Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Cecéu e Zezinho, o irmão mais velho, iam a cavalo da chácara da Boa Vista, onde
moravam, á escola, e ficavam o dia inteiro aprendendo francês, história, inglês,
latim, filosofia. Cecéu detestava a matemática e vivia desenhando, escrevendo
versos, lendo poesias. Um livro logo tornou-se seu preferido : a antologia dos
poetas franceses, de Charles André, onde conheceu Lamartine, Vigny,
Chateaubriand, e, sobretudo, Victor Hugo, seu escritor predileto. Lia Camões,
Bocage, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Byron e maravilhava o professor de
latim traduzindo Horácio em versos.
Era dia de festa na escola, as festas de que tanto gostava o Dr. Abílio : discursos,
saudações, poesias. Sorridente e vaidoso, mostrava aos visitantes o progresso de
seus pupilos. Sua figura seria retratada depois, sob o nome de Aristarco, no
romance 'O Ateneu', de Raul Pompéia : 'Aristarco todo era um anúncio. Os gestos,
calmos, soberanos, eram de um rei - o autocrata excelso dos silábicos; a
pausa hierática do andar deixava sentir o esforço, a cada passo, que ele fazia
para levar adiante, de empurrão, o progresso do ensino
público...'
Quando o Dr. Antônio Alves casou, pela segunda vez, com a viúva Maria Ramos
Guimarães, a 24 de janeiro de 1862, Cecéu e Zezinho estavam de malas prontas
esperando o vapor Oiapoque, que partiu no dia seguinte, levando-os para Recife.
Iam fazer os preparatórios para ingressar na Faculdade de Direito.
Três temas para definir a vida
Moravam, a princípio, no Convento de São Francisco, mas logo se mudaram para
uma pequena casa, ás margens de Capibaribe, que fora alugada por Luís Cornélio
dos Santos, um novo amigo.
Antônio e Luís Cornélio muitas vezes passearam juntos pelas margens do rio
perto da casa, a ler um pequeno caderninho de poesias. José Antônio não os
acompanhava nesses passeios. Ficava em casa, trancado no quarto, fumando,
tomando conhaque, lendo Byron e escrevendo poesias que escondia de todos.
Aquela lúgubre melancolia prenunciava seu triste fim : o suicídio, a 9 de fevereiro
de 1864.
Para entrar na faculdade, Castro Alves precisava passar nos exames. Preparava-
se para isso fazendo caricaturas, compondo versos e jogando bilhar. Por duas
vezes foi reprovado em geometria. Nem por isso se emendou. Em carta a um
amigo dizia :
”-Acho-me na insípida terra de Pernambuco. A razão ? Saí reprovado. Acharam
que eu não podia entrar numa academia tão ilustrada
!...(...) Minha vida, passo-a numa rede, olhando o telhado, lendo pouco, fumando
muito. Esta apatia mata-me.”
Sua vida, entretanto, não era tão insípida assim. A 23 de junho de 1862, cinco
meses depois de chegar, publicava o poema A Destruição de Jerusalém, no Jornal
do Recife, recebendo muitos elogios. E havia o Teatro Santa Isabel, centro onde
ocorriam os grandes lances da história da cidade. Nele se encontravam os atores,
representando no palco, e os jovens, que recitavam dos balcões elogios ás suas
intérpretes favoritas, observados pelos binóculos da alta sociedade. O teatro
tornara-se um prolongamento da faculdade; nos entreatos realizavam-se
verdadeiros torneios entre os estudantes, cada qual procurando ganhar para si os
aplausos.
”- Lá na úmida senzala,
Sentado na estreita sala,
Junto ao braseiro, no chão,
Entoa o escravo seu canto
E ao cantar correm-lhe em pranto
Saudades do seu torrão.”
Sua vida, como diria mais tarde a um amigo, oscila entre 'trevas e luz, tormentos e
bonanças'. Dia 7 de outubro, á noite, provou o gosto da morte. Uma dor no peito,
aguda e opressiva, a tosse incontrolável, o sangue na boca. Lembra sua mãe,
morta pela tuberculose, o pai, fraco do peito, o irmão suicida, os poetas que
morriam aos vinte anos : Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu,
Junqueira Freire. E sente medo, o medo que lhe dita uma longa poesia. No início
de cada estrofe, a mocidade, suas esperanças :
Vinte dias depois embarcava precipitadamente para a Bahia, faltando aos exames
e, portanto, perdendo o ano. Para ele, isso tinha pouca importância. Queria
recuperar a tranquilidade na paz do lar paterno.
O encontro com o jovem mestre
Em Salvador, pareceu recuperar-se. O poeta, pálido e de olheiras, entregou-se á
ociosidade da casa da Rua do Sodré, onde estava agora morando a família, e dos
círculos literários, sem escrever nem se preocupar.
Já não pensava na tísica quando, em março de 1865, embarcou no Oiapoque de
volta para Recife. No navio encontrou um rapaz pouco mais velho que ele, de
barba e cabelos longos, também pálido e poeta. Era Luís Nicolau Fagundes
Varela, já com dois livros publicados - Noturnas e Vozes da América - e famoso
pela boêmia que levara em São Paulo. Por ordem do pai, ia para Recife
matricular-se no terceiro ano de direito e tentar esquecer a bebida, os escândalos
amorosos, a prematura morte de um filho. Os conselhos paternos,
no entanto, se mostrariam inúteis : Varela voltaria para São Paulo, iria para a
fazenda da família no Estado do Rio, e terminaria sua vida perambulando pelas
estradas e tavernas da região. Foi um fim semelhante ao de muitos poetas de sua
geração : a boêmia desesperada, o desencanto pela vida, uma maneira de se
rebelar contra a sociedade.
Para Castro Alves, com dezoito anos, conhecer Fagundes Varela foi encontrar um
mestre. Mais tarde ele diria que seus dois poetas preferidos eram : dos mortos,
Casimiro de Abreu; e entre os vivos, Fagundes Varela. A alegria do encontro fez a
viagem mais breve. Logo estava em Recife, de volta ao curso de direito. Como já
conhecia a matéria - repetia o primeiro ano -, raramente aparecia na faculdade.
Vivia agora num quase refúgio, no bairro de Santo Amaro, com a misteriosa
Idalina.
No retiro da Rua do Lima, zona quase campestre, Castro Alves vai escrevendo as
poesias que formariam o livro Os Escravos. Dia a dia surgem poemas vibrantes
em que descreve a miséria do cativeiro e clama pela abolição e pela vingança :
”- Cai, orvalho de sangue do escravo,
Cai, orvalho, na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz.”
Os mais velhos ainda olham espantados para aquele jovem bem trajado, de fartos
cabelos, com enorme gravata colorida. Os estudantes deliram.
No teatro, lá está ele saudando a atriz Adelaide Amaral, que mais tarde dividiria
com Eugênia Câmara a admiração dos jovens. Se nada de importante acontece,
ele se entrega completamente a Idalina, amando e escrevendo.
No teatro, uma guerra de amor
A vida do poeta baiano, como ele mesmo dissera, oscilava entre 'tormentos e
bonanças'. Um mês depois, a 23 de janeiro de 1866, morria o Dr. Antonio José
Alves, deixando cinco filhos menores de catorze anos. As responsabilidades
deveriam ficar divididas entre a viúva e o filho mais velho, agora com dezenove
anos. Ele, contudo, só sabia mesmo escrever poesias.
A casa dos Alves vivia dias tristes e sombrios. Mas defronte, onde morava o
rabino Isaac Amzalack, seguidamente ouviam-se acordes de um piano. Cecéu, da
janela, pôde ver quem tocava : as filhas de Amzalack, Simy, Ester e Mary, todas
muito bonitas. Apaixonou-se por elas, principalmente por Ester, enviando a poesia
Hebréia dedicada 'à mais bela das três', o que provocou brigas e choro entre as
irmãs. Cecéu passava os dias a espreitar a casa, esperando ver Ester :
”- Á tarde, quando chegas á janela,
Co'a trança solta onde suspira o vento,
Minh'alma de joelhos te contempla
A teus pés vai gemer meu pensamento.”
Na mesma época fundou o jornal A Luz, onde publicou duas poesias, acusadas de
plágio pela Revista Literária. O crítico impiedoso não assinara, mas sabia-se quem
era o autor : Tobias Barreto. O poeta pediu confirmação da autoria e a resposta
veio :
”- Justamente, Sr. Castro Alves. Sou eu mesmo. Quer responder ? É um favor.
Peço-lhe que me encare sob todos os pontos de vista, a fim de que depois não me
chame pouco generoso. Sim, Sr.. Considere-me como homem, como escritor na
prosa e no verso, como cidadão e até como filho... Dê-me por todas as faces...
Assim espero. E para facilitar e abreviar mais a sua resposta, mandar-lhe-ei levar
alguns versos meus que um amigo tem reunido, pedindo-lhe o favor de que me
mande alguns seus, ao menos os que tem aqui publicado.
A vitória final, no entanto, Castro Alves não conseguira. Extasiado com o mistério
e a sensualidade de Eugênia Câmara, mulher madura, exuberante e livre, o rapaz
de dezenove anos lança seus apelos :
Eugênia sorri, fascinada pela audácia daquele rapaz dez anos mais moço do que
ela. Sente que está se apaixonando pelo jovem. Hesita, entretanto, pois arriscará
sua carreira. Mas Castro Alves volta á carga :
Apesar dos comentários, o poeta foi bem recebido pelos familiares e admiradores.
Todo dia era convidado para festas, reuniões literárias, comemorações. O
Conservatório Dramático elegeu-o sócio honorário, ao mesmo tempo em que
aprovava sua peça.
Mas o objetivo da viagem fracassou : quem dominava o teatro carioca era Furtado
Coelho, o pai de Emília, que recusou o Gonzaga.
Na terra da garoa e da boêmia
Não conseguia encenar seu drama no Rio de Janeiro ? Pois bem, iria para São
Paulo, onde poderia inclusive retomar seus estudos. A 13 de março partia de
navio, no dia seguinte tomava o trem de Santos a Jundiaí. Poucas horas depois
estava no Hotel da Itália, perto da faculdade.
São Paulo era a cidade dos jovens intelectuais. De todo o Brasil eles vinham para
estudar direito, conversar e discutir nos corredores da faculdade, passar noites de
boêmia nas repúblicas, onde moravam desorganizadamente. Ali havia morado
Álvares de Azevedo, morto aos 21 anos; ali se comentavam as loucuras de
Fagundes Varela, agora vivendo na fazenda do pai. Cidade do pensamento
liberal, cujo mestre era o Professor José Bonifácio, o moço (sobrinho e neto do
Patriarca), e que contava entre os discípulos Nabuco e Rui Barbosa. Cidade
dominada pelos estudantes. Estavam todos ansiosos para ouvir o baiano recém-
chegado, que eles sabiam ser 'um dos seus'. Organizou-se uma reunião do
Arquivo Jurídico e Literário para a apresentação do poeta ao 'povo' de São Paulo.
Castro Alves recitou O Livro e a América, A Visão dos mortos e As Duas Ilhas.
Daí por diante ele seria presença obrigatória em todas as reuniões intelectuais da
Província.
Apesar de pouco frequentar as aulas, sempre ás voltas com Eugênia e a peça que
queria montar, torna-se grande amigo de José Bonifácio. Com Eugênia, as coisas
não iam bem. Repetiam-se as cenas de ciúme do poeta, a atriz já não tinha a
mesma afeição por ele. Por fim, irritada, Eugênia colocou os pertences do poeta
na rua e Castro Alves foi morar numa república, como os outros estudantes.
Marchava para o fim o maior amor de sua vida. Mas não abandonava sua luta. A
11 de junho lançava o grito :
Eram as Vozes d`África, que por 114 versos, lamentavam, gemiam e bradavam a
dor do cativeiro. E continuava a declamar seus protestos. Nas reuniões que os
liberais promoviam, sempre se ouviam três vozes : Joaquim Nabuco, Rui Barbosa
e Castro Alves. Eram os líderes.
Após o 2 de julho, data que não deixava passar sem evocar os patriotas baianos,
chegava o 7 de setembro. Neste ano de 1868, Castro Alves tinha uma poesia
especial para a data : “Stamos em pleno mar...”
Nas primeiras filas do Ginásio Literário estavam as senhoras com suas filhas, os
poderosos fazendeiros. Diante deles, o poeta, flor na lapela, desfilou os horrores
de O Navio Negreiro. E terminou exaltado:
Aplausos, vivas, aclamações. Castro Alves foi carregado pelas ruas para a
república dos baianos, onde passou a morar com Rui Barbosa.
Sua grande preocupação, no entanto, continuava sendo o Gonzaga. Já tinha
financiamento do Barão de Iguape e procurava agora um grande ator para o papel
principal. Conseguiu finalmente a participação de Joaquim Augusto Ribeiro de
Sousa. Começaram os ensaios, onde encontrava Eugênia, sua Marília, e
relembrava a felicidade que conheceram juntos. Na mesma época, fins de
outubro, devia prestar exames na faculdade. Primeiro, foi a batalha para que os
professores abonassem suas faltas. Depois, tratou de procurar os colegas para
saber a matéria das provas e ouvir rápidas explicações sobre cada ponto. Um
dos companheiros, Rodrigues Alves, mais tarde presidente da República, foi seu
'professor' e Castro Alves conseguiu um bom... Sua oratória havia convencido os
mestres.
1º de junho, o médico diz para o pálido poeta : 'Coragem, meu filho!' E era preciso
muita coragem mesmo, pois a operação seria a sangue frio : seu estado pulmonar
não recomendava anestesia por clorofórmio. A amputação foi rápida, Castro Alves
comportou-se com incrível coragem, e dias depois já escrevia versos para todas
as moças que o rodeavam.
A separação era definitiva. O poeta partia para a Bahia, Eugênia ficava no Rio,
onde casaria com o Maestro Antônio Assis Osternoff. Em 1874 morreria de
encefalite, aos 37 anos. Até o fim declamou as poesias de seu antigo amado.
Um novo amor no fim
Com 23 anos, Castro Alves voltava para a Bahia, em busca de melhores ares para
seu combalido pulmão. Em fevereiro de 1870 já estava em Curralinho, na fazenda
dos parentes maternos onde passara suas férias em menino. Era agora um rapaz
muito magro, pálido, os ombros altos, cabeça inclinada, a tristeza de andar sobre
muletas. É quando escreve:
Este texto seria o prólogo de Espumas Flutuantes, livro que Castro Alves se
empenharia em publicar. Preocupava-se com a sobrevivência de sua obra, até
então espalhada.
O poeta piora. A 2 de julho, dia de tantas glórias, ele quer declamar sua ode aos
moradores de Curralinho. Mas tem que pedir a um amigo que leia a poesia,
enquanto chora. Quem sabe mais para dentro do sertão ? Vai para a fazenda do
irmão de Leonídia, em Santa Isabel. Escreve versos inspirados pela natureza
agreste que o cerca, mais tarde reunidos em A Cachoeira de Paulo Afonso. Evoca
as mulheres que tinha amado em Os anjos da Meia-Noite. E sente-se melhor.
Ansioso pela saída do livro, retornou a Salvador em setembro. Por algum tempo
voltava-lhe o otimismo.
O novo ano traz outra musa para o poeta : Agnese Trinci Murri, professora de
canto e piano de suas irmãs. 'Alta, esbelta, alva como um mármore de Carrara,
mãos aristocráticas, olhos e cabelos negros, boca e voz deliciosas', ela inspira
poesias apaixonadas. Mas faz que não entende : casada, embora o marido a
tivesse abandonado, era recebida na sociedade baiana por sua corretíssima
conduta.
Até abril ele ainda frequentava salões, embora sem dançar, e acompanhou
Agnese ao teatro e a passeios na Barra. A 30 de abril publicou em O Abolicionista
uma Carta ás Senhoras Baianas, pedindo donativos para uma sociedade
antiescravista. Até o fim ele se manteve fiel a essa luta.
Na véspera de São João, Cecéu quer chegar á janela onde outrora observara as
irmãs Amzalack. Quer ver a Fogueira, os fogos, as brincadeiras. Na sacada ele
aspira o ar noturno que traz o cheiro de madeira queimada. E tosse, sente
vertigem, quase tomba das muletas. Senta-se ao piano e recita, baixinho, quase
um lamento, os versos de Álvares de Azevedo:
“- Se eu morresse amanhã,
Viria ao menos
Fechar meus olhos
Minha triste irmã...”
Um novo 2 de julho encontra o poeta tossindo, quase sem forças. No Teatro São
João há comemorações e Agnese vai cantar. Ela hesita diante do estado de seu
admirador. Mas ele ordena que ela participe dos festejos. Sente o fim próximo e
pede que o coloquem no quarto da frente, onde poderia 'morrer olhando para o
infinito azul'. Proíbe a entrada de visitas, exceto os irmãos, Álvares Guimarães e o
médico. Agnese sente remorsos, é Adelaide quem conta:
Condoreirismo
Castro Alves foi o principal e mais popular representante do estilo romântico
que predominou na poesia brasileira entre 1850 e 1870, denominado condoreiro
por Capistrano de Abreu (1853-1927). É caracterizado por uma poesia retórica,
repleta de hipérboles e antíteses, em que se destacam os temas sociais e
políticos, principalmente a defesa da abolição da escravatura e a apologia da
república.
Os poetas condoreiros foram influenciados diretamente pela poesia social de
Vitor Hugo - o Condoreirismo é o hugoanismo brasileiro. De teor declamativo e
pendor social, um de seus símbolos mais freqüentes é a imagem do condor dos
Andes, pássaro que representa a liberdade da América, o que sugeriu a
Capistrano de Abreu a denominação dada ao estilo.
A forma mais típica dessa poesia é a décima composta de uma quadra (abab
ou abcb) e uma sextilha (ddeffe) de versos heptassílabos, como na poesia O Livro
e a América de Espumas Flutuantes:
Por isso na impaciência
Desta sede de saber,
Como as aves do deserto --
As almas buscam beber...
Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe -- que faz a palma,
É chuva -- que faz o mar.
Outros poetas, como Tobias Barreto (1839-1889), José Bonifácio, o Moço
(1827-1886) e Pedro de Calasãs (1837-1874) cultivaram e defenderam o
condoreirismo enquanto poesia de tese (científica), pública, política, rimando
artigos de fundo de jornal, metrificando manifestos do abolicionismo e
proclamações republicanas.
Espumas Flutuantes
Espumas Flutuantes foi o único livro publicado em vida por Castro Alves.
Lançado no final de 1870, poucos meses antes de sua morte, abrange parte
importante da sua produção lírica. O livro reúne textos de caráter épico-social, de
amor, descritivos e traduções que revelam as influências do autor. Traça, assim,
um quadro geral da lírica do poeta, como se quisesse mostrar todas as
possibilidades de sua poética, documentando sua percepção do mundo e da
época em que vive. Apenas os poemas abolicionistas, pelos quais o poeta se
tornou tão conhecido, não constam do volume, pois esavam destinados ao volume
Os Escravos, que o poeta vinha organizando e não chegou a publicar inteiro
antes de morrer.
Ênfase social
Castro Alves, o maior representante da última geração romântica, diferente dos
seus predecessores, como Junqueira Freire e Álvares de Azevedo, projeta o
drama interior do escritor (o eu), sua intensa contradição psicológica, sobre o
mundo. Enquanto que, para a geração anterior, o conflito faz o escritor voltar-se
sobre si mesmo, pois a desarmonia é resultado das lutas internas, para Castro
Alves, são as lutas externas (do homem contra a sociedade, do oprimido contra o
opressor) que provocam essa desarmonia. É outro modo de representar o conflito
entre o bem e o mal, tão prezado pelos românticos.
Portanto, a poética deve se identificar profundamente com o ritmo da vida social
e expressar o processo de busca da humanidade por redenção, justiça e
liberdade. O poeta "condoreiro" tem um papel messiânico e afinado com o seu
momento histórico. Esse comprometimento faz a poesia se aproximar do discurso,
incorporando a ênfase oratória e a eloqüência.
Nos poemas de caráter político-social de Castro Alves, como O Livro e a
América, Ode ao Dous de Julho e Pedro Ivo, a poesia é suplantada pelo discurso
político grandiloqüente e até verborrágico. Para atingir o alvo e persuadir o leitor e,
muito mais, o ouvinte, o poeta abusa de antíteses e hipérboles e apresenta uma
sucessão vertiniginosa de metáforas quie procuram traduzir a mesma idéia. A
poesia é feita para ser declamada e o exagero das imagens é intencional,
deliberado, para reforçar a idéia do poema. Os versos devem ressoar e traduzir o
constante movimento de forças antagônicas, como em Ode ao Dous de Julho:
Era no dous de julho. A pugna imensa
Travara-se nos cerros da Bahia...
O anjo da morte pálido cosia
Uma vasta mortalha em Pirajá
(...)
Era o porvir -- em frente do passado,
A Liberdade -- em frente à Escravidão,
Era a luta das águias -- e do abutre,
A revolta do pulso -- contra os ferros,
O pugilato da razão -- com os erros,
O duelo da treva -- e do clarão!...
Resumindo, a poesia social de Castro Alves é caracterizada: pelo
discurso retórico, declamativo; uso exagerado de hipérboles e antíteses;
acúmulo sucessivo de metáforas; movimento, com o objetivo de demonstrar
concretamente o ritmo da luta da humanidade em busca da liberdade; e
impressionante capacidade de comunicação. A poesia, portanto, perde
terreno para a propaganda política. Pragmático, o poeta usa a poesia para
levar o leitor à ação, para transformar e não só para deleitar. Trata-se de uma
arte engajada no marketing das idéias sociais e políticas.
Lírica amorosa
Castro Alves transformou a poesia lírico-amorosa do romantismo, mudando a
concepção temática do amor. Seus poemas, muitas vezes de fundo
autobiográfico, destacam-se pelo vigor da paixão, pela intensidade na expressão
do sentimento e da experiência amorosa realizada também no plano físico,
enquanto desejo e envolvimento sentimental e carnal. Isso o diferencia dos poetas
das gerações românticas precedentes, cuja poesia se dirige a uma amada
distante, idealizada, intocada e etérea. A amada do poeta é de carne e osso, não
é fruto da imaginação adolescente, como para os poetas que o antecederam. O
poema O "Adeus" de Teresa é um exemplo dessa amada, que passa a noite com
o eu lírico...:
Uma noite... entreabriu-se um reposteiro...
E da alcova saía um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus...
Era eu... Era a pálida Teresa!
"Adeus" lhe disse conservando-a presa...
E ela entre beijos murmurou-me: "Adeus!"
... e "tem o pé no chão", como no poema Adormecida:
Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.
A paixão concreta, ardente e fecunda por Eugênia Câmara influenciou sua visão
poética do amor. Essa visão pode ser classificada não só como sentimental, mas
também como sensual, entendida como uma poesia que apela aos sentidos
(sensorial). É desse período o poema O Gondoleiro do Amor, em que a descrição
da amada é carregada de uma sensualidade sem precedentes no romantismo
brasileiro:
Teu seio é vaga dourada
Ao tíbio clarão da lua,
Que, ao murmúrio das volúpias,
Arqueja, palpita nua;
Como é doce, em pensamento,
Do teu colo no languor
Vogar, naufragar, perder-se
O Gondoleiro do amor!?
A experiência do amor com a atriz inspirou seus mais belos poemas de
esperança, euforia, desespero e saudade, como É Tarde. Pela primeira vez, a
poesia é motivada pela paixão e pelo envolvimento do poeta, e a dor não se
traduz em lamentos e queixas. Seu sentimentalismo amoroso é maduro, adulto, e
se realiza em sua plenitude carnal e emocional.
Castro Alves transforma a realidade imediata da sua experiência amorosa em
criação poética e utiliza-se, para traduzir esse movimento de união entre vida e
arte, de metáforas (imagens) ligadas à natureza, como revela o poema Aves de
Arribação:
É noite! Treme a lâmpada medrosa
Velando a longa noite do poeta...
Além, sob as cortinas transparentes,
Ela dorme, formosa Julieta!
Entram pela janela quase aberta
Da meia-noite os preguiçosos ventos
E a lua beija o seio alvinitente
-- Flor que abrira das noites aos relentos.
O Poeta trabalha!... A fonte pálida
Guarda talvez fatídica tristeza...
Que importa? A inspiração lhe acende o verso
Tendo por musa -- o amor e a natureza!
E como o cactus desabrocha a medo
Das noites tropicais na mansa calma,
A estrofe entreabre a pétala mimosa
Perfumada da essência de sua alma.
Resumindo, a poesia lírico-amorosa de Castro Alves, reunida em Espumas
Flutuantes, diferencia-se dos românticos anteriores pela visão poética do
amor como sentimento plenamente vivenciado e concretizado no plano
emocional e no plano físico. O amor é descrito com vigor, desejo e
sensualidade, através de metáforas da natureza. A mulher amada é real, de
carne e osso e a paixão envolve e motiva o poeta a traduzir o relacionamento
amoroso em versos.
Herança
Em vários poemas de Espumas Flutuantes, principalmente os de temática
existencial, evidencia-se ainda a influência do ultra-romantismo, de seu
conterrâneo Junqueira Freire e Álvares de Azevedo. As traduções de Lord Byron,
(ao lado das de Vitor Hugo) e algumas das epígrafes das poesias indicam a
importância dessa herança no fazer poético de Castro Alves. No entanto, - se na
geração do “mal-do-século”, a tônica era o pessimismo, o sentimento de
impotência diante da morte iminente, que, muitas vezes, representava uma saída
para o tédio da vida -, a visão de Castro Alves da existência é bem diferente:
demonstra uma imensa paixão pelo mundo, e a vida é vista com otimismo e
prazer. Na verdade, o poeta lamenta deixá-la, quando ameaçado pela doença que
o levaria à morte, pois viver é “glória!”, “amor!”, “anelos!”.
Enquanto Álvares de Azevedo afirma: “Eu deixo a vida como deixa o tédio / Do
deserto, o poento caminheiro”, Castro Alves “retruca”, no poema Mocidade e
Morte, escrito aos 17 anos, após as primeiras manifestações da tuberculose:
Oh! Eu quero viver, beber perfumes
Na flor silvestre que embalsama os ares
(...)
Morrer... quando este mundo é um paraíso,
E a alma um cisne de douradas plumas:
Não! O seio da amante é um lago virgem...
Quero boiar à tona das espumas.
Para Álvares de Azevedo, a vida é um deserto. Para Castro Alves, um paraíso.
Em Quando eu morrer, escrito em março de 1869, pouco antes de falecer, ele
repudia a morte, que afasta o morto do calor dos sentimentos da vida:
Quando eu morrer... não lancem meu cadáver
No fosso de um sombrio cemitério...
Odeio o mausoléu que espera o morto
Como o viajante desse hotel funéreo
(...)
Ei-la a nau do sepulcro -- o cemitério...
(...)
Ali ninguém se firma a um braço amigo
Do inverno pelas lúgubres noitadas...
No tombadilho indiferentes chocam-se
E nas trevas esbarram-se as ossadas...
Como deve custar ao pobre morto
Ver as plagas da vida além perdidas,
Sem ver o branco fumo de seus lares
Levantar-se por entre as avenidas!...
E mesmo tratando da morte, Castro Alves lhe dá movimento e dinamismo ao
comparar os mortos, nesta mesma poesia, a:
Emigrantes sombrios que se embarcam
Para as plagas sem fim do outro mundo
Castro Alves traduziu Byron, Musset e outros poetas que influenciaram o ultra-
romantismo da geração anterior. Porém, ao mesmo tempo em que traduzia seus
poemas, escrevia poesias como Aves de Arribação, A uma estrangeira e outras,
que demonstram uma reação poética aos traduzidos. Suas traduções estavam
muito ligadas às circunstâncias e sentimentos vividos no momento, mas também
representavam uma satisfação às solicitações da época. Traduzir bem era um
ponto de honra porque demonstrava cultura refinada e familiaridade com os
mestres do pensamento universal
“Sou Don Juan!”, exclama Castro Alves em Os Três Amores. Em Os Anjos da
Meia Noite, adotando atitude tipicamente donjuanesca, dedica sonetos para uma
sucessão de sete mulheres. Daí supor que o Byron que inspirou Castro Alves
parece que foi muito mais o amante da liberdade, o nobre inglês que foi lutar,
heroicamente, pela independência da Grécia - e que escreveu o escandaloso
poema Don Juan -, do que o byronismo difundido pela geração romântica
precedente, através das traduções francesas adocicadas de Alfred de Musset,
caracterizado pelo aspecto mórbido e pessimista de se relacionar com a vida.
Resumindo: Ainda há, em Castro Alves, influência da geração byroniana,
anterior a ele. Mas o poeta baiano encara a morte - e a vida - de outra
maneira: não é o escape, a solução para a dor vivente de Álvares de
Azevedo, e sim o fim do movimento e da alegria de viver. Herda de Byron
mais a atitude donjuanesca do que a tendência ao lamento.
Paisagem de palavras
É preciso destacar a presença da natureza na poesia de Castro Alves,
permeada de imagens “naturais”, tanto da Terra quanto do Cosmos. Sua poesia
unifica o sentimento do poeta ao sentimento da natureza, como em Aves de
Arribação.
Mas é principalmente nos poemas de exaltação diante dos espetáculos
naturais, como Sub Tegmine Fagi, que a paisagem surge com intensa
plasticidade, descrita com a sensibilidade característica do poeta,
predominantemente visual. Castro Alves, nesses poemas descritivos, traça belos
retratos paisagísticos, antecipando a linha descritivista pictórica da poesia
parnasiana, como em Murmúrios da Tarde:
Ontem à tarde, quando o sol morria,
A natureza era um poema santo,
De cada moita a escuridão saía,
De cada gruta rebentava um canto,
Ontem à tarde, quando o sol morria.
Resumindo: Em Espumas Flutuantes temos descrições vívidas e plásticas
da natureza brasileira que antecipam a preocupação descritivista de poetas
do Parnasianismo, como Alberto de Oliveira e Olavo Bilac.
As marcas do estilo
Poucos poetas utilizaram, na língua portuguesa, tantas reticências, travessões e
pontos de exclamação quanto Castro Alves. A cada página do livro, os exemplos
se sucedem:
Tanta descrença!... Tanta angústia!... Tanta!
-- Boa noite! --, formosa Consuelo!...
Através destes recursos gráficos, o poeta procura reproduzir a oralidade do
discurso exaltado da praça pública ou das declamações nos palcos. As reticências
indicam as pausas dramáticas que reforçam a ênfase discursiva marcada pelos
pontos de exclamação. Já os travessões têm dupla função. Por vezes aparecem,
como as reticências, como marcas de pausa na elocução:
Mulher -- de lábio pálido -- e olhar -- cheio de luz.
Em muitos outros momentos, aparecem como marca do discurso direto,
apresentando uma fala que se dirige a um interlocutor específico:
-- Quem bate? -- “A noite é sombria!”
-- Quem bate? -- “É rijo o tufão!...”
Castro Alves
BIOGRAFIA
Biografia