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1817

ARÇO 6 — Rebenta neste dia uma insurreição


m ilitar no quartel do regimento de artilharia do
Recife, que deu origem à precipitação do rom ­
pimento da revolução emancipacionista;, proje­
tado para um pouco depois, pela Páscoa.
Denunciado o movimento e acordado em um conselho
reunido na m anhã dêste dia, convocado pelo governador Cae­
tano Pinto de Miranda Montenegro, e resolvida a prisão ime­
diata de várias pessoas, cujas ordens foram logos expedidas,
tiveram tais prisões comêço de execução.
Figurando entre os oficiais comprometidos alguns do re­
gimento de artilharia, ao dar cumprimento às resolvidas pri­
sões o seu respectivo comandante, brigadeiro Manuel Joaquim
Rarbosa de Castro, português altivo, audaz, insolente mesmo,
ao chegar ao quartel e reunindo a oficialidade do corpo, a
uma hora da tarde, começa — repreendendo severamente a
todos, do descrédito e infâmia, que pelas suas alianças com
pessoas suspeitas tinham manchado a sua honra militar, —
dá voz de prisão ao capitão Domingos Teotônio Jorge Mar­
tins Pessoa e o manda conduzir por um oficial de igual pa­
tente à fortaleza das Cinco Pontas.
Em seguida volta-se o brigádeiro comandante para o ca­
pitão José de Rarros Lima, o Leão coroado das nossas legen­
das, já exaltado com a geral invectiva, e recomeçando êle os
seus insultos, e respondendo à pergunta que audazmente lhe
fizera da causa do seu castigo, com exprobações aos planos
revolucionários dos brasileiros, levado ao desespêro o brioso
38 0 F . A. PEREIRA DA COSTA

oficial, arranca da espada e lha embebe no peito, dizendo-lhe:


Pois morre, infame! O genro de Barros Lima, o tenente-secre-
tário do regimento, José Mariano de Albuquerque, imitando o
gesto do seu sogro, arranca também da espada e acaba de ma­
tá-lo .
O capitão Pedro da Silva Pedroso manda então tocar a
rebate, solta e arm a os soldados presos nos calabouços do
quartel; e reunindo-se então os conjurados, à proporção que
vão chegando, — beijam a ensangüentada espada, como um
juramento inviolável de m orrer ou vencer. — Pedroso assim
com a sua gente armada e municiada, e posta em forma jun­
to ao quartel, e à sua frente, eis que divisa o tenente-coronel
ajudante de ordens do governador, Alexandre Tomás de Aqui­
no Siqueira, que é vítima, à voz de fogo imediatamente dada
pelo chefe. Ambos os mortos tiveram sepultura na igreja do
Hospital do Paraíso, junto ao quartel.
O brigadeiro Manuel Joaquim Barbosa de Castro, portu­
guês de nascimento, tinha já longa residência em Pernambu­
co, onde atingira ao generalato, adquirira bens de fortuna e
teve família entre nós. Em 1882 era comandante-geral da
Guarda Cívica o capitão Manuel Joaquim de Castro Madeira,
homem já sexagenário, com quem então tivemos relações de
amizade, e que, em uma das nossas habituais palestras, dis­
se-nos, que era neto <do brigadeiro Barbosa de Castro, de
quem possuía o retrato, colorido, sôbre uma lâmina elítica de
m arfim com cercadura de ouro, constituindo assim um bo­
nito broche, que pertencera à esposa daquele general, sua avó
m aterna; de cuja peça, por nosso intermédio, vem a vulga­
rização do seu retrato, convenientemente ampliado, figuran­
do assim na galeria do nosso Instituto Pernambucano e nas
suas Revistas.
A espada homicida de Barros Lima, que se conservava,
cuidadosamente, em poder da família, foi em 1869 oferecida
áo mesmo Instituto por seus netos Joaquim Inácio de Barros
Lima, Faustino de Barros Lima e Antônio Joaquim de Bar­
ros Lima, em seus nomes e no de sua família, e cuja arma
já se vê estampada nas suas Revistas.
AXAIS PERNAMBUCANOS 381

O quartel do regimento de artilharia da praça do Recife,


onde tiveram lugar as cenas do prematuro rompimento da
revolução, ficava situado no extremo Norte da rua Larga do
Rosário, olhando para o nascente, junto ao largo ou praça
do Paraíso, e cujo edifício já não existe, desde 1875, quando
foi demolido.
Sobre a idéia do movimento, da sua propaganda, denúncia
da conspiração, medidas do govêrno para a evitar, das suas
conseqüências e particulares ocorrências, v. as datas: 1821,
sôbre a Maçonaria em Pernambuco; 24 de maio de 1802, go­
vêrno de Caetano Pinto de Miranda Montenegro; 9 de abril
de 1817, ofício daquele governador ao ministro da guerra; e
9 de novembro de 1818, carta do Desembargador José da Cruz
Ferreira ao governador Luís do Rêgo Barreto.

MARÇO 7 — Posse do govêrno provisório da proclama­


da república pernambucana.
Pôsto em campo o movimento revolucionário, que irrom ­
peu no dia anterior, neste, após a capitulação do general go­
vernador Caetano Pinto de Miranda Montenegro, que se re­
fugiara na fortaleza do Brum, regressa o exército patriótico
em triunfo para Santo Antônio, faz alto no campo do Erário,
hoje praça da República e escolhe os eleitores que tinham de
eleger o govêrno provisório da proclamada república. Feito
isto, sobem os eleitores para o edifício do Erário, e proce­
dem à eleição do govêrno, <5 que consta do seguinte têrmo que
logo se lavrou:

“Nós abaixo assinados, presentes para votarmos na no­


meação de um govêrno provisório, para cuidar na causa da
pátria, declaramos à face. de Deus que temos votado e nomea­
do os cinco patriotas seguintes : da parte do eclesiástico, o pa­
dre João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro; da parte mili­
tar, o patriota capitão Domingos Teotônio Jorge Martins Pes­
soa; da parte da magistratura, o patriota José Luís de Men­
donça; da parte da agricultura ,o patriota coronel Manuel Cor­
reia de Âraújo; e da parte do comércio, o patriota Domingos
382 F . A. PEREIRA DA COSTA

José Martins; e ao mesmo tempo todos firmam os esta no­


meação, e juramos obedecer a este govêrno em tôdas as suas
deliberações e ordens.

“Dado na Casa do Erário, às 12 horas do dia 7 de m ar­


ço de 1817. Eu Maximiano Francisco Duarte o escrevi. —
Luís Francisco de Paula Cavalcanti. — José Inácio Ribeiro
de Abreu Lim a. -rrJoaquim. Ramos de Almeida. — Francis­
co de Brito Bezerra Cavalcanti de Albuquerque. — Joaquim
José Vaz Salgado, -s- Antônio Joaquim Ferreira de S. Paio.
— Francisco de Paula Cavalcanti. — Filipe Néri Ferreira. —
Joaquim da Anunciação e Siqueira. — Tomás Ferreira Vila-
Nova — José Maria de Vasconcelos B ourbon. — Francisco de
Paula Cavalcanti Júnior. — Tomás José Alves de Siqueira.
— João de Albuquerque M aranhão. — José Marinho Falcão”.

Terminada a eleição, foi logo comunicada ao povo, que


irrompeu com grande entusiasmo e aclamações, e o auto foi
mandado 1er pelas ruas da cidade, em forma de bando, ao
som de caixa.
Sem as fçrmalidades de ato solene de posse, começou
desde logo a funcionar, no mesmo edifício do Erário, o go­
vêrno que se acabava de eleger.
A eleição do govêrno provisório agradou imenso, e foi
recebida com universal aplauso; todos confiavam no critério
e patriotismo dos seus membros, até que a nova ordem de
coisas se encaminhasse a se eleger um novo govêrno, segun­
do os planos da constituição que ia elaborar.
No dia 8 confirmou o govêrno no mesmo caráter de se­
cretário, que exercia, a José Carlos Mairinck da Silva Ferrão,
e reconhecendo que o expediente seria muito, nomeou, para
melhor ordem dos trabalhos, um outro secretário, que foi o
■Padre Miguel Joaquim de Almeida e Castro; e criou um con­
selho de estado, para auxiliar o govêrno em suas deliberações,
para o qual foram nomeados os seguintes patriotas: Desem­
bargador Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Sil­
va, D r. Antônio de Morais Silva, D r. José Pereira Caldas.
ANAIS PERNAMBUCANOS 383

Deão D r. Bernardo Luís Ferreira Portugal, e o comerciante


Gervásio Pires Ferreira.
No mesmo dia publicou o governo uma Proclamação pa­
ra tranqüilizar o povo, escrita pelo Padre Miguel Joaquim
de Almeida e Castro, exortando ao mesmo tempo os europeus
e brasileiros a uma cordial fraternidade, dando por acabadas
tôdas as distinções odiosas, e não admitindo outras que não
fôssem as do talento, virtude e patriotismo, cujo documento o
consignamos no'fim dêste artigo.
O govêrno provisório funcionou ativa e regularmente,
providenciando de acordo com as urgências que a nova fase
política aconselhava, e tomando várias medidas de interesse
público, enquanto não veio a reação realista, que fêz procla­
m ar a pátria em perigo no dia 20 de abril, e aconselhar a
mudança do govêrno, em face do bloqueio do pôrto pela es­
quadra portuguêsa; e destarte deixou a casa do Erário, onde
campeia o palácio do Govêrno, e transferiu-se para o palácio
episcopal da Soledade.
Agravando-se a situação política da república, e quase
que perdida a causa da pátria, vendo-se mesmo a praça do
Recife em apertado assédio por terra e por mar, e o govêrno
sem fortes meios de defesa para resistir com vantagem, en­
via a 16 de maio dois emissários para negociarem uma capi­
tulação honrosa com o comandante da divisão em bloqueio
do pôrto do Recife, que em resposta impõe condições humi­
lhantes, inaceitáveis; e assim, no dia 18, dissolvendo-se o go­
vêrno provisório da república, foi Domingos Teotônio Jorge,
que dirigia o departamento da guerra, aclamado ditador, con­
centrando cm suas mãos todos os poderes.
Naquele mesmo dia, à noite, envia o ditador um emissá­
rio ao comandante do bloqueio, sendo portador de um enér­
gico ultimatum, de terríveis ameaças, se até o dia seguinte,
ao meio-dia não chegasse a resposta aceitando os têrmos pro­
postos. A’ tarde, porém, chega aquêle emissário — com uma
capitulação tolerável; não acha, porém, a qüem a entregar.
— O ditador tinha abandonado a praça, com a tropa restan­
te, conduzindo os cofres públicos, e em Paulista evadem-se os
3 84 F . A. PEREIRA DA COSTA

principais chefes, procurando rumos diferentes, e assim, cui­


dando cada qual na sua própria salvação individual. Regres­
sa então para o Recife o bravo e ftonrado capitão Manuel de
Azevedo do Nascimento, conduzindo os cofres públicos, con­
tendo a superior quantia de mais de 500:000$000 e os entre­
ga à autoridade competente!
Logo à madrugada do dia seguinte ao abandono da pra­
ça, formigavam de gente os bairros do Recife, e os realistas,
ou antes os portuguêses, da pior espécie, trazendo arvorada
uma bandeira real e furiosamente dando vivas ao rei, percor­
riam as ruas da cidade, até que por fim, já em avolumada
massa, vão ter à fortaleza das Cinco Pontas, cujo comandante
lhes abre as portas, são imediatamente soltos os prisioneiros
que ali jaziam, e um dêles militar, dos mais graduados em
patente, o marechal José Roberto Pereira da Silva; acéfalo o
governo, toma conta do mesmo, para o entregar ao coman­
dante em chefe da esquadra, Rodrigo José Ferreira Lôbo,
que, desembarcando neste dia 20 de maio, assume o governo
da província, que dirige até o dia primeiro de julho, quando
o entregou ao governador nomeado, o general Luís do Rêgo
B arreto.

Eis a Proclamação que o governo provisório da procla­


mada república publicou logo após a sua posse.

Habitantes de Pernambuco!

A providência divina, que pelos seus inescrutáveis desíg­


nios sabe extrair das trevas a luz mais viva, e pela sua infini­
ta bondade não permite a existência do mal senão porque
sabe tirar dêle maior bem e a felicidade, consentiu que alguns
espíritos indiscretos e inadvertidos, de que grandes incêndios
se podem originar de uma pequena faísca, principiassem a es­
palhar algumas sementes de um mal entendido ciúme e riva­
lidade entre os filhos do Brasil e de Portugal, habitantes des­
ta capital desde a época em que os encadeamentos dos suces*
sos dá Europa entraram a dar ao continente do Brasil aque-
ANAIS PERNAMBUCANOS 385

la consideração de qúe era digno, e para o que não concorre­


ram, nem podiam concorrer os Brasileiros. Porquanto, que
culpa tiveram estes de que o príncipe de Portugal, sacudido
da sua capital pelos ventos impetuosos de uma invasão ini­
miga, saindo faminto dentre os seus Lusitanos, viesse achar
abrigo no franco e generoso continente do Brasil, e m atar a
fome e a sêde na altura de Pernambuco, pela quase divina
Providência e liberalidade de seus habitantes! Que culpa ti­
veram os Brasileiros de que o mesmo príncipe regente, sen­
sível à gfatidão, quisesse honrar a terra que o acolhera, com
a sua residência e estabelecimento da sua côrte, e elevá-la à
categoria de reino!
Aquelas sementes de discórdia desgraçadamente frutifica­
ram em um país, que a natureza amiga dotou de uma fertili­
dade ilimitada e geral. Longe de serem extirpadas por uma
hábil mão, que tinlia para isso todo o poder, e sufocá-las na
sua origem, foram nutridas por mútuas indiscrições dos bra­
sileiros e europeus; mas nunca cresceram a ponto de se não
poderem extinguir, se houvesse um espírito conciliador, que se
abalançasse a esta emprêsa, que não era árdua. Mas o espí­
rito do despotismo e do mau conselho recorreu às medidas
mais violentas e pérfidas que podia excogitar o demônio da
perseguição. Recorreu ao meio tirano de perder patriotas hon­
rados e beneméritos da pátria, de fazê-la ensopar nas lágri­
mas de míseras famílias, que subsistiam do trabalho e socor­
ros dos seus chefes, e cuja perda arrastava consigo irresisti­
velmente a sua to tal'ruína.
A natureza, o valor, à vista espantadora da desgraça, a
defesa natural reagiu contra a tirania e a injustiça- A tropa
inteira se opôs envolvida na ruína de alguns de seus oficiais,
o grito da defesa foi geral, e êle ressoou em todos os ângulos
da povoação de Santo Antônio: o povo se tornou soldado e
protetor dos soldados, porque eram brasileiros como êle. Os
déspotas, aterrados pelo inesperado espetáculo, e ainda mais
aterrados pela própria consciência, que ainda no seio dos ím-
3 86 F . A. PEREIRA DA COSTA

pios levanta o seu tribunal, dita os seus juízos e crava os seus


punhais, desamparam o lugar donde haviam feito sair as or­
dens homicidas.
Habitantes de Pernambuco, crede, até se haviam tomado
contra os vossos compatriotas meios de assassinar indignos
da honra e da humanidade. Os patriotas no fim de duas ho­
ras, acharam-se sem chefe, sem governador: era preciso pre­
caver as desordens da anarquia no meio de uma povoação agi­
tada e de um povo revoltado. Tudo se fêz em um instante;
tudo foi obra da prudência e do patriotismo.
Pernambucanos, estai tranqüilos, aparecei na capital; o
povo está contente, já não há distinção entre Brasileiros e Eu­
ropeus; todos se reconhecem irmãos, descendentes da mesma
origem, habitantes do mesmo país, professores da mesma re­
ligião. Um governo provisório, iluminado, escolhido entre to­
das as ordens do estado, preside à vossa felicidade; confiai
no seu zêlo e no seu patriotismo. Vós vereis consolidar-se a
vossa fortuna, vós sereis livres do pêso de enormes tributos
que gravam sôbre vós; o vosso e o nosso país subirá ao ponto
de grandeza que há muito o espera, e vós colhereis o fruto
dos trabalhos e do zêlo dos vossos cidadãos. Ajudai-o com os
vossos, e êles serão ouvidos; com os vossos braços a pátria es­
pera por êle; com a vossa aplicação à agricultura, uma nação
rica é um a nação poderosa.
A pátria é nossa mãe comum; vós sois seus filhos, sois
descendentes dos valorosos Lusos, sois Portugueses, Ameri­
canos, sois Brasileiros, sois Pernambucanos.

MARÇO 8 — O comandante da vila de Goiana, coronel


João Pinto de Sousa, comunica ao govêrno da Paraíba as
ocorrências do Recife e as providências que tomara, escreven­
do:

“Em atenção a intempestiva notícia que há nesta vila,


tomei e lancei mão das medidas que da cópia junta se mostra,
e remeto a V. Sas. ; e como a desordem funesta mana da ca­
pital, e talvez nã*> tenha ainda chegado a respeitável presen-
ANAIS PERNAMBUCANOS 3 87

ça de Y. Sas., por isso a participo para que se dignem de de­


liberarem as providências que julgarem justas para auxílio do
serviço de S. Majestade Fidelíssima e tranqüilidade dc sosse­
go público; e eu aqui fico muito pronto para também auxi­
liar, o quanto, e por V. Sas. fôr determinado e pedido para
dito fim, esperando também que se as circunstâncias forem
tais, que não bastando as providências que além da cópia
junta tenho dado, segundo o meu alcance, Y. Sas. me auxi­
liem, casos me sejam precisos, para o que farei participação,
pois que todos devemos concorrer para tão bom sucesso e
tranqüilidade pública” .

O documento acusado não o encontramos.

MARÇO 10 — O advogado José Luís de Mendonça, um


dos vultos mais proeminentes do movimento revolucionário,
exibe em reunião do conselho do govêrno provisório da pro­
clamada república um escrito historicamente conhecido por
Preciso, da palavra inicial do seu título, cujo documento, que
teve vulgarização pela imprensa então estabelecida, poucos
dias depois, e constitui o seu primeiro fruto, relata todos os
acontecimentos ocorridos nos quatro dias de vida revolucio­
nária, do seu rompimento até o dia 9, trazendo a data de 10.
Impresso o documento, consta de um avulso in-fólio, com
uma fôlha de impressão, e raríssimo, apenas sabemos que
existe um exemplar no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro;
porém acha-se reproduzido na História da Revolução de 1817,
escrita pelo D r. Francisco Muniz Tavares, impressa no Re­
cife em 1840, e nas suas duas edições de 1884 e 1917, notan-
do-se porém a falta do título e a indicação da tipografia da
sua impressão: nós, porém, já o consignamos, por completo,
em um trabalho nosso sôbre o Estabelecimento e desenvolvi­
mento da imprensa em Pernambuco, e assim o reproduzimos
agora pela sua muita importância histórica.

“Preciso dos sucessos que tiveram lugar em Pernambuco,


desde a faustíssima e gloriosíssima Revolução operada feliz-
388 F . A. PEREIRA DA COSTA

mente na Praça do Recife, aos seis do corrente mês de m ar­


ço, em que o generoso esforço dos nossos bravos Patriotas
exterminou daquela parte do Brasil o monstro infernal da
tirania real.

“Depois de tanto abusar da nossa paciência por um siste­


ma de administração combinado acinte para sustentar as vai-
dades de uma Côrte insolente sôbre tòda a sorte de opressão
de nossos legítimos direitos restava caluniar agora a nossa
honra com o negro labéu de traidores aos nossos mesmos
amigos, parentes e compatriotas naturais de Portugal; e era
esta porventura a derradeira peça que faltava de se pôr à má­
quina política do insidioso govêrno extinto de Pernambuco.

“Começou o pérfido por ilaquiar a nossa singeleza pro­


clamando públicamente a 5 dêste mês que era amigo sincero
dos pernambucanos, que tinha repartido o seu coração com
êles, escrevendo êstes enganos com a mesma pena com que
acabava de encher no segrêdo do seu gabinete listas de pros-
critos, que tinha de entregar nas mãos do algoz. Brasileiros
de tôdas as classes, a mocidade de mais espírito do país, os
oficiais mais bravos das tropas pagas, em uma palavra, os
filhos da pátria de maior esperança e mais distintò mereci­
mento pessoal.

“Amanheceu enfim o dia 6 em que as enxovias haviam


de ser atulhadas de tantos patriotas honrados, e suas famí­
lias alagadas de dor e de lágrimas: convoca o maldito um
conselho de oficiais de guerra, todos invejosos da nossa gló­
ria; e depois dé ter assinado com êles a atroz condenação da­
quelas inocentes vítimas, despacha dali mesmo os que lhe pa­
receram mais capazes de lhe dar execução. Uns correm aos
quartéis militares, outros às casas particulares, fervem prisões
por tôda a parte, e já as cadeias começam a abrir-se para ir
engolindo um por um dos nossos bons compatriotas.

“Aqui, porém, mostraram os nossos como tinham capaci­


dade para saber conhecer que a desobediência tem todo o
ANAIS PERNAMBUCANOS 389

preço do heroísmo em certos casos, e d quando com ela se


salva a causa da pátria. Um bravo capitão deu o sinal do de­
ver de todos fazendo descer aos Infernos o principal agente
da injustíssima execução: corre-se às armas, e poucas horas
daquele mesmo dia foram todo o tempo de começar e aca­
bar tão ditosa revolução, que mais pareceu festejo de paz que
tumulto de guerra, sinal evidente de ter sido tudo obra da
Providência, e benefício da bênção do Todo Poderoso.

“0 ex-general recolhido à fortaleza do Brum e aonde su­


punha achar uma praça de defesa, achou a prisão da sua pes­
soa, e dos seus. Recorreu a proposições pacíficas, que acaba­
ram num conclusum com que foi obrigado a conformar-se no
dia 7 pelas 6 horas da m anhã. Desde logo foi restabelecida
tôda a ordem pública, não se ouviram mais outras vozes que
de aclamações gerais dignas do dia, em que um imenso povo
entrava na posse dos seus legítimos direitos sociais. Foi con-
seqüència disto não ter liavido até agora sequer um só dis­
túrbio, nem motivo qualquer de queixa.

“A 8 se instalou o govèrno provisório composto de cinco


patriotas tirados das diferentes classes, o qual govêrno tem si­
do permanente sempre em suas sessões. O seu primeiro cui­
dado foi désabusai* os nossos compatriotas de Portugal dos
mêdos e desconfiança, com que os tinham inquietado os par-
tidistas da tirania recebendo a todos com abraços, e ósculos,
segurando suas famílias, pessoas, e propriedades, de tôda a
sorte de injustiça, fazendo-os continuar em seu comércio,
tráfegos e ocupações, com maior liberdade que dantes, pro­
clamando enfim por um bando os sentimentos do govêrno, e
do povo, e não haver mais daqui por diante diferença entre
nós de brasileiros e europeus, mas deverem todos ser tidos
em conta de uma só, e a mesma herança, que é a prosperidade
geral de tôda esta Província.

“A 9 tudo se achava no mesmo espírito de concórdia, e


pacificação geral, sem o povo se ressentir doutra novidade
390 F . A. PEREIRA DA COSTA

que das bondades do Govêrno todo aplicado a promover a se­


gurança interior, por medidas acertadas, buscando esclarecer
a sua marcha com dividir matérias de maior importância por
comissões compostas das pessoas de maior capacidade, conhe­
cida por cada um dêles, com que tem obtido ao mesmo tem­
po popularizar as suas deliberações o mais possível.

“Naquele mesmo dia o govêrno foi permanente até a meia


noite para continuar diversos despachos, que hoje aparecerão,
sendo dos mais importantes fazer entrar os funcionários pú­
blicos nas suas ocupações como dantes, sem tirar ninguém
do seu ofício, proscrever as fórmulas do tratamento até ago­
ra usadas sem admitir nenhuma -outra que a de vós mesmo
com êle Govêrno, abolir certos impostos modernos de mani­
festa injustiça, e opressão para o povo sem vantagem nenhu­
ma da nação. E tal é o nosso estado político, e civil até hoje
10 de março de 1817. Viva a Pátria, vivam os Patriotas, e
acabe para sempre a tirania Real.

“Na Off Typ. da República de Pernambuco, 2a. vez res­


taurado . 1817” .

MARÇO 11 —- Resolução do govêrno provisório de enviar


aos Estados Unidos um agente diplomático na qualidade de
encarregado de negócios, e nomeação do patriota Antônio
Gonçalves da Cruz, o Cabugá, para desempenhar esta incum­
bência, tendo como secretário e intérprete da embaixada o pa­
triota Domingos Malaquias de Aguiar Pires Ferreira. A mis­
são de Cabugá tinha por objeto promover o reconhecimento
formal da nascente república pélo govêrno daquele país, de
engajar alguns oficiais franceses ali emigrados para servirem
no exército de Pernambuco, e compra de armamentos e pe-
trechos de guerra, mandando quanto antes remeter tudo ao
pôrto do Recife ou alguns outros das províncias limítrofes, no
caso de bloqueio. Para esta incumbência recebeu êle a quan­
tia de 60:000$000.
ANAIS l ’ERN AMBU CANOS 391

No dia 24 partiu a embaixada, acompanhando-a os votos


dos patriotas pelo bom êxito da missão. Chegando Cabugá
em Baltimore, satisfez logo a segunda parte da sua incumbên­
cia, e fazendo remessa de tudo para Pernambuco, seguiu para
Washington a tratar do primeiro e principal objeto da sua
missão. Mas o malogro da revolução — “não llie deu tempo
para desenvolver os seus grandes talentos diplomáticos, nem
se aproveitar da px-eciosa coadjuvação de Domingos Mala-
quias, secretâi’io-intéi'prete da legação” .

Cabugá leve de lutar com inúmeras dificuldades no de­


sempenho da sua missão diplomática. Só logrou ser recebido
pelo ministro dos negócios estrangeiros dos Estados Unidos
em caráter particular. Conseguiu, porém, a nomeação de Jo­
seph Ray, um seu amigo, e simpático à causa de Pernambu­
co, pai’a as funções de cônsul geral dos Estados Unidos no
Recife, ato este que importava uma aparência de reconheci­
mento oficial da nascente república, e bom comêço de cami­
nho a êste desideratum.
Entretanto, o ministro de Portugal em Washington, o
abade Correia da Serra, providenciava de modo a estorvar os
intuitos de Cabugá, chegando mesmo a solicitar do govêrno
americano que o vigiasse, prevenindo-lhe de todos os seus
passos, e ainda o embargo dos carregamentos de armas e mu­
nições de gueiTa, e tie homens que partissem dos Estados Uni­
dos com destino a Pernambuco; mas o govêrno federal mos-
trou-se surdo a todos os seus pedidos e reclamações.
Comunicando logo aquêle agente português ao govêrno
central do Rio de Janeiro tôdas as ocorrências, chegaram elas
como que ao tempo da queda do movimento revolucionário,
e de modo a que as remessas feitas por Cabugá ainda não ha­
viam tocado terras brasileiras, já a república pernambucana
tinha deixado de existir.
Sôbre o assunto, ocorrem minudências outras, em um in­
teressante estírito do nosso ilustre conterrâneo D r. J . A. Fer­
reira da Costa, sob o título: Napoleão I no Brasil, publicado
392 F . A. PEREIRA DA COSTA

em francês, na Revue du Mond Latin, de 1880, e traduzida,


consignada na Revista n. 57 de 1903, do nosso Instituto Per­
nambucano .

MARÇO 15 — Decreto do governo provisório da procla­


mada república pernambucana, assegurando aos senhores de
escravos a sua propriedade sôbre os mesmos, reservando-se o
governo a tomar a seu tempo medidas capazes de diminuir
o mal, e bem assim o escândalo do tráfico de africanos.
Os motivos deste ato, e o que pensava o governo a res­
peito, convenientemente manifestou-os nesta proclamação que
teve imediata publicidade:

“Patriotas Pernambucanos! A suspeita tem-se insinuado


nos proprietários rurais: èles crêein que a benéfica tendência
da presente liberal revolução tem por fim a emancipação in­
distinta dos homens de côr e escravos. O Govêrno lhes per­
doa uma suspeita que o honra. Nutridos em sentimentos ge­
nerosos não podem jamais acreditar que os homens por mais
ou menos tostados degenerassem do original tipo de igualda­
de; mas está igualmente convencido que a base de toda a so­
ciedade regular é a inviolabilidade de qualquer espécie de pro­
priedade. Impelido destas duas forças opostas deseja uma
emancipação, que não permita mais lavrar entre êles o cancro
da escravidão: mas deseja-a lenta, regular e legal. O Govêr­
no não engana a ninguém; o coração se lhe sangra ao ver tão
longinqua uma época tão interessante: mas não a quer pre-
póstera. Patriotas, vossas propriedades ainda as mais opug-
nantes ao ideal da justiça serão sagradas; o Govêrno porá
meios de diminuir o mal, não o fará cessar pela fòrça. Cre­
de na palavra do Govêrno: ela é inviolável, ela é santa” .

“O verdadeiro filantropo deve regozijar-se com a leitura


desta Proclamação, escrevia Muniz Tavares em 1840 na edi­
ção princeps da sua História da Revolução de Pernambuco em
1817. Quantos princípios luminosos expressos em tão poucas
frases! A maldição lançada contra o hórrido tráfico da carne
ANAIS PERNAMWCANOS 39 3

humana aparece forçada a conciliar-se com o respeito devido


à propriedade. Como filósofos escudados na razão, desafia­
vam os fautores e conselheiros da degradação de homens, com
quem a natureza divertiu-se variando-lhes a còr, como varia
as fisionomias; na qualidade de políticos vinculados pela dura
lei da necessidade, cediam preconizando o momento venturoso,
cm que uma conveniente indenização viria acalentar o ávido
proprietário, poupar à humanidade os gemidos e ao traficante
imprevista perda. O coração sincero daqueles patriotas não
valeu-se de subterfúgios no anúncio da verdade, com tôda a
solenidade proclamou que em ceder fazia o máximo dos sa­
crifícios; que sofria, contemplando ainda remota a época da
onímoda regeneração dos infelizes filhos do Pai Universal.
Bastava êste ato do Governo Provisório para perdoar os seus
erros.

“Em boa fc, continua Muniz Tavares, quem poderá negar


que a escravidão é o mais terrível dos flagelos que martirizam
o Brasil, retardam a sua civilização, corrompem os costumes,
o degradam e empobrecem? Consultem os proprietários rurais
com maduro exame os seus interesses, e saberão que o vistoso
lucro de suas terras é todos os anos sepultado na mesma ter­
ra sem lhes deixar outra indenização senão os gemidos dos
desgraçados, a quem êles, ou seus feitores, por uma mal en­
tendida economia, privaram do alimento e vestidura necessá­
ria, dilaceraram as carnes e apressaram a morte. Os pais de
família lançam os olhos sôbre o interior de suas casas, e se
ainda conservam os sentimentos de honra baseados na sã mo­
ral, de certo não poderão conter as lágrimas vendo a depra-
vação que ali reina, o contágio que se vai inoculando com o
leite em seus tenros filhos, contágio que jamais será extinto,
enquanto durar a escravidão dos homens de côr. A escravi­
dão é um monstro que entorpece e perverte os corações mais
puros. Aos Bepresentantes da Nação Brasileira toca agora de­
cidir, se é chegado o suspirado momento, que aquêles Governa­
dores Provisórios em sua sabedoria previram, e com a lega-
394 F . A. PEREIRA DA COSTS

lidade por êles recomendada apaguem a nódoa que nos dei­


xaram os primeiros desumanos colonos do nosso solo” .

Com a consignada Proclamação de 1817, aquêle escrito


de Muniz Tavares, lavrado em 1840, o que já deixamos regis­
trado e ainda, no correr dêste nosso trabalho, teremos que o
fazer, fica em destaque o papel de Pernambuco, a sua pró­
pria prioridade, na campanha da libertação dos escravos até
que soou o momento da sua tão desejada decretação.

MARÇO 28 — Começa a laborar a nova oficina tipográ­


fica, escreve um cronista do tempo, o Padre Joaquim Dias
Martins, e chovem proclamações Precisos e outros trabalhos
impressos no papel do antigo selo, mas com as armas reais
para baixo.
Aquela oficina é uma, cujo material completo existia en­
tre nós desde 1815, mandado vir da Europa pelo comercian­
te Ricardo Fernandes Catanho, que apesar de obter a neces­
sária licença régia para trabalhar, não o conseguiu à falta de
pessoal habilitado para semelhante fim, e que somente ago­
ra, em 1817, e com o rompimento da revolução, é que foi mon­
tada e começou a regularmente funcionar.
Segundo o escritor francês Fernando Denis, no seu livro,
O Brasil, dois frades, um inglês e um marujo francês, arvo­
raram-se em compositores, e montada a tipografia começou a
trabalhar; mas o nosso conhecido e criterioso escritor Antô­
nio Joaquim de Melo, que na época vivia no Recife exercendo
um cargo público de justiça, diz o seguinte na Biografia de
José da Natividade Saldanha: — “Quem montou esta tipogra­
fia na cidade do Recife, depois de 6 de março de 1817, foi o
inglês James Pinches, que por alguns dias a administrou, e
sucedeu-lhe Joaquim Bernardo Fróis, natural de Pernambu­
co, assim como o eram todos os outros paisanos trabalhado­
res ou compositores” .
A direção literária dos trabalhos da imprensa, segundo
consta do depoimento do D r. Antônio Carlos Ribeiro de An-
drada Machado e Silva, como implicado no movimento re-
ANAIS PERNAMBUCA 39 5

volucionário, acertadamente coube a um homem competente


e ilustrado, o Padre João Ribeiro Pessoa de Melo Montene­
gro; e o serviço artístico foi confiado a um profissional, o ci­
dadão inglês James Pinches, que se fixou definitivamente em
Pernambuco, trabalhando sempre na arte, e constituiu famí­
lia; mas em 1836 já ei’a falecido, como consta de uma certi­
dão de fôlha corrida de um de seus filhos, Tomás Francisco
Pinches, que se retirou pára o Ceará.
O primeiro fruto da tipografia republicana, muito co­
nhecido pela sua repetida reimpressão, tem por título: Preci­
so dos sucessos que tiveram lugar em Pernambuco, desde a
faustíssima e gloriosíssima revolução operada felizmente na
praça do Recife, aos seis do corrente mês de março, em que
o generoso esforço dos nossos bravos patriotas exterminou
daquela parte do Brasil o monstro infernal da tirania real.
Èste escrito, datado de 10 de março, foi vulgarizado, porém,
no dia 28, quando a tipografia iniciou os seus trabalhos.
Apesar de, começando a laborar a oficina, choverem pra-
clamações, precisos e outros trabalhos, na frase do cronista
coevo, como vimos, indicando assim que avultaram, bem
poucos dêsses impressos, porém, lograram atravessar o longo
estádio de um século e chegar aos nossos dias; e assim, além
do referido Preciso, só nos é dado registrar os seguintes:
«

Proclamação dirigida aos —■ Habitantes de Pernambuco,


— Dada na Casa do Govêrno Provisório aos 9 de março de
1817, — e firmada pelo padre João Ribeiro Pessoa, Manuel
Correia de Araújo, José Luís de Mendonça e Domingos José
Martins. Impressa: Na Oficina Tipográfica da 2a. Restaura-
çam de, Pernam buco.
Decreto abolindo os impostos do Alvará de 20 de outu­
bro de 1812 sobre lojas, navios e canoas, e bem assim o sub­
sídio militar de 160 réis em arroba de carne verde. Lavrado
na Casa do Govêrno Provisório de Pernambuco, em 9 de m ar­
ço e firmado pelo Padre João Ribeiro Pessoa, Domingos Teo-
tônio Jorge e Manuel Correia de Araújo, traz a declaração
39 6 F . A. PEREIRA DA COSTA

de impresso: Na Oficina Tipográfica da República de Pernam­


buco 2a. vez restaurado.
Èstcs dois impressos correm reproduzidos no T. XXXI
de 1917 da Revista Trimer.sal do Instituto do Ceará.
Os Governadores do Bispado confirmados pelo Govêrno
Patriótico, saúdam em nome de Jesus Cristo, e desejam sè-
riamente a Paz, e tranqüilidade de consciência a tôdas as suas
Ovelhas. Pastoral datada dc Olinda a 31 dc março de 1817, e
firmada por Os Patriotas Bernardo Luis Ferreira Portugal.
Manuel Vieira de Lemos. João Rodrigues Mariz. — Na Ofici­
na Tipográfica da República de Pernambuco 2a. vez restau­
rado. — A Biblioteca Pública do Estado possui um exemplar
desta Pastoral, no curioso livro de avulsos impressos, sob o
título: Pessas Officiaes relativas as Revoluções de Pernambu­
co. 1817 a 1825.

Denodados Patriotas Baianos. Proclamação, sem data c


assinatura, que termina: “Baianos, acordai as Vossas às Nos­
sas Vozes, e entoemos o Santo Hino: Viva a Religião, Viva
a Pátria, Viva a Liberdade” . — Na Oficina Tipográfica, da
2a. restauração de Pernambuco. — A mesma Biblioteca pos­
sui um exemplar desta Proclamação no referido livro de
avulsos.
Enfim ,.m ais uma outra Proclamação, sem data, aos Ha­
bitantes do Ceará. Povo Brioso. Na Tipografia da Repúblida
de Pernambuco 2a. vez restaurado (1817). — In-fólio. O Ar­
quivo Público do Rio dc Janeiro possui um exemplar.
Nos depoimentos prestados pelos comprometidos na re­
volução, perante a devassa aberta para os julgar, são aque­
las proclamações atribuídas à autoria do D r. Antônio Carlos
Ribeiro de Andrada Machado e Silva, e dos padres João Ri­
beiro Pessoa e Miguel Joaquim de Almeida e Castro, o Mi-
guelinho.
Confeccionado o projeto de lei orgânica que devia reger
provisoriamente a república, foi proclamada no art. 25 a li­
berdade de imprensa, “ficando, porém, o autor de qualquer es­
crito e o impressor sujeitos a responder pelos ataques feitos
ANAIS PERNAMBUCANOS 397

à religião, à constituinte, bons costumes e caráter dos indiví­


duos, na maneira determinada pelas leis em vigor” ; como
consta da publicação do referido projeto no número 18 do
Typhes Pernambucano de 13 de maio de 1821.
Debelada a revolução e restaurada a monarquia, baixou
em 15 de setembro de 1817 um aviso firmado pelo ministro
Tomás Antônio de Mia Nova Portugal, dirigido ao governa­
dor Luís do Rego Barreto, no qual se lê, que “tomando o go­
verno em consideração o infame abuso que se fêz da oficina
tipográfica em Pernambuco, houve por bem cassar a licença
que concedeu por Aviso de 9 de novembro de 1816 para o
seu estabelecimento”, —- ordenando destarte ao governador —
“que a mandasse fechar e remetesse o seu m atrial para o Rio
de Janeiro” .
Em observância do mencionado aviso, o governador or­
denou por portaria de 1 de novembro, ao tenente-coronel ins­
petor do Trem, que mandasse tomar conta da imprensa, que
se achava no Poço da Panela a cargo de João Francisco Car­
neiro Monteiro, e fizesse conduzir com tòdas as suas perten­
ças para um dos armazéns do Trem, e da mesma sorte todo
o papel que se encontrasse, fazendo de tudo um exato inven­
tário .
Efetivamente, foi apreendida a tipografia, e com ofício
de 8 de novembro remeteu o inspetor do Trem Real, o tenen­
te-coronel Raimundo José da Cunha Matos, ao governo o in­
ventário de tudo que se havia encontrado da tipografia na ca­
sa de João Francisco Carneiro Monteiro, no Poço da Panela,
dizendo: — que os tipos estavam misturados uns com outros,
o papel espalhado pelo chão, e a armação de madeira da
prensa cheia de cupim, de forma que absolutamente ignorava
se a dita prensa estava completa, e se lhe faltava ou
não algumas peças de ferro e madeira, e o mesmo quanto
aos tipos- — Ao referido ofício acompnhou êste documento:

“Inventário que por ordem do Ilm. e Exm . Sr. Gover­


nador e Capitão-General se faz de uma imprensa tipográfica,
398 F . A. PEREIRA DA COSTA

e do papel que se acha no sítio do Poço da Panela entregue


a João Francisco Carneiro Monteiro, e passa a depositar-se no
Trem Real desta Capitania.

“220 resmas de papei de imprimir, 20 ditas avulso, 36


ditas em três fardos, 5 ditas de selos, 2 bancas com gavetas, 1
pedra mármore, 1 jarra, 1 banco da dita, 22 tabuleiros com
tipos variados, 3 bancas de composição, 1 imprensa dividida
em seis peças, 5 paus da mesma, 8 grades de ferro, 3 ferros
de tambor, 1 prensa de livreiro, 2 prensas pequenas de apa­
ra r papel, 2 livros, 9 caixões com tipos variados, 1 dito com
ditos e 4 balas de dar tinta, 1 dito com lã, couro e quatro
paus de balas, 1 panela vidrada, 1 temão de imprensa, 2 bar­
ris de tinta, 1 caldeira de fazer grude, 1 carteira de pôr papel,
3 cadeiras de encosto, 2 ditas rasas, 2 fragatas, 1 tesoura gran­
de, 1 serrote pequeno, 2 facas, 1 martelo de ferro, 2 barris
pequenos destapados com tipos, 1 tímpano, 1 tinteiro e um
areeiro, 1 balaio com tipos em papel, 1 gaveta com vários uten­
sílios pertencentes a imprensa, 1 garrafa de azeite” -

Êste inventário, lavrado na povoação do Poço da Panela


a 7 de novembro, vem firmado pelo depositário da tipografia,
João Francisco Carneiro Monteiro, e por João Nepomuceno
Pais e Mendonça, Escrivão ajudante.
Apesar da ordem terminante do Aviso de 15 de setem­
bro, o governador não fêz imediatamente embarcar a tipo­
grafia para o Rio de Janeiro, e somente por portaria de 16
de setembro do ano seguinte, 1818, em virtude da reclamação
do Ouvidor-Geral da comarca, D r. Antero José da Maia c Sil­
va, contida em ofício da mesma data, foi que determinou ao
Inspetor do Trem que embarcasse a bordo do brigue Gavião
os utensílios pertencentes às oficinas tipográficas apreendida
aos rebeldes, remetendo à secretaria do govêrno o respectivo
conhecimento.
Mesmo assim não teve ainda execução aquela determi­
nação, porquanto por portaria de 6 de fevereiro de 1819, foi
de novo ordenado ao Inspetor do Trem que entregasse ao In-
ANAIS PERNAMBUCANOS 399

tendente de Marinha a imprensa tipográfica que se achava de­


positada nos armazéns do mesmo Trem, e então teve efetiva­
mente lugar a remessa da Tipografia dos Rebeldes para o Piio
de Janeiro, no bergantim Gavião, para ser entregue ali ao
Conde dos Arcos, ministro dos negócios da marinha e Ultra­
mar, como se vê do ofício do intendente da m arinha Alexan­
dre de Sousa Malheiros de Menezes, de 5 de março do mesmo
ano, dirigido ao governador Luís do Rego Barreto, e ao qual
acompanhou uma relação de todos os objetos embarcados.
E \ porém, tradicional, que o governador não mandou pa­
ra o Rio de Janeiro todo o material da tipografia, deixando fi­
car em depósito no Trem Militar um aboa porção de tipos,
sem dúvida à espera de melhor oportunidade para estabelecer
uma outra tipografia, o que efetivamente fêz em 1821.

■»Prêso o enviado de Pernambuco à Bahia, o Padre José


Inácio Ribeiro de Abreu e Lima, no dia anterior, e vulgari­
zada já a notícia do rompimento revolucionário de Pernam­
buco, o governador Conde dos Arcos começa logo a providen­
ciar, com atividade, no intuito de sufocar a nascente repúbli­
ca, e assim nçste dia, faz imediatamente m archar com desti­
no às Alagoas, um esquadrão de cavalaria sob o comando do
m ajor Francisco de Paula Oliveira; e no dia seguinte, quan­
do teve lugar a execução capital daquele ilustre patriota, em­
barca com o mesmo destino um batalhão de artilharia co­
mandado por D. Luis Baltasar da Silveira.
Desejando aquêle governador enviar contra Pernambuco o
maior número possível de tropas, embarca a 6 de abril mais
60 praças de artilharia comandadas pelo capitão Francisco
de Paula Miranda Chaves, e no dia 7 de maio 80 praças do
regimento l.° de infantaria, comandadas pelo m ajor Rodrigo
de Argolo Vargas Cimes de Menezes, sendo o chefe de tôda
a fôrça expedicionária o marechal Joaquim de Melo Leite Co-
gominlio de Lacerda, tendo por ajudantes de ordens os ma­
jores fJosé Egídio Gordilho de Barbuda, e Salvador José Ma­
ciel.
400 F . A. PEREIRA DA COSTA

Pasmosa atividade desenvolveu o conde dos Arcos apenas


informado dos acontecimentos do dia 6 de março, refere
Fernandes Pinheiro, e havendo colhido as provas da cumpli­
cidade de crescido número de cidadãos notáveis da Bahia,
fêz do seu silêncio uma arm a para obter que o coadjuvassem
no projeto que tomara de sufocar a revolução, em seu nas­
cedouro. Feito apelo à fortuna dos mais comprometidos, re-
gorgitou o dinheiro nos cofres públicos ,e com admirável pres­
teza equipou e artilhou dois navios (o Mercúrio e o Carrasco)
para que fossem bloquear o Recife, enquanto fazia partir o
marechal Joaquim de Melo Cogominho de Lacerda à frente
de oitocentos homens de tôdas as armas, a fim de que, asse­
gurando-se da fidelidade de Sergipe, transpusessem o S. Fran­
cisco, talando o território inimigo.
Já então havia o Conde dos Arcos proclamado aos Habi­
tantes de Pernambuco, dizendo-Jhes : — Marcham para a co­
marca das Alagoas bandeiras portuguesas, e soldados baianos,
para as içar em tòda a extensão dessa capitania; — e depois
intima a que todos os seguissem imediatamente, e marchassem
junto àquelas bandeiras, sob pena de serem fuzilados, e con­
clui comentando a êsses soldados baianos — atirar-lhes a es­
pingarda como a lobos!
As tropas baianas, reforçadas com uma companhia de ca­
valaria miliciana de Sergipe, entraram nas Alagoas atraves­
sando o rio S. Francisco em frente à vila do Penedo, e ‘entu­
siástica e festivamente recebidas tiveram alojamentos e pro­
vimentos durante a sua permanência na localidade, de onde
marcharam para o Recife com um efetivo de 2.664 praças,
inclusive 1.580 que ali receberam constantes de milicianos
brancos e pardos do Penedo, de Santo Amaro das Grotas,
Alagoas, Anadia, Pôrto Calvo e de Pedras, um trôço de cava­
laria das Grotas e umas esquadras de caboclos arregimenta­
das da vila de Atalaia, cujas praças, abrindo mão das suas
vantagens militares, patenteavam assim o exaltado ânjmo —
realista que as inflamavam. Os habitantes da nossa comarca
ANAIS PERNAMBUCANOS 401

das Alagoas iam assim, com essas suas novas manifestações


do mais puro e santo realismo, preparando terreno para a
sua separação de Pernam buco.. .
O exército realista fèz tôda a sua marcha, entrando no
território pernambucano, sem o menor esforço, até chegar em
terras do termo da vila do Cabo de Santo Agostinho, onde
os republicanos o foram esperar.
Sôbre o movimento de forças e encontros com os realis­
tas, consta o seguinte:

A 6 de abril embarca José Mariano de Albuquerque Ca­


valcanti em uma sumaca e parte para a vila das Alagoas, cotai
o tenente Francisco Antônio de»
Sá Barreto e mais alguns ofi-
ciais e sessenta soldados, conduzindo duas peças de campa­
nhas, avultado armamento e a competente munição, às soli­
citações do comandante da praça o tenente-coronel Antônio
José Vitoriano Borges da Fonseca, para melhor garantir a
adesão da comarca à causa da independência.
No dia 8 chegam rumores de descontentamento nos po­
vos do Sul do Cabo, e embarcam 100 praças sob o comando
do capitão João do Bêgo Dantas Monteiro para reforçar o
destacamento de Tamandaré, mas ventos contrários o demo­
ram .
A 9 chegam noticias da Bahia dos preparativas de guer­
ra contra Pernambuco, da execução capital do Padre Roma,
e vulgariza-se uma proclamação do governador Conde dos
Arcos, exortando os pernambucanos realistas a reagirem con­
tra os rebeldes; e dois dias depois chegam os navios Carras­
co, Mercúrio e Audaz, armados em guerra, para bloquearem
o pôrto do Recife. Escapa-se, porém, e recolhe-se ao pôrto o
brigue Carvalho Quinto, armado em guerra, do serviço da
proclamada república, cruzando no litoral, e desembarca o re­
forço de Tamandaré, que segue por terra. — Principia o de­
salento; sustos gerais; — na-frase de um cronista do tempo.
No dia 11 começam os atropelados preparativos e con­
vulsivas evoluções de defesa, surgem suspeitas e desconfian­
ças; e no dia seguinte aparecem clandestinamente as fogosas
402 F . A. PEREIRA DA COSTA

proclamações do Conde dos Arcos, certificando os pernambu­


canos da m archa de forças do m ar e terra, a fim de restabe­
lecerem o governo real; ameaçando que se não daria quar­
tel à cidade, vila e nem povo senão debaixo das bandeiras reais,
e exortando a todos que atirassem sôbre os governadores re­
beldes como a lobos. Ao aparecimento de tais proclamações,
baixou o governo provisório um decreto proibindo, sob pena
de morte, a sua propagação e leitura, e criando ao mesmo
tempo para a sua devida observância um tribunal de polícia,
do qual foi juiz o patriota Filipe Néri Ferreira.
No dia 16 baixa o governo um decreto cominando a pena
de morte a todo o indivíduo desocupado, sem profissão algu­
ma, que não acudisse aos reclamos da pá Lia, prontamente
assentando praça em um dos corpos de linha.
A 19 chegam comunicações oficiais do coronel Antônio
José Vitoriano Borges da Fonseca, datadas das Candeias —
contando a sua desgraça no ataque contra os realistas em
Porto de Pedras, a entrada e rápida m archa do exército da
Bahia, e a insurreição da vila das Alagoas e sua comarca —
No mesmo dia chegam também ofícios do capitão João do
Rêgo Dantas Monteiro, comunicando ter encontrado cortada
a ponte do Anjo em Serinhaém, os povos do sul em comuni­
cação com o bloqueio do pôrto do Recife, e com o marechal
comandante do exército realista, e a necessidade em que se
vira de contramarchar para as Candeias.
A 20 proclama-se a Pátria em perigo, convidam-se os
escravos a voluntariamente assentar praça no exército, pro-
metendo-se-lhes a liberdade e o fôro de cidadão, e bem assim
a sua indenização a seus Senhores, finda a guerra. Muitos es­
cravos acodem aos reclamos da pátria, sob tais garantias.
O governo resolve que a povoação de Candeias, situada
no litoral, um pouco ao Sul da Boa Viagem, ficasse sendo o
centro de reunião das tropas republicanas para a organiza­
ção de um corpo de exército destinado a enfrentar o realista,
que em marcha acelerada caminhava para o Recife, sendo
enviados m il homens para o exercício das armas, tendo como
AXAIS PERNAMBU CANOS 403

instrutores os competentes oficiais Antonio José Vitoriano


Borges de Almeida e José Mariano de Albuquerque Cavalcanti.
A 22 ordena o govèrno ao coronel Pedro da Silva Pedro-
so que imediatamente completasse o efetivo dos batalhões de
linha com milicianos e escravos, — que por bem ou por mal
pudesse reunir; — e que os corpos de milicias se achassem
formados naquele mesmo dia, nas suas paradas, às três horas
da tarde. Com semelhante intuito abala Pedroso com o seu
batalhão, levando em frente quatro peças de campanha, visi­
ta os diferentes corpos milicianos, em forma, cercando-os, es­
colhe os soldados mais robustos, separa-os e assenta-lhes praça
na primeira linha do serviço.
No dia seguinte chega do Rio de Janeiro o almirante Ro­
drigo José Ferreira Lôbo, para comandar o bloqueio do pôr-
to, trazendo mais quatro vasos de guerra, a fragata Thetis,
duas corvetas e uma charrua. — Espantos gerais; cresce a
insolência dos realistas; estremece a Liberdade.

O governo deixa a sua sede em Santo Antônio, e passa-se


para a Boa Vista, instalando-se no desocupado palácio episco­
pal da Soledade, para acautelar o perigo de \pm ameaçado
bombardeamento. Grande número de famílias fogem para o in­
terior. Pânico geral. O Recife quase que deserto.
Grandes preparativos de guerra para a mobilização de
tropas, com segurança, ir encontrar ou esperar o inimigo em
terras do Cabo de Santo Agostinho; mas crescem os perigos
pela apostasia das vilas de Santo Antão (Vitória hoje), e Pau-
dalho, rebeladas pela audácia de um padre de nome Pascoal
Pires.
A 28 partem o general de divisão Suassuna para o Cabo
a pôr em movimento regular o exército acantonado nas Can­
deias e o coronel Luís Francisco de Paula Cavalcanti de Al­
buquerque, para Santo Antão, com o fim de sufocar o mo­
vimento sedicioso, que nada conseguiu, regressando cinco dias
depois, quase que fugidainente. Foi chamado o coronel José
Mariano de Albuquerque Cavalcanti para ir bater os rebeldes
de Paudalho, parte do Recife com 60 soldados, organiza em
404 F . A. PEREIRA DA COSTA

Igarassu uma força de 400 homens, e rumando sobre aquela


vila, ataca e destroça os realistas.
Em sua passagem por Olinda foi exortado pelo deão D r.
Bernardo Luis Ferreira Portugal para que lhe trouxesse vivo
ou morto o infame Padre Pascoal Pires, — porque nêle que­
ria m ostrar à posteridade como se castigam eclesiásticos trai­
dores à Pátria.

MARÇO 29 — Ofício do D r. Antônio Carlos Ribeiro de


Andrada Machado e Silva, conselheiro de estado do governo
provisório, dirigido ao juiz ordinário e mais oficias da Câ­
m ara de Olinda, remetendo o projeto da Lei Orgânica, dis­
cutido e aprovado pelo conselho e governo, a fim de que a
Câmara, para a sua execução, e caso o achasse apropositado,
convocasse o povo de tôdas as classes para votar o dito Proje­
to, e do que se lavraria o competente auto, que o remetería
por certidão para ser presente ao govêrno. O D r. Antônio
Carlos conclui o seu ofício dizendo que êsse ato deveria ser
o mais solene possível, cumprindo que a êle concorresse o po­
vo, pois lhe interessava conhecer o como havia de ser gover­
nado, e que considerasse para o assistir o capitão-mor, vigá­
rios e mais pessoas notáveis do distrito, devendo tudo ser fei­
to com brevidade.
Ofícios de igual teor foram, sem dúvida, dirigidos às de­
mais câmaras municipais, porquanto, na frase do padre J.
Dias Martins, a Lei Orgânica, de que foi o D r. Antônio Car­
los o principal autor, ou pelo menos o principal colaborador,
foi proposta à sanção do povo reunido em câm ara. Depois,
reunir-se-ia uma Assembléia Constituinte e Legislativa, como
assim escreve êle a seu irmão, o D r. José Bonifácio Ribeiro
de Andrada Machado e Silva, em carta de 19 de abril, comu-
nicando-lhe que a referida Assembléia ia ser convocada.
Tratando o historiador coevo, Muniz Tavares, do assun­
to, diz que o govêrno provisório e o seu conselho ocuparam-
se com um projeto de constituição, a que deram o titulo de
Lei Orgânica, em cujo trabalho se consumiu longo tempo, de
maneira que, quando foi apresentado, já era mui diversa a
AXAIS PERNAMBUCANOS 405

face dos negócios pela variação das províncias limítrofes, fa­


zendo em seguida uma substancial resenha do documento.
O projeto, porém, não foi impresso, mas como avultaram
as suas cópias remetidas às Câmaras Municipais e naluralmen-
te às províncias confederadas, além das que deviam ter fica­
do arquivadas para os trabalhos da assembléia constituinte,
veio daí a apreensão de um exemplar, (pie com outros docu­
mentos da revolução, foi remetido para a côrte do Rio de
Janeiro e figura na coleção de manuscritos da Biblioteca Na­
cional, e um outro, —- que parando em mão de uma pessoa
de letras — foi comunicado a Caneca em 1821, que logo o
publicou no n. XVIII do seu periódico O Typhis Pernambu­
cano, sob o título: Projeto da Lei Orgânica, que deveria reger
provisoriamente a República Pernambucana, proclamada a
8 de março de 1817, enquanto se não formasse a sua Cons­
tituição .
Este projeto, organizado pelo Govêrno Provisório da Re­
pública de Pernambuco, não tem datai consta de vinte e oito
artigos e é precedido de um breve preâmbulo explicativo; e
do exemplar existente na Biblioteca Nacional do Rio de Janei­
ro, vem a sua consignação nas Anotações (CIV) à História
da devolução de Pernambuco em 1817 pelo D r. Francisco Mu­
niz Tavares, terceira edição comemorativa do l.° centenário,
revista e anotada por Oliveira Lima. Recife, 1917.

Em seguida à consignação do documento, escreve Oliveira


Lima :

“O projeto de Lei orgânica acima transcrito, de que en­


contrei a cópia original entre os papéis da Biblioteca Nacio­
nal e que já ouvi atribuir a Frei Caneca, sem haver entre­
tanto motivo de meu conhecimento que autorize tal alegação,
parecendo antes ter sido obra de Antônio Carlos, não cogi­
ta propriamente da organização futura e definitiva da Repú­
blica. Form a apenas um conjunto de disposições constitucio­
nais transitóriais, pelas quais era mantida por um tempo de­
terminado a pentarquia inicial, dando-se-lhe todavia uma for-
406 F . A. PEREIRA DA COSTA

ma mais viável e completa para benefício da administração pú­


blica. Quando muito, representava um esboço da Constitui­
ção a vir, uma fixação das suas bases” .

Quanto à autoria do projeto atribuída a Caneca, não há


razão alguma para assim pensar, não somente pelo que já fi­
cou dito sôbre a sua organização, como mesmo pelo que es­
creve o próprio Caneca em umas breves palavras após a sua
publicação, no referido periódico, em 1824.
Diz êle, enfim, parecer-lhe, que o projeto estava truncado,
e que supunha faltar-lhe alguma coisa pela idéia que tinha
do que lera em 1817; mas por um cotejo que fizemos das duas
mencionadas lições, são ambas idênticas, salvo algumas ligei­
ras divergências, aliás não substanciais, e naturalmente origi­
nárias de erros de cópia. Em todo caso, a versão de Caneca é
de uma correção superior, e para a qual, preferentemente, en­
caminhamos o leitor.

E ’ fuzilado, às duas horas da manhã, no Campo da Pól­


vora da cidade da Bahia, o Padre D r. José Inácio Ribeiro de
Abreu e Lima, sendo sepultado na igreja matriz de Santana,
por pedido do respectivo vigário, o Padre Manuel Coelho de
Sampaio Menezes.
O Padre Roma, como assim era vulgarmente conhecido,
envolvido no movimento revolucionário de Pernambuco, que
acabava de explodir, proclamando a independência da pátria,
recebeu logo a incumbência de uma delicada e perigosa mis­
são à Bahia, e aceitando-a sem tergiversações, partiu para as
Alagoas, munido de cartas credenciais, proclamações e outros
documentos, e deixando ali abraçada a revolução, freta uma
balsa em Maceió e segue para Bahia, onde já sendo conheci­
das a sua notícia e a missão de que ia investido, o esperavam
com ansiedade. O Conde dos Arcos, governador da província,
tinha tomado as providências necessárias, e estava tudo pre­
venido para a sua prisão, apenas aparecesse.
Cegamente navegava o Roma, escreve Muniz Tavares,
presumindo encontrar nos baianos a mesma disposição libe­
ANAIS PERNAMBUCANOS 407

ral, que havia observado por todos os lugares por onde pas­
sara- Êle tinha sempre ouvido falar com reverências dos
personagens que ali trabalhavam pela regeneração do Brasil, e
pouco ou nenhum apreço fazia do Conde dos Arcos, que mais
se dedicava aos passatempos feminis do que aos negócios do
estado. A balsa em que embarcou, distinguia-se, como todas
as de Pernambuco, pela form a da vela, o que em tal ocasião
não podia deixar de excitar suspeitas.
O jangadeiro, em vez de entrar em algum pôrto perto de
Itapoam, e desembarcar, ou mesmo no Rio Vermelho, puxou
mais para além, e na tarde de 26 de março, hesitando em
aproximar-se da terra, começou a bordejar, até que à noite
fundeou entre as fortalezas de S. Diogo e Santa Maria. Des­
tacado um tripulante da embarcação para ir à terra comprar
mantimentos, foi ter à taverna de um Simplício Manuel da
Costa, cabo de polícia da localidade, e dizendo-lhe o homem
às indagações, feitas do que trazia, que eram côcos, pretextou
vê-los o taverneiro para fazer negócio, mas desconfiadamen-
te, embarcou também; porém ali chegando e vendo o padre, o
reconheceu logo pelos seus sinais característicos já vulgariza­
dos, e dando-lhe imediatamente voz de prisão, o conduz à
terra.
No dia seguinte dava a vítima entrada na cadeia da ci­
dade, e metido em um cárcere, foi ai constantemente insul­
tado pelos portuguêses que emigraram do Recife ao rompi­
mento da revolução, e que o iam ver para o reconhecer e
atestarem ao governador que era aquêle mesmo o enviado de
Pernambuco. Os baianos comprometidos na revolução, tre­
meram ao saber da prisão do emissário, porém o ilustre pa­
triota teve uma espécie de pressentimento, a providente re­
solução de lançar ao m ar a correspondência e demais papéis
comprometedores aos baianos, ao ver-se irremissivelmente
perdido.
E os baianos, em vez de acompanhar o movimento de
Pernambuco, e livrar aquêle que por êles se ia sacrificar, aco­
vardam-se e lançam-se servilmente aos pés do Conde dos Ar-
4 08 F . A. PEREIRA DA COSTA

cos, protestando-lhe lodo o seu amor e dedicação pelo melhor


dos reis!
O Conde tinha já em suas mãos o corpo de delito do
Padre Roma, uma cópia da ala da eleição do governo provi­
sório de Pernambuco, em que o seu nome figurava em se­
gundo lugar.
Verificada a identidade da pessoa, compareceu algemado
o ilustre patriota perante uma comissão militar instaurada e
presidida pelo Conde, e submetido a um processo verbal, su­
mário, patenteou um valor e coragem admiráveis. Protestou
contra a incompetência do tribunal a que o submeteram, na­
da negou a respeito da sua missão política, e forlemente inti­
mado a que declarasse a que pessoas eram dirigidas as cartas
e papéis que trazia e lançara ao mar, nada revelou, a ninguém
comprometeu! Grandioso rasgo de beroicidade e abnegação,
que a história bem poucas vêzes registra nos seus anais!
Não tendo a ilustre vítima nada que alegar em sua defesa,
sôbre os acontecimentos de Pernambuco e Alagoas, e do ob­
jeto da sua missão à Bahia, a comissão militar, composta de
nove membros, por unanimidade o condenou à pena última,
por arcabuzamenío, cuja sentença lavrada a 28 de março, foi
executada na manhã do dia seguinte.
O Roma, escreve um historiador do tempo, ouviu 1er a
sentença, sem mudar de côr; encarando com fronte altiva os
ferozes algozes, pareceu anunciar-lhes em tom profético que
bem cedo seria vingado. Transferido ao oratório da cadeia,
recebeu com exemplar edificação os socorros da religião.
Com seguro passo, sem pronunciar queixa contra pessoa al­
guma, comunicando familiarmente com os eclesiásticos que o
rodeavam, caminhou para o Campo de Santana, e morreu co­
mo um herói. Os baianos viram como morro um homem li­
vre; a lição devia ficar-lhes impressa.
Seu filho, o historiador Abreu e Lima, então capitão de
artilhraia, estante na Bahia, e que foi constrangido a assistir
a bárbara execução de seu pai, diz: — “O seu porte em pre­
sença do conselho, no oratório e no trajeto para o lugar do
suplício, foi sempre o de um filósofo cristão, corajoso, senhor
ANAIS PERNAMBUCANOS 409

de si, mas tranqüilo c resignado. Suas faces não se desbota­


ram senão quando o sangue que as tingia correu de suas feri­
das, regando o solo, onde seis anos depois se firmou para
sempre a independência da sua pátria” .
Enfim, diz o Padre Dias, escritor contemporâneo, que
chegando a vítima ao lugar do suplício, pediu perdão aos cir-
cunstantes, e ficando solitário, volveu-se para os granadeiros,
e disse-lhes: Camaradas, eu vos perdoo a minha morte. Lem­
brai-vos na pontaria, que aqui (indicando o coração) é a fon­
te da vida. Atirai!
A’ chegada do Padre Roma, irromperam na cidade os
mais vis e baixos insultos contra Pernambuco e os pernambu­
canos, e formigavam os pasquins em prosa e versos, entre os
quais figurava este:

Pelo sinal

Na barra foi que se viu


A jangada bordejando
Como se estivesse esperando

Pelo sinal

Foi o Simplício fiscal


Em ir ao padre prender,
Vindo a cavaleiro ser

Da Santa Cruz.

Para o palácio o conduz,


Vindo de traição aos seus;
Dos falsos pernambucanos

Livre-nos Deus.

Foi preso o padre e os seus,


O que fôr justo direi,
Por se levantar contra o rei
410 F . A. PEREIRA DA COSTA

Nosso Senhor.

Então justiça destroça


Dos falsos pernambucanos,
Que sempre são dos baianos

Inimigos.

Se entraram no perigo
Os jangadeiros culpados,
E ’ porque foram chamados

Em nome do Padre.

O Doutor para que guarde


A todos no pensamento,
Disse que veio ao livramento

Do Filho. (*)
Cercado de maravilhas,
De conselhos obrigado,
Como se fôra ditado

Do Espírito Santo.

Como se opòs abateu-se; (**)


A vil culpa nos contém.
Êles nos sirvam de exemplo

Para sempre, Amen.

(*) — Roma alegou em sua defesa que havia partido para a Bahia a fim de
promover a liberdade de seu filho o capitão de artilharia José In&cio
de Abreu e Lima, que se achava prêso no forte de S. Pedro desde
começos do ano.
(**) — Que Infâmia!
Só do bestunto de um poetastro baiano podia sair semelhante alel-
vosia; mas acima disso está o Juízo da história, verdadeiro, seguro,
imparcial, como deixamos consignado. Sim; digamos ainda com Mu­
niz Tavares: Os baianos viram como morre nm homem livre!
ANAIS PERNAMBUCANOS 411

O Simplicio Manuel da Costa, baiano ou português, ven-


dellião da povoação da Barra, o beleguim da polícia, teve con­
dignas remunerações pelo serviço que prestou de prender o
Padre Roma e de logo apresentá-lo ao energúmeno Conde dos
Arcos: uma gratificação régia de 200|000, o pôsto de segun­
do tenente honorário da armada real, e o soldo corresponden­
te àquela patente, por carta régia de 8 de março de 1818. No
seu requerimento solicitando aquele soldo, alegava êle que,
— “sendo cabo de divisão daquela povoação da Barra, debai­
xo das ordens do exmo. Conde dos Arcos, então governador e
Capitão-General daquela Província, costuma rondá-la conti­
nuamente, e subindo em uma tarde a um alto monte, do qual
se descobre todo o m ar, no largo deste avistou uma jangada,
conheceu ser a sua armação das que usam os pernambuca­
nos, a qual podendo tomar o Porto, não só porque a êste se
achava próxima e a estação da maré o permitia, tomara no­
vos bordos, como quem esperava as sombras da noite, para
então poder entrar. E ’ porque naquela cidade já se liaviam
comunicado as notícias da revolução de Pernambuco, contra
a qual já o mesmo Exmo. governador dava as justas provi­
dências, pensou o suplicante que se destinaria com algum
projeto de falsidade, e por isso a não perdendo mais de vista,
se propôs esperá-la em qualquer pôrto acomodado em que
fundeasse. E ’ quando, Real Senhor, correspondeu o discurso
ao sucesso, porque ao anoitecer se aproxima à terra, e fun­
deou; o suplicante, porém, convocando pessoas de sua ronda,
passou a seu bordo, pondo de parte o risco a que expunha a
sua vida, tendo únicamente em vista a sua fidelidade, e, cor­
tando com a espada de que se acliava munido o tijupar com
oposição dos indivíduos da mesma jangada, descobriu no fun­
do desta ao dito Padre, que logo rogou com excesso ao su­
plicante o não prendesse, querendo recompensá-lo com quan­
tia avultada, com tanto que o deixasse livre; e a nada atenden­
do o mesmo suplicante, não só prendeu ao Padre, senão que
412 F . A. PEREIRA DA COSTA

a todos os indivíduos da jangada e depois de os ter seguros,


com os papéis que lhe achou, os levou à presença do Exmo.
G overnador.. . ”

ABRIL 1 — Bando soleníssimo do governo provisório da


república, convidando a tôdas as classes do povo para no dia
seguinte assistirem à bênção solene das novas bandeiras na­
cionais no Campo da Honra, assim chamado pelos patriotas
o Campo do Erário, boje Praça da República.
No dia seguinte, efetivamente, Quinta feira santa, dois de
abril, teve lugar o ato solene da bênção das bandeiras, como
de tais fatos se ocupa o Padre J . Dias Martins, escritor con­
temporâneo, e ao tempo residente no Recife, no convento da
Madre de Deus da Congregação do Oratório de São Filipe Né-
ri, a cujo instituto pertencia.
L. F . da Tollenare, um hábil comerciante francês, en­
tão de residência no Recife, escrevendo nas suas Notas Do­
minicais, as ocorrências da semana que terminou com o Do­
mingo de Páscoa, menciona as procissões da Semana Santa,
e enfim, “a inauguração da nova bandeira nacional, em cujo
ato exerceu-se uma policia muito vigilante, e tudo se passou
tranqüilamente” .
Verifica-se assim, que a bênção das bandeiras teve lugar,
efetivamente, a 2 de abril, e não a 21 de março, segundo Mu­
niz Tavares que, apesar de contemporâneo também, mas es­
crevendo muito posteriormente aos acontecimentos, uma vez
que a sua História da revolução de Pernambuco em 1817 apa­
receu em 1840, parecendo assim que se serviu antes da memó­
ria, nem sempre'feliz, que de documentos autênticos.
Proclamada a revolução emancipacionisla, essa preten­
são à soberania, na frase de Muniz lavares, demandava uma
nova bandeira e um novo laço nacional, o que foi acordado
logo nos primeiros dias da república; mas, enquanto não foi
adaptado êsse novo estandarte, e nos primeiros dias da revo­
lução foi arvorado um, todo branco que, segundo Tollenare,
não foi o acaso que determinou a adoção desta insígnia pro­
visória: tinha por fim tornar menos brusca a transição e apre-
ANAIS PERNAMBUCANOS 413

sentavam-na como símbolo de intenções pacificas; aliás, acres­


centou, era a bandeira com que os fortes do Recife anuncia­
vam, havia muito tempo, o aparecimento de navios na costa
e as embarcações vindas de fora, vendo sempre o sinal acostu­
mado, entravam sem desconfiança: era isto o que justamente
se queria, porquanto havia falta de viveres na cidade e se re­
ceava que o aspecto de uma nova bandeira assustasse os que
traziam .
Entrando depois os membros do governo provisório nas
cogitações da adoção de uma nova bandeira, uma vez que a
real portuguêsa tinha já desaparecido, bem como as armas
reais das barretinas dos soldados rebeldes, surgiu a idéia de
um estandarte tricolor, como o francês; mas consultado Tolle-
nare sôbre a sua significação e respondendo êle que represen­
tava a reunião das três ordens honoríficas existentes na Fran­
ça, foi rejeitada.
Assentou-se então na organização de uma bandeira pró­
pria a concretizar de modo assaz expressivo as aspirações da
nascente nacionalidade, e assim, como escreve Tollenare, foi
projetada: azul e branco, tendo em baixo uma cruz vermelha,
na parte azul, em cima, um sol cercado de um arco-íris e sô­
bre êste uma estrela, aos lados da qual se iriam juntando ou­
tras, à proporção que novos Estados fossem aderindo à pro­
clamada república.
Muniz Tavares, na descrição que faz da bandeira, não
menciona o arco-íris, sendo no mais concorde com a de Tol­
lenare; e o Padre Dias Martins, não fala na côr azul e ape­
nas que constava do arco-íris tendo sobreposto o sol, e soto-
posta a cruz, ocupando a metade inferior do campo branco e
por baixo as iniciais S .P .S .L .E ., que não há dúvida são as
da conhecida legenda latina: Salus populos suprema lex esto.
Trata-se, portanto, de simples projetos.
A descrição de Tollenare, porém, é exata, e confirmada
por um documento oficial, autêntico, um desenho em aqua­
rela, acompanhado de umas notas explicativas em inglês, que
foi enviado pelo govêrno provisório de Pernambuco ao dos
Estados Unidos da América do Norte, entregue por Antônio
414 F . A. PEREIRA DA COSTA

Gonçalves da Cruz, acreditado embaixador da república jun­


to ao mesmo governo, de cujo original, ainda hoje conservado
no arquivo do ministério dos negócios estrangeiros de Was­
hington, e de tradução em vulgar da sua competente nota ex­
plicativa, foi remetida .uma cópia em aquarela ao Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro pelo nosso ilustre conterrâ­
neo, o d r. José Augusto Ferreira da Costa, secretário da Le-
gação do Brasil naquela capital, em carta de 20 de novembro
de 1886, dirigida ao presidente do mesmo Instituto, o que
tudo consta do tomo LVI da sua Revista. A referida nota ex­
plicativa é concebida nestes termos, segundo a sua tradução:
“As três estréias representam os Estados de Pernambuco, Pa­
raíba e Rio Grande do Norte, os qu.ais, segundo as últimas no­
ticias (5 de abril), compunham a confederação em prol da
liberdade e independência. Logo que as outras províncias do
reino do Brasil tiverem aderido à confederação, outras estré­
ias serão colocadas em volta do íris. O íris tem três cores, sig­
nificando paz, união e amizade que a Confederação oferece
aos portugueses da Europa e aos povos de tôdas as nações
que vierem pacificamcnte aos seus portos, ou que porventura
residam nêles. O sol significa que os habitantes de Pernam­
buco são filhos do sol, e sob êle vivem. A cruz alude ao no­
me de Santa Cruz dado ao Brasil, na época do seu descobri­
mento” .

Além deste exemplar original da bandeira, existe mais


um outro, igualmente traçado a aquarela, que tirado dos au­
tos da devassa de 1817, figurou na Exposição Histórica do
Brasil, que teve lugar no Rio de Janeiro em 1881, sob o n.
20.075 do seu respectivo catálogo, vindo dai, e da fiel descri­
ção traçada por Tollenare nas suas Notas dominicais, inédi­
tas, divulgada por Ferdinand Denis na sua obra Le Brésil,
impressa em Paris, em 1837, e seguida depois por outros es­
critores e revistas, a sua vulgarização e representação gráfi­
ca, colorida ou não.
Adotado o plano da nova bandeira pelo govêrno provisó­
rio, é confiada a execução do desenho ao pintor Antônio Al­
ANAIS PERNAMBUCANOS 415

ves, foi o mesmo remetido ao artista alfaiate José do O’ Bar­


bosa, capitão de milícias do regimento dos homens pardos, pa­
ra o executar, confeccionando assim os estandartes da nas­
cente república, em cujo serviço foi ajudado por sua mulher
e filhas, e por seu irmão o capitão Francisco Dornelas Pessoa,
trabalho êsle que fizeram gratuita e desveladamente.
Apesar de todos esses precedentes com relação à organi­
zação das novas bandeiras, conhecidos e documentadamente
registrados consta, porém, do depoimento de uma testemu­
nha, que figura nos autos da Alçada de 1817, que apareceram
logo depois de 6 de março (quando rompeu a revolução) ban­
deiras e fardas rebeldes, que não se sabia quando e por quem
se fizeram.
Efetivamenle assim foi, porquanto, como escreve Alen­
car Araripe, sob o pavilhão republicano, entrou no pôrto do
Rio de Janeiro um asumaca arm ada em guerra, que zarpou do
pôrto do Recife no dia 10 de março, conduzindo prêso para
a côrte o ex-governador de Pernambuco Caetano Pinto de Mi­
randa Montenegro, cujo inesperado aparecimento causou ver­
dadeira surpresa.
Verificada a procedência e a significação do estranho pa­
vilhão, a fortaleza da Santa Cruz, dominadora da entrada do
pôrto, atirou com bala sôbre o navio, que fundeou junto às
suas baterias e foi forçado a arriar o pendão republicano, sen­
do logo presos os ousados emissários dos rebeldes pernambu­
canos, dois jovens patriotas incumbidos da condução do go­
vernador prisioneiro, que com êles foi recolhido à fortaleza
da Ilha das Cobras.
Aqueles dois jovens patriotas foram Manuel Joaquim
Sete, piloto, que dirigia o govêrno da sumaca e Joaquim Mar­
tins Ribeiro, que embarcara como mestre do navio; e ambos,
— por êste grande crime, — foram julgados como réus do
crime de lesa-majestade, e como tais remetidos depois aos
cárceres da cadeia da Bahia, onde se conservaram em rigoro­
sa prisão até 1821. Martins Ribeiro, além disso, perdeu a par­
te que tinha na sumaca, que foi confiscada, e seu pai a ou­
tra parte.
416 F . A. PEREIRA DA COSTA

O pendão republicano que arvorava a sumaca ao entrar


no porto do Rio de Janeiro, foi a bandeira branca de que fala
Tollenare, como vimos, uma vez que a oficialmente adotada
veio posteriormente.
Na menção dos crimes praticados pelo Padre Pedro de
Sousa Tenório, no período revolucionário, constantes da sua
sentença condenatória, figura o de ter êle, com os seus sectá­
rios, arvorado na fortaleza de Itamaracá, — a bandeira bran­
ca chamada patriota. — Efetivamente, como escreve Muniz
Tavares, partindo Tenório para tomar aquela fortaleza, à
frente de um grande séquito, e penetrando só na fortificação,
preveniu a Jerônimo de Albuquerque Maranhão, — que, se
dentro de duas horas não visse ali içada a bandeira branca,
tratasse de o livrar.
As primeiras bandeiras republicanas que se fizeram, logo
que foram adotadas e destinadas aos três corpos do exército,
eram tôdas de sêda, compostas <je pequenas partes da mesma
fazenda para representar não só o colorido como o desenho
de tôdas as peças de que se compunha o estandarte, reque­
rendo assim a sua execução muita habilidade da parte dos ar­
tistas que se incumbiram do serviço; e José do O’ e seu ir­
mão Francisco Dornelas se desempenharam da patriótica in­
cumbência com a perícia de bons artistas, e com o zêlo e ar­
dor de verdadeiros patriotas, sem compensação alguma, mas
contentando-se êles com a glória de ser trabalho seu, e de sair
das suas mãos o símbolo da nacionalidade de sua pátria, o
penhor da sua independência e liberdade.

ABRIL 2 — Neste dia, quinta-feira da Semana Santa, te­


ve lugar, pelas oito horas da manhã, o ato solene da bênção
das bandeiras republicanas destinadas aos três regimentos da
guarnição da praça do Recife, para cuja assistência fôra o po­
vo convidado por um Bando do govêmo provisório, dia êste
que assim, contemporâneamente, o assinala Dias Martins no
artigo do seu livro sôbre a Marcha cronológica da revolução
pernambucana de 6 de março de 1817, e ainda por duas vêzes
o repete no que é consagrado ao deão d r. Bernardo Luis Fer-
ANAIS PERNAMBUCANOS 417

reira Portugal, bem como também um outro contemporâneo,


Tollenarc, como já ficou particularmente consignado na data
antecedente.
Erguido o palanque em meio do Campo da Honra, hoje
Praça da República, no qual se via um altar belamente de­
corado, voltado para o Oriente, sôbre o qual — refletindo o
sol os seus luminosos raios, parecia ensinar aos circunstantes
a recorrer ao verdadeiro sol da Justiça, donde provém o úni­
co seguro auxílio, — formada tôda a tropa de prim iera linha
e milícias, cujas músicas por intervalos se faziam ouvir, ocu­
pando o resto da grande praça a multidão do povo, e presen­
tes os cinco membros do govêrno provisório, a câmara do
Recife, o deão da catedral de Olinda c o vigário-geral do
bispado, assistidos pelo clero da paróquia de Santo Antônio,
em sobrepeliz, procedeu então — o Patriota Vigário-Geral a
bênção das bandeiras da República Pernambucana, — colo­
cadas sôbre o altar, que ao terminar o ato, voltando-se para
a tropa e povo, proferiu esta oração:

“Valentes soldados. Caros Patriotas.

“Incitar-vos a defender até o último bocejo de vida as


fiandeiras Nacionais, os Estandartes da Liberdade, que em no­
me de Deus e da Pátria acabo de abençoar segundo o rito da
Santa Mãe Igreja Católica Romana, seria pôr em dúvida o
vosso conhecido valor e patriotismo aquela denodação que tem
por muitas vêzes espantado o universo e sido fatal a tiranos,
aquele patriotismo, com que só a um grito de três dos vossos
aflitos irmãos correstes em seu socorro, em defesa da Mãe
Pátria, com mais celeridade com que se despenha de alta e
einpinada montanha caudaloso rio, destruindo em um mo­
mento as vacilantes colunas da régia tirania, êsses fracos es­
cravos só sedentos de fantásticas honras, de ouro e de ino­
cente sangue; êsses monstros instrumentos cruéis da vingan­
ça dõs tiranos, que desconliecendb Pátria e virtudes morais,
não conhecem humanidade, brio, valor.
418 F . A. PEREIRA DA COSTA

“Soldados da Pátria, ontem escravos, hoje sois livres; as


duras algemas que arroxavam e tornavam inúteis vossos va­
lentes pulsos, se despedaçaram, a doce Liberdade, que é a ver­
dadeira partilha do homem sentimental, está já em vosso po­
der; sustentai pois a vossa dignidade, afrontai todos os peri­
gos debaixo das bandeiras que a Mãe Pátria hoje de vós con­
fia, certos de que não encontrareis perigos. Qualquer que se­
ja o vil bando de escravos que desça do Norte ou suba do
Sul só servirá de eterno monumento à vossa glória, e decora­
ção ao vosso triunfo.

“Ente infinito, Deus dos exércitos, ouvi e secundai os


meus sinceros e ardentes votos, abençoai também, meu bom
Deus, as bandeiras da Pátria, os Pendões da Liberdade Per­
nambucana. Imprimi-lhes aquela virtude de que revestistes a
Arca ante as fortes muralhas de Jerico, fazei que à sua vista
caiam por terra os esquadrões perseguidores da causa da jus­
tiça e liberdade com a mesma facilidade com que se preci­
pitaram àquelas áoberjbas m uralhas.

“Invencíveis Pernambucanos, jurai em nome de Deus Vi­


vo, de um Deus que conhece bem os vossos corações, e que
lhe é patente o mais oculto da vossa alma, jurai, torno a di­
zer, em nome dêsse Ente Infinito e criador de tôdas as coi­
sas de não largardes as armas enquanto a Mãe Pátria precisar
dos vossos invencíveis braços, e de não vos apartardes um só
momento de suas bandeiras, de viver ou m orrer gloriosa­
mente à sua sombra.

“Valerosos e honrados Pernambucanos, acompafnhai-me


agora nos transportes de prazer que banham gratamente a
minha alma, que eu vos seguro ser vosso fiel companheiro
nos dias do total desassombramento da Pátria, de m archar a
vosso lado revestido daquela nobre confiança que dá a justi­
ça da nossa boa causa de cair convosco sôbre o vil càrdume
de escravos com mais impetuosidade e estragos que o horrí­
vel furacão sôbre tenra e verde jante seara. Clamai comigo em
ANAIS PERNAMBUCANOS 419

testemunho do vosso prazer, do vosso valor, da vossa eter­


na felicidade: Viva a Liberdade, viva a Pátria, vivam os pa­
triotas” .

Terminada esta oração, toma o deão D r. Ferreira Portu­


gal uma das bandeiras, e dcsfraldando-a, dirige-se aos solda­
dos falando-lhes assim:

“In hoc signo vinces. 0 nosso pai que está nos Céus, criou li­
vres todos os liomens; o espírito das trevas introduziu gás
infernal na alma dos malvados: êstes ligaram os braços dos
seus irmãos, armaram-se de azorrague, e chamaram-se Prínci­
pes absolutos. Desde então a criatura não pôde mais erguer
as mãos ao Firmamento para suplicar ao Criador, a sua face
contristadâ abaixou-se à terra, chorou. O celerado manifes­
tou desde o princípio a reprovada sua origem, e abertamente
mostrou que era filho de Satanás: reunindo a hipocrisia à
iniqüidade ocultou debaixo de uma Coroa a marca de Caim
impressa sôbre sua fronte, ungiu com o santo Crisma os seus
cabelos, e disse: Eu venho da parte de Deus. Blasfêmia! O
Senhor falou a Samuel: Esta será a razão do Rei: se apode­
rará dos vossos filhos e filhas, dos vossos campos, das vossas
lavouras; e acrescentou: um dia vós gritareis por causa do
vosso rei,e eu não ouvirei porque o tendes eleito. Os escravos
voluntários pesam ao mundo e a Deus. Nós não elegemos
Príncipes, nós o combateremos, o perseguiremos até que en­
tre no Inferno, donde o antigo inimigo do gênero humano o
extraiu. Se as Províncias dêste vasto continente vos abando­
narem, (o que o Onipotente não permite) será inteira a vos­
sa glória, inteira a infâmia dos covardes, que vos abandona­
rão, e quando nos inescrutáveis arcanos da Providência fos­
se decretado que sucumbíssemos, será esplêndido o vosso se­
pulcro, por que últimos cedemos, por que sós ousamos re­
sistir .

“In hoc signo vinces! Do alto gritou a voz a Constantino Im­


perador, e lhe foi m ostrada a Cruz resplandecente nos Céus
420 F . A. PEREIRA DA COSTA

como documento de vitória: in hoc signo vinces! Exclamo eu


também apresentando-vos este sacrosanto Estandarte, e con­
fiando-o nas vossas mãos: seguí-o; êle vos conduzirá ao ca­
minho da honra, da independência e da liberdade.

“Não vos excitarei a ser valorosos, vós já o sois, o mundo


vos conhece; duas coisas somente vos recomendo: Disciplina
e União, a disciplina é origem dos grandes feitos; a união é
a fonte de todos os bens, e o veículo exclusivo da força dos
Estados” .

Concluindo êste breve e belo discurso, entre vivas e calo­


rosas demonstrações de entusiasmo, e prestado o devido jura­
mento, fêz o Deão entrega dos estandartes aos governadores
Manuel Correia de Araújo, Domingos José Martins e o Padre
João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro, os quais, pondo-os
a tiracolo, como refere Dias Mratins, vão entre salvas, músi­
cas militares e vivas estrepitosos, entregar o primeiro a Pe­
dro da Silva Pedroso, coronel comandante do regimento dos
homens brancos; o segundo a Francisco Dornelas Pessoa, dos
pardos; e o terceiro a Joaquim Ramos de Almeida, dos pre­
tos. Pedroso, por fim, levou o seu estandarte ao general Do­
mingos Teotônio Jorge Martins Pessoa e a José de Barros Li­
ma, o Leão Coroado.
Dia festivo, de grande regozijo popular, houve ainda mui­
tos discursos eloqüentissimos, sobressaindo a todos o do an­
cião poeta Manuel Caetano de Almeida e Albuquerque, e dis­
tribuição de versos patrióticos, dos quais apenas chegaram
aos nossos dias três quadras do padre carmelita F r. Joaquim
do Amor Divino Caneca, sob o título de Canção Pernambu­
cana.
Êste espetáculo da bênção e entrega das bandeiras repu­
blicanas, escreve Alfredo de Carvalho, deve ter sido realmen­
te tão pitoresco quão emocionante, e a sua perpetuação, em
uma grande tela histórica, é assunto dos mais dignos de ten­
tar o pincel de um artista nacional, sobretudo considerada a
abundância da documentação necessária: além do desenho
ANAIS PERNAMBUCANOS 421

autêntico da bandeira e da descrição da cerimônia, por Muniz


Tavares, existem excelentes elementos de composição na gra­
vura quase contemporânea do Campo do Erário, do livro de
Henderson, nos numerosos retratos dos principais assistentes
e nos grupos de militares e de populares das estampas de
Bradford, Chamberlain, Martins, Debret e Rugendas.
A bandeira pernambucana de 1817 foi adotada como do
Estado por Decreto do governo de 23 de fevereiro de 1917
sob o n. 439, cujo documento, entre os seus considerandos,
da lavra de M. de Oliveira Lima, declara: — que essa ban­
deira representa para o Estado de Pernambuco um legado
precioso, feito do ideal de autonomia e do sentimento de ci­
vismo dos seus filhos, e que nenhuma outra poderá superar
no apêlo que exerce sòbre as tradições gloriosas da pátria per­
nambucana; e que a adoção dessa bandeira dos revolucioná­
rios de 1817 seria um tributo dcvfcras eloqüente à memória
dêsses patriotas que sacrificaram suas vidas pela emancipa­
ção da sua terra e pela implantação dos seus princípios polí­
ticos baseados na honestidade e na tolerância; e considerando
enfim, que o sangue dos mártires de então não foi derram a­
do em vão, pois que o advento das idéias democráticas no país
data dêsse regimen, o qual entre suag idéias mais notáveis,
que a lei orgânica consagrava, contou o do governo civil pela
representação das classes, o da inamovibilidade e independên­
cia da magistratura, o da emancipação ordeira e progressiva
do elemento servil, o da tolerância religiosa, o da liberdade de
opinião, traduzindo-se pela liberdade de imprensa, e o de ple­
na capacidade política dos estrangeiros de qualquer comu­
nhão cristã, uma vez naturalizados, conjunto êste de disposi­
ções constitucionais, que encerra um preito inestimável à dig­
nidade do pensamento e da consciência, que honra para todo
sempre um a comunhão política.
Em uma festa de saudação à bandeira pela sua adoção
como do estado, um dos oradores, referindo-se aos seus atri-
422 F . A. PEREIRA DA COSTA

butos, eloqüentemente exclama, encerrando o seu discurso,


aos frenéticos aplausos do auditório:

“Saudemos a bandeira de Pernam buco. Nela vemos a es­


tréia, farol da paz que há de guiar o Estado pelo caminho do
progresso. Saudemos o Sol, o mesmo sol que flamejou sôbre
o peito de Henrique Dias e Camarão: Saudemos a cruz que
deu nome ao Brasil, a cruz dos missionários dos nossos ser­
tões, a cruz de Nóbrega e Anchieta, a cruz que a natureza
constelou em nosso céu e engastaram os heróis na bandeira
que ali vedes. . . ”

Debelada a revolução, entre outras causas, pela triste apos­


tasia da nossa comarca das Alagoas, em prêmio do que, teve
a graça régia da sua emancipação em província independente,
e da Bahia, que filiada ao movimento, não acompanhou o
rompimento de Pernambuco; e deixando o govêrno provisó­
rio da república a capital do Recife a 19 de maio, na manhã
do dia seguinte saem os realistas, ou antes os portuguêses, às
ruas com bandeiras reais alçadas, dando vivas a el-rei, e m or­
ras aos patriotas pernambucanos, infames rebeldes, e na frase
de um médico baiano, residente entre nós, o D r. João Lopes
Cardoso Machado, em carta dirigida a um amigo no Rio de
Janeiro, avançam para as fortalezas, despedaçam as tropas
provisórias e arvoram as bandeiras reais!
Por sua vez escreve também o D r. Antônio de Morais Sil­
va, o conhecido autor do Dicionário da língua portuguêsa, em
carta dirigida ao Desembargador José Osório de Castro Sousa
Falcão, um dos juizes da Alçada de 1818: — “Em 20 de maio
de 1817, pela manhã, desembarcou Rodrigo Lôbo, quando se
ergueram no Recife as bandeiras reais, que no mesmo dia fo­
ram levantadas por avisos meus na freguesia de Santo Amaro
de Jaboatão” .
Assim desapareceu o belo estandarte do nosso movimento
emancipacionista de 1817, para reaparecer um século depois
como bandeira do Estado, como vimos, em nomenagem do seu
govêrno à comemoração festiva do primeiro centenário da*
AXAIS PERNAMBUCANOS 423

quele generoso movimento, — “que antes do império procla­


mou no Brasil o sistema republicano” .

De par com a bandeira foi também adotado um sêlo para


a república, constituído com os mesmos simbolos do estandar­
te, tendo, porém, em derredor a letra: Salus Populi Pernam­
buco.
Agora algumas palavras sôbre a sorte dos artistas que co­
laboraram na confecção das bandeiras republicanas.
Debelado o movimento e desembarcando Rodrigo José
Ferreira Lôbo, chefe da esquadra de bloqueio ao pôr to do Re­
cife, assumiu logo o governo da província, e entre as barbari­
dades e tiranias que cometeu, sobressaiu a de mandar surrar
nas grades da cadeia os homens de côr, quer livres quer es­
cravos, que haviam tomado parte na revolução; e Antônio Al­
ves, habilíssimo pintor, homem pardo, pela sua incumbência
de fazer o desenho das bandeiras republicanas e de tirar o re­
trato dos membros do governo provisório, foi assim atroz­
mente perseguido. O artista, efetivamente, fèz aqueles traba­
lhos, existindo dos retratos os de José Luís de Mendonça, ori­
ginal, e de Domingos José Martins, cópia, que se vêem na
galeria do nosso Instituto Pernambucano, faltando os de Do­
mingos Teotônio Jorge Martins Pessoa, Padre João Ribeiro
Pessoa de Melo Montenegro e Manuel Correia de Araújo, dos
quais não há notícia.
Livrou-se, porém, o artista da infamante pena que lhe
fôra imposta pelo feroz Rodrigo Lôbo, apadrinhando-se com
um retrato do rei D. João VI, que possuía, e com o qual se
abraçou quando foi prêso para lhe ser aplicado o atroz cas­
tigo.
O seu pincel condenara-o à peita infamante e atroz dos
açoites, públicamente executada, prêso à corda, às grades ex­
teriores da cadeia, e o seu mesmo pincel livrou-o dessa pena
mas não assim da perda da sua liberdade, atirado às enxo-
vias da cadeia, onde permaneceu até a vinda do nomeado go­
vernador de Pernambuco, o general Luis do Rêgo Barreto, que
tendo noticia da triste situação do pintor, a quem conhecia
424 F . A. PEREIRA DA COSTA

do Rio do Janeiro pelas relações que tinha èle com o Viscon­


de do Rio Sèco, seu sogro, mandou-o soltar; e procurado em
palácio pelo infeliz artista para significar-lhe os protestos do
seu agradecimento, o recebeu com tôda a afabilidade, sen-
lando-o mesmo à sua mesa.
Antônio Alves devia, já então, ser um homem de certa
idade, uma vez que foi um dos colaboradores, na parle artís­
tica das estampas, a desenho colorido, da obra monumental
da Flora Fluminense, escrita pelo sábio padre franciscano Fr.
José Mariano da Conceição Yeloso, concluída em 1790. Tei­
xeira de Melo, fazendo menção desses seus trabalhos, cha­
ma-o: habilíssimo pintor.
Depois dessa fase da vida do artista em 1817, nada mais
encontramos a seu respeito, parecendo-nos assim, que regres­
sando êle à sua terra natal, aí faleceu em época ignorada.
Antônio Alves era um pintor de merecimento. Ilomem
pardo, nascido no Rio de Janeiro na segunda metade do sé­
culo XVIII, fêz a sua educação artística na Europa, e veio
residir em Pernambuco depois de demorada permanência na­
quela cidade do seu nascimento.
Os irmãos Francisco Dornelas Pessoa e José do ()’ Bar­
bosa, homens pardos, alfaiates, capitães de corpos milicianos
de gente da sua còr, por patente régia, e os que fizeram as
bandeiras da república, como vimos, foram também arrasta­
dos às enxovias da cadeia onde gemeram por um ano.
José do O’, como alfaiate, fêz também o uniforme dos
embaixadores da república, e por tais pecados, e pelos —
“consideráveis serviços que prestou no período revolucionário,
como militar, e ainda mais, entusiasmando com a sua natu­
ral e persuasiva eloquência os seus soldados e os homens da
sua côr, teimaram os tiranos em açoitá-lo, públicamente, ata­
do à grade de ferro de uma das janelas do pavimento térreo
da cadeia, o que êle evitou, valendo-se do expediente de velar
e dormir sempre com o seu uniforme de capitão” .
Dêsses dois patriotas irmãos faz Dias Martins honrosa e
particular menção no seu livro: Os Mártires Pernambucanos.
ANAIS PERNAMBUCANOS 425

Eis agora a representação gráfica e colorida, do belo e


significativo estandarte da nossa revolução emancipacionista,
de 1817, e, hoje, a Bandeira do Estado.

F r. Joa.quim do Amor Divino Caneca, ilustre carmelita


do convento do Recife, exaltado patriota, que pelo seu com­
prometimento na revolução estêve preso por quatro anos na
cadeia da Bahia, com os seus companheiros de infortúnio, e
envolvendo-se depois no movimento separatista da Confede­
ração do Equador, em 1824, foi arcabusado a 13 de janeiro
de 1825, escreveu, neste dia da bênção das bandeiras repu­
blicanas, os seguintes versos, a que deu o título de Canção
Pernambucana, que, logo vulgarizada,, teve geral e entusiás­
tica aceitação:

Cidadãos pernambucanos
Sigamos de Marte a lida;
E ’ triste acabar no ócio,
Morrer pela Pátria é vida.

Quando a voz da Pátria chama.


Tudo deve obedecer;
Por ela a morte é suave,
Por ela cumpre m orrer.

O patriota não morre,


Vive além da eternidade;
Sua glória, seu renome
São troféus da humanidade.

A proclamação das liberdades pátrias em Pernambuco,


que então entusiasticamente ecoou, fèz inflamar os ânimos
patrióticos, e a lira dos poetas ergueu hinos à pátria redimi­
da, dos quais apenas chegaram aos nossos dias aquela canção
de Caneca, e a seguinte saudação hínica à pátria, escrita pelo
426 F . A. PEREIRA DA COSTA

D r. José da Cruz Ferreira, ouvidor-geral da Comarca do Ser­


tão, cujas composições, naturalmente, foram musicadas:

Suspirada liberdade
Salve, salve, te saudamos,
Querida filha dos céus
Reverentes te adoramos.
Nós pretos, pardos e brancos
Cidadãos somos unidos,
E à pátria oferecemos
Mulheres, filhos queridos.
Nós bravos pernambucanos
Exemplos demos primeiros;
Às armas, corramos todos,
Yalerosos brasileiros.
Venham os tigres do mundo
Venham da Europa leões;
Temos valerosos braços,
Magnânimos corações.
Troveje o raio da guerra,
Corra o sangue pelo chão;
Aos ares voem os membros,
Mortos sim, cativos não.

Houve também uma canção hínica que celebrava a ren­


dição, sem efusão de sangue, das forças milicianas, que sob
o comando do marechal José Roberto Pereira da Silva, guar­
davam o Campo do Erário, hoje Praça da República, e então
denominado pelos patriotas, Campo da Honra, de cuja com­
posição resta apenas esta quadra:

No Campo da Honra
Patrício formemos,
Que o vil despotismo
Sem sangue vencemos.
ANAIS PERNAMBUCANOS 427

Enfim, teve curso esta quadrinha do velho poeta Manuel


Caetano de Almeida e Albuquerque, distribuída ao rompimen­
to da revolução:
Sem grande corte na côrte,
Não se goza um bem geral;
Que o corte é quem nos faz bem,
A côrte é quem nos faz mal.

Na Revista do nosso Instituto Pernambucano n s. 95 a


98, figura um artigo nosso sob o título: A poesia na revolu­
ção emancipacionista de 1817, em que vem reunido tudo o
que nos foi dado encontrar sobre o assunto.
Resolvendo o governo provisório enviar um emissário ao
presidio de Fernando de Noronha, incumbiu dessa missão o
patriota José de Barros Falcão de Lacerda, a quem deu es­
tas instruções:

“0 Govêrno Provisório confiando nos merecimentos, ze­


lo e habilidade que vos distinguem, tem feito de vós escolha
para serdes encarregado da importante comissão da Ilha de
Fernando de Noronha, e achando-se duas embarcações pron­
tas a dar à vela, fareis vosso embarque em uma, e determi­
nareis ambas de conserva em direitura ao pôrto da dita ilha,
e logo que ali tiverdes chegado poreis em prática o seguinte:

l.° — Informareis ao comandante da ilha e a todos os


seus oficias dos acontecimentos da nossa pátria, fazendo-lhes
ver todos os documentos que vos temos entregue publicados
aqui, e que nós lembrados do desamparo em que ficariam
suas vidas pelos estragos de uma devoradora e inevitável fo­
me, não continuando a receberem as provisões que costuma­
vam ir dêste estado, os mandamos buscar com tôda a guarni­
ção e gente, que ali sc ache, para os recolher ao nosso seio
como nossos irmãos, dignos filhos da nossa mãe pátria, e vi­
rem conosco emparelhar seus serviços para o bem dela, e go­
zarem os suaves frutos, que devemos colher da sua emanci­
pação.
428 F . A. PEREIRA DA COSTA

2. ° — Resolvida que seja a retirada de todos os habitantes


da ilha, fareis dividir a gente pelas embarcações conforme a
capacidade de cada uma, e tomando conhecimento pelo m a­
pa junto dos pelrechos de guerra que se acham na dita ilha,
fareis igualmente em divisão embarcar aqueles que estiverem
em estado de servirem, e a artilharia que fòr de bronze deve
vir tôda, ainda que as peças não estejam em bom estado, a
mais artilharia que não puder vir, devereis encravá-la e inuti­
lizá-la de todo, e o mesmo praticareis com todos os mais ar­
tigos que por sua deterioração não convenha embarcá-los, ou
que se não possa conduzir por qualquer outra razão.

3. ° — Fareis embarcar tôdas as alfaias de ouro, prata e


trastes de valor que houverem na ilha pertencentes ao govêr-
no e à igreja, e com tôda a decência a condução das imagens
de Jesus Cristo e de Nossa Senhora.

4. ° — Vista a necessidade, que sabeis, temos aqui de


mantimentos, será do vosso imediato cuidado logo mandar­
des reduzir à farinha tôdas as roças que ali houverem, e fa­
zer em barcar com a mais que haja, em ser, e todos os man­
timentos, em ambas as embarcações.

5. ° — Pela carta junta do escrivão inspetor do nosso


erário, vereis que na ilha há quantidade de gado de diferen­
tes espécies, nas embarcações vai quantidade de sal, devereis
portanto reservando com vida aquelas cabeças, que possam
ser conduzidas, fareis logo m atar e salgar tôdas as mais que
seja possível, embarcando, e os fatos destes gados mortos
mandareis botar nas sistemas de água doce, fazendo putrifi­
car as águas, e ordenareis excavações e destruição de tôdas
as fontes quanto seja factível, para que nossos inimigos não
achem ali meios de se proverem.

6o — Sabeis bem, que tanto pela estação do inverno que


vai principiar contrariando a navegação na volta das embar­
cações, como porque temos de esperar um bloqueio a este porto
ANAIS PERNAMBUCANOS 429

pelos nossos inimigos, quanto convém a brevidade do regres


so das embarcações, portanto tomareis tôdas as medidas no
embarque de tôdas as coisas essenciais, de forma que não ha­
jam delongas, cortando por tudo que achardes a propósito, e
obrando conforme assentardes por conveniente, e se aconte­
cer que na volta as embarcações, que devem igualmente virent
de conserva, não possam tomar èste pôrto, ou tenham alguma
noticia de se achar cortado pelo inimigo, devereis dar as vos­
sas ordens para entrarem naquele pôrto que fôr mais conve­
niente, das capitanias do Rio Grande e da Paraíba, fazendo
logo o desembarque da gente e participando ao govêrno para
vos transm itir as ordens que convenham, e ficareis advertido
de dar ao mestre da embarcação em que. não virdes e ao ofi­
cial da tropa, que nela devereis mandar, as mesmas instru­
ções por causa de poder haver alguma separação no m ar e
saberem se dirigir. O govêrno deixa tudo o mais que aqui não
lembra nem tenha ocorrido, entregue à discrição do vosso zelo
e cuidado e Deus vos leve e traga a salvamento, e vos guarde
por muitos anos.

Dada na Casa do Govêrno Provisório de Pernambuco aos


2 de. abril de 1817. — 0 Padre João Ribeiro Pessoa. Manuel
Correia de Araújo. Domingos José Martins. — Ao Patriota
Major José de Barros Falcão.

ABRIL 9 — Oficio de Caetano Pinto de Miranda Monte­


negro, dirigido ao Conde da Barca, Ministro da Guerra e dos
estrangeiros, minuciosamente relatando todas as ocorrências
do dia 6 ao dia 12 de março, em que foi transportado para o
Rio de Janeiro, de onde, em prisão na fortaleza da Ilha das Co­
bras, escreveu o documento, que atendendo mesmo a certos
antecedentes e fatos anteriores ao rompimento revolucionário,
proporciona os principais’elementos para a sua história/não
podendo assim deixar de ser um tanto extenso :

limo. e Exmo. Sr. — A profunda impressão que fêz na


minha alma a desgraçada revolução de Pernambuco, uma dor
430 F . A. PEREIRA DA COSTA

intensissima que tem despedaçado o meu coração, e até mes­


mo, durante a viagem, e nos primeiros dias que entrei nesta
fortaleza, à falta do que era necessário para escrever, só agora
me permitem o dar a V. Exeia. uma conta circunstanciada
daquele funesto, não esperado, fatal acontecimento.
No dia I o de março procurou-me o desembargador José
da Cruz Ferreira, ouvidor nomeado para a nova comarca do
Sertão, e disse-me que o negociante Manuel Carvalho de Me­
deiros, naquela hora tinha estado em sua casa, o qual lhe co
municara paia èle mo representar o grande susto, em que to­
dos estavam em conseqüència de parcialidade e partidos que
havia entre brasileiros e marinheiros (nome este que dão aos
vindos da Europa), dizendo-se que os primeiros pretendiam
fazer um rompimento nos festivos dias da Páscoa quando os
fiéis corações portugueses dirigissem mil votos ao céu pela
faustissima aclamação dé S. Majestade.
Pergunléi-lhe que fatos apontava aquele negociante que
pudessem" servir de fundamento ao receio que havia: e como
só oroduzissem boatos gerais e não aparecesse o mesmo n e­
gociante, a quem logo mandei chamar ordenei-lhe que no dia
seguinte de manhã me tornasse a falar, porque entretanto te
ria aparecido o dito Medeiros, para este declarar na sua pre­
sença os indícios e provas que tivesse. Um e outro compare­
ceram no dia 2, Manuel Carvalho de Medeiros, além dos mes­
mos boatos gerais, só se referiu à compra de algumas armas,
que José Maiáa de Bourban, um dos denunciados pela opinião
pública, pretendeu fazer ao negociante Elias Coelho Cintra, e
suspeitosos ajuntamentos de noite em casa de Domingos J osí
Martins, principal cabeça dos conjurados.
A compra de armas reduziu-se a dois bacamartes e seis ou
oito pares de pistolas: e pelo que respeita aos ajuntamentos
noturnos, declarou o sobredito Elias Coelho Cin'ra, que êlt
devassava de sua casa a de Domingos José Martins, onde algu
mas vezes vira 10 a 50 pessoas, as quais não entravam nem
saiam ao mesmo tempo, mas cada uma de per si ou duas a
duas; e que assistindo-a diversos alunos do Seminário de Olinda
ANAIS PERNAMBUCANOS 4 31

convidava alguns a jantai', quando iam receber as suas mesa­


das e não aceitando êles o convite, os via depois a jantar em
casa do referido Martins. Declarou mais que naqueles ajunta
mentos entravam alguns oficiais, principalmente do regimento
de artilharia: e o mesmo confirmou José Guimarães de Mi­
randa, outro negociante, acrescentando que o sobredito José
Maria de Bourbon tinha feito em um jantar o execrando e
sanguinário brinde: “Vivam os brasileiros e m orram todos os
m arinheiros. ”
Os brigadeiros Luís Antônio Salazar Moscoso e Manuel
Joaquim Barbosa de Castro referiram outro brinde, ainda
mais execrando, feito pelo secretário do regimento de artilha­
ria José Mariano de Albuquerque a uma senhora brasileira
casada com um europeu, caixeiro de Antônio de C- uto, estan­
do esta na casa dêle secretário, ou na de seu sogro, o capitão
do mesmo regimento. José de Barros Lima: À saúde das senho
ras brasileiras, que não tiverem dúvida de m atar os marinhei­
ros, seus m aridos.
E o I o tenente Luís Deodato Pinto de Sousa, que o capitão
do regimento de infantaria de linha do Recife, Antônio San­
tiago dos Santos Lessa, lhe dissera ter ouvido do sobredito ca­
pitão José de Barros Lima, falando-se em que os insurgentes
do Rio da Prata tinham sido batidos: Pois é infelicidade nossa,
porque se êles ficassem vitoriosos, haviam de ajudar-nos a ser
livres. Ao mesmo tenente Luís Deodata disse o alferes do regi­
mento do Recife, Tomás Pereira da Silva, que indo de pas
seio em uma noite do próximo mês de Fevereiro ao sítio da
Estância quando os Henriques faziam a sua fest. na igreja
que ali têm, vendo familiarizar-se muito com êles o 2o tenen­
te de artilharia Antônio Henriques Rabelo, com quem tinha
ido e notando-lhe tanta familiaridade, respondera êste: Deixa
estar, é preciso tratá-los bem para nos ajudarem algum dia a
ser' livres.
Ao sargento do regimento do Recife, Manuel Joaquim do
Paraíso, perguntou-lhe de que partido era, dois dias da expio
são, o ajudante do mesmo regimento Manuel de Sousa Tei­
xeira. E o cirurgião Vicente Ribeiro dos Guimarães Peixoto
432 F. A. PEREIRA DA COSTA

falando cm segrêdo com o capitão de milícias Joaquim Esta-


nislnu da Silva Gusmão, e perguntando-lhe a mulher dêste que
conversas eram aquelas, respondeu: Como é brasileira, pela
Páscoa saberá. O que d a contou em segredo ã mulher do bri­
gadeiro Manuel Joaquim Barbosa de Castro, e êste 1110 parti­
cipou no dia 5 de março. Em conseqüéncia destas averigua
ções eram muito suspeitos Domingos José Martins, Antônio
Gonçalves da Cruz (vulgarmente chamado o Cabugá), José
M&ria Bourbon, Vicente Ribeiro dos Guimarães Peixoto e o
Padre João Ribeiro, professor de aula de desenho; e entre os
militares, os capitães do regimento de artilharia Domingo:
Teotonio Jorge, José de Barros Lima e Pedro da Silva Pedro-
so, o secretário José Mariano de Albuquerque e o 2. tenente.
Antônio Henriques Rabelo; e do regimento do Recife o ajudan­
te Manuel de Sousa Teixeira. E pôsto que o nome de alguns
não esteja compreendido e declarado nas obreditas averigua­
ções, todos éles eram denunciados pela opinião pública, pelas
intimas relações que havia entre uns e outros, e pelos noturnos
ajuntamentos em casa de Martins do Cabugá e do Padre João
Ribeiro, segundo também se dizia.
Como estivessem envolvidos alguns militares, e eu não
soubesse até onde se estendiam estas relações criminosas, de­
pois de. mandar expedir aos regimentos a ordem do dia 4 junta
na cópia n. 1, e de m andar afixar no dia 5 a proclamação
transcrita na cópia n. 2, convoquei no dia 6 um conseil» dc
guerra, a que assistiram o marechal inspetor-geral dos corpos
milicianos José Roberto Pereira da Silva, o brigadeiro inspe­
tor-geral dos regimentos de Unha, fortaleza e fortificações Gon-
çalo Marinho de Castro, o brigadeiro-chefe do regimento de
infantaria de linha do Recife Luís Antonio Salazar Moscoso,
o brigadeiro-chefe do regimento de artilharia Manuel Joaquim
Baibosa de Castro, o brigadeiro ajudante-de-ordens e coman­
dante da fortaleza do Brum José Peres Campeio e o tenente-
coronel ajudante-de-ordens Alexandre Tomás de Aquino S i­
queira.
ANAIS PERNAMBUCANOS 433

Neste conselho referi os indícios e suspeitas, que havia


contra os cinco paisanos e os militares acima mencionado'’,
e unifcrmemente se assentou que todos êles deviam ser pre
sos.
Receando eu, porém, que o contágio tivesse lavrado mais
e cue pudesse haver alguma reação, propus o convocar p ri­
meiro os regimentos milicianos, reforçar com êle as guarda®,
e guarnições das fortalezas, fazer na do Brum um depósito de
munições de guerra e bôca, para servir de ponto de apoio, em
ca'-»: dc necessidade, e até par» se recolherem nela os reais
cofres, se a sua segurança viesse a ser duvidosa. Éste foi ao
princípio o parecer do brigadeiro Gonçalo Marinho de Castro,
mas assegurando os outros membros do conselho que não se
devia temer reação da tropa pela prisão de seis oficiais, o b ri­
ga ado-se os chefes a prenderem os que pertencessem aos seus
regimentos, observando todos que, tomadas aquelas medidas de
cautela, fugiríam os criminosos, assentou-sc também unifor­
me nente que as prisões deviam ser feitas naquele mesmo dia
de um? para as duas horas da tarde; o marechal José Roberte
Peieira da Silva encarregou-se da prisão dos cinco paisatios
e de escolher os oficiais militares para executarem esta dili­
gência .
O que eu propus no dito conselho, os votos de cada um.
e as deliberações que se tomaram, não se escreveram naquele
dia, por não haver tempo; ficando para o dia seguinte o la-
vrar-se o têrmo, que todos haviam de assinar; saiu pois o m a­
rechal e os chefes dos regimentos, para cada um fazer as pri­
sões de que se tinham encarregado e chegou com efeito a ser
prêso o ajudante Manuel de Sousa Teixeira e Domingos José
Martins e não sei se mais algum dos paisanos: porém quando
o brigadeiro Manuel Joaquim Barbos» de Castro executava
a mesma ordem em seu regimento, tendo prêso ao capitão
Domingos Teotonio Jorge (o qual já o arguiu de que êle era
a causa daquele procedimento, ao dar a voz de prisão ao capi­
tão José de Barros Lima, êste ràpidamente tirou a espada, e
atravessou o dito brigadeiro. O I o tenente Luís Deodato Pin­
434 F . A. PEREIRA DA COSTA

to de Sousa, querendo defender o seu chefe, escapou de ser


morto pelo capitão Pedro da Silva Pedroso e outros ofíciats
qui se conspiraram contra èle, e indo dar parte no quartel-
general de que tinham morto o seu brigadeiro, a esta voz
coireu do quartel do regimento o tenente-coronel ajudante-
de-ordens Alexandre Tomás de Aquino Siqueira, e eu mande.,
pn.ia a praça do Erário o marechal José Roberto Pereira da
Silva, ordenando-lhe que armasse a todos que se reunissem
porque já caixas e os sinos tocavam a rebate e defendesse
aquèle pôsto muito importante, por estarem ali os reais co
fres, o armamento de reserva e parte do parque de artilha­
ria.
O tenente-coronel Alexandre Tomás, ao chegar ao aquar­
telamento. foi morto pelos soldados que os rebeldes já tinham
sobre as armas; e ouvi dizer que fôra o capitão Pedro da SiV
va Pedroso, o que mandou atirar ao dito ajudante-de-ordens.
O tenente-coronel graduado José Xavier de Mendonça, o
sargento-mor Inácio Antônio de Barros Falcão e o sargento
Francisco Ribeiro dos Guimarães Peixoto, correram ao Quar­
tel-General com a triste notícia, e que me retirasse eu à for­
taleza do Brum, porque os traidores já vinham saindo do quar­
tel a procurar-me; saí, pois, com alguns oficiais, que estavam
na sala e com a minha- guarda, que no seu estado completo
era de 20 homens, mas, naquela hora faltavam alguns indiví­
duos; e ao passar pela guarda das Portas, acompanhou-me
também esta. que era de 16 homens, se todos ali es'ivessem.
O 2o tenente Antônio Henriques Rabelo, uma das cabeças
mais jacobínicas da revolução de Pernambuco, saiu logo en.
meu encalce com 60 ou mais homens a ocupar a ponte do
Re.ife; e sabendo que eu já tinha passado, dirigiu-se à casa
de Domingos José Martins, onde fêz esta esca-ndalosíssima ex ­
clamação: — Martins, nosso amigo, nosso pai, nosso liberta­
dor desce, que todos estamos prontos a derram ar o sangue por
ti; — e dizendo-lhe um irmão, que êle tinha sido prâso, correu
a soltá-lo mandando m atar o oficial miliciano, que o condu­
zira à cadeia.
ANAIS PERNAMBUCANOS 435

Foram também soltos todos os presos da mesma cadeia


e os da. fortaleza das Cinco Pontas, a cada um dos quais dei*
na sobredita noite o mesmo Domingo José Martins uma ja­
queta e umas calças de pano azul, segundo me disse em via­
gem o piloto da embarcação, que me conduziu para esta cor­
te, sendo êle mesmo o que me referiu aquela, muitas vêzes,
escandalosa exclamação.
Eu assim que entrei na fortaleza, mandei cortar a ponte
do Recife, para que êles não ocupassem aquele fcuirro, e se
pudesse organizar ali alguma força; e ao inteudente de mari­
nha que chegou logo após de mim, que reunisse e armasse um.
corpo de marinheiros dos muitos navios, que cotavam no
pôr*o; mais uma e outra providência ficaram frustradas, por­
que os insurgentes, como estavam prontos rechaçaram com
uma peça de artilharia e com um ataque de baioneta aos que
principiavam a derrubar a ponte, e o intendente de marinha,
dispersos os marinheiros, refugiou-se para salvar a vida em
uma galera francesa; de sorte que, mandando-lhe eu uma or­
dem por escrito para que me remetesse farinha carne e água
nãc. foi achado o dito intendente, nem oficial que fizesse as
suas vêzes.
Outra providência que eu dei foi a de m andar c Olinda o
cor. nel graduado João Ribeiro Pessoa de Lacerda com exer­
cido de tenente-coronel do Regimento do Recife ordenando-
lhe que guarnecesse as guardas daquela cidade com miliciano ;
e trouxesse o destacamento do seu regimento e quatro peças
do parque de artilharia com as suas munições e palamentâ.
Das 10 para as 11 horas da noite entrou na fortneza o dito
coronel com o destacamento e peças de artilharia, mas sem
palamenta nem munições; e sendo mandado segur.da vez com
parte do mesmo destacamento para conduzir aquêles perten­
ces não voltou mais, e só depois soube que êle ccm a maior
perfidia e falsidade tinha mandado fazer um depósito de pól­
vora em casa do deão e vigário-geral Bernaro Luís Ferreira
Portugal: porque sendo mandado também na mesma noite d
Olinda o sargento-mor Vitoriano José Marinho, e encontrando
436 F . A. PEREIRA DA COSTA

os que conduziam a referida pólvora, disseram estes que a le-


v a r .m para a casa do vigário-geral por mandado do juiz ordi­
nário José de Barros Falcão, e perguntando êste pelo dito sar-
gento-mor, respondeu que o coronel João Ribeiro de ordem
minha assim lhe determinara.
O marechal José Roberto Pereira da Silva, que eu tinha
mandado para o campo ou praça do Erário, armou os que sp
•reuniram, e com 4 peças de artilharia ocupou as quatro en ­
tradas daquele campo, duas da banda de terra e duas da parte
do rio; e ao pôr do sol mandou tomar as minhas ordens pelo
coruiei do rigemnto de milicianos dos nobres Manuel Cor
reia de Araújo, um dos que se tinham reunido ao dito m are­
chal. Rcspondi-lhc que êle bem conhecia a importância da
quele oôsto, o qual devia ser defendido até o último extremo:
e que não vendo eu as forças que havia de uma e outra par
te, menos meios e disposições para o ataque e pa'’a a defesa,
tomasse êle as medidas que julgasse mais convenientes. Foi-
se o coronel, e já de noite veio o marechal à fortaleza com
d juiz-de-fora pela lei, o advogado José Luís de Mendonça, e
então me disse que se lhe tinham reunido 300 e tantos homens,
com os quais e 4 peças de artilharia tinha ocupado as quatre
entradas da praça; mas que uma destas divisões o abandona­
ra, unindo-se aos rebeldes, e que era impossível o defender
aquele pôsto com pouco mais de 200 homens, e com pouco
carlixos, tendo já cs insurgentes 2 â' 3.000 hoir.-uis em ar
m as: pelo que ordenei-lhe que ouvisse as proposições que êle*
faziam, fazendo êle da sua parte todos os esforços para que fi­
casse salva a soberania de S. Majestade, e que neste caso eu
empenharia tôdos os meus serviços, implorando ainda a fa­
vor dos pernambucanos a real clemência e piedade de El-Rei,
Nosso Senhor.

Saiu o marechal com o sobredito juiz-de-fora pela lei «-


não eram passadas duas horas quando outra vez entrou só
na fortaleza, deixando o pôsto que ocupava, sem estar con­
cluída capitulação alguma, a qual me disse, havia de ser re­
AXAIS PERNAMBUCANOS 437

metida das 5 para as 0 horas da manhã seguinte Com efeito


às 6 horas do dia 7 apareceu o pérfido José Luís de Mendonça
com » capitulação junta, debaixo do n. 3, e chamando eu h
conselho o mesmo marechal e os três brigadeiros Gonçalo Ma­
rinho de Castro, Luís Antônio Salazar Moscoso e Jose Percs.
Campeio, todos unitormemente assentaram que o seus arti
gos não podiam deixar de ser concedidos, por não haver nem
braços para a defesa, nem munições de guerra e bòca, segun­
do consta do termo junto na cópia n. 1; ao mesmo tempo que
êles apresentavam uma força considerável para atacar a forta­
leza. se a capitulação não fòsse recebida, e na retaguarda des­
ta fòrça vinham 10(1 pretos com machado para escalarem as
portas, comandados pelo capitão de milícia José Alexandra
Ferreira; notícia esta que me deu também em viagem o mes
tre da embarcação.
No dia 7 de tarde violaram êles logo um dos artigos, man
dando buscar à fortaleza o brigadeiro José Peres Campeio e o
secretário do governo José Carlos Mairink da Silva Ferrão,
os quais sincera e lealmenle queriam acompanhar-me; e di­
zendo eu ao capitão José de Barros Falcão, o qual foi o que
tomou conta da mesma fortaleza, que eu precisava de m andar
o marechal, para tratar de alguns objetos relativos à capitula­
ção e ao meu embarque; e meu filho a casa de minha resi­
dência, para arranjar o que era necessário para a viagem; a
esta participação respondeu Domingos José Martins em carta
que me deixou 1er o dito capitão, que se ia tratar do govêrno
provisório, então já. nomeado, o que êle comunicava e que no
dia 8 de manhã se lhe participaria a resolução.
A esperada, ou antes desesperada resolução foi a de man­
darem render aquêle oficial pelo capitão José de Barros Lima
nom um grande destacamento, composto das cabeças mais re
volucionárias, e de muitos dos criminosos, que tinham saido
das prisões, pondo a todos incomunicáveis o novo comandan­
te, e até a pessoa de pouca monta só era permitido o falar eu
à porta do quartel na presença de algum oficial inferior de sua
confiança E no dia 9 de manhã, tendo êles guarnecido com
438 F . A. PEREIRA DA COSTA

muita tropa, artilharia e ate com alguma cavalaria do esqua­


drão da guarda do governo, tôda a extensão que medeia e n ­
tre a fortaleza do Brum e a intendência da marinha, foi con
duzido ao lugar do embarque no intervalo de um grosso desta­
camento, comandado pelo capitão D. Manuel de Lócio e Seil-
bits. à cuja direita vinha José Maria de Bourbon com um ba
camarte armado, dirigido às minhas costas, e ao meu lado di
reito, no mesmo intervalo, o revolucionário 2o tenente Antô­
nio Henrique Rabelo; não sendo permitido a pessoa algum i
naquela extensão ver, nem assistir ao meu embarque, e até no
m ar veio acompanhada a embarcação, que me conduziu a b o r­
do da sumaca, por outras embarcações guarnecidas de solda­
dos
Ficaram presos na fortaleza o marechal José Roberto Pe­
reira da Silva, o brigadeiro Gonçalo Marinho de Castro e o
sen ajudante-de-ordens Vitoriano José Marinho, o brigadeiro
Luis Antônio Salazar Moscoso com sua mulher, filhos e filhas,
o intendente da- m arinha Cândido José de Siqueira e o tenente
do regimento de linha do Recife Antônio Cousseiro Veloso:
e S îgundo me disse o mesmo piloto da sumaca em que vim
foi tomada na véspera, isto é, no dia 8 à noite, a resolução de
os não deixar embarcar, a fim de servirem de reféns para
o regresso da mesma sumaca.
Nos 16 dias de viagem, além dos fatos já referidos, de­
ram -m e mais o mesmo mestre e piloto, e principalmente êste,
as seguintes noticias :

Que no Recife havia duas lojas de pedreiros livres, de


noji.inadas — Pernambuco Oriente e Pernambuco Ocidente, —
uma em casa de Antônio Gonçalves da Cruz e outra em casa
de Domingos José Martins; o que eu nunca soube, nem me
foi denunciado; e se é certa a denúncia dada- por Pedro Amé­
rico (*) da Gama, que se acha nesta côrte, ao ouvidor da co­
marca do Recife, Francisco Afonso Ferreira, como me dis

(*) Na cópia de que nos servimos, vem erradamente escrito Amânciu


ANAIS PERNAMBUCANOS 439

seram alguns nas averiguações que fiz nos primeiros dias de


março, o dito ministro nem procedeu como devia nem me fê*
participação alguma.
Que no dia 8 tinha chegado a notícia da revolução da Pa
raíba, segundo ouviram dizer ao Padre João Ribeiro e Do
mir.gos José Martins. Que êles contavam também com a revo­
lução da Bahia, e que ainda no dia em que saiu a sumaca, vin­
do entregar-lhe a bordo o passaporte um irmão mais moço
do iito Martins, que fazia as vêzes de ajudante-de-ordens, este
lhe dissera que na volta do Rio de Janeiro haviam de levar jã
a certeza daquela revolução.
Qee os rebeldes esperavam ser auxiliados com uma es­
quadra pelos Estados Unidos; assim como estes auxiliavam
aos insurgentes espanhóis; sòbre o- que lhe observei, que se
os Estados Unidos fizessem causa-comum com todos os re­
volucionários da América, seria êste um grande motivo de ciú­
me para a Inglaterra, e mais um a razão para ela fazer causa-
comum conosco.
Disseram mais que o ouvidor de Olinda, Antônio Carlos
Ribeiro de Andrada, o qual estava em correição na vila do
Paudalho, ficava já no Recife, ou na Boa Vista, em casa de
Gervásio Pires Ferreira, c que tivera votos para ser um dos
membros do governo provisório, ao que se opuseram outros,
reconhecendo que êle tinha talento e conhecimentos, mas que
a sua cabeça era muito esquentada, e que êles não queriarr.
cabeças esquentadas no govêrno. Êste ministro tinha alguma
familiaridade e amizade com Antônio Gonçalves da Cruz e
Domingos José Martins, em casa dos quais jantou algumas
vêzes, como êle mesmo me disse; e estando de correição nu
vila de Igarassu, o capitão-mor das ordenanças da mesma vila
fêz na sua presença, em um jantar, o mesmo execrando brin­
de acima referido: — Vivam os brasileiros e morram os m a­
rinheiros; — brinde que foi estranhado pelo dito ministro, e
que não procedia contra quem o tinha feito, por assentar que
eram palavras indiscretas, proferidas depois de alguns copos
de vinho .
440 F . A. PEREIRA DA COSTA

Que sendo chamados pelos do govèrno provisório no fim


da larde do dia 8, viram 1er chegado muita gente de pc e de
cavalo da vila do Cabo, que enchia tòda a rua desde o Convento
de S. Francisco até o colégio e residência do govêrno. O ca-
pitão-mor das ordenanças da referida vila do Caho, Francisco
Pais Barreto, mais conhecido pelo nome de Morgado do Cabo,
era um dos indicados pelas suas íntimas relações com o Pa­
dre João Ribeiro e Domingos José Martins; c destruído o foco
principal do Recife, fazia eu tenção de proceder contra êle
sendo-me preciso ouvir primeiro o rendeiro do engenho d i
Ilha, pertencente ao dilo Morgado, o qual rendeiro tinha dito
algumas palavras duvidosas a Elias Coelho Cintra.
A tristíssima narração que tenho feito a V. Exc. é es
cri'a com a mesma pureza, honra e verdade, com nue sirvo a
S. Majestade há 28 anos, mas que muitos hão de cruerer desfi­
gurar agora. Os traidores revolucionários seus aderentes, e
até mesmo os que estão envolvidos, não por vontade, inas por­
que não podem resislir, hão de procurar denegrir-me, para fi­
carem menos enormes os seus crimes. Aqueles, que em quase
13 anos que governei Pernambuco, não poderam conseguir,
que eu favorecesse suas injustas pretensões, não perderão está
oportuna ocasião de vinganças; porque o comum dos homens
não tem generosidade, e de ordinário louva-sc o homem ji.sto,
enquanto a justiça não entra na própria casa.
Alguns procurarão perder-me também, para encobrirem
os seus erros com o sacrifício-da minha reputação; e ouftos de
uma infame seita tão espalhada pelo mundo para oferecerem
mais uma vítima às suas ocultas e falsas divindades.
Eu, porém, confio no Ente Supremo, que é a verdade pov
essência, confio no alto discernimento e reais virtudes de El
Rei Nosso Senhor, que c como uma imagem de Deus sôbre a
terra; confio na sabedoria e inteireza do seu ministro; confio
na retidão e imparcialidade dos que me julgarem, que estas
duas verdades hão de ficar patentes. Primeiro, que eu não pe­
dia prever o vulcão revolucionário que rebentou e u Perriam ■
buco no dia- 6 de março, nem a possibilidade dêste aconteci-
ANAIS PERNAMBUCANOS 441

mento podia entrar nos cálculos da prudência humana, a não


haver uma fòrça grande, e extensa, a qual ainda hoje se igno­
ra. Segundo, que eu não pude atalhar os seus efeitos, e que
uma cadeia fatal de desgraças e o abandono da tropa, a perfí­
dia de uns e a cobardia de outros, talvez, me conduziram ao las-
timoso extremo, a que me vi reduzido.

Deus guarde a V. Ex. por muitos anos.

— Fortaleza da Ilha das Cobras, em 9 de abril de 1817. —


Iln, *. e Exm. Sr. Conde àiv Barca — Caetano Pinto de Mi­
randa Montenegro.
Os documentos acusados neste ofício, e ju n t. ao mesmo
remetidos, não os encontramos na respectiva cópia que ora re­
produzimos .

ABRIL 13 — Decreto do governo provisório da república


criando um Tribunal de Polícia, dirigido por um Juiz ordiná­
rio do crime e polícia da vila e têrmo do Recife para cujo
cargo foi nomeado o patriota Filipe Néri Ferreira, que o exer­
ceu com tanto zêlo, inteireza e humanidade, — que até dos
próprios inimigos da nova situação política recebeu os maiores
louNores.
Foi esta a primeira medida de organização regular de um
serviço de policia entre nós.
Originàriamente, era de uma incumbência puramente mi
litar, a cargo da tropa de guarnição da praça, nos distritos pa
roquiais estava confiado aos respectivos capitães-mores de or­
denanças, e nas povoações aos seus comandantes militares, até
que em 1787 tivemos um encarregado da polícia da vila e tê r­
mo do Recife, permanecendo, porém, o serviço nas demais lo-
caliuades, segundo os moldes antigos.
Se de bom aviso foi o ato do governador José César de
Menezes, criando aquêle cargo, ainda mais foi o de confiá-lo a
um enérgico e distinto militar, o capitão José Correia da Sil
va, na situação gravíssima da época.
442 F . A. PEREIRA DA COSTA

Efetivamente, como narra um cronista, abundavam la­


drões e assasinos; as noites eram de cuidados e apreensões no
Recife e seus bairros; e José Correia da Silva, que não se re ­
comendou pela estrita legalidade dos seus atos policiais, e que
arbiiràriamente foi prendendo e soltando, ou mandando para
a ilha de Fernando de Noronha facínoras conhec’dos, c ho­
me. ;s suspeitos, e de envolta com èles talvez alguns inocentes,
procedeu com tal energia, que no fim de um ano de seu abso-
lutismo oficial, os habitantes do Recife dormiam tranquila­
mente, e seguros, sem mais receio de perturbação «le seu sono,
e de algum descuido na segurança das portas. José Correia
atravessou quatro governos da capitania, dirigindo a contente
geral por mais de 20 anos a policia do município do Recife.
Às vêzes arbitrário, mas sempre bem intencionado íoi a am a­
da garantia da vida e da propriedade, e por isso mesmo ele
mento civilizador próprio e adequado àquela época.
José Correia, a quem o povo chamava — o Onça, — pela
energia e atividade que desenvolvia no exercício d.< seu cargo,
e a prontidão com que se acliava em todos os con'litos, quan
do mënos o esperavam, constituiu-se um elemento de ordem e
confiança, e o terror dos criminosos e vadios aos quais não
dava tréguas. Envolvido em um capote, empunhando uma es­
pada, arm a de sua predileção, e que amestradamente jogava,
rondava tôda a noite, e a confiança que a sua policia inspirava
era tal, que não raro, na estação calmosa, dormiam os mora­
dores de portas abertas.
José Correia, que naturalmente deixou o seu cargo po-
lici.l quando se sentiu enfraquecido pela idade, foi substituí­
do pelo ouvidor-geral da comarca do Recife, com o título de
Intendente da Polícia, pelos anos de 1806; mas à sua falta re-
surgiu o crime tão audacioso como antes da sua investidura.
Em 1814, como escreve Koster, não havia um a polícia re­
gular; quando se precisava efetuar uma prisão no cidade ou
nos arrabaldes, iam dois oficiais de justiça acompanhados por
soldados de linha, e uma ronda ou patrulha perco nia as ruas
ANAIS PERNAMBUCANOS 443

durante a noite, em horas determinadas, mas sem grandes


vantagens.
Em 1817 era tristíssimo o estado de segurança pública em
Pernambuco. — Os abusos introduzidos no seio da população
pelos poderosos das localidades, que se faziam respeitados e
temidos por sequazes e guarda-costas, davam azo à prática
de crimes repetidos. Os capitães-mores eram, em regra, os
mais arrojados, e os que não gozavam de tão alta pr sição con­
tavam com a sua amizade ou cumplicidade . Os ouvidores em
correição recebiam obséquio e presentes de todos eles, e passa
vam adiante, embora soubessem que eram grandes crimino­
sos.
Não menos deplorável era o estado de polícia no Recife
nessa época. Quase todos os dias se cometiam assassinatos,
roubos e tôda a sorte de crimes, e não era prudente assentar-
se alguém à noite à porta da sua casa, pois aí mesmo o ia por
vezes procurar no rosto a navalha do malfeitor; e tudo cor­
ria à revelia, à falta de repressão e execução das leis, pois os
ministros e empregados públicos imitavam o governador na
lassidão de sua vida.
Foi em tão aflitiva situação que explodiu a rev -lução, cujo
govern o cuidou logo da criação de um Tribunal de Polícia,
e cunfiando a sua chefia a um homem competente pelo seu
caráter e energia.
Debelada a revolução, e tomando conta do governo o ge­
neral Luis do Rêgo, foi incumbido do serviço de segurenço
pública o D r. Antero José da Maia e Silva, ouvidor da com ar­
ca com a investidura do cargo de Ministro da Policia, cujo
serviço ainda tinha o seu cargo em 1821 como Intendente da
Polícia.
A parte militar do serviço, porém, estava confiada a um
oficial de primeira linha do Exército, o m ajor João Merme
que o exercia arbitrária- e despoticamente, levande o seu pro­
cedimento ao ponto de ter um cárcere privado na sua própria
casa de residência — onde conservava as vítimas da sua b ru ­
tal ieroddade pelo tempo que lhe parecia, e às vêzes de ferros
444 F . A. PEREIRA DA COSTA

aos pés; — o ainda o de mandar até mesmo surrar a gente li­


vre nas grades da cadeia, em cujo número assim ‘r,i vítima o
tenente-ajuda-nte do batalhão dos homens pretos, denominado
dos Henriques !
Em 1822, sob o regimen constitucional inaugurado com a
queda do governo absoluto de Luís do Règo, estava a policia
confiada ao tenente-coronel Manuel Silvestre de Araújo, no
caráter de comandante-geral, sendo depois substituído pelo ca­
pitão José de Barros Falcão de Lacerda. Havia então em cada
bairro um comandante de polícia subordinado ao comandan­
te-geral, e a cidade de Olinda tinha uma polícia p. òpriamente
local, de que era comandante o coronel José Camelo Pessoa
de Melo.
Em 1827 teve o serviço policial uma certa organização re­
gular, segundo umas Instruções organizadas pelo coronel An-
ter ; José Ferreira de Brito, comandante das armas, em v ir­
tude das quais foram criados comandos distritais, subordina
dos a um comandante-geral, sendo investido dèsse . argo o co­
ronel Francisco Jacinto Pereira; e reclamando depois o de­
partamento policial uma fôrça exclusivamente destinada ao seu
sereiço, criaram-se em 1829 três companhias milhares de po­
lícia, sendo uma de cavalaria e duas de infantaria, com um efe­
tivo de 320 praças, companhias essas que foram suprimidas
depois com a criação de um Corpo de Permanentes, que exis­
tia já em 1832, comandado pelo m ajor José Vaz de Pinho Ca-
rapeba.
Em 1835, enfim, em virtude da- Lei Provincial n. 6 de
6 de junho, foi criado um Corpo de Polícia composto de três
companhias de infantaria e uma de cavalaria, com 448 p ra ­
ças, destinado ao policiamento da cidade, prestar auxílio às
justiças, m anter a boa ordem e segurança pública na capital
e seus subúrbios, e no interior, por meio de destacamentos.
Vem dai a instituição dêsses corpos entre nós.
Pela Lei provincial n. 13 de 1836 foram crinuas as pre­
feituras policiais, com as atribuições constantes da mesma
lei; e ocorrendo daí por diante a decretação de várias leis e re-
ANAIS PERNAMBUCANOS 445

gulumentos concernentes ao serviço policial, a que somente


em um trabalho particular se poderia atender, chegamos, en­
fim à instituição da Chefatura de Policia, criada pelo Código
do Processo Criminal de 1830, porém executada entre nós em
virtude da Lei n. 201 de 3 de dezembro de 1841, que deu aos
chefes de polícia novas atribuições e prerrogativas.
Baixando em 31 de janeiro de 1812 um regulamento espe
ciai para execução da referida lei. foi nomeado para interina-
mente exercer o cargo de chefe de polícia da provmcia o Dr.
Jerénimo Martiniano Figueira de Melo, que tomou posse e en­
trou em exercício a 10 de março do mesmo ano.

Exerceram o cargo até 1850 os seguintes magistrados :

10 de maio de 1812 — Desembargador Antônio Inácio de


Azevedo, chefe de polícia efetivo.

28 de setembro do mesmo ano — Desembargador Domin­


gos Nunes Ribeiro, interino.

4 de setembro de 1843 — Dr. Caetano José da Silva San­


tiago, interino.

6 de setembro do mesmo ano — D r. Francisco Do m in­


gues da Silva, idem.

3 de julho de 1844 — Dr. Antônio Afonso F iireira, efe-


tiv I.

9 de junho de 1845 — D r. José Francisco de Arruda Câ­


m ara, interino.

6 de março de 1846 — Desembargador Manuel Rodrigues


Vii- res, idem.

2 de maio do mesmo ano — Desembargador Joaquim


Teixeira Peixoto de Abreu e Lima, idem.
446 F . A. PEREIRA DA COSTA

2 de maio de 1848 — Desembargador Firming Antonie de


Sousa, idem.

27 de junho do mesmo ano — Desembargador Manuel Ro­


drigues Vilares, idem.

15 de julho do mesmo ano — Dr. Antônio Henriques de


Miranda, efetivo.

17 de outubro do mesmo ano — Desembargador Firmino


Antônio de Sousa, idem.

9 de janeiro de 1849 — D r. Jerônimo Martiniano Figueira


de Melo, interino.

29 de dezembro do mesmo ano — Dr. José \ico lau Re-


gUíira Costa, idem.
t

À Secretaria de Polícia foi organizada em virtude do De­


creto regulamentar de 21 de fevereiro de 1857 o< mpondo-se
de um secretário, 2 oficiais, 3 amanuenses, 1 porteiro, 1 con­
tínuo e 1 oficial externo para a visita dos navios.
E ’ daí que vem o serviço de polícia marítim a ou do porto;
quauto à sanitária, porém, vinha já de umas posturas da Câ­
m ara Municipal do Recife, decretadas em 25 de novembro de
1839.
O Decreto de 2 de dezembro de 1854 conferiu aos chefes
de policia o tratam ento de Senhoria.

ABRIL 27 — São presos no lugar Retiro-Grande, no lito­


ral do Ceará, os patriotas Francisco Alves Pontes e Malias
José Pacheco, como emissários do govêrno republicano do
Recife.
Da missão política daqueles dois patriotas, do seu malo­
gro, de tudo que ocorreu então, do destino de ambos, do
multo que sofreram, e outras particularidades mais, & mi­
ANAIS PERNAMBUCANOS 4 47

nuciosa notícia o Padre Dias Martins nos seus Mártires Per­


nambucanos, nos artigos que lhes são consagrados-
Pacheco c Pontes eram cearenses, e desde algum tempo
que se achavam refugiados em Pernambuco — para se sub­
traírem ao látego de ferro com que o despótico governador
Manuel Inácio de Sampaio flagelava aquela desgraçada pro­
víncia desde 1812 — quando entrou em exercício.

ABRIL 28 — José de Barros Falcão, que partira para a


ilha de Fernando de Noronha, por incumbência do governo
provisório, para a desmantelar e trazer o destacamento, sen­
tenciados, armas e munições de guerra ali existentes, segun­
do as instruções que recebera, e seguindo para o desempe­
nho dessa missão com duas embarcações que foram postas à
disposição do governo por seu proprietário, o coronel Bento
José da Costa, regressa neste dia conduzindo 300 pessoas en­
tre oficiais, empregados, soldados e sentenciados, 20 canhões
de ferro e bronze de calibres diversos, todos os petrechos e
munições de guerra que encontrara, ferramenta, mantimen­
tos e o arquivo do presídio.

Em uma das paredes da sala da casa do comando da


ilha deixou José de Barros êste letreiro:

E’ êste o Palácio Real. Viva a Pátria! Viva a República


Pernambucana! Viva a Liberdade! Acabe-se para sempre a ti­
rania Real. Viva a Inglaterra! Vivam os Americanos! Vivam
enfim os aliados da Nova República Pernambucana.

Na mesma casa do comando encontrou-se também êste le­


treiro:

Retirados em 28 de abril de 1817, pelo Sargento-mor do


l.° Batalhão de Infantaria José de Barros Falcão de Lacerda
Cavalcanti e Albuquerque, sendo comandante atual o Capitão
de Artilharia José Bernardo Salgueiro, tudo por ordem do Go-
vêrno Provisório de Pernambuco. E logo letreiro feito pelo
448 F . A. PEREIRA DA COSTA

Almoxarife da dita Ilha, Joaquim José Ribeiro Pessoa. Viva


a Liberdade! Viva a Pátria! Acabe-se para sempre a tirania
Real, e disse Pessoa.

Deixando as fortificações e os edifícios do presídio consi­


deravelmente danificados, e dois únicos soldados, partiu José
de Barros com os seus dois navios rumando para o Recife,
mas sendo forçado a arribar à Baia da Traição, na Paraíba,
aí chegou a 1 de maio. Sôbre esta expedição escreve Muniz
Tavares:

“A ilha de Fernando de Noronha, bem que insignificante


pela sua pequenez e aridez do seu solo, não deixou de merecer
sempre a atenção do governo por ser um ponto, que possuí­
do por nação estrangeira, podia tornar-se perigoso à segu­
rança do litoral do Brasil. Produzindo escassamente os gê­
neros de primeira necessidade, não convidou desde o princí­
pio da sua descoberta o estabelecimento de colonos; foi ao
depois por ordem soberana vedado o ingresso ali ao sexo fe­
minino e exclusivamenle ficou reservada para lugar de des-
têrro dos delinqüentes processados, e daqueles que tinham a
desgraça de incorrer no ódio dos capitães generais de Pernam­
buco. Nenhuma embarcação podia abordá-la; o temor da fu­
ga dos degredados requeria esta severidade. Era fortificada
e provida dos petrechos de guerra necessários para repelir um
ataque imprevisto; a guarnição compunha-se de cem arti­
lheiros com três oficiais; o mais graduado, que de ordinário
era capitão, tomava o comando-geral temporário. Cada ano
essa guarnição era rendida por um número igual de soldados
enviados dos regimentos de Pernambuco. A quantidade dos
degredados variava, êles ocupavam-se na cultura da pouca
te rra .

“Pela revolução ficava tôda aquela gente exposta aos ca­


prichos do ministério do Rio de Janeiro, e também à fome,
se a seu respeito não se tomasse pronta resolução, pois que
com a guarnição anual eram remetidos os alimentos corres-
ANAIS PERNAMBUCANOS 449

pondenles- A república necessitava de braços, e nenliuns


mais devotos seriam do que êsses que iam ser salvos por um
ato parVcular de zelo. Conseqüentemente dois grandes bar­
cos foram aparelhados com a maior brevidade, que o tempo
permitia, c o capitão José de Barros Falcão teve ordem de
embarcar-se em um deles, e dirigir-se àquela ilha, onde ape­
nas abordasse, devia proclamar livre passagem a tôda a guar­
nição e praças, transportar consigo quanto coubesse nas em­
barcações, e o resto inutilizar inteiramente.

“O capitão Barros Falcão não sabia recusar-se ao servi­


ço, partiu imediatamente.

“Tudo conjurava contra os patriotas. O capitão Barros


Falcão, chegando à ilha de Fernando, e publicando o obieto
de sua missão, foi considerado como um anjo tutelar; oficiais,
soldados e degredados, criam sonhar; nenhum esperava tan­
ta graça, foi indescritível a sofreguidão, com que todos pro­
curavam embarcar-se, e destruir o que não podiam transpor­
tar. Finalizado o embarque, foram unânimemente dirigidos
aos Céus votos cordiais pela prosperidade da viagem; mas os
Céus foram surdos, ventos contrários prolongaram os dias da
penosa navegação. Depois de muito lutar, a primeira terra
que se avistou foi a Baia da Traição ao Norte da Paraíba.

“Aquela terra pareceu um favor particular da Providên­


cia, pois que aí podiam as embarcações entrar e fundear li­
vremente, o que decerto não fariam se tivessem chegado ao
pôrto do Recife, já bloqueado; os trezentos homens nelas em­
barcados, quase todos militares, providos de armamento su­
ficiente, prestariam, se fôssem bem dirigidos, não pequeno
serviço à desventurada Paraiba. Tudo dependia da prudência
e vigilância do capitão que os comandava; ê!e não ignorava
que muitos dos degredados eram gente sem princípios de hon­
ra e a guarnição anelava desembarcar para rever a pátria, pa­
rentes e amigos; avistando a terra, ou não devia ancorar an­
450 F . A. PEREIRA DA COSTA

tes de ser informado do estado das coisas, ou ancorando, de­


sembarcar logo todos com ordem.

“Sucedeu o contrário: êle tão sôfrego como os demais,


foi o primeiro a saltar em terra com um só oficial, declarando
que ia examinar o que ocorria para o bom êxito da expedi­
ção, e que entretanto nenhum se arriscasse a desembarcar
sem a sua permissão. Desembarcando, recebeu carta de José
Peregrino, na qual narrava-lhe o estado da província e a sua
triste posição: o capitão Barros Falcão contra o senso comum,
em vez de chamar a si tôda a gente que estava ainda a bor­
do, apesar do grande descontentamento, e correr com ela em
auxílio daquele patriota, tomou a deliberação de ir encontrá-
lo só, para combinar o que fôsse mais acertado. Enquanto
êle caminhava, todos os que estavam nas embarcações, as
abandonam; a morte se llics antolhou menos hórrida do que o
suplício de viverem em um estreito barco ao pé da terra.

Da consciência do mal nasce o temor: os soldados previ­


ram que a desobediência às ordens do comandante não podia
ficar sem castigo; os degredados recearam que se compare­
cessem como fugitivos, seriam outra vez entregues nas mãos
da justiça; desembarcados, cada um se julgou autorizado a
seguir os seus caprichos, não trataram senão de salvar-se por
diversas veredas a fim de chegarem ilesos às suas casas em
Pernambuco. José Peregrino havia cedido, e o mísero Barros,
que o procurava, achou-o na prisão da mesma fortaleza, onde
o meteram por ordem do govêrno existente, o qual apoderou-
se do que vinha nas embarcações e muito congratulou-se de
ter afugentado sem trabalho o corpo que parecia ameaçá-lo.
Alguns dos desertores, que foram encontrados, tiveram a ca­
deia da cidade por asilo, e aí pagaram a pena da desobe­
diência” .

MAIO 1 — Marcha o general Suassuna com o seu exér­


cito das Candeias a bater os rebeldes realistas reunidos no
engenho Utinga, reforçado com a guerrilha do Padre Antô­
ANAIS PERNAMBUCANOS 451

nio de Soulo Maior, destacada do corpo de Domingos José


Martins; e no dia seguinte trava-se o combate. Nessa luta
patenteia o tenente-coronel Antônio José Vitoriano Borges de
Almeida tòda a sua perícia dc habilíssimo artilheiro; afronta
o Padre Souto Maior os perigos com tòda a coragem e bravu­
ra de um guerrilheiro, mas a ingrata fortuna, como assim
narra um escritor coevo, obriga o general Suassuna a bater
em retirada para o Cabo e Candeias, perdidas quatro peças,
o campo dc batalha e as vidas de muitos bravos, não sem
dano severo do inimigo.
A 4 foi fuzilado um sargento da guarda da Barreta, por
facilitar a saída dos descontentes o manter correspondência
com o bloqueio.
No dia G, Domingos José Martins, membro do governo
provisório, como representante do comércio, reune-se ao exér­
cito do general Suassuna, no Cabo e começam umas nego­
ciações com o marechal Cogominho dc Lacerda, que no dia
anterior tinha entrado em Tamandaré.
A 8 marcham os dois exércitos a encontrar-se: o realista,
que ahala de Tamandaré, e o republicano do Cabo, que na
sua marcha vai devastando as propriedades dos traidores à
pátria que se haviam bandeado com o inimigo. Começa então
0 conflito de jurisdição e primazias de comando entre Mar­
tins e Suassuna, o que foi bem fatal à causa da liberdade e
seus defensores pelas vantagens resultantes aos inimigos. No
dia seguinte foram fuzilados um marinheiro pelo crime de
condutor de correspondências com o bloqueio, e o pífano de
u:n dos corpos milicianos de Olinda, que desertara da bata­
lha de Utinga.
O general José Mariano completa em Igarassu o seu exér­
cito, que assim atingira a 400 infantes, graças ao zèlo patrió­
tico do capitão-mor da vila Francisco Xavier de Morais Ca­
valcanti e aos amigos João Nepomuceno Carneiro da Cunha
e Francisco Pedro Bandeira de Melo; e reforçado com mais
duas companhias de cavalaria miliciana de Goiana coman­
dadas pelo bravo capitão Henrique Pope Girão, a 12 abala pa­
ra Paudalho. Neste dia o exército do general Suassuna toma
452 F. A. PEREIRA DA COSTA

posição no engenho Guerra, no Cabo, tendo c m frente unia


grande lagoa, eUjas forças atingiam a 2.600 homens de in­
fantaria e um parque de artilharia de seis canhões.
Naquele engenho permaneceu o exército republicano ale
o dia 15, quando apareceu o realista, com um efetivo quase
igual, uma vez que constava de 2.664 homens, assim discri­
minados, como encontramos:: Caçadores da legião da Bahia,
418; Infantaria do primeiro regimento, 140; Artilharia, 140;
Cavalaria da legião, 116; Cavalaria miliciana de Sergipe, 100;
Milícias brancas do Penedo, 100, ditas pardas da mesma vila,
220; ditas de Santo Amaro das Grotas, 500; ditas de cavala­
ria da mesma localidade, 100; ditas das Alagoas, Atalaia e
Audia, 300; ditas de Porto Calvo e de Pedras, 360; e ditas
Serinliãem, Ipojuca e Una, 170.

“No dia 15 de maio, escreve Dias Martins, dia sempre


lamentável nos fastos da liberdade, marchou todo o exército
republicano, e havendo encontrado o do marechal Gogominho
de Lacerda no engenho Guerra, de Ipojuca, pelas cinco horas
da tarde, rompe então aquele uma terrível canhonada. A des-
teridade e justeza com que o coronel Antônio José Vitoriano
Borges de Almeida, comandante da artilharia, fêz laborar os
seus canhões, seria, por confissão dos próprios generais ini­
migos, o golpe mortal dos seus planos, se a desunião dos che­
fes republicanos não fizesse tudo abortar. Perdeu-se Martins,
esmoreceu Suassuna e o grande Almeida viu pela segunda vez
escapar-se-lhe a vitória! Mas eis o seu último heroísmo nessa
patriótica empresa da emancipação da pátria! Resoluto a não
sobreviver à perda da liberdade, recusa retirar-se do campo,
acompanhando o Suassuna com as tropas que lhe restavam,
em marcha para o Recife, abandonando tôda a artilharia, mu­
nições, bagagens e caixa militar, e deixando 300 prisioneiros
além dos mortos e feridos. Assim resoluto, permanece no
abandonado campo da ação, senta-se sôbrc uma peça de ar­
tilharia ,e espera impàvidamenle o seu fim ! Surpresos, ad­
mirados os inimigos de tamanho rasgo de coragem, pergun-
tam-lhe quem era — “Eu, lhes responde, sou um pérnam-
ASAIS PERNAMBUCANOS 453

bucano livre, que comandei estas peças em nome da pátria


independente” . —- O general vencedor admirou o mancebo e
tratou-o como prisioneiro distintíssimo. Foi èle do número
dos primeiros doze mártires, que numa sumaca chegaram à
Bahia a 28 de maio, foram recolhidos à cadeia, e nela penou
o bravo Almeida até a geral anistia das cortes constituintes
em 1821” .
Ah! Façamos eòro com o genial poeta sergipano Tobias
Barreto, repetindo com èle estes versos de uma belíssima poe­
sia sua, cantando os Leões do Norte, dirigindo-se Aos Volun­
tários Pernambucanos, que em 1803 marchavam para a cam­
panha do Paraguai:

Só Pernambuco tem dès tes modelos


Imitemo-los todos; imitai-os,
Vós que tendes no peito ardente oculto
D’almas brios a flama inextinguível,
Para brilhar num dia de vingança...

A notícia do malogro da jornada republicana de Ipojuca


chegou logo à còrte do Rio de Janeiro, e a vitória das tropas
realistas foi saudada com expressivo entusiasmo. A’ noite
iluminou-se a cidade, queimaram-se fogos de artifício e repi-
caram os sinos das igrejas. No entanto, como encontramos
narrado, o príncipe regente do reino mostrava-se triste e pro­
curava mesmo pòr termo a essas demonstrações de lealdade
e também de lisonja, simplesmente dizendo: Correu o sangue
dos meus vassalos.

Não prosseguindo as tropas realistas a sua marcha para


o Recife, levantaram as suas tendas de acampamento no en­
genho Guerra, até que, dissolvido o governo republicano, aban­
donada a praça por seus membros e fugindo para o interior
com uma pequena força restante, no dia 20 tomando couta
451 F , A. PEREIRA DA COSTA

do govêrno da província o almirante Rodrigo José Ferreira


Lôbo, expediu lego ordens ao marechal Cogominlio de La­
cerda, que, a marchas dobradas partisse para o Recife a fim
de perseguir os fugitivos, o que executando ele, a 23 entra­
va na vencida praça.
Foram então expedidos destacamentos de cavalaria no
encalço dos retirantes, que trouxeram as abandonadas baga­
gens, e vindo mesmo um trôço destes, voluntariamente, sem
escoltas realistas, conduzindo os cofres públicos, que, intac­
tos, os foram entregar à competente autoridade!
Tai foi a missão do exército realista, composto de tropas
baianas, sergipanas c notavelmente alagoanas, para sufocar o
gesto nobre, generoso c patriótico de Pernambuco, procla­
mando uma pátria independente e livre!

MAIO 14 — A Gazeta do Rio de Janeiro, deste dia, faz a


narrativa dos sucessos de Pernambuco, referentes à revolução
que rompera no dia 6 de março, e ao mesmo tempo a das
providências dadas pelo govêrno para abafar a insurreição.
Refere o órgão oficial, que a maior atividade se desenvolvera
em todos os estabelecimentos públicos, dedignando-sc o pró­
prio monarca dc ir por várias vêzes dar maior impulso aos
preparativos bélicos; devendo-se a essa circunstância o rápi­
do equipamento de uma esquadrilha composta de uma fraga­
ta, duas corvetas e uma escuna, que sob o comando do chefe
de divisão Rodrigo José Ferreira Lôbo, zarpara do pôr to no
dia 2 de abril. Acrescenta a fôlha oficial, que no dia 4 de
maio saíra do mesmo pôrto um poderoso comboio composto
da nau Vasco da Gama e dc dez navios de transporte condu­
zindo três mil homens dc tô d a sa s armas, comandados pelo
marechal-de-eampo Luís do Rêgo Barreto, — assaz conhecido
pelos seus relevantes serviços no exército de Portugal.

MAIO 16 — Caminhava a república a largos passos para


o seu têrmo, e com o seu desaparecimento, as proclamadas
liberdades pátrias. Tudo conspirava contra a sua sorte. Elo-
ANAIS PERNAMBUCANOS 455

queado o pôrto do Recife ; um exército invasor, forte, bem


provido, quase que às suas portas, tendo ganho já duas ba­
talhas campais perdendo as forças republicanas, além de tu­
do, a sua bagagem, munições de guerra, avultado número de
vidas eem mãos do inimigo 300 prisioneiros, em cujo número
figurava o próprio chefe Domingos José Martins; não havia
mais recursos de salvação possível, e o governo assombrado
busca salvar-sc negociando uma capitulação honrosa com o
almirante comandante do bloqueio.

Resolvido o caso, são escolhidos emissários com plenos


poderes para tratarem elo assunto, o coronel José Carlos Mai-
rink da Silva Ferrão, e o agricultor Henrique Koster, de na­
cionalidade inglesa. Mairink era secretário do governo, cujo
cargo vinha já do tempo do governador Caetano Pinto de
Miranda Montenegro, e continuado no de Luís do Règo Bar­
reto. Mineiro de nascimento, e desde muito domiciliado em
Pernambuco, onde constituiu família e faleceu, foi o primei­
ro presidente da província, e pela mesma, senador do império.
Koster, desde 1809, que residia entre nós, e visitando depois
todo o Norte até o Maranhão, legou-nos o seu belo livro de
viagens, originàriamente escrito em inglês, impresso em Lon­
dres em 1816, e com sucessivas edições e traduções em ale­
mão, francês e português, obra preciosa pelas descrições to­
pográficas dos lugares que visitava, de par com a menção das
suas riquezas, usos e costumes.
Estava então o governo provisório da república reduzido
a dois membros; o Padre João Ribeiro Pessoa de Melo Mon­
tenegro, representante dos negócios eclesiásticos, e Domingos
Teotônio Jorge Martins Pessoa, das armas, faltando assim, Do­
mingos José Martins, do comércio, prisioneiro do inimigo, e
José Luis de Mendonça, da justiça, e Manuel Correia de Araú­
jo, da agricultura, retirados em suas casas pretextando molés­
tia, como a pretextavam também três dos conselheiros, o D r.
Antônio de Morais Silva, o deão Rernardo Luis Ferreira Por­
tugal, e Gervásio Pires Ferreira.
456 F . A. PEREIRA DA COSTA

Os referidos emissários foram portadores da seguinte no­


ta lavrada neste dia 18, cpic tinham de apresentar ao almiran­
te comandante do bloqueio:

“Os patriotas à tesla do partido da independência entre­


garão ao comandante do bloqueio por parte de S. Majestade
Fidelissima, os cofres públicos, munições e mais efeitos per­
tencentes oulrora à Coroa, no estado em que atualmente se
acharem. A vila do Recife, Santo Antônio e Boa Vista não
sofrerão dano algum pelo ’p artido independente. Os prisionei­
ros que se acham em poder das autoridades atuais em razão
das suas opiniões políticas, serão relaxados da prisão. S.
Majestade Fidelissima concederá anistia gerai a todos os im­
plicados na presente revolução, e haverá perfeito esquecimen­
to de todos os atos praticados até hoje, como se nunca tives­
sem existido, e ninguém poderá ser por èles perseguido. Se­
rá permitido a qualquer que se quiser retirar dèste porto, o
fazê-lo com sua familia, dando-se-lhe o devido passaporte, e
podendo dispor livremente de todos os bens que possuem,
quer de raiz, quer móveis. Para verificação e entrega, que
deve fazer o partido independente, mandará o Comandante do
bloqueio um comissário seu, que à vista dos respectivos livros
dos cofres será entregue, do que existir. Feita a entrega, le­
vantará o Comandante o bloqueio a fim de deixar passar o
vaso, ou vasos neutros, que levarem os que se quiserem reti­
ra r. Deverá o Comandante do bloqueio expedir incontinente
ordem ao comandante do exército de S. Majestade Fidelissi­
ma, para que não avance contra esta praça, enquanto se não
ultim ar a presente negociação. — Domingos Teotônio Jorge.
Governador das Armas. Francisco de Paula Cavalcanti de Al­
buquerque, General de Divisão. O Padre João Ribeiro Pessoa,
Governador Provisório. Manuel Joaquim Pereira Caldas, Con­
selheiro. Miguel Joaquim de Almeida e Castro, Secretário do
Interior. Pedro de Sousa Tenório, Secretário-Ajudante” ,

Partiram os parlamentares com os sinais próprios da sua


missão, as fortalezas tiveram ordem de os deixar passar li­
ANAIS PERNAMBUCANOS 457

vremente, e os habitantes do Recife, como narra Muniz Ta­


vares, ficaram no estado de ansiedade, produto do temor e
da esperança. Abordaram eles a Fragata Tátis, foram rece­
bidos pelo chefe com indiferença, e informado dos fins da
missão e lendo a Nota que lhe foi entregue, respondeu: Sub­
missão sem condições. Em semelhante situação, um dos par-
lamentários, naturalmente o José Carlos Mairink, — fingin­
do não atender, representou-lhe, que os patriotas não tinham
sido batidos, que existiam ainda em suas mãos poderosos
meios de defesa, e que arrastados à desesperação poderíam
cometer atos violentos, apontou-lhe quais seriam êsses atos,
e quais as vantagens que sòbre o ânimo em geral dos per­
nambucanos ganharia a clemência real.

Vendo porém o chefe português que os governadores se


humilhavam pedindo-lhe condições pacíficas de capitulação,
contudo, respondeu:

“Eu tenho em meu favor a razão, a lei e a fòrça armada


lauto terrestre como marítima, para poder entrar no Recife,
coin a espada na mão, a fim de castigar muito à minha von­
tade a todo e qualquer patriota, ou infiel vassalo, que são
sinônimos, por terem atropelado o sagrado das leis de El-Rei
Nosso Senhor: portanto, eu não posso admitir condições in-
diguas, como as que se me propõe, e só se mandando à terra
um ou mais oficiais e tropa, para tom ar o comando das for­
talezas, retirando-se as suas guarnições, e entrando aquêles
que eu eleger, e da mesma forma as embarcações armadas, ar­
vorando-se logo as reais bandeiras em tòda a parte, salvando
as ditas fortalezas, e gritando sete vêzes — Viva El-Rei Nosso
Senhor e tôda a Familia Real — e os corpos militares em
armas dando três descargas, e no fim delas dando os mesmos
Vivas, a que deverá responder a minha esquadra, e então sal­
tar eu em terra a tom ar o govêrno de tôda a capitania, fi­
cando em custódia os membros do govêrno Provisório, os
Chefes dos Corpos e Comandantes das fortalezas, até que S.
458 F . A. PEREIRA RA COSTA

Majestade haja por bem determinar da sua conduta sôbre a


revolta acontecida cm Pernambuco, (devendo eu segurar de­
baixo da minha palavra a todos os Senhores referidos que
pedirei ao nosso Amável Soberano a segurança nas suas vi­
das) devendo eu mandar por terra um oficial participar ao
General das tropas que marche até entrar no Recife, e deven­
do retirar-se o povo, que a mim parecer, para as suas habi­
tações, e quando eu saltar em terra, estar no cais a Nobreza,
o Corpo do Comércio com as Autoridades Civis e Militares,
para gritar-se em voz alta — Viva El-Rei Nosso Senhor e lò-
da a Família Real, e dali marcharmos para darmos as de­
vidas graças ao Deus dos Exércitos por tão feliz restauração de
tornar essa capitania aos seus limites e sagrado das leis com
que somos regidos pelo melhor dos Soberanos, e depois reco-
Iher-me à casa de habitação dos Governadores, aonde estará
a guarda, qqe me pertence como Gapitão-General, e conti­
nuarei por diante a felicidade dos povos e fiéis vassalos de El-
Rei Nosso Senhor. A bordo da Fragata Tétis surta em fran­
quia defronte de Pernambuco aos 16 de maio de 1817 — Ro­
drigo José F e rre ira L ôbo” .

Entregue esta nota ao governo, viu-se assim em sérias di­


ficuldades, e declarada já a pátria em perigo, não havia mais
recursos de salvação possível; e consequentemente, julgai'am
os signatários da repudiada capitulação, que se fazia absolula-
mente necessário nas criticas circunstâncias do momento o
sacrifício temporário dos direitos individuais, c assim, cede­
ram êles todo o poder ao governador das armas Domingos
Teotônio Jorge, como Ditador. Investido êle de todos os po­
deres, senhor absoluto da situação, seu primeiro cuidado foi
tentar ainda uma nova capitulação, dirigindo ao comandante
do bloqueio este Ultimatum, de que foi portador o Desem­
bargador José da Cruz Ferreira, conhecido realista, o delator
da conspiração ao governador Caetano Pinto, e prêso na for­
taleza das Cinco Pontas, no dia 3 como implicado em uma
conjuração contra a república.
ANAIS PERNAMBUCANOS 459

“Eu abaixo assinado, Governador Civil e Militar do par­


tido da independência em Pernambuco pela dissolução do
Governo Provisório, em resposta às condições proferidas pelo
Comandante das forças navais de S. Majestade Fidelíssima,
estacionadas em frente de Pernambuco, respondo que são ir-
receptíveis no todo as ditas condições, como declararam o po­
vo e o exército juntos para esse efeito. Agradeço ao dito Co­
mandante a palavra que dá de segurança de vida dos mem­
bros do Governo Provisório, que não pediram e nem aceitam,
e declaro que tomo a Deus por testemunha, de que êle é res­
ponsável por todos os horrores que se vão praticar. Amanhã
19 do corrente, assim, se não chegar resposta do dito Coman­
dante até o meio dia, serão passados à espada todos os presos
tanto oficiais generais no serviço de S. Majestade Fidelíssi­
ma, como os mais prisioneiros por opiniões realistas. O Re­
cife, Santo Antônio e Boa Vista serão arrasados, incendiados;
todos os europeus de nascimento serão mortos. Estas pro­
messas serão executadas apesar da repugnância que tenho em
usar de medidas de rigor. O Govêrno de Pernambuco, que
ora só eu represento, creio tem dado sobejas provas da sua
generosidade salvando os seus mais encarniçados inimigos,
como melhor pode dizer o mesmo agente empregado nesta
missão. Êste é o meu Ultimatum, se o Comandante do blo­
queio não acordar as justas condições oferecidas e apontadas
ontem. Quartel do Govêrno Civil e das Armas 18 de maio
de 1817. — O Governador Domingos Teotônio Jorge” .

Foi na noite daquele dia que partiu o emissário para o


bloqueio a tentar nova fortuna com o Ultimatum de que foi
portador, e naquela mesma noite resolveu o ditador abando­
nar a praça, deixando-a intacta, sem praticar nenhuma das
ameaças constantes daquele documento. Os homens sensatos
não viam motivos que justificassem semelhante procedimen­
to. Viam que o exército da Bahia ainda estava distante do
Recife sete léguas, o bloqueio era impotente, o Recife e Olin­
da não manifestavam o mínimo sentimento em favor da mo­
narquia e tôda a guarnição parecia firme no seu pôsto. Ape-
460 F . A. PEREIRA DA COSTA

sar de tudo isto, conio bem pondéra Muniz Tavares, o dita­


dor resolveu abandonar a praça, marcha à frente das tropas
patrióticas, rumando o Norte, e à noitiuha acampavam todos
no engenho Paulista. A êsse tempo desembarcava no Recife
o emissário Cruz Ferreira, sendo portador de — uma capitu­
lação tolerável, — mas não achou a quem a entregar! O do­
cumento era assim concebido:

“Tendo-me sido apresentada a determinação, em que diz


estar o governador ora existente no Recife, tenlio a partici­
par-lhe que em nada me atemorizam as suas ameaças; porém
rogado pelo fiel vassalo de Sua Majestade o Desembargador
José da Cruz Ferreira, nomeado Ouvidor da Comarca do Ser­
tão, convenho em que haja um armistício até que o dito Se­
nhor Desembargador possa chegar ao Rio de Janeiro a rogar
a Sua Majestade que perdoe aos rebeldes, que atropelaram o
sagrado das suas sábias leis, pois que não é possível que um
vassalo esteja autorizado para perdoar tão atrozes delitos e
nem é do meu modo de pensar; portanto, pode o Governador
aprontar uma das embarcações que tem o pòrto para o so-
bredito Desembargador ir orar a El-Rei Nosso Senhor por
todo o povo do Recife. Esta embarcação sairá em lastro, que
seja bastante para reger a vela, e logo que sair para a esqua­
dra eu lhe porei um comandante e parte da guarnição, tra­
zendo aquela, com que sair, os mantimentos para a viagem;
e pelo que pertence ao exército de terra, não posso embara­
çar que êie se aproxime do Recife, pois que obra debaixo de
outras ordens, e o mais que posso fazer é o paríicipar-lhe esta
minha determinação, que não duvido aceite. Contudo, não
fico pelo resultado; e caso o Governador com a sua família
se queira retirar à Côrte do Rio de Janeiro, convenho que o
faça, e lhe seguro desde já a sua vida com tanto que não haja
a menor vingança com os desgraçados em prisão, e eu tome
o comando da Capitania, como já disse” .

Abandonada a praça pelo ditador à frente das forças re­


publicanas, como vimos, e assim, não lhe sendo entregue a
ANAIS PERNAMBUCANOS 461

resposta do seu Ultimatum, eslava tudo perdido, e os realis­


tas, sem mais receio, põem-se em campo, arvoram por tôda
parte a bandeira real, são soltos os prisioneiros, desembarca
uma força naval que ocupa o Recife, e no dia seguinte o che­
fe Rodrigo Lôbo com tôda a guarnição dos navios do blo­
queio, e toma do governo. Seu primeiro cuidado foi logo or­
denar ao marechal Cogominho de Lacerda, que em marcha
dobrada viesse ocupar a praça do Recife para perseguir os
fugitivos. Sangue, sangue, escreve Muniz Tavares, foi a pa­
lavra de guerra, que desde aquele instante repetiam em al­
ta voz os defensores da monarquia absoluta; êles, que então
se reputavam seguros dentro das muralhas das fortalezas, ora
corriam ao abandonado campo do engenho Paulista a reco­
lher os despojos e prender os soldados patriotas que encon­
travam desgarrados.
Alcm desta tarefa, conclui aquele historiador, outra as-
saz indigna e vil empreenderam. O proprietário daquele en­
genho, logo que a tropa republicana se ausentou, fêz sepultar
o corpo do infeliz suicida o Padre João Ribeiro Pessoa, na
capela do mesmo engenho. Neste sacrossanto asilo da morte
não foi respeitado o cadáver; aqueles esfaimados tigres, não
podendo beber-llie o sangue já exausto, lançaram-se sôbre o
cadáver para devorar-lhe a carne, e carne podre. Desenterra-
ram-no, mutilaram-no, separaram a cabeça do tronco, e com
ela espetada em um varapau, entraram exultantes no Recife.
Depois de passearem pelas ruas mostrando-a com escárneo,
a depositaram no Pelourinho por ordem do chefe português
Rodrigo Lôbo!”

MAIO 20 — Com a queda da república, restauração da


monarquia e posse, neste dia, do almirante português Rodri­
go José Ferreira Lôbo, fatos já narrados, começou daí, na
frase de Muniz Tavares, a série lacrimosa dos nefandos atos
de barbaiâdades praticados contra os infelizes patriotas de
Pernam buco.
Os marinheiros desembarcados dos navios do bloqueio,
embriagados e armados, percorriam as ruas da cidade — “dis-
462 F . A. PEREIRA DA COSTA

tribuindo mosquctaços à direita e à esquerda, e sob o pre­


texto de procurar patriotas, comprometiam a segurança pú­
blica. Esta desordem durou dois dias. Dois indivíduos indi-
gitados patriotas, foram massacrados; um número muito
maior de indiferentes foi morto; as balas dos mosquetes dos
marinheiros caíam até a bordo dos navios ancorados no pôr-
to, e um marinheiro americano foi assim gravemente fe­
rido” .

Daqui por diante vamos narrar as ocorrências do momen­


to, servindo-nos quase que de guia o que a respeito escreve
Tollenarc, então estante no Recife.
Os destacamentos de cavalaria, enviados ao encalço do
exército patriota, trouxeram as bagagens por eles abandona­
das; espalham-se proclamações chamando os soldados trans-
viados e prometeirdo-se-ilies o perdão; estes apresentam-se em
m assa.
No domingo 25 houve procissão e Te-Deum em ação de
graças pela restauração da monarquia; depois, o corpo do co­
mércio deu uma festa aos oficiais da tropa da Bahia, ao go­
vernador lusitano Rodrigo Lôbo e ao estado maior da esqua­
dra do bloqueio; e fèz um presente de trinta contos de réis
às mesmas tropas, cm cuja subscrição o renegado Manuel
Correia de Araújo concorreu com 2:000§000 e Bento José da
Costa, português, sogro do já arcabuzado chefe patriota Do­
mingos José Martins, com 1:000?000. Já anteriormente, esse
mesmo corpo comercial, em pleno regimen republicano, ten­
tou subornar os membros do governo provisório oferecendo-
lhes 200:000§000 se eles quisessem abandonar a partida e
fugir.
Aquela festa dada pelo comércio, como escreve Tollena-
re, não foi um baile, nem um banquete, nem um concerto, mas
sim uma festa original, como assim a descreve êle;

“Durante três dias o Santíssimo Sacramento foi exposto


na igreja matriz do Corpo Santo, junto à Praça do Comércio;
das nove horas da manhã até as nove horas da noite, cantou-
ANAIS PERNAMBUCANOS 463

sc moteles, havendo duas salvas e dois sermões por dia; no


último canlou-se um Te-Deum.

“Durante tôda a festa serviu-sc colações nas galerias su­


periores. Este gênero ■de divertimento, muito pio sem dúvi­
da, mas, bastante bizarro para militares, atraiu uma multi­
dão imensa. Tôdas as noites, quando a igreja estava brilban-
temente iluminada, tôdas as senhoras apareciam no esplendor
dos seus trajes. Estendiam-se tapetes do centro da nave para
que elas pudessem ajoelhar; as suas escravas, ricamenle or­
nadas, ficavam à entrada do templo.

“O centro da igreja representava um alegrete esmaltado


de flores, de diamantes e de rubis c esmeraldas; se os de­
talhes não eram todos graciosos (porque havia ali exceções)
o conjunto era deslumbrante.

“Os homens, também trajando com apuro, cercavam o


quadrado formado pelas damas, e, de costas para o altar ou
púlpito, gozavam do espctácido conversando como sc estives­
sem cm algum lugar profano.

“Os sermões eram Iodos políticos e dirigidos contra o ja-


cobinismo e a impiedade.

“Ah! a nossa pobre nação francesa freqüentemcnte for­


neceu os textos de que o orador necessitava. Depois de ter
ouvido três ou quatro indiretas pouco delicadamente lançadas
sôbre o meu pais, acabei por não ir mais ao sermão. Mais
tarde rimos a bom rir com um dos pregadores, um benediti­
no de muito espirito, (*) c a quem via com freqüència e com

(*) — Devia ser Fr. Miguel do Sacramento Lopes Gama. que em 1817
já tinha regressado da Bahia, em cujo mosteiro professou e rece­
beu a sua ordenação, quando foi nomeado lente de retórica do
Seminário de Olinda, Dedicando-se êle ao ministério da prédlca,
para o qual a natureza o enriquecera de todos os dotes, quer na­
turais quer intelectuais, era Já, assim, moço ainda um eloqüente
e dlstintisstmo orador. V. o nosso Dicionário Biográfico.
461 F. A. PEREIRA UA COSTA

prazer. Disse-me èle que cm um dos seus sermões linha pa­


rafraseado este meu conceito: E’ melhor permanecer sob o
domínio do Grão Turco do que tentar uma revolução” .

Olhava-se então com desdém, como narra o escritor, as


senhoras que traziam os cabelos cortados à Tito. E’ sabido,
diz êle, que no período revolucionário Domingos José Mar­
tins e a sua consorte fizeram um apélo às senhoras patriotas,
convidando-as a se desfazerem dos seus vãos ornamentos da
cabeça, que iam mal à austeridade republicana, e recomanda-
va-lhes especialmenle, que fizessem cortar os seus cabelos.
ETm pouco mais de tempo e leriamos revisto os sanscoulottes.
Martins cheirava a èles a uma légua de distância.
De par com o que fica narrado, pusera o governo a prê­
mio as cabeças dos chefes patriotas, cuja quantia,queTollena-
re, francês que era, indicou na, moeda de sua terra, 2.100
francos, cabendo ainda ao denunciante, se fôsse escravo, a
sua liberdade, sendo assim, logo, diversos patriotas presos.
Os negros alforreados e que tiveram praça no exército
patriótico, apareceram quase todos, mas, perdendo a sua liber­
dade, e antes de serem restituidos aòs seus senhores, eram
cruelmente açoitados; e alguns que reagiam, eram açoitados
quase que até à morte. Era um espetáculo pungente êsse dos
açoites públicos, e que, entretanto atraia muita gente. Os al­
gozes eram criminosos condenados à grilhela. Os espectado­
res atiravam-lhes dinheiro para os excitar a dar com mais
fôrça.
O infamante e cruel suplicio de açoites era aplicado pe­
los portuguêses não somente aos homens de côr, negros, ca­
bras e mulatos, livres ou escravos, como também aos índios
e aos próprios homens brancos!
O número de açoites variava de 100 a 700, e eram aplica­
dos públicamente, atados os pacientes às grades da cadeia, ou
c/n outros lugares, como se vê, exemplificadamente, dêste as
sento do Livro de entradas e saídas dos presos da cadeia lo
AXAIS PERNAMBUCANOS 465

Recife: — “Em 28 de juiho (de 1817) foram castigados >s


presos José Francisco, crioulo forro e Policarpo, escravo, com
cem açoites no Pelourinho, cem na Praça, ccm na Boa Yisia
e cem na cadeia, e ficam em galés para o serviço público” :—
ou a uns tantos por dia: — “Bonifácio Antônio, crioulo fôrro,
tem de sofrer o castigo de cinqüenla açoites dc manhã e cin-
qüenta à tarde até sexta-feira, excetuando o dia do domingo,
e principia do dia sábado à tarde, que é 26 de julho” .

Inácio Antônio da Trindade, pardo, — quase branco, ho­


mem de muita probidade e respeito, — estabelecido com uma
oficina de tanoeiro, em que trabalhava com seus escravos, e
tinha uma propriedade na Ilha do Pina, preso pelo seu com­
prometimento na revolução, foi, por ordem do interino gover­
nador Rodrigo Lôbo, surrado com 500 açoites, c depois reco­
lhido, quase morto, à fortaleza das Cinco Pontas, de onde o
tirou o cirurgião diretor do hospital militar para aí o tratar.
Amarrado o paciente, de pé, a uma das grades de ferro
das janelas do andar térreo da cadeia, e despido da cintura
aos pés, recebia assim, a relho, os golpes, aplicados sôbre as
nádegas, que aos doze primeiros, ficava a carne a descoberto
e a verter sangue! Bem poucos gritavam pedindo que cessas­
se a sua flagelação, ou gemessem mesmo; alguns desmaiavam,
e ficavam como mortos!
Consignemos agora o fato da flagelação de um homem
preto de público conceito, oficial arregimentado, e chefe de
família cujo assentamento de prisão nas enxovias da cadeia,
cm desrespeito às suas imunidades, foi assim lavrado:

“Francisco José de Melo, alferes do Regimento Novo de


Henriques, remetido pelo Major Merme, encarregado da po­
licia, para se lhe abrir assento por ordem de S. Exc. Casti­
gado com 500 açoites no dia 1 (de julho de 1817); em 5 com
200; em 7 com 200; e em 11 com 200. Tudo por ordem vo­
cal do dito Major e em sua p re se n ç a ...” Em oito dias, mil
e cem açoites!!!
4 66 F. A. PEREIRA DA COSTA

Antônio Joaquim de Melo, escritor que viveu no tempo,


que tudo viu, narra assim tão tristíssima ocorrência:

l'A grade de ferro de uma das janelas do andar térreo da


cadeia, da parte de fora, à face da rua denominada lioje Rua
do Imperador, na maior intensidade de luz do dia, foi am ar­
rado pelos pulsos e cintura o Alferes Francisco José de Melo;
erguida e arregaçada a camisa para cima e calças abaixo, o
carrasco com um bacalhau, isto é, com um çoite de quatro
pernas de couro cru retorcido e preso só no cabo, o açoitou
tôdas as quatro vezes, como constam do respectivo assento,
sôbre as nádegas nuas e expostas à derrisão de uns e à com­
paixão e murm urantes imprecações de outros. Como a mui­
tas das outras vítimas de igual martírio, estava-lhe ao pé uma
tina cheia de água, e nesta o carrasco mergulhava de quando
em quando o bacalhau ensangüentado e o passava imediata­
mente pela areia do chão, para que, aderindo-lhe os grãos des­
ta, mais dolorosos fossem à vítima os golpes do bacalhau c
mais pronta e cruelmente lhe dilacerassem as carnes e exau­
rissem-lhe o sangue. As famílias dos prédios fronteiros re­
traíam-se e fechavam as vidraças das suas varandas, mas uma
grande turba de mirões, fezes imundas da sociedade, que em
todo o pais não faltam e a quaisquer espetáculos públicos ai
eram presentes, e com êles assíduos, de mistura, muitos per-
luguêses mais ou menos enlambusados alguns, e outros dos
que se chamam de gravata lavada, e que eram até oficiais
superiores e inferiores miliciandos, tão estúpidos quanto dc
entranhas ferinas e ingratíssimos, dos quais portuguêses al­
guns atiravam gostosos ao carrasco uma e outra moeda de
prata como prêmio da infernal tarefa e estímulo para melhor
esforço do braço m artirizador. E a tudo presente o mililar
chefe de policia!... O moribundo Alferes Francisco José de
Melo, em lastimosa penúria para tratar-se, jazeu quase trinta
dias deitado de bruços, sem que lhe fôsse possível assentar-
se nem andar. Sobreviver a tantos flagelos não foi um m ila­
gre?»
ANAIS PERNAMBUCANOS 467

José do 0 ’ Barbosa, pardo, capitão de milícias, alfaiate,


e prêso porque lhe coube fazer as bandeiras republicanas, e
condenado a açoites, — valeu-lhe porém o expediente de ve­
lar, e de dormir sempre em uniforme de capitão, feito pelo
rei; — e a mesma pena teria que sofrer o pintor que fêz o de­
senho daquelas bandeiras e o retrato dos membros do gover­
no provisório, Antônio Alves, liomem pardo, se não se apa­
drinhasse com um retrato do rei D. João VI, do seu habilis-
simo pincel, e com o qual se abraçou quando foi prêso por
ordem do chefe português, o feroz Rodrigo Lòbo, para lhe
ser aplicado o atroz castigo!
Como escreve o francês Tollenare, parece assim, que os
portuguêses não ligavam nenhuma idéia particular de deson­
ra à pena de açoite a relho ou chibata, porque se a aplica­
vam aos negros e mulatos, livres ou escravos, aplicavam-na
também aos índios, e até mesmo ao homem branco, a respei­
to do que consigna êle êstes dois fatos ocorridos no seu tem­
po, nçste ano de 1817.
Um navio negreiro pretendeu entrar no Recife violando o
bloqueio. Uma fragata fêz fogo sem atingí-lo; mas abordado
por umas clialupas, o seu capitão, um homem de qualidade,
por ordem do almirante, foi amarrado ao reparo de uma pe­
ça e fustigado com cinqüenta chibatadas!
Um capitão americano entrou com o seu navio no pôrto
do Recife, rompendo o bloqueio, cuja vigilância era má; mas
depois da restauração, aquèle almirante, no govêrno da pro­
víncia, mandou prender o dito capitão e condenou-o a açoi­
tes, o que se teria feito, se não fosse a atitude enérgica de
reclamações e protestos de todos os estrangeiros residentes na
cidade.
Aquele navio negreiro, fundeado no Poço apenas com duas
âncoras, por ter perdido na viagem diversos cabos, um gol­
pe de vento rompeu uma das amarras, a outra âncora garrou,
e o navio correndo à mercê dos ventos e das ondas foi nau­
fragar em frente ao forte do Buraco, ficando dentro de uma
hora em mil pedaços e perecendo afogados 160 africanos da
sua carga de carne humana!
468 F . A. PEREIRA DA COSTA

Mas, não era somente a flagelação a relho e a chibata


com que a tirania portuguesa martirizava a pobre gente bra­
sileira pelo seu crime de inconfidência, uma vez que as ví­
timas, que aos nossos dominadores pareciam menos culpadas,
ou mais protegidas pomutavam aquelas penas em palmatoa-
das!

Do referido Livro da Cadeia Velha, consta a respeito:

“Alberto José de Oliveira, branco, solteiro, ferreiro. Cas­


tigado com duas dúzias de bolos e sôlto no mesmo dia” .

“Maria da Conceição, preta forra. No dia primeiro de


setembro, sofreu o castigo de 72 palmatoadas, mas depois foi
suspensa a ordem de se ir continuando o castigo pelo deplo­
rável estado em que se achava” .

“Gertrudes Marques, parda, condenada a sofrer o casti­


go de duas dúzias de bolos de manhã e de tarde. Estêve prê-
sa de 16 de setembro a 31 de outubro” .

De par com a perseguição dos patriotas, do seu martírio


nas prisões e da execução capital de não poucos, houve o
confisco dos seus bens, e Tollenare tratando do assunto a 8
de junho escreve que, até então, havia já quarenta engenhos
confiscados. Houve ainda excursões e razias pelo interior, in­
vadindo-se as propriedades e levando-se o terror às famílias
dos infelizes republicanos, como, nomeadamente, o engenho
Salgado, — “que foi saqueado pelos realistas, enquanto o seu
proprietário gemia nas prisões dos patriotas” .

Época de terror e de martírios, em que o elemento brasi­


leiro se afastava de tudo e tripudiava o português, senhor ab­
soluto da situação, mandou o seu govêrno abrir o teatro pú­
blico para divertir a sua gente dos seus labores de algozes,
em cujos espetáculos figuravam danças de uma desenfreada
lubricidade, e nada mais lastimável que as peças e os atores,
AXAIS PERNAMBUCANOS 46 9

na frase de um cronista da época, que diz de um espetáculo


a que assistiu: As senhoras de boa sociedade lá não vão. Con­
tei apenas seis ou sete mulatas ou mestiças nos camarotes.
Um dos lados da segunda ordem de camarotes, exclusivamen­
te reservado às senhoras, só estava ocupado por mulheres de
vida alegre, pouco sedutoras e ridiculamente atav iad as...

MAIO 21 — Ato de protesto e reprovação da Câmara


Municipal da vila do Limoeiro ao fato de adesão da mesma
Câmara à causa da revolução separatista proclamada no Re­
cife no dia 6 de março, manifestado com entusiasmo após o
rompimento, em reunião solene, e do que se lavrou o compe­
tente têrmo firmado por seus membros e grande número de
pessoas presentes à solenidade.
Essa segunda resolução da Câmara veio da reação realista
ao nosso movimento emancipacionista, a execução do emissá­
rio revolucionário à Bahia, o Padre Roma, a marcha de uma
grande força sòbre Pernambuco, daí o receio de uma reação
sangüinária do governo português sòbre todos os comprome­
tidos .
Foi convocada então uma reunião da Câmara para êste
dia, com o comparecimento da principal gente da vila para
tratar do assunto, o que feito, e cortadas as fòlhas do com­
petente livro das atas no qual foram lavradas as de adesão
ao movimento revolucionário, e outros documentos, foi então
resolvido o constante do seguinte têrmo:

“Aos vinte e um de maio de mil oitocentos e dezessete,


nesta vila de Limoeiro, na casa da Câmara dela onde se acha­
va o juiz presidente, capitão José Francisco de Arruda e o
primeiro vereador João Francisco de Arruda, e o terceiro Jo­
sé da Costa Gomes Júnior, em falta do segundo Domingos
Mendes de Azevedo, em falta do procurador, Antônio Paulo
Viana, achando-se na mesma Clero, Nobreza e Povo, para
se tratar do serviço de Deus e de sua majestade Fidelíssima e
bem comum dos povos, acordaram ser de bom grado que fos­
sem demolidas e queimadas dez folhas constantes dêste li-
470 F . A. PEREIRA DA COSTA

vro em que se achavam inscritas as insolentes proclamações


e ordens do infame govêrno provisório dirigidas a esta Câ­
m ara e povos desta mesma vila, para que delas não houvesse
memória no presente e em futuro tempo, a fim de que não
se leiam jam ais tão escandaloso procedimento e — SACRÍ­
LEGA IMPIEDADE — quais vilíssimos insultores contra os
sagrados direitos da monarquia do nosso Augustíssimo Sobe­
rano e Senhor D. João VI, que Deus guarde. E porque assim
concordaram unânimemente fiz êste têrmo em que assino: Eu
José^ Clemente de Sousa Correia o escreví, por ausência do
atual escrivão Castro. — José Francisco de Arruda, juiz ordi­
nário. João Francisco de Arruda, José da Costa Gomes Jú­
nior, Domingos Mendes de Azevedo, Antônio Paulo Viana,
convencido em votos; Francisco de Sales, vigário do Limoei­
ro; Francisco Antônio de Oliveira Rosélis, vigário de Taqua-
retinga; Antônio Barhosa da Silva, juiz de órfãos; Padre Ma­
nuel Tavares da Silva Camelo, vigário de Bom Jardim ; João
Soares de Albuquerque, João Ferreira de Moura, Antônio Jo­
sé de Oliveira Varejão, José Lino Alves de Medeiros, Francis­
co José da Silva Braga, convencido em votos, Manuel Bezerra
de Menezes, Domingos Lopes de Figueiredo Castro, Estêvão
José Torres” .

A êste têrmo, que encontramos publicado no Diário de


Pernambuco de 2 de agosto de 1879, na sua Revista Diária,
segue-se o seguinte:

“A comarca de Limoeiro, não escapou da tremenda rea­


ção feita aos homens que abraçaram as idéias da revolução
de 6 de março de 1817: embora muitos dos que abraçaram es­
tas idéias, quando viram elas tombar no ocaso, as renegassem
e fizessem côro com os realistas para perseguir os seus con­
terrâneos, isso mesmo não lhes valei, e foram presos e reme­
tidos aos cárceres da Bahia, aonde jazeram até a revolução
portuguêsa, que obrigou o rei D. João VI a convocar as cor­
tes constituintes: entre as vítimas que deu a comarca, con­
tam-se os seguintes cidadãos: Carlos Leitão Cavalcanti de Al­
ANAIS PERNAMBUCANOS 471

buquerque, José Joaquim de Aragão, José Francisco de Arru­


da, Manuel Amâncio da Silva, Luís Carlos Coelho da Silva e
o vigário de Limoeiro — José Monteiro da Silva” . A êstes
nomes podemos acrescentar os de outros comprometidos
igualmente presos e vítimas de perseguições, como João Fran­
cisco de Araújo, Manuel Atanásio da Silva Cucharra, José da
Silva Monteiro e o Padre Francisco de Sales Coelho da Silva,
que figuraram em Os Mártires Pernambucanos.
Os limoeirenses, porém, foram pressurosos em adesões
à causa da nossa emancipação política em 1822, e com sole­
nidade prestaram logo o seu juramento, como consta dêste
têrmo então lavrado:

“Aos 8 de novembro de 1822 teve lugar na igreja matriz,


aonde se achava o pro-pároco José Joaquim Lòbo Albertim,
oficiando em câmara o Revmo. Henrique Luís de Sousa, foi
prestado o juram ento à independência do Brasil, sob os aus­
pícios do Sr. D. Pedro, príncipe regente: Juramento: —
“Nós diante de Deus e dos seus sacerdotes e altares, juramos
pelos santos Evangelhos adesão à união e causa geral do Bra­
sil, debaixo do atual sistema e dos auspícios do sereníssimo
Sr. D. Pedro, príncipe regente, constitucional e defensor
perpétuo do Brasil, a quem obedecemos, e assim juramos re­
conhecer e obedecer a assembléia brasiliana constituinte le­
gislativa, e defender nossa pátria e liberdade e direitos até
vencer ou m orrer; do que para constar m andaram fazer este
têrmo, em que assinaram. Eu, José'Joaquim de Figueiredo,
escrivão da Câmara, o escrevi” .

O Limoeiro, porém, não se manifestou em prol do nosso


movimento político de 1824, a Confederação do Equador,
proclamada a 2 de julho. Sôbre o que ocorreu então na loca­
lidade, escreve Caneca o seguinte no seu Itinerário:

“Marchamo sa 25 de setembro para o Limoeiro. Êste foi


o primeiro ponto em que pusemos em prova nossas forças.
472 F . A. PERETRA DA COSTA

“Constava-nos, que por influencia de um frade francisca-


no, natural da Bahia de Todos os Santos, Fi’ei Jeronimo de
S. José, capitão de guerrilha, haviam tropas no Limoeiro,
vindas do curato do Bom Jardim, para nos proibirem a pas­
sagem. Por este principio contando nós com o inimigo à fren­
te dispusemos as forças cm ordem de batalha; e assim entra­
mos debaixo do fogo inimigo, não nos custando mortos, sim,
feridos alguns; e perdeu o inimigo trinta e quatro soldados.
0 frade, que estava na vila, logo que viu o dcnodo das nossas
forças foi o primeiro que correu a todo o galope, desampa­
rando os seus, os (piais acharam a salvação na rapidez da
fu g a.

“A vila estava quase deserta de seus habitantes, assim


mesmo foi dado saque, respeitando-se porém aquelas casas,
que estavam com seus proprietários e inquilinos” .

Aquèle frade baiano, segundo um manuscrito do tempo


do coronel José Maria Ildefonso Jácome da Veiga Pessoa Melo,
é êsse mesmo capitão de guerrilha, que à testa de um bando
de celerados, percorria então aquelas paragens, cometendo
roubos, estupros, mortes, incêndios e outros atentados.
Depois dessa efêmera ocupação da vila pelas tropas re­
publicanas, foi igualmente assim ocupada pelas imperiais,
que, sob o comando do m ajor Bento José Lamenha Lins, aba­
laram do Recife, em perseguição daquelas.
O Limoeiro, porém, reabililou-se daquela sua apostasia
de 1817, celebrando um século depois — com extraordinário
brilhantismo, — as festas do primeiro centenário da revolução
pernambucana de 1817.

MAIO 28 — Entra no porto da Bahia uma sumaca que


partira de Pernambuco, conduzindo os doze primeiros m árti­
res da malograda revolução emancipacionista, que explodira
no Recife no dia G de março, sendo logo todos esses prisio­
neiros recolhidos à cadeia da cidade.
ANAIS PERNAMBUCANOS 47 3

Depois seguiram para o mesmo pôrto mais três navios


conduzindo outros prisioneiros de guerra, nomeadamente: a
corveta Carrasco, 71, que entrou no pôrto da cidade a 9 de
junho; o brigue Mercúrio, 30; e o brigue Intriga, 24.
As injúrias de que foi’am vítimas os mártires pernambu­
canos de 1817, e os seus sofrimentos na Bahia, são narradas
por Muniz Tavares, uma das vítimas daquele generoso movi­
mento político, que nos conta assim, fielmente, o que viu e o
que sofreu: . •

Depois de quatro dias de navegação ancorava no pôrto da


Bahia o brigqe Mercúrio, sem que finalizassem os tormentos
dos prisioneiros, que foram nele transportados. Com breve
viagem tinha já chegado no mesmo pôrto a corveta Carrasco,
pela qual souberam os baianos o complemento da desgraça de
Pernambuco, e souberam com prazer, ao menos exterior.
Ribombaram as fortalezas com salvas, fizeram-se fogos de
artifício, à noite tôdas as casas da cidade foram iluminadas,
o nome do Conde dos Arcos voava de bôca em boca, era acla­
mado o salvador da monarquia, as maiores honras, que o rei,
e vassalos, podiam conferir-lhe, julgavam-se inferiores ao seu
incomparável mérito. Os presos não desembaraçaram de dia
como a gentalha desejava, mas sim depois da meia noite, e
ainda à essa hora muitos daquela vez giravam para os insul­
tar cantando, em alta voz:

Bahia é cidade.
Pernambuco é grota,
Viva o Conde d’Arcos
Morra o patriota.

Antes do desembarque foram todos acorrentados, à ex­


ceção de Domingos José Martins, que tinha vindo na mesma
embarcação, José Luís de Mendonça, o Padre Miguel Joaquim
de Almeida e Castro, o Doutor Caldas, e o Deão de Olinda, que
algemados caminhavam separados, indicando de antemão a
sorte que sôbre êles já se havia lançado. Estava em armas
4 74 ! F . A. PEREIRA DA COSTA

tôda a guarnição da cidade, e parte marchou com tochas ace­


sas para conduzir os desembarcados à cadeia, onde entrando
pareceu-lhes entrar no inferno, e que tôdas as legiões de demô­
nios prepararam-se para recebê-los.
O desembarque, diz Basílio Quaresma Torreão, uma ou­
tra vítima, também, foi um verdadeiro espetáculo para a gen­
te da cidade, que corria ao pòrto a ver os presos de estado de
Pernambuco, aos quais apelidavam por escárneo de patrio­
tas; uns esperavam nas ruas por onde deviam transitar; ou­
tros nas janelas, nas calçadas e nos telhados. Aqui era um
insulto, ali um sarcasm o...
Èste, que escreve, recebeu uma cuspinhada de um môço,
aliás bem parecido e de gravata limpa quando subia em gar-
galheira a ladeira da Preguiça, cuja marcha era tanto mais
penosa quanto era de mister guardarmos as distâncias sob
pena de serem uns sufocados pelos outros. Ainda me lembro,
que no meu libambo, era eu o ante-penúltimo, sendo o penúl­
timo o falecido Manuel Caetano de Almeida e Albuquerque,
e o último o também falecido coronel Luís Francisco Caval­
canti de Albuquerque, que levava à guisa de crachá o cadea­
do que prendia a todos.
A luz opaca de um velho candieiro, continúa Muniz Ta­
vares, que apenas mostrava o ingresso daquela medonha ca­
verna refletindo sòbre os diversos objetos em roda, prestava-
lhes mais lúgubre aspecto; o estrondo das portas ferradas, que
se abriam e se fechavam ao mesmo tempo, o rum or das cor­
rentes, que se preparavam como mais pesadas para troca das
que foram trazidas de bordo da embarcação; os gemidos man­
dados da enxovia pelos escravos aí detidos e que todos os
dias eram bàrbaramente açoitados; o empestado fedor da no­
jenta cloaca-amalgamado com o fumo, que exalavam os cor­
nos em que trabalhavam alguns dos velhos encarcerados mais
diligentes; tudo concorria para alterar a imaginação já assaz
debilitada pelos atos violentos anteriormente praticados.
Os míseros pernambucanos volviam os olhos procurando
encontrar um semblante, que desse ligeiro sinal de compaixão,
t não descobriam senão serpentes revestidas de carne humana:
ANAIS PERNAMBUCANOS 475

o carcereiro Antônio José Correia com o seu ajudante e dois


negros exercitados nas funções de algoz, os recebia vomitan­
do com os licores de que sempre se embriagava, injúrias, que
o mais vil arreciro envergonhar-se-ia de repetir. — Eu sou
português, sou o governador dêste castelo, (dizia êle entre
muitas outras sandices) c quero ser o carrasco para enfor.*ar
hoje mesmo a vós todos infames rebeldes. — Pronunciava
tais ditos esgrimindo uma espada desembainhada.
Muito duro tratamento foi reservado ao Pedroso, José
Mariano e Antônio Carlos; estes logo que entraram à cadeia,
foram separados e metidos cada um em estreito segredo, um
verdadeiro sepulcro, no qual não se penetrava sem luz em
todo o decurso do dia; e como se não bastasse um tal suplí­
cio para os privar da vida lenlamente, os despiram dos ves­
tidos, que sôbre o corpo traziam, e inteiramenle nus ali os dei­
xaram com grilhões ao pescoço. Aquela separação aumentou
a consternação dos demais companheiros, que creram como
certo serem os três separados conduzidos imediatamente ao
patíbulo. Tudo era envolvido em mistério, tudo terror.
Finalmente depois de alguns dias penetrou um escasso raio
de luz. Antônio Carlos, percebendo o vil caráter do guarda,
em cujas mãos a sorte o tinha feito cair, prometeu dar-lhe o
seu x’elôgio de ouro, se lhe reslituísse a roupa, da qual tinha
sido despido. Aceita a promessa e executada a condição, veio
o recebedor exigir do depositário (o próprio Muniz Tavares)
o dom prometido, dignando-se anunciar-lhe que os três sepa­
rados viviam, e nem era provável que tão depressa morres­
sem.
Outras revelações, outros cômodos, seriam comprados a
pêso de ouro, se os encarcerados o possuíssem; via-se cW a-
mente que a exaltada lealdade do carcereiro e dos seus saté­
lites, não sabería resistir ao incentivo da corrução; êles bem
que tivessem passado revista às bolsas dos pernambucanos
fingindo examinar se nelas existiam instrumentos de ferro, e
se apoderando do pouco dinheiro que acharam, imprudente­
mente inquiriam, se traziam oculta alguma outra soma. En­
ganados nesta esperança, trataram de ressarcir-se à custa do
476 F . A. PEREIRA DA COSTA

alimento que sub-ministravam. O capitão-general da provín­


cia havia estabelecido que da fazenda pública fossem dados
para a despesa diária de cada um dos presos de estado duzen­
tos réis, soma que reunida bastava para conveniente sustento.
Entretanto o carcereiro incumbido da administração deste ra­
mo, uma só vez no dia fazia distribuir aos desgraçados limi­
tada porção de carne quase sempre putrefata envolvida em
pouca farinha. Traziam êste alimento negros escravos acor­
rentados, semi-nus, com o corpo ulcerado, e vertendo ainda
sangue por contínuos açoites. O leitor deseulpar-me-á se des­
ço a tais particularidades; o horror que ainda sinto, não me
detém a pena.
Quando os presos desembarcaram em Pernambuco, as
suas familias enviaram às respectivas embarcações baús com
roupas para que lhes fôssem entregues. Não se lhes comuni­
cou jamais a notícia de tal remessa; a crueldade por um re­
finamento inaudito reteve na Alfândega aqueles baús. Por
êsse motivo viam-se tantos respeitáveis cidadãos privados não
só do ordinário alimento, como de uma simples camisa para
m udar a imunda e esfarrapada, que apenas cobria os descar­
nados ossos. A barba e as unhas cresciam com a poeira, por­
que faltava a água necessária e tocar em navalha, tesoura, faca
ou garfo, era delito imperdoável. Nojentos vermes devoravam
a pele daquelas múmias viventes; a morte começou a dizimá-
los, e se alguns sobreviveram deve-se atribuir à graça inefá­
vel da Onipotência divina.
Lamentar-se, era indício de rebelião; um bom velho dig­
no de atenção, por muitos títulos, o tenente-coronel de milí­
cias, Pirá, porque um dia impacientado queixou-se, foi ar­
rastado a um dos. horríveis segredos, onde expirou. Não se
permitia a prática dos atos religiosos nem aos mesmos mori­
bundos, os quais, no instante em que exalavam o último sus­
piro, eram transportados ao cemitério dos escravos e ai en­
terrados .
Entre os facinorosos remetidos de Portugal aos cárceres
do Brasil para passarem ao depois à costa da África, em exe­
cução de sentença, o carcereiro escolheu dois, dos que se acha-
ANAIS PERNAMBUCANOS 477

vam na sua cadeia mais cobertos de crimes, e os postou nas


duas salas, onde estavam encerrados os patriotas, para os es­
piarem, reprimirem o denunciarem. Assim homens de iliba­
da conduta eram entregues à direção de celerados, que a so­
ciedade justamente havia rejeitado de seu seio. O modo com
que desempenhavam o encargo confiado, conformava-se em
tudo ao próprio caráter. A insolência, a imprudência, eram os
menores vícios daqueles guardas.
De tanta miséria nenhum baiano se mostrou compadeci­
do nem ao menos indiretamenle; temiam o hálito dos infeli­
zes, como se fossem empestados, negavam a amizade, sufoca­
vam os mais suaves movimentos do coração para não excita­
rem a desconfiança. Mas para honra da humanidade, veio
o frágil sexo com a sua nobre coragem confundir o denomi­
nado forte: virgens baianas segregadas do mundo por amor
da perfeição Evangélica, sem pretensão aos estudados elogios
dos aduladores, sem outra esperança de recompensa além-da
satisfação do bem praticado, apenas ouviram, do fundo dos
seus venerandos claustros os gemidos dos aflitos, não hesita­
ram em requerer ao Conde dos Arcos a permissão de dividir
com os pobres famintos a porção de pão que lhes tocava. A
virtude em supremo grau força ao respeito o homem mais
vicioso. Aquêle governador não soube resistir-lhe, a ordem
de misericórdia foi executada. . .
Até aqui, a narrativa de Muniz Tavares.
Muito importante também é a narrativa de Basílio Qua­
resma Torreão, com interessantes anotações, que se encontra
nas — Obras politicas e literárias de Frei Joaquim do Amor
Divino Caneca — colecionadas pelo Comendador Antônio Joa­
quim de Melo.

MAIO 29 — Ofício do chefe de esquadra Rodrigo José


Ferreira Lôbo, ocupando o cargo de governador de Pernam ­
buco, dirigido aos governadores interinos da Paraíha :

“Recebi com o maior prazer o seu ofício de 20 do cor­


rente, e agradecendo-lhe em nome de S. Majestade a fidelida-
478 F . A. PEREIRA DA COSTA

de e honra coin que V. Mces. e os mais habitantes dessa capi­


tania restauraram o seu legítimo real poder, tenho também
a participar-lhe que no mesmo dia do desembarque nesta ca­
pital o meu coração transbordou de alegria vendo as demons­
trações que me deram os seus habitantes da sua adesão au
nosso legítimo soberano.
“Não tem passado um dia em que não apareçam novos
testemunhos cia fidelidade de um povo, que com efeito não
estava contaminado das perniciosas doutrinas de uma porção
de malvados, que apoderando-se da força armad - tinham a
terçado os ânimos e lisonjeavam-se de levar adiante seus de­
sacordados, infames e pérfidos intentos.
“ Quis a divina providência que êles mesmos se confun­
dissem nos desígnios e perturbados dos seus delitos, pretende
ram escapar-se pelo interior do país; mas não acontecerá as
sim, pois que tendo sido já presos a maior parte dêles, os nou-
cos que restam não conseguirão iludir a vigilância dos que vão
em seu seguimento.
“ Quanto aos petrechos de guerra que daqui fc a m reme
tides pelos insurgentes para essa capitania, tomarei ulterior
medida segundo a necessidade que houver dêles nesta ou nesta
capitania.
“E pelo que respeita aos presos em que V. Mees. me fa­
lam. devem ser para aqui remetidos com a maior brevidade
e segurança possível.
“Remeto a V. Mees. o edital que aqui mandei publicar
para serem presos os réus de alta traição nêle contemplados, e
demais recomendo a V. Mees. que se façam tôdas as diligên­
cias pelo réu do mesmo crime José Fernandes Portugal o qual
serviu aqui de intendente de marinha e desapareceu. Deus
guarde a V . Mees. ”

JUNHO 12 — Execução capital, por arcabuzamento, dos


patriotas José Luís de Mendonça, Domingos José Martins e o
Padre Miguel Joaquim de Almeida e Castro, comprometidos no
movimento revolucionário de Pernambuco, cujas execuções ti­
ANAIS PERNAMBUCANOS 479

verem lugar na Bahia, no Campo da Pólvora, na m .nhã deste


dia sendo em seguida sepultados no pequeno e humilde cemi-
tér:o que havia no mesmo campo, pertencente à Santa Casa
dc Misericórdia, e onde se enterravam os falecidos no hospi­
tal de caridade, os escravos e os malfeitores de, tôda a espécie
executados pela justiça. Como escreve um baiana, o pequeno
cem.tério do Campo da Pólvora era o que se pode conceber de
mais primitivo e miserável; e naturalmcnte foi por Isto mesmo
que mandaram sepultar ali aqueles três homens, ilustres e
distintos por muitos títulos. Escapou dc cair na vala comum
dêsse miserável cemitério o Padre D r. José Inácio Ribeiro de
Ab'.eu e Lima. fuzilado a 29 dc março, graças aos empenhos
do vigário Manuel Coelho dc Sampaio Menezes, que deu se­
pultura ao cadáver na igreja matriz de Santana.
Debelada a revolução restaurada a régia autoiidade e to­
mando conta do govêrno o chefe do bloqueio do pòrto do Re­
cife, Rodrigo José Ferreira Lobo, tratou logo da prisão dos
comnrometidos no movimento, e reunindo-os em número de
setenta e um, enviou-os para a Bahia- a bordo de um brigue
que por uma circunstância notável tinha o expressivo nome
de Carrasco.
No dia 9 entrou o navio no pòrto da cidade desembar­
caram os presos, foi logo convocada uma comissão militar
a l l compareceram perante a mesma José Luís do Mendonça.
Domingos José Martins, Padre Miguel Joaquim de Almeida
Cas’ro, Dr. Manuel José Pereira Caldas, antigo oavidor-geral.
de comarca, c o deão Dr. Bernardo Luís Ferreira Portugal, e
julgados todos criminosos dc lesa-majestade, c havidos por trai­
dores, foram por unanimidade de votos condenados à morte,
natural e cruelmente e confiscados para a coroa ledos os seus
bens. Entendeu porém a comissão militar, reza a ; entença —
“que por perfeita segurança dc suas consciências deviam fa­
zer uso da permissão concedida a tais tribunais, recomendando
Manuel José Pereira Caldas e Bernardo Luís Ferreira Portugal
a ilimitada beneficência de S. M. El-Rei nosso Senhor, em
atenção à decrepitude do primeiro e à circunstânr.r de ser êE
480 F . A. PEREIRA DA COSTA

natural da província do Minho, cm Portugal e po.. isso muitu


provável a violência que o forçara a ceder ao part'do pernam ­
bucano, partido que pelos autos consta ser o únic ,i forte e su­
premo, e a quem convinha para seus danados fins associar nos
últimos dias de março indivíduos da Europa; e em igual aten­
ção, a coartada que o segundo oferece quando assegura ter
feito, ainda no calor da revolução, seu testamento, em que se
declara fiel vassalo de El-Rei nosso Senhor, e a que juntava
documentos, que talvez minorassem o seu crime, l lhe fossem
ba1da das pela brevidade da sentença. ”
Lavrada a sentença no dia 11, foram somente executados,
logo no dia seguinte, os três mencionados réus, permanecendo
porem os dois últimos em rigorosa prisão até 1821.
José Luis de Mendonça era pernambucano, homem de
grande talento, superior ilustração, — c mestre dos advogados
do fòro do Recife; — o Padre Miguel Joaquim de Almeida Cas­
tro o Miguelinho, era natural do Rio Grande do Norte, de su­
bido merecimento, orador distintíssimo, competente lente de
retórica do Seminário Episcopal de Olinda, e sacerdote reve­
renciado pelo seu zêlo, virtudes e piedade; e Domingos José
Martins, espírito-santense, inteligente, de esmerada educação,
muito viajado, e comerciante de alentada fortuna era franco
e generoso, insinuante, e de grande popularidade em Pernam ­
buco, onde por fim se estabeleceu e fixou residência. Noivo
de uma filha do abastado capitalista, o coronel Bento José da
Costa, casou-se poucos dias depois do rompimento da revolu­
ção, deixando porém com a sua morte, na mais triste viuvez,
a sua bela e amada consorte. Poeta,' e dedicando-lhe o mais
apaxonado amor, ao ser condenado, na véspera da sua exe-
cuçãOi escreveu no cárcere êste belíssimo sonêto, em que dei­
xou bem patentes os seus mais puros sentimentos de amor
da pátria e conjugais :

Meus terno 5 pensamentos, que sagrados


Me fostes quase a paz da Liberdade;
Em vós não tem poder a iniqüidade,
Á esposa voai, narrai meus fados.
AXAIS PERNAMBUCANOS 481

Dizei-Ihe, que nos transes apertados,


Ao passar desta vida á eternidade,
Ela dalma reinava na metade;
E com a Pátria partia-lhe os cuidados

A Pátria foi o meu Xunem primeiro,


A esposa depois o mais querido
Objeto do desvelo verdadeiro.

E na morte entre ambas repartido


Será de um ao suspiro derradeiro,
E da outra ha de ser final gemido.

Êslc terno, inspirado c patriótico soneto, popidaríssimo e


devidamente apreciado, foi vulgarizado pelos anos de 1823, em
avulso, impresso na Tipografia de Cavalcanti & Companhia,
naturalmente mandado imprimir pelo seu principal prorietá-
rio Manuel Clemente Cavalcanti de Albuquerque, amigo do
infeliz Martins e seus comanheiros de revoluçãc, por cujo
comprometimento gemeu por quatro anos nos <árceres da
cadeia da Bahia.
Desses três mártires muito se ocupa a nossa história, con-
sagrando-lhes, reverentemente, as mais belas páginas, desta
cando-se, porém, as que lhes foram consagradas pelo Padre
Joaquim Dias Martins, escritor contemporâneo, no seu cons­
ciencioso e apreciado livro Os Mártires Pernambucanos.

JUNHO 26 — Carta patente nomeando a Luis do Rêgo


Bar, eto governador e capitão-gcneral de Pernambuco, cujo
doer'.mento c concebido nestes termos :

“ Sendo restaurada a capitania de Pernambuco do intruso


goví rno erigido pelos rebeldes, e sendo necessár.o que haja
pessoa de honra, inteligência’ c confiança que no meu real nome
governe aquela capitania, e mantenha no devido sossêgo, obe­
diência e fidelidade os seus habitantes: e lendo eu encarregado
a Luís do Rêgo Barreto, marccha-l-de-campo dos meus reais
4 82 F . A. PEREIRA DA COSTA

exércitos, do comando em chefe das forças que ora mando


para reduzir aquela capitania à sua devida sujeição; liei por
bem não só nomcá-lo para* aquêle importante destino, mas
também para governador e capitão-general da mesma capitania
poi tempo de três anos e o mais que decorrer enquanto eu fôr
servido, e não lhe nomear sucessor.”

Luís do Règo já havia partido do Rio de Janeiro como


comandante cm chefe da referida expedição militar, quando
foi lavrada a sua nomeação de governador de Pernambuco, s
chegando ao Recife com as tropas sob o seu comando em che
fe a 28 de junho, no dia primeiro de julho tomou p( sse do car­
go na igreja matriz de Santo Antônio, celebrando-s em segui
da um solene Te-Deum, cuja oração, recitada pelo Padre Iná­
cio de Sousa Prata', com o titulo de --- Sermão em ação de
graças pela feliz restauração de Pernambuco, sucedido aos 20
de maio de 1817 pregado no dia da posse de Luís do Rêgo Bar­
rete, governador e capitão-general de Pernambuco — foi im
presso em Lisboa no mesmo an o .
A recepção e posse de Luís do Rêgo, segundo o testemu
nlm de Tollenare, foram revestidas de grande solenidade. (•'
governador, escreve êle, deve ter ficado muito lisonjeado com
o a olhimento recebido; a sua entrada ou posse foi muito b ri­
lhante.
“As tropas que trouxe, junto às da Bahia e à milícia no­
bre da cidade, formavam um quadrado de cêrca de 5.000 ho­
mens, no meio do qual êle discursou às autoridades de volta
da igreja.
As janelas e varandas dos prédios por cujas ruas passou,
estavam guarnecidas de ricas colchas e ornadas de senhoras
elegantes, que lhe lançavam flores, unindo as suas aclamações
às do povo.
Luís do Rêgo Barreto nasceu em Viana do Minho, em
Portugal, em 1778. Seguindo a carreira militar, já era te-
nen'e em 1807, quando o exército francês, sob as ordens do
general Junol, invadiu Portugal. Deixou êle então o seu re
AXAIS PERNAMBUCANOS 483

gimento, mas em 1808, quando rompeu a guerra contra o in-


vasi r, Luis do Rêgo apareceu dirigindo o movimento insur­
recional viancnse, aclamado chefe pelos patriotas da- sua
te rra .
Elevado ao pòslo de major, e incumbido da > rganizaçãc
de um corpo, conquistara um nome distinto pelos teus feitos,
quando çm 1810 a batalha campal do Bussaco veio firm ar a
sua i-eputação militar.
Retirando-se o exército francês de Portugal im 1811, e
passando-se à Espanha, as tropas portuguèsas marcharam em
sua perseguição, colhendo então Luís do Rêgo novos triunfos
principalmente nas batalhas da Cidade Rodrigo Badajoz, Ara-
piles e assalto de S . Sebastião de Biscaia.
Firmada a paz em 1814, regressou Luís do Rêgo a Portu­
gal, enobrecido pelo valor dos seus feitos, recebendo então
condigna remuneração, não só do governo- do seu país, como
também do ingles, cujo exército muito cooperou <m prol da
libertação de Portugal.
Vindo à corte do Rio de Janeiro em 1816, ao chegar en­
controu lavrada a sua patente de brigadeiro, e sendo mui bem
recebido por el-rei D. João VI. Naquele mesmo ano casou
Luís do Rêgo com D. Maria Zeferina de Azevedo — moça c
formosa, educada à européia, filha do Visconde do Rio Sê
co depois Marquês de Jundiaí, senhor da Vila de Macaé e al-
caidc-mor da de Santos.
• Achava-se assim Luís do Rêgo no Rio de Janeiro em 1817,
quando chegou a notícia do rompimento da revolução separa
tista de Pernambuco resolvendo o governo imediíUnmente en­
viar uma forte expedição militar para bater os revoltos e res­
taurar a autoridade real, foi êle nomeado comanda".te erti che­
fe, raças à fama do seu nome, e ainda mais, peU valimento
de seu sogro na côrte.
Dois batalhões de infantaria, um esquadrão de cavalaria,
c uma parte de regimento de artilharia foram posfns à dispo­
sição de Luís do Rêgo, e como ainda se julgou insuficiente
tôda essa força para sufocar o movimento révolue? nário, teve
êle ordem de tocar na Bahia, aí receber novos reforços, e de
484 F . A. PEREIRA DA COSTA

con er lar o plano de campanha com o seu governador, o Con­


de dos Arcos, que, aliás, já tinha providenciado a respeito.
Logo que Luís do Rego tomou posse do govêrno da pro-
vín da, armado de discricionário poder, — autorizado a fazer
tudo o que entendesse fôsse em bem do serviço do rei no de­
sempenho da sua comissão, — como lhe facultara D. João VI
em ofício do seu próprio punho, escrito a 2 de maio, foram
logo por sua ordem seqüestrados todos os bens d jS infelizes
patriotas, e instalada uma comissão militar, da qual era êle
o presidente, para julgar os comprometidos no movimento, e
poucos dias depois rolava do cadafalso a cabeça do intrépido
Antônio Henrique, mais tarde as de Tenório, Barbos Lima e
Domingos Teotônio, além de um grande número de presos que
foram atulhar os cárceres da cadeia, das fortalezas c dos quar­
téis; e por fim, as dos patriotas da Paraíba, que pur ordem de
Luís do Rego vieram para o Recife.
Da comissão militar, refere Muniz Tavares, passavam os
juizes à sala de jantar, que Luís do Rêgo lhes oferecia, e todos
aí procuravam comprimir nos licores, que copiosamente be-
biam, o grito incessante da consciência. À noite, dedicavam
eles aos assaltos de casas honestas, onde a fidelidade conjugal
e o pudor virginal, eram postos cm duras provas.
A morte ignominiosa de tantas vitimas comprometidas na
revolução, a decepação dos seus membros expostos em lugares
públicos e o arraslamento dos seus corpos assim mutilados em
cauda de cavalos pelas ruas do Recife, a serem atirados à vala
comum aberta paru- os receber, ainda era pouco ! Luís do Rêgo
estabeleceu logo em começos do seu govêrno, uma denomina­
da polícia militar, que cometeu tôda a sorte de torpezas e bar­
baridades .
Para se fazer um» idéia aproximada do estado em que
se achavam os negócios íntimos da província em 1820, consig­
namos os seguintes trechos de uma carta particular então es­
crita para fora :

“ O Sr. General vai todos os dias para as Cinco Pontas


ver correr bois. O folguedo dos bois tem feito seus estragos...
AXAIS PERNAMBUCANOS 485

Mataram uma mulher dentro do Recife, e no outro dia o Ge­


neral mandou pôr as casas de tòdas mulheres damas em cerco,
dar-lhes bolos e chibatadase cortar-lhes o cabelo; de sorte que
têm fugido as mulheres para o mato, e o Recife está vasio.
Os algarves brigaram com os galuxos (*), e tem havido seus
incômodos, de sorte que os galuxos têm tido a palma; êle ge­
neral, nem se lhe imporia com isto. A ponte dos Afogados
caiu, e cada pessoa está pagando oitenta réis de passagem ...
0 nosso santo general acorda agora às três horas da madrugada
e vai à caçada. . . Está prèso um letrado por fazer um reque­
rimento de um senhor de engenho por lhe terem usurpado as
suas terras. O Gato-brabo o mandou meter na cad eia... O
General mudou-se para o convento de S. Bento. Isto meu
Amigo, vai-se acabar; Deus se lembre de nós. . .
“ 0 General está na cidade e não lein vindo ao Recife;
ontem é que apareceu esta alma perdida. . . Tem havido aqui
uns pasquins, e se botou um bando pelas ruas públicas para
serem tiradas as rótulas que abrissem para fora para serem
substituídas pelas que abrissem para dentro. Nesse bando de­
clarou êle que, quem visse algum pasquim pelas ruas, os a r ­
rancasse, sob pena de serem castigados. O General deu uma
conta para o Rio dizendo que êle não era revolucionário.
Acham-se prêsos a bordo da Maria Zeferina, o Casimiro e o
Sá, por inconfidentes; o Coronel Morais e o Sargento-mor Se­
bastião Antônio, estão prêsos também por êste crime. Êles
estavam com a revolução formada para o dia de Santo André;
o tenente Filipe foi quem denunciou c o General anda com a
guarda dobrada. Tem-se prendido muita gente. . . Hoje (5
de dezembro) se acha reunida uma grande junta no Colégio
(Palácio do Govêrno) ; o ouvidor, o juiz-de-fora, Gaio e muitas
patentes superiores, para darem a sentença dos crim inosos.”

Tais atos de um semelhante govêrno, opressivo, imoral


e despótico, não podiam ficar impunes. As reclamações para

(*) Dois batalhões portuguêses da guarnição da praça do Recife.


4 86 F . A. PEREIRA DA COSTA

a côrte eram infrutíferas, porquanto Luís do Rêgo tinha lá po­


derosos protetores; e assim, veio o desespero, a vindita po­
pular, e a deliberada resolução da sua morte, de cuja tenta­
tiva damos particular notícia na data de 21 de julho de 1821,
quando ocorreu o fato.
O ódio popular contra Luis do Rêgo vinha porém de mais
longe- Já em 1818 abortara uma tentativa contra a sua vida,
como igualmentc uma outra em 1820, dizendo êle próprio a
respeito desta última em ofício de 5 de dezembro dirigido aos
governadores das províncias do Norte, que se havia descoberto
uma conspiração contra a sua pessoa e a de outros funcioná­
rios, que devia rebentar na noite de 29 daquele mesmo mês,
da qual era principal autor o coronel Antônio de Morais Car­
valho, que se achava preso, assim como mais outros compli­
cados .
Tinha Luís do Rêgo por costume passar temporadas no
grande sobrado do Mondego, de Luís Gomes, magnífico prédio,
geralmente conhecido por Palácio do Mondego, e que ainda
existe ocupado pelo Colégio Salesiano. Confronte ao prédio
havia um grande sitio, murado, e bastante arborizado, o qual
dava saída para a Trempe e Soledade, até onde chegavam os
seus extremos; e no muro do sítio, que era rebocado e caiado,
em certa manhã, apereceram escritos êstes versos em tinta
preta :

Toma cautela, Rêgo,


Não passes no Mondego.

Foi então que se soube que dois indivíduos entravam à


noite para o referido sítio, pelo lado da Soledade, e que à es­
preita aguardavam ocasião oportuna de atirar sôbre o general,
que assim avisado, deixou por algum tempo a bela e aprazivcl
residência do Mondego.
Tal foi a conduta moral de Luís do Rêgo no seu govêrno
de Pernambuco, os atos que tornaram execranda a sua memó­
ria. Mas, como reflexiona um escritor, que foi contemporâ­
neo dos acontecimentos dessa época, — assim como não há
ANAIS PERNAMBUCANOS 48 7

herói que o seja cm ludo, também por mais desregrado, ou


mau que seja um governo, ordinariamente se lhe notam algu­
mas ações boas e louváveis.
Depois das execuções dos comprometidos na revolução
de 1817, a Câmara Municipal do Recife se lhe apresentou sole­
ne em audiência, implorando a clemência real, por meio de
um requerimento que llie apresentou, para tantos cidadãos que
ainda gemiam em prisão; e Luís do Rêgo, — que trouxera or­
dens positivas para carregar sòhre os rebeldes com braço de
ferro, — ouviu atento » Câmara, e encaminhando o requeri­
mento ao rei, expondo que, já tantos de seus inimigos tinham
espiado o seu crime, êle também implorava a sua clemência,
— oferecendo para a im petrar os serviços que tinha prestado
à pátria.
Muito concorreu êle para a dissolução da alçada, e para a
outorga do perdão.régio que os comprometidos obtiveram; e
a êle o deviam, como confessou o ministro Tomás Antônio de
Vilanova Portugal, em ofício que lhe dirigiu sòbre o assunto,
cujos documentos figuram consignados na Memória justifi­
cativa do general, impressa em 1822.
Em fevereiro de 1818, Luís do Rêgo visitou a vizinha
província da Paraíba, acompanhado de sua mulher, e dos seus
ajudantes de ordens, do secretário do g o v e r n o , do engenheiro
e do seu capelão particular, onde foi festivamente recebido,
sendo porém de curta demora a sua visita.
Dos seus serviços mais notáveis na província, notam-se
a reform a do Trem Militar, depois Arsenal de Guerra, criando
então as companhias de artifícios e de menores educandos do
mesmo Trem; prestou também muito bons serviços à Inten-
dência, depois Arsenal de Marinha, de maneira que, encon­
trando a repartição em decadência, em pouco tempo aprestou
uma flotilha para o cruzeiro da costa; melhorou o serviço de
exportação do algodão, o que muito contribuiu para valorizar
o produto nos mercados estrangeiros; e promoveu um serviço
regular de pesca nos baixios do arquipélago de Fernando de
Noronha; deu impulso à viação pública, abrindo estradas, re­
4 88 F . A. PEREIRA DA COSTA

parando as ponies arruinadas e construindo outras; induziu os


senhores de engenho a m andar vir os novos maquinismos ado­
tados no fabrico do açúcar, pelas suas compensadoras vanta­
gens, devendo-se à sua iniciativa o uso das fornalhas econô­
micas nos mesmos engenhos; construiu novas estradas nos su­
búrbios do Recife, e alinhou e alargou as antigas, fazendo em
tôdas as necessárias obras-de-arle; reconstruiu a ponte do Re­
cife; estabeleceu telégrafos em diversos pontos dos quais ainda
nos resta o da tòrre da igreja do Espírito Santo; construiu o
farol do pôrto do Recife; e prestou grandes serviços à Casa
dos Expostos, onde colocou o seu retrato em grande tela, com
uma honrosa inscrição, em que se declara protetor de tão útil
estabelecimento: enfim, por este lado, o governo de Luís do
Rêgo foi um dos mais fecundos que teve o estado durante os
tempos coloniais, e longe iríamos em uma demorada enumera­
ção de tudo que fez êle em bem desta terra durante os quatro
ano do seu governo.
Mencionemos, enfim, como serviço de alta relevância, a
instituição de uma oficina tipográfica no Recife, e a publicação
do primeiro jornal que houve em Pernambuco, A Aurora Per­
nambucana, ligando assim o seu nome à história da nossa im­
prensa .
Mas os acontecimentos políticos que concorreram a ele­
var Luís do Rêgo e colocá-lo no govêrno de Pernambuco, pas­
saram, e sucederam-se outros que vieram apeá-lo dêsse mesmo
govêrno.
Humilhados os porluguêses europeus pela sua secundária
situação política, quando viam o Brasil, com igual categoria
de reino, constituído em metrópole, e assento da côrto portu­
guesa, e vendo (pie já era tempo de inaugurar-se no pais um
govêrno liberal e constitucional, levantam — em 1820, põem
em campo a célebre revolução do Pôrto, dirigindo um Mani­
festo à Nação, descrevendo a situação política de Portugal, e
acompanhando Lisboa o pronunciamento, e depois tôdas as
cidades do reino, teve a corte de regressar, após treze anos de
permanência no Brasil.
ANAIS PERNAMBUCANOS 489

Em 1821 pronunciam-se os portugueses da Europa por


uma constituição liberal, o rei jura adotar a que fôsse decreta­
da, convoca-se uma assembléia constituinte a reunir-se em
Lisboa, e todo o país se põe no mais agitado movimento polí­
tico possível.
Vendo Luís do Rego que a situação política que se iniciara
importava a sua queda, e os conquistados triunfos do nume­
roso partido que lhe fazia oposição em Pernambuco, coliga-se
com os seus compatriotas, e sem consultar a nenhum dos fi­
lhos do país, nem esperar ordens do Rio de Janeiro, e a um
simples convite da regência de Lisboa, proclamou e fêz ju rar
pela sua gente a 11 de julho de 1821 as bases da futura consti­
tuição e mandou proceder à eleição dos deputados de Pernam ­
buco ao Congresso Constituinte de Lisboa.
Vendo os pernambucanos em todo o procedimento polí­
tico de Luís do Rêgo um único fim, a sua conservação no po­
der, levantam-se revolucionados no interior da província, e
reunindo-se na vila de Goiana, com uma grande parte da tro­
pa que desertou do Recife, instalam a 29 de agosto um govêrno
constitucional provisório, ao mesmo tempo que Luís do Rêgo
criava no Recife uma junta conslituiconal governativa, de que
se fêz presidente.
Organizado o govêrno de Goiana, em correspondência
com todos os municípios da província, e preparada um a gran­
de força, composta da tropa e povo aiunado, marcha sôbre a
capital; mas chegando às imediações de Olinda, encontra com
as tropas portuguêsas expedidas por Luís do Rêgo para cor­
tar-lhe o passo, e fere-se renhido combate, de que saiu vito­
rioso o partido nacional.
Vendo-se o governador reduzido ao limitado circuito do
Recife, sem meios de ação e de defesa, batido em todos os
pontos, em que opôs resistência, delega uma deputação ao go­
vêrno de Goiana, que se achava com tòda a tropa acampado
na vizinha povoação de Beberibe, a fim de cslabelecerein-se
os artigos de paz, que propunha.
Dois dias duraram as negociações, no fim dos quais foi
lavrado e assinado o competente têrmo de capitulação, consa-
490 F . A. PEREIRA DA COSTA

grado na história por Convenção de Beberibe, em data de 5


de outubro de 1821, pelo qual ficou resolvida a instalação de
uma junta provisória do govèrno constitucional, cessando as­
sim o mandato da que fóra clandestinamente organizada por
Luís do Rego, e por consequência a sua autoridade governa­
mental como presidente da mesma junta, além de mais ou­
tras cláusulas tendentes ao restabelecimento da paz e do sos-
sêgo públicos, e outras medidas de interesse ocasionais.
Coincidiu esta ocorrência com o fato da recepção da car­
ta régia de 2 cie setembro, ordenando a organização de uma
junta provincial, e governo das armas, à qual imediatamente
Luís do Rêgo o governo, assim como que se retirasse êle para
Portugal, logo depois de organizada a referida junta e conse-
qüente entrega do govèrno da província. E’ fácil de ajuizar-
se o despeito de Luis do Règo, e efelivainente, mandando
logo proceder à eleição da junta no dia 26 de outubro, à tar­
de, depois de concluídos os trabalhos eleitorais, embarcou êle
para Portugal com os seus amigos, no navio francês Char­
les Adela, sem esperar para cumprir o preceito de dar posse à
nova junta, tal o seu despeito e contrariedade.
Extraordinário júbilo, grande entusiasmo, festas solenes,
saudaram o triunfo dos constitucionais pernambucanos, a que­
da da tirania, a aurora da regeneração da pátria, cujos feitos
memoráveis foram saudados pela lira patriótica com entusiás­
ticos hinos e harmoniosas canções postas à solfa, das quais
chegaram êstes versos aos nossos dias :

Luís do Rêgo foi guerreiro,


Sete campanhas venceu,
Mas na oitava de Goiana
Luís do Rêgo esmoreceu.

Luis do Rêgo foi chamado


De raiva ficou maluco,
Sete campanhas que tinha
As perdeu em Pernambuco.
ANAIS PERNAMBUCANOS 491

Luís do Rêgo já dizia


Que Pernambuco era seu,
Perdeu tudo quanto tinha,
0 braço lhe esmoreceu.

A mulher de Luís do Rêgo


Não comia senão galinha;
Inda não era prinesa
Já queria ser ra in h a .

Luís do Rêgo já dizia :


Antes eu cá não viesse;
Paciência, maganão,
São desgraças que acontece.

Luís do Rêgo foise embora


Sem dizer nada a ninguém,
Os corcundas estão dizendo :
Luís do Rêgo logo vem.

Já anteriormente à partida de Luis do Rêgo, tinha apare­


cido afixado nas esquinas de diversas ruas do Recife êste in­
teressante

Pelo sinal

Quando chegou Luís do Rêgo


Dando por pedras e pau
Deu logo provas de mau

Pelo sinal.

Um grande crime, fatal,


Fêz êsse grande sendeiro,
Mandando tirar o cruzeiro
492 F . A. PEREIRA DA COSTA

Da Santa Cruz

Falto de razão e luz,


Mentiroso, desumano,
Dêle e d’outros de seu pano

Livre-nos Deus

Mais cruel de que um judeu !


Mais tirano do que fera,
E presumia que era

Nosso Senhor.

Com grande astúcia c furor


Êle e os seus nos aterra,
E as urupemas desterra

Dos nossos.

Malvados chamam aos nossos


Ao lado de seus malvados,
Aos goianistas honrados

Inimigos

Pelo contrário, amigos,


Do rei, da religião,
Que querëm a constituição

Em nome

O ódio que nunca dorme .


Foi acusar o Moreira,
E vão aos pés, na carreira,
ANAIS PERNAMBUCANOS 493

Do Padre.

Soube o clero da maldade :


Ocultou-se pra obstar
À sombra do Patriarca

E do Filho.

Rafeiro, impuro caudilho,


Dos goianistas ladrão,
Foi da cai'ne a tentação

E do Espírito.

Trino Deus, bom, infinito,


Vosso templo profanado !
Lugar mais do que sagrado,

Santo !

Temos visto com espanto


Coisas que nunca pensamos;
Sempre graças a Deus damos.

Amen.

Partiu, enfim, Luís do Rêgo! O povo ia então livremente


respirar: a situação afiitíssima da província, a carestia dos gê­
neros de primeira necessidade, as fintas forçadas para o sus­
tento das tropas, as prisões sem número, as deportações, os
sobressaltos, tudo enfim ia desaparecer com a segurança da
paz e da tranqüilidade pública, pela firmeza das liberdades pá­
trias, e pela confiança que a todos inspirava o novo govêrno.
Entretanto, os cegos partidários de Luís do Rêgo não desani­
mavam, e quais outros sabastianistas, esperavam ainda a sua
volta, e reassumir o govêrno de que fôra privado, e ainda em
494 F . A. PEREIRA DA COSTA

1822 nutriam êles essa esperança, quando a junta governativa


tomou severas providências repressivas de tais idéias, e em
uma Proclamação que dirigiu ao povo em 14 de janeiro, des­
truiu tôdas as esperanças mostrando a sua improcedência e
impossibilidade, e exortando-o à paz, união e tranqüilidade.
Luís do Rêgo foi mal recebido em Portugal em vista do
seu incorreto procedimento em Pernambuco, e sôbre o que, re­
solveram as cortes constituintes em 16 de outubro de 1821,
mandar abrir devassa da sua conduta por um desembargador.
Mas não se deu andamento algum a essa resolução, apesar da
insistência dos nossos deputados, e por fim, reclamando Luís
do Rêgo providências que resolvessem a sua situação, revoga­
ram as mesmas cortes o seu ato em 3 de julho de 1822, — por
nada ter que ver com o procedimento do general, e por compe­
tir ao governo decidir a seu respeito como julgasse conve­
niente .
Teve então Luís do Rêgo o governo.da província do Mi­
nho, mas logo no ano seguinte foi demitido e deportado para a
vila da Figueira. Veio, talvez, a sua exoneração, do fato da
perda da ação do Monte de Santa Bárbara contra as tropas do
Conde de Amarante, em que a custo pudera Luís do Rêgo reti­
rar-se em debandada com as forças do seu comando, e a cujo
fato aludira uma trova popular da época :

Tu, Luís do Rêgo,


Que desgraça foi a tua ?
Silveira está em palácio
E tu no meio da rua !

Ainda a Luis do Rêgo fazem alusão umas Cantigas Rea­


listas da época :

O Pego não pega,


O Rêgo não rega,
O Silva não prende,
Não entendo esta guerra.
ANAIS PERNAMBUCANOS 495

Conseguindo Luís do Rêgo a revogação do ato do seu des-


têrro, veio tentar fortuna no Brasil, mas nada conseguindo, re­
gressa para Portugal, onde o esperavam novos contratempos.
Caindo em poder dos miguelistas, foi preso e perseguido, até
que em 1833, conseguiu evadir-se para Campo Maior e passar-
se à Espanha.
Com a queda de D. Miguel, Luis do Rêgo regressou à pá­
tria, foi readmitido no serviço do exército, recebeu depois o
título de Visconde de Geraz do Lima e serviu os cargos de mem­
bro do conselho d eguerra, governador da província do Minho
e o mandato dc deputado às cortes legislativas da nação.
Luís do Rêgo Barreto faleceu na cidade do Minho a 7 de
setembro de 1840, tendo atingido a elevada posição social.
Tenente-general do exército português, visconde, conselheiro,
fidalgo da casa real, e comendador das ordens de Cristo e Tôr-
re-e-Espada, e condecorado com a Cruz Grande de sete bata­
lhas pelo govêrno britânico, tais eram os títulos do último go­
vernador e capital-general de Pernambuco.
Um contemporâneo, que militou sob as suas ordens, as­
sim o descreve física e moralmente :

“Luís do Rêgo era de estatura acima de mediana, corpo


bém não pagava as dívidas que contraía, se lhe não advertiam
senvolvidos, anunciando fôrça física e agilidade dos movimen­
tos. Côr morena, farto de cabelos, que eram grisalhos, testa
larga- e saliente; ângulo facial quase reto, olhos grandes e pe­
netrantes, nariz aquilino e bôca rasgada. Era desembaraçado
e montava bem a cavalo.
“Trao'uzia e falava bem as línguas francesa, inglêsa e es­
panhola; e conquanto não tivesse freqüentado as escolas mili­
tares, não só se achava bem instruído na tática e evolução m i­
litares, mas era capaz de dirigir qualquer fortificação de cam ­
panha .
“Era acessível ao trato, generoso e franco; fácil em d ar e
emprestar dinheiro, e jamais pedia o seu embolso; mas tam-
496 F . A. PEREIRA DA COSTA

bém não pagava as dívidas cpie contraía ( se lhe não advertiam


ou lembravam. Tinha acessos de cólera, e se não havia quem
o advertisse, obrava mal, do que logo se arrependia. Ouvia com
docilidade os conselhos e uma vez formada a sua resolução
não prescendia dela. Nem sempre, porém, era bem aconselha­
do pelos que abusavam da sua confiança, e que muitas vezes o
comprom eteram . ”

Nos nossos dias, um fecundo escritor sulista, o Cônego


Dr. J . C. Fernandes Pinheiro, tentou reabilitar a memória do
general, escrevendo um a desenvolvida memória sob o título:
Luís do Rêgo e a posteridade. Estudo histórico sôbre a revo­
lução pernambucana de 1817, que vem na Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro Tomo XXIV de 1861, em cujo
escrito — procura não só desculpar, mas inocentar a parte
evidentemente péssima e detestada do govêrno de Luís do Rêgo
Barreto, — na frase do nosso escritor A. J. de Melo, que na
sua qualidade de contempdrâneo, uma das vitimas daquele mo­
vimento revolucionário, e munido de farta documentação,
vantajosamente refuta àquela memória a Nota 2a da sua Bio­
grafia de José da Natividade Saldanha, que somente apareceu
em 1895.
E ’ curiosa esta pasagem do substancial escrito daquele nos­
so ilustre conterrâneo :

Luís do Rêgo Barreto apresentou-se em Pernambuco mais


com o despejo e estouvamento de vanglorioso soldado, do que
com o tento e sabedoria de um idôneo governador nas árduas
e lamentáveis circunstâncias em que se achava a província.
Na mesma ocasião em que saltou em terra, acompanhado dc
alguns oficiais que com êle vieram, passeou por algumas ruas
do Recife, e algures ali pelo pátio da igreja de S. Pedro um
homem rústico da última classe social que os viu passar, pa­
rou como estupefacto, contemplando-o sem tirar o chapéu.
Luís do Rêgo foi-se a êle, atirou-lhe o chapéu fora, e deu-lhe
uns poucos de m urros. ”
ANAIS PERNAMBUCANOS 497

JULIIO 5 — Execução capital do tenente Antônio Henri-


ques Rabelo, um dos principais protagonistas do movimento re­
volucionário que explodiu no dia 6 de março deste ano.
Debelada a revolução e ocupada a cidade pelas tropas rea­
listas, Antônio Henriques, que acompanhara o exército patrio­
ta até Paulista, volta dali, à sua dissolução e oculta-se em casa
de uma senhora das relações de sua familia, dentro da própria
cidade; e ninguém se lembraria do lugar do seu asilo, se um
mulato escravo de seu pai, criado com êle, e a quem, confia-
damente, ia sempre levar alguns auxílios, o não fôsse denun­
ciar.
Imediatamenle prêso, e submetido à já instalada comissão
militar, foi sumàriamente condenado a ser degredado das hon­
ras militares e enforcado.
Descoberto assim o seu asilo, e tendo sido um dos mais fer­
vorosos republicanos, escreve Muniz Tavares, devia ser o pri­
meiro imolado. Na presença da comissão militar, êle não mu­
dou de côr, não se defendeu, gloriou-se dos seus feitos, clara­
mente confessou os seus principios, e desafiou a m orte. A sua
intrepidez espaventou os juizes; a sua constância e serenida­
de no cadafalso, enterneceu o próprio algoz, prêto encanecido
no ludibrioso ofício. Antes de estreitar a corda ao pescoço,
pedia ao padecente mil perdões, e aquêle amorosamente o abra­
çava, e penetrado de entusiasmo exclamava pela última vez:
Viva a Pátria!
No dia 5 de julho de 1817, refere agora um outro con­
temporâneo, o Padre Dias Martins, foi conduzido Antônio
Henriques ao Campo da Honra, (hoje Praça da República)
entre aparato guerreiro e triunfante, e multidão espantosa de
povo, todo alvoroçado por ver o primeiro sangue que regava
juridicamente o campo da liberdade. Subiu intrépido o patíbu­
lo, falou com voz forte perdoando a seus inimigos, e morto
lhe cortaram a cabeça e as mãos, ficando aquela espetada em
um poste ao pé da força e estas na ponte do Recife. O resto
de seu cadáver foi arrastado à cauda de cavalo para o cemi­
tério do m ártir de Santo Antônio, e ali sepultado.
498 F . A. PEREIRA DA COSIA

Do livro de assentamentos de entradas de presos na ca­


deia do Recife, em 1817, consta o seguinte a seu respeito: “An­
tônio Henriques Rabelo. Remetido do Quartel General, foi
recolhido à enxovia às duas horas da tarde. Foi entregue pelo
alferes do segundo batalhão Francisco José Borges. A’s três
horas desceu para o oratório, e às sete da noite sacramentou-
se, tudo por ordem vocal. Aos 5 de julho foi para o patíbulo
e padeceu morte natural” .

Tollenare, que então residia em Pernambuco, e o que nar­


ra viu e observou, escreve o seguinte nas suas Notas domini­
cais sôbre as execuções capitais:

“Os detalhes que precedem às execuções oprimem a al­


m a. Os condenados, de corda ao pescoço, esperam por longo
tempo, sôbre os degraus da prisão, a formação do cortejo.
Os soldados m archam com as armas em funeral, e os tam­
bores rufam surda e sinistramente.

“As confrarias religiosas chegam lentamente, umas de­


pois das outras, trazendo as suas bandeiras ou guiões, que
vêm sucessivamente inclinar-se diante dos pacientes. Deseja-
se e crê-se sempre que a última vai determinar a partida. Ao
aparato religioso e militar vem se juntar o da lei inflexível.

“Um oficial superior de justiça, vestido de luto e de man­


to negro, se apresenta-.. Está montado em um cavalo prêto
e vem precedido de um alcaide, também a cavalo, vestido de
vermelho e trazendo um círio aceso na mão. O juiz segura
um rôlo de papel: é a sentença. A sua fisionomia é austera e
impassível; as filas se entreabrem, com deferência, à sua apro­
ximação. Deputações do clero aparecem em longas filas e vêm
recitar as Orações das quarenta horas. Do alto do patam ar
da cadeia os condenados assistem a tôdas estas lúgubres ceri­
mônias-

“Enfim começa a marcha- Urge que os desventurados


saiam do estado de concentração mental que lhes permitiu o
AXAIS PERX'AMBUCANOS 499

repouso; cumpre que marchem. E’ o último dia em que os


seus pés tocarão o solo. Os seus olhares vagam sôbre uma
multidão agitada, cuja curiosidade ofensiva é quase tão indi­
ferente quanto ávida: indiferente para o supliciado, ávida do
espetáculo do suplício. E’ a última vez que verão esta movi­
mentação da cidade de que outrora partilhavam.

“As varandas e janelas estão guarnecidas de senhoras.


Há pouco ainda eram acolhidos pelo sexo amável, porque são
jo v e n s...

“Partiu enfim o cortejo fechado pelos executores. São


dois negros criminosos condenados à morte, mas, poupados
a fim de servirem de algozes. Vivem sepultos num cárcere,
de que só saem nos dias em que vão exercer o seu horrível
m ister. Vão carregados de ferros e levam também corda ao
pescoço. Não são êles igualmente vilimas?

“A longa procissão acaba de parar em frente a um altar


preparado junto à via dolorosa; os condenados devem ouvir
a missa dos mortos. Cinco pausas semelhantes tem lugar du­
rante o trajeto- Em cada uma delas os pacientes são exorta­
dos, exorcizados, aspergidos à água benta e respondem às li-
tanias-

“Chega-se em fim à praça. De longe avista-se a fôrca er­


guida. Êste instrumento de morte parece animar-se e chamar
de longe as suas vítimas. A sua terrível eloqüència se mani­
festa pela cabeça de um dos executados, que nela ficou im­
plantada . Está pois tudo acabado, não há mais esperança ! ...
Os detalhes da agonia dos pacientes; as cruéis formalidades
que a prolongam; as que a cada degrau da longa escada lhe
renovam as angústias; as verificações humilhantes e irritantes
qüe faz o executor para se assegurar do ajustamento do laço
mortal; a presença dos desgraçados que a sorte condenou a
não subirem em primeiro lugar ao cadafalso; a espera do si­
nal; o arremesso irrevocável que o segue; os movimentos con­
vulsivos da vida nas garras da morte; os esforços ímpios e
500 F. A. PEREIRA DA COSTA

necessários do carrasco para abreviá-los!... Tudo isto me iaz


cair a pena da m ão!”

Ainda sôbre o assunto escreve Tolenare:

“Vi executar o Padre Pedro de Sousa Tenório, vigário


de Itamaracá. Estava extremamente abatido. Vestido de uma
alva e de uma camalha branca, pálido e desfeito, mal podia
andar para o lugar do suplício; dois franciscanos o sustinham
por baixo dos braços e um jovem beneditino prestava-lhe o
doloroso serviço de exortá-lo.

“Este mancebo foi quem da fatal escada até onde o acom­


panhou, em seu lugar falou ao povo, não lhe permitindo a
sua fraqueza mais do que uma mortal resignação- — A sua
morte o absolve para com a sociedade, dizia eloqüentemente
o jovem frade; além não vejais senão um irmão digno das vos­
sas orações” .

“No momento terrível em que o negro trepou sôbre os


hombros do desventurado padre e lançou-o na eternidade, e,
tanto durante como após a bênção, o jovem beneditino eleva­
va ainda a voz para fazer ouvir as suas exortações ac supli-
ciado, é bem que se deve supor que êste já havia pago o seu
tributo.

“Ao sentimento sucedeu a compaixão; os dois carrascos


derramavam lágrimas, e eu as vi brilhar nos olhos dos es­
pectadores silenciosos” .

Era nesse triste momento, às agonias da vítima nas con­


vulsões da morte, acrescentamos nós, que irrompia um hino
realista, cantado pela tropa e espectadores e acompanhado pe­
la música dos corpos presentes, de cuja peça damos particu­
lar notícia no artigo seguinte.
Tratemos agora um pouco particularmente da vitima.
Antônio Henriques Rabelo era um jovem segundo tenen­
te de artilharia do regimento do Recife, de esmerada educa­
AXAIS PERNAMBUCANOS 501

ção, inteligente, muito instruído na sua arma de uma cora­


gem a tôda prova.

Iniciado nos planos da revolução, ao seu precoce rompi­


mento, e no efêmero period») da rc;»ública, representou tão
importante papel, que à sua queda foi glorificado como a pri­
meira vitima da tirania real. Morreu porém como um herói,
e a pátria sagrou-o seu primeiro m ártir.
Tinha êle então os seus vinte e cinco anos de idade, quan­
do muito- Nascera no Ceará, mas tinha se domiciliado desde
a sua infância no Recife, de onde ei a oriundo, segundo um
cronista coevo, o Padre Dias Martins. Seu pai, um velho ma­
jor reformado do exército, não pôde resistir ao seu infortú­
nio, e morreu de pesar logo após a execução; e sua mãe en-
loqueceu ao mesmo tempo!

Aos entusiasmos e regozijos pela proclamação da repú­


blica, pela pátria redimida, sucederam, não muito distante­
mente, os dias lutuosos da liberdade agonizante, e por fim a
sua queda, com a restauração da monarquia, do governo ab­
soluto del-rei nosso senhor.
Os patriotas de 1817, os infames rebeldes, como afronto-
samente lhes chamavam os realistas, ou antes os portuguéses,
tiveram de pagar no cadafalso o seu crime de libertadores da
pátria, e cada cabeça que rolava do alto do patíbulo era sau­
dada com a entoação de um hino, cuja primeira audição se
verificou neste dia, no momento em que o patriota Antônio
Henriques Rabelo era atirado do alto da fôrea pelo algoz, com
o pescoço prêso ao laço do baraço, de mãos atadas paia trás,
e extorcendo-se às convulsões da morte!
Êsse hino realista, hino canibal, horrível hino, na frase
do autor contemporâneo de Os Mártires Pernambucanos, —
de que tanto devem envergonhar-se rei e nação a quem se de­
dica para terem direito à honra e religião que professam, —
foi especialmente composto para as tropas da expedição res-
tauradora que veio do Rio de Janeiro, era cantado a duo e res-
502 F . A. PEREIRA DA COSTA

pondido pelo canto de tôda a tropa e espectadores, tudo acom­


panhado pela fragorosa música instrumental de todos os cor­
pos do exército.
A letra e a música dêsse Hino Realista de 1817, infernal
cantata, como ainda o chama o referido escritor, chegaram
aos nossos dias, mas ignora-se quem sejam os seus autores.
A letra vulgarmente conhecida vem consignada na referida
obra, no fim do artigo consagrado a Domingos Teotônio Jor­
ge, com êste título: Hino cantado a duo e respondido por to­
ds os circunstantes, finda a execução de cada padecente em
1817- Quanto à música, porém, de que não havia absoluta­
mente notícia alguma, conseguimos afinal encontrá-la, graças
ao nosso falecido colega D r. José Alves Cavalcanti, que a sa­
bia de cor, por ouvi-la constantemente cantar por suo mãe,
cuja mocidade se prendia àquela época.
Da letra consignada pelo Padre Dias Martins, colhemos
uma variante em um exemplar manuscrito, encontrado em po­
der de um português de nome José dos Passos de Abreu, quan­
do foi prêso em 1823 como contrário à causa da independên­
cia nacional, o qual figura no seu respectivo processo, que se
encontra no Livro dos Ouvidores de Comarcas, de 1823 a
1826, recolhido à Biblioteca Pública do Estado; e como a le­
tra que obteve o referido escritor é conhecida por se achar
impressa, como vimos, consignamos agora, de preferência, a
do aludido inédito, em que se notam algumas diferenças, não
só entre uns tantos versos de uma e outra versão, como ain­
da uma quadra a mais, a sexta do canto, nesta nova que en­
contramos, o que tudo se verificará mediante um confronto
entre ambas-

Eis a letra do inédito:

Côro
Vamos todos inspirados
Pelo Marte Tutelar,
Resgatar um povo aflito,
O melhor dos Reis vingar.
ANAIS PERNAMBUCANOS 50 3

Valorosos Lusitanos
A vitória por vós chama,
A trombeta já da fam a
Vossos nomes vai cantar.

II

Já de Jano as portas abre


Quem do nada fêz a terra
A mais justa e santa guerra.
Nos ordena triunfar.

III

Nossas bélicas bandeiras


Avistando o vil enxame,
Pelo atroz remorso infame
Já se sente agrilhoar.

rv
A vós deu Joane o Justo
Porque o nosso valor presa.
Esta nobre, ilnstre emprêsa
Que há de o Trono sustentar.

Lá no templo da Memória
Juntareis mais estandartes.
Aos que já em tantas partes
Vosso zêlo fêz ganhar.
5 04 F. A. PEREIRA DA COSTA

VI

Respirai vassalos dinos,


Contra a vil traição e morte,
De Eu-Rei vem a gente forte
Vossos lares amparar-

VII

Viva, viva de Bragança,


Viva o bom Herdeiro Augusto,
Que d’urn jugo torpe, injusto
Vem seu povo libertar.

Já vimos que se ignora quem são os autores da letra e da


música dêste hino, especialmente composto para as tropas ex­
pedicionárias do Rio de Janeiro, — que vinham resgatar um
povo aflito, libertá-lo de um jugo torpe, injusto, e o melhor
dos reis vingar, segundo a sua própria letra. Entretanto, afi-
gura-se-nos que a poesia é da lavra de Manuel Joaquim da Sil­
va Pôrto, português, que em 1817 publicou naquela mesma
cidade um Elogio por ocasião do faustoso e glorioso sucesso
das armas portuguesas sôbre os insurgentes de Pernambuco e
oferecido ao muito alto e muito poderoso Senhor D. João VI;
e de cujo autor se conhecem ainda outras composições poé­
ticas, em que figuram quatro hinos constitucionais compostos
em 1821, e um consagrado à nossa independência nacional, em
1822. E assim, com que facilidade o poeta se amoldava às no­
vas ordens de coisas sucessivamente ocorx-entes? Em 1817,
realista; em 1821, constitucionalista; em 1822, já feito brasi­
leiro, imperialista, independente!
Quanto à música do hino, afigura-se-nos também, que é
da lavra do maestro português Marcos Antônio Portugal, que
então residia no Rio de Janeiro, de muita aceitação iu< côrte
de D. João VI, e autor de um grande número de peças de
música, entre as quais vários hinos, em que figura um da In­
ANAIS PERNAMBUCANOS 505

dependência, a cuja causa aderiu, naturalizando-se então ci­


dadão brasileiro.
Em um artigo nosso nôbre o Hino realista de 1817, in-
serto na Revista ns- 95 a 98 do Instituto Arqueológico e Geo­
gráfico Pernambucano, damos a sua competente música.

JULHO 8 — Sentença da comissão militar de Pernam­


buco, condenando à pena capital os capitães Domingos Teotô-
nio Jorge Martins Pessoa, e José de Barros Lima, e o Padre
Pedro de Sousa Tenório, pelo seu comprometimento na revo­
lução emancipacionista que irrompeu no dia 6 de março:

“Vendo-se nesta Comissão Militar de Pernambuco o pro­


cesso verbal dos réus Domingos Tcotònio Jorge, e José de
Barros Lima, por alcunha — Leão Coroado, — capitães de
artilharia desta praça do Recife, e do Padre Pedro de Sousa
Tenório, vigário de Itamaracá; presos aquêles por serem os
principais cabeças da revolução praticada no infausto dia 6 de
março próximo passado, nesta vila contra o Estado Real de
Sua Majestade; sendo o primeiro governador e general das
armas, e membro do infame e intitulado Govêrno Provisório;
evacuando depois esta praça na aproximação do exército do
mesmo senhor, com a tropa que tinha debaixo do seu coman­
do, e levando os cofres da fazenda real, que havia roubado
com o réu José de Barros Lima: e êste por ser o maior e dar
princípio ao desenvolvimento da rebelião, arrimando a espa­
da, e dando uma estocada no seu brigadeiro, de que morreu,
ao tempo que êste lhe dava a voz de prêso no quartel; sendo
ào depois nomeado pelos perversos insurgentes coronel de ar­
tilharia, no qual pôsto se conservou até o dia da sua fugida
e feliz restauração de 19 de maio: ao réu Pedro de Sousa Te­
nório por acometer com uma pistola na mão ao juiz-de-fora
de Goiana quando entrava na fortaleza de Itamaracá, onde o
réu estava, e despojando-o da sua insígnia, e intimando-lhe,
que já não era juiz-de-fora, e gritando — Viva a Religião e
a Pátria, — e arvorando com seus sectários a bandeira branca
chamada patriota, ao som das descargas de artilharia e passa-
506 F . A. PEREIRA DA COSTA

do algum tempo fôra ajudante do secretário do dito crimino­


so governo: — Yendo-se o auto do corpo do delito, depoimen­
to das testemunhas, documentos e interrogatórios feitos aos
ditos réus, decidiu-se, sem discrepância de votos, que as ditas
culpas estavam plenamente provadas; os réus convencidos e
de algum modo confusos; sem lhes poderem sufragar as frí­
volas e fúteis evasivas a que recorreram nas suas respostas as
quais se desvanecem por si mesmas: e portanto julgam os
mesmos réus incursos nos §§ 5.°, 8.° e 9.° da Ordenação Liv.
5.°, Tit. 6.°, e mandam, que as sobreditas penas se executem
nos réus; aos quais todos, depois de mortos, serão cortadas
as mãos e decepadas as cabeças se pregarão em postas a sa­
ber: a cabeça do primeiro réu na Soledade, e as mãos no
quartel: a cabeça do segundo em Olinda e as mãos no quar­
tel; a cabeça do terceiro em Itamaracá, e as mãos em Goia­
na: e os restos dos seus cadáveres serão ligados à cauda de
cavalos, e arrastados até o cemitério: e igualmente os decla­
ram exautorados; e mandam, que se aspem e notem as pa­
tentes dos capitães em tôdas as estações em que houverem
sido registradas: e quanto à degradação do réu Padre, deter­
mina, que se faça participações às autoridades eclesiásticas
para mandarem imediatamente proceder a ela, c a expulsão
e deposição de insignia do hábito, visto ser cavaleiro, antes
da execução da pena última- — Quartel General do Recife, 8
de julho de 1817. — José Gonçalves Marques, Relator e Au­
ditor de guerra. — Conde da Figueira, Major de cavalaria.
— José de Sousa Sampaio, Tenente-coronel de caçadores.
Veríssimo Antônio Cardoso, Coronel. — Luís Paulino de Oli­
veira Pinto da França, coronel interrogante. — José Roberto
Pereira da Silva, Marechal. — Luís do Rêgo Barreto, Gene­
ral Presidente” .

Da sala do palácio, convertida em tribunal de guerra,


passavam os juizes à sala do jantar que Luís do Rego lhes
oferecia, e ai, como refere Muniz Tavares, procuravam todos
nos licores que copiosamenae bebiam. sufocar o grito da cons­
ciência, se é que a tinham. À noite, de estômagos fartos e
ANAIS PERNAMBUCANOS 507

cabeças exaltadas, ébrios de sensualidade, saíam êles aos assal­


tos de casas honestas, cujos chefes, foragidos uns c presos
outros, se achavam ausentes, c então: — o pudor virginal e a
fidelidade conjugal eram postos em dura prova!
Para deixar marcado Com o ferrete da ignomínia os no­
mes dêsses bárbaros que compunham a Comissão Militar, não
precisamos mais mencioná-los: o leitor já os viu firmados na
sentença que deixamos transcrita!
O patíbulo foi levantado no Campo do Erário, batizado
pelos patriotas com o nome de Campo da Honra, e hoje de­
nominado Praça da República, como que em glorificação dos
mártires republicanos que ali foram sacrificados, regando as­
sim o solo da pátria com o seu precioso sangue em prol da
república, da causa da sua liberdade.
Os habitantes de Pernambuco, escreve Fernando Denis
em 1837, ainda não perdoaram a lembrança destas terríveis
execuções, de que vamos referir as circunstâncias principais-
Os condenados, com o baraço ao pescoço, largo tempo aguar­
daram que se ajuntasse a comitiva, que devia acompanhá-los.
Os soldados, que faziam parte da referida comitiva, marcha­
vam como nos funerais. Segundo o antigo uso, as confrarias
religiosas chegavam a passos lentos, umas após outras levan­
do pendões que ante os padecentes sucessivamente apresenta­
vam. Um ministro vestido de capa e volta, apareceu montado
num cavalo prêto, e precedido de um alcaide, vestido de en­
carnado, também a cavalo, tendo na mão uma vara amarela:
um momento se presumiu que se ia 1er a sentença de morte,
porém novas deputações do clero foram chegando, e recita­
ram a oração das quarenta horas ante o portal da cadeia.
O acompanhamento pôs-se enfim em marcha e atrás dele
caminhavam os executores da justiça: eram estes dois pretos
condenados à morte, aos quais se havia perdoado o último su­
plício para que prestassem à justiça o seu terrível ministério-
Chegado que foi ao sitio da execução, o cura de Itamaracá, o
padre Tenório, vestido de alva, pôde apenas dar alguns pas­
sos para a fôrca; estava debilitado por uma enfermidade.
Frades' franciscanos o sustinham, e um beneditino o acompa-
508 F . A. PEREIRA DA COSTA

nhou até junto da fatal escada. O padecente não podia falar;


porém a voz do beneditino fêz-se ouvir. — Com a vida satis­
faz a dívida que contraiu para com a sociedade; além da mor­
te vêde nêle um irm ão. — Os verdugos, derramando lágrimas,
cumpriram o seu terrível dever. Os dois militares mostraram
grande constância: José de Barros fèz mofa nos assistentes, e
Domingos Tcotônio orou com veemência. Confessou que se
havia enganado; porém lembrou que o seu coração o tinha ar­
rastado, e que julgava obrar para a felicidade de sua pátria.
Disse que tinha um filho, que recomendava à consideração
pública, o que fêz em termos que excitaram a mais viva com­
paixão .
Assim descreve Fernando Denis a execução das v’timas,
segundo a tradição que recolheu em Pernambuco, vinte anos
depois.

Aquelas execuções tiveram lugar a 10 de julho, dois dias


depois de lavrada a sentença condenatória-

“Naquele dia, escreve o Padre Dias Martins, conteniporâ-


neamente, apareceu logo de manhã cedo, armado no Campo
da Honra, ou do Erário, uma alta íorca, que somente vista
espantava e despedaçava os corações. 4000 homens de guerra
foram postados em alas pelas ruas, que desde as Cinco Pon­
tas vinham finalizar na fôrea. Pelas nove horas, saíram da­
quele quartel quase oitocentos soldados desarmados, restos
dos dois antigos regimentos de Pernambuco, e ao som das suas
músicas militares marcharam para o Campo da Honra., e fo­
ram postados em roda da fôrea, ficando cercados de um par­
que de artilharia com morrões acesos, e pela cavalaria da Ba­
hia as alas se foram unindo na retaguarda e reuniiam por
fim no mesmo Campo- Saiu então da Cadeia Domingos Teo-
tônio, vestido de alva, acompanhado do sacerdote exortante
e pia Irmandade da Misericórdia, como é costume entre por-
tuguêses; chegando ao Campo, subiu intrépido o patíbulo, e
havendo se reconciliado com o confessor, falou entrecortada-
mente e disse em substância: “Peço perdão aos meus patrí-
ANAIS PERNAMBUCANOS 509
, a '

cios, e a todos os circunstantes dos escândalos e males que


lhes tenho causado, e particularmente aos camaradas presen­
tes, de tudo quanto sofrem por minha culpa. Tenho um fi­
lho por nome Domingos, a quem só lhe deixo a bênção de
Deus, e lhe rogo que de hora em diante se chame Domingos
da Providência, a quem o entrego-. . ” Então o algoz apertou
o laço e ficou dependurado da força, soando ao mesmo instan­
te, cantado a duo, e respondido pelo canto de tòda a tropa e
espectadores, tudo atompanhado pela fragorosa música ins­
trumental de todos os corpos o horrível hino de que tanto
se devem envergonhar rei e nação a quem se dedica, para te­
rem direito à honra e religião que professam” .

Sôbre essa horrível cena diz também Muniz Tavares:


“Domingos Teolônio pronunciou do alto da fôrca estas pala­
vras: “Meus patrícios, a morte não me aterra; aterra-me a in­
certeza do juízo da posteridade. Eu deixo um filho em tenra
idade, êle é vosso; não o abandoneis, ensinando-lhe o cami­
nho da virtude e da honra. . . ” Ia continuar ainda a falar,
quando o carrasco o sufocou” .

Descido o cadáver da força, decepou-se a cabeça, que foi


fincada em um poste na Soledade, e cortaram-se-lhe as mãos,
que foram pregadas no quartel do seú regimento; o tronco
foi atado à cauda de um cavalo, e arrastado até o cemitério
da matriz de Santo Antônio, onde o sepultaram.
Domingos Teotônió Jorge Martins Pessoa, era natural de
Pernambuco, capitão de artilharia, de sólida instrução profis­
sional e literária, de caráter nobre e altivo, e como um dos
chefes do movimento revolucionário, representou salientíssi-
mo papel.
José de Barros Lima cognominado o Leão coroado, lèão,
pela sua intrepidez e bravura, e coroado pela sua calv'cie era
forma de tonsura, de coroa- Figura na mesma sentença, e
foi executado depois de Domingos Teotônio, com o mesmo sel­
vático aparato e solenidade. A sua cabeça foi exposta em
Olinda, e as mãos no quartel do seu regimento. Pernambuca-
510 F . A. PEREIRA DA COSTA

no, capitão de artilharia, valente e brioso militar, figurou com


m uita distinção em todo o m ovimento.
O Padre Pedro de Sousa Tenório, enfim, igualmente con­
denado e executado no mesmo dia, foi a sua cabeça exposta
em Itamaracá e as mãos em Goiana. Pernambucano também,
e vigário de Itamaracá, foi êle que nli pôs em campo a revo­
lução, rendeu a fortaleza de Santa Cruz, e depois tez parte
do govêrno provisório.

JULHO 10 — Parte para a conquista de Montevidéu uma


expedição militar composta de uns oitocentos homens dos dois
antigos regimentos de Pernambuco, de primeira linha, que ha­
viam tomado parte no movimento separatista que irrompeu a
6 de março-
Para assistir à execução capita! dos patriotas Domingos
Teotônio Jorge e José de Barros Lima, capitães do exército,
da arm a de artilharia, e, do Padre Pedro de Sousa Tenório,
vigário de Itamáracá que teve lugar neste dia. no Campo do
Erário, hoje Praça da República, marchou aquela força em
forma militar, com as suas competentes bandas de música,
mas desarmada, e foi postada em volta do patíbulo, ficando
porém cercado por um parque de artilharia, de armas carre­
gadas e murrões acesos, e pela cavalaria da Bahia- No campo
formava um exército de quatro mil homens convenientemente
municiados.
Concluído o ato das execuções ao som de um hino realis­
ta cantado pela tropa, decepadas as mãos e cabeças das víti­
mas, e conduzidos os troncos à sepultura, arrastados à cauda
de cavalos, avança para o meio do círculo dos soldados per­
nambucanos o coronel Luís Paulino de Oliveira Pinto da Fran­
ça, comandante do dia e de tôda a horrível tragédia, como
refere o padre Dias Martins no seu livro, e proclama-lhes em
substância :

“Soldados, vós perdestes a vossa honra, deixando-vos se­


duzir por êsses traidores infames, que acabam de ser puni­
dos. Vós com eles atraiçoastes um rei que jurastes defender,
ANAIS PERNAMBUCANOS 511

e assassinastes um povo que devíeis conservar; mas a piedade


do soberano ainda quer abrir-vos a porta do arrependimen­
to: ide embarcar: ide à Montevidéu recobrar a honra que per­
destes na vossa pátria: ide, e voltai cheios de glória, para que
vossa pátria se esqueça do passado” .

Luís Paulino, falando a soldados pernambucanos em —■


arrependimento, honra perdida, esquecimento do passado; —
chamando aos nossos mártires, a êsses sonhadores das liberda­
des pátrias, — infames traidores, — foi coerente com êsses
sentimentos cinco anos depois, rebelando-se na assembléia
constituinte de Lisboa, como deputado pela Bahia, contra a
nossa emancipação política; êle, sim, que foi — êsse infame
deputado traidor à pátria, — na frase insuspeita do deputado
Cipriano Barata, seu conterrâneo; êie que amargamente es­
piou a sua apostazia, e que nem ao menos, nos últimos iranses
da vida, viu abertas as portas do arrependimento, não soube
recobrar a honra perdida e salvar o seu nome das maldições
da posteridade!
Sim! Foi Luís Paulino o único deputado brasileiro que
destoou dos. sentimentos pátrios tão alevantada e nobremente
mantidos por tôda a representação brasileira; foi êle o único
que deixou um nome infamado pelo nefando crime de lesa-
pátria! (*)

Voltando ao embarque da tropa, o que absolutamente ig­


norava, vamos consignar o que então escreveu ToUenare a
respeito nas suas Notas dominicais:

“Os soldados dos dois regimentos do Recife, que fizeram


a revolução, foram perdoados; mas, ao mesmo temp.) resol­
veu-se secretamente enviá-los para Montevidéu- Todos estes
militares são casados na terra e consideram os seus postos co-

(•) — De Luis Paulino particularmente nos ocupamos no nosso livro —


Pernambuco nas lutas emancipacionistas da Bnbla cm 1823 -1833. — Pernam­
buco, 1900.
512 F: A. PEREIRA DA COSTA

mo empregos inamovíveis; seria para recear uma sedição se


tivessem tido conhecimento desta viagem, e por isso de nada
foram prevenidos; um dia porem em que executavam três pa­
triotas (a palavra patriota c aqui tomada no sentido de insur­
gente) o governador determinou, como uma espécie de corre­
ção, que os dois regimentos assistissem sem armas às execu­
ções.

“Apenas estas acabadas, as tropas do Rio de Janeiro os


conduziram imediatamente a bordo das embarcações, que vão
transportá-los para o Rio da Prata.

“Esta medida foi completamente imprevista; espalhou a


consternação entre as famílias dos deportados; mas, uma vez
que estava resolvida, cumpre louvar a habilidade com que foi
posta em prática, sem comprometer a tranquilidade públi­
ca” .

Os soldados, repassados de horror pelo sanguinolcnto es­


petáculo, e gelados pela repentina notícia, escreve também um
outro contemporâneo, o Padre Dias Martins, não tiveram
tempo nem ânimo para se admirarem; partiram incontinen­
te: e como mansos cordeiros, marcharam por entre alas e fo­
ram embarcar nas lanchas que estavam esperando, tomaram
os navios e seguiram para o seu destino.
Depois de cinco anos de martírio dêsses infelizes expa­
triados e errantes pelas margens do Prata e do Paraguai, o
deputado pernambucano Pedro de Araújo Lima propõe no
Congresso de Lisboa que se ordenasse o seu regresso, quando
ao mesmo tempo, 856 cidadãos se dirigem à Câmara de Olin­
da, em 22 de março de 1822, endereçando-lhe um requerimen­
to, pedindo a sua intervenção para que aquelas vítimas da ti­
rania voltassem ao seio da pátria e da família; e graças ao
interêsse que ligou quela Câmara, voltaram no mesmo ano os
poucos que restavam, e foram logo prestar os seus serviços
na companhia libertadora da Bahia, que ainda gemia sob o
domínio português.
AXAIS PERNAMBUCANOS 513

JULHO 16 — Carla do senado da câmara da vila do Re­


cife, dirigida ao soberano, solicitando um perdão geral aos
menos comprometidos na revolução de 6 de março- Longo
documento, humilhantemente traçado, assim termina:

“Deus sempre benigno a V. Majestade, o quis abençoar


nesta terrível crise com ministros que, salvando esta capita­
nia, vingassem dignamenlc a majestade ofendida. Na Bahia
os réus mais criminosos têm sofrido a pena última; aqui pa­
deceram o mesmo castigo, c o sofreram alguns que aparece­
ram dignos dèle: muitos, mais de mil, tem sido punidos coin
açoites que as leis mandar dar aos que escapam à punição ca­
pital; e pode V. Majestade estar seguro de que o crime tem
sido exemplado severamente pelos seus governadores e comis­
sões militares, e com a eficaz prontidão que requer a atroci­
dades dos delitos. Êles que amam o zêlo sôbre todos os enca-
recimentos à real pessoa de V. Majestade, a sua augustissima
família, a honra e segurança de seus estados, poderão assegu­
rar conosco a V. Majestade que as lágrimas do seu fiel povo,
o seu sincero arrependimento e o religioso temor de que en­
tre nós apareçam outra vez tão execrandas e abomináveis cul­
pas, parecem dignos de um perdão geral; e que V. Majestade
aos pés do Senhor dos Reis faça das aflições do seu paternal
coração e das penalidades que o afligiam, sacrifício de pro-
priação, para que Deus Nosso Senhor abençoe aos seus fiéis
vassalos com amor e fé constantíssimos a um príncipe de tão
divinal clemência, e a V. Majestade com a consciência de que
a sua real bondade nos deu na augusta dinastia de Bragança
mais um Tito digníssimo do amor c adoração de tôda a hu­
manidade” •

JULHO 19 — Ofício da junta diretora do Hospital Mili­


tar, mandado estabelecer pcio governador Luis do Règo Bar­
reto, no convento do Carmo do Recife, comunicando ac mes­
mo governador a sua instalação.
0 primeiro hospital militar que houve em Pernambuco
foi estabelecido cm 1645 pelo mestre-de-campo g encal João
514 F . A. PEREIRA DA COSTA

Fernandes Vieira, ao rompimento da guerra da restauração; e


considerando assim, como refere um cronista do tempo, o pa­
dre F r. Manuel Calado, nos trabalhos que podiam suceder, aos
quais era necessário procurar o remédio antes que è'es che­
gassem, ordenou uma Casa da Santa Misericórdia para nela se
curarem os enfermos e feridos, provendo-a de cirurgião e
médicos, confiando-lhe o ordinário provimento aos moradores,
acudindo cada um com o que era justo, segundo o seu cabe­
dal; e deputou por provedor da dita Santa Casa a Cosmo de
Crasto Passos, por concorrerem nêle todas as partes requisitas
para o tal cargo, e por enfermeiros a Manuel João de Neiva
e Matias Henriques, moradores nos Apipucos, pessoas além
de caritativas mui compassivas e maviosas para acompanhar
os enfermos e ajudar bem a m orrer.
O hospital foi levantado na povoação da Várzea, pf-rto do
forte real do Bom Jesus (Arraial Novo), e permaneceu até
1654, quando ocorreu a evacuação holandesa. 0 sitio, porém,
em que existiu o estabelecimento ficou com o nome vulgar de
Hospital, que por fim desapareceu, como se vê do testamento
do general André Vidal de Negreiros (1678), declarando que
comprara a Pedro Gomes Velho e seus irmãos um pai b-do na
Várzea onde chamam o Hospital.
Livre Pernambuco do domínio ba ta vo, cuidou-se logo de
restaurar o hospital da Santa Casa de Misericórdia de Olinda,
onde passaram a ser acolhidos e tratados os soldados doentes,
em virtude de um contrato celebrado com o governador Fran­
cisco Barreto, mediante a subvenção mensal de 110?0G0, paga
pela respectiva câmara do senado.
Por diversas vêzes, posteriormente a 1658, quando bai­
xou uma ordem régia aprovando aquele contrato, reclamou a
Santa Casa ao govêrno, pedindo o aumento daquela subven­
ção, por ser insuficiente em vista do grande número de pra­
ças que se recolhiam ao hospital, e às despesas superiores que
se faziam com o seu tratamento e sustento, mas nada con­
seguiu-
Por carta régia de 23 de junho de 1692 foi ordenado à
câmara de Olinda que continuasse a mensalmente pagar a re­
AXAIS PERNAMBUCANOS 515

ferida quantia, o que foi reiterada ainda, por uma outra or­
dem régia expedida em 12 de setembro de 1699.
Em 1701 resolveu o governo da metrópole lançar mão
de um dos hospitais existentes, o da Santa Casa de Miseri­
córdia de Olinda, ou de X .S. do Paraíso, no Recife, para o
tratamento dos sojdados da guarnição da praça, confiando a
sua direção aos religiosos de S. João de Deus; e em 1703 co­
municou ao governador por carta de 25 de agosto, que já se
havia ordenado a partida dos ditos religiosos, e que empregas­
se os meios necessários para obter a cessão de qualquer um
daqueles hospitais para o indicado fim .
Efelivamcnte, chegaram os referidos padres, enviados pe­
lo govêrno da metrópole, — para assistirem aos soldados que
baixassem ao hospital da Misericórdia de Olinda, e ao do Re­
cife; -— mas opondo-se a isto as administrações de ambos os
estabelecimentos, e sendo o fato levado ao conhecimento do
soberano pelo governador Francisco de Castro Morais, baixou
logo uma carta régia em 7 de agosto de 1701, ordenando que
se montasse um hospital em Olinda para o curativo dos solda­
dos, comprando-se algum prédio que se prestasse a êsse fim,
e que em falta disso se escolhesse um local conveniente para a
construção de um edifício próprio, mandando o governador le­
vantar a planta e fazer o competente orçamento pelo engenheiro
da capitania, a fim de se marcar a consignação da verba ne­
cessária; e caso não fôsse possível resolver-se imediatamente
a construção do hospital, fossem os soldados curados cm seus
quartéis, para o que se lançasse mão dos 1258000que sedavam
por mês ao hospital da Misericórdia de Olinda, paia igual
fim.
Refere a mencionada carta, que o meslre-dc-campo se
queixa do mau trato que recebiam os soldados no hospital da
Misericórdia, e que pedira remédio pronto à sua queixa.
Por êsse tempo, além da referida consignação mensal, re­
cebia mais a Santa Casa o sôldo das praças em tratamento du­
rante o tempo em que permaneciam no hospital.
Entretanto, nenhuma daquelas medidas teve execução,
uma vez que por carta régia de 27 de agosto de 1706.foi man-
516 F . A. PEREIRA DA COSTA

dado continuar a dar os 125$000 mensais à Misericórdia de


Olinda para o tratamento dos soldados no scu hospital-
De certa época por diante deixou o govêrno de satisfa­
zer o pagamento daquela verba à Misericórdia, de sorte que
qliegou a sua dívida a m ontar cm 1.500 cruzados . .......
(18:000?000), cujo pagamento reclamou a sua mesa adminis­
trativa por carta dirigida ao soberano em 17 de setembro de
1716; e depois pediu ela seis escravos para o serviço :7as en­
fermarias reservadas aos militares, como consta da ca-úa ré­
gia de 18 de junho de 1717, mas sem dúvida não foi atendi­
da, uma vez que nada a respeito encontramos.
Em 1719 ainda se deviam 3.000 cruzados, e no ano se­
guinte não se fêz pagamento algum.
Em 1789 estava a subvenção reduzida a 1:820§000 anuais,
continuando porém a ser pago ao hospital o sôldo das praças
em tratamento, e mais a munição de pão de cada uma delas
durante o tempo do tratamento.
Assim permaneceu esse estado de coisas até 1817, quando
o governador Luís do Rêgo Barreto deliberou fundar u.n hos­
pital militar no Recife, como vimos, o que facilmente conse­
guiu, instalando-o no convento do Carmo, para o que foram
desalojados os seus religiosos, como consta do seguinte ofí­
cio dirigido ao respectivo padre prior:

“Sendo indispensável estabelecer-se um hospital militar


para curativo dos doentes do exercito de S. M. Fidelíssima,
que marchou a salvar esta capitania dos males suscitados pe­
los rebeldes revolucionários; e não havendo outro algum lu­
gar suficiente para êste efeito mais que o convento do Carmo
desta praça; por bem do real serviço haja o Rvm. Sr. Prior
de acomodar-se com os seus Religiosos como lhes fôr possi-
vel, em ordem a se erigir nesse convento o dito hospital, ou
tomarem a resolução de se passarem para o convento do
Carmo de Olinda, deixando alguns Religiosos para a adminis­
tração da igreja c Sacramento aos enfermos; ficando portanto
à sua eleição uma das duas condições com a brevidade possí­
vel; o que manda participar a V. Rvm. o Um. e Exc. Sr.
AXAIS PERNAMBUCANOS 511

General- Quartel General l.° de junho de 1817. José Peres


Campeio, Ajudanle-de-Ordens” .

Já então, em virtude da carta régia de 30 de janeiro do


mesmo ano, tinha sido criado um lugar de cirurgião-mor da
tropa, com a incumbência de curar no hospital da Misericór­
dia de Olinda, enquanto não houvesse um hospital mihtar, os
militares e marinheiros das embarcações reais, com o ordena­
do de 300|000 anuais.
Desocupado o convento, cujos religiosos se recolheram ao
de Olinda, deu-se logo começo às obras de acomodação para
o hospital, as quais tiveram tal andamento, que em 1 0 de ju­
lho já estava instalado o estabelecimento, como consta de um
ofício dirigido ao governador naquele dia pela respectiva jun­
ta diretora, que se compunha do D r. José Eustáquio Gomes,
que viera como médico do hospital da divisão expedicionária
Dr. José Joaquim de Carvalho, Dr. Manuel Joaquim de Mene­
zes, e Manuel Antônio Henrique Tolta, cirurgião.
Para o regimen do hospital foi mandado observar o re­
gulamento que baixou por alvará de 27 tie março de 1805, pe­
lo fisico-mor do exército em 30 de abril de 1817. como Regi­
mento do hospital da divisão destinada a Pernambuco, até que
por decreto de 7 de agosto de 1820 foi aprovada e confirma­
da a criação dos hospitais regimentais que se haviair. estabe­
lecido, baixando com o mesmo decreto o respectivo regula­
mento, firmado pelo ministro Tomás Antônio de Vilanova
Portugal.
No hospital militar do Carmo estabeleceu o Dr. José Eus­
táquio Gomes uma escola de cirurgia, da qual sairam habilis-
simos e distintos facultativos, que conquistaram merecida no­
meada pela sua proficiência.
Por decreto de 17 de fevereiro de 1832 foi extinto o hospi­
tal e criados em seu lugar hospitais regimentais, aos quais se
deu regulamento na mesm adata; e por aviso do ministério
da guerra de 14 de setembro de 1833 foram mantidos os ven­
cimentos dos empregados do extinto hospital, cujos lugares
tinham sido criados por lei; e destarte desocupado o eonven-
518 F . A. PEREIRA DA COSTA

to, não foi então entregue aos religiosos, porquanto passou a


funcionar no mesmo o hospital de caridade.
Posteriormcnle mandou o governo que os dois médicos e os
dois cirurgiões passassem a servir no Hospital de Marinha,
que funcionava no Grande Hospital, hoje Pedro II, em cujas
funções ainda se achavam em abril de 1835.
Em 1851 funcionava uma enfermaria militar no convento
da Soledade, hoje Colégio de Santa Dorotéia.
Por aviso do ministério da guerra de 19 de dezembro de
1853, foi mandado construir um edificio para hospital mili­
tar, o qual sendo projetado e orçado pelo diretor das obras
militares, o m ajor do corpo de engenheiros José Joaquim
Rodrigues Lopes, e depois de aprovação do govêrno, teve lu­
gar o ato solene do assentamento da sua pedra fundamental,
no dia 25 de março de 1854.
Depois do ato religioso da bênção da pedra pelo bispo dio­
cesano D. João da Purificação Marques Perdigão, foi ela con­
duzida e lançada na base do alicerce correspondente à porta
principal do edifício pelo presidente da província, o conselhei­
ro José Bento da Cunha e Figueiredo, marechal-de-campo Jo­
sé Fernandes dos Santos Pereira, comandante das armas, e
outras pessoas de distinção, em presença de um grande con­
curso de povo e de tôda a tropa formada em grande parada.
Sobre a pedra foi lavrada a seguinte inscrição: Foi lançada
pelo Exm. Sr. Presidente da Província o Conselheiro José
Bento da Cunha e Figueiredo, em 25 de março de 1S54-
O hospital m ilitar é um bom edifício, situado em um es­
paçoso terreno à r«-a de Gervásio Pires, no bairro da Boa Vis­
ta, terreno êsse que fazia parte do grande quintal do extinto
hospício dos religiosos esmoleres d? S. João de Jerusalém,
hoje convertido em aquartelamento de tropas.
O edifício é de dois pavimentos, espaçoso, bem construí­
do, de bela perspectiva, e dispõe de todos os cômodos necessá­
rios a um estabelecimento de tal ordem. E’ convenientemente
recuado do alinhamento da rua, e fechado por um muro de
alvenaria, tendo, porém, correspondentemente à fachada um
ANAIS PERNAMBUCANOS 51 9

gradil de ferro, com portão, e dois pavilhões laterais- Até a


época da separação da igreja do estado, tinha o edificio uma
bonita capela, administrada pelos padres capelães do exército.

JULHO 31 — Alvará erigindo em paróquia a povoarão do


Poço da Panela, sob a invocação de N .S. da Saúde.
Em meados do século XVIII já a localidade tinha esta de­
nominação de Poço da Panela, que vinha de tempos decorri­
dos, e cuja origem conta assim a tradição popular:

Ressentia-sc a localidade d 5 falta de água potável, cujos


moradores iam buscá-la a distâncias não pequenas, uns 110
Monteiro, outros na Casa Forte, quando em um dos sítios da
estrada que parte do Chacon e segue para o povoado, à m ar­
gem esquerda, na curva da mesma estrada, cujos terrenos
formam um suave declive que vai ter ao rio, se descobriu uma
abundante vertente. Fèz-se então ali uma exeavação, nara se
form ar um poço regular, e no fundo do qual colocou se uma
grande panela de barro, e daí chamá-lo o vulgo Poço da Pa­
nela, que se 1ornou extensivo â localidade, destarte ainda man­
tido.
O Poço da Panela fazia parte das terras do extinto en­
genho Casa Forte, tinha plantações de cana, e era apenas fre-
qüentado por algumas mulheres que se ocupavam no serviço
de lavagem de roupa, que ali tinham as suas habitações-
Grassando em Pernambuco uma febre epidêmica de mau
caráter, que aparecendo pela primeira vez em 1746 e reapa­
receu depois em diversos anos, causando grande número de
vítimas, concluíram os médicos, já em 1758, em vista do bom
resultado colhido em diversas experiências, que era de gran­
de vantagem para debelar o mal o uso de banhos do Capiba-
ribe, principalmente do lugar Catanda até a Ponte do Mon­
teiro, “em um lugar que haviam descoberto chamado Poço
da Panela, muito próprio para ser situado, de fácil embarque
e desembarque para as famílias e com ótima frente rasa para
se levantar banheiros” .
520 F . A. PEREIRA J)A COSTA

O cônego dr. Francisco de Araújo Carvalho Gondim, e


o padre Angelo Custódio Machado Gaio, foram os primeiros
povoadores do lugar, onde levantaram casas de taipa, por
cujos terrenos ficaram pagando o fòro anual de 640 réis ao
senhorio da terra.
Divulgada a notícia da salubridr.de do lugar, outras pes­
soas resolveram seguir o exemplo daqueles dois sacerdotes, de
sorte que, no verão de 17Õ8, se levantaram doze casas de tai­
pa e uma de pedra e cal, pertenceu!'* ao mestre-dc-campo
Luís da Cunha, lendo, porém, tòdas as casas a frente voltada
para o rio.
Além das três pessoas mencionadas, foram as demais,
que levantaram casas no lugar, naquela época, o cônego Luís
Gouveia Velho do Amaral, Antônio Alves Varejão, Manuel
Rabelo, os capitães Henrique Martins, Bernardo Luis Ferreira
Portugal, Manuel de Almeida Ferreira, Domingos de Araújo e
Manuel Alves Monteiro, o ajudante de artilharia Bernardo
Rabelo Pereira da Silva, e um fulano Correia, mora 'or na
Boa Vista, mais conhecido' pelo nome de capitão Onça, como
consta de uma memória que sòbre a povoação do Poço, es­
creveu o padre Machado Gaio, a qual nos serve de guia na
presente notícia.
Em ação de graças pela descoberta de tão grande bene­
fício, yfizeram os novos situadores do Poço da Panela cantar
uma missa solene na capela do engenho Casa Forte, no primei­
ro domingo de janeiro de 17ãí) à qual assistiram com suas
familias, parentes e amigos, sendo ainda manifestado èsse jus­
to regozijo por lauto jantar e divertimentos nas casas do nas­
cente povoado.
O proprietário do engenho, o coronel Jacinto de Freitas
da Silva, franqueou naquele mesmo dia aos moradores a sua
capela para a celebração da missa em qualquer dia, compro­
metendo-se os mesmos moradores a fazer tôdas as despesas
necessárias ao asseio da capela e êle a colocar um sino no cam­
panário e a fazer as despesas com vinho e hóstias.
Foi deste modo, diz o Padre Machado Gaio, que os pri­
meiros povoadores daquele arraial passaram os meses de ja­
ANAIS PERNAMBUCANOS 521

neiro, fevereiro e março, na mais completa harmonia, encon­


trando naqueles ares e banhos a melhora e o restabelecimento
de sua saúde.
Em vista das dificuldades de se procurar a capela da Ca­
sa Forte para o exercício dos atos religiosos, não só pela sua
longitude, como umas vêzes pela ardentia do sol e outras quan­
do chovia, com as lamas do caminho, resolveu o capitão Ber­
nardo Luís Ferreira Portugal instituir um oratório em sua
casa, para facilitar às famílias do lugar o cumprimento daque­
les preceitos.
Assim continuaram por algum tempo aqueles romeiros
de saúde, até que resolveram erigir uma capela publier no po­
voado, mas em vista de formal oposição do proprietário das
terras, nada se fez. Êsle fato, c os estragos causados em to­
das as casas por uma enchente do Capibaribe, deu lugar a
muitos desgostos e ao abandono que alguns proprietários fi­
zeram de suas casas. Outros, porém, mais constantes, se re­
signaram, e para prevenir os estragos das enchentes foram
mudando a edificação para lugares mais altos e distantes do
rio, e assim se foi desenvolvendo a localidade.
Sendo o ajudante Bernardo Rabelo Pereira da ‘üiva um
dos mais empenhados na fundação da capela, c ressentido da
negativa do coi-onel Jacinto de Freitas, que lhe era devedor de
certa quantia, tratou de cobrar judicialmente a importância
da dívida; mas falecendo o coronel, e continuando a questão,
foi a sua viúva condenada a pagar a dívida.
Não realizando a viúva o pagamento da dívida, foi o ar­
raial do Poço da Panela em praça no dia 8 de abril de 1767,
e arrematado pelo capitão Henrique Martins, por 1:0õ0$000-
Apesar das boas intenções do capitão Martins, com rela­
ção à fundação da capela, não deu êle imediatamente execu­
ção a èsse projeto, até que, adoecendo gravemente sua espo­
sa d. Ana Maria Clara, fêz um voto a N .S. da Conceição, de
doar o terreno necessário para se levantar uma capela no ar­
raial do Poço de Panela, sob a invocação de N- S. da Saúde,
se com o seu auxílio se visse livre da enfermidade que amea­
çava a sua existência.
52 2 F . A. PEREIRA DA COSTA

Conseguindo a referida senhora o restabelecimento da sua


saúde, cumpriu imediatamente o seu voto, e em 2 dc outubro
de 1770 firmava ela com seu marido, já então elevado ao
pôsto de mestre-de-campo do lêrço auxiliar do Recife, a es­
critura de doação de um terreno com vinte pabnos de frente
e quarenta de fundo, — “aos moradores do Poço da Panela,
e não a pessoa alguma particular, para nele se edificam uma
capela e nela colocar-se a imagem da Virgem Santissima com
a invocação de Nossa Senhora da Saúde” .
O padre Machado Gaio foi incumbido de mandar lavrar
a escritura e refere que foi tal o contentamento do mestre-de-
campo Henrique Martins e de sua mulher, — “que o brinda­
ram com um corte de batina de lila francesa, e seus apare­
lhos, um par de meias de sèda roxa, e 19§200, para o feitio
da mesma batina” .

x\lém da doação do terreno, fèz entrega o mesmo mestre-


de-campo ao padre Machado Gaio cie 100$000 em ouro com
destino ao começo das obras da capela, fazendo o respectivo
patrimônio canônico o padre Francisco de Araújo Carvalho
Gondim, constante de uma casa na rua da Ponte Velha, no
bairro da Boa Vista, cuja escritura foi posteriormente lavra­
da na vila do Recife, em 18 de julho de 1772, pelo tabelião
Antônio Alves de Sousa.
Submetidos todos os documentos do patrimônio ao go­
verno do bispado, foi o mesmo patrimônio julgado por sen­
tença lavrada pelo provisor João Soares Barbosa, em 9 de de­
zembro do mesmo ano, e obtidas as necessárias licenças não
só do govêrno eclesiástico, como do civil, deu o padre Machado
Gaio comêço às obras da capela, para o que havia já arreca­
dado dentre os moradores do Poço e circunvizinhanças a im­
portância de 250-fOOO, alcni de tijolos e cal que obteve por
oferta de outros, e finalmente dos moprietários dos eegenhos
Monteiro, Apipucos e Brum, a madeira necessária para as
obras de carpintaria da capela.
Neste ponto concluiu padre Machado Gaio os seus apon­
tamentos sôbre a fundação do arraial do Poço, ignoi ando-se
ANAIS PERNAMBUCANOS 523

assim a data do acabamento da capela, sua bênção e inaugura­


ção, e outras notícias, que sem dúvida, seriam de muito inte-
rêsse-
Desenvolvendo-se, a povoação do lugar foi progredindo,
de sorte que em 1800 era já um dos mais importantes arra­
baldes da cidade.

Koster diz então do Poço da Panela: “Tem uma capela


construída por subscrição, uma ordem de casas paralelas ao
rio, muitos mucambos de lavadeiras em face, e outras habita­
ções esparsas, aqui e ali, em tôdas as direções” .

Em 1817 requereram os moradores do Poço da Panela a


d. João VI a criação de uma freguesia no povoado e a sua
desmembração da paróquia da Boa Vista, a que pertencia,
sendo ereta em matriz a capela de N.S- da Saúde. Correndo
o processo necessário, e ouvidos a respeito o vigário daquela
paróquia e o bispo diocesano e por fim o tribunal da Mesa
da Consciência e Ordem, que deu parecer favorável em 5 de
fevereiro do mesmo ano, e remetidos enfim, os papéis a des­
pacho régio, baixou a 31 de julho também do mesmo ano a
resolução que erigiu em paróquia o distrito do Poço da Pa­
nela, sob a invocação de N .S . da Saúde; mas a sua inaugu­
ração só teve lugar em 1820 com a posse do seu primeiro vi­
gário o Padre Antônio Francisco Monteiro.
Por alvará de 6 de julho de 1821 foram assinados os li­
mites da freguesia, os quais ficaram sendo: — Da borda do
Capibaribe, pela estrada denominada da Ponte do Cordeiro,
indo a seguir quase em linha reta, até desembarcar na estra­
da do Arraial, continuando a mesma linha até onde finda a
freguesia, por encontrar com a da Sé, ficando todo o lado do
poente ou esquerdo da dita estrada em linha de continuação
para a nova freguesia do Poço, e todo o lado do nascente ou
direitp da estrada com a linha de continuação para a fregue­
sia da Boa Vista.
A Lei Provincial n. 38 de 6 de maio de 1837 deu-lhe a
parte do norte da freguesia da Várzea, suprimida pe’a mes-
524 F . A. PEREIRA DA COSTA

ma lei, ficando assim a freguesia do Poço limitando-se ao nor­


te com a da Sé; a leste com a da Boa Vista; ao s’il com a
de Afogados, pelo rio Capibaribe; e a oeste com a de S. Lou-
renço da Mata, pelo riacho Água da Matéria, abaixo do en­
genho Camarajibe-
Pertencia ao município de Olinda; mas a Lei Provincial
n. 117 de 8 de maio de 1813, incorpoú-a ao do Recife-
Restaurada a freguesia da Várzea pela Lei Provincial n.
173 de 20 de novembro de 1816, perdeu a do Poço da Pane­
la todo o território que fica entre o rio Capibaribe e a linha
que segue em rumo certo da barra do riacho Camarajibe,
com o mesmo rio, à passagem do Caldereiro, que passou a
pertencer à freguesia da Várzea.
A igreja de N .S. da Saúde serviu de matriz, desde a
criação da freguesia até o ano de 1883, quando foi a sua se­
de mudada para a capela de S. Pantaleão do Monteiro, por
portaria do bispo diocesano de 6 de abril do mesmo ano.
Perdendo assim a igreja N .S . da Saúde a sua categoria de ma­
triz, ficou sendo capela filial da nova igreja, que teve como
tal as capelas de Casa Forte e Apipucos.
A igreja de N .S . da Saúde, tal qual se acha hoie, não é
a primitiva, que era pequena, baixa e sem elegância. Basta
confrontar-se as suas atuais disposições, com o limitado ter­
reno que foi doado para a construção da capela — 2 0 palmos
de largura sôbre 40 de fundo!
Achando-se a antiga capela bastante arruinada, r. respei­
tável franciscano Rei José de S. Jacinto Mavignicr, no-,-o con­
terrâneo, empreendeu pelos anos de 1810 a sua reconstrução,
dando à nova capela mais vastas proporções, o que conseguiu
graças ao seu zêlo e dedicação, e à franca coadjuvação que
encontrou em todas as pessoas a quem recorreu- E conseguiu
frei José ver realizado o seu generoso empenho, levantando
um templo elegante de boas proporções, e de bem sofrível
ornamentação-
Administra a capela uma irmandade com a mesma invo­
cação de N .S . da Saúde, acaso fundada em 1859, quando or­
ganizou o seu compromisso, que foi aprovado na parte reli-
ANAIS PERNAMBUCANOS 525

giosa em 31 de mareo de 18(33 e na civil por provisão da pre­


sidência da província de 18 de outubro de 18G6.
Tem a freguesia um sofrível cemitério, todo murado, com
portão de ferro e um cruzeiro centrei, situado na Casa Ama­
rela, cujo terreno, como consta de um ofício dirigido pela
Câmara do Recife ao presidente da província em 13 de feve­
reiro de 1858, foi cedido graluitamentc pelos consen!.ores do
extinto Vinculo do Monteiro, para semelhante fim, com a
única condição de se reservarem sepulturas gratuitas pura os
doadores e seus legítimos descendentes. Indenizado o possei­
ro do terreno com a quantia de 550$000 de algumas benfei­
torias que lhes pertenciam e levantada a respectiva planta, e
preparado e nivelado o terreno, foi o cemitério aberto em
1859. (*)

AGOSTO 5 — Falece o Dr. Francisco de Brito Bezerra


Cavalcanti de Albuquerque.
Nasceu no engenho Caraú, pertencente à paróquia de Ita-
maracá, era filho do capitão Salvador Coelho de Drumond e
D. Leonarda Bezerra Cavalcanti de Albuquerque, neto pater­
no do tenente Francisco de Brito Lira e D. Juliana Drumond,
e materno do capitão Antônio da Costa Leitão Arnosi e D.
Maria Bezerra Cavalcanti de Albuquerque.
Era formado em cânones pela universidade de Coimbra,
e teve carta de brasão de armas e fidalguia conferida pela
rainha D. Maria I em 8 de janeiro de 1787, lavrada em per­
gaminho, e contendo em desenho colorido as respectivas ar-

(*) —■Este artigo é muito parecido com um outro, sobre o mesmo as­
sunto, que figura no Dicionário corográfico. histórico e estatística de Per­
nambuco; e como assim se possa julgar que nós serviimente o copiamos e o
damos agora como da nossa lavra, cumpre-nos declarar que o artigo sôbre o
Poço da Panela, que figura naquela obra, nas partes referentes à sua histó­
ria e outras particularidades, com insignificantes alterações, é testuelmente
extraido de um folheto nosso sob o título: Notícia histórico-topográfica da
povoação do Poço da Panela, distribuída em a nlte de 7 de fevereiro de 1897
pela comissão de solteiras promotora da nover-a e festividade do ri'e. Recife,
Oficinas de obras de O Estado, 1897 O T. II do referido Dicionário em que
figura o artigo em questão, foi impresso em 1910.
52 6 F . A. PEREIRA DA COSTA

m as. Foi auditor de guerra nomeado em 1806, e em 1808 ve­


reador da câmara do Recife.
O D r. Francisco de Brito era um homem de superior me­
recimento, e apesar de inteiramente desconhecido, deixou con­
tudo, um atestado valiosíssimo desse seu merecimento, que se
fôsse conhecido, teria salvo o seu nome do esquecim'-nto que
tem tido.
Referimo-nos à sua obra inédita: — Catálogo das reais
ordens existentes no arquivo da extinta Provedoria de Per­
nambuco, formado pelo bacharel Francisco de Brito Bezerra
Cavalcanti de Albuquerque, Ajudante do Procurador da Fa­
zenda, confirmado por Sua Alteza Real, em execução da Or­
dem Régia de 14 de agosto de 1770, que lhe serve de plano, e
por virtude da Portaria de 23 de novembro de 1799 da Real
Junta da Fazenda de Pernambuco-
Este precioso inédito, de um valor histórico inestimável,
consta de um in fólio de 894 páginas, de boa caligrafia, e está
muito bem conservado; e precedem ao trabalho a consigna­
ção, em sua íntegra, da ordem régia de 14 de agosto de 1770,
e portaria de 23 de novembro de 1799, uma carta de dedica­
tória ao príncipe regente, e um Discurso preliminar, do qual
vamos inserir a sua prim eira parte, deixando a segunda que
se refere a uma exposição minuciosa dos livros de reg’stro das
ordens reais, e hoje que não existem mais, em nada nos in­
teressa .

“Causará reparo ao leitor instruído na história, ver que


as primeiras e mais antigas ordens, que encontramos no ar­
quivo da extinta Provedoria de Pernambuco, são dos anos de
1648 e seguintes; tendo principiado a povoação desta capita­
nia no de 1535, em que para ela veio seu primeiro donatário
Duarte Coelho Pereira, a quem foi dada pelo senhor rei D.
João o III, em Évora aos 24 de setembro de 1534, compreen­
dendo esta doação 50 léguas de costa desde o Rio de Santa
Cruz até o de S. Francisco.
ANAIS PERNAMBUCANOS 527

“Cessará porém êste reparo, refíetinclo-se, que governan­


do esta capitania aquele donatário, e seus filhos Duarte Coe­
lho de Albuquerque c Jorge de Albuquerque Coelho ate o ano
de 1630, em que a invadiram os holandeses, foi esta a época
da sua total destruição.

“A cidade de Olinda, então vila e metrópole da capitania,


foi reduzida a cinzas com os seus cartórios e arquivos: o do­
natário escapou fugindo para a Bahia, de onde passou à Lis­
boa com os papéis de sua Secretaria, da qual depois da res­
tauração vieram alguns títulos extraídos do arquivo do Conde
Excelentíssimo de Vimioso, hoje Marquês de Valença, que lhe
sucedeu: e finalmente da Tôrre do Tombo, para onde passa­
ram depois da composição constante da ordem 6 a. do Título
32, Dos Donatários, porque foi unida esta capitania à real
coroa de S. Alteza o príncipe nosso senhor-

“Ainda que aquela união legal foi feita no ano de 1716,


já S. Alteza tinha posse real nesta capitania, que a tomou,
logo que os belgas foram expulsos no ano de 1654 como pro­
va-se da ordem 3a. do citado título 32; e porquanto nos últi­
mos anos da guerra da liberdade, e restauração de Peri.ambu-
co o inimigo estava reduzido a 'defender-se dentro das forta­
lezas, e praça do Recife, ficando os nacionais senhores do
continente, por isso desde aquele ano de 1648 principiou S.
Alteza a dirigir ordens aos magistrados dela, como provam
a primeira do título 8 .° Do Sal, e outras posteriores, que se
encontram no catálogo: evidenciando-se portanto a im ta ra­
zão, por que não aparecem ordens reais antes daquela época.

“Sendo pois eu encarregado da presente composição, pas­


sei ao Real Erário a examinar, quais e quantos eram os livros
compreensivos das ordens da extinta Provedoria ,e pdos res­
pectivos oficiais foram-me entregues 25, que tinham servido
para o registro de quanto passou desde o ano de 1644, em
que teve princípio aquela guerra, ate o de 1762, em que sen­
do criada a Real Junta, foi extinta a Provedoria, que me ser­
528 F . A. PEREIRA DA COSTA

ve de objeto, e entrando no exame deles, achei estar tudo re­


duzido a um caos. •. ”

A obra consta de 89 Títulos referentes a assuntos distin­


tos, cm cada um dos quais vêm cronologicamente citadas to­
das as ordens que lhe dizem respeito, fazendo o autor, sobre
cada um deles, umas Reflexões finais, mais ou menos exten­
sas, estudando e elucidando as quesees.
Vê-se, portanto, que a obra dêsse douto pernambucano é
um repositório de informações históricas de um valor inesti­
mável, tanto mais quando desapareceram os livros de regis­
tros dc tòdas as ordens citadas, e resumidamente extratadas.
— Relevantíssimo serviço prestou o D r. Francisco de Brito
Bezerra Cavalcanti de Albuquerque com o trabalho do seu Ca­
tálogo das Ordens Reais, e tão grande presta-lo-á também,
quem se incumba da patriótica empresa da sua pubjicação.

AGOSTO 6 — Carta régia criando o Tribunal da Alçada,


para o julgamento e execução dos comprometidos na revolu­
ção, conforme o seu próprio têxto:

“Bernardo Teixeira Coutinho Álvares de Carvalho, De­


sembargador do Paço. Amigo, Eu El-Rei vos envio muito
saudar.

“Sendo-me presente o horrível atentado contra a minha


real soberania e suprema autoridade, que uns malvados in­
dignos do nome português, habitantes da província de Per­
nambuco depois de corromporem com a execrável maldade a
outros perversos, se atreveram a cometer no dia 6 de março
do corrente ano, fazendo uma rebelião e tendo atemorizado o
povo com assassinatos e conduzindo a tropa, ainda incerta dos
seus projetos, surpreenderam as autoridades por mim estabe­
lecidas, e se apoderaram da administração pública, passando
a erigir um monstruoso govêrno, procurando propagar a re­
belião por tôda aquela província e pelas confinantes da Paraí­
ba, Rio Grande e Alagoas, levantando tropas, e resistindo com
AXAIS PERNAMBUCANOS 529

força armada contra aqueles que eu el-rci e senhor natural aí


tinha para segurança interior dos meus povos e contra os que
acudiram a rebater tão acelerado acontecimento. E devendo
eu fazer castigar com a severidade das leis a crimes tão enor­
mes e nunca vistos entre os meus vassalos.

“Fui servido nomear-vos e aos Desembargadores Antô­


nio José de Miranda, João Osório de Castro Sousa Falcão e
José Caetano de Paiva Pereira, para que vós como juiz, o De­
sembargador Antônio José de Miranda como adjunto, o De­
sembargador João Osório de Castro Sousa Falcão como es­
crivão, e o Desembargador José Caetano de Paiva Pereira co­
mo escrivão assistente, passeis à Vila do Recife de Pernam ­
buco, onde chamando a vós as devassas, que aí se tiverem já
tirado e nas outras terras circunvizinhas até o Ceará, e os
processos e sentenças que já houverem, ainda que por elas já
se tenha procedido a execução de penas, procedais a tirar nova
devassa sem necessidade de certo tempo, ou número de teste­
munhas, e tendo-a concluído, e presos os réus que se acharem
presentes, e citados por editais os ausentes e os herdeiros dos
falecidos ou executados, passeis à Cidade da Bahia onde cha­
mareis também a vós as mais devassas e processo que ali hou­
verem, e renovando as diligências e perguntas que forem ne­
cessárias ao conhecimento da verdade, sentenciareis sumària-
mente em Relação os réis que nos sobreditos horrorosos deli­
tos forem culpados, havendo por suprida qualquer falta de
formalidades e por sanadas quaisquer nulidades judiciais, po­
sitivas, pessoais ou territoriais de direito ou dos costumes da
nação que possa haver nas ditas ou processos, atendendo so­
mente às provas conofrme o direito natural, impondo as pe­
nas em tôda a extensão das leis como se todos os réus fôssem
de novo julgados, sendo vós o relator e sendo o adjunto o
Desembargador dos Agravos da Casa da Suplicação Antônio
José de Miranda e os mais ministros que o governador e ca-
pitão-general nomear e vós lhe propuserdes ou sejam desem­
bargadores que sirvam na Relação da Bahia ou quisquer ou­
tros ministros de qualquer graduação daquela província, ou
530 F . A. PEREIRA DA COSTA

das outras do reino, os quais sendo por vós requeridos o go­


vernador os fará convocar na conformidade das ordens que
lhe mando expedir.

“E dos réus que houverem eclesiásticos ou sejam regula­


res ou seculares, vós mandareis separar as culpas pa^a em ato
separado serem sentenciados por vós. como fôr de justiça, e
com os adjuntos por lhes não pertencer privilégio algum de
isenção nos crimes excetuados, nos quais o de S. Majestade
é o maior e mais horroroso. Com declax-ação porém, que an­
tes da execução da sentença exigireis a degradação na confor­
midade do costume do reino. Enquanto aos réus que forem
das ordens militares, vós na mesma sentença podereis degra­
dar e expulsar delas, pois a vós e aos mais adjuntos. ■ometo
esta jurisdição, como mando participar a Mesa da Consciên­
cia e Ordens.

“Havendo outrossim entre os réus que nem foram dos


chefes e cabeças da rebelião, nem cometeram assassinatos,
nem comandaram as tropas rebeldes, que pegaram em armas,
nem constituíram o conselho dos governos revolucionários,
nem dos que fomentaram, proclamaram, procuraram propa­
gar, ou sustentaram e nêle perseveraram, até serem rendidos
pela fôrça armada, porém que consenliram por terror, cederam
a fôrça ou semelhantes, a respeito dês les ordeno que as sen­
tenças contra êles proferidas se remeterão à minha teal pre­
sença, suspendendo-se entre a execução dêles, e ficando os réus
em segurança, até que eu determinai o que fôr servido” -

As demais disposições desta carta são despidas de impor­


tância histórica, uma vez que são referentes à organização do
tribunal, aos casos de empate nas vo !ações, da interferência e
ação nas outras províncias, ficando o governador encarregado
de auxiliar as ordens expedidas, como se lhe determinava em
car tampara êste fim expedida, dos impedimentos e substituições
dos ministros, dos seus vencimentos, sendo marcada ao presi­
dente a diária de 8$000, ao seu adjunío 6$400 e aos dci embar-
AXAIS PERNAMBUCANOS 531

gadores e escrivães 1$800, que perceberíam desde o lia do


embarque, no Rio de Janeiro, até o fim da diligência na Bahia;
e enfim sobre o seqüestro e confisco dos bens dos réus, sendo
nomeados administradores para os bens de raiz e arrematados
os móveis e semoventcs não necessários para a manutenção
dos presos, julgando-sc sumàriamentc as liquidações dos refe­
ridos confiscos, dívidas, reivindicações c outras quaisquer de­
pendências na forma das leis estabelecidas para o juízo final.
Segundo Oliveira Lima, Paulo Fernandes Viana, inten­
dente geral da polícia da corte, linin' proposto a respcúto um
tribunal extraordinário, de maior pessoal, e compreendendo
entre os seus membros um brasileiro. — “que não convém
que o povo penetre que se fugiu de propósito de se lembrar
um só que fôsse natural dêste reino, estando já unido ao de
Portugal e Algarves; desmentindo-se pelo fato, a mesma união
que existe de direito, e dando assim exemplo a discursos nos
periódicos, que possam inoculai- nos corações princípios de
desgosto e ressentimento: matéria que pode ter conseqüências
no fu tu ro .. . ”

Paulo Fernandes Viana reputava a escolha desta alçada


objeto de muita delicadeza, tanto mais quanto era brasileiro,
embora dissesse que “segundo os sentimentos do meu co­
ração eu procuro fugir de tudo o que possa lembrar o espí­
rito de partido por pátria e ligações dos juizes com o territó­
rio” . — No seu entender devia ser excluído todo aquele —
“que já fôsse havido no conceito do público por entrada em
Maçonaria, donde isto quanto a mim nasceu, e que possam ter
ali na terra mais relações com famílias e pessoas a quem de-
desejem perdoar” - — Perdoados afinal poucos deviam ser,
porque considerava merecedores da pena última não só os
chefes do govêrno provisório e seus conselheiros, mas ainda os
que maquinaram a trama, — o que apareceu e o que não apa­
receu, — e os que se emp regaram na sedição da tropa : fossem
seculares, clérigos ou cavalheiros, passe tudo a mesma fiei-
ra . “Fora dos réus que se graduarem principais, poupa-se a
pena de sangue a todos os mais, depois de passarem por to­
5 32 F . A. PEREIRA DA COSTA

dos os sustos do aparato judicial, munida a alçadâ de direitos


cartas régias ocultas, que só devam aparecer em tempo próprio
como se fêz aqui com a alçada que julgou o caso de Minas, e
por degredo perpétuo éles e outros temporários para nunca
voltarem a aquela desgraçada província, se espalhem por esses
territórios e desertos da Africa e Ásia a chorarem o seu delito,
resplandecendo assim a justiça e a piedade de El-Rei, que cer­
tamente há de preferir esta medida, a de uma earnagem, aliás
bem merecida neste horroroso caso".
Si bem o disse o feroz intendente melhor o fèz a alçada,
para ser arrastado à qual — não se requeria delito cometido,
bastava a intenção, a indiferença, o sentimento pacifico do
cidadão tímido, qualquer palavra ambígua, o vínculo da ami­
zade ou parentesco com algum reputado delinqüente. — Ês-
se inquisitorial tribunal da alçada funcionou por muiío tem­
po; as prisões se encheram de vítimas da prepotência e ódio
português contra os brasileiros comprometidos ou supostos,
no movimento revolucionário, e novas e avultadas levas foram
ainda encher os cárceres da cadeia da Bahia, nos quais os in­
felizes patriotas pernambucanos eram bàrbaramente tratados.
Uma circunstância poderosa, providencial, porém, vèio
em favor da sorte das vítimas da feroz alçada: a desarmonia
entre o governador Luís do Rêgo e o seu presidente Bernardo
Teixeir», e daí o ato régio de 6 de fevereiro de 1818, do qual
oportunamente nos ocuparemos.
Demorado, retardado o andamento do processo, esgota­
da tôda a série de documentos que foi possivel reunir, e não
deixando depoimento por tomar, o presidente da alçada —-
invocava mais tarde essa prolixidade jurídica como proposi­
tada, tendendo a demorar tanto o andamento do processo, de
modo que a rêde se gastasse e as vítimas se salvassem pelas
malhas rotas. Seja como fôr, conclui Oliveira Lima, a histó­
ria do movimento encontra-se nos famosos dezoito volumes do
processo em seus menores detalhes-
Trata-se do monstruoso processo da alçada, constante da­
queles volumes, grossos, in-fólio, que se conservam no Arqui­
ANAIS PERNAMBUCANOS 533

vo Público do Rio de Janeiro, já muito estudados, e em gran­


de parte vulgarizadas as suas peças, parlicularmente na Re­
vista do Instituto Histórico Brasileiro e no Brasil histórico
de A. J. de Melo Morais.

AGOSTO 13 — Não sendo fundada em princípio algum


plausível, do interesse para a causa pública c de bom regimen
econômico, a proibição de residirem mulheres na ilha de Fer­
nando de Noronha, reduzida a um mero presidio para a re­
clusão de degredados, baixou nesta data uma carta régia di­
rigida ao governador e eapitão-general Luís do Règo Barreto,
revogando semelhante proibição, e declarando aberta a refe­
rida ilha, para nela poder residir e viver qualquer pessoa sem
diferença de sexo, concluindo: — “E vos ordeno que promo­
vais pelos meios que vos parecerem melhores e mais próprios,
a sua povoação com casais, que para ali hajam de ir estabe­
lecer-se, conservando-se todavia a guarnição na forma que até
então se tem praticado” .

Tratando Muniz Tavares dos fatos ocorridos na ilha em


1817, quando foi evacuada, escreve que a ilha não convidou
desde o principio da sua descoberta o estabelecimento de co­
lonos, e que foi ao depois por ordem soberana vedado o in­
gresso ali ao sexo feminino, exclusivamente ficando reservada
para lugar de desterro dos delinquentes processados. Vemos
assim, que a proibição de mulheres na ilha vinha de tempos
rem otos.
Koster, que escreveu pelos anos de 1810, diz que não era
permitido a mulher nenhuma visitar a ilha.
Orientação diversa, porém, tiveram os holandeses, não
vedando semelhante ingresso. Efetivamente, como se vê de
um escrito dêles próprios, de 1645 a 1647, sôbre a revolta
pernambucana, a 27 de dezembro de 1646 partiram do pôrto
do Recife dois barcos para a ilha de Fernando, levando três
mulheres banidas deste país, naturalmente por sua vida de
costumes desregrados ou graves faltas cometidas.
534 F . A. PEREIRA DA COSTA

AGOSTO 11 — Portaria do governador Luis do Rêgo


Barreto mandando seqüestrar uma oficina de estamparia e
gravura, pertencente ao cartógrafo José Fernandes Portugal,
c entregar todo o seu material ao sargento-mor engenheiro
Francisco José de Sousa Soares de Andréia. Nessa oficina im­
primiram-se várias cartas geográficas, estampas e outros tra­
balhos, de muito boa execução.
Determinou aquele seqüeslro o comprometimento de Fer­
nandes Portugal no movimento republicano que irrompeu
neste ano, sob cujo regimen desempenhou o cargo de inten­
dente d amarinha c prestou grandes serviços, notadamente o
de organizar em pouco tempo uma flotilha de guerra para a
defesa do porto- Tinha ele então uma aula de pilotagem no
Recife.
Nascendo no Rio de Janeiro cm 1755, serviu por muitos
anos na marinha de guerra, como piloto, e cm 1797 veio fixar
a sua residência em Pernambuco em virtude do seu despa­
cho para o cargo de escrivão vitalício da alfândega do Re­
cife-
Hábil, trabalhador, e muito versado em hidrografia e náu­
tica, deixou grande número de cartas de portos e províncias,
da ilha de Fernando de Noronha c outros lugares, trabalhos
que desempenhou por incumbências do govêrno, os quais ain­
da existem, inéditos uns e impressos outros, todos os quais
constam do Catálogo da Exposição de História do Brasil, in-
sertos nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, do
ano de 1881. Por tais serviços recebeu Fernandes Portugal a
conferência do hábito de Cristo e a patente de sargento-mor
agregado ao regimento de artilharia do Recife.
Debelada a revolução, ocultou-se êle, mas depois entre­
gou-se à prisão; e demonstrando então completa demência,
foi removido para o Hospital Militar onde faleceu a 17 de de­
zembro, de inanição ou falta de alimento, por haver refugado
por mais de vinte dias tôda a qualidade de alimento e bebi­
da, como atestaram os médicos do Hospital. Seus bens tinham
já sido confiscados, ficando assim seus filhos reduzidos à mais
extrema miséria.
ANAIS PERNAMBUCANOS 535

Aquela estamparia montada por José Fernandes Portugal


foi a prim eira oficina de gravura que houve no Recife. En­
tretanto, já em meados do século XVIII, se deleitava o nosso
historiador F r. Antônio de Santa Maria Jaboatão em cultivar
a gravura no seu convento de Olinda, e como refere o seu con­
temporâneo Loreto Couto, tinha êle “grande destreza em abrir
sutis estampas e primorosas imagens ao buril e rara habili­
dade para exercitar tòdas as artes; e era insigne em form ar
os caracteres para os livros de couro, debuxando com a. pena
como se fôra pincel, as letras iniciais e iluminando-as com
ouro e diversas cores” .

Em 1819 criou o governador Luís do Règo uma oficina


de gravura em metal no Trem Militar, depois Arsenal de Guer­
ra, e nomeou para a dirigir um hábil profissional, João Pedro
Adour, que acumulava as funções de professor de desenho
do estabelecimento. Por aviso de 28 de fevereiro de 1820 te­
ve Adour nomeação régia para aquele cargo, com 2$000 diá­
rios, com a obrigação de lecionar também desenho; mas cria­
do o Liceu Pernambucano em 1825, passou êle a servir nes­
te estabelecimento incumbido da cadeira de desenho. Adour
era francês, nasceu em 1796 e era um artista habilíssimo. Em
1829 .deixou a arte, fêz-se negociante, adquiriu alguma fortu­
na e em 1836 retirou-se para sua terra.
Dos trabalhos de gravura da oficina do Trem resta-nos
uma Planta hidrográfica de represa do rio Beberibe, do enge­
nheiro Conrado Jacob de Niemevcr, impressa em 1822, e gra­
vada por Adour.
Posteriormente houve uma estamparia pertencente a um
fulano Marroquim, que por seu falecimento, em 1810, passou
a José Lino Alves Coelho, sendo então situada a oficina na
rua do Rosário n. 20. Fazia gravura em cobre, impressos com
tintas de côres, em prensa especial e trabalhava principalmen-
te em estampas de santos, letras, conhecimentos, bilhetes de
visita, rótulos, etc. Esta oficina ainda funcionava cm 1842.
Depois estabeleceu-se uma outra oficina de gravura na
Rua Nova, n. 63, onde se imprimiam, especialmente, estam-
536 F . A. PEREIRA DA COSTA

pas de santos, coloridas ou não, de muito bom trabalho artís­


tico, principalmente as gravadas por Antônio de Sousa Ma­
tos, artista pernambucano de muito merecimento- Dos seus
inúmeros trabalhos de estamparia podemos verificar os se­
guintes, autenticados com a sua asinatura: S. Miguel Arcan­
jo, N.S- do Terço, N .S . do Livramento, Senhor Bom Jesus
da Cruz da igreja do Rosário da Boa Vista; N .S . da Penha,
N .S . do Rosário, Santa Teresa de Jesus (duas estampas dis­
tintas) ; A Venerável Imagem do Senhor Santo Cristo, ereta no
convento dos religiosos de Santo Antônio da povoação de Ipo-
juca; N .S . da Conceição dos Coqueiros, na Boa Vista; N .S.
da Conceição (duas estampas diferentes); S. Francisco de As­
sis (duas estampas); S. Francisco de Assis recebendo as cha­
gas; O Senhor dos Passos; N .S . da Conceição, que se venera
na igreja da Congregação; Glória ao Divino (Nossa Senhora,
os apóstolos e no alto o Divino Espírito Santo) duas gravuras
diferentes; N-S. do ('.armo, Santo Elias, S. Eliseu e Santa­
na, que se venera na igreja da congregação do Oratório de
Pernambuco. Abertas estas estampas em lâminas de cobre e
geralmente impressas em tinta preta, algumas porém eram em
tinta azul ou vermelha.
De par com Antônio de Sousa Matos, tivemos também,
no seu tempo, Manuel Antônio de Sousa, pernambucano, há­
bil desenhista e gravador, discípulo da oficina de gravura do
Trem Militar, 11a qual, segundo um atestado do mestre J. P.
Adour, passado em 1832, além das suas ocupações ordinárias
de desenho e gravura, tinha também as de fundição de tipos,
impressões, consertos de instrumentos de matemática e outros
trabalhos. Sousa deixou a oficina em 1835, quando foi no­
meado desenhista da Repartição do Arquivo Militar e em 1812
passou a servir 11a das Obras Públicas, em cujo cargo teve
depois a sua aposentadoria. Foi èlc quem abriu os cunhos da
medalha comemorativa da fundação da Casa de Detenção em
1850, e fèz a gravura de vários trabalhos em que avultam as
estampas de santos.
ANAIS PERNAMBUCANOS 537

Em 1852 havia no Recife uma Imprensa de música, a


gravura, que funcionava à Rua Bela, n. 28, de cuja oficina
vimos a valsa Madrugada, para piano, Salto, para flauta e
Luisada, para violão, que se vendiam a 320 réis.
A gravura em metal, porém, que atingira entre nós a um
certo grau de desenvolvimento e perfeição começou a decair
com a introdução da litografia, de recente descoberta, cuja
competência, depois, quase que a fêz desaparecer.
Em 1831 André Alves da Fonseca, pintor e desenhista, es­
ta beleceu uma Litografia na rua do Fogo, como assim anun­
ciava no Diário de Pernambuco de 25 de abril, que nos pare­
ce que foi a primeira entre nós, e que não veio tardiamente,
uma vez que descoberta em 1792, em 1816 montava-se em
Paris a sua primeira oficina litográlica.
A oficina porém teve uma vida efêmera, e já não existia
em 1812, uma vez que a 27 tie agosto publicava o Diário de
Pernambuco um artigo aventando a idéia do estabelecimento
de uma litografia no Recife, e convenientemente discutindo
as suas vantagens, parecia-lhe que o momento era oportunís-
simo, uma vez que se trabalhava no levantamento da carta
corográfica da província, e em uma época em que muitos de
nossos artistas não publicavam as suas composições por falta
de uma pedra litográfica, que as multiplicasse cômoda e fa­
cilmente .
Não surtiu porém o desejado efeito tão boa idéia; mas
alguns anos depois estabelecia A. Garnier uma litografia no
Recife, que existia já em 1818, quando imprimiu um Plano
topo-hidrográfico do pôrto e cidade de Pernambuco-
Em 1859, A. Ridoux abre uma oficina, que existiu por
muito tempo, mantida por fim por um de seus discípulos e
sucessor, Manuel Gomes Mendes; e em 1867, F . H. Caris
abre uma outra oficina, que permaneceu por tôda a sua vida.
Artista competentíssimo soube dotar o seu estabelecimento
dos mais modernos e aperfeiçoados maquinismos, do melhor
material possível e de habilíssimos profissionais, de forma a
torná-lo uma casa de primeira ordem, cujos trabalhos, em to-
538 F . A. PEREIRA DA COSTA

dos os gêneros, em nada deixavam a desejar dos melhores


produzidos nos estabelecimentos congêneres da Europa-
Vulgarizada assim a litografia entre nós, foi fácil a pro­
paganda e desenvolvimento da arte, pela aprendizagem e es­
tudo, de modo a constituir hoje uma das mais prósperas e
adiantadas do estado, contando mesmo estabelecimentos bem
montados, de primeira ordem, alguns dos quais, exploram o
fabrico de cartas de jogar, pcrfeitamcnlc trabalhadas, e com­
petindo de tal sorte com o similar estrangeiro, que extinguiu
a sua importação
A litografia pernambucana é uma das artes que faz honra
ao estado, pelos seus múltiplos e belissimos produtos, desde o
mais simples trabalho até, o mais correto e delicado cromo-

AGOSTO 21 — Execução capital dos patriotas paraibanos


José Peregrino Xavier de Carvalho, Francisco José da Silvei­
ra e Amaro Gomes da Silva Coulinho, comprometidos na ade­
são do movimento pernambucano de 6 de março, e que ma­
logrados os seus intentos, foram presos, enviados ao Recife,
para serem julgados, o que sumàriamente feito por uma co­
missão militar que então funcionava, foram condenados à
morte infamante do garrote, neste dia executada no patíbulo
do Campo do Erário.

José Peregrino Xavier de Carvalho, paraibano de nasci­


mento, alferes de infantaria de primeira linha, foi levado mo­
ribundo ao patíbulo, e morto, lhe foram cortadas a cabeça c
as mãos, e remetidas para a Paraíba. O tronco foi arrastado
à cauda de um cavalo e sepultado no cemitério da matriz de
Santo Antônio.

José Peregrino, escreve Muniz Tavares, contava apenas


vinte anos de idade. A sua infância, o pôsto subalterno que
exerceu na revolução, a sua conduta moral sem repreensão,
moveríam os membros de outro qualquer tribunal, ao menos
a recomendá-lo à clemência do soberano. Mas a mocidade
virtuosa é quem mais inquietava os tiranos; aquêle jovem da-
ANAIS PERNAMBUCANOS 53 9

va de si ótimas esperanças, e a sua existência, portanto, de­


via parecer perigosa-

Francisco José da Silveira, era natural de Minas Gerais,


tenente-coronel de cavalaria em serviço na guarnição da Pa­
raíba, e fêz parte do governo provisório revolucionário, que
ali se instalou. Garrotado, foram a sua cabeça e mãos corta­
das e remetidas para a Paraíba, sendo também os seus restos
mortais sepultados no mesmo cemitério da matriz de Santo
Antônio-

Amaro Gomes da Silva Coutinlio, era um paraibano ilus­


tre por muitos títulos, coronel de milícias, foi a alma da re­
volução, e comandou em chefe as forças patrióticas.
Dias Martins não dá o dia da sua execução, mas nós o
encontramos no assentamento da sua entrada na cadeia do Re­
cife, cujo teor é o seguinte: “Amaro Gomes da Silva Gouti-
nho, branco. Remetido do quartel general e entregue pelo sar­
gento Alexandre Antônio do primeiro batalhão de fuzileiros
para ser conservado em prisão incomunicável. Em 14 de
agosto por ordem do ajudante-de-ordens, o m ajor Albuquer­
que, falou com sua mulher, demorou-se duas horas e foi à
tarde. Em 21 de agosto padeceu morte natural” .

Executado o infeliz patriota Amaro Gomes, e descido o


cadáver da força, foi juridicamente despedaçado, a cabeça e
mãos foram levadas à cidade da Paraiba e colocadas em um
poste na sua propriedade Zumbí, na cidade baixa, de onde as
tirou no fim de quinze dias o comerciante inglês Francisco
Stuart para as enterrar; e o tronco, arrastado à cauda de ca­
valo, foi levado à sepultura na mesma igreja matriz de San­
to Antônio do Recife.

Restavam ainda mais dois paraibanos que tinham de pa­


gar com a vida o crime do seu patriotismo, acompanhando
a causa da nossa emancipação proclamada no Recife: Inácio
Leopoldo de Albuquerque Maranhão e o Padre Antônio Pereira
de Albuquerque.
54 0 F . A. PEREIRA DA COSTA

Inácio Leopoldo foi membro do governo provisório da


Paraíba, cuja eleição mereceu pelo seu mérito e entusiasmo,
como escreve Dias Martins. A sua execução consta do seguin­
te assentamento da sua entrada na cadeia do Recife, segundo o
respectivo livro do ano de 1817:

“Inácio Leopoldo de Albuquerque Maranhão, branco, vin­


do do quartel general,entregue pelo sargento-mor reformado
do regimento do Recife, José Gomes, para ser conservado na
sala livre. Padeceu morte natural em G de setembro por sen­
tença da comissão militar de 1 do mesmo mês” .

Padre Antônio Pereira de Albuquerque. Mártir ilustre da


revolução da liberdade de 1817, de que êle mesmo foi autor e
vítima, na frase de um cronista do tempo, deu entrada na
cadeia do Recife para ser executado, segundo a sua sentença
de condenação lavrada a 4 de setembro, o que consta do seu
respectivo assentamento, nestes termos: “Reverendo Antônio
Pereira de Albuquerque, remetido da fortaleza das Cinco Pon­
tas em escolta, em o mesmo dia. Às 1 2 horas foi para o ora­
tório, às 8 da noite sacramentou-se, e em 6 de setembro às
9 horas do dia padeceu morte natural” .

Ambas as vítimas, depois de executadas, tiveram corta­


das as mãos e decepadas as cabeças, que form remetidas pa­
ra a Paraíba, para serem expostas em postes, e os seus restos,
conduzidos ao cemitério da matriz de Santo Antônio, arras­
tados à cauda de cavalos.
Depois de nove vítimas sacrificadas em Pernambuco, as
cinco constantes deste artigo: Antônio Henriques Rabelo, a 5
de julho, o Padre Pedro de Sousa Tenório e os capitães Do­
mingos Teotônio Jox-ge c José de Barros Lima, a 10 do mes-
beiro de Abreu e Lima, Domingos José Martins, José Luís de
mo mês; e de mais quatro na Bahia, o Padre José Inácio Ri-
Mendonça e o padre Miguel Joaquim de Almeida e Castro; e
de tôda a sorte de tiranias e perseguições praticadas contra os
comprometidos na revolução, mandou o govêrno suspender a
ANAIS PERNAMBUCANOS 541

carnificina da comissão mililar, e criar uma Alçada, composta


de quatro desembargadores, todos portugueses, sendo um dê-
les, Bernardo Teixeira Cou linho Álvares de Carvalho, — o
mais velho e o mais surdo às vozes da piedade, — nomeado
juiz presidente.
A criação dèssc tribunal, com um fim todo particular, es­
pecial, e as instruções que baixaram para o seu regimen, cons­
tam da carta régia de 0 de agòsto dèste ano de 1817 dirigida
ao referido desembargador Bernardo Teixeira.

SETEMBRO 10 — Ato régio de D. João VI, constituindo


em província independente a comarca das Alagoas, ficando o
seu têrmo desligado da província de Pernambuco, a que per­
tencia, e assim — isenta absolutamente da sujeição em que
até então esteve do seu governo, — e nomeando logo a Se­
bastião Francisco de Melo e Póvoas, para o cargo de governa­
dor pelo tempo de três anos, cujo decreto foi ratificado por
um outro lavrado a 12 de janeiro de 1818.
O território das Alago'as, ficando no extremo sul da capi­
tania de Pernambuco até os seus limites ao correr do rio S.
Francisco, depois de firmado o assento colonial em Olinda e
da conquista das suas terras da ocupação dos índios, teve en­
tão começos de conquista, e mediante concessões donatárias
de grandes lotes de terras com vantagens animadoras e com-
pensadoras à sua cultura, começou a ser colonizado, surgindo
logo os seus primeiros engenhos, e tal incremento teve e foi
tal o seu caminhar progressivo, que, ao tempo da dominação
holandesa, já as Alagoas contava um certo número de bem
montados engenhos e as povoações do Penedo, Madalena e
Pôrto Calvo, constituídas em paróquias.
Muito sofrendo o território alagoano durante a prolon­
gada e porfiada lula com o batavo invasor, restaurada porém
a capitania de Pernambuco em 1G54, recomeçou nos seus la­
bores, e reparados os danos causados, foi progressivo o seu
desenvolvimento, e assim, decorridos uns cinqiienla anos,
quando as suas expansões territoriais tinham penetrado até
afastadas paragens, surgindo novos núcleos de populações, de
542 F . A. PEREIRA DA COSTA

começo constituídos'em paróquias e depois em vilas, com um


comércio de certa animação como assim era a sua lavoura, par­
ticularmente a da cana-de-açúcar para cuja indústria aumen­
tara o número dos seus engenhos, foi assim elevada à catego­
ria de comarca instaurada em 1711, com o seu ouvidor-geral,
comandante m ilitar e as competentes autoridades, compatíveis
com a sua nova situação, graças aos empenhos do governador
de Pernambuco, Francisco de Castro Morais-
Veio depois a cultura do algodoeiro, que proporcionou
uma nova fonte de atividade e riqueza à comarca: a criação
de escolas de instrução prim ária, algumas de latim c de cor-
comércio, animadas a sua indústria e agricultura e em explo-
pos milicianos; a regularização do serviço de catequese dos
índios; o alargamento da ação judicial com a instituição dos
juizes-de-fora; avantajada a sua população, próspero o seu
ração as suas matas; e assim chegando a bela e próspera co­
marca pernambucana das Alagoas a ocupar uma posição de
destaque, viu propícia oportunidade para tornar-se indepen­
dente com os foros de província, o movimento republicano
que explodira no Recife em 1817, hostilizando-o, e fervorosa­
mente protestando o seu am or e fidelidade ao rei português
absoluto, que nos trazia jungido ao carro do despotismo, e as­
sim conseguiu os seus intentos, logo naquele mesmo ano, como
vim os.
Rebelara-se a criatura contra o criador, e firmada a sua
emancipação, constituíram-se logo os alagoanos, por incon­
fessáveis juízos, inimigos dos pernambucanos, e passando essa
odiosidade como um triste legado de geração a geração, é ain­
da hoje mantido com as mais exaltadas manifestações hos­
tis. Aquela sua emancipação, porém, fêz então explodir fran­
camente, ostensivamente, tais sentimentos, mas que desde mui­
to se via mas suas tendências francamente manifestadas.
Em 1632 deu-nos Alagoas o mameluco de Porto Calvo,
Domingos Fernandes Calabar, — que, esforçado e atrevido,
temeroso de ser prêso e asperamente castigado por graves fur­
tos feitos à fazenda real, — como escreve um cronista do
tempo, bandeou-se, passando-se para o inimigo holandês, sen-
ANAIS PERNAMBUCANOS 543

do gravíssimos os danos que causara, alé que, caindo prisio­


neiro da nossa genie em 1035, no próprio lugar do seu nasci­
mento, fôra ai mesmo enforcado e esquartejado, tendo então
a patente de m ajor pelos serviços que prestara aos invasores.
A Guerra dos Mascates, que irrompeu em 1710, e que no
seu inicio desfraldara Bernardo Vieira de Melo a bandeira da
nossa independência nacional sob a forma republicana, tendo
assim em campo, de um lado, o partido nacional, pernambu­
cano ou da nobreza de Olinda e çlo outro os portuguêses ou
mascates do Recife, contaram estes em prol da sua causa com
as adesões e auxílios das Alagoas, e foi assim, que oficiando
o governador Sebastião de Castro e Caldas às suas câmaras
municipais, dizendo-lhes, que contava com a lealdade dos po­
vos das Alagoas ao governo na rebelião pernambucana, res­
pondeu-lhe a da vila do Penedo — apresentando os votos de
adesão aos seus atos.
Recusaram receber os capitães-mores nomeados pelo bis­
po D- Manuel Álvares da Costa, que assumira o govêrno com
a fuga de Sebastião de Castro e Caldas, sendo assim legíti­
mo governador da capitania, e segundo as vias de sucessão es­
tabelecidas por ordem régia.
A câmara da vila das Alagoas mandou um barco carre­
gado de mantimentos para socorro da praça do Recife, ocu­
pada pelos mascates e em assédio pelo partido pernambucano,
o que depois continuou a fazer.
O capitão-mor de Porto Calvo, Jose de Barros Pimentel,
auxiliou os mascates com a remessa de gente armada e muni­
ciada e constantemente com a de mantimentos; e quando o
bispo D. Manuel por ali passou em demanda do seu destêrro
decretado por ordem régia, sofreu de José de Barros — os
mais ímpios e sacrílegos desacatos, — segundo um documen­
to da época. Pacificada a capitania com a vitória dos masca­
tes, veio êle ao Recife — receber os seus abraços congratula-
tórios do novo governador, com os quais se retirou para a sua
fazenda muito ufano, — na frase de um escritor do tempo,
parcial dos mascates.
544 F . A. PEREIRA DA COSTA

Enfim, nas perseguições locais, fizeram-se várias prisões,


entre cujas vitimas figuravam o Padre José Mauricio Vander-
lei e o capitão André da Roclia, de Porto Calvo, que remetidos
escoltados para o Recife, foram recolhidos à cadeia de Olinda.
Destacou-se, porém, pelas sus proezas, e vendido aos
mascates por 2:100f000, João da Mola, capitão de um dos re­
gimentos de linha do Recife, — filho de um caldeireiro das
Alagoas, - - que teve as recompensas régias do hábito de Cris­
to, a sua promoção a sargento-mor e depois a mestrc-de-cam-
po.
O generoso movimento político de Pernambuco que ex­
plodiu em 1817, de um caráter acenfuadamento emancipacio-
nisla, se encontrou uma tímida e fraca adesão na sua comar­
ca das Alagoas, ao seu rompimento, veio depois uma geral
insurreição, e daí tôda a sorte de serviços prestados à causa
realista de encontro à nossa emancipação politica proclamada
pelos intemeratos patriotas pernambucanos.
Aos rumores populares de revolução, pediu logo a câma­
ra de Maceió ao ouvidor-geral da comarca providências a res­
peito, e então mandou èle abrir listas de contribuição pecu­
niária para as despesas da reação e adjudicar ao estado — o
espolicio do cabra Soares, espião dos sediciosos, — morto pela
guarnição do presídio militar da Pariqueira; proclamando-se
a comarca desligada da sua metrópole pernambucana por con-
siderá-la rebelde, organizou um governo provisório, unindo-se
ao da Rabia, e em seguida reunindo as suas forças de Maceió
e Porto de Pedras m archaram contra Pernambuco. Então já
havia a câmara de Maceió oficiado a el-rei protestando-lhe
fidelidade, e dado contas ao govêrno interino dos seus servi­
ços prestados a favor do regimen colonial.
Desencadeou-se então a mais ferrenha perseguição sôbre
todos aqueles chamados patriotas, isto é, adeptos à causa per­
nambucana, sem se respeitar mesmo a homens notáveis pela
sua posição e prestígio, e que, insultados, injuriados, algema­
dos, eram logo enviados à Bahia; e a um desses, assassinaram
mesmo de caminho, e esquartejaram o cadáver!
AXAIS PERNAMBUCANOS 545

Quando o marechal Joaquim de Melo Leite Cogominho


de Lacerda chegou ao Penedo à frente da tropa expedicionária
da Bahia, em marcha para o Recife, foi festivamente recebido
c fornecendo a câmara os provimentos a toda a sua gente,
durante o tempo que ali permaneceu-
Incorporados às tropas baianas, marcharam do Penedo
dois regimentos milicianos da guarnição da vila, com um
efetivo de 1.251 praças e mais os caboclos arregimentados da
vila da Atalaia; e tão entusiasmada a gente daqueles dois re­
gimentos pela causa da realeza que ia defender, que, como a
arras dos seus sentimentos de fidelidde ao soberano, — o me­
lhor dos reis, — generosa c patrioticamente abriu mão das
suas vantagens militares.
Foi essa gente alagoana, a primeira do exército realista
que na sua marcha teve de patentear o seu denôdo, atacando
um grupo de patriotas chefiado por Domingos José Martins.
Vendo-se desfilar os caboclos da Atalaia, da mata cm que es­
tavam emboscados, atiraram-sc sôbre êle e encarniçados, na
frase de Muniz Tavares, perseguiram a caça, não poupavam
a vida dos que tinham o infortúnio de cair-lhes nas mãos; o
filho do General Paula (Francisco de Paula Cavalcanti de Al­
buquerque, — o grande, o nobre, o ilustríssimo Suassuna.) —-
jovem de grandes esperanças, caiu varado por um tiro e as­
sim morto, foi mutilado por aqueles selvagens, « o Padre
Dias Martins, também contemporâneo, acrescenta, que aque­
les canibais profanaram-lhe o corpo, depois de morto, sendo
achado despido, com o pênis cortado e metido na bôea ! ! !
Por sua vez uma companhia de mulatos milicianos do
Penedo, so bo comando do capitão Antônio dos Santos, como
também escreve Muniz Tavares, continuando a caça dos re­
publicanos daquele desordenado grupo, descobriu em uma ca­
bana o infeliz Domingos José Martins, o Padre Souto, e dois
cunhados do Morgado do Cabo, o capitão-mor Francisco Pais
Barreto, fizeram-lhes a mercê da vida, mas não dos tormen­
tos; garrotados e escarnecidos, foram levados à presença do
marechal Cogominho de Lacerda, que os tratou com bondade
516 F . A. PEREIRA DA COSTA

e os fêz recolher a bordo de uma das embarcações que blo­


queavam o pôrto do Recife.
As subscrições gerais abertas na então comarca pernam­
bucana das Alagoas, — para auxílio à restauração do domínio
português em Pernambuco, — deram vantajosos resultados;
e da lista das pessoas da vila de Maceió, que voluntariamente
concorreu, consta que era destinado à sustentação da guerra
contra Pernambuco.
Ao regresso das tropas alagoanas — cobertas de louros
pelo feliz resultado da expedição, — celebraram-sc festas so­
lenes, houve iluminação geral e Te-Deum celebrado nas igre­
jas matrizes das paróquias da comarca em ação de graças —
pela restauração da monarquia em Pernambuco, — a cujas
solenidades, com os aparatos militares de guardas de honra,
compareceram as câmaras do senado ineorporadamente c as
autoridades locais.
Derramou-se então a cornucopia das graças régias em re­
compensa dos serviços prestados pelos honrados e fiéis ala­
goanos em prol da manutenção do regimen colonial e da mo­
narquia absoluta que oprimia e explorava o Brasil, e assim
houve promoção, condecorações honoríficas e nomeações pa­
ia cargos públicos- De tais remunerações podemos mencio­
nar as que recebeu o ouvidor da comarca, Dr. Antônio José
Ferreira Batalha, constantes da sua promoção ao cargo de
desembargador e da conferência da comenda da ordem de
Cristo; da outorgada a Antônio Luis Dantas de Barros Leite,
depois desembargador e senador do império que acompanhan­
do a seu pai José Gomes Ribeiro, coronel de milícias da vila do
Penedo na expedição contra Pernambuco, ganhou por seus
serviços a venera da ordem de Cristo; e da que foi conferida
ao Padre Antônio Gomes Coelho, vigário das Alagoas, êsse
mesmo, que à notícia do rompimento da revolução em Per­
nambuco, entoou hinos ao Altíssimo em ação de graças pela
Liberdade da Pátria no Te-Deum que celebrou na sua igreja
matriz, o qual leve a dignidade de cônego da catedral de Olin­
da, com o aumento de mais lOOfOOO na respectiva côngrua.
ANAIS PERNAMBUCANOS 547

Enfim, às súplicas do povo por intermédio das câmaras


do senado e dc várias pessoas notáveis, e querendo assim el-
rei — “pôr os habitantes da comarca das Alagoas ao abrigo
dos ódios e opressões pernambucanas, houve por bem desli­
gá-la da sua antiga metrópole, constituindo a capitania inde­
pendente”, como vimos, mas por que prêço?
Pela apostasia da fé republicana; pelo crime de lesa-pá-
tria, abafando o grito uníssono das suas liberdades e da sua
emancipação política, para voltar ao despótico regimen colo­
nial, sob uma velha monarquia corrompida e absoluta, fraca e
de importância secundária, preferindo os seus habitantes o
qualificativo nobilissimo e altivo de cidadão pelo humilhante
de vassalos e súditos de el rei nosso senhor; pelas delações e
pelos mais cruéis martírios infligidos aos infelizes patriotas
republicanos; pelos seus protestos de amor e fidelidade ao me­
lhor dos reis, significados pelo povo por intermédio das muni­
cipalidades; enfim, segundo o juízo da posteridade pela voz
da história. Em conseqüência dos serviços prestados pela co­
marca contra a revolução democrática, que em 1817 rebenta­
ra na cidade do Recife. (J. M. Filgueira de Melo); Em virtu­
de dos serviços prestados à realeza pelos seus habitantes na
ocasião da revolução pernambucana de 1817 (F. A. de Var-
hagen, Visconde Pôrto Seguro) ; Em paga da sua testemunhada
lealdade monárquica (M. de Oliveira Lima) ; e para não ir­
mos muito longe, o que escreve Cândido Mendes de Almeida
e repetido por A. Moreira Pinto: Como galardão da lealdade
com que se houveram os alagoanos na revolução de 1817 em
Pernambuco.

Vulgarizado o ato de 16 de setembro da régia munificèn-


cia, apressou-se logo a câmara das Alagoas em dirigir-se a el-
rei o Senhor D- João VI, em nome dos habitantes da nova
capitania, agradecendo a S. Majestade — a grande mercê que
lhes havia feito; — e para que tão memorável data, que sinte­
tiza a fé e a lealdade monárquica do alagoano, não ficasse
548 F . A. PEREIRA DA COSTA

desconhecida e sem a sua devida comemoração festiva, a As­


sembléia Legislativa Provincial das Alagoas, por uma lei de­
cretada a 30 de abril de 1870, sob o número 515, declarou o
dia 16 de setembro dia de festa provincial- E assim se fazia
no tempo do império, como se faz boje em pleno regimen re­
publicano, c no qual, no ano da graça de 1917, foi estrondo-
samente celebrado o centenário de tão glorioso fato.
Mais ainda, fiel Alagoas às suas tradições realistas, em 1821,
no terceiro ano da independência, segundo o calendário impe­
rial, acolheu na Barra Grande os fugitivos imperialistas de
Pernambuco, ao triunfante movimento da Confederação do
Equador, e eficazmente auxiliando-os; mandou o seu governo
levantar baterias cm diversos pontos limítrofes das duas pro­
víncias, principalmentc naquele da Barra Grande, fortemente
artilhada e com uma guarnição dc 480 praças; e abriu cam­
panha, e liouve combates em diversos pontos, até que se deu a
dispersão dos influentes do partido Carvalhista, assim chama­
do do nome do presidente da nossa Confederação, Manuel de
Carvalho Pais de Andrade. E nesse patriótico empenho se
manteve a fidelíssima província, até que desembarcou em
Maceió a expedição de tropas imperias sob o comando do gene­
ral Francisco de Lima e Silva, e partia para a Barra Grande
e dali para Pernambuco, acompanhando-o então os imperia­
listas refugiados, com o seu cliefe Francisco Pais Barreto, mor-
gado do Cabo, c depois Marquês do Becife.
Tal foi o papel político das Alagoas, com relação a Per­
nambuco, como comarca sua, que foi, e depois como província
separada, distinta; entretanto, sem que nos pese, sem que nos
preocupe, sem que liguemos importância alguma, é o alagoa­
no inimigo do pernambucano, a quem vota um ódio mortal!

OUTUBBO 15 — O governador mis do Rêgo Barreto, em


ofício desta data dirigido ao comand nte da ilha de Fernando
de Noronha, trata dc uma nova organização do estabelecimen­
to, criando-se um núcleo colonial e um serviço regular de pes­
AXAIS PERNAMBUCANOS 549

ca; e Iralantlo lambem do assunto em ofício ao ministro To­


más Antônio de Vila Nova Portugal, escreve:
“A Ilha de Fernando de Noronha é com efeito um ponto
importante na costa do Brasil, ou se o considere militarmen­
te, ou em relação ao comércio. No tempo de guerra, apode-
rando-sc dela, qualquer nação estrangeira pode interceptar o
nosso comércio, e tentar expedições contra êste continente: em
tempo dc paz seria mn interposto paia especulações de con­
trabando-

“A guarnição que para ali está em costume mandar-se,


sendo composta de pequena porção de tropa paga, e de paisa­
nos que se vão corrigir de seus crimes, não pode merecer con­
fiança, porque vivem desgostosos e privados de quase todos os
cômodos da vida, o que se conheceu muito bem quando os in­
surgentes mandaram abandonar aquele presídio, mostrando
todos a maior satisfação só porque se lhes oferecia ocasião de
retirar-se, sem refletirem no que faziam e no crime que co­
metiam .

“Povoada pois a ilha de casais, cvitam-sc todos èstes in­


convenientes; ganharão èlcs amor à propriedade, ao país natal
e às comodidades que cada um pode achar no modo de vida
a que se aplicar. A agricultura não produzirá ali grandes re­
sultados, porque ainda que o terreno seja muito fértil, é su­
jeito a secas que muitas vézes malogram os trabalhos do agri­
cultor; mas a pesca pode produzir grandes vantagens, e será
sem dúvida um importante ramo do comércio, que dirigindo-se
aos diferentes portos do Brasil servirá para suprir e remediar
as faltas que as mesmas sêcas ocasionarem” .

Em 26 de abril de 1819 expediu o mesmo governador Luís


do Rêgo umas Instruções para o Governador de Fernando de
Noronha, das quais c< nsignamos estes artigos:

VIII. Será um dos seus primeiros cuidados, adiantar a


plantação da mandioca, para o que levará nesta ocasião al-
550 F . A. PEREIRA DA COSTA

guma ram a ou nianiva, para ajudar com ela a que já lá exis­


te; e do mesmo modo adiantará quanto lhe fòr possível, a
propagação dc plantas de tôdas as espécies, e as que mais úteis
lhe parecerem.

IX. Sendo a Ilha de Fernando capaz pela sua extensão


de manter bastantes animais domésticos, deve também em­
pregar os seus dcsvelos em fazer prosperar as raças mais úteis,
para o que pedirá casais daqueles que não tiver.

X. A pesca é um dos estabelecimentos que mais podem


fazer prosperar a Ilha de Fernando, pela abundância e ótima
qualidade de peixe que demanda aquelas praias, e muito par­
ticularmente pela proximidade em que fica do baixo do mes­
mo nome, que ainda é mais abundante, e que é capaz como
todos os baixos ém tais circunstâncias de fazer a riqueza de
grandes sociedades- E’ pois sôbre êste objeto que as suas vis­
tas e projetos devem tomar maior amplitude, para ver se é
possível dar principio a esta empresa de um modo estável e
vantajoso.
Com o intuito de promover e animar a lavoura no presí­
dio, criou o mesmo governador um núcleo dc índios, aos quais
concedeu terras, com pleno direito de propriedade, passagem
e ração por espaço de um ano, oficiando para semelhante fim
aos diretores dos aldeiamentos de Escada e Cimbres em 18
de agosto de 1819 a fim de convidar e remeter, com suas fa­
mílias, aquêles que voluntariamente quisessem se utilizar de
tais vantagens.
Ignoramos as particularidades e resultados colhidos em
semelhante empresa; mas parece-nos, que os 79 índios que
em 1820 existiam na ilha ocupados na agricultura, e 1 0 2 em
1828, foram originários daqueles que eguiram em 1819 para
form ar o núcleo colonial criado por uis do Rêgo.
O aproveitamento dos braços dos índios no serviço agrí­
cola da ilha, vinha já de tempos afastados, como vimos.
AXAIS PERNAMBUCANOS 551

O D. Abade do mosteiro de S- Bento do Rio de Janeiro


oferece ao governo em nome da Congregação beneditina do
Brasil a quantia de 200?000, que foi aceita, para auxílio da
expedição m ilitar que se preparava para — 2 combater a re­
belião de Pernambuco, — que rompera no dia 6 de março de
1817.

Os inimigos políticos dos patriotas comprometidos na re­


volução emancipacionista que explodiu no dia G de março deste
ano, organizam um clube para os perseguir, e do qual encon­
tramos a seguinte notícia inserta em nota no folheto — Pro­
cesso e defesa de Gervásio Pires Ferreira,, prêso na cadeia da
Bahia pelos acontecimentos de Pernambuco em 1817, — im­
presso em Lisboa em 1823, e relativa ao depoimento de Joa­
quim José Vieira (Pág. 31) — lojista da rua do Queimado,
rua que fêz época na história dos processos, pelos seus crimes
e falsos testemunhos:

“O autor primeiro, c criador dêste Club de Mowatcks, foi


Claudino José Carrilho, alma amassada de fel e lama; as suas
sessões eram na loja de Joaquim da Silva Pereira, ou de Za­
carias Maria Bessoni: os membros deste infame conluio, deno­
minado da rua do Queimado, eram Manuel Soares de Sousa,
Bernardo José Carneiro Monteiro, Antônio de Castro Viana,
Antônio Ferreira Moreira, José Antônio de Lemos, Zacarias
Maria Bessoni, José de Melo Trindade, João Borges de Sequei­
ra, Joaquim José Vieira, Antônio de Albuquerque e Melo, e
Claudino José Car rilho : êsses canibais da vida e honra dos
desgraçados pernambucanos organizaram uma associação an­
ti-cristã, na qual se discutiam os tópicos de culpa, que julga­
vam mais apropositados, para perderem seus presumidos ini­
migos, repartia-se a cada um o papel que devia representar,
e as vítimas, que lhe caljia apunhalar: estes são os únicos que se
balançaram a classificar casas polidas e de sociedade em es­
peluncas de conspira dores contra o governo de El-Rei: seus
juramentos mostram a escolhida aliança; quase sempre fin-
552 F . A. PEREIRA DA COSTA

dam a cantiga com o estribilho tie influído, amigo da indepen­


dência, e declamador contra a pessoa e governo de S. Majes­
tade; quase todos são os únicos inventores da incrivel patra-
nha da existência de clubes de conspiração” . — Oração a favor
de José Mariano, pelf) Desembargador Antônio Carlos, a f.
116” .

Aquele clube, como escreve Gervásio Pires Ferreira, na


sua citada Defesa, com algumas mudanças de figuras, ressus­
citou nos fins do governo de I.uis do Rêgo, em 1821, concor­
rendo para as desgraças que então flagelavam a província, pe­
las calúnias irrogadas contia os seus naturais, a junta do go­
verno que sucedera àquele governador, e que mais eficazmen­
te concorreram para a sua separação de Portugal, mesmo an­
tes da proclamação da independência a 7 de setembro de
1822-

A importante obra, Corografia brasileira, ou relação his-


tórico-geográfica do reino do Brasil, em tlois volumes, escri­
ta pelo Padre Manuel Aires de Casal, impressa no Rio de Ja­
neiro, neste ano de 1817, tratando da província de Pernam­
buco e das suas riquezas naturais, diz que existem ouro,
amianto, pedras de filtrar água, de cal, de amolar, terras de
côres, m ármore rude de Linen, louzas e tabalingas; e como
refere Macedo na sua corografia, existem o ouro, amianto e
outros metais, faltando ainda indagações científicas que po­
nham acima de conjecturas os tesouros minerais do Estado.
Logo nos primeiros anos de fundação e colonização de
Pernambuco, empenhou-se o govêrno português em explora­
ções tendentes à descoberta de jazidas de ouro e outros me­
tais preciosos no vasto território da nascente colônia.
Efetivamente, já havia o govêrno providenciado sôbre o
assunto, no Forai de Pernambuco, firmado por D. João III,
em 24 de setembro de 1534, em que se lê — que havendo nas
terras da capitania, costa, mares, rios e baías delas qualquer
sorte de pedraria, pérola, aljôfar, ouro, prata, coral, cobre,
ANAIS PERNAMBUCANOS 553

estanho, chumbo ou outra qualquer sorte de metal, pagar-se-


ia à coroa o quinto e dêste teria o donatário da capitania a
sua dízima, como se contem em sua doação, a qual lhe seria
entregue ao tempo da arrecadação do dito quinto pelos ofi­
ciais da coroa. O mesmo se estabeleceu no Forai da Capita­
nia de Itamaracá, lavrado em 6 de outubro daquele mesmo
ano-
Duarte Coelho, o donatário de Pernambuco, dando conta
a D. João III, em carta datada de 27 de abril de 1542, do seu
empenho sôbre a descoberta de metais preciosos, diz, que nun­
ca deixara de indagar da existência de minas de ouro na ca­
pitania, — “mas como estavam elas longe, pelo sertão a den­
tro, e para lá ir-se tinha de passar por très gerações de mui
perversa e bestial gente, e todos contrários uns dos outros, e
portanto com muito perigo e trabalho, para isto lhe parecia
e a tôda a sua gente, que uma tal jornada se não podia fazer
sem que êle fôsse, e bem preparado, a fim de cometer a esta
emprêsa e levá-la avante e não para ir fazer barcosidades co­
mo os do Rio da P ra ta . .. e por isto esperava que Deus lhe
proporcionasse a ocasião em que a devia empreender, para o
que tinha mandado buscar ao reino as coisas para tal emprê­
sa, e alguns homens bons, porque era preciso deixar as coi­
sas em bom pé, e garantidas por lòdas as vias, com especia­
lidade a segurança da capitania, porque os franceses logo que
soubessem da sua ausência fariam algumas das s u a s ...”

Em 1546, dirigiu-se de novo o dontário ao rei, sem dúvi­


da em virtude de novas exigências da metrópole, aguçada pe­
la cobiça que despertavam as notícias da Espanha que nadava
em ouro e prata das prodigiosas minas do Perú e México, e
dizia então: — que cada dia se esquentavam mais os negó­
cios do sertão, isto é, como observa Oliveira Lima, que au­
mentava a probabilidade de se encontrar o almejado, mas
adiando a expedição sob pretextos diversos, nunca quis tro­
car por uma exploração arriscada e problemática os proventos
do seu açúcar, conquai to tardios, e de resto, a idade e as fa­
digas impunhão-lhe tal relutância.. •
554 F . A. PEREIRA DA COSTA

E ’ contudo bem crível que o donatário enviasse alguma


gente a explorar o interior da capitania, deparando-se por es­
sa ocasião a Paulo Afonso, quando subia o rio S. Francisco,
a formosa e célebre cachoeira que traz o seu nome. Se de
semelhante expedição, destinada mais que tudo a inquirir do
valor geral da grande doação régia, resultasse a descoberta de
minas, tanto melhor: Duarte Coelho não desdenharia segura­
mente .
E ao que êle fugia era trocar o certo pelo incerto, desor­
ganizando, como outros, o desenvolvimento regular da terra
e malbaratando o dinheiro em sucessivas explorações aventu-
rosas. Já o filho Duarte, educado longe tio feudo, pouco afei­
to a acariciar-lhe o lento germinar, falto de experiência pelo
verdor dos anos, sonhou embarcar em tais pretensões e duas
vêzes, ao voltar de Pernambuco, segundo conta Gabriel Soa­
res, ocupou o rei com as suas quimeras, mas — desconcertou-
as com S.A . pelo não fartar das honras que pedia-
Entretanto, no governo dêsse mesmo donatário, Duarte
de Albuquerque, fizeram-se algumas explorações, sem dúvi­
da infrutíferas, de uma das quais, deixou-nos Fr- Vicente do
Salvador notícia, dizendo:

— Veio um clérigo a esta capitania, a que vulgarmente


chamavam o Padre do Ouro, por êle se jactar de grande m i­
nistro, e por estas artes era muito estimado de Duarte Coelho
de Albuquerque, que o mandou ao sertão com 30 homens
brancos e 2 0 0 índios, que não quis êle mais, nem lhe eram ne­
cessários; — e sem revelar o resultado de semelhante explo­
ração, a não ser a grande presa de índios que se fêz, conclui:
— que o Padre do Ouro foi prèso em um navio para o reino,
o qual arribou às ilhas; donde desapareceu uma noite sem
mais saber-se dêle.
Grandes dificuldades, porém, encontravam os explorado­
res em suas pesquisas. Os nossos índios, ao contrário dos au­
tóctones do México e do Peru, não conheciam o uso dos me­
tais, e portanto, ignoravam o seu vai r e aplicações; e quan­
do muito, já industriados pelos portugueses, poder-lhes-ia mi-
ANAIS PERNAMBUCANOS 555

nístrar vagas informações das suas jazidas, errando por lon­


gínquas paragens, rompendo florestas virgens, e caminhando
sempre ao acaso, cm busca do desconhecido.
Foi então, com o conhecimento dos metais, quando os
viram entre os europeus, que lhes deram nomes em sua pró­
pria lingua, cujo radical tiraram da palavra ita, pedra, e dai
chamarem ao ouro Itajubá, que quer dizer, pedra amarela; à
prata, Itatinga, pedra branca; ao cobre, Itajubarana, pedra de
amarelo falso; e ao ferro, Itaúna, pedra preta.
Dos nossos produtos minerais apenas se utilizavam os
índios das argilas para o fabrico de artefactos cerâmicos, do
sílex e de outras pedras com que faziam os seus machados,
cunhas, objetos cortantes e outros vários, quer de uso domés­
tico, quer para as suas armas e seu próprio adorno pessoal,
em que se notam os cristais e algumas pedras de cores; entre
as quais uma verde, a nefrite, muito apreciada por êles, e ain­
da hoje pelos colecionadores de artefatos indígenas.

Neste ano o algodão de Pernambuco, pela sua excelente


qualidade, atingiu a elevado preço nos mercados estrangeiros,
dando assim os melhores lucros ao lavrador, vantagem esta
manifestada logo no comêço da sua exportação pelos anos de
1778, mas que depois arrefeceu pelos inconfessáveis processos
de ganância, que por fim, reprimidos, se restabeleceu assim o
crédito e a cotação do gênero.
Efetivamente, como encontramos, anteriormente ao ano
de 1800, era o algodão de Pernambuco o mais estimado nas
fábricas de Inglaterra, não só pela sua bela côr e finura de
fios, como pela sua consistência e brilho, apresentando assim
uma aproximada aparência de sêda; mas depois foi o algodão
desta procedência desacreditando-se nos mercados europeus
pelo mau preparo que lhe davam os produtores e exportado­
res, misturando as diversas qualidades, até mesmo envolvendo
o algodão de espécie inferior, danificado mesmo, com o de su­
perior qualidade, visando assim lucros superiores, sem calcu­
larem no conseqüente depreciainento em que cairia tão impor-
556 F . A. PEREIRA DA COSTA

tante gênero do nosso comércio de importação e no entorpeci­


mento da cultura da preciosa planta-
A zona algodoeira de Pernambuco começa no município
de Quipapá, de terras próprias à produção, fornecendo o seu
algodão uma fibra de muito regular qualidade, mas cultivado
somente nas regiões do norte, uma vez que as do sul, procu­
rando as confrontações com o vizinho Estado das Alagoas,
são ocupadas com o plantio da cana-de-açúcar e cereais. E ’
também assim o município de Canhotinho.

O de Garanhuns, apesar de se prestar com vantagem ao


cultivo do algodão, pelas propriedades de clima e terras, e dai
oferecendo um produto de primeira qualidade, opta porém
pela cultura do fumo e do café, particularmente, de vanta­
josas condições; e correndo ao sul, o município de Correntes,
que se avantaja, nas zonas do norte e do oeste, no cultivo da
malvácea, pela sua abundante produção, fornecendo uma fi­
bra tão reputada como a da zona sertaneja, e assim garanti-
dora de grandes vantagens, é também a sua cultura descurada
pela preferência das do café e cereais.
A sudoeste de Garanhuns e costa de Correntes, campeia o
município de Bom Conselho, onde a cultura é muito animada,
fornecendo um produto de iboa qualidade, mas restrita às
regiões do norte, unia vez que as do sul, caracterizadas por
extensos e fertilíssimos brejais, é tôda ocupada pelas da cana-
de-açúcar e do café, em vantajosas condições.
Daí por diante, até o alto sertão, com os seus municípios
ribeirinhos do S. Francisco, tôda essa vastíssima zona é ex­
clusivamente algodoeira, de avantajada e abundante produ­
ção, e de tão superior qualidade o seu produto, que o nosso
algodão sertanejo é considerado o melhor do mundo, —
nos mercados estrangeiros, pelos particulares característicos
das fibras, sem competência em alvura, extensão, espessura e
resistência.

O município de Triunfo, de uma prodigiosa uberdade,


magnífico clima e de uma altitude elevadíssima, superior,
ANAIS PERNAMBUCANOS 557

tem uma cultura que não se avantaja pelos danos causados


pela baixa temperatura, que em certas épocas desce mesmo
a 1 2 graus, e assim mais apropriado às do café e da cana-de-
açúcar, nomeadamente, que ocupam, por assim dizer, tòda a
sua extensão territorial- Mas nos municípios circunvizinhos
de Flôrcs, Ingàzeira e Alagoa de Baixo, é exclusiva, animada
e vantajosa a cultura do algodão, proporcionando um produto
de muito boa qualidade.
Em rumo do nascente, nota-se Pesqueira, exclusivamente
algodoeira, cuja produção é abundante e de superior quali­
dade, cliegando assim até a terra do Acaí, em Poções, mas
com exclusão da de Ororobá, ou Cimbres, peculiar a outros gê­
neros de cultura, e preferenlemente as do café e cana-de-açú­
car.

Ao noroeste de Pesqueira, jaz o município do Brejo, on­


de a malvácea é cultivada com excelentes resultados e dando
um belo produto, com exceção, porém, de algumas localida­
des, como Jurem a e a serra'do Araçá, ao nordeste da vila de
Belo Jardim, nomeadamente, que, apesar de vantajosa ao seu
cultivo, prefere o de outros ramos.
Volvendo então às regiões do norte do Estado, avanta-
jam-se os municípios do Limoeiro e Bom Jardim, exclusiva­
mente algodoeiros, de abundante cultura e de um superior
produto; e com uma vantagem secundária, os de Glória de
Goitá, Vitória, Nazaré e Timbaúba, acaso pela sua constituição
geológica menos propicia a uma desenvolvida e compensado-
ra cultura.
Finalmente, chegando à zona central do Estado, desta­
cam-se os municípios de Gravata, Bezerros e Caruarú, onde
lavra a cultura em solo de vantajosas propriedades ao seu
desenvolvimento, e daí a resultante qualidade superior do pro­
duto, e a compensadora sorte da sua qualificação no mercado
do Recife.
Convém excepcionar, porém, daqueles três municípios, as
regiões montanhosas, em cujas colinas predomina uma poli-
cultura de escolhidas espécies de plantas.
55 8 F . A. PEREIRA DA COSTA

De tôdas as zonas mencionadas, a que mais se avantaja


à cultura do algodoeiro, é, porém, a sertaneja — o pampa
do norte, a região dos cactus, das bromeliâceas e dos candiei-
ros, — de solo sêco e fértil, clima quente ou temperado, asse­
gurando, assim, um produto que não encontra igual nas re­
giões mundiais, e dc uma proverbial reputação nos mercados
consumidores- E’ esta zona a mais extensa e considerável em
expansões territorias, uma vez que bem se pode fixar o seu
ponto de partida, caminhando leste a fora da margem direi­
ta do rio Moxotó, ou do Pajeú, que corre mais acima, até as
serras Dois Irmãos e Vermelha, limítrofes do Piauí, e em sua
largura, com as serranias que constituem a linha divisória com
os Estados da Paraíba e do Ceará, até a margem esquerda do
S. Francisco; e seguindo do Pau-da-História, pouco acima de
Petrolina, à chamada Linha-imaginária, com a Bahia, e as­
sim limitada por èste lado, por aquela Linha, até que os nos­
sos representantes no Congresso Nacional se lembrem de rei­
vindicar o vasto território que corre além, e que constituía a
nossa antiga Comarca do Rio de S. Francisco — provisoria­
mente incorporada à província da Bahia, — por Decreto de
15 de outubro de 1827, segundo a sua própria expressão!!
Apesar da vantajosa cultura do algodoeiro na zona serta­
neja, onde o arbusto atinge à maior altura, é mais prolífico,
atravessa um estágio de quatorze anos de vida, e fornece o
melhor produto conhecido; apesar de tudo isto, c o seu culti­
vo inferior ao das outras zonas, devido aos pesados e difíceis
meios de transporte a vencer em longas travessias, dos seus
campos de lavoura até chegar às estações terminais dos cami­
nhos de ferro do norte, sul e central, e daí então ser trans­
portado ao Recife. Antes disto, era todo o algodão conduzido
em costas de animais, vencendo longínquas distâncias, que,
em 1817, atingiam já de 100 a 150 léguas por impérvios ca­
minhos, levando os seus comboios de condução até cinco ou
seis semanas de viagem como já vimos .
Em geral a plantação do algodão, entre nós, começa em
janeiro e a colheita em julho, mas variando em algumas zo­
nas, como Bom Jardim, por exemplo, que começa em mar-
ANAIS PERNAMBUCANOS 559

ço, floresce em junho e julho, sendo colhido em setembro,


em três colheitas, com intervalo de 20 a 25 dias.
De outros dados c pormenores sôbre a cultura do algo-
doeiro em Pernambuco, e particularmente do indígena, em
todo o país, a partir das suas primeiras explorações no alvo­
recer do século XVI, ocupamo-nos no nosso estudo — O al­
godão em Pernambuco vista histórico-retrospectiva, — de pu­
blicação oficial, em 1916; c bem assim indicamos, para um es­
tudo mais desenvolvido a respeito, como dados subsidiários,
o estudo: O algodão e a sua indústria em Pernambuco. Apre­
sentado na Conferência Algodoeiro do Rio de Janeiro em ju ­
nho de 1916 por 'Apolônio Peres, representante da lavoura de
Pernambuco •

Neste ano teve comêço a construção de uma estrada para


ligar o Recife à Olinda, passando pela povoação de Santo
Amaro das Salinas, o que assim deu inicio à futura Estrada
do Norte, que parte do extremo da rua do Hospício, no bair­
ro da Boa Vista, passa por Olinda, Igarassu, Pasmado e Goia­
na, e prosseguindo, chega à cidade de Itambé, limite dêste Es­
tado com o da Paraíba, com um percurso de 97 quilômetros-
Desta estrada parte uma outra, do pôrto ou povoação de Ita-
pissuma, em Igarassu, em direção á cidade de Nazaré, passan­
do por Pasmado, com 21.806 metros, e levando-se assim a
extensão das estradas do Norte a 118.806 metros.
A parte que decorre do Recife a Olinda, e constitui o pri­
meiro trecho da estrada do norte, foi mandada construir em
1817 pelo governador Luís do Rêgo, com o fim de encurtar o
caminho que se fazia pela estrada velha, que partia da Sole­
dade, seguia por João de Barros e Belém, atravessava o Cam­
po Grande e o Salgadinho, entrava nos Arrombados, hoje
Duarte Coelho, e ia sair em Santa Teresa, em direção ao Va-
radouro. Cumpre observar, porém, que anteriormente a esta
estrada houve uma ov tra, que terminava à margem direita
de um braço do rio Beberibe, em frente à rua da Boa Hora,
onde havia uma ponte, cujo local, em documentos antigos, se
560 F . A. PEREIRA DA COSTA

designa com p nome de Ponte Velha, eslrada esta que já exis­


tia em 1630, com a denominação de Estrada da Vila, como
se vê de algumas cartas contemporâneas. Ficou portanto,
com a nova viação, em linha rela. reduzido a metade o per­
curso do Recife a Olinda.
A construção da estrada começou do lugar então chama­
do Jerusalém, hoje a bela rua do Hospício, atravessando San­
to Amaro das Salinas, e seguindo até encontrar a estrada ve­
lha, junto à Santa Teresa, e daí ao Piza e Varadouro, com
uma extensão de 2.360 braças, em linha reta, desde o ponto
de partida até ao Piza.
Deu-se à estrada a largura uniforme de 10 palmos, e fèz-
se um atêrro até a Campina de Santo Amaro, com grande
trabalho, dificuldade e algum dispèndio, por ser lodo o terre­
no muito baixo, e quase completamente alagado em lóda essa
extensão. Este atêrro, que constitui um bom trecho da estra­
da, como diz o engenheiro Firmino Herculano de Morais An­
cora, em oficio dirigido ao govêrno em 28 de julho de 1837,
oferecia a vantagem de vedar a entrada da maré na campina
do mesmo nome, que deixou de ficar alagada, e para dar saí­
da às águas pelo inverno; fizeram-se dois aquedutos de pedra
de cantaria, com portas, que não só obslavam a entrada da
maré, como facilitavam a saida das águas pluviais-
O govêrno quase nada contribuiu para a construção da
estrada. Ela foi feita com o serviço obrigatório de homens li­
vres e escravos, com o concurso da Câmara de Olinda, e por
calcêtas.
Em princípios de 1821 estavam já construídas 817 braças
de estrada, com a largura de 40 palmos, além de mais 130
com 1 0 palmos, importando o que se despendeu com todo ês-
se trabalho, apenas em 2:722$253, inclusive a construção dos
aquedutos; notando-se a circunstância de compreender o tra­
balho executado a parte mais difícil e custosa que se tinha
de vencer. Dando-se porém, no mesmo ano, a retirada de
Luís do Rêgo do govêrno, ficou a emprêsa abandonada, e de­
pois quase que totalmente perdido o que se havia feito, pela
ANAIS PERNAMBUCANOS 561

ação constante das marés e das águas pluviais; c nesse estado


permaneceu, até que anos decorridos resolveu o presidente da
província, Francisco do Rêgo Barros, reparar a parte estraga­
da, e concluir a estrada até a cidade de Olinda-
Em 1841 começou-se a trabalhar nos reparos da estrada,
que ficaram concluidos no ano seguinte, tendo-se gasto . . . .
1 0 :0 0 0 ? 0 0 0 ; e imediatamente deu-se comêço ao seu prolonga­
mento até Olinda, com a extensão de 2.134 braças até a igre­
ja de Santa Teresa, com o que se despendeu a quantia de
39:996^880. Concluido êste trecho da estrada em 1844, fica­
ram paradas as obras até 1854, quando foi feito o seu prolon­
gamento até a ponte do Varadouro .
Em 1858 deu-se comêço à construção do trecho compre­
endido entre Olinda e Igarassu, que ficou concluído em 1861,
e posteriormente foram os trabalhos continuando em direção
à Goiana, cujo primeiro lanço ficou concluído em 1866.
Em 1875 já estava feita tôda a estrada até Goiana, cuja
importância atingiu a 177:166^711. O primeiro lanço do pro­
longamento a Itambé, com 4-926 m . arrematado em 1866, e
prosseguindo posteriormente a construção da estrada, ficou
ela concluída em 1875, com a extensão total de 25.888 m .
O ram al de Itapissuma a Nazaré, passando por Igarassu e
Pasmado, foi mandado construir em 1866, e deu-se logo co­
mêço ao primeiro lanço, com 5.450 m ., arrematado por . . . .
30:096Ç000, que ficou concluído em 1868.
Em 1871 chegou a estrada a Pasmado e depois construiu-
se a parte restante até Nazaré, medindo uma extensão total
de 21.806 m .
Tem mais a estrada do Norte um outro ramal, que parte
de Araripe a terminar na cidade de Paudalho. O seu primeiro
lanço foi contratado em 1882, por 29:628f070, c ficou con­
cluído em meados de 1884.
A estrada do Norte com os seus dois ramais de Itapissu­
ma c Araripe, mede, com exclusão desta, uma extensão total
de 118.806 m ., e conta 23 pontes, sendo 9 de ferro e 14 de
madeira. E ’ empedrada até Olinda.
562 F . A. PEREIRA DA COSTA

Neste ano, a força de primeira linha da guarnição da pro­


víncia mantinha-se sem alteração alguma, do que ficou já
consignado em outros artigos, apenas notando-se que os cor­
pos de artilharia e de infantaria da guarnição do Recife eram
comandados por oficiais generais, sendo comandante do pri­
meiro o brigadeiro Manuel Joaquim Barbosa de Castro e do
segundo, o brigadeiro Luís Antônio Salazar Moscoso; e um
esquadrão de cavalaria da guarda do governador. Contava
ainda a guarnição mais trê oficiais generais, que eram: o ma-
rechal-de-campo José Roberto Pereira da Silva, inspetor-geral
dos corpos milicianos; o brigadeiro Gonçalo Marinho de Cas­
tro, inspetor-geral dos regimentos de linha, fortaleza e fortifi­
cações; e o brigadeiro José Peres Campeio, ajudante-de-ordens
do governador e comandante da fortaleza do Brum.
O exército de segunda linha, ou miliciano, da mesma pra­
ça, constava de um Regimento dos Nobres, composto de ho­
mens brancos, de que era comandante o coronel Manuel Cor­
reia de A raújo; do regimento velho de Henriques, comanda­
do pelo m ajor Joaquim Ramos de Almeida; de um outro
também de Henriques, denominado Regimento novo, coman­
dado pelo m ajor Tomás Ferreira Vilanova; e de dois regimen­
tos pardos.
As forças então existentes são assim descritas por um cro­
nista contemporâneo: l.° regimento de infantaria do Recife,
com quase 300 praças, por ter um destacamento de 200 ho­
mens no Pará, desde a conquista de Caiena. 2.° Regimento
de artilharia de Olinda, com quase 600 praças, pela mesma ra­
zão de ter no Pará 200 destacadas. Êstes dois regimentos
foram conservados com o nome de Terços, desde a expulsão
dos holandeses; mas só foram fardados e assim chamados em
1737 pelo governador Henrique Luís. 3.° Regimento de auxi­
liares de cavalaria, criado pelo referido governador, e chama­
do de, José Yaz Salgado, por haver sido o seu primeiro coro­
nel comandante. 4.° Primeiro regimento de negros auxiliares,
chamado Têrço Yelho, com 100 praça: destacadas no Pará.
5.° Primeiro regimento de brancos auxihares, denominado dos
nobres, criado em 1766 pelo governador, conde de Vila Flor.
ANAIS PERNAMBUCANOS 563

6 .° Primeiro regimento de mulatos auxiliares, da mesma cria­


ção do antecedente e com um destacamento de 1 0 0 homens
no Pará. 7.° Segundo regimento de brancos auxiliares, cha­
mado de José Inácio Alves Ferreira, seu primeiro coronel.
8 .° Segundo regimento de mulatos auxiliares, chamado de Luis
Nogueira, com 100 praças destacadas no Pará. 9.° Segundo
regimento de negros auxiliares, chamado O têrço novo, tam­
bém com cem homens destacados no Pará. Estes três últimos
regimentos foram criados pelo governador José César de Me­
nezes em 1774 para marcharem para Santa Catarina.
Xo dia 7 de março do mesmo ano, quando formou tòda
a fòrça militar para render a fortaleza do Brum, onde se re­
fugiara o governador, no dia anterior, quando rompeu a re­
volução republicana, apresentava a cifra de quase 4.000 ho­
mens, de tôdas as cores e uniformes; c quando voltou triun­
fante ao campo do Erário, que recebeu então o nome de
Campo da Honra, e se procedeu à eleição do governo provisó­
rio, saiu eleito governador das armas o capitão de artilharia
Domingos Teotônio Jorge Martins Pessoa.
Por D. do governo provisório de 8 do mesmo mês, foi
criado um general em chefe do exército, e outro de divisão e
regulado o soldo da tropa do seguinte modo:

Sóldo mensal- — General em chefe 300? e de divisão


200Ç000; artilharia — coronel 1008000, tenente-coronel 80$000,
major 708000. capitão 508000, primeiro-tenente 358000 e se­
gundo 30$000; Caçadores — coronel 908000, tenente-coronel
70Ç000, m ajor 608000, capitão 428000, tenente 30$, alferes
248000; Infantaria - - coronel 808, tenente-coronel 658000,
major 508000, capitão. 358000, tenente 258000 e alferes 188-

Soldo diário Artilharia: Sargento 360, furriel 320, ca­


bo 240, e soldado 140. Caçadores: Sargento 320, furripl 240,
cabo 200, e soldado 120. Infantaria: sargento 320, furriel 200,
cabo 160, e soldado 100- Os tambores percebiam uniforme­
mente 160, e os mús.cos 50 réis sôbre o soldo de soldado in­
fante.
561 F . A. PEREIRA DA COSTA

Os cirurgiões e capelães ficaram percebendo o soldo de


capitão ligeiro; os ajudantes, secretários, e quartéis-mestres, o
de tenente da mesma arma, e o tambor-mor o de sargento.
No mesmo dia se fêz a nomeação dos oficiais-generais,
recaindo a de general em chefe do exército no capitão da ar­
tilharia Domingos Teolònio Jorge, e a de divisão no coronel
de milícias, Francisco de Paula Cavalcanti dc Albuquerque.
Além disso, tomou o governo várias providências com
relação ao exército, nomeadamente:

Ordem geral, datada de 10 de março, a quantos tivessem


armas, inclusive os capitães de navios, para que as deposi­
tassem nos arsenais do govêrno.

Decreto de 15, convidando os patriotas a levantar compa­


nhias de cavalaria, prometendo aos seus incorporadores a pa­
tente de capitão-comandante, o direito de criar e prover os
oficiais e inferiores e a preferência nas promoções gerais-

Idem de 25, convertendo em batalhões os dois antigos re­


gimentos de artilharia e infantaria; promovendo a coronel-
comandante do primeiro o capitão José de Barros Lima, e a
m ajor o capitão Antônio José Vitoriano Borges de Almeida:
e a comandante do segundo, o capitão Pedro da Silva Pedro­
sa e a major, o capitão do mesmo regimento Manuel de Aze­
vedo Nascimento,

Idem de 27, criando um batalhão de caçadores de par­


dos, dando-lhe por coronel o capitão de milícias, Francisco
Dornelas Pessoa, e por major o capitão Filipe Alexandre da
Silva Pessoa; um outro de caçadores de pretos, dando-lhe por
coronel o sargento-mor do regimento velho de Ilenriques, Joa­
quim Ramos de Almeida e por major, o sargento-mor do re­
gimento novo de Henriques, Tomás F í ~reira Vilanova; e um
esquadrão de cavalaria, sob o comando de Manuel Silvestre
da Fonseca.
ANAIS PERNAMBUCANOS 565

No mesmo dia foi publicado um bando, convidando vo-


lunlários para completarem os ditos corpos.

Decreto de 28 do mesmo mês, criando um batalhão de


caçadores em Goiana e nomeando seu comandante e incorpo-
rador, o alfcres Ângelo de Barros Falcão, que partiu com 60
praças para cadastro do novo corpo.

Idem de 16 de abril, cominando pena de morte a todo o


patriota desocupado, que não acudisse em assentar praça em
algum dos corpos de linha.

Fm 20 proclama-se a pátria em perigo, e convidam-se os


escravos a assentar praça de voluntários no exército, prome­
teu do-se-lh es a liberdade e o fôro de cidadão, assim como a
indenização a seus senhores.

Para defesa da pátria, criaram-se várias guerrilhas, entre


as quais a do padre Antônio de Souto Maior, e a de frei João
da Conceição Loureiro.

O exército republicano de 1817 chegou a contar um efe­


tivo de umas 1.000 praças de guarnição no Recife e outros
pontos; e no sul da província, para fazer frente ao inimigo,
que marchava da Bahia, uma coluna de 2-600 praças, com
um parque de artilharia.
A tropa inimiga que partira da Bahia com 811 homens
sob o comando do mareehal-de-campo Joaquim de Melo Leite
Cogominho dc Lacerda, elevava-se, quando se enfrentou com
o exército republicano, a 2 . 6 6 í homens, pelas agregações que
fêz em seu percurso por Sergipe e Alagoas, inclusive 170
praças que tomou em Serinhaém, Una e Ipojuca. Recapitu-
lando, o exército inimigo compunha-se de 814 praças da Ba­
hia, de 100 de Sergipe, de Í.5S0 das Alagoas e de 170 de Per­
nambuco! Foi este o e ército realista que entrou triunfante
na vencida Mauricia, já ocupada desde o dia 2 0 de março pe­
la marinhagem da guarnição da esquadra portuguêsa em blo-
566 F . A. PEREIRA DA COSTA

qucio do pòrlo, sob o comando do viec-almirante Rodrigo Jo­


sé Ferreira Lobe.
Do exército republicano, cêrca de 800 praças, restos dos
dois antigos regimentos, foram logo desterradas para Monte­
vidéu, — para recobrarem a honra que haviam perdido em
sua pátria-
Além da tropa mencionada, que veio por terra, expediu-se
sem demora do Rio de Janeiro uma divisão naval, conduzindo
o general Luis do Règo Barreto e uma forte coluna de exército
para consolidar a realeza e exlirpar as raízes da planta re­
publicana. O novo reforço mililar constava de quatro bata­
lhões de 800 praças, sendo um de granadeiros sob o comando
do coronel Augusto Peixoto de Morais Sarmento; um de ca­
çadores comandado pelo tenente-coronel José de Sousa Sam­
paio e dois de fuzileiros comandados pelos tenentes-coronéis
Wilis e Palha. Além destes batalhões veio mais um corpo de
cavalaria sob o comando do coronel Luís Paulino de Oliveira
Pinto da França, parte de um regimento de artilharia coman­
dado pelo tenente-coronel Bulhões e uma companhia de caça­
dores composta dos criados e filhos da criadagem agaloada da
casa real, disciplinada e instruída pelo principe d. Pedro, cin­
co anos depois imperador do Brasil.
A esta força reuniram-se-lhe: três oficiais de engenheiros
que foram o m ajor Francisco José Soares de Andreia, o ca­
pitão Elisiário de Miranda Brito e o primeiro tenente Conra-
do Jacob Niemeyer; e os médicos seguintes: cirurgião-mor de
brigada Manuel Joaquim de Menezes, 2.° cirurgião-mor José
da Cunha Gurgel do Amaral, cirurgião-mor de divisão Manuel
Antônio Hcnriques Tota c quatro ajudantes, o dr. José Eus-
táquio Gomes e o boticário Manuel Gonçalves do Vale.
Assegurada a paz, e consolidada a realeza, imprimiu Luís
do Règo uma tal feição militar no seu governo, que a provín­
cia apresentava um aspecto verdadei-amente marcial, pelo seu
numeroso exército, rigorosa discipli a, exercícios e marchas
militares em pé de guerra para diversos pontos em que se le-
ANAIS PERNAMBUCANOS 567

vantavam acampamentos e simulavam-se batalhas, nas quais,


as três armas em suas evoluções ostentavam tòda sua perí­
cia nas mais difíceis manobras e perfeito manejo de seus ar­
mamentos .
Para melhor satisfazer às necessidades do exército, criou
Luís do Rêgo um Hospital Militar no Recife e uma Tesouraria
das Tropas.

O capitão Roberto Ramos da Silva funda neste ano uma


capela sob a invocação de X .S . das Dores na sua fazenda si­
tuada à margem do rio Pontal, que nasce nas fraldas da ser­
ra de Dois Irmãos e desemboca no rio S. Francisco, entre os
municípios de Petrolina e Roa Vista. Neste seu empenho foi
o capitão Roberto Ramos muito auxiliado por um religioso de
nome Fr- Ângelo, que é naturalmente, o missionário capu­
chinho F r. Ângelo Maurício de Xiza, que desde 1803 andava
em missões pelo alto sertão, terminando os seus dia sem 1821
no aldeiamento da Baixa Verde, hoje Triunfo-
Extinta a fazenda pelos anos de 1851, veio daí um nas­
cente povoado, que progrediu tanto, que em 1808, contava já
umas 80 casas, tomando a sua denominação de Cachoeira do
Roberto do nome do proprietário das suas terras, que originà-
riamente constituíam a fazenda ai situada.. Campeando o
povoado entre os rios do Pontal e o S. Francisco, à margem
da estrada geral que vem do Piauí para a Bahia, atravessando
assim municípios do extremo oeste do estado, ocupa a po-
voação uma vantajosa posição, muito frcqiientada pelos vian-
dantes, que estacionam na localidade, pelos recursos que pro­
porciona, vindo daí o seu desenvolvimento, a sua importância.
Muito habitada, de vida própria e animada pelo seu mo­
vimento comercial, com uma boa feira semanal, de um clima
ameno e agradável e proporcionando excelente e abundante
água potável, com a sua capelinha curada c um cemitério em
conveniente situação, já- teve a povoação o predicamento de
5 68 F1. A. PEREIRA DA COSTA

paróquia com a remoção da sede da do Senhor Bom Jesus da


Igreja Nova, ou Boa Vista, em virtude da Lei Provincial n.
758 de 5 de julho de 1867 e servindo de igreja matriz a sua
capela de N .S . das Dores; e depois, da de Santa Maria Rai­
nha dos Anjos de Petrolina, até que foi transferida para a sua
própria sede pela Lei Provincial n. 921 de 18 de maio
de 1870-

Em fins deste ano chegaram ao Recife uns franceses, que


aportando à Paraíba e julgados suspeitos pelo governo, os re­
metera debaixo de prisão ao governador de Pernambuco o
general Luis do Rêgo.
A vinda desses franceses ao Brasil tinha por fim, segun­
do um plano concertado entre o emissário pernambucano
Antônio Gonçalves da Cruz, o Cabugá e alguns emigrados fran­
ceses ali refugiados, tratar dos meios de libertar o imperador
Napoleão Bonaparte da sua reclusão na ilha de Santa Helena,
cujo plano fracassou pelo malogro da revolução de 6 de
m arço.
O conde Pontecoulant foi o primeiro que chegou ao Bra­
sil. Desembarcou no Rio Grande do Norte, apresentou-se co­
mo médico e botânico, manifestando a intenção de se dedi­
car ao estudo da flora brasileira; mercê destes títulos de sá­
bio improvisado, conseguiu captar a amizade íntima do secre­
tário do governador e, munido dos papéis necessários, diri­
giu-se à Paraíba, a fim de reunir-se aos companheiros de em­
presa .
De fato, ali, juntou-se a Lalapie, Artong e Raulet; o go­
vernador da vizinha província, menos crédulo ou mais zelo­
so do que o seu colega de Natal, fêz logo prender os quatro
estrangeiros e os remeteu para o Recife.
São conhecidas as minúcias do inquérito a que foram
aqui submetidos, as revelações que í zeram sôbre o verdadei­
ro intuito de sua vinda ao Brasil, as-provas que exibiram de
ANAIS PEKNAM BU CAN OS 56 9

não terem vindo conspirar contra o governo do país, a sua


remessa para o Rio de Janeiro e, finalmente, o seu transpor­
te para “fora das fronteiras do reino de Portugal” .
Em Pernambuco encontraram aqueles emissários um de­
dicado e esforçado protetor, o cônsul americano Joseph Ray,
que tão importante e humanitária ação exerceu nos diversos
movimentos revolucionários da era da independência em Per­
nambuco .
La tapie, Artong, Raulet vieram dos Estados Unidos no
brigue Paragon, saltaram na Paraíba, e reunidos a Pontecou-
lanl, acordavam nos seus planos de ação quando foram pre­
sos e enviados a Pernambuco. Examinados os seus papéis e
neles nada se encontrando de comprometedor, mandou Luís
do Rêgo dar-lhes liberdade, recomendando todavia ao ouvidor
do crime e ao ministro da polícia, não os perdesse de vista-
Não era possível esperar mais da benevolência do gover­
nador: corriam então no Recife boatos aterradores de fortes
expedições armadas nos Estados Unidos, no desígnio de reno­
varem a aventura republicana em Pernambuco: o abade Cor­
reia Serra, ministro português em Washington, corroborava
êstes boatos com frequentes avisos, cada qual mais alarmenle.
En trem en tes Latapie solicitava de Luís do Règo uma au­
diência na qual lhe declarava tôda a verdade sòbre o fim da
sua viagem e os projetos de seus amigos. Certificava, que êle
e os outros franceses se achavam em Filadélfia, quando aos Es­
tados Unidos chegaram as notícias da revolução de Pernam­
buco; que José Bonaparte, com quem entrelinha relações, o
induzira a vir a Pernambuco x>ara verificar se o movimento
tinha realmente as proporções apregoadas e informá-lo so­
bre o assunto; que o mesmo Bonaparte, depois de feiias to­
das as recomendações, procurara ensejo de aprestar uma flo-
tilha e fazer evadir de Santa Helena o ex-imperador.
Á vista desta declaração categórica, o governador apres­
sou-se em comunica” ao governo do Rio de Janeiro todo o
negócio, delegando ara êste fim a Latapie e Artong, que se
570 F . A. PEREIRA DA COSTA

dizia habilitado a inform ar a Côrte sôbre tudo o que ocorria


nos Estados Unidos.
Ao mesmo tempo Pontecoulant voltava ao Rio Grande do
Norte, em companhia de Raulet, para ali exercer a medicina.
Não devia durar muito a sua tranqüila residência em
Natal: novas e graves denúncias foram levadas a Luís do Re­
go, coincidindo com a chegada, à Paraíba, de um corsário ar­
mado pelo agente republicano de Pernambuco em Washing­
ton, o famoso Cabugá.
Requisitou então o Desembargador da Alçada, Bernardo
Teixeira, a prisão dos dois franceses. Pontecoulant, graças à
proteção do secretário do governo Inácio Borges, logrou per­
manecer em liberdade; mas, Raulet veio novamente prêso pa­
ra o Recife, sendo recolhido à fortaleza do Brum ; porém,
graças à solicitude e resistência firme do cônsul americano,
logrou finalmente a sua liberdade, muito embora o governa­
dor e o presidente da alçada não cessassem de incriminar a
conduta daquele agente junto ao govêrno central do Rio de
Janeiro, a fim de que fôsse solicitada a sua imediata transfe­
rência .
Do Recife transportou-se Raulet ao Rio de Janeiro, onde
foi informado da decisão do govêrno de expulsá-los, a êle e
aos companheiros, do pais.
Seguiu então para Buenos Aires e alistou-se em uma di­
visão do exército patriótico dos Andes, com a qual marchou
para o Chile, acompanhando a expedição libertadora até Val­
paraiso-
Outras particularidades sôbre o assunto constam da me­
mória Napoleão I no Brasil. Tentativa de evasão do prisionei­
ro de Santa Helena concertada entre os emigrados franceses
nos Estados Unidos e os agentes da revolução pernambucana
de 1817, cujo trabalho da lavra do dr. J- A. Ferreira da Cos­
ta, vem publicado na Revista do Instituto Arqueológico e Geo­
gráfico Pernambucano, n. 57, de 1903.
ANAIS PERNAMBUCANOS 571

Da vida de Raulet ocupa-se particularmente o general


Miller nas suas Memórias, mas dos seus outros companheiros
de aventuras no Brasil nada consta.

Parte uma expedição militar para a conquista de Monte­


vidéu, composta de cerca de 800 homens, resto dos dois an­
tigos regimentos de Pernambuco. A expedição embarcou ines­
perada e desprevenidamente no dia 1 0 de julho após o suplí­
cio dos patriotas Domingos Teotônio Jorge, José de Barros Li­
ma e Padre Pedro de Sousa Tenório.
A tropa expedicionária formou desarmada e partiu ao
som das suas músicas para o lugar do suplicio, e foi postada
em volta do patíbulo, ficando cercada de um parque de arti­
lharia com morrões acesos, e pela cavalaria da Bahia; no cam­
po formava um exército de 4.000 homens.
Concluído o ato das execuções ao som do hino realista,
cantado por tòda a tropa, decepadas e arrastadas as veneran-
das vitimas à cauda de cavalos, avançou pelo meio do círculo
dos desarmados e horrorizados soldados, o coronel Luís Pau­
lino, comandante do dia e de tôda a horrível tragédia, como
refere o Padre Dias Martins, e proclamou-lhes cm substân­
cia: “Soldados, vós perdestes a vossa honra, deixando-vos se­
duzir por èsses traidores infames, que acabam de ser puni­
dos. Vós com èles atraiçoastes um rei que jurastes defender
e assassinastes um povo que devíeis conservar, mas a pieda­
de do soberano ainda quer abrir-vos a porta do arrependimen­
to: ide embarcar: ide a Montevidéu recobrar a honra que per­
destes em vossa pátria: ide, e voltai cheios de glória, para
que vossa Pátria se esqueça do passado” .

Os soldados, repassados de horror pelo sangtiinolento es­


petáculo e gelados pela epentina notícia, refere o mesmo au­
tor, não tiveram tempt nem ânimo para se admirarem; par-
572 F . A. PEREIRA DA COSTA

tiram incontinente: e como mansos cordeiros marcharam por


entre alas e foram embarcar nas lanchas que estavam espe­
rando, tomaram os navios e seguiram para o seu destino-
Depois de cinco anos de martírio desses infelizes expatria­
dos e errantes pelas margens do Prata c do Paraguai, o de­
putado pernambucano Pedro de Araújo Lima propõe no Con­
gresso de Lisboa que se ordenasse o seu regresso, quando ao
mesmo tempo, 856 cidadãos se dirigem à Câmara de Olinda,
em 2 2 de março de 1822, endereçando-lhe um requerimento,
pedindo a sua intervenção para que aquelas vítimas da tira­
nia voltassem ao seio da pátria e da família; e graças ao in­
teresse que ligou aquela Câmara, voltaram no mesmo ano os
poucos que restavam, e foram logo prestar os seus serviços
na campanha libertadora da Bahia, que ainda gemia sob o do­
mínio português.

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