 

Paisagem de palavras
    É preciso destacar a presença da natureza na poesia de Castro Alves,
permeada de imagens “naturais”, tanto da Terra quanto do Cosmos. Sua poesia
unifica o sentimento do poeta  ao sentimento da natureza, como em Aves de
Arribação.
    Mas é principalmente nos poemas de exaltação diante dos espetáculos
naturais, como Sub Tegmine Fagi, que a paisagem surge com intensa
plasticidade, descrita com a sensibilidade característica do poeta,
predominantemente visual. Castro Alves, nesses poemas descritivos, traça  belos
retratos paisagísticos, antecipando a linha descritivista pictórica da poesia
parnasiana,  como em Murmúrios da Tarde:
 
Ontem à tarde, quando o sol morria,
A natureza era um poema santo,
De cada moita a escuridão saía,
De cada gruta rebentava um canto,
Ontem à tarde, quando o sol morria.
    Resumindo: Em Espumas Flutuantes temos descrições vívidas e plásticas
da natureza brasileira que antecipam a preocupação descritivista de poetas
do Parnasianismo, como Alberto de Oliveira e Olavo Bilac.
 

As marcas do estilo
    Poucos poetas utilizaram, na língua portuguesa, tantas reticências, travessões e
pontos de exclamação quanto Castro Alves. A cada página do livro, os exemplos
se sucedem:
 
   Tanta descrença!... Tanta angústia!... Tanta!
 
   -- Boa noite! --, formosa Consuelo!...
    Através destes recursos gráficos, o poeta procura reproduzir a oralidade do
discurso exaltado da praça pública ou das declamações nos palcos. As reticências
indicam as pausas dramáticas que reforçam a ênfase discursiva marcada pelos
pontos de exclamação. Já os travessões têm dupla função. Por vezes aparecem,
como as reticências, como marcas de pausa na elocução:
  Mulher -- de lábio pálido -- e olhar -- cheio de luz.
    Em muitos outros momentos, aparecem como marca do discurso direto,
apresentando uma fala que se dirige a um interlocutor específico:
 
   -- Quem bate? -- “A noite é sombria!”
   -- Quem bate? -- “É rijo o tufão!...”
Castro Alves
 
 
BIOGRAFIA

   Antônio de Castro Alves nasceu na fazenda Cabaceiras, perto da vila de


Curralinho, hoje cidade Castro Alves, no Estado da Bahia, a 14 de março de 1847
e morreu na cidade de Salvador, no mesmo Estado, a 6 de julho de 1871.
         O mais brilhante dos poetas românticos brasileiros. Viveu os
primeiros anos da juventude no interior do sertão. Aos dezesseis anos foi para o
Recife, estudar Direito. Aí, começou desde logo a patentear uma notável vocação
poética e a demonstrar dotes oratórios pouco comuns, que mais tarde fizeram dele
um dos arautos do movimento abolicionista e da causa republicana.
Em 1867, conheceu a atriz teatral Eugênia Câmara, por quem se apaixonou.
Acompanhou-a à Bahia, onde escreveu o drama em prosa, Gonzaga, ou A
Revolução de Minas, que ela representou.
Algum tempo depois, o poeta decidiu-se a viajar para o Sul, a fim de terminar o
curso de Direito em São Paulo. De passagem pelo Rio de Janeiro, conheceu
Machado de Assis, que o introduziu nos meios literários.
Os seus amores pela atriz continuaram, mas não foram por esta correspondidos.
O poeta então, procurou um lenitivo para as suas mágoas em vários
passatempos, entre eles, o esporte da caça.
Em 1868, com um disparo fortuito feriu-se num pé e desse acidente sobreveio um
demorado tratamento que o debilitou e levou à tuberculose. Regressou à Bahia,
sem ter terminado o curso.
 
PERFIL LITERÁRIO
 
Castro Alves, enquanto romântico, se compara apenas a Gonçalves Dias.
Grande lírico, não foi menor como cantor da grande questão social na época: o
abolicionismo. Seu lirismo já não sofre de todo o individualismo que caracterizou o
surgimento do Romantismo e dos ultra-românticos. Mostra-se preocupado com o
mundo exterior, com o povo, com sua terra. E, ao falar desses temas, não deixa
de ser extremamente lírico. Seu amor, porém, já não é idealizado como o dos
poetas anteriores. Tem forte carga sensual, antecipando a estética realista.
OBRAS
Para um poeta que morreu com 24 anos, deixou-nos uma produção volumosa,
esteticamente madura, com um estilo rico em figuras que empolgam o leitor.
Vozes d’África e O navio negreiro são seus mais divulgados poemas
abolicionistas, ambos em sua obra Os Escravos, dentro da qual alguns críticos
colocam 33 poemas publicados depois da morte do poeta. Neles é patente a veia
romântica de endeusamento da natureza. É nesta poesia que ele se mostra
realmente condoreiro.
Espumas Flutuantes e Hinos do Equador são coletâneas nascidas de amores
vividos e não apenas sonhados: Idalina e Eugênia Câmara.
Engajado nas lutas do poemas momento, incluindo o fim do Império, muitas vezes
declamou seus próprios em teatros e praças públicas, empolgando platéias de
Recife, Salvador, São Paulo e Rio. Aí conheceu Alencar e Machado, a quem
apresentou sua peça Gonzaga ou A Revolução de Minas. A ela se referiu
Machado de Assis elogiosamente no Correio Mercantil.
Os Escravos é uma coleção de poesias publicadas 12 anos a morte do poeta.
Poesia social em sua forma mais pura, Os Escravos centra-se sempre no mesmo
tema: a liberdade dos escravos. Apesar de uma certa idealização em alguns
momentos, a poesia lírico-amorosa é menos idealizada que a dos
contemporâneos do autor. Mas sempre, sempre, as poesias falam do negro
escravo, cativo e maltratado pelos senhores.
Leia esse trecho do poema O navio negreiro, assim datado pelo autor: "São Paulo, 18 de abril de
1868. "Ele é longo, feito para empolgar. O autor o divide em seis partes: a majestade do mar, o
destino dos marinheiros, o espanto com a triste cena que ocorre no navio, a descrição detalhada
da violência que lá está instalada, um longo apelo a Deus para que acabe com toda essa barbárie
e um grito ao Brasil que é co-autor desse crime
Castro Alves

Biografia

Aos quatorze dias do mês de março, no ano de 1847, nasceu Antônio de


Castro Alves, na fazenda Cabaceiras, a sete léguas da vila de Curralinho, hoje
cidade de Castro Alves. Era filho do Dr. Antônio José Alves e D. Clélia Brasília
da Silva Castro. Passou a infância no sertão natal, e em 54 iniciou os estudos
na capital baiana. Aos dezesseis anos foi mandado para o Recife. Ia
completar os preparatórios para se habilitar à matrícula na Academia de
Direito. A liberdade aos 16 anos é coisa perigosa. O poeta achou a cidade
insípida. Como ocupava os seus dias? Disse-o em carta a um amigo da
Bahia: "Minha vida passo-a aqui numa rede olhando o telhado, lendo pouco
fumando muito. O meu ‘cinismo’ passa a misantropia. Acho-me bastante
afetado do peito, tenho sofrido muito. Esta apatia mata-me. De vez em quando
vou à Soledade." Que era a Soledade? Um bairro do Recife, onde o poeta
tinha uma namorada. O resultado dessa vadiagem foi a reprovação no exame
de geometria. Mas em 64 consegue o adolescente matricular-se no Curso
Jurídico. Se era tido por mau estudante, já começava a ser notado como
poeta. Em 62 escrevera o poema "A Destruição de Jerusalém", em 63
"Pesadelo", "Meu Segredo", já inspirado pela atriz Eugênia Câmara,
"Cansaço", "Noite de Amor", "A Canção do Africano" e outros. Tudo isso era,
verdade seja, poesia muito ruim ainda. O menino atirava alto. "A poesia",
dizia, "é um sacerdócio — seu Deus, o belo — seu tributário, o Poeta." O
Poeta derramando sempre uma lágrima sobre as dores do mundo. "É que",
acrescentava, "para chorar as dores pequenas, Deus criou a afeição, para
chorar a humanidade — a poesia." Mas, no dia 9 de novembro de 1864, ao
toque da meia-noite, na sotéia em que morava, o poeta, que sem dúvida se
balançava na rede, fumando muito, sentiu doer-lhe o peito, e um
pressentimento sinistro passou-lhe na alma. Pela primeira vez ia beber
inspiração nas fontes da grande poesia: essa a importância do poema
"Mocidade e Morte" na obra de Castro Alves. Uma dor individual, dessas para
as quais "Deus criou a afeição", despertou no poeta os acentos supremos,
que ele depois saberá estender às dores da humanidade, aos sofrimentos
dos negros escravos (O Navio Negreiro), ao martírio de todo um continente
(Vozes d'África). Não era mais o menino que brincava de poesia, era já o
poeta-condor, que iniciava os seus vôos nos céus da verdadeira poesia.
Naquela mesma noite escreve o poema, tema pessoal, logo alargado na
antítese mocidade-morte, a mocidade borbulhante de gênio, sedenta de
justiça, de amor e de glória, dolorosamente frustrada pela morte sete anos
depois.

BiografiaA versão primitiva do Poema foi conservada em autógrafo,


documento precioso porque revela duas coisas: o poeta não se contentava
com a forma em que lhe saíam os versos no primeiro momento da inspiração;
na tarefa de os corrigir e completar procedia com segura intuição e fino gosto.
Cotejada a primeira versão com a que foi publicada pelo poeta em São Paulo,
por volta de 68-69, verifica-se que todas as emendas foram para melhor. Baste
um exemplo: o sexto verso da segunda oitava era na primeira versão
"Adornada" com os prantos do arrebol, substituído na definitiva por "Que"
banharam de prantos as alvoradas, verso que forma com o anterior um
dístico de raro sortilégio verbal.

"vem! formosa mulher — camélia pálida,


Que banharam de pranto as alvoradas".
Quase a meio do curso, em 67, o poeta, apaixonado pela portuguesa
Eugênia Câmara, parte com ela para a Bahia, onde faz representar um mau
drama em prosa — "Gonzaga" ou a "Revolução de Minas". Era sua intenção
concluir o bacharelato em São Paulo, aonde chegou no ano seguinte. A sua
passagem pelo Rio assinalou-se pelos mesmos triunfos já alcançados em
Pernambuco. Em São Paulo, nos fins de 68, feriu-se num pé com um tiro
acidental por ocasião de uma caçada, do que resultou longa enfermidade, em
que teve o poeta que se submeter a várias intervenções cirúrgicas e
finalmente à amputação do pé. O depauperamento das forças conduziu-o à
tuberculose pulmonar, a que sucumbiu em 71 no sertão de sua província
natal. Antes de regressar a ela, publicara, em 70, o livro "Espumas
Flutuantes", cantos por ele definidos como rebentando por vezes, ao estalar
fatídico do látego da desgraça", refletindo por vezes "o prisma fantástico da
ventura ou do entusiasmo".

Vulgarmente melodramático na desgraça, simples e gracioso na ventura,


o que constituía o genuíno clima poético de Castro Alves era o entusiasmo da
mocidade apaixonada pelas grandes causas da liberdade e da justiça — as
lutas da Independência na Bahia, a insurreição dos negros de Palmares, o
papel civilizador da imprensa, e acima de todas a campanha contra a
escravidão. Mas este último tema não figurava nas "Espumas Flutuantes". As
composições em que o tratava deveriam formar o poema "Os Escravos", o
qual teria como remate "A Cachoeira de Paulo Afonso", publicada
postumamente. Deixava ainda o poeta outras poesias avulsas, que era seu
propósito reunir em outro livro intitulado "Hinos do Equador".

Ao livro "Os Escravos" pertenceriam "Vozes d'África" e "O Navio


Negreiro", os dois poemas em que o poeta atingiu a maior altura de seu estro.
O primeiro é uma soberba apóstrofe do continente escravizado, a implorar
justiça de Deus. O que indignava o poeta era ver que o Novo Mundo, "talhado
para as grandezas, pra crescer, criar, subir", a América, que conquistara a
liberdade com formidável heroísmo, se manchava no mesmo crime da
Europa.

No "O Navio Negreiro" evocava o poeta os sofrimentos dos negros na


travessia da África para o Brasil. Sabe-se que os infelizes vinham
amontoados no porão e só subiam ao convés uma vez ao dia para o exercício
higiênico, a dança forçada sob o chicote dos capatazes.

Em Castro Alves cumpre distinguir o lírico amoroso, que se exprimia


quase sempre sem ênfase e às vezes com exemplar simplicidade, como no
formoso quadro do poema "Adormecida", o poeta descritivo, pintando com
admirável verdade e poesia a nossa paisagem, tal em "O Crepúsculo
Sertanejo", cumpre distingui-lo do épico social desmedindo-se em violentas
antíteses, em retumbantes onomatopéias. A este último aspecto há que levar
em conta a intenção pragmática dos seus cantos, escritos para serem
declamados na praça pública, em teatros ou grandes salas —, verdadeiros
discursos de poeta-tribuno. E há que reconhecer nele, mau grado os
excessos e o mau-gosto ocasional, a maior força verbal e a inspiração mais
generosa de toda a poesia brasileira.
Manuel Bandeira

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