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EDITORA DA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO
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ORGANIZAÇÃO
Flavia Rios
Luiz Augusto Campos
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Rio de Janeiro
2022
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Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É proibida
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expressa da editora.
EdUERJ
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eduerj@uerj.br
Michele Paiva
UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC
Raça & Estado [recurso eletrônico] / Flavia Rios, Luiz Augusto Campos, Raquel
ISBN 978-85-7511-569-5
1. Racismo - Brasil. 2. Estado – Brasil. I. Campos, Luiz Augusto. II. Lima, Raquel
CDU 323.12(81)
Prefácio
Márcia Lima
Introdução
Sobre os autores
Prefácio
Márcia Lima
É com enorme alegria e entusiasmo que apresento o livro Raça & Estado. A
presente obra reúne um conjunto de textos com contribuições cruciais ao campo
de estudo das relações raciais do país que, sem dúvida, é um dos temas de maior
visibilidade intelectual e política no Brasil e no mundo. O momento para sua
publicação não poderia ser mais propício dados os desafios que o país enfrenta no
que concerne ao fortalecimento da democracia.
Não é de hoje que o movimento negro e os principais intelectuais dedicados
ao tema chamam a atenção para a importância do papel do Estado brasileiro na
produção e reprodução das desigualdades raciais do país e têm insistido,
enfaticamente, na necessidade de incluir na pauta governamental o
enfrentamento dessas históricas disparidades. Embora nas duas últimas décadas
essa agenda tenha apresentado avanços históricos, o período mais recente
sinalizou para um grande retrocesso mostrando o quanto as desigualdades raciais
são sensíveis às crises estruturais e às ações ou inações do Estado.
Os capítulos deste livro procuram responder a uma pergunta de pesquisa de
alta relevância intelectual: de que modo podemos observar e analisar o Estado
operando raça em sua forma organizacional, ou seja, em suas normas, ações,
projetos e políticas? Trazendo novas perspectivas e desafios criados pelas
mudanças citadas anteriormente, o livro demonstra como o Estado é um ator
central na produção das narrativas sobre raça.
Organizado em três partes – “Raça e as fronteiras do Estado”, “Estado e as
fronteiras da raça” e “Políticas públicas e raça” – o livro apresenta resultados de
pesquisas de alto nível, produzidas por uma nova geração de pesquisadores que
demonstram a maturidade intelectual desse debate. Ao analisar a relação entre
raça e Estado sob diferentes prismas, agendas e atores, os trabalhos aqui reunidos
avançam em questões centrais das Ciências Sociais contemporâneas.
O livro contribui para o entendimento dos dilemas acerca da participação e
da representação política. Dedica-se a entender como o movimento negro vem
construindo sua relação com o Estado e analisa, com base na percepção de
candidatos negros, sua relação com os partidos políticos, demonstrando como
nosso sistema partidário, elemento importante da nossa democracia, contribui
para as hierarquias raciais na participação e representação política. Além disso,
aborda de forma atual o tema das ações afirmativas, interpretando de forma
qualificada e original os desafios perpetrados por essa agenda dentro do Estado
brasileiro e demonstrando a importância das mudanças institucionais para a
consolidação das políticas públicas. O livro ainda traz uma importante
contribuição para uma das agendas mais desafiadoras do estado democrático de
direito: a institucionalização da violência racial como uma política de estado.
Dessa forma, este livro demonstra que os processos de racialização não são
resultados das recentes políticas públicas de caráter inclusivo, e sim que a temática
racial é constitutiva do Estado brasileiro, tornando-se um tema cada vez mais
central para o fortalecimento da democracia e de suas instituições.
Introdução
Referências
Oliveira, Jane. Brasil, mostra a tua cara: imagens da população brasileira nos censos
demográficos de 1872 a 2000. Rio de janeiro: ENCE, 2003.
Paixão, Marcelo. “La variable color o raza en los censos demográficos brasileños:
historia y estimación reciente de las asimetrías”. Notas de Población, v. 89, p.
187-224, 2009.
Pinto, Costa. O negro no Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1953.
Introdução
Nos últimos anos, tem havido uma ampliação na agenda de pesquisas sobre
movimento negro e Estado no Brasil. Trabalhos recentes (Rios, 2014; Rodrigues,
2020) vêm contribuindo para que pesquisadores brasileiros voltem seu olhar para
a compreensão das interações entre movimento negro e política formal, o que,
segundo Bairros (1996), era uma temática frequentemente esquecida nos estudos
sobre relações raciais no país. Essas pesquisas permitem observar o adensamento
dos processos de aproximação institucional do movimento negro ocorridos após a
promulgação da Constituição de 1988, período a partir do qual aumentou o
interesse governamental em fomentar o debate, consolidar dados estatísticos e
formular políticas voltadas a promover cidadania e ampliar a participação social
de negros.
O presente capítulo visa contribuir para essa agenda de pesquisa ao escrutinar
o ativismo institucional do movimento negro entre o período da
redemocratização e o final do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC). A
literatura especializada revela que o processo de aproximação institucional do
movimento negro com o Estado passou a ocorrer de maneira mais sistemática
durante o governo FHC ( Jaccoud et al., 2009; Rodrigues, 2020). Nesse período,
as metas governamentais eram produzir e disponibilizar dados sobre a situação
socioeconômica e educacional da população negra e consubstanciar a
implantação de políticas valorativas. Apenas após a Conferência de Durban, já no
último ano do governo FHC, algumas propostas mais voltadas para a diminuição
de desigualdades étnico-raciais foram elaboradas (Daflon et al., 2013).
A fim de analisar esse processo de aproximação institucional do movimento
negro durante o governo FHC, este capítulo está dividido em seis seções, para
além desta introdução. Na primeira, analisa-se o processo de rearticulação do
movimento negro no final dos anos 1970. A segunda, terceira e quarta seções
versam sobre a relação entre movimento negro e política formal nos anos 1980,
com especial enfoque à inclusão do debate racial nos partidos e na Assembleia
Nacional Constituinte. Finalmente, a quinta e a sexta seções analisam a
consolidação do movimento negro nos anos 1990 e as mudanças nos contextos
políticos e oportunidades institucionais que influíram em uma maior
permeabilidade estatal às demandas vocalizadas pelo movimento negro durante o
governo FHC.
Não apenas no plano intelectual, mas sobretudo no plano das ações coletivas,
a década de 1970 pode ser considerada um marco fundamental para uma parcela
significativa dos movimentos sociais no Brasil. Houve, naquele período, uma
eclosão de lutas políticas as mais diversas, consonantes com fenômenos
semelhantes no cenário internacional, como os emblemáticos protestos estudantis
de maio de 1968, na França, os movimentos por direitos civis e feministas norte-
americanos, os movimentos de defesa homossexual e ambientalistas, bem como as
lutas por independência em vários países africanos e pelo fim dos regimes
ditatoriais na América Latina.
Pode-se afirmar que há, para usar a terminologia empregada por Snow e
Benford (1992), a formação de um ame alignment entre os interesses vocalizados
por diferentes atores sociais. Isso é particularmente verdadeiro para as então
nascentes organizações do movimento negro que estabeleceram importantes
alianças estratégicas com outros movimentos sociais. Especialmente, com uma
parcela crescente de intelectuais que vinham desafiando, a partir de suas
pesquisas, o discurso estatal oficial sobre democracia racial. A entrada em cena
desses novos personagens, para utilizar a feliz expressão de Eder Sader, impôs uma
nova agenda política ao país e deu início a um processo de longo prazo, de
revolução democrática, molecular, com vistas a mitigar as desigualdades
estruturais, aumentar a cidadania de grandes contingentes populacionais e
redemocratizar a sociedade brasileira (Domingues, 2012).
De acordo com Gonzalez (1984), a reorganização do movimento negro
ocorreu, no Rio de Janeiro, a partir dos encontros para discussão do racismo e do
processo de exclusão dos negros do mercado de trabalho. Patrocinados em grande
medida pelo Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA) da Universidade
Cândido Mendes e organizados pela ativista e historiadora Beatriz Nascimento,
desses encontros nasceram, em 1975 e 1976, o Instituto de Pesquisa das Culturas
Negras (IPCN) e a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (SINBA).
Em outras regiões do país, também emergiram diversas organizações negras.
No Rio Grande do Sul, havia o Grupo Palmares, responsável por propor, em
1971, o dia 20 de novembro, presumível data de morte de Zumbi dos Palmares
em 1695, como Dia Nacional da Consciência Negra. Em São Paulo, surgiram
organizações que pensavam a constituição de um movimento negro com projeção
nacional, com destaque para o Grupo Evolução, criado em Campinas, em 1971,
por ereza Santos e Eduardo Oliveira e Oliveira; o Centro de Cultura e Arte
Negra (Cecan), de 1975; e a Associação Casa de Arte e Cultura Afro-Brasileira
(Acacab), fundada em 1977. Em Salvador, foi criado, em 1974, o bloco afro Ilê
Ayê, que fomentou todo um clima para afirmação do movimento negro na Bahia,
e o Grupo NEGO – Estudos Sobre a Problemática do Negro Brasileiro, de onde
saiu o quadro inicial de ativistas do Movimento Negro Unificado (MNU) do
estado (Gonzalez, 1984; Bairros, 2000; Hanchard, 2001; Guimarães, 2005a).
Além de organizações propriamente vinculadas às questões raciais, ativistas
negros também foram participantes fundamentais de outros grupos, como o
Movimento de Favelas do Rio de Janeiro, os Movimentos de Trabalhadoras
Domésticas em Belo Horizonte e em Salvador, as Associações Comunitárias, as
Comunidades Religiosas Afro-brasileiras, o Movimento Estudantil e as
organizações clandestinas de esquerda.
A criação do MNU em 1978 se deu como reação à discriminação sofrida por
quatro atletas negros no Clube Tietê e à morte de um operário negro, Robson
Silveira da Luz, devido a torturas policiais. O movimento, já no seu ato de criação,
tentava demonstrar como afro-brasileiros haviam sido, ao longo da história do
país, tratados como “outros”, ainda que o discurso oficial de integração harmônica
apontasse para o lado oposto. Lida em 7 de julho de 1978, no primeiro ato
público do MNU nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, a carta aberta
ao povo brasileiro afirmava:
Hoje estamos na rua, numa campanha de denúncia! Uma campanha contra a discriminação racial,
contra a repressão policial, o subemprego e a marginalização. Estamos na rua para denunciar a
qualidade extremamente precária da vida da Comunidade Negra […]. O Movimento Negro Unificado
contra a Discriminação Racial foi criado como um instrumento de luta da Comunidade Negra. Esse
movimento deverá ter como princípio básico o trabalho de denúncia permanente de todos os atos de
discriminação racial, a organização constante da Comunidade para enfrentar qualquer tipo de racismo
[…]. Por essa razão, propomos a criação de CENTROS DE LUTA DO MOVIMENTO NEGRO
UNIFICADO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL nos bairros, nas cidades, nas prisões,
nos terreiros de candomblé, em nossos terreiros de umbanda, no trabalho, nas escolas de samba, nas
igrejas, em todos os lugares onde as pessoas negras vivem: CENTROS DE LUTA que promovam o
debate, a informação, a conscientização e a organização da comunidade negra […]. Convidamos os
setores democráticos da sociedade que nos apoiam a criarem as condições necessárias para uma efetiva
democracia racial (MNU, 1988, p. 18).
[…] os conceitos ‘consciência’ e ‘conscientização’ passam a ocupar, desde a fundação do MNU, lugar
decisivo na formulação das estratégias do movimento. Trata-se da tentativa de esclarecer a população
negra sobre sua posição desvantajosa na sociedade, para, assim, constituir o sujeito político da luta
antirracista. […] Além de consciência e conscientização, os termos cultura negra e identidade negra
constituem peças fundamentais do discurso do MNU. Cultura negra é uma denominação genérica
para todo tipo de manifestação cultural relacionada com as diferentes formas de resistência da
população negra contra o racismo. A ideia de identidade negra, por sua vez, não diz respeito a uma
forma de vida específica ou a alguma referência estética particular. Trata-se de uma alusão a um tipo de
consciência política, qual seja, a assunção pública do antirracismo, que pode assumir naturalmente
formas culturais muito diversas (Costa, 2006, p. 144-145).
O contexto político brasileiro dos anos 1970 e início da década de 1980 era
bastante desfavorável à uma inserção institucional de atores da sociedade civil.
Porém, mesmo diante de profundos obstáculos político-institucionais, já havia
uma clareza por parte das lideranças do movimento negro que, juntamente com
as transformações das relações sociais dentro da sociedade civil, era importante
formular propostas de políticas públicas capazes de atender às especificidades da
população afrodescendente. Tal como fizera Du Bois no início do século XX,
ativistas brasileiros também apontavam para uma disjunção no modo como a
população negra vinha sendo tradicionalmente tratada pela sociedade brasileira.
De um lado, houve, indubitavelmente, um acoplamento da cultura negra ao cerne
da identidade nacional brasileira; de outro, a incorporação sociopolítica de
afrodescendentes foi sempre periférica (Guimarães, 2005b).
Isso posto, os ativistas reconheciam nessa dissociação entre apropriação
simbólica e respostas políticas às demandas da comunidade negra aquilo que
Mouffe (1988) aponta como uma das possibilidades de emergência de
antagonismos dentro da sociedade capitalista. Trata-se da situação em que sujeitos
coletivos construídos em subordinação por uma série de discursos são, ao mesmo
tempo, interpelados enquanto iguais por outros tantos discursos. Essa
interpelação contraditória, em que a subordinação da subjetividade é negada, abre
espaço para sua desconstrução e consequente contestação.
A metáfora do Atlântico Negro, como originalmente proposta por Paul
Gilroy (1993), também representa aqui a possibilidade de contestação dessa
interpelação contraditória na medida em que, enquanto expressão cultural da
diáspora negra, desconstrói noções essencialistas de identidade e cultura, que
passam a ser entendidas como fabricações (recombinações e reinvenções) acerca
da relação entre igualdade e diferença em contextos de disputa de poder,
constituindo-se, portanto, em um “mesmo mutável”. Por essa razão, Gilroy afirma
que diáspora é, ainda, um conceito indispensável para explicar as dinâmicas éticas
e políticas da história dos negros nas sociedades contemporâneas. Diáspora
fornece, segundo o autor, uma ferramenta heurística para se lidar com a
pluralização e a não identificação das identidades negras, pois aponta para a
possibilidade de existência de traços comuns sem, contudo, tomá-los como dados.
Intelectuais e ativistas da diáspora negra materializam o conceito de Atlântico
Negro em duas acepções: por um lado, trata-se das circulações culturais negras
(enquanto recombinações e reinvenções) dentro do triângulo atlântico
(representado pelos continentes americano, africano e europeu); por outro, um
sentido político-normativo, que busca aprofundar os direitos e as possibilidades
de participação de afrodescendentes na esfera pública burguesa (Gilroy, 1993).
Em sua chave político-normativa, o Atlântico Negro fornece os fundamentos para
compreender as aspirações de ativistas do movimento negro por ocupar espaços
de representação e participação e, a partir deles, aprofundar os processos de
democratização.
No Brasil do início dos anos 1980, ocupar espaços de representação implicava
uma atuação ativa junto às organizações sindicais e aos partidos de centro-
esquerda que foram criados ou se reestruturavam à época. Porém, mesmo dentro
dessas organizações, que lutavam juntamente pela democratização do país, o
diálogo sobre a centralidade da questão racial era controverso. Tanto partidos
oposicionistas quanto organizações sindicais tendiam a analisar a questão racial
como sendo secundária em relação à luta de classes ( Jaccoud et al., 2009).
Embora alguns setores do movimento negro mantivessem uma descrença em
relação aos partidos políticos, houve uma clara aproximação com algumas
legendas. Movimento Democrático Brasileiro (MDB), Partido Democrático
Trabalhista (PDT) e Partido dos Trabalhadores (PT) foram os principais
partidos que, com base nas chamadas comissões de negros, contribuíram para que
determinadas demandas do movimento negro fossem incluídas nas discussões
políticas da década de 1980.
Para Kossling (2007), a presença de políticos negros, como os vereadores
Benedito Cintra (PMDB-SP) e Benedita da Silva (PT-RJ), no início dos anos
1980, e a criação das comissões de negros nos partidos de centro-esquerda tiveram
um impacto positivo na arena política, principalmente por propiciar um espaço
profícuo de influências mútuas entre o movimento negro e os partidos.
A comissão de negros do PT nasceu praticamente junto com o partido.
Alguns ativistas negros acreditavam que, na criação do PT, estaria a possibilidade
de construção de um “novo quilombo de palmares”. Não por acaso, muitas
lideranças do MNU e de outras organizações negras estiveram presentes nos atos
de fundação do PT e, a partir de sua incorporação ao partido, parte de suas
reivindicações foram incluídas às propostas gerais do PT. Assim, quando o
partido começou a conquistar eleições, tais reivindicações tornaram-se projetos de
lei e políticas públicas específicas (Kossling, 2007).
Para a comissão de negros do PT, o mito da democracia racial era o maior
impeditivo para que setores da esquerda discutissem abertamente o papel das
desigualdades raciais na manutenção de privilégios sociais e de classe. A comissão
também argumentava que estatísticas sobre desemprego e violência policial eram
desproporcionalmente superiores para a população afrodescendente, como
subproduto do racismo insidioso da sociedade brasileira. A incorporação da
História da África nos currículos escolares, que se tornaria obrigatória com a
aprovação da Lei n.º 10.639/2003, durante o governo Lula, já fazia parte da pauta
de reivindicações de ativistas negros do PT do início dos anos 1980 (Kossling,
2007).
O PDT, primeiro partido brasileiro a criar uma estrutura interna dedicada à
luta contra a discriminação racial, também foi responsável por nomear os
primeiros políticos negros para ocupar Secretarias de Estado, além de estabelecer
metas internas para a candidatura de negros a cargos eletivos. Abdias do
Nascimento, principal liderança negra brasileira do século XX e um dos
fundadores do PDT, tornou-se o primeiro deputado federal brasileiro (1983-
1987) a dedicar seu mandato à luta contra o racismo. Enquanto esteve na Câmara
de Deputados, Abdias apresentou projetos de lei tipificando o crime de racismo e
criando mecanismos de ação compensatória para a promoção da igualdade racial
no país. Como senador da República (1991-1992, 1997-1999), deu continuidade
a essa linha de atuação. Em um de seus discursos, reafirmou essa necessidade de
implementação de leis e princípios normativos que assegurassem a igualdade
racial.
Sr. Presidente, Srs. Deputados, como representantes de todos os segmentos étnicos formadores do
nosso povo, da nossa história e da nossa cultura, precisamos manter-nos alerta contra todas as formas
de destituição, de exclusão, de humilhação, de marginalização e inferiorização, motivadas pelo racismo
e pela discriminação racial. Não bastam declarações de princípios. O que a comunidade exige são leis e
práticas que garantam efetivamente a igualdade de oportunidades a todos os brasileiros, sem que as
diferenças se transformem em desigualdades, conforme ocorre na sociedade brasileira de hoje.
Desigualdades econômicas, transformando o negro trabalhador em negro desempregado;
transformando a mulher negra em prostituta; transformando a criança negra em menor abandonado e
delinquente. Desigualdades culturais que definem a cultura de origem africana como folclore e
matéria-prima da indústria do esoterismo turístico. Desigualdades sociais, marcando as áreas em que
gente negra tem o seu lugar: as favelas, a fome e a mendicância, o carnaval, o futebol, as palafitas, os
presídios. Os hospitais psiquiátricos elitistas não oferecem, em qualquer dos seus graus, igualdade de
oportunidade aos brancos e aos negros. Isso sem contar os séculos de privilégios raciais, quando
somente os brancos mantiveram, com exclusividade, o monopólio das vagas nas escolas primárias,
secundárias e superiores (Brasil, 1985, p. 21).
Surge no Brasil um fato promissor – o despertar da sociedade civil: trabalhadores, pequenos e médios
empresários, agricultores, professores, estudantes, mulheres, moradores de bairros, municípios e
regiões, Igreja, intelectuais, artistas cooperados, ecologistas e outros setores da sociedade deixam de
lado a antiga passividade e passam a atuar de forma consciente e organizada, na solução de seus
problemas. É a substituição do paternalismo governamental pela participação ativa das comunidades.
É o cultivo da solidariedade social como forma de combate a todos as modalidades de exploração e
opressão (Montoro, 1982, p. 9).
Por conta das ideias políticas de Franco Montoro e do otimismo causado pela
vitória do partido nas eleições, os ativistas negros viam ali a possibilidade real de
se fazerem representar junto ao sistema político tradicional. Integrantes da Frente
Negra de Ação Política de Oposição (Frenapo), organização criada em 1979 por
políticos negros vinculados ao PMDB, como Benedito Cintra, Milton Santos e
Hélio Santos, acreditavam, diante desse cenário favorável, que poderiam vir a ter
papel destacado dentro das articulações políticas do PMDB junto à sociedade
civil, de maneira geral, e ao movimento negro, de maneira específica (Santos,
2001).
Assim:
Entretanto, um fato novo e auspicioso foi a designação de dois assessores negros para trabalhar no
Palácio dos Bandeirantes, estrategicamente nos cargos de Assessor Especial e de Assessor do Gabinete,
pois eram posições importantes para observar o que acontecia no Gabinete do governador. Eram
lugares privilegiados de aprendizes no exercício do cotidiano do que é fazer política no Estado de São
Paulo (Santos, 2001, p. 97).
[…] na celebração antecipada do dia 13 de maio, os assessores marcaram uma cerimônia com o
governador e militantes do Movimento Negro, com cobertura da TV Cultura. O objetivo da
cerimônia era realizar um ato de protesto contra o racismo e marcar a data como dia de luta do negro e
não de comemoração. Conhecedores dos detalhes da cerimônia no Palácio Bandeirantes, o evento foi
estruturado com um discurso de abertura, lido por quatro pessoas, acerca das temáticas: racismo no
trabalho, criança negra, mulher negra e ausência de negros no primeiro escalão. Ao final, uma
pergunta dirigida ao governador: Por que não criar um Conselho do Negro, a exemplo do Conselho
da Mulher? Em uma situação de desconforto, com a cobertura da televisão, o governador iniciou sua
fala dizendo que reconhecia a existência de problemas e pediu a um dos assessores para confirmar os
esforços do governo na inserção do negro na Administração. O assessor negro respondeu que,
infelizmente, sentia dizer, mas o negro ainda não estava plenamente inserido no Governo Montoro. O
governador retomou a palavra e disse que tomaria medidas, começando pela criação do Conselho do
Negro.
Em julho de 1985, três meses após a morte de Tancredo Neves, José Sarney
decidiu pela manutenção da promessa de campanha e enviou ao Legislativo a
Proposta de Emenda Constitucional n.º 43, atribuindo poderes constituintes ao
Congresso Nacional, que deveria se reunir a partir de 1.º de fevereiro de 1987.
Seguindo outra proposta de Tancredo Neves, Sarney nomeou uma Comissão
Provisória de Estudos Constitucionais para a elaboração de um anteprojeto de
constituição. Essa comissão foi presidida pelo jurista Afonso Arinos de Mello
Franco e ficou conhecida como “Comissão de Notáveis”. Porém, entre os 50
integrantes da Comissão, representando diversas perspectivas políticas e
ideológicas, não havia uma única personalidade negra.
Insatisfeitos com a falta de representação junto à Comissão Pré-Constituinte,
os membros do Conselho da Comunidade Negra de São Paulo estabeleceram
uma estratégia para chamar atenção para o fato e, consequentemente, influenciar
na indicação de um provável integrante negro junto à Comissão (Santos, 2001).
Assim, foi programada para o dia 22 de agosto de 1985 uma manifestação no
Palácio Bandeirantes, com a participação do governador Franco Montoro, contra
o regime do apartheid e pelo fim das relações diplomáticas entre Brasil e África do
Sul. O objetivo principal da manifestação, conforme atesta Santos (2001),
consistia em dar visibilidade nacional ao Conselho da Comunidade Negra e, por
meio da denúncia sobre a discriminação racial, reivindicar a participação de pelo
menos um representante negro na Comissão Pré-Constituinte. Cito, mais uma
vez, o relato de Ivair dos Santos sobre a consecução de tal estratégia:
A preocupação com os detalhes do evento era de extrema importância, pois o anfiteatro do Palácio
dos Bandeirantes, além de grande, trazia a preocupação de como se criar um clima emocional, sem
deixar de ser um ato oficial, que teria muita repercussão. O horário foi acertado para que pudesse
constar do noticiário noturno daquele mesmo dia. Os detalhes nos preocupavam, já que o governador
do Estado de São Paulo iria se manifestar sobre um tema internacional. […] Na reunião preparatória
do ato, decidimos denunciar que na Comissão de Notáveis não havia um cidadão negro sequer. E
mais, decidimos ocupar estrategicamente o anfiteatro e combinamos que, durante essa passagem do
pronunciamento, ficaríamos em pé e batendo palmas durante um bom tempo, até que todos se
levantassem e nos acompanhassem. Foi pensado e realizado conforme o planejado. O clima foi de
muita emoção, com algumas pessoas vibrando com as palmas, confirmando o desabafo pela ausência
de negros na Comissão de Notáveis. Durante o encerramento do evento, na sua última fala, o
governador Montoro mencionou o episódio e disse que iria reivindicar a presença de um negro na
Comissão de Notáveis. O anfiteatro foi tomado pelas palmas (Santos, 2001, p. 153-54).
Dez dias após a manifestação, o então presidente José Sarney informou que
indicaria Hélio Santos, presidente do Conselho da Comunidade Negra, para se
juntar à Comissão Provisória de Estudos Constitucionais. Após a nomeação de
Hélio Santos, o Conselho da Comunidade Negra, em conjunto com organizações
do movimento negro, articulou uma série de eventos, em diferentes partes do país,
para a elaboração de propostas que viriam a ser incorporadas às discussões da
Comissão Pré-Constituinte (Santos, 2001).
Entre o conjunto de encontros municipais e estaduais organizados pelo
movimento negro para discutir a participação da comunidade negra no processo
constituinte, dois merecem destaque: o Primeiro Encontro Estadual “O Negro e a
Constituinte”, realizado na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, e I Encontro
de Comunidades Negras Rurais, com o tema “O negro e a constituição”, realizado
no Maranhão (Silvério, 2005).
A esses eventos seguiram-se diversos outros e, nos dias 26 e 27 de agosto de
1986, foi realizada, em Brasília, a Convenção Nacional do Negro pela
Constituinte, que contou com a presença de representantes de 63 entidades do
movimento negro de 16 estados, em um total de 185 inscritos. O documento
aprovado durante a convenção e entregue aos constituintes continha entre as suas
inúmeras propostas duas que acabariam incluídas no texto constitucional:
tipificação do preconceito racial como crime inafiançável e com pena de reclusão;
e garantia do título de propriedade de terras às comunidades remanescentes de
quilombos, quer no meio urbano ou rural (Silvério, 2005).
O texto final, aprovado pela Comissão Pré-Constituinte, contava com 436
artigos permanentes e 32 disposições transitórias. Apesar de seu conteúdo
progressista e democrático, o presidente Sarney, talvez por se opor ao regime
parlamentarista de governo defendido pela Comissão, decidiu-se por não enviar o
texto à Constituinte, encaminhando-o ao Ministério da Justiça, onde foi
arquivado (Sarmento, 2010).
Assim, sem poder utilizar o texto final da Comissão Pré-Constituinte para
respaldar suas decisões, a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) foi instalada
em 1º de fevereiro de 1987 e teve seus trabalhos concluídos em 2 de setembro de
1988, com a votação e aprovação do texto final da Constituição Brasileira. A
ANC foi dividida em oito comissões e 24 subcomissões temáticas, responsáveis
pela preparação dos anteprojetos básicos que, após apreciação e consolidação pela
Comissão de Sistematização, foram votados pela plenária da ANC (Silvério,
2005).
Por determinação do regimento interno da Constituinte, a temática racial foi
incluída e debatida dentro da VII Comissão, de Ordem Social, na Subcomissão
dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias Sociais. De 23
de abril a 8 de maio de 1987, a subcomissão realizou oito audiências públicas para
a confecção do anteprojeto. Conforme consta no Relatório Final da Subcomissão,
a temática racial foi discutida nos dias 23 de abril (em painel sobre preconceito,
discriminação e estigma); 28 de abril (dedicado exclusivamente à questão racial);
4 de maio (painel sobre deficientes visuais, hemofílicos e negros); e 5 de maio
(painel sobre populações indígenas, presidiários e minorias raciais e religiosas)
(Brasil, 1987).
O relatório final ainda afirma que:
A situação dos negros, praticamente cem anos após a abolição da escravatura, manifesta-se em
problemas sociais de triste e fácil constatação: esquecimento de seu papel na formação da
nacionalidade, marginalização social e econômica, preconceito racial manifesto, discriminação
acentuada, cidadania de segunda classe, imagem distorcida e estereotipada nos meios de comunicação.
A superação desse quadro, que passa pela organização civil dos negros enquanto comunidade racial, na
ativa defesa de seus direitos, deve ter por base princípios constitucionais definidos e duradouros, que
lhes garantam juridicamente efetiva igualdade de oportunidades e a punição exemplar dos autores de
atos discriminatórios (Brasil, 1987, p. 3).
Buscou-se, ainda, dar à educação a ênfase na luta contra o racismo e todas as formas de discriminação,
afirmando as características multiculturais e pluriétnicas do povo brasileiro e determinando a adoção
pelo Estado, de ação compensatória visando à integração plena das crianças carentes (Brasil, 1987, p.
5).
[…] simboliza, em nível federal, a inauguração de uma nova etapa no tratamento da questão racial.
Essa temática passa a ser reconhecida como portadora de demandas de reconhecimento e
legitimidade, que se expressam na adoção da data de 20 de novembro como dia da consciência negra e
no reconhecimento de Zumbi como herói nacional, ambos resultado do esforço empreendido pelas
organizações negras. Tais conquistas, ainda que tivessem importante valor simbólico, estavam,
entretanto, bastante aquém dos anseios da população afro-brasileira da época ( Jaccoud et al., 2009, p.
267).
[…] analistas e militantes da questão racial passam a destacar, cada vez com maior ênfase, outras
limitações no uso da ação repressiva no enfrentamento da discriminação racial. Aponta-se que, ao
atacar sobretudo o resultado da discriminação, essa legislação afeta pouco suas causas: o preconceito, o
estereótipo, a intolerância e o racismo. Ao mesmo tempo, deixa intocada a forma mais eficaz e
difundida de discriminação: aquela que opera não por injúria ou atos expressos de exclusão, mas por
mecanismos sutis e dissimulados de tratamento desigual. A chamada discriminação indireta,
largamente exercida sob o manto de práticas institucionais, atua também nas políticas públicas por
meio da distribuição desigual de benefícios e serviços. Essas preocupações estarão progressivamente
presentes no debate sobre o tema do combate à discriminação ( Jaccoud et al., 2009, p. 271).
Eu acho que a contribuição foi muito positiva no sentido de que nós conseguimos sensibilizar a
sociedade como um todo; levamos a questão negra para o conjunto da sociedade brasileira.
Especialmente na área do poder político e nas áreas relativas à questão cultural. […] Nesse lado
cultural aí acho que nós sempre fomos vitoriosos, a verdade é essa. Agora, no que diz respeito às
questões político-ideológicas, a coisa é séria, a meu ver. O que a gente percebe é que o MNU cutucou
a comunidade negra no sentido de ela dizer também qual é a dela, podendo até nem concordar com o
MNU. Hoje, a gente verifica que ‘pintou’ uma certa autonomia no que diz respeito a algumas
entidades aí pelo Brasil, que articulam áreas de ação que não são, especificamente, aquelas que ficam
numa política abstrata, genérica, mas áreas de ação no sentido concreto, dentro da comunidade,
dentro das propostas e das exigências dessa comunidade. Para dar exemplo interessante, me recordo
do momento da Constituinte, em Brasília, quando eu atuava enquanto mulher negra dentro do
movimento de mulheres, no Conselho Nacional. Havia uma passagem de informações porque o
Movimento Negro estava reunido lá para fazer suas propostas aos constituintes. E eu me recordo que,
de repente, chegou uma mulher dizendo assim: ‘Olha, o Movimento Negro está reunido levantando
uma questão incrível, a questão do crime inafiançável com relação à discriminação racial, a gente tem
que trazer isso também para nós’. Esse tipo de troca, de contribuição, que para mim era uma coisa
abstrata que eu lia nas histórias, por exemplo, do Movimento de Mulheres, do Movimento Negro e do
Movimento de Homossexuais nos EUA. E eu verificava uma anterioridade do Movimento Negro na
colocação de uma série de questões para o Movimento Feminista que, por sua vez, passou para o
Movimento Homossexual e, de repente, você constata isso a partir de sua experiência concreta. Eu
acho que isso significa um avanço do Movimento Negro, uma contribuição extremamente positiva.
uer dizer, nós deixamos de ser invisíveis, a verdade é essa. Não dá mais para se ficar escamoteando a
questão das relações raciais no Brasil, pois nós estamos aí, de uma forma ou de outra (Gonzalez, 1991,
p. 8).
[…] embora seja possível distingui-las, não há, propriamente, separação entre os militantes das duas
vertentes. Muitas vezes, as suas estratégias se confundem. Na verdade, são parte de um mesmo
processo, sendo, desse modo, observadas pela maioria dos negros, pelo sistema de poder e pela
sociedade em geral (Pereira, 2008, p. 69).
Discuto, nesta seção, o papel desempenhado por essa dupla vertente apontada
por Pereira para o processo de consolidação e complexificação institucional do
movimento negro na década de 1990. Importante notar que, antes de se
constituir em uma operação orquestrada, com objetivos claros definidos a priori, a
interação entre setores do movimento negro e o Estado se deu, amiúde, de forma
errática, profundamente dependente das redes de solidariedade estabelecidas
entre ativistas negros e outros atores da sociedade civil e agentes estatais.
A pluralização e a especialização das organizações do movimento negro são
fenômenos correlatos, embora distintos. No início dos anos 1990, o projeto de
uma organização de caráter nacional, encabeçado principalmente pelo MNU, se
esvaneceu. Concomitantemente, várias organizações negras surgiram em todas as
regiões do país com demandas promovendo interseções inovadoras entre raça,
classe, gênero, geração e sexualidade, entre outras. A maior proximidade entre
organizações negras e atores de outros movimentos sociais também contribuiu
para ampliar sua agenda política e fortalecer alianças em prol de uma pauta pelo
fim das adscrições raciais. Também em decorrência dessa maior aproximação com
outros atores políticos, algumas organizações negras iniciaram um processo de
especialização passando a atuar em uma única frente. Destacam-se, nesse cenário:
[…] as entidades voltadas para atuar na área da educação, como a Associação Afro-Brasileira de
Educação Cultural e Preservação da Vida (Abrevida), em São Paulo; o Educafro, no Rio de Janeiro; o
Núcleo de Estudos do Negro (NEN), em Florianópolis; as entidades dedicadas à saúde reprodutiva da
mulher negra, como a ONG Fala Preta!, de São Paulo; as direcionadas aos empresários negros, como
o Coletivo de Empresários e Empreendedores Afro-Brasileiros do Triângulo Mineiro (Ceabra); as
destinadas a enfrentar o racismo à luz do Direito, como as Comissões do Negro da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB); as dirigidas para tratar dos problemas psicológicos decorrentes do
racismo, como o Amma – Psique e Negritude, de São Paulo; as voltadas para conscientizar os
protestantes negros, como o grupo Negros em Cristo e, até mesmo, aquelas criadas para defender os
direitos dos gays negros, como o uimbanda-Dudu, de Salvador (Domingues, 2008, p. 105).
Antes das Conferências internacionais, o diálogo do movimento negro com o governo havia quase
sempre sido intermediado pela Fundação Cultural Palmares, desde sua criação em 1988. Na primeira
Conferência preparatória para a Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em Genebra entre
os dias 1o e 5 de maio de 2000, esse monopólio seria quebrado e o governo brasileiro iria logo mostrar
sinais de que buscava um diálogo com o movimento negro organizado. Embora o governo brasileiro
tivesse se comprometido em sediar uma reunião regional das Américas para preparação da
Conferência Mundial, a representante da Fundação Palmares anunciou que o Brasil não mais seria o
anfitrião, alegando que os líderes negros não queriam que a Conferência fosse no Brasil. Isso foi uma
declaração insincera considerando-se os esforços dos líderes do movimento negro em informar seus
membros sobre a Conferência. Além disso, era especialmente chocante dada a presença dos líderes do
movimento negro. Embora o chefe da missão brasileira em Genebra mais tarde tenha citado fatores de
ordem financeira como razão para não hospedar as reuniões locais, esse argumento era igualmente não
convincente considerando-se que essas Conferências são subsidiadas e que países pobres como o
Senegal e o Iraque foram anfitriões das Conferências para a África e a Ásia. A razão real parecia ser a
preocupação do governo com o rápido desmoronamento da imagem internacional de tolerância racial
do Brasil e com o fato de que tal Conferência chamaria a atenção para as reivindicações do
movimento negro. Apenas dez dias antes, no dia 22 de abril, o Brasil comemorava os 500 anos da
chegada à sua costa de navegadores portugueses com uma celebração presenciada pelos principais
dignitários, incluindo o presidente Cardoso, na praia onde esse evento histórico ocorreu. Por vários
dias, trabalhadores rurais sem terra, negros e índios que protestavam pacificamente contra o que seria
a comemoração de 500 anos de exploração europeia foram impedidos de chegar ao local da cerimônia
oficial, próximo a Porto Seguro, Bahia. Apesar de terem permissão garantida por decisão judicial,
quando eles tentaram marchar até o local, no dia da cerimônia, foram detidos, e vários brutalmente
espancados pela polícia em um evento amplamente transmitido pela mídia internacional (Telles,
2004, p. 64-65).
Como o governo brasileiro se manteve irredutível em sua decisão de não
hospedar a Conferência regional, o Alto Comissariado das Nações Unidas optou
por realizá-la em Santiago do Chile. Entre os encontros de Genebra e Santiago,
foram realizadas duas importantes reuniões nacionais envolvendo lideranças do
movimento negro. A primeira foi um encontro nacional organizado pela Conen,
para definir os objetivos da participação do movimento negro no evento do Chile
(Telles, 2004). Além disso, integrantes da diretoria do International Human
Rights Law Group, principal entidade responsável pela organização da 3ª CMR,
vieram pessoalmente ao Brasil capacitar advogados e ativistas negros sobre
questões técnicas e assuntos substantivos que viriam a ser discutidos durante a
Conferência e em seus eventos preparatórios (Telles, 2004).
Para além dos conflitos com o estado, também houve muita disputa interna
entre as organizações do movimento negro, sobretudo em relação à alocação de
recursos para as ONGs participantes do processo de Durban, que acabou sendo
centralizada nas mãos de poucas organizações do Sudeste, evidenciando as
disparidades de poder político e econômico entre os mais diversos grupos que
compunham, à época, o movimento negro.
Ainda que contando com inúmeros conflitos, a participação do Brasil foi
expressiva durante os eventos preparatórios e na 3.ª CMR. Segundo Telles (2004),
o governo brasileiro nunca havia investido tanto em apoiar movimentos sociais
em uma Conferência da ONU. Composta por 67 integrantes, a delegação oficial
brasileira foi a terceira maior da Conferência, que contava com delegações de 170
países, atrás apenas da África do Sul e da Croácia, com 978 e 130 integrantes
respectivamente (Peria, 2004). A delegação brasileira incluía o ministro da
Justiça, o secretário de Direitos Humanos, além de deputados federais e outras
autoridades. Ativistas do movimento negro, apoiados pela Fundação Ford, por
governos locais ou viajando com recursos próprios, perfaziam aproximadamente
200 integrantes (Telles, 2004). Ademais, o governo brasileiro, por intermédio do
embaixador Gilberto Vergne Saboia, pleiteou que um dos cargos da Conferência
fosse destinado a um integrante da delegação brasileira. Naquele contexto, foi
sugerido o nome de Edna Roland, à época presidente da ONG Fala Preta!, para
representar formalmente a delegação brasileira junto à Conferência (Rodrigues,
2006).
O esforço empreendido pelas autoridades brasileiras bem como a indicação
de Edna Roland para o segundo posto na hierarquia da 3ª CMR, o de relatora-
geral, geraram grande visibilidade midiática para o movimento negro brasileiro, e,
assim:
Enquanto ativistas participavam da conferência paralela das entidades não governamentais (ONGs)
em Durban nos dias que antecederam a Conferência oficial, o Brasil vivia uma transformação
histórica na forma como a mídia abordava as questões raciais. Como descreviam alguns ativistas do
movimento negro, ‘a questão racial estava pegando fogo’. Na semana anterior e durante a primeira
semana da Conferência, os maiores jornais brasileiros publicaram matérias diárias sobre questões
raciais, racismo e sobre a Conferência Mundial. Durante a semana entre os dias 25 e 31 de agosto, os
cinco maiores jornais brasileiros publicaram cerca de 170 artigos, editoriais, cartas e opiniões, fato sem
precedentes na história jornalística do Brasil, em que as questões de raça eram tratadas como sendo de
pouco interesse do público e artigos sobre esse assunto eram publicados apenas ocasionalmente
(Telles, 2004, p. 70-71).
Referências
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brasileiro: um panorama analítico”. Cadernos de Pesquisa, v. 43, n. 148, p. 302-
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Kriesi, Hanspeter. “Political context and opportunity”. In Snow, David et al. (ed.).
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Por uma política nacional de combate ao racismo e à desigualdade racial.
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Peria, Michelle. Ação afirmativa: um estudo sobre a reserva de vagas para negros nas
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(Dissertação). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.
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Rodrigues, Cristiano. As onteiras entre raça e gênero na cena pública brasileira:
um estudo da construção da identidade coletiva do Movimento de Mulheres
Negras (Dissertação). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte,
2006.
Sansone, Livio. Negritude sem etnicidade: o local e o global nas relações raciais e na
produção cultural negra do Brasil. Salvador/Rio de Janeiro:
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Snow, David e Benford, Robert. “Master frames and cycles of protest”. In Morris,
Aldon e Mueller, Carol McClurg (org.). Frontiers of Social Movement eory.
New Haven: Yale University Press, 1992.
[1] Uma versão preliminar deste capítulo foi publicada em Cristiano, 2020.
Introdução
Krippendorff (1989 apud Acharya e Buzan, 1989) vai falar em uma segunda
fundação das RI pós-1945. A ideia baseia-se em fatores como a expansão massiva
da institucionalização da disciplina em termos de ensino, pesquisa e publicações;
a ascensão de associações independentes de RI nos diferentes países; uma
mudança em direção a uma maior profissionalização acadêmica dos intelectuais
da área; a rápida ascensão de novos subcampos, especialmente em países do
centro, voltados para assuntos específicos (por exemplo, a área de Estudos
Estratégicos que surgiu especificamente para o estudo das armas nucleares); e o
reconhecimento da produção em RI feita em países periféricos (Acharya e Buzan,
2019). Esse movimento foi acompanhado de uma multiplicação na arena teórica
de RI. A partir de 1945, novas interpretações da política internacional emergiram,
diversificando as chaves de análise e trazendo também disputas metodológicas e
epistemológicas para o campo.
De acordo com Vitalis (2015), se até a Segunda Guerra Mundial a
preocupação central das RI era com o imperialismo e as relações raciais (leia-se: a
manutenção da supremacia branca), a partir das décadas de 1940 e 1950 esse
quadro se alterou. O que houve foi um descompasso, uma vez que as relações
internacionais estavam mais do que nunca atravessadas por questões raciais – por
exemplo, movimentos de independência de nações asiáticas e africanas e votações
variadas na ONU –, enquanto as RI silenciaram sobre o assunto. Essa constatação
pode ser entendida por duas chaves, que não deixam de estar interconectadas.
A primeira diz respeito a uma substituição da hierarquia racial por uma
concepção igualmente distorcida de hierarquia cultural, na qual a raça biológica
pré-1945 foi substituída por um culturalismo eurocêntrico. Du Bois explica
novamente: o racismo passou por um processo de mudança estética para reinos
não biológicos, mas manteve seus atributos principais. John Hobson (2015)
definiu conceitualmente esse movimento: uma passagem do eurocentrismo
manifesto para um eurocentrismo subliminar. Isso aparece em grande medida no
conteúdo semântico das teorias: o institucionalismo eurocêntrico localiza a
diferença puramente em termos de cultura institucional – como, por exemplo,
ocidente racional versus oriente irracional; tradição versus modernidade; centro
versus periferia; hegemonia; estados párias e estados falidos.
Isso se deve, de um lado, à síndrome da culpa colonial, desencadeada no pós-
1945 pela imagem internacional de condenação do nazismo, por avanços teóricos
e pelas lutas por descolonização que conseguiram desacreditar tanto o racismo
científico como o império formal. A virada culturalista foi desencadeada, na
verdade, na antropologia com o trabalho de Franz Boas e acabou transbordando
para outras áreas do conhecimento. No reino da política internacional, a mudança
no entendimento de raça teve como grande expoente o documento Statement on
Race produzido pela Unesco entre 1950 e 1951: “Anunciando uma nova era na
compreensão humana após os terrores da guerra e as irracionalidades do
genocídio, o principal objetivo das declarações era separar o ‘fato biológico’ da
raça do seu ‘mito social’” (Montagu, 1972 apud Henderson, 2015, p. 8, tradução
nossa).[5]
Uma das coisas que as teorias de RI lograram fazer na virada para o
eurocentrismo subliminar foi sanitizar (whitewash) o imperialismo ocidental da
história da política mundial enquanto dava a ele uma progressão funcional. Um
exemplo disso é a obra seminal de Hans Morgenthau, Política entre as nações
(1948), em que o imperialismo é reimaginado não como uma política que o
Ocidente tem levado a cabo sobre o Oriente, mas como uma estratégia universal
normal de nações aspirantes a grandes potências em suas relações umas com as
outras. Ele passa a ser pintado, então, como uma oposição às políticas de
manutenção do statu quo e ganha uma fachada de neutralidade moral:
“imperialismo é uma forma de política externa que busca adquirir mais poder que
uma grande potência realmente tem, buscando reverter relações de poder
existentes” (Hobson, 2015, p. 83).
No mesmo livro, Morgenthau aborda, ainda, o que chama de revolução
colonial, que estaria atingindo seu clímax no período, com “o triunfo das ideias
morais do Ocidente”, pelos princípios do Estado-nação e da justiça social. Aqui
fica evidente o paternalismo, mais uma característica do eurocentrismo subliminar
definido por John Hobson: a história dos povos não brancos emulando e
aprendendo em face do professor ocidental benigno. O imperialismo torna-se
justo, se não celebrado como um presente da civilização ocidental. Na Escola
Inglesa, com Hedley Bull e Adam Watson e sua sociedade internacional, também
encontramos algo próximo a isso com a caracterização do imperialismo pré-1945
como a difusão da civilização pelo mundo. O que era a missão civilizadora e
depois o império liberal passa a ser chamado de expansão da sociedade
internacional.
Da mesma forma, a teoria da estabilidade hegemônica de Robert Gilpin
coloca a existência de uma hegemonia como fator fundamental para que exista
estabilidade no cenário internacional e eleva o exercício da anglo-saxã ao status
implícito de missão civilizatória. Ainda que hegemonia não signifique
necessariamente dominação colonial direta, a ideia prevê alguma forma de
subjugação – mesmo que moral – a um Estado e uma crítica implícita a tentativas
de desestabilizar o sistema. De maneira parecida, o institucionalismo neoliberal
de Robert Keohane faz o mesmo no que diz respeito ao papel desempenhado por
instituições internacionais ocidentais. O elogio é direcionado àquelas que seriam
capazes de garantir equilíbrio e desenvolvimento internacional, pensamento
herdeiro da ideia de paz democrática de Kant.
Em grande medida, ainda que não de maneira explícita, essas teorias estão
atravessadas diretamente por concepções subliminares do excepcionalismo norte-
americano, a ideia de destino manifesto e da missão civilizadora das nações anglo-
saxãs. Finalmente, grosso modo, as teorias do mainstream de RI são dominadas por
uma concepção reificada de grandes potências ocidentais como entidades
autoconstituídas e autônomas, cujas sociedades se desenvolvem de maneira
completamente independente das interações econômicas, militares, políticas e
culturais com as não ocidentais (Hobson, 2015).
A segunda chave de entendimento é a ideia de que as tradições teóricas em RI
sofrem de afasia racial, conceito cunhado por Debra ompson (2015). Trata-se
de uma incapacidade coletiva de se falar sobre raça; uma negligência calculada das
histórias e estruturas do racismo. Essa afasia indica um esquecimento calculado,
uma obstrução do discurso e da linguagem no que diz respeito a raça e racismo no
campo de RI. Nesse sentido,
As instituições são amplamente vistas como daltônicas, embora sejam mais provavelmente codificadas
por cores. Organismos internacionais e Estados professam compromissos normativos e legais com a
igualdade racial, enquanto a estratificação racial persiste entre os mundos desenvolvido e em
desenvolvimento e na maioria das sociedades racialmente heterogêneas, se não em todas. A
supremacia branca como instituição global e o racismo como estrutura social difusa são obscurecidos
pelo domínio positivista e o foco em empirismo na RI […]; como resultado, o racismo é reduzido a
atos ou atitudes individualistas abomináveis. A promessa da sociedade pós-racial é realizada não
através de reparações ou igualdade substantiva, mas na imposição de discursos livres de raça que
mantêm firmemente enraizadas as ordens raciais internacionais e nacionais (ompson, 2015, p. 45,
tradução nossa).[6]
Considerações nais
Referências
Mills, Charles W. “Race and the social contract tradition”. Social Identities, v. 6, n.
4, p. 441-462, 2000.
ompson, Debra. “rough, against and beyond the racial State: the
transnational stratum of race”. In Anievas, Alexander et al. (ed.). Race and
racism in International Relations: cononting the global colour line. Nova
Iorque: Routledge, 2015. p. 44-61.
[3] Mesmo tendo sido Woodrow Wilson um dos grandes idealizadores da Liga das Nações, os Estados
Unidos não integraram a organização, fato que é tido como uma das principais razões de seu fracasso.
[4] É possível acessar gratuitamente todos os números da revista na biblioteca digital JSTOR.
[5] No original: “Announcing a new era in human understanding aer the terrors of war and irrationalities of
genocide, the main purpose of the statements was to separate the ‘biological fact’ of race from its ‘social
myth’”.
[6] No original: “Institutions are largely perceived as colour blind, though they are more likely colour-coded.
International bodies and states alike profess normative and legal commitments to racial equality, while racial
stratification persists both between the developed and developing worlds and within most, if not all, racially
heterogeneous societies. White supremacy as a global institution and racism as a pervasive social structure
are obscured by the positivist dominance and focus on empiricism in IR […]; as a result, racism is instead
reduced to abhorrent individualistic acts or attitudes. e promise of the post-racial society is realised not
through reparations or substantive equality but in the imposition of race-free discourses that keep
Introdução
Metodologia
Rute Salles – PT: mulher negra, 48 anos à época da entrevista, foi candidata
a vereadora pela segunda vez. Filiada ao PT, começou seu envolvimento com
política no Morro do Borel, onde morou. Rute Salles atua na setorial de
combate ao racismo do PT. Foi entrevistada no dia 27 de novembro de
2017.
Vitor Coff Del Rey – PDT: homem negro filiado ao PDT, era pré-
candidato no momento da entrevista. Vitor não conseguiu viabilizar sua
candidatura e, até o momento, nunca disputou uma eleição. Ele é natural de
Nova Iguaçu e construiu sua relação com a política por meio da inserção no
ensino superior e, posteriormente, na Educafro. Sua entrevista ocorreu no
dia 10 de setembro de 2018, antes da eleição daquele ano.
Eu fui mórmon durante 12 anos e ao mesmo tempo eu sempre soube que eu era gay, mas vivia na
igreja, vivia no armário coisa e tal, quando decidi me assumir e sair do armário uma das coisas que
aconteceram comigo foi que eu percebi que eu não iria conseguir ser só um jovem gay, coisa e tal, eu
queria ajudar de alguma forma, queria fazer parte ( João Junior, 2017).
Eu acompanhei a política muito de longe, um pouco distante porque eu me envolvi mais com a
questão espiritual, mais religiosa, e aí eu não tinha muita dedicação à parte da militância política. […]
uando me foi feita a sugestão de fazer a representação política é que eu me volto para o PDT e aí sim
a gente encontra obstáculos porque eu já vinha com uma carga muito forte de ser um pastor
evangélico (Mendes de Jesus, 2017).
Talvez isso não tenha necessariamente ligação com minha trajetória política e de militância no
movimento negro, mas eu fui criado no contexto de igreja batista. Então, igreja batista tem uma
parada que eu acho muito que é interessante: é que ali você vê uns rolé de democracia muito vivo (Del
Rey, 2018).
Note-se que a continuidade aqui envolve certa pedagogia política, relacionada
ao fato de a administração de igrejas batistas ser classificada por Vítor como
“democrática”, isto é, coletiva ou comunitária.
Já para Rute Salles (PDT), a atuação religiosa como agente pastoral da
comunidade eclesial da Indiana confunde-se com sua atuação como uma
liderança política de base:
Depois eu passei a ser agente de pastoral, no lugar da minha mãe, passamos a organizar também as
comunidades. Eu era muito responsável, coordenadora de toda zona norte, que eram as comunidades,
de favela e morro da zona norte e eu organizava as comunidades e também tinha minha vida
comunitária dentro da Indiana (Salles, 2017).
uando eu comecei a estudar história contemporânea, eu comecei a gostar muito, achar maravilhoso
Lênin e tudo aquilo e logo que eu entro no ensino médio de uma escola chamada elitizada porque era
uma escola por concurso da rede Faetec, tinha e tem um núcleo estudantil muito forte, naquela época
a UJS[10] era predominante ali e então eu imediatamente entrei no grêmio na primeira semana
(Balbi, 2018).
A UJS teria sido, nos seus termos, uma “ponte” para a vida partidária, já que
desde os 15 anos ela é guiada à União e ao PCdoB. Para Marielle Franco (PSOL),
autodenominada “fruto de pré-vestibular comunitário”, o acesso à educação
formal e sua atuação no movimento comunitário aparecem superpostos como
parte de uma “mudança-chave” em sua trajetória política:
[…] porque até eu pensar em terminar o segundo grau, até pensar em fazer uma faculdade, isso era
condições da vida, tem que estudar mais para ganhar mais. uando abre o pré-vestibular comunitário,
eu sou aluna do 1.º pré na Maré que é o Ceasm, que dá origem ao Observatório de Favelas, a Redes.
Nesse momento, era nessa busca da qualificação, mas eu também engravidei, e saio da faculdade, saio
do pré, só volto na faculdade em 2000, entro na PUC em 2002, eu estou na PUC de 2002 a 2007. A
partir dos anos 2000 é onde eu me entendo cidadã do mundo, muito ainda – acho que isso é um
ponto importante na trajetória pensando teu recorte, tua centralidade na questão racial – ainda muito
enquanto favelada, eu não faço a perspectiva do debate racial desde o meu primeiro momento de
compreensão do mundo, […] é um ponto importante, importante até pra gente ver quão positivo é o
reflexo das nossas pautas e da centralidade que elas precisam ter agora, século XXI (Franco, 2017).
Então, eu digo que a minha trajetória política iniciou há algumas décadas, quando eu ingressei no
movimento negro e comecei a ver como era importante a gente fazer essa militância dentro do
movimento negro por viver numa sociedade muito desigual, muito racista, e a cor da pele eu digo que
é o primeiro movimento. Então eu iniciei minha carreira ali. Mas política partidária, em 2009, quando
eu conheci meu companheiro, ele já era petista e aí eu me identifiquei com o partido dos
trabalhadores e das trabalhadoras. E comecei minha carreira política fazendo campanha em 2012 para
vereadora (Ávila, 2019).
Grosso modo, três elementos podem ser destacados sobre o modo como as
entrevistadas enxergam suas trajetórias. O primeiro tem a ver com certa
sobreposição entre movimentos religiosos, comunitários e estudantis, oriunda do
fato de que cada um deles lhes proporcionou acesso a múltiplos universos e
entradas na política partidária. O segundo refere-se ao reconhecimento desses
movimentos como espaços de pedagogia política, ora administrativa, ora
propriamente ideológica. O terceiro refere-se à relativa distância em relação ao
movimento negro e às pautas raciais, raramente mencionadas como marcantes em
um primeiro momento da carreira desses políticos, mas presente em seus discursos
atuais.
Inserção partidária
[O Jean Wyllys] teve uma reunião comigo, ele falou que eu era muito inteligente, que minhas ideias
eram muito boas e que ele não queria que eu fosse voluntário não, queria que eu trabalhasse pra ele,
queria me contratar. […] Me tornei um dos coordenadores da campanha nacional pelo casamento civil
igualitário no Brasil, dentro de um gabinete, numa estrutura bacana de um deputado federal. Isso foi
um outro salto assim na minha vida, porque eu comecei a conhecer mais pessoas, comecei entender
como é que fazia as coisas acontecer. […] Eu estava usando aquele espaço do gabinete não só para
enaltecer a figura do meu chefe, mas para fazer o que eu queria fazer, que era trazer conquistas sociais
para comunidade a qual eu acredito que eu preciso ajudar. […] Eu nunca fui PSOLista, nunca
acreditei muito em partido político, não acreditava antes, passei a acreditar menos ainda, depois de
fazer parte. […] O Jean tem uma questão, uma boa questão, ele é do partido, mas não é do partido, a
grande verdade que as figuras públicas do partido estão pouco se lixando pra opinião de militante, essa
que é a verdade. Eles fingem que estão se preocupando, mas não estão se preocupando, então isso pra
mim era ótimo, porque não tinha que prestar contas pra militante. A gente participava das atividades,
mas ele não exigia que a gente fosse PSOLista arraigado nem que interpretasse esse personagem,
porque ele também não interpreta, publicamente isso é notável, então pra mim isso era ótimo. Tive
esse afastamento do PSOL, filiado ao PSOL, mas não vivia o PSOL, não defendia o modelo do PSOL
( João Júnior, 2017).
A partir de então eu me ingressei muito no PT pensando nessa direção da questão racial, e comecei a
participar do combate ao racismo, setor de combate ao racismo do PT. E trazia debate pra dentro da
comunidade sobre a questão racial: pegava a juventude, gostava muito de sentar no Borel, na Indiana,
na associação. […] E ali na comunidade as pessoas começaram a falar: ‘Rute você tem que ser nossa
candidata! Você tem que ser nossa candidata!’, e eu fiquei assim: ‘Será que é legal? Não sei. Gente! Não
tenho dinheiro’. Até então, não sabia como era você ser uma candidata. E aí, eu peguei, liguei pro
Partido dos Trabalhadores: ‘Olha, eu quero vir candidata a vereadora’. O partido falou assim: ‘Legal’,
mas não me orientou no tempo, não me deu nenhuma orientação. Só disse que era pra eu levar os
documentos e tal, viram lá minha filiação, estava tudo ok e pum, em 2000 saí candidata a vereadora
(Salles, 2017).
Vale destacar que a própria candidata reconhece certa inocência ao apostar no
trabalho de base como principal meio de viabilização de uma candidatura de
sucesso, dando pouca ou nenhuma atenção às estruturas partidárias: “Eu não
sabia, eu não tinha ideia de que tinha que ter dinheiro, nada disso! Pra mim
bastava eu ser aquela pessoa comprometida, popular, moradora da comunidade,
comprometida com a luta das comunidades” (Salles, 2017). Ao mesmo tempo, ela
reconhece a relevância do comprometimento partidário para o sucesso eleitoral.
Nas eleições de 2016, Rute se aliou ao deputado Waldeck Carneiro (PT), o que já
incrementou suas chances eleitorais ao seu ver, mas ainda de modo insuficiente
por conta da indiferença do partido à causa racial em geral e a ela em específico:
“o mandato do deputado Waldeck me ajudou bastante, mas o partido, como
sempre, tem uma política que ainda não contempla a nós mulheres e mulheres
negras” (Salles, 2017). Na mesma direção, ela emenda:
Então tive muita dificuldade. Eu tive uma ajuda bem bacana daqui do gabinete do deputado, fizeram
uma página pra mim, tive um apoio todo de logística, mas não tive perna pra ir a todos os lugares, a
gente tem que ter uma estrutura de assessoria também, que eu não tive. Então, assim, é muito difícil
essa coisa de você sair candidato de um partido que não tem uma política igual pra todos os
candidatos, ou assim diferenciar aquele que precisa chegar, ter mais respaldo, ter mais apoio, ter uma
estrutura diferenciada […] daquele que já tem uma condição melhor e pode chegar. É isso que a gente
precisa mudar no partido (Salles, 2017).
uem decide para onde vai o fundo são 80% homens brancos, velhos, de classe média alta e o restante
de mulheres que coadunam com a lógica da perpetuação do machismo. A minha única sorte é que o
PCdoB é um partido pragmático, então eu ter sido candidata e ter provado um potencial eleitoral sem
o menor suporte mais efetivo do partido me coloca como um holofote para 2020; eles não fazem uma
conta excludente racista como outros partidos fazem (De Paula, 2018).
Experiência eleitoral
Então, quando essa decisão se coloca, eu começo uma série de conversas e costuras. Não sou
relacionada a nenhuma das tendências […]. Óbvio que eu dialogo com algumas, mas não sou filiada a
nenhuma das tendências auto-organizadas. Então eu fiz costuras e conversas com todo mundo de
falar: ‘É sério!’ (Franco, 2017).
Então, a gente teve esse financiamento coletivo online, a gente teve advogada e teve contadora via
partido pra colocar em condições iguais às dos homens principalmente nesse sentido. Já tinha homem
reeleito e homens também com as tendências; as mulheres que vinham num processo mais
independente precisavam ter o mesmo ponto de partida ou mais próximo (Franco, 2017).
Muitos/as entrevistados/as reconhecem em suas trajetórias momentos de
desdém em relação às disputas partidárias. Dessas perspectivas, o partido é
reduzido a um instrumento eleitoral que permite a alguém se lançar candidato/a e
arrecadar recursos. Paulatinamente, porém, percebem que suas funções
extrapolam essas dimensões mais formais, possibilitando a potencialização da
arrecadação de fundos, de obtenção de fundos e de apoio. Para Rute Salles (2017),
O partido, você queira ou não queira, tem uma disputa, uma disputa de quem quer alcançar a legenda
[…] e você tem essa dificuldade, mas no tempo eu nem pensava na disputa, mas depois da minha
disputa em 2000 que eu fui com a cara e a coragem, sem a orientação do partido, o partido passou a
me olhar diferente.
[…] me faltou foi traquejo, de alianças lá dentro que pudessem sustentar minha candidatura. Porque
eu fui pro PDT com minhas próprias pernas, eu não fui convidado por ninguém, aí eu conheci um
carinha que não teve problema na candidatura dele, que ele é branco e foi convidado pelo tio, que é
grandão no PDT. Tem um outro cara que foi convidado pelo líder do movimento negro do PDT,
comprou a candidatura dele. Eu não, eu fui com amor e fui construir a minha imagem lá dentro, hoje,
eu sou secretario de formação política do PDT, do movimento negro, mas, eu não tinha apoio lá
dentro (Del Rey, 2018).
Considerações nais
O objetivo deste texto foi apresentar, em linhas gerais, as percepções de
candidatas e candidatos negros sobre as dificuldades que tiveram na viabilização e
consolidação de suas carreiras políticas, especialmente de suas candidaturas. Mais
do que construir inferências a partir de suas falas, buscamos tipificar alguns
elementos que parecem influenciar no sucesso ou não dessas carreiras,
contribuindo assim para novas hipóteses de pesquisa capazes de preencher as
lacunas existentes na bibliografia especializada.
Em sua maioria, eles/as têm origem em movimentos sociais religiosos e/ou de
periferia, indicando pouca experiência prévia nos movimentos negros. A própria
distinção entre esses movimentos é difícil de ser traçada. Isso serve para relativizar
o diagnóstico de que haveria partidos mais identificados com uma militância
propriamente religiosa, enquanto outros estariam mais conectados com
movimentos ditos de base. Em muitos dos casos entrevistados, a atuação religiosa
forneceu não apenas o treinamento para uma profissionalização política inicial,
mas também as bases para a atuação em comunidades locais. Daí a importância de
retrabalhar os vínculos religiosos como importante esfera de ambientação e
capacitação política, ao menos para as candidaturas do perfil aqui considerado.
No que concerne à inserção na vida partidária, a relação com a burocracia das
legendas novamente se mostrou central. Seja pela relação com candidaturas
prévias e consolidadas, seja pela interface com organizações e movimentos da
sociedade civil, seja ainda por vínculos pessoais com membros do partido, o
processo de entrada em uma legenda é classificado como lento e difícil. Resulta,
daí, uma relação tensa desses atores e atrizes com o potencial e os condicionantes
impostos pelas lógicas internas aos partidos para a consolidação de uma carreira
política.
Entretanto, foi na parte dedicada à experiência eleitoral que a importância das
costuras partidárias se tornou mais saliente. Mesmo candidatos que reconhecem a
dedicação do partido às suas campanhas destacaram dificuldades em
instrumentalizar as legendas para seus fins políticos específicos. Ou seja, uma
candidatura pode ser apoiada pelo partido de modo diferencial e, ainda assim, não
se viabilizar pela carência de lastro interno. Nesse quesito, o acesso a um corpo de
funcionários como advogados e contadores pareceu ter mais peso do que o
simples acesso a recursos financeiros, embora estes sejam de grande importância.
Embora o texto não tenha pretendido inferir tendências gerais das entrevistas,
é notável certo cruzamento entre o grau de inserção dos/as entrevistados/as nas
burocracias partidárias e o grau de sucesso obtido no pleito disputado. Ao que
parece, quanto maior a experiência prévia em eleições e no cotidiano das disputas
intrapartidárias, maior também foi o sucesso eleitoral. Isso implica que os
investimentos em candidaturas negras que se pretendam “autônomas” em relação
à estrutura partidária ou que buscam instrumentalizá-las têm efeitos limitados
quando comparados àquelas consolidadas em disputas internas. Ao mesmo
tempo, cabe questionar em que medida tais disputas não interpõem a essas
candidaturas obstáculos discriminatórios específicos ligados à raça.
Referências
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coerência”. Uol eleições 2018, 23 jul. 2018. Disponível em:
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Apêndice
uestionário
1. Identi cação
a. Data da entrevista:___/___/___
d. Raça: __________
e. Profissão: __________
f. Religião: __________
3. Inserção Partidária
a. uais foram as circunstâncias e os motivos que lhe levaram a optar por uma
filiação partidária?
4. Competição Eleitoral
a. O que levou você a ser candidato? Como você descreveria essa opção?
f. Para uma candidatura obter sucesso nas eleições, ela precisa de:
5. Financimento de Campanha
7. Religião
[7] Então pré-candidato à deputado estadual, Victor Dell Coff desistiu de disputar a eleição e não
Socialismo Moreno apareceu como um vocábulo político mobilizado por intelectuais no seio do Partido
Democrático Trabalhista (PDT), que tinha o objetivo de adaptar as premissas ideológicas do socialismo
europeu à realidade brasileira. Assim sendo, debates acerca das classes, abarcados pelo discurso marxista,
passaram a ter importância equivalente, não idêntica, à da opressão sofrida pelos grupos não brancos
(Campos, 2015).
[10] A União da Juventude Socialista (UJS) é uma organização de juventude fundada em 1984 ligada ao
Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e com atuação destacada no movimento estudantil brasileiro,
sobretudo por meio de sua intervenção na União Nacional dos Estudantes. Desde 1992, essa organização
preside a UNE, assim como tem atuação destacada na União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes)
Introdução
A resposta veio de uma geração que não tinha dúvidas de que a melhor estratégia para enfrentar o
racismo não era dividir a comunidade negra, mas ampliá-la. Os negros não deveriam ser a minoria no
país, como o são nos EUA. No Brasil, os movimentos sociais optaram por construir a população negra
como campo majoritário demograficamente e culturalmente. Nesse sentido, [Lélia] Gonzalez gostava
de dizer que o movimento social negro não era um movimento epidérmico, mas sim um movimento
político.
a própria ambiguidade em torno de quem pode se dizer negro e os generosos critérios oficiais para
cotas para pretos, pardos e indígenas ampliaram ainda mais a base do movimento negro. A elas podem
ser acrescentadas pessoas que nunca se consideraram pretas ou pardas e o fazem não necessariamente
por razões oportunistas, mas porque genuinamente começam a interpretar sua desvantagem em
termos raciais.
Há quase duas décadas, uma parcela significativa de jovens negros insertos no movimento hip-hop
cunhou politicamente para si a definição de pretos e o slogan PPP (Poder para o Povo Preto), em
oposição às classificações cromáticas que instituem diferenças no interior da negritude, sendo esses
jovens, em sua maioria, negros de pele clara, como um dos seus principais ídolos e líderes, Mano
Brown, dos Racionais MC’s. Esses jovens sabem, pela experiência, que o policial nunca se engana,
sejam esses jovens negros de pele mais clara ou escura. No entanto, as redefinições da identidade racial,
que vêm sendo empreendidas pelo avanço da conscientização de negros e já são perceptíveis em
levantamentos estatísticos, tendem a ser atribuídas apenas a um suposto ou real oportunismo
promovido pela política de cota, fenômeno recente que não explica a totalidade do processo em curso.
Nós trabalhamos com preto e pardo, porque é a nomenclatura oficial, o IBGE trabalha com isso. A
categoria política para mim é negro. Mas aí tem uma discussão que tem muito a ver com o geracional.
As pessoas mais novas que eu usam a palavra preta. A minha geração usa negra. Só que é curioso que
alguns anos atrás era a palavra preta que se usava. E aí é uma questão geracional, essa geração que está
agora na militância resolveu reinventar roda.
Toda política pública tem fraude. É um povo miserável que não tem nada que trapaceia para conseguir
alguma coisa. […] Então, por exemplo, talvez na frente de uma comissão eu não fosse considerada
negra. Talvez eu não pudesse fazer jus às cotas. Mas os dados do IBGE são claros. Graças à conquista
do movimento negro nós conseguimos reunir pretos e pardos no mesmo grupo. Porque essa é uma
consequência da democracia racial, o complexo de vira-lata que oprime e faz com que as pessoas se
odeiem, negando a própria existência. Então, muita gente diz que é parda em vez de negra. Esse grupo
de pretos e pardos soma 54% da população e, dentro dele, menos de 10% se autodeclara preto. A
maioria da população é extremamente miscigenada. […] Então uma comissão que vai checar sua
negritude baseada nos seus traços físicos é absurdo, é lombrosiano, é um corte. É um tiro no pé. Eu
acho que tem a ver com o método de exclusão da política.
Assim, o racismo à brasileira afeta os indivíduos em virtude de sua aparência racial – que determina
sua potencial vulnerabilidade à discriminação racial –, e não de sua ascendência ou composição
genética. Nesses contextos sociorraciais, é usual que a discriminação racial se intensifique à medida
que as características fenotípicas do indivíduo se afastem daquelas consideradas típicas do grupo
dominante. Efetivamente, há diferenciações baseadas na pigmentação da cor da pele – combinada
com os traços faciais e textura dos cabelos –, numa espécie de escala ascendente de tons, na qual os
indivíduos de pele mais escura figuram na base da pirâmide sociorracial, em contraposição àqueles que
possuem a pele mais clara, aos quais é reservado status de superioridade. Ou seja, quanto mais
desviante do padrão fenotípico hegemônico, maior a potencialidade de o indivíduo sofrer
discriminação racial (Vaz, 2018, p. 37-38).
Pensando na lei antirracismo, eu acho que as pessoas visualizam muito o racismo como a injúria racial.
Eu digo isso no meu pequeno laboratório que são as minhas aulas com os meus alunos. É
relativamente tranquilo discutir racismo como injúria racial, como um indivíduo ofendendo o outro,
ou como um indivíduo não podendo acessar um espaço, não entrar numa loja, por exemplo. Algo bem
concreto. Mas do ponto de vista que a gente pensa estrutural, assim, como uma conformação da
sociedade brasileira, o racismo estrutural mesmo, é muito difícil. Eu sinto que quando discuto com as
pessoas eu estou levando elas para um nível de abstração alto demais para a discussão recente. […]
Pensando o racismo só em termos de injúria, vai ter gente que vai retomar o debate da cota social, da
cota racial, falando ‘ah, mas e quem é pardo nunca sofreu preconceito, tem grana e estudou numa
escola privada?’ Sendo que, novamente, olha como isso estimula o debate!
O questionário trazia alguma base para pensar como a pessoa entendia a sua condição, sua situação.
Mas mesmo se a pessoa dissesse ‘eu não sofri racismo’, a gente entendia que ela sofreu sim, mesmo que
ache que não. Tem que ter um entendimento do racismo estrutural, do racismo institucional, de uma
outra ideia do racismo.
As comissões em geral têm muita sensibilidade com essa combinação de raça e classe. Mas na hora de
fazer a avaliação eu acho que a cor tem mais importância do que a classe. Mas é curioso porque a classe
já foi marcada antes. Porque a rigor o que acontece é que quem passa até a chegar à comissão, já passou
pela verificação de classe. Agora é óbvio que na apresentação, nos discursos, nos recursos, nas
entrevistas, a classe aparece como uma argumentação também. Tem que ver também origem, pobreza,
desigualdade. Pelo que eu vi, tem uma leitura assim também. A região e a classe têm bastante
importância.
A confirmação ou não confirmação da autodeclaração ocorre por meio de aferição visual e presencial,
considerando o seguinte conjunto de características fenotípicas de pessoa negra: a) cor da pele (preta
ou parda); b) aspecto de cabelo; c) aspecto do nariz; d) aspecto dos lábios. São esses traços
objetivamente identificáveis que informam e alimentam as práticas insidiosas de hierarquizações
raciais ainda existentes no Brasil, ‘a confirmação da autodeclaração ocorre quando os membros da
comissão observam a cor da pele associada às demais marcas ou características que, em conjunto,
atribuem ao sujeito à aparência racial negra’. […] A análise dos traços fenotípicos do candidato é feita
presencialmente, com coleta de imagens fotográficas, vídeo e laudo fenotípico elaborado pelos
membros da comissão por meio de reconhecimento de aspectos característicos tecnicamente
sistematizados, como cor da pele, textura do cabelo, formato do nariz e lábios, conforme estabelecido
e informado a cada edital de convocação publicado pela PROGRAD (Marques et al., 2019, p. 67-74).
Como forma de avaliação e verificação foram adotados os seguintes critérios, segundo a normativa
citada: ‘A avaliação da veracidade da autodeclaração acontecerá por meio de bancas e entrevistas e
deverá considerar os aspectos fenotípicos e/ou de pertencimento étnico-racial da pessoa que se
candidatar’ […]. As pessoas pretas e pardas serão avaliadas por constatação visual no momento da
entrevista e ‘serão observados os seguintes aspectos fenotípicos na entrevista: cútis, cabelos, lábios e
nariz’ (UFMS, 2017), ou seja, as pessoas negras serão heteroidentificadas por meio da avaliação de seu
fenótipo (Maciel et al., 2019, p. 91).
Embora, como mostrado por Telles e Perla (2014), a categorização por cor da
pele pareça mais fortemente correlacionada com o status socioeconômico do que
a autoidentificação, a ação afirmativa também deve servir para rediscutir as
próprias fronteiras raciais. Ao se concentrar apenas na cor da pele, há um risco de
reificar esses limites a longo prazo. Embora a maioria dos candidatos que têm a
autoidentificação racial rejeitada tenda a apelar da decisão, nosso conjunto de
dados sugere que um número substancial tem seu apelo negado. Por meio de
artigos de jornal, também descobrimos que muitos dos candidatos recorrem aos
tribunais para contestar as decisões das universidades. Em seus apelos, eles
frequentemente mobilizam referências ao fenótipo e cor da pele que reificam uma
conceitualização taxonômica e quase biológica da “raça” (Moraes Silva et al.,
2018).
O que foi estabelecido como regra: primeiramente, ter uma comissão mista, para que não venha uma
pessoa só dizer se é ou não, porque não há nada que você possa dizer cientificamente sobre cor.
Por fim, cabe notar que o olhar político, o de especialista ou do senso comum
costuma estar associado a diferentes formas de compreender e operacionalizar
“raça”, o que confere instabilidade às classificações e pode levantar divergências no
interior das próprias comissões (Lempp, 2019). Nos relatos publicados sobre as
comissões, fica claro que seus membros frequentemente discordam sobre quão
ampla deve ser a definição de negritude e se devem ser considerados outros
elementos além do fenótipo. A discussão sobre quem são os beneficiários
merecedores está no centro de objetivos conflitantes dentro das comissões de
heteroclassificação (Silveira, 2015). Como nos relatou um membro de comissão
em um instituto federal:
Tem uma galera que interpreta negro como preto e outra galera que interpreta negro como pretos e
pardos. Então, assim, foi visível quando uma das professoras estava coordenando o debate, que estava
implementando no nível da reitoria, até apontou para mim e me usou como exemplo. E ela falou
assim: ‘Ah, não, ele aqui, pelo cabelo dele, eu acho que ele passaria, mas por exemplo se ele raspasse a
cabeça eu acho que ele não passaria’. É, eu me considero negro, mas eu tenho a pele mais clara e então
ficou esse debate se negro é só preto ou negro é pretos e pardos.
Em vários depoimentos, vemos que há discordâncias relativamente frequentes
em torno dessa questão:
As reuniões de avaliação, antes ou depois, têm tensões muito fortes, principalmente por parte dos
coletivos que questionam mais, que acham que têm que ser mais rígido, que têm que ter controle mais
forte. Eles têm uma fala mais crítica, mesmo, a respeito das comissões porque acham que elas têm que
ser mais incisivas. Por sua vez, os funcionários ficam numa posição mais intermediária, e os professores
têm uma visão mais conciliadora, tentam fazer uma mediação. Porque tem também a posição
institucional, tem muitas coisas que os professores estão olhando. Às vezes os alunos estão mais
concentrados em saber se tem fraudes, não tem fraudes. Enfim, tem essas tensões.
Por exemplo, alguns grupos achavam que só podia passar quem fosse preto de pele escura. Umas
achavam, por exemplo, que se a pessoa tivesse cabelo alisado, teria que ser reprovada. E aí eu disse isso
não tem como, por vários motivos. Primeiro que sou contrário a isso, sou contrário, eu acho isso uma
discriminação. E isso vai abrir brecha para quem quer abrir processo legal, e nós passamos por isso.
Pessoas que se sentiam assediadas na comissão, rir na cara da pessoa … várias coisas… E aí o que que
acontece, os alunos vão embora, mas nós que somos os técnicos e professores vamos ter que explicar
para o juiz. Duas semanas atrás eu fui pela justiça federal explicar uma situação que eu nem sabia o que
era.
“no Brasil, onde os debates públicos atuais sobre raça e racismo abordam quase exclusivamente a
situação do negro, boa parte da população do Norte e do Nordeste é pelo menos parcialmente
indígena e os ancestrais de muitos pardos incluem mais indígenas que africanos” (Monsma, 2014, p.
25).
Há alguns casos que influenciam muito a interpretação da comissão: a origem regional, a percepção da
cor que varia dependendo da região. Então uma pessoa vem do Sul do Brasil e tem a pele relativamente
clara para o Rio de Janeiro, mas ela sabe que no Sul tem uma predominância de pessoas brancas. Então
qualquer tonalidade mais escura já vira um elemento de discriminação naquela cultura e então a
pessoa vive a discriminação, e isso é um elemento importante. Também, por outro lado, há as pessoas
que vêm do Norte do Brasil, do Nordeste, e também têm características específicas, uma miscigenação
muito forte entre indígenas e negros, e pessoas que naquele lugar não se viam como negras, mas que
depois se viram. Então tem um conjunto de elementos que constituem a avaliação pelas comissões.
Em geral, dois elementos são muito centrais: a região e a classe.
Muitas pessoas negras, a gente perguntava se elas tinham sofrido racismo, e elas diziam que não.
Outras pessoas que nós víamos como pardas, e o racismo que elas sofriam, elas diziam que era porque
‘ah, eu estou malvestida’ ou que eram perseguidas em shoppings, ou que não eram atendidas direito
em lojas, esse tipo de coisa.
Um fato que chamou atenção de um de nossos entrevistados é a tendência de
as pessoas assinalarem a categoria “pardo” mesmo sendo percebidas pelos
membros da comissão como “pretas”:
Também o que a gente estranha é que muitas pessoas que são
incontestavelmente negras:
assinalam, quando veem o documento […] como pardas. A gente não sabe se isso é uma insegurança
do candidato ‘olha, vai que alguém questiona que eu sou preto’, porque lá no formulário está preto,
pardo ou indígena. E quase todo mundo que passou pela comissão optou pelo pardo. uando coloca
preto a gente enxerga algum elemento de militância, cabelo trançado, uma camisa politizada, alguma
coisa. Ainda mais eu que fui de movimento estudantil por muito tempo, você fala, ‘não, essa pessoa
tem cara de militante’. Então é algo que a gente vê assim.
maio de 2022
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[11] A literatura recente sobre os processos de produção social da “raça” no Brasil do século XX tem
dedicado mais atenção ao plano das representações, imaginários, ideologias e classificações (Loveman, 2014;
Nobles, 2000) do que aos conflitos, negociações e coalizões entre grupos de interesse e o Estado que se
plasmaram em leis e formas de alocação de recursos que construíram e reificaram “raça” no pós-abolição
(Marx, 1998). Uma chave de compreensão promissora é investigar a relação entre formas de racialização,
elites e o processo de state-building brasileiro durante a transição do trabalho escravo ao livre (Reis, 1982).
Mantendo-se na coalizão de poder, as elites agrárias paulistas e nordestinas produziram uma verdadeira
segmentação regional do mercado de trabalho em torno de uma geografia racializada. Nesse sentido, a
solução imigracionista não apenas resolveu o problema imediato da competição por mão de obra entre
Sudeste e Nordeste, manteve salários comprimidos, sustentou formas de coerção extraeconômica do trabalho
e controlou o mercado político (Reis, 1982), como também se vinculou a um projeto de nação em que o
imigração em massa dos europeus traduziram-se em vantagens para imigrantes e seus filhos e desvantagens
duradouras para os negros e seus descendentes, contribuindo para a construção e reificação da “raça” na vida
[12] Explorar o domínio das classificações raciais e da sua relação com as fronteiras entre os grupos pode
contribuir para elucidar processos fundamentais para a produção social da “raça”. F. James Davis (1992)
voltou-se para a análise das origens históricas da one-drop rule (a regra de hipodescendência praticada nos
Estados Unidos) e demonstrou a importância de se olhar para as leis e censos populacionais para entender
como a “raça” é feita e transformada pelo Estado. Se até a metade do século XIX, diversas regiões dos Estados
Unidos reconheciam a existência de uma categoria social de “mulatos”, essa situação mudou substantivamente
com a aproximação da guerra civil e as mudanças que passaram a ser introduzidas nas leis e nas burocracias
estatais.
[13] Em uma pesquisa sobre experiências de discriminação cotidiana, constatou-se que os “pardos” pobres
reportam serem maltratados, desrespeitados, mal atendidos em lojas, restaurantes e portarias de edifícios,
serem tratados como pessoas suspeitas ou desonestas e desrespeitados pela polícia, mas não costumam
associar essas experiências à discriminação racial, supondo que se trata de um efeito da sua classe social
Introdução
Notas metodológicas
Código do Área do
Região Nota da Capes
Entrevistado Conhecimento
Entrevistado Ciências
Sudeste 6
Bio1 Biológicas
Ciências Sociais
Entrevistado SA1 Sudeste 6
Aplicadas
Entrevistado Linguística, Letras
Sul 5
LLA1 e Artes
Código do Área do
Região Nota da Capes
Entrevistado Conhecimento
Entrevistado AG2 Ciências Agrárias Sul 5
Entrevistado Ciências
Sudeste 5
Bio2 Biológicas
Entrevistado S2 Ciências da Saúde Centro-Oeste 4
Entrevistado
UFAM Pró-Reitoria de Pós-Graduação
UFAM
Entrevistado
UFMG Pró-Reitoria de Pós-Graduação
UFMG
Entrevistado Membro da comissão que elaborou a
UFMG
UFMG 2 proposta
Entrevistado
UFBA Pró-Reitoria de Pós-Graduação
UFBA
Entrevistado
UFPel Coordenação de Pós-Graduação
UFPel
Fonte: A autora, 2022.
Entrevistado
UFFS Pró-Reitoria de Pós-Graduação
UFFS
Entrevistado
UFG Pró-Reitoria de Pós-Graduação
UFG
Nota: Elaboração a partir de banco de dados dos currículos Lattes disponibilizado pelo CNPq e dados do
Censo de 2010 do IBGE.
Meritocracia
Entrevistadora: Você acha que, depois que as pessoas ingressam na universidade pública, todas têm as
mesmas oportunidades acadêmicas independentemente da raça e da origem socioeconômica?
Entrevistado: Eu acredito que sim. Inclusive, a gente tem até na graduação os programas de iniciação
científica, só para dar um pequeno exemplo, e outras ações de extensão que priorizam as pessoas de
baixa renda, de ações afirmativas.
Porque assim, o fato de uma pessoa que venha de uma situação de vulnerabilidade social – ou raça ou
condição social – já ter feito uma graduação, nesse momento o gap social e econômico já diminuiu
pelo fato de ela ter feito uma graduação, entende? […]
Então […], só o fato de o cara ter feito a graduação já diminuiu o gap que tinha antes; ele já é uma
pessoa, no Brasil, que tem uma ascensão social pelo fato de ele ter feito uma graduação (Entrevistado
ENG, 2019).
Eu acho que a gente tem que ser cuidadoso ao comparar quando você faz uma seleção para um curso
de graduação de quando você faz pra uma pós. Isso altera. Na graduação você vai pegar um cara que
estudou na [periferia], é negro, é não sei o que, comparar com o cara que estudou no [colégio privado
de elite] ou não sei o que… Agora, a gente aqui, a gente pode pegar na nossa pós alunos que estudaram
na [universidade federal], na [universidade estadual], na [universidade federal]… Já passaram por
cursos… Então se espera que eles tenham conseguido receber… Então tratar eles de formas muito
diferentes se eles passaram pela mesma formação é um pouco diferente de eu pegar um cara que
chegou na faculdade vindo de lugares que de fato são diferentes, né? A pós é diferente. A entrada na
pós é para aluno graduado e majoritariamente graduado nessas nossas boas universidades públicas, né?
[…] A pós-graduação todo mundo já está vindo aqui da universidade.
No caso de programas de outras áreas, alguns entrevistados destacaram não
ser possível afirmar com precisão se a graduação é capaz de igualar as
oportunidades, sendo necessário realizar estudos aprofundados para averiguar os
dados. Todavia, a impressão que eles têm – baseada nos cursos de graduação da
sua área em suas universidades – é que as oportunidades são iguais.
Outros apontaram que a graduação ainda não é suficiente para que as
oportunidades educacionais de estudantes pertencentes a grupos vulneráveis
sejam equalizadas e que a cota para ingresso por si só não é suficiente. Após o
ingresso, é necessário criar medidas para garantir a permanência dos estudantes
(como moradia e subsistência), bem como pensar sobre as oportunidades
acadêmicas disponíveis aos alunos cotistas. De acordo com o Entrevistado LLA2
(2019), as ações afirmativas para ingresso na graduação estão promovendo uma
mudança lenta ao incluir mais pessoas. Todavia, após o ingresso na universidade
pública e gratuita, alguns grupos continuam enfrentando dificuldades.
Em um estudo sobre a distribuição de oportunidades acadêmicas[34]
ofertadas aos discentes da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) a partir de
uma perspectiva racial, Leonardo Barbosa e Silva (2017) indica que todas as
atividades disponíveis “recrutam discentes por meio de processo seletivo ou edital,
valendo-se de critérios meritocráticos”, não havendo “impedimentos evidentes nos
documentos de chamada para recrutamento que excluam a priori negros e negras
das seleções”. Todavia, a análise dos dados aponta que “uma vez dentro das IFES,
negros e negras não acessam com equidade oportunidades acadêmicas
fundamentais para uma formação universitária com qualidade”, visto que
costumam acessar aquelas de menor status e reconhecimento.
Portanto, os estudos e as avaliações recentes sobre a implementação das
políticas para graduação assinalam a existência de limites e demonstram que
estudantes cotistas também enfrentam barreiras no acesso a oportunidades
acadêmicas.
Eu acho mais forte porque tem um pouco dessa questão da pós-graduação, são os professores que
trabalham mais ou menos com pesquisa, e o nosso sistema de incentivo à pesquisa da CAPES, por
conta de uma série de questões, vai incorporando um pouco essa questão da excelência acadêmica
medida apenas pela produção de artigos internacionais e por aí vai. Então, essa preocupação está mais
presente nos professores que estão na pós-graduação. Então, tem aquela coisa, eu preciso de um aluno
que acompanhe uma leitura mais aprofundada do tema. Será que ele vai chegar com uma base
necessária para, enfim, produzir artigos de excelência e por aí vai? Esse tipo de argumento na pós-
graduação, eu acredito, talvez seja mais forte. Possa ter uma resistência maior dos professores da pós-
graduação.
A diversidade no contexto de ambiente de pesquisa sempre traz benefícios, o que nós buscamos. Eu só
não consigo entender na questão de grupos, entendeu? De ideias. Porque, assim, nosso curso é bem
técnico. […]. Então, aqui nós somos bem técnicos, o curso é bem técnico, então é difícil pra gente
imaginar essa questão da diversidade pra vocês; pra nós tem outro contexto. Agora assim, se tu pensar
pessoas de áreas diferentes para trazer ideias para a nossa área de ciências agrárias, sem dúvida. Agora
diversidade de grupos eu tenho uma dificuldade de imaginar e eu não vejo isso como um fator
limitante, a gente não enxerga esse sentido, a gente enxerga na questão mais técnica mesmo, que
experiências que ele tem que trazem para o nosso contexto agrícola que a gente pode estudar e trazer
soluções, nesse sentido. Não se ele é de um grupo assim, ou grupo assado, enfim, é mais ou menos a
experiência que ele tem dentro da nossa expertise de estudo, sabe?
Então o nosso grupo aqui, sinceramente falando, nossos professores, nosso laboratório, não vai fazer
diferença nenhuma, pode vir o cara de qualquer raça, a gente não seleciona por isso aí e eu não sei até
que ponto que ele sendo de uma raça, da raça negra ou asiática, vai ter diferença positiva. A questão é
muito técnica: o cara sendo bom, sobre e deu pra bola, entendeu? (Entrevistado EENG, 2019)
Outros argumentos
Considerações nais
Referências
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Scote, Fausto Delphino. Será que temos mesmo direito à uniersidade?: O desafio
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case of public universities”. Cadernos de Pesquisa, v. 50, n. 177, p. 882-909, 1
jul. 2020.
[14] Sobre a repercussão na imprensa, vide: Campos (2014); Campos et al. (2013b); Daflon e Feres Júnior
[15] Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.° 186/DF. Disponível em:
2014.
[16] “Em 3 anos, 150 mil negros ingressaram em universidades por meio de cotas”. Disponível em:
https://www.mdh.gov.br/noticias_seppir/noticias/2016/03-marco/em-3-anos-150-mil-negros-ingressaram-
em-universidades-por-meio-de-cotas. Acesso em: 20 out. 2016; “Pela 1.ª vez, negros são maioria nas
universidades públicas”. Disponível em: https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,pela-1-vez-negros-
https://www.folhape.com.br/colunistas/blogdafolha/portaria-editada-por-weintraub-que-revoga-cotas-na-
em: https://www.otempo.com.br/brasil/weintraub-acaba-com-cotas-para-negros-e-indigenas-na-pos-
idProposicao=2256140.
[23] Os programas de pós-graduação (mestrado, doutorado e mestrado profissional) são submetidos a uma
avaliação pela Capes a cada 4 anos e recebem notas distribuídas entre 1 e 7, sendo que “os programas que
[24] A Capes organiza o conhecimento em nove grandes áreas: Ciências Exatas e da Terra; Ciências
Biológicas; Engenharias; Ciências da Saúde; Ciências Agrárias; Ciências Sociais Aplicadas; Ciências
Humanas; Linguística, Letras e Artes; e a área Multidisciplinar.
[25] Todos os programas dessa área criaram ações afirmativas em decorrência de resoluções do conselho
[26] A autodeclaração étnico-racial dos pesquisadores passou a ser exigida no cadastro da Plataforma Lattes
no ano de 2013. Todavia, a questão contém as alternativas “não informado” e “não desejo declarar”, o que
[27] As proporções indicadas no gráfico referem-se aos doutores registrados na plataforma Lattes que
[28] Nome social é o prenome adotado pela mulher ou homem trans e pelas travestis. É o nome pelo qual
preferem ser chamadas/os cotidianamente, em contraste com o nome oficialmente registrado que não reflete
sua identidade de gênero. A legalização de seu uso foi um dos elementos que contribuiu para o acesso da
população trans ao ensino superior (Camillo Bonassi et al., 2015; Scote, 2017). Como exemplo, vide a
Portaria n.° 233, de 18 de maio de 2010: Art. 1.º Fica assegurado aos servidores públicos, no âmbito da
Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional, o uso do nome social adotado por travestis e
transexuais. Parágrafo único. Entende-se por nome social aquele pelo qual essas pessoas se identificam e são
[29] A Portaria Normativa n.º 13/2016 estabelece que as Instituições Federais de Ensino Superior deveriam
apresentar propostas sobre a inclusão de pretos, pardos, indígenas e estudantes com deficiência em seus
[30] Vide: Bowen e Bok, 2000; Himma, 2010; Hochschild, 1998; Orfield et al., 2001; Post, 1998; Sabbagh,
[31] As ideias seriam produto de experiências sociais de indivíduos localizados em estruturas e contextos
diversidade, na qual todos os artigos apontavam a existência de estudos evidenciando que “abraçar” a
diversidade é fundamental para que se possa fazer uma boa ciência. Vide: Editorial, 2014.
[33] Posição semelhante é apresentada por Warikoo (2016, p. 199), segundo a qual “a meritocracia pura
[34] As oportunidades acadêmicas incluem atividades de ensino (como Pibid e monitorias), atividades de
pesquisa (bolsas de iniciação científica, como Pibic), atividades de extensão (como Pibex e Peic), participação
em empresas júnior, estágios, programas de educação tutorial (PET) e intercâmbio acadêmico nacional e
internacional.
Introdução
IV – Diretrizes
[…]
[…]
V – Ações
[…]
Percurso normativo
Fonte: Elaboração do autor com base em SNPIR/MMFDH e Diário Oficial da União. Nota: Dados até 19
de novembro de 2021.
Grá co 2 – Total de adesões dos municípios brasileiros
Fonte: Elaboração do autor com base em SNPIR/MMFDH e Diário Oficial da União. Nota: Dados até 19
de novembro de 2021.
Grá co 3 – Total de municípios aderentes por modalidade de gestão
Fonte: Elaboração do autor com base em MMFDH, Diário Oficial da União e IBGE. Nota: Dados até 19 de
novembro de 2021.
Fonte: Elaboração do autor com base em SNPIR/MMFDH e Diário Oficial da União.Nota: Dados até 19 de
novembro de 2021.
Grá co 8 – Taxa de adesão dos municípios por total de municípios da UF
Fonte: Elaboração do autor com base em SNPIR/MMFDH e Diário Oficial da União. Nota: Dados até 19
de novembro de 2021.
municípios
Quilombolas (IBGE)
Não
Integra
integra
Comunidades e terras indígenas e quilombolas o % %
o
Sinapir
Sinapir
Existência de terras quilombolas Sim 19 6,5% 275 93,5%
oficialmente delimitadas no município
aderente Não 113 2,1% 5163 97,9%
Fonte: Elaboração do autor com base em MMFDH; DOU e IBGE, 2020c, 2020d. Nota: Dados até 19 de
novembro de 2021.
Fonte: Elaboração do autor com base em dados do Siop – Ministério da Economia. Nota: Valores
deflacionados pelo IPCA/IBGE. Mês de referência: outubro de 2021.
Tabela 5 – Orçamento de programas, ações e planos de fortalecimento dos organismos
Fonte: Elaboração do autor com base em dados do Siop – Ministério da Economia Nota: Valores
deflacionados pelo IPCA/IBGE. Mês de referência: outubro de 2021.
organismos subnacionais de PIR gastos nos Estados e/ou Distrito Federal (Valores em
R$1.000)
Considerações nais
Referências
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Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
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https://www.cnm.org.br/comunicacao/noticias/criado-para-combater-a-
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https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2019-07/apenas-
67-municipios-aderiram-sistema-contra-desigualdade-racial. Acesso em: 24
nov. 2021.
[39] Reitera-se que “dotação orçamentária” prevista para o órgão gestor por meio de lei não significa
“autonomia orçamentária”. O que a Portaria n.º 1.968 (Brasil, 2021) induz é que as leis orçamentárias
orçamento para que o órgão responsável pelas políticas PIR de modalidade plena ou intermediária cumpra o
seu programa de ações. Já quanto ao grau de autonomia para execução desse orçamento, viu-se que as
unidades gestoras de modalidade plena têm maior autonomia de gestão de seus recursos em relação às de
modalidade intermediária.
[40] Uma breve questão metodológica: é importante, antes de se consultar diretamente o painel do Siop,
mapear os PPAs que encobrem o recorte temporal da pesquisa, dado que uma consulta apenas por termos
(ex.: “racial”, “igualdade racial”) diretamente no painel do sistema pode não retornar todos os dados possíveis.
Como as metodologias de registro, nomes de programas etc. podem se alterar ao longo das gestões do
executivo federal, buscar a cada período o programa ou as ações exatas do planejamento orçamentário pode
ser mais eficiente. Em nosso caso, a pesquisa foi realizada mapeando as seguintes unidades por período: [i]
racial”; [ii] 2015-2019: “Ação – 213Q – Fortalecimento institucional dos órgãos estaduais e municipais para
o enfrentamento ao racismo e promoção da igualdade racial”; [iii] 2020-2021: “Plano orçamentário – 000J –
Fortalecimento institucional dos órgãos estaduais e municipais para o enfrentamento ao racismo e promoção
da igualdade racial”. Portanto, os dados aqui relatados só se referem a essas linhas. No PPA 2004-2007 até há
um programa voltado à promoção da igualdade racial; contudo, como nenhuma das ações previstas estava
explicitamente orientada ao apoio de organismos de PIR subnacionais, o período não foi adicionado à série
histórica. Por fim, para todos os períodos, foram excluídas da base de dados todas as despesas com pagamento
de “diárias”, “passagens”, “despesas com locomoção” e afins; foram mantidos apenas os gastos cuja “natureza de
[41] Por “dotação disponível” estou compreendendo aquilo que no painel de consulta do SIOP se chama
“dotação atual”, isto é, os recursos disponibilizados pela lei orçamentária anual acrescentados às emendas
parlamentares individuais ou de comissões, acrescentados aos créditos suplementares e/ou decrescidos das
reduções realizadas.
Introdução
Em 23 de abril de 2020, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) enviou uma carta ao Ministério da
Saúde (MS) solicitando a divulgação de dados desagregados por raça/cor das infecções e mortes por Covid-19 na
população brasileira.[48] Para isso, a Associação demandou do Ministério a inclusão da variável racial na ficha de
notificação da doença a ser preenchida nos equipamentos de saúde, principalmente nos hospitais e unidades básicas. A
coleta da raça/cor nos sistemas de informações de saúde nacionais é legal desde 1998[49] e foi atualizada três anos antes
da pandemia de Covid-19, em 2017,[50] sendo um dos principais protocolos da Política Nacional da Saúde Integral da
População Negra (PNSIPN). Ainda assim, a gestão pública brasileira do controle da doença foi marcada pela baixa
informação sobre dados raciais (Lima et al., 2020; Santos et al., 2020).
Legalmente, o objetivo do levantamento do quesito raça/cor de usuárias(os) do Sistema Único de Saúde (SUS) é
diagnosticar as diferenças nas condições de saúde entre brancos e negros (pretos e pardos), a partir da autodeclaração
racial das pessoas. Contudo, quando as administrações públicas passaram a publicar a incidência das infecções,
recuperações e mortes da nova doença pela raça/cor, o que ficou visível foi a fragilidade do SUS em monitorar as
desigualdades raciais em saúde. O problema deu visibilidade a processos históricos que tornaram as desigualdades um
objeto sistemático da ação do Estado, após a redemocratização. O quesito raça/cor é uma expressão da história da
institucionalização da PNSIPN dentro do Estado.
Neste capítulo, analiso a institucionalização da PNSIPN no âmbito do poder executivo federal, entre 1980 e 2017,
pelo mapeamento e qualificação das práticas estatais do campo conhecido como focalização da saúde na população negra.
Assumo aqui o conceito de focalização atrelado a uma concepção de justiça social distributiva (Kerstenetzky, 2006). No
contexto de institucionalização de políticas afirmativas no país (Feres Júnior et al., 2018), essas políticas na área da saúde
pública brasileira devem ser entendidas como ações de equidade racial.
A análise foi feita por meio da revisão de pesquisas sobre a focalização e da análise de diversos documentos de Estado
(leis, decretos, resoluções, planos operativos, relatórios, publicações de estatísticas), o que permitiu identificar a
engenharia institucional da política vigente no país. Pelo termo, refiro-me ao formato atual da focalização, moldado por
normas, objetivos, metas, instâncias burocráticas, políticas públicas, publicações e conferências. Esse formato define como
deveria ser a regulação da saúde às populações negras, ao menos da perspectiva legal. Por meio desse mapeamento, é
possível observar como a questão racial foi inserida dentro da saúde pública brasileira.
Identifico que foi elaborada uma governança oficial da saúde da população negra, construída continuamente nesses
40 anos, que teve como efeito tanto períodos de escassez quanto de massividade de práticas estatais de equidade racial, a
depender das relações políticas possíveis entre ativistas do movimento de mulheres negras e o Estado. O resultado, até o
momento, é a existência legal de inúmeros expedientes da focalização, típicos do cotidiano de burocracias de gabinetes,
construídos por burocratas negras(os) e/ou ativistas do feminismo negro, por meio da política interna às burocracias.
Por burocracias de gabinetes, defino as instâncias burocráticas que legalizam as políticas públicas, em contraste com
as burocracias de guichê (Dubois, 2010), que as implementam a partir de elevado nível de discricionariedade e da relação
face a face com usuárias(os) dos serviços públicos. Analiticamente, assumo essas instâncias como tipos distintos de
burocracias em função dos diferentes perfis profissionais, cotidianos de trabalho e poderes na implementação de políticas.
Ambas produzem ações, mas a partir de singularidades que mereceram ser analisadas, especialmente, pelo poder de
produzirem distintas práticas legitimadas como de Estado, como as normas ou as interações locais com beneficiárias(os).
Além desta introdução, este capítulo conta com uma segunda seção na qual apresento o debate conceitual sobre a
relação entre Estado e movimentos negros, que surgiu nos Estados Unidos a partir da década de 1970, e as perspectivas
críticas sobre o conceito homogêneo de Estado utilizado por essa literatura. Também discuto como as políticas públicas
brasileiras para as populações negras têm sido analisadas com base nessa relação, enfatizando a necessidade de maior
fragmentação das burocracias do Estado.
Na terceira seção, analiso como o Estado foi um espaço de produção de práticas voltadas à diminuição das
desigualdades raciais no campo da saúde pública a partir da atuação dos movimentos de mulheres negras desde 1980,
culminando na adoção de uma política afirmativa na área na primeira década do século XXI, a PNSIPN, instituída pela
Portaria n.º 992 do Ministério da Saúde (MS), de 13 de maio de 2009. Categorizo essa trajetória em dois ciclos, sendo o
primeiro, entre 1980 e 1995, marcado por uma intermitência de práticas burocráticas típicas de gabinetes. O segundo
ciclo, entre 1996 e 2017, é caracterizado por um período de contínua e massiva produção de práticas dessas burocracias.
Ao final da seção, sistematizo a institucionalização do segundo período em termos de leis, burocracias, focos e
publicações chanceladas pelo MS.
Nas considerações finais, argumento que a produção dessa institucionalização ganhou ampliação principalmente em
decorrência do ativismo institucional (Abers e Tatagiba, 2015). Mobilizo, para isso, perspectivas teóricas da relação
Estado e sociedade civil que possibilitam analisar a institucionalização de políticas para além dos clássicos protestos
públicos (Alonso, 2012) e pelos processos incrementais (Lindblom, 2006). O caso da PNSIPN exemplifica que a
permeabilidade da questão racial dentro do Estado depende das relações que se estabelecem entre os movimentos negros
e diversos estratos das burocracias. Além disso, reflito sobre as implicações de a agenda de pesquisa sobre a focalização se
concentrar no poder burocrático de legislar.
A institucionalização da PNSIPN é parte de uma “trajetória” (Omi e Winant, 1986, p. 84) mais ampla da relação
entre os movimentos negros e o Estado na produção da “raça” nos aspectos distributivos e identitários.[51] Compreender
a construção social da raça a partir dessa perspectiva processual é uma abordagem, hoje, já clássica, presente nos estudos
de relações raciais dos autores citados. Eles argumentam que a ideia de raça serve a diferentes projetos e categorias raciais
que mudam ao longo do tempo a partir de processos políticos mediados pelo Estado.
Nessa perspectiva, o Estado é ator político mediador desses projetos por ser o espaço de absorção, marginalização,
transformação e rearticulação de interpretações, categorias e alocação de recursos com base na raça, a partir da relação
com os movimentos sociais. As transformações significativas nos projetos raciais ocorrem por relações conflituosas ou
consensuais entre esses atores, o que leva os autores da formação racial a nomearem essa relação como uma “trajetória”.
Nesse sentido, eles estão interessados na trajetória de equilíbrio e desequilíbrio dos projetos raciais que se
desenvolvem a partir da relação entre Estado e movimentos. Essa relação é marcada por constantes rupturas, que podem
ser apreendidas nos momentos de construção e desconstrução das políticas públicas, coalizões políticas, governabilidade
e burocracias que gestam ou não os aspectos distributivos e identitários em torno da raça. Como interpretam Feagin e
Elias (2012), o Estado é o principal lugar de contestação racial para os movimentos sociais e ele próprio se reorganiza
politicamente e legalmente para governar a raça, a depender das relações entre Estado e sociedade.
Um exemplo de análise sobre a sucessão de projetos raciais a partir do Estado é a de Antony Marx, em Making Race
and Nation, quando investigou por que Estados advindos de processos coloniais (Brasil, Estados Unidos e África do Sul)
adotaram, ou não, a segregação racial nacionalmente legalizada após a emancipação dos escravos, opções que resultaram
em projetos raciais posteriores específicos em cada um desses países. Marx (1998) observa, paralelamente, como
ocorreram as organizações políticas de negros após a colonização em função dos projetos de segregação.
A chave explicativa de Marx (1998) para o tipo de segregação racial adotado pelo Estado e a formação das resistências
políticas foram os arranjos de unidade política entre as elites brancas de cada país. Ele identificou que, após a abolição,
onde as elites brancas mais se uniram para manutenção de uma supremacia racial branca, o Estado adotou a segregação,
como ocorreu nas experiências norte-americana e sul-africana. Onde as elites brancas não necessitaram de união, pois sua
supremacia na sociedade não estava ameaçada pelos escravos libertos, o Estado não adotou segregação racial, a exemplo
do caso brasileiro.
O autor argumentou, também, que onde o Estado reforçou legalmente uma dominação racial, surgiram mais
conflitos raciais públicos e protestos contra a supremacia branca, gerando uma organização política tida, pelo autor, como
mais forte entre os negros. Por outro lado, onde o Estado não sustentou legalmente a supremacia branca, essa contestação
política ocorreu mais tardiamente, o que dificultou a formação de uma identidade negra pela política.
A obra de Marx (1998) é um exemplo de como refletir sobre os projetos raciais a partir da intermediação do Estado.
Além de sublinhar a agência dos indivíduos coletivamente, como a organização dos movimentos negros na contestação
das ordens raciais vigentes, seu argumento, adotado nessa tese, é pelo papel central da mediação do Estado na definição
dessas relações raciais e de uma dominação racial no curso da história.
Apesar da utilidade da relação entre Estados e movimentos sociais, no entanto, Marx (1998) ainda escreve o Estado
de forma homogênea, sem levar em conta as disputas que ocorrem em seu interior. De fato, apesar de Omi e Winant
(1986) destacarem o aspecto da complexidade interna, ao enfatizarem o quanto as instituições do Estado são
heterogêneas e contraditórias entre si, podendo agir mediante objetivos raciais opostos, esse argumento gerou poucas
pesquisas que investissem em compreender como essa intra-heterogeneidade estatal influenciou na construção de
políticas raciais institucionalizadas.
Enfatizando esse ponto, Goldberg (2002) sublinha um Estado mais complexo e menos coerente, a partir da
fragmentação interna das agências, das burocracias e das políticas públicas, ampliando a análise sobre como o Estado
produz raça para incluir valores dentro de suas instituições. Para ele, se o Estado é instrumental a interesses da sociedade,
é, concomitantemente, oposição a eles. Já Loveman (1999), sublinha a necessidade de desagregação das dimensões das
atividades estatais, bem como dos tipos, papéis e interesses das elites estatais, ou seja, para os conflitos políticos entre
elites concorrentes dentro do Estado.
No caso norte-americano, mais recentemente, Skrentny (2013) também partiu da centralidade do Estado para
analisar as implicações das percepções de uma elite burocrática no sucesso das demandas políticas dos movimentos sociais
raciais nos Estados Unidos. A elite que ele define contempla atores com poder de influenciar o processo de fazer a política
(policy making). O elemento que faz o autor alocar o representante estatal na categoria de elite é sua capacidade de
influenciar resultados políticos que serão materializados em políticas públicas. Com esse critério, essa elite inclui um
amplo leque de pessoas: presidentes, chefes de gabinetes, membros do legislativo, burocratas de agências, juízes.
Ele identificou que a variação no sucesso da implementação de políticas afirmativas demandadas pelos grupos
racializados esteve relacionada às percepções que a elite burocrática tinha sobre os movimentos sociais. Ao comparar a
luta por políticas inclusivas para negros, latinos, asiáticos, indígenas e mulheres, Skrentny (2013) analisou como cada
grupo conseguiu efetivar, politicamente, suas demandas, a depender das percepções dessa elite. Por exemplo, as pressões
dos afro-americanos pelas políticas apenas foram atendidas após massivos protestos violentos que mudaram o
entendimento dessa elite, que passou a ver aquele público como merecedor de uma política pública focalizada. A partir
da experiência com o movimento negro, essa elite conduziu com muito mais facilidade e rapidez políticas posteriores
voltadas para outros grupos socialmente vulneráveis (com exceção das mulheres), pois, automaticamente, passou a
compará-los com os afro-americanos.
Com essa proposta de análise, o autor está chamando atenção para a importância de se estudar os detentores de poder
dentro do Estado, com foco em elites burocráticas. Nesse sentido, interessa-se pela perspectiva de um Estado heterogêneo
e não apenas unitário. Está interessado nas estruturas de poder dentro do Estado e como isso afetará as demandas dos
movimentos sociais. Coaduna com a ênfase do Racial Formation na relação entre Estado e movimentos sociais, mas
marca uma perspectiva de Estado incongruente e não unitário, comparado com estudos pioneiros sobre as relações entre
Estado e movimentos negros, como o de Marx (1998).
A focalização da saúde na população negra no Brasil é parte de um processo de interferência no Estado, pelos
movimentos negros, desde a redemocratização do país. Como identifica a literatura sobre as relações entre o Estado
brasileiro e os movimentos negros (Lima, 2010; Rodrigues, 2014; Rios, 2014; Paschel, 2016), o período de políticas de
“consciência racial” (Caldwell, 2017, p. 8), visando mitigar desigualdades raciais no país, advém de dois tipos de relação
entre o Estado e os movimentos. Primeiro, a clássica pressão externa ao Estado, após a redemocratização. Posteriormente,
um ativismo interno ao Estado, não necessariamente consensual, com quadros burocráticos atuantes nos diversos níveis
estatais.
Estudos indicam que a elite dos movimentos negros não conseguiu penetrar na política institucional brasileira até a
redemocratização (Rios, 2014), com exceção da transformação da Frente Negra Brasileira (FNB) em partido político na
década de 1930. Por isso, no regime militar, ativistas se organizavam e atuavam politicamente por meio de associações
políticas e culturais fora das instituições políticas clássicas. Como argumentam Andrews e De La Fuente (2018), as
análises das mobilizações negras, na América Latina, tendo como parâmetro os direitos civis norte-americanos e o
antiapartheid sul-africano, impedem a identificação da mobilização política por outras atividades, como estudos mais
recentes já tem demonstrado – revoltas, quilombos, clubes, jornais, organizações civis, irmandades religiosas e sociedades
de ajuda mútua. Ou seja, antes da redemocratização, não houve ausência de contestação política negra no Brasil, mas
mobilizações singulares próprias à história das relações raciais na região.
Apenas na pós-redemocratização, representantes de movimentos negros entram no Estado (Rios, 2014). Desse
período de maior inserção, a avaliação de Lima (2010) é que os governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002)
marcaram uma inflexão no tratamento da raça pelo Estado. Se, antes, o Estado silenciava as desigualdades raciais e
propagava uma harmonia racial no país, aquele governo marcou o reconhecimento do racismo pelo Estado e o início da
adoção de ações para lidar com as desigualdades.
Como analisa a autora, as políticas estavam atreladas à agenda e às burocracias dos Direitos Humanos, com uma
estratégia discursiva e política de reconhecimento das desigualdades, sem ações específicas na redistribuição dos recursos
públicos (Lima, 2010, p. 81). O período produziu ações geradas por uma relação entre os movimentos e Estado mais por
fora, com pouca inserção nas burocracias, a exceção do Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da
População Negra (GTI), sob a coordenação de Hélio Santos.
Já os governos petistas, segundo Lima (2010), modificaram a relação de atuação dos movimentos negros exterior ao
Estado, com representantes ocupando cargos e/ou instâncias de controle da nova gestão governamental, com o tema
racial atrelado a uma pasta específica, a Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), criada em 2003, e a
uma instância colegiada específica, o Conselho Nacional de Participação da Igualdade Racial (CNPIR), do mesmo ano,
pressionando por políticas repressivas, de reconhecimento identitário e de redistribuição de recursos.
Para Paschel (2016), essa mudança no Estado brasileiro, do universalismo para o reconhecimento de direitos à
população negra, é explicada pela atuação dos movimentos negros, mesmo com poucos recursos, falta de apoio popular e
poucos aliados políticos. Segundo a autora, os movimentos negros conseguiram mudar o discurso do Estado, fazendo
com que ele começasse a assumir ações voltadas às desigualdades raciais, em razão de transitarem entre os campos
políticos nacionais e internacionais ao mesmo tempo, conformando o que ela chama de “campo político étnico-racial
global”, entendido como “conjuntos de instituições internacionais e redes transnacionais, bem como normas globais e
repertórios de ação transnacionais” (p. 26, tradução nossa). Para a autora, os ativistas foram capazes de mudar políticas
nacionais por estarem sempre aliados a esse campo, evidência da transnacionalidade da luta política negra (Braga, 2020).
Esses autores convergem para o achado de que os movimentos negros buscaram transformar as desigualdades raciais a
partir de diferentes contextos políticos. Desde a redemocratização, o tema do racismo ganhou espaço na agenda do
Estado, a partir da estratégia adotada por uma elite negra de assumir cargos dentro do aparelho estatal, ou de se
articularem diretamente com os profissionais do Estado, ou, ainda, de assumirem ambos os papéis, transitando entre
movimentos e burocracias, com o objetivo de problematizarem a universalidade dos direitos estabelecidos na
Constituinte e distribuírem esses direitos aos negros via políticas públicas. Como consequência, Rios (2014) e Paschel
(2016) argumentam que esse momento da trajetória gerou a ascensão de uma elite política negra concebida no processo
de construção de políticas públicas raciais via Estado, o que propiciou muito conhecimento aos ativistas em fazer
políticas públicas, legado cujos efeitos ainda demandam análise pelo campo das relações raciais.
Em comparação à literatura norte-americana do Racial Formation, identificam-se poucas pesquisas nacionais que
analisam o comportamento de grupos de elites burocráticas no Estado em torno das recentes políticas raciais.
Investigações nesse sentido poderiam melhor elucidar, por exemplo, se e como a diversidade racial dos quadros
burocráticos do Estado brasileiro mudou e se isso implica em diferentes processos de construção de políticas públicas,
especialmente em função das políticas afirmativas nos concursos públicos federais (Silva e Silva, 2014) e após quase 20
anos desde que os profissionais do Estado passaram a administrar políticas raciais.
Um exemplo é a pesquisa de Powell e Moraes Silva (2018) analisando o processo político de construção e
manutenção das categorias raciais utilizadas no censo do Estado brasileiro (pretos, pardos, amarelos, indígenas e brancos)
nas últimas quatro décadas, apesar das mudanças das narrativas estatais sobre raça. As autoras identificaram o papel
central de burocratas em promover a continuidade dessas categorias diante das disputas por escolhas de categorias mais
válidas e desenvolveram o conceito de technocratic compromise. O termo revela a influência desses profissionais no
processo político de construção das categorias raciais, apesar de não estarem ligados nem às lideranças governamentais
que ocupam o Estado nem às lideranças políticas dos movimentos sociais, mas de usufruírem de um nível de autonomia
para desenhar e implementar as categorias oficiais.
Outro exemplo de análise interna à formação das políticas de cunho racial no Brasil, pode ser encontrado em Gomes
e Alves (2017) ao analisaram a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) em
2003. Eles argumentam que a criação da nova burocracia ocorreu por meio da cooptação de lideranças dos movimentos
sociais para acomodar demandas e tensões do Estado com os movimentos negros, resultando na gradual criação de
“lugares” organizacionais para possibilitar o combate às desigualdades raciais. Ou seja, esses autores argumentam que foi
exatamente esse processo, entendido como uma estratégia política dos movimentos, que promoveu mudanças
institucionais internas ao Estado já que “o cooptador também sofre alterações” (2017, p. 397).
Com o foco nas burocracias do Estado do poder executivo, ainda ficam abertos alguns questionamentos. Como se
formaram, dentro delas, grupos com percepções distintas sobre desigualdades raciais como um problema a ser abordado
pelo Estado? uais são os níveis de centralidade da raça entre as burocracias? ual é a relação das percepções raciais dos
profissionais com as das suas instituições regulamentadoras de políticas afirmativas? Como esses grupos profissionais
influenciaram as políticas raciais mediadas pelo Estado? O quanto a relação com os movimentos sociais raciais
influenciou nas concepções raciais dos profissionais? Dentre outras questões.
Na trajetória de relação entre os movimentos negros e o Estado, o tratamento das desigualdades raciais em saúde foi
impulsionado largamente por ativistas dos movimentos de mulheres negras (Damasco et al., 2012; Caldwell, 2017;
Coelho e Lavalle, 2019; Lima e Rios, 2019). As pessoas identificadas pela literatura como históricas lideranças dessa
construção estão sintetizadas no quadro 1.
Quadro 1 – Lideranças negras da focalização da saúde
Conforme a literatura, as organizações dos movimentos negros do início da década de 1970 eram patriarcais e, entre
os conflitos internos aos movimentos, o bloqueio à liderança política das mulheres negras e os posicionamentos sexistas
em relação à reprodução feminina e à violência doméstica favoreceram a criação de organizações específicas de mulheres
negras. Por outro lado, as especificidades desses temas às mulheres negras não encontravam recepção nos movimentos
feministas das mulheres brancas de classe média.
Contra o sexismo e o racismo vindos de ambos os movimentos sociais em que elas circulavam, foram essas ativistas
que inseriram o tema da saúde pública focalizada na população negra dentro dos movimentos sociais e na relação com o
Estado. O ativismo das mulheres negras perante o Estado gerou o campo da saúde da população negra e essa agenda, em
específico o tema da saúde reprodutiva, foi central à própria constituição do feminismo negro no Brasil (Maher, 2005;
Caldwell, 2017; Lima e Rios, 2020).
No processo de construção do campo “saúde da população negra”, o período de 1980 a 1995 é marcado pela pressão
das ativistas negras, externas ao Estado, para que ele lidasse com a diminuição das desigualdades raciais em saúde. Com
pouca permeabilidade dentro das administrações públicas, elas estavam organizadas politicamente em organizações da
sociedade civil brasileira, fundadas a partir da década de 1980. As organizações pioneiras desse processo estão listadas no
quadro 2.
A transnacionalidade dessas lideranças e organizações era fortalecida pela cooperação internacional e pela circulação
em arenas internacionais (Caldwell, 2017; Paschel, 2018; Braga, 2020), especialmente aquelas voltadas à saúde sexual e
reprodutiva sob a organização das Nações Unidas (ONU). No que tange a transnacionalidade dos movimentos
feministas negros, as décadas de 1970, 1980 e 1990 do século XX são marcadas pelos seguintes acordos e eventos
multilaterais que favoreceram a pressão por uma saúde pública focalizada em nível local: a Convenção Internacional
sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1969), a Década Internacional da Mulher (1970-1980),
o III Encontro Feminista da América Latina e do Caribe (1985), a V Conferência Mundial sobre População e
Desenvolvimento (Cairo/Egito, 1994), a IV Conferência Mundial da Mulher (Pequim, 1995).
Além do fortalecimento político das ativistas por fora do Estado e nas arenas internacionais, as décadas de 1980 e
1990 geraram duas delimitações à focalização: o foco na saúde sexual e reprodutiva da mulher negra; e a produção de
informações estatísticas das desigualdades raciais pelo Estado. A luta pelos direitos sexuais e reprodutivos, desde 1980,
pode ser interpretada como o ponto de partida para a atuação das organizações de mulheres negras no Estado, marcando
o início da construção de uma saúde focalizada, legalizada apenas em 2009. Foi por meio da luta junto ao movimento
feminista pela construção dos direitos sexuais e reprodutivos que as ativistas negras incorporaram a perspectiva
interseccional entre raça, gênero e classe, conforme as norte-americanas (Crenshaw, 2004). Conforme aponta Caldwell
(2017), as abordagens feministas provocaram mudanças na perspectiva estatal brasileira de cuidado da saúde das
mulheres. Em contraste ao controle da natalidade, que recaía sobre mulheres negras e pobres (Caetano, 2004), adotou-se,
legalmente, uma perspectiva integral à saúde das mulheres, que estabeleceu cuidados amplos e em todas as fases de vida e
culminou na criação do Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), em 1983.
Naquele período, a atuação das ativistas no campo da saúde sexual e reprodutiva priorizou denunciar e reverter a
incidência da esterilização de mulheres negras, entendida como uma política pública de natalidade no país (Caetano,
2004; Ribeiro-Corossacz, 2009; Caldwell, 2017). Situações-chaves que marcaram esse período de denúncia foram: 1) a
reação das ativistas ao estudo do Governo Maluf (O Censo de 1980 no Brasil e no Estado de São Paulo e suas
curiosidades e preocupações), com propostas racistas de controle de natalidade (1982); 2) a Campanha Nacional contra a
Esterilização de Mulheres Negras (1990); 3) a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Esterilização (1991-
1992); 4) a Declaração de Itapecerica da Serra, do Seminário Nacional de Políticas e Direitos Reprodutivos das Mulheres
Negras (1993).
A denúncia da esterilização como uma política pública de controle demográfico foi motivada por uma série de
publicações com dados estatísticos das desigualdades por instituições da sociedade civil. Destacaram-se os estudos
populacionais da demógrafa Elza Berquó, do Centro Brasileiro de Análise Planejamento (Cebrap) e do Núcleo de
Estudos de População (Nepo/Unicamp), como o “Dinâmica Demográfica da População Negra Brasileira” (1982). Além
da produção estatística, o Cebrap, por meio das iniciativas de Berquó e do Programa de Saúde Reprodutiva da Mulher
Negra, foi responsável pela formação de pesquisadores, principalmente pesquisadoras negras, que atuaram,
posteriormente, na construção da focalização junto ao Estado. Também se destacaram as publicações do Programa de
Saúde do Geledés, coordenado na época por Edna Roland, como o “Esterilização: impunidade ou regulamentação?”
(1991).
Desde o período das denúncias da prática de esterilização de mulheres, a produção de dados estatísticos para
visibilizar as desigualdades raciais em saúde passou a ser uma estratégia política das ativistas (Ribeiro-Corossacz, 2009;
Damasco et al., 2012; Caldwell, 2017; Lima e Rios, 2020), que se manteve no ciclo seguinte. Em parte, porque na época
das denúncias faltavam dados para sustentar a alegação de racismo nas políticas de controle de natalidade. Vale relembrar
que dados estatísticos do Estado com a clivagem racial não eram publicados, sendo exceção o Suplemento Especial sobre
esterilização, da Pesquisa Nacional por Amostragem em Domicílio (PNAD), em 1986. Por isso, a produção estatal de
estatísticas das desigualdades raciais em saúde, via criação de um quesito raça/cor nos sistemas de informações da saúde
pública, passou a ser uma estratégia política dessas mulheres. Assim, o Estado poderia adotar ações a partir desses dados.
Ao qualificar as práticas que resultaram da relação dos movimentos de mulheres negras com o Estado no ciclo que vai
de 1980 a 1995, identifiquei que o período foi majoritariamente caracterizado por ações esparsas entre si, tipicamente de
gabinetes, relacionadas à saúde sexual e reprodutiva e à produção pública de estatísticas das desigualdades raciais em
saúde. Exemplos típicos de práticas foram as instâncias de participação, como o Conselho Estadual da Condição
Feminina do Estado de São Paulo, em 1980, e grandes programas, como o Programa de Atenção Integral à Saúde da
Mulher – Paism, em 1983. A criação de instâncias e programas tornou-se mais sistemática no período seguinte.
Esse ciclo escasso de tecnologias de governo encerra-se com um protesto dos movimentos negros, a Marcha Zumbi
dos Palmares, ocorrida em 20 de novembro de 1995, que pautou demandas perante o Estado por meio de uma clássica e
bem visível estratégia dos movimentos sociais, o protesto público.
Caracterizo o segundo ciclo, entre 1996 e 2017, como um período de contínua e massiva produção de práticas
burocráticas do tipo de gabinetes, culminando na institucionalização da focalização pela Portaria do Ministério da Saúde
n.º 992, de 13/05/09, sob o nome de Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). Os
aproximados vinte anos do ciclo foram influenciados pelas demandas de dois grandes protestos políticos, distantes
temporalmente: a Marcha Zumbi dos Palmares, de 20 de novembro de 1995, e a Marcha das Mulheres Negras, ocorrida
em 18 de novembro de 2015.
Além dos ocorridos no Brasil, um evento internacional foi central para fornecer a intensidade das ações que
culminaram na regulamentação da focalização em 2009: a Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação
Racial, a Xenofobia e formas Correlatas de Intolerância, em Durban, entre 31/8/2001 e 8/9/2001. Especialmente, os
governos do PT (Lula e Dilma) foram os mais pressionados pelos compromissos internacionalmente firmados em
Durban (Ribeiro, 2014; Paula e Heringer, 2009).
As demandas do protesto de 1995 atravessaram os governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC – 1995 a 2003) e
dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT – 2003 a 2016). Mas, após a Conferência de Durban (2001) e, em
paralelo à chegada ao poder do PT, a produção de práticas burocráticas da focalização passaram a ser feitas com ativistas
por dentro das burocracias de Estado (Caldwell, 2017; Paschel, 2018).
Essa inserção não está descolada de um movimento mais amplo de entrada dos movimentos sociais nas burocracias do
Estado na América Latina (Paschel, 2016; Lavalle, 2019). Representantes dos movimentos de mulheres também
passaram a atuar internamente no Estado, ocupando cargos comissionados ou posições em instâncias participativas
(Caldwell, 2017). Isso não significa que as relações com o Estado passaram a ser consensuais, mas que as novas
configurações do poder permitiram que representantes dos movimentos negros penetrassem as burocracias federais
(Araújo, 2015).
A construção da focalização nesse período, por representantes dos movimentos negros foi analisada por Araújo
(2105). O autor entrevistou as principais lideranças dos movimentos que atuaram nessa institucionalização, a exemplo
dos representantes das instituições Criola, Geledés, Unegro, Renafro. As lideranças avaliaram o processo a partir das
ações do Estado e das estratégias políticas adotadas por essas organizações. Segundo ativistas, a atuação do Estado fora
paradoxal: apesar da adoção da temática racial na saúde, a gestão do tema dentro do próprio ministério se deu de forma
lenta. Eles indicaram, também, outras características da atuação estatal, como o foco pouco preventivo da política, as
ações fragmentadas, a falta de pressão política entre os entes federados para a implementação local e a falta de decisão
política em torno dos próprios dados estatísticos de desigualdade do Estado. Ao avaliarem as estratégias adotadas pelas
organizações que representam, os ativistas focaram em discorrer sobre a fundamentação legal da Política e a ocupação de
instâncias centrais de gestão do SUS, a exemplo do Conselho Nacional de Saúde (CNS).
Observa-se que, nesse longo lobby burocrático, conhecer o perfil epidemiológico da população negra pela clivagem da
raça continuou sendo um ponto de luta política central que atravessou os dois ciclos. Como analisou Lima (2010; 2020),
a produção de conhecimento a partir desses dados e o acesso a eles sempre foi um obstáculo no campo da saúde. Observa-
se que, no período anterior, marcado pela construção dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, as ativistas
indicavam a ausência de dados oficiais que possibilitassem comprovar, estatisticamente, as desigualdades nos resultados de
saúde entre mulheres brancas e negras. Como narrou em entrevista Edna Roland (ex-presidente da ONG Fala Preta! e
relatora geral da Conferência de Durban) a Ribeiro-Corossacz (2009), a classificação racial foi uma estratégia utilizada
para visibilizar as desigualdades na saúde pela produção estatística do Estado.
Algumas leis específicas sobre a inserção do quesito raça/cor nos sistemas de informação do SUS se materializaram no
segundo ciclo. Por exemplo, em 1996, ocorreu a legalização da coleta da raça/cor para alimentar o Sistema de
Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc) e o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), sistemas com melhores
completudes da informação (Braz et al., 2013). Para isso, o quesito foi inserido nas Declarações de Nascidos Vivos
(DNV) e Declarações de Óbito (DO) – Resolução n.º 196, de 10/10/1996, do Conselho Nacional de Saúde (CNS).
Recentemente, a coleta recebeu reforço legislativo. A Portaria n.º 344, de 1/2/2017, dispõe sobre o preenchimento
do quesito raça/cor nos formulários dos sistemas de informação em saúde do SUS. Já o artigo 243, da Portaria de
Consolidação n.º 1, de 28/9/2017, que consolida “normas sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde, a organização
e o funcionamento”, reforça a coleta do quesito pela criação de ferramentas para o monitoramento e avaliação,
qualificação da coleta do dado raça/cor e publicação sistemática anual de relatório sobre a saúde da população negra. Isso
indica o esforço político dos movimentos sociais em assegurar que o Estado continue a dar visibilidade às desigualdades
raciais por sua produção estatística.
Se a criação e uso do quesito raça/cor ainda é um dos principais protocolos da PNSIPN, sua utilização gerou
controversa entre ativistas e cientistas no campo da saúde na época. A quantidade de artigos publicados sobre isso no ano
de 2005 é exemplar. Para as ativistas, a produção estatística pela raça/cor era necessária para evidenciar as diferenças e
combater desigualdades. Alguns pesquisadores (Maio e Monteiro, 2005; Fry, 2005) argumentavam que essa ação não era
acompanhada de duas reflexões. Uma, sobre o impacto da classificação estatal na construção de identidades racializadas
(Bailey et al., 2018). Outra, sobre a relação não comprovada, geneticamente, entre raça e doença, o que induziria à
perspectiva biológica da ideia de raça (Morning, 2011).
Apesar da controversa no campo da saúde, a busca por fornecer visibilidade às desigualdades pelas estatísticas estatais
não está desassociada da estratégia mais ampla desse momento da relação entre os movimentos negros e Estado: o uso de
dados numéricos de desigualdades raciais para legitimar as demandas políticas mediadas por ele. Conforme indica Lima
(2010), a inclusão do quesito cor nos sistemas de informação do Estado e a produção de informações públicas sobre a
população negra foi, oficialmente, estabelecida como meta pelo Estado já no I Programa Nacional de Direitos Humanos
(PNDH), em maio de 1996.
Posteriormente, o uso de estatísticas das desigualdades passou a ser uma ação política mais ampla para a ida à Durban
(2001). Como identificou Paschel (2016), o movimento negro brasileiro mobilizou os dados como uma estratégia
política na Conferência. A estratégia brasileira diferiu daquela adotada pelos pares colombianos e por outros países
latino-americanos que não produziam estatísticas étnico-raciais, que se limitaram a mobilizar politicamente os símbolos
da cultura e identidade afro, menos efetivos para demandar políticas de redistribuição.
No campo da saúde, um exemplo do uso das estatísticas em Durban (2001) foi a publicação do relatório Nós,
mulheres negras, da Articulação de Organização de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), sediada em Salvador/BA. O
documento foi publicado após encontro nacional da organização, em setembro de 2000, que traçou a situação da mulher
negra brasileira, incluindo as questões da saúde reprodutiva (Caldwell, 2017). Segundo a autora, para a Conferência de
Durban (2001), o relatório foi traduzido para outros idiomas e distribuído aos representantes dos países na conferência.
As estatísticas desafiavam a narrativa do Estado brasileiro caracterizada pelo silenciamento das desigualdades raciais
vividas pelas mulheres negras com vistas à manutenção da imagem de país racialmente harmônico.
Ao revisar as ações afirmativas no campo da saúde, Lima (2010) argumentou que a trajetória da relação entre
movimentos e Estado teve três momentos. O primeiro foi marcado pela demanda por produção pública de dados das
desigualdades raciais. Depois, recebeu ênfase a visibilidade pública da incidência de doenças na população negra. Por fim,
o foco atual no racismo institucional. Apesar da visibilidade das práticas advindas dessa nova relação com o Estado, o
ativismo interno no SUS ainda foi pouco analisado. Como evidencia Paschel (2016) em sua etnografia sobre a
construção das políticas afirmativas no Brasil, os representantes dos movimentos negros com quem a pesquisadora
conversou tenderam a privilegiar os momentos visíveis dos protestos públicos na explicação sobre a mudança no discurso
e nas políticas do Estado em detrimento das estratégias não midiáticas. Uma cronologia sintética desse processo e das
principais ações de equidade racial em saúde podem ser encontradas em linha do tempo elaborada por mim para o Nexo
Políticas Públicas (Milanezi, 2020a).
A engenharia institucional da PNSIPN entre 1996 e 2017
Foram muitas as práticas de Estado resultantes da estratégia do ativismo institucional para construir a focalização por
dentro das burocracias de gabinetes. Para melhor sistematizá-las, passo a agrupá-las por tipo: a) legislação; b) metas e
focos; c) instâncias de assessoramento/gestão; e) publicações do Ministério da Saúde; e f ) encontros e conferências. Esse
agrupamento permite melhor identificar as práticas que estão protocoladas como de equidade racial pelo governo federal.
A legislação sobre a focalização da saúde na população negra versa, principalmente, sobre direitos sexuais e
reprodutivos, coleta do quesito raça/cor nos sistemas de informações do SUS, instâncias de participação dos movimentos
negros nas políticas de saúde e formas de operacionalização das ações entre os entes federativos. No quadro 3, elenco as
principais leis, resoluções e portarias em vigor.
Quadro 3 – Legislação nacional sobre a saúde da população negra
A última norma de 2017 merece maior atenção, pois permanece válida até o momento da escrita deste capítulo,
período governamental de mudanças no discurso e nas políticas sobre raça, racismo e desigualdades raciais (Rios, 2020).
Em Brasília, no dia 3 de outubro de 2017, no Diário Oficial da União (DOU), Seção 1, Suplemento n.º 190, foi
publicada a primeira etapa da elaboração do Código do SUS, documento de 716 páginas que visa atualizar e compilar as
normas do sistema. No suplemento, a Portaria de Consolidação n.º 2, de 28 de setembro de 2017, que estabelece “normas
sobre as políticas nacionais de saúde do Sistema Único de Saúde”, reafirmou a PNSIPN como uma política do SUS, no
Anexo XIX, entre as páginas 120 e 122.
De acordo com essa Portaria, a PNSIPN passou a ser uma política de Promoção da Equidade em Saúde, prevista no
âmbito do Capítulo I – Das Políticas de Saúde, na Seção IV – Das Políticas de Promoção da Equidade em Saúde, no Art.
5.º, com o seguinte objetivo: “Promover a saúde integral da população negra, priorizando a redução das desigualdades
étnico-raciais, o combate ao racismo e à discriminação nas instituições e serviços do SUS” (Portaria de Consolidação n.º
2, de 28/9/17, p. 120).
Isso significa que a partir da gestão de Michel Temer (2016-2018), a PNSIPN passou a ser considerada uma das
políticas de equidade no âmbito do SUS, juntamente com as relacionadas às populações LGBT e em isolamento
territorial (campo, floresta, água). Ou seja, no campo da saúde pública, observam-se mudanças semânticas oficiais na
focalização. Até o momento, o Ministério da Saúde reconhece o racismo como um determinante social de saúde e
mantém normas para lidar com as desigualdades raciais em saúde. Porém, opta por outros termos menos racializados,
como nos ciclos anteriores.
A lei da PNSIPN (inicialmente, pela Portaria n.º 992, de 13/5/09 e, depois, pela Portaria de Consolidação n.º 2, de
28/9/17) convoca três grupos de princípios democráticos: 1) constitucionais, 2) do SUS, 3) outros definidos na própria
lei (equidade, transversalidade e integralidade). Da Constituição Federal de 1988, mobilizou os seguintes princípios:
seguridade social, cidadania, dignidade, repúdio ao racismo e igualdade. Do SUS (Lei n.º 8.080, de 19/9/1990):
universalidade, integralidade, igualdade, descentralização, participação popular, controle social.
O princípio da equidade é definido na Portaria da PNSIPN como aquele “que embasa a promoção da igualdade a
partir do reconhecimento das desigualdades e da ação estratégica para superá-las”. A transversalidade é definida como
“complementaridade, confluência e reforço recíproco de diferentes políticas de saúde”. A visão integral do sujeito é
estabelecida nos seguintes termos: “considerando a sua participação no processo de construção das respostas para as suas
necessidades, bem como apresenta fundamentos nos quais estão incluídas as várias fases do ciclo de vida, as demandas de
gênero […]”.
Além da tríade equidade-transversalidade-integralidade, a Portaria oficializa o reconhecimento do racismo pelo
Estado brasileiro nas condições de saúde: “Reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo
institucional como determinantes sociais das condições de saúde, com vistas à promoção da equidade em saúde” (Portaria
de Consolidação n.º 2, de 28/9/2017, Anexo XIX – PNSIPN, Capítulo II – Objetivo Geral, p. 120).
A partir dessa legislação, identifico três grandes grupos de ações delimitados para intervenção do Estado. O quadro 4,
a seguir, sintetiza o foco da política em termos de agravos, grupos populacionais e expedientes estatais.
Quadro 4 – Delimitações da focalização da saúde na população negra
Ação Detalhamento
Doença falciforme
DST/HIV/Aids
Agravos Tuberculose
Hanseníase
Câncer de colo uterino
Câncer de mama
Transtornos mentais
Jovens e adolescentes negros
Em função desses focos, ações específicas transformaram-se em políticas públicas ou programas, como: Programa de
Anemia Falciforme (PAF) de 1996; Programa de Combate ao Racismo Institucional de 2001; Programa Estratégico de
Ações Afirmativas: população negra e AIDS de 2005; Ação de Atenção à Saúde das Populações uilombolas, no
Programa Brasil uilombola de 2005; Programa de Combate ao Racismo Institucional na Saúde de 2005; Programa
Nacional de DST/AIDS de 2005; Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) de 2009.
Da legislação mencionada, os Planos Operativos (PO) também merecem análise mais detalhada, pois são exemplares
do percurso da focalização dentro das instâncias do Ministério da Saúde. Os PO da PNSIPN são tecnologias que
transformam a política em estratégias de ação e orientam os quadros burocráticos para sua implementação. Existiram três
Planos. O I Plano, para os anos de 2008 a 2011, foi estabelecidoem umdocumento do Ministério da Saúde (MS), em
abril de 2008, intitulado Política Nacional de Saúde Integral da População Negra – Plano Operativo. O II Plano, para os
anos de 2013 a 2015, foi estabelecido pela Resolução n.º 2, de 2 de setembro de 2014, da Comissão Intergestores
Tripartite do MS; o III Plano, para os anos de 2017 a 2019, foi estabelecido pela Resolução n.º 16, de 30 de março de
2017, também pela Comissão Intergestores Tripartite do MS.
Entre os nove anos que separam os três Planos, de 2008 a 2017, observa-se que a focalização da saúde na população
negra foi pactuada em diferentes instâncias do ministério, mudou de formato institucional, ampliou a mobilização das
convenções internacionais, ampliou a mobilização das regulamentações nacionais sobre políticas afirmativas e delimitou a
focalização dentro do SUS. No que se refere às convenções multilaterais, os dois primeiros planos não as mobilizaram em
seus preâmbulos. Já o III Plano registrou o compromisso do governo brasileiro em relação à Convenção Internacional
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; à Conferência Mundial contra o Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, Durban, África do Sul; e à Década Internacional de
Afrodescendentes (2015 e 2024).
No que tange à legislação nacional, os planos passaram cada vez mais a mobilizar as legislações que foram criadas
dentro do Estado no período de políticas de “consciência racial” (Caldwell, 2017). Se no I PO, há menção ao PAC Mais
Saúde e ao Pacto pela Saúde, nos II e III Planos são acionados o Estatuto da Igualdade Racial (Lei n.º 12.288, de 20 de
julho de 2010), a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra – PNSIPN (Portaria GM/MS n.º 992, de 13
de maio de 2009) e os acordos com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da
República (Seppir/PR).
Apesar da variação no quantitativo de metas a ser alcançado pelo Governo Federal, Estados e Municípios, o comum
aos três Planos é o que se priorizou para a PNSIPN: a formação dos profissionais da saúde; a produção de conhecimento
sobre desigualdades raciais na área; a criação de instrumentos de monitoramento dessas desigualdades (indicadores e
avaliações); a ampliação do acesso aos serviços; a participação social no controle das políticas de saúde; o fortalecimento
das religiões de matriz africana; as violências às populações negras (homicídios, materna-infantil, doméstica); a saúde
sexual e reprodutiva da mulher negra; e a doença falciforme.
A análise desses planos indica, também, que a gestão da política se inseriu em diferentes espaços de poder de decisão
sobre a saúde pública entre 1996 e 2017. Isso nos leva a entender melhor as instâncias da administração pública que
assessoraram, administraram e monitoraram a implementação da focalização, conforme quadro a seguir. Este inclui,
também, a mudança mais recente de posicionamento da política dentro do MS. Essas burocracias variaram entre espaços
de participação da sociedade civil nas políticas, espaços de decisão entre os entes federativos sobre as políticas de saúde e
espaços de implementação cotidiana por burocratas no MS.
Quadro 5 – Instâncias burocráticas da focalização entre 1996 e 2019
Ano Burocracia
Grupo de Trabalho (GT) sobre saúde da população negra, no âmbito do Grupo de
1996
Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra
2004 Comitê Técnico de Saúde da População Negra (CTSPN), extinto em 2016
2006 Conselho Nacional de Saúde (CNS)
2008 Comissão Intergestores Tripartite (CIT)
Coordenadoria-Geral de Apoio ao Controle Social, à Educação Popular em Saúde
e às Políticas de Equidade do SUS, dentro da Diretoria de Apoio à Gestão
2009
Participativa (Dagep) da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (Segep),
que geriu a PNSIPN desde a criação da política e foi extinta em 2019
Comissão Intersetorial de Políticas de Promoção da Equidade (Cippe), que passou
2016
a concentrar as políticas nomeadas de equidade
Coordenação de Garantia da Equidade (Coge), da Coordenação-Geral de Garantia
2019 dos Atributos da Atenção Primária (CGGAP), do Departamento de Saúde da
Família (DESF), da Secretaria de Atenção Primária em Saúde (SAPS)
Fonte: A autora, 2022.
Para legitimar as ações de equidade racial, várias publicações sobre a saúde da população negra foram
sistematicamente publicadas por agências estatais e se encontram disponibilizadas ao público, como na Biblioteca Virtual
em Saúde (BVS) do MS. No quadro 6, estão registradas as principais publicações com a chancela do Ministério da Saúde.
Quadro 6 – Publicações do governo federal sobre a saúde da população negra
Os encontros, conferências e seminários de Estado também foram práticas sistemáticas desse processo institucional.
Como eventos específicos da focalização, a partir de 1996, destaco: a Mesa-Redonda sobre Saúde da População Negra
com a divulgação de uma taxonomia de doenças negras (1996); a realização do seminário internacional
Multiculturalismo e Racismo: o Papel da Ação Afirmativa nos Estados Democráticos Contemporâneos (1996); o
Workshop Interagencial sobre Saúde da População Negra, por iniciativa do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento/PNUD e da Organização Pan-Americana da Saúde/OPAS (2001); o I Seminário Nacional de Saúde
da População Negra (2004); e o II Seminário Nacional de Saúde da População Negra (2006). Somando-se a eles, a 12.ª e
a 13.ª Conferências Nacionais de Saúde (2003 e 2007) também passaram a registrar a focalização em seus documentos.
Para marcar o tema, foi definida uma data: 27 de outubro, escolhido como o Dia Nacional de Mobilização Pró-Saúde
da População Negra. Recente memória desses quase quarenta anos de ativismo institucional perante o Estado foi
realizada pelas representantes do Grupo de Trabalho Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva
(Abrasco), Maria do Carmo Sales Monteiro e Fernanda Lopes, em entrevista a esta pesquisadora em 27 de outubro de
2020 (Milanezi, 2020b). Naquele ano, o governo federal não organizou nenhum evento sobre a focalização, mesmo
diante da desigual distribuição da infeção e morte pela Covid-19 (Marinho et al., 2021).
Essa síntese de ciclos, práticas e protocolos da focalização revela um resultado da trajetória da relação entre
movimentos negros e Estado no campo da saúde pública: um arcabouço de práticas estatais características das burocracias
de gabinete que regulamentam a proposta de governar a saúde de negras e negros. Identifica-se que a construção da
PNSIPN foi longa, contínua, entre intermitência e continuidade na produção dessas práticas. Por isso, a perspectiva de
incrementalismo na mudança das ações do Estado parece apropriada para o caso: “uma sequência rápida de pequenos
passos, alterando drasticamente o statu quo antes que uma mudança maior de golpe” (Lindblom, 2006, p. 107, tradução
nossa).
Como evidencia Lima (2010, p. 83) ao analisar uma década de políticas afirmativas nos campos da educação,
trabalho e saúde, “o volume de documentação encontrada […] sinaliza o esforço de institucionalizar a questão racial por
meio do recurso de programas, leis e decretos”. Mas, como argumenta a autora, esse não é um projeto acabado, mas um
processo mais longo e em curso sobre políticas de redistribuição e reconhecimento no país.
Os estudos das relações raciais (Omi e Winant, 1986), da ação coletiva (Lavalle et al., 2019), da implementação de
políticas (Zittoun, 2014) e dos processos de formação de Estado (Shore e Wright, 1997) argumentam pela compreensão
das políticas públicas a partir da disputa contínua de diversos agentes, em distintos espaços do Estado. Como argumenta
Vianna (2013), quando se analisa o universo das leis, tende-se à distinção precisa entre o que seja Estado e Sociedade, pela
separação de fazeres, sendo a primeira instituição a responsável em legislar e a segunda a sede de aplicação das leis.
Contudo, conforme a autora, ao analisarmos atores, instâncias e práticas envolvidas na produção da legislação, essa
separação é inviável.
A análise desse processo revela como o ativismo burocrático interno ao Estado possibilitou que a focalização fosse
construída, muito mais que pelos grandes protestos políticos dos movimentos sociais, tidos como as clássicas ações
coletivas que mudam a trajetória da relação com o Estado. As ativistas dos movimentos de mulheres negras, ora como
representantes de seus movimentos, ora como profissionais do Estado, podem ser caracterizadas como “desafiantes”
(Alonso, 2012) e sua atuação pode ser descrita como “ativismo institucional” (Abers e Tatagiba, 2015), por se
apropriarem de redes de relacionamentos dentro e fora do Estado para suas movimentações políticas dentro das
burocracias. Essa foi a estratégia mobilizada para provocar uma mudança política incremental em um período em que o
Estado reconheceu publicamente as desigualdades.
Os profissionais não eleitos que atuam pelo Estado não são meros operadores de decisões governamentais, mas atores
dentre tantos outros que definem e disputam politicamente as ações do Estado. Segundo Rua e Aguiar (2006), burocratas
não são agentes neutros; eles mobilizam recursos políticos em seus grupos de interesse, desenvolvem concepções próprias
sobre as políticas que competem com as dos próprios políticos eleitos, definem um papel no jogo político das políticas
públicas. Ainda segundo as autoras, os funcionários do Estado fazem governo quando conseguem formular metas
políticas próprias, as ajustam a procedimentos governamentais já existentes, ocupam posições centrais no governo e
controlam decisões em torno da implementação das ações.
Conforme pesquisas sobre a PNSIPN com foco locais (Araújo e Teixeira, 2013), é possível interpretar que a
construção das práticas institucionais da focalização no nível federal, atualmente sendo replicadas no estadual e
municipal, advém de uma circulação de ativistas e gestoras(es) públicos articulados com os movimentos de mulheres
negras. O universo de articulação política dentro e entre essas burocracias de gabinete do poder executivo indica o quanto
a produção da institucionalização foi difusa entre os níveis federativos e conflitiva com os quadros do Estado (Batista et
al., 2016) e dos movimentos sociais (Maher, 2005).
Como apresentei no item 2, ainda são escassas pesquisas sobre como as burocracias do poder executivo se
transformaram para a construção e implementação de políticas afirmativas desde a redemocratização. Como exemplo,
sabemos pouco ainda sobre a criação, perfil e comportamento dos quadros burocráticos dentro do Ministério da Saúde
(MS) para gerir políticas de equidade racial. Ou sobre os fluxos de institucionalização dessas políticas a partir das
disputas internas dentro das burocracias do ministério.
Atualmente, o Brasil passa por transformações políticas em direção ao espectro conservador (Lima, 2018). Também,
as mudanças recentes no governo federal já caminham para processos de desinstitucionalização de políticas públicas
destinadas às populações negras e retração da permeabilidade dos movimentos negros dentro Estado (Rios, 2020). No
novo contexto, será necessário analisar como essas transformações entram nas burocracias centrais da saúde pública e
como influenciam a trajetória da focalização nos próximos anos. De fato, as transformações internas e cotidianas do
poder executivo para administrar políticas voltadas ao combate das desigualdades raciais e seu oposto, as modificações
para esvaziamento dessa gestão, são temas em aberto atualmente no campo das relações raciais.
A histórica institucionalização da focalização revela um lado da governança de populações. A trajetória possibilitou
experiência com práticas de institucionalização dentro do Estado brasileiro que pode ser mobilizada pelos movimentos
sociais para demandar continuidade e capilaridade política nas burocracias do SUS. Mas, como argumenta literatura
sobre o Estado, essas práticas são a parte visível e espetacular do poder de governar (Fonseca et al., 2016). Tão espetacular
que levam os próprios agentes da regulamentação a priorizarem a análise, a narração e as propostas de monitoramento a
partir desse conjunto de ações (Werneck, 2016). O foco, portanto, volta-se para o campo jurídico, ou os “grandes papeis”
das políticas públicas (Nogueira, 2016).
Por isso, vale avançar na análise sobre a institucionalização em burocracias da ponta do SUS, com base nas
perspectivas fragmentadas de Estado (Shore e Wright, 1997). Como conclui Caldwell (2017), é necessário analisar a
reverberação da focalização dentro do próprio sistema de saúde. Eu sublinharia maior esforço analítico em torno das
burocracias do “guichê” (Dubois, 2010), a exemplo de hospitais e unidades básicas de saúde. Como ocorre a construção
da focalização em burocracias que se relacionam diretamente com os usuários, majoritariamente pessoas negras, que estão
mais distantes do processo institucional via leis, estatísticas, metas e publicações? Como dinâmicas locais dessas
burocracias criam práticas de equidade racial, reproduzem ou minimizam desigualdades, apesar dos distintos governos?
uais são as características da institucionalização da equidade racial por outras práticas estatais? Se a perspectiva de
análise de implementação da PNSIPN estiver inclinada apenas a considerar as transformações das práticas de gabinetes,
pouco espaço há para a análise da reverberação da política nos equipamentos públicos de saúde. Dessa forma, são
desconsiderados os aspectos políticos e discricionários de outras instâncias burocráticas que também fazem raça.
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[51] Na perspectiva desses autores, Raça é campo autônomo de produção de conflitos sociais, organização política e significados culturais, entendida como “um
conceito que significa e simboliza conflito e interesse social por meio da referência aos diferentes tipos de corpos humanos” (Omi e Winant, 1986, p. 55, tradução
nossa). Ao usarem o termo trajetória, eles a definem como “padrão de conflito e acomodação que ocorre ao longo do tempo entre movimentos sociais de base
racial e as políticas e programas de Estado” (p. 78). Outra categoria dessa abordagem é a de Projeto Racial, definido como “interpretação, representação ou
explicação das dinâmicas raciais, e um esforço de reorganizar e redistribuir recursos ao longo de linhas raciais específicas” (p. 56).
Capítulo VIII
Suspeição generalizada:
entrelaçamentos entre raça e gênero na
produção da repressão estatal seletiva
Juliana Vinuto
Introdução
A cidade que escondia, porém, ensejava aos poucos a construção da cidade que desconfiava, que
transformava todos os negros em suspeitos. É esta suspeição que Eusébio de ueiroz está preocupado
em afirmar: ‘qualquer’ ajuntamento de escravos deve ser dissolvido; ‘os que nele se encontrarem’
devem ser presos; os ‘que se tornarem suspeitos’ devem ter o mesmo destino. A suspeição aqui é
indefinida, está generalizada, todos são suspeitos […]. Ao invés de uma suspeição ‘pontual e nominal’,
é a suspeição generalizada e contínua que se torna o cerne da política de domínio dos trabalhadores
(Chalhoub, 1990, p. 192).
Vemos que o autor indica que a suspeição com relação a negros no pós-
escravidão não era pontual, mas generalizada, contínua e indefinida, atuando
sobre qualquer ajuntamento de negros, que eram vistos automaticamente como
suspeitos. E foi essa a razão pela qual optei por utilizar o mesmo termo para
nomear o que eu via em minha pesquisa de campo: apesar de se tratar de um
contexto histórico diverso do abordado por Chalhoub, o termo tinha a
conveniência de descrever a constante sensação de desconfiança que um grupo
quantitativamente minoritário sente em um contexto no qual a maior parte dos
membros são negros e vistos como ameaça.
A ideia embutida no termo “suspeição generalizada” ajudou-me a
compreender a prioridade que os agentes socioeducativos destinavam aos
procedimentos de segurança em sua jornada de trabalho, enquanto atividades
socioeducativas eram vistas como prescindíveis e, por vezes, até como
desarrazoadas. O contexto de superlotação, precariedade e presunção da culpa
fazia com que o centro de internação fosse visto como um ambiente de perigo
constante e, consequentemente, de suspeição ininterrupta. Essa demanda de
desconfiança intermitente é ilustrada no seguinte trecho de entrevista:
Nós somos adestrados aqui, enquanto agente, a se antever ao conflito. Então, quando você começa, na
gíria, a ficar escaldado, aprender a… mais ou menos igual a cachorro, farejar mesmo o tumulto onde
vai ter, então a gente consegue precaver, a gente consegue… Entendeu? Impedir, até que ocorram
prováveis conflitos (Entrevista, agente de segurança socioeducativo masculino, junho de 2016).
Por certo, é fundamental o investimento nas medidas de prevenção das situações-limite, tais como:
motins, fugas, evasões, descumprimento, invasões, incêndios, agressões, depredações e outras
ocorrências desse tipo. No entanto, a realidade tem demonstrado que é quase impossível torná-las
inexistentes num estabelecimento de privação e restrição de liberdade de adolescentes em conflito
com a lei. As situações-limite estão potencialmente presentes e podem eclodir a qualquer momento,
em qualquer lugar, envolvendo uma, duas, dez pessoas, atingindo um ou mais setores e, até mesmo, a
unidade toda (Degase, 2013).
Por ser constantemente criminalizado em seus contatos com a polícia, o ‘favelado’ precisa a todo
instante fazer um esforço para provar que é ‘trabalhador’ e que não tem envolvimento com os bandos
armados que atuam em seu local de moradia. Mas, por serem quase que automaticamente
considerados como ‘coniventes’ com as atividades ilícitas praticadas por traficantes, os moradores de
favela, mesmo quando sofrem violações de seus direitos e/ou atos violentos promovidos pelos
próprios agentes do Estado, enfrentam uma enorme dificuldade para denunciar essas ações.
uando eu era lido como mulher negra, antes da minha adequação, eu sofria outro tipo de
preconceito e de racismo. As pessoas tinham uma leitura que hipersensualizava e objetificava as
mulheres negras – é claro que a mulher em si é objetificada, mas no caso da mulher negra há uma
objetificação específica – que tem que ser a gostosona, a passista, a que sempre tem que servir ao
homem, com determinado padrão de corpo, resquícios relacionados ao processo de escravidão
também estão aqui e toda maneira de preconceito racista tem essa ligação.
Mas depois que eu fiz a adequação e eu passei a ser lido como homem negro pela sociedade, o racismo
mudou. Mesmo que exista o privilégio por ser homem, senti e sinto, que o homem negro é visto como
o bandido, aquele que rouba, que é marginal, que é ameaça e ameaçador, que é visto como uma
virilidade inquestionável e a ligação cultural com o falocentrismo. Ou seja, enquanto homem negro
trans, eu deixei de ser objeto para ser ameaça (Portal Geledés, 2015).
Peçanha destaca que só percebeu que era lido socialmente como homem no
momento em que sofreu racismo: ao entrar em um ônibus, viu a movimentação
de uma senhora com cara de “acuada” que tirou sua bolsa de um lado e passou
para o outro. Ele percebeu que causou medo e que esse medo era decorrente de
sua existência enquanto negro e enquanto homem (Portal Geledés, 2015).
Tais considerações sugerem que a suspeição generalizada atinge mesmo
aqueles que não cometem crimes ou que não estão em territórios que ensejem
ameaça. Basta que os indivíduos articulem negritude e masculinidade para que a
suspeição ocorra, como sugere a afirmação de iago Alves, jovem ativista do
Morro do Jacarezinho (RJ):
A tecnologia mesmo do racismo é bastante complicada… uando alguém olha pra mim, com um
olhar estranho, com um olhar de suspeita, e segura a bolsa de forma mais forte, como é que eu vou
explicar, através de palavras, que aquela pessoa está sendo racista? Como é que eu vou explicar que um
olhar está sendo racista? É bastante complicado.[54]
iago fala sobre um “olhar de suspeita” que, apesar de ser percebido por ele,
dificilmente pode ser explicado em palavras. É possível conjecturar que, ao fazer
um “olhar de suspeita”, uma pessoa não necessariamente percebe o racismo em sua
própria ação, já que a suspeição é tida como reação natural a uma situação
ameaçadora. Entretanto, a construção do medo é atravessada por inúmeros
elementos, alguns deles produzidos historicamente. O ditado popular “branco
correndo é atleta, negro correndo é ladrão” (Ribeiro, 1995) é exemplar de um
racismo “sem intenção”: parte-se de uma representação em que é primordialmente
o homem negro que causa medo, já que o olhar de quem vê, ainda que desconheça
as desigualdades raciais que produz e reproduz, foi habituado para não sentir
temor do branco que corre.
É importante lembrar que esses modos cotidianos de hierarquização racial
ocorrem também frente a homens negros que trabalham em instituições estatais
de lei e ordem, como é o caso do policial civil negro que, enquanto levava
suspeitos para uma delegacia, foi agredido por um policial militar que não
acreditou em suas credenciais. Por aparentar ser um suspeito por excelência, o
policial negro ouviu durante a abordagem: “Vai, negão, deita no chão” e “ue
polícia que nada, seu filho da puta” (Adorno, 2020).
Convém acessar essas nuances que demandam e legitimam a repressão estatal
seletiva com base em suas dimensões racializadas e generificadas e assim
compreender como ocorre a produção de hierarquias implícitas que também
atuam na desumanização de determinados grupos. Por isso, é necessário
compreender as dimensões menos conscientes e/ou evidentes do racismo para,
desse modo, compreender seus efeitos institucionais (Carmichael e Hamilton,
1992; Vinuto, 2020).
Proponho aqui uma hipótese de trabalho que sugere que a suspeição
generalizada é elemento central para entendermos como as instituições de
segurança e justiça produzem hierarquias raciais e de gênero a partir do modo
como administram os conflitos que chegam até elas. Por ora, meu interesse
principal é compreender como essa constante sensação de risco e de presunção da
culpa produz representações, legitima práticas e silencia saberes em contextos de
privação de liberdade e, desse modo, reproduz um modo de funcionamento
pautado no imperativo securitário, minando iniciativas de caráter humanitário.
A partir de agora gostaria de propor uma discussão de caráter conceitual a fim
de ressaltar dois efeitos centrais da suspeição generalizada: a reprodução de uma
imagem de controle (Collins, 2019) que estabiliza uma representação socialmente
partilhada do que seria um “bandido”; e, como tal representação atravessa o modo
de funcionamento das organizações estatais e produz sujeição criminal (Misse,
2010), normalizando a prisão e a morte de homens negros.
A figura do criminoso abre espaço para todo tipo de discriminação e reprovação com total respaldo
social para isso. E ao retomarmos os dados que demonstram que há um grupo alvo e predominante
entre a população prisional, ou seja, que é considerada criminosa, temos aí uma fórmula perfeita de
escamoteamento de um preconceito que é racial primordialmente.
Considerações nais
Este trabalho propôs uma discussão sobre o que tenho chamado de “suspeição
generalizada”, termo que ajuda a compreender expectativas tácitas históricas e
territorializadas bem como sua decorrente repressão estatal seletiva, com base no
imbricamento entre dimensões racializadas e generificadas. Observamos que a
figura do “bandido”, vista aqui enquanto imagem de controle que concretiza
sujeição criminal, é construída não apenas legalmente, mas moral e
historicamente, o que legitima a violência estatal desproporcional que produz os
números de encarcerados e de mortos durante operações policiais. Assim, penso
que a análise de processos de suspeição generalizada em instituições privativas de
liberdade tem o potencial de proporcionar um debate sobre racismo que vá além
de dados estatísticos, já que se revela um fenômeno dificilmente mensurável, mas
nem por isso menos relevante para a dinâmica dessas instituições. Ao atentar para
processos de suspeição generalizada, o pesquisador pode elencar elementos que
permitam entender como o racismo opera cotidianamente na privação de
liberdade. Se estatísticas nos ajudam a explicitar o racismo embutido nos
processos de seletividade penal, pouco sabemos sobre como o racismo atravessa o
cotidiano daqueles que são encarcerados e da jornada de trabalho dos que ali
atuam.
Vale lembrar que questionar a repressão estatal seletiva não significa
desconsiderar as facções de tráfico de drogas que existem em muitos espaços de
pobreza e que causam violências aos moradores desses territórios. O que se
questiona é a maneira como a repressão estatal seletiva é realizada nesses espaços,
que além de diferir das ações executadas em outros lugares, produz punições e
mortes de caráter racializado e generificado. Assim, ainda que a raça e o gênero
dos suspeitos habituais não sejam mencionados diretamente, a invocação de
estereótipos raciais e de gênero é óbvia, ainda que muitas vezes mediada pela
referência ao local de moradia do “bandido”, como se a repressão particular nas
favelas fosse cega ao gênero e à raça. Ao analisar os imbricamentos de diferentes
matrizes de opressão que naturalizam a repressão seletiva a homens negros, espera-
se fortalecer um feminismo que não está interessado somente na igualdade entre
homens e mulheres, mas na erradicação das diferentes estruturas de dominação
que atravessam o sexismo (Hooks, 2019).
Referências
Flauzina, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o
projeto genocida do estado brasileiro (Dissertação). Universidade de Brasília,
Brasília, 2006.
Hooks, Bell. Teoria Feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva, 2019.
Neitzel, Sönke e Welzer, Harald. Soldados sobre lutar, matar e morrer. São Paulo:
Companhia das Letras, 2014.
Pinheiro, Luana et al. Retrato das desigualdades de gênero e raça. Brasília: Ipea –
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2008.
______. “De matar: maternidade negra como ação política na ‘pátria mãe’
(gentil?)”. In Vargas, João Helion Costa e Pinho, Osmundo Araújo (ed.).
Antinegritude: o impossível sujeito negro na formação social brasileira.
UNIAFRO. Cruz das Almas, Belo Horizonte: Editora UFRB, Fino Traço
Editora, 2016.
Silva, Luiz Antonio Machado e Leite, Márcia Pereira. “Violência, crime e polícia:
o que os favelados dizem quando falam desses temas?”. Sociedade e Estado, v.
22, n. 3, p. 545-591, dez. 2007.
Vargas, Joana Domingues. “Indivíduos sob suspeita: a cor dos acusados de estupro
no fluxo do sistema de justiça criminal”. Dados, v. 42, n. 4, p. 729-760, 1999.
Vianna, Adriana e Farias, Juliana. “A guerra das mães: dor e política em situações
de violência institucional”. Cadernos Pagu, n. 37, p. 79-116, dez. 2011.
______ e Franco, Túlio Maia. “‘Porque isso aqui, queira ou não, é uma cadeia’: as
instituições híbridas de interface com a prisão”. Revista Mediações, v. 24, n. 2,
p. 265-277, ago. 2019.
presente trabalho foi realizado com o apoio da Capes por meio de bolsa de pesquisa de doutorado.
[53] A medida socioeducativa de internação é uma das sanções previstas no art. 112 do Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA), destinadas a adolescentes com idade entre 12 e 17 anos incompletos que cometam
atos infracionais. Além da internação – que é considerada a mais grave, sendo a única privativa de liberdade –
liberdade).
[54] A fala em questão foi realizada durante o webnário “Prisão, Direitos e Coronavírus”, organizado pela
pesquisadora Juliana Sanches no âmbito do projeto de extensão “UFF nas Ruas: assessoria popular em
administração de conflitos urbanos na cidade de Niterói (RJ)”, coordenado pelo Prof. Lênin Pires e por mim.
r=eyJrIjoiZTlkZGJjODQtNmJlMi00OTJhLWFlMDktNzRlNmFkNTM0MWI3IiwidCI6ImViMDkwN
Camille Giraut
Doutoranda no Anthropology and Sociology Department em Graduate
Institute Geneva. Atualmente, é pesquisadora Sanduíche no Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail:
camille.giraut@graduateinstitute.ch
Cristiano Rodrigues
Doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e professor do
Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais
(DCP-UFMG). E-mail: cristianor@gmail.com
Flavia Rios
Doutora pela Universidade de São Paulo (USP), professora da Universidade
Federal Fluminense (UFF) e integrante do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia na mesma instituição (PPGS-UFF). Além disso, é pesquisadora do
Núcleo de Estudos Guerreiro Ramos (Negra-UFF), do Afro-Cebrap e coordena o
Projeto Gestão Municipal da Igualdade Racial de Niterói (GIRA-Niterói). E-
mail: flaviarios@id.uff.br
Jaciane Milanezi
Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Atualmente, faz pós-doutorado no Programa Internacional de Pós-Doutorado do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (IPP-Cebrap), com bolsa da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Também é
pesquisadora do Afro-Cebrap. E-mail: jaciane.milanezi@cebrap.org.br
Juliana Vinuto
Pesquisadora de pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA-UFF). Doutora em
Sociologia pela UFRJ, com estágio doutoral de um ano no Centre de Recherches
Sociologiques sur le Droit et les Institutions Pénales (Cesdip), na França.
Pesquisadora do Projeto Gestão Municipal da Igualdade Racial de Niterói (Gira-
Niterói). Integrante do Núcleo de Estudos Guerreiro Ramos (Negra-UFF), do
Laboratório de Estudos sobre Conflitos, Cidadania e Segurança Pública (Laesp-
UFF) e do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana
(Necvu-UFRJ). E-mail: j.vinuto@gmail.com
Verônica Toste Da on
Doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp-
Uerj). Professora adjunta do Departamento de Sociologia e Metodologia em
Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da mesma instituição. E-mail:
veronicatoste@id.uff.br