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Raça & Estado

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Tania Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira
Aníbal Francisco Alves Bragança (EdUFF)
ORGANIZAÇÃO
Flavia Rios
Luiz Augusto Campos
Raquel Guilherme de Lima

Raça & Estado

Rio de Janeiro
2022
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Diagramação Angel Cabeza

Livro digital Lucas Camargo


CATALOGAÇÃO NA FONTE

UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC

R586 Rios, Flavia.

Raça & Estado [recurso eletrônico] / Flavia Rios, Luiz Augusto Campos, Raquel

Guilherme de Lima (org.). – Rio de Janeiro: EdUERJ, 2022.

1 recurso online : 2320 Kbs (302 p.) ; ePub.

ISBN 978-85-7511-569-5

1. Racismo - Brasil. 2. Estado – Brasil. I. Campos, Luiz Augusto. II. Lima, Raquel

Guilherme de. III. Título.

CDU 323.12(81)

Bibliotecária: Luciana de Avellar Mattos CRB-7/4544


Sumário

Prefácio 
Márcia Lima

Introdução

Capítulo I: Movimento negro e ativismo institucional no Brasil: da


redemocratização ao governo FHC (1978-2002) 
Cristiano Rodrigues

Capítulo II: Estado, raça e racismo: as Relações Internacionais revisitadas 


Giovana Esther Zucatto

Capítulo III: Tomando partido? A percepção de candidaturas negras sobre


os obstáculos a sua ascensão política 
Wescrey Portes Pereira
Luiz Augusto Campos

Capítulo IV: Raça, Estado e burocracias: as comissões de heteroclassi cação


nas Instituições Federais de Ensino Superior 
Veronica Toste Daflon
Graziella Moraes Silva
Camille Giraut
Capítulo V: Aderências e resistências às ações a rmativas na pós-graduação 
Anna Carolina Venturini

Capítulo VI: Raça e Estado: o caso da institucionalização do Sistema


Nacional de Promoção da Igualdade Racial – Sinapir 
Henrique Rodrigues Moreira

Capítulo VII: Práticas de gabinete: a institucionalização de ações de


equidade racial no poder executivo federal entre 1980 e 2017 
Jaciane Milanezi

Capítulo VIII: Suspeição generalizada: entrelaçamentos entre raça e gênero


na produção da repressão estatal seletiva 
Juliana Vinuto

Sobre os autores
Prefácio
Márcia Lima

É com enorme alegria e entusiasmo que apresento o livro Raça & Estado. A
presente obra reúne um conjunto de textos com contribuições cruciais ao campo
de estudo das relações raciais do país que, sem dúvida, é um dos temas de maior
visibilidade intelectual e política no Brasil e no mundo. O momento para sua
publicação não poderia ser mais propício dados os desafios que o país enfrenta no
que concerne ao fortalecimento da democracia.
Não é de hoje que o movimento negro e os principais intelectuais dedicados
ao tema chamam a atenção para a importância do papel do Estado brasileiro na
produção e reprodução das desigualdades raciais do país e têm insistido,
enfaticamente, na necessidade de incluir na pauta governamental o
enfrentamento dessas históricas disparidades. Embora nas duas últimas décadas
essa agenda tenha apresentado avanços históricos, o período mais recente
sinalizou para um grande retrocesso mostrando o quanto as desigualdades raciais
são sensíveis às crises estruturais e às ações ou inações do Estado.
Os capítulos deste livro procuram responder a uma pergunta de pesquisa de
alta relevância intelectual: de que modo podemos observar e analisar o Estado
operando raça em sua forma organizacional, ou seja, em suas normas, ações,
projetos e políticas? Trazendo novas perspectivas e desafios criados pelas
mudanças citadas anteriormente, o livro demonstra como o Estado é um ator
central na produção das narrativas sobre raça.
Organizado em três partes – “Raça e as fronteiras do Estado”, “Estado e as
fronteiras da raça” e “Políticas públicas e raça” – o livro apresenta resultados de
pesquisas de alto nível, produzidas por uma nova geração de pesquisadores que
demonstram a maturidade intelectual desse debate. Ao analisar a relação entre
raça e Estado sob diferentes prismas, agendas e atores, os trabalhos aqui reunidos
avançam em questões centrais das Ciências Sociais contemporâneas.
O livro contribui para o entendimento dos dilemas acerca da participação e
da representação política. Dedica-se a entender como o movimento negro vem
construindo sua relação com o Estado e analisa, com base na percepção de
candidatos negros, sua relação com os partidos políticos, demonstrando como
nosso sistema partidário, elemento importante da nossa democracia, contribui
para as hierarquias raciais na participação e representação política. Além disso,
aborda de forma atual o tema das ações afirmativas, interpretando de forma
qualificada e original os desafios perpetrados por essa agenda dentro do Estado
brasileiro e demonstrando a importância das mudanças institucionais para a
consolidação das políticas públicas. O livro ainda traz uma importante
contribuição para uma das agendas mais desafiadoras do estado democrático de
direito: a institucionalização da violência racial como uma política de estado.
Dessa forma, este livro demonstra que os processos de racialização não são
resultados das recentes políticas públicas de caráter inclusivo, e sim que a temática
racial é constitutiva do Estado brasileiro, tornando-se um tema cada vez mais
central para o fortalecimento da democracia e de suas instituições.
Introdução

Os diferentes projetos para o Estado-nação brasileiro sempre mobilizaram


discursos sobre a raça. Não sem razão, o problema da raça e da formação do
estado-nacional são temas indissociáveis. Depois do abafamento de vários
movimentos de secessão territorial e da vitória na guerra do Paraguai, em 1870, as
elites locais celebravam a unificação de uma força militar, a consolidação de
amplas fronteiras territoriais e a imposição bem-sucedida do português como
língua hegemônica. Finalmente, o país reunia quase todos os elementos da
definição de nação então dominante na Europa: um Estado, um território, uma
língua. Faltava apenas uma só “raça”.
É naquele contexto que emerge uma das ferramentas mais poderosas dos
estados nacionais: o censo demográfico. No Brasil, as estatísticas censitárias são
decisivas para a contagem da população, bem como para a sua classificação racial
( Jane, 2003). A produção de estatísticas oficiais, de âmbito nacional, é decisiva
para saber as características daqueles que seriam o povo e a raça da nação brasileira
(Paixão, 2009). Não por acaso, no primeiro censo moderno do Brasil, que data de
1872, já se faz presente a pergunta sobre a raça. Tais informações eram atribuídas
pelos próprios agentes do Estado, não restando à população qualquer chance para
sua autonomeação ou autoidentificação. Dito dessa forma, o Estado brasileiro
passou a fabricar a raça em estatísticas oficiais da sua população, além de ser um
dos principais formuladores e difusores de ideologias raciais na sua própria
formação enquanto entidade legítima de controle da força, da cobrança do fisco,
da imaginação territorial, enfim, da sua própria identidade como nação.
Assim como em outros países do mundo, o processo de construção do Estado
brasileiro esteve fortemente atrelado aos debates sobre raça. No fim da
monarquia, a diversidade étnica e racial de nossa população e o amplo
contingente negro em seu interior eram vistos quase consensualmente como
obstáculos ao progresso nacional. O mesmo vale para o período republicano,
momento em que as ideias eugênicas penetraram praticamente todas as políticas
públicas do Estado (Schwarcz, 1993). Mesmo com a mudança do discurso oficial
a partir dos anos 1930 e 1940, com o Estado Novo convertendo a crítica à
mestiçagem em elogio, a raça permaneceu como categoria estruturante de nosso
processo de construção nacional (Skidmore, 1976; Guimarães, 2016).
Apesar disso, o lugar da raça na atuação do nosso Estado, bem como o lugar
do Estado na atualização de nossas concepções de raça, ficou relegado à reflexão
historiográfica, ocupando uma posição marginal nas Ciências Sociais. Ao que
parece, o processo de construção nacional varguista foi tão bem-sucedido que a
questão racial passou a ser vista como um problema eminentemente
socioantropológico, razoavelmente apartado da reflexão política sobre as
dinâmicas estatais. Prova disso é o fato de os trabalhos dedicados a compreender a
questão racial terem focado, até os anos 1980, as relações raciais internas à
sociedade – a exemplo dos problemas da convivialidade e interações entre negros
e brancos (Estudos da Unesco, 1955), da integração na sociedade (Fernandes,
1964) e da estrutura social (Pinto, 1953), bem como das assimetrias e
desigualdades raciais (Hasenbalg, 1979) –, dando pouca atenção ao papel
desempenhado pelo Estado em sua conformação. Já a reflexão da Ciência Política
praticamente ignorou o lugar da raça no processo de formação, desenvolvimento e
estabelecimento do Estado-nacional, suas burocracias e ainda seus espaços de
governança e representação política.
Este livro tem o objetivo de retomar, sob novas perspectivas, a conexão entre
raça e Estado no Brasil. O Estado é, talvez, o maior mediador e, portanto,
potencializador dos discursos e clivagens raciais nas sociedades modernas, seja por
meio de sua atuação biopolítica via sistemas educacionais, de saúde etc., seja a
partir de sua atuação necropolítica a partir dos aparatos repressores como a polícia
e as Forças Armadas. A raça, por seu turno, define o Estado. Não é gratuito que o
Brasil tenha sido encarado, interna e externamente, como uma “nação completa”
depois de resolver discursivamente sua questão racial. Foi a apologia da
mestiçagem e a defesa da democracia racial que permitiram ao país construir uma
imagem de si como nação desigual e hierárquica, porém livre do “mal do século”, o
racismo.
Do ideal de branqueamento às políticas estatais antidiscriminatórias,
passando pelo longo período de hegemonia do mito da democracia racial, o
Estado brasileiro foi e continua sendo o grande potencializador de projetos
tradicionais e alternativos relacionados à raça. Isto é, ainda que os entendimentos
e significados envolvidos no que consideramos raça e nação encontrem na
sociedade suas expressões mais visíveis, capturáveis nas diversas interações, valores,
símbolos, instituições etc., é a partir do Estado que eles são organizados,
potencializados e difundidos.
Aliás, grande parte das críticas direcionadas aos paradoxos criados por nossa
Sociologia e Antropologia da questão racial expressa justamente o ponto cego do
Estado. Como nota Andreas Hofbauer (2006), inspirado em Oracy Nogueira
(1955), é possível distribuir as reflexões socioantropológicas mais marcantes do
campo em duas abordagens teoricamente especulares e ocasionalmente
contraditórias. De um lado, uma abordagem mais antropológica e culturalista da
questão racial, interessada justamente nos processos de construção complexa e
instável dessas clivagens, senda que une autores tão distintos como Gilberto
Freyre, ales de Azevedo e Roberto DaMatta. Do outro lado, uma abordagem
mais sociológica e estruturalista que toma essas clivagens raciais como evidências
empíricas capazes de explicar a dimensão racial das nossas desigualdades, algo que
aproxima autores igualmente distintos como Florestan Fernandes, Carlos
Hasenbalg e Antônio Sérgio Guimarães. Mais do que resumir esquematicamente
os principais nomes da reflexão a uma dicotomia, essa chave analítica ajuda a
entender que as clivagens raciais explicam fenômenos sociais e, ao mesmo tempo,
devem ser elas próprias explicadas, posto que são variáveis dependentes e
independentes ao mesmo tempo. Mas essa relação de mútua determinação só
escapa de uma tautologia vazia se entendermos o Estado como principal
mediador nesse processo. Mais do que um artefato cultural, o elogio à mestiçagem
foi antes um projeto político estatal, do mesmo modo que a sua contestação só
alcançou setores mais amplos da sociedade quando penetrou o Estado. A raça só
se tornou parte da estrutura e da cultura brasileiras porque o Estado garantiu, de
diferentes formas e em diferentes momentos, que os projetos raciais fossem para
além de discursos.
No entanto, de que modo podemos observar e analisar, na prática, o Estado
operando raça em sua forma organizacional, ou seja, em suas normas, ações,
projetos e políticas? Cada parte deste livro pode ser lida como um exemplo desse
problema. A primeira aborda a construção das fronteiras internas e externas do
Estado e a mobilização da raça nesse processo. Esse tópico é abordado com base
na interação entre movimento negro e instituições estatais, o papel da raça na
construção de nossa política externa e das nossas relações internacionais e o lugar
desse tema em nossos partidos políticos e eleições, sobretudo a partir das
perspectivas de candidaturas negras. A segunda parte foca o papel desempenhado
atualmente pelo Estado na remodelação de nossas fronteiras raciais, sobretudo
depois do advento e espraiamento de ações afirmativas raciais. A terceira e última
parte traz reflexões sobre a interação entre políticas públicas e as desigualdades
raciais, a partir da institucionalização de políticas de promoção da igualdade
racial e da produção de hierarquias raciais no sistema de justiça.

Raça e as fronteiras do Estado

De forma geral, os capítulos da seção que inaugura esta coletânea analisam a


relação entre raça e Estado. Embora o aparato estatal tenha ascendência quanto à
gestão e a categorização racial da população, ele também está submetido às
pressões que partem da sociedade e disputam as oportunidades por ele geradas.
Tal argumento é central para a análise empreendida no capítulo de Cristiano
Rodrigues, assim como no texto de Wescrey Portes Pereira e Luiz Augusto
Campos. A contribuição de Giovana Esther Zucatto, que encerra a seção, ainda
nos permite refletir sobre como a raça e o racismo conformam nações com base
em suas conexões globais.
O professor de ciência política Cristiano Rodrigues reconstitui
historicamente a estratégia e os repertórios mobilizados pelo movimento negro
desde a ditadura militar até o segundo governo de Fernando Henrique Cardoso.
O autor destaca os vínculos estabelecidos entre Estado e ativistas negros, assim
como suas implicações para ambos. Ressalta, ainda, a importância do ativismo
político para confrontar a democracia racial, ideologia de Estado. Nas interações
entre Estado e sociedade civil, protagonizadas pelos movimentos negros, surge
nova linguagem política. Na esfera do Estado, o saldo do século XX é mais do que
a formação de uma nova imaginação para o estado nacional, agora não mais nação
homogênea, mas multicultural. Trata-se também da construção de uma
linguagem de direitos que dá visibilidade ao tema das desigualdades raciais. Nessa
nova linguagem de Estado, os negros deixam de ser povo e passam a ser cada vez
mais agentes políticos relevantes, que buscam efetiva cidadania para a população.
Wescrey Portes Pereira e Luiz Augusto Campos investigam, com base na
percepção de candidatas e candidatos negros ao legislativo fluminense, os
mecanismos políticos e sociais que reduziriam as chances eleitorais desse grupo.
O trabalho busca avançar no conhecimento sobre as razões do insucesso das
candidaturas pretas e pardas, uma vez que a maior parte das pesquisas sobre sub-
representação de negros na política se baseia em análises de dados quantitativos
que são adequadas para a descrição de desigualdades, mas limitadas para a
compreensão de como essas desigualdades são estabelecidas. O capítulo enfatiza a
relação entre os entrevistados e os partidos políticos em busca de evidências sobre
práticas institucionais que prejudiquem tais candidaturas.
O capítulo de Giovana Esther Zucatto encerra a seção com uma análise sobre
o lugar destinado ao debate sobre raça e racismo na constituição do campo
disciplinar das Relações Internacionais. A autora argumenta que, apesar de
permanecer como um objeto não dito, a temática se apresenta como elemento
central para a compreensão da geopolítica contemporânea e de suas
interpretações. Dessa forma, ao propor uma arqueologia da constituição do
campo, Zucatto nos permite vislumbrar dinâmicas centradas na raça e no racismo
que não apenas estruturam as Relações Internacionais como disciplina científica,
mas influenciam a própria relação entre Estados. Para isso, ela mobiliza
contribuições de intelectuais negligenciados como W. E. B. Du Bois e Abdias do
Nascimento.

Estado e as fronteiras da raça

Na seção “Estado e as fronteiras da raça”, duas contribuições abordam a


implementação da política de ação afirmativa nas instituições federais de ensino.
Ambas nos permitem, a partir de ângulos distintos, compreender as polêmicas e
os diferentes repertórios mobilizados em torno da categoria raça nas comissões de
heteroclassificação e na aplicação de ações afirmativas em processos seletivos de
pós-graduação.
Verônica Toste Daflon, Graziella Moraes Silva e Camille Giraut discutem,
com base em pesquisa exploratória, as controvérsias presentes na
operacionalização da raça nas comissões de heteroclassificação, constituídas nas
instituições federais de ensino com o objetivo de legitimar a política de ação
afirmativa. O capítulo apresenta a trajetória de decretos e resoluções que
buscaram pacificar os conflitos surgidos por denúncias de fraude e por acusações
de constituição de tribunais raciais na verificação da autodeclaração racial dos
candidatos às vagas reservadas. As autoras problematizam a escolha do fenótipo
como o único critério válido para se definir os elegíveis à política de ação
afirmativa, questionam a individualização decorrente das práticas adotadas em
tais comissões e ressaltam a centralidade do Estado nos processos de categorização
racial da população.
Anna Venturini, por sua vez, apresenta-nos os argumentos favoráveis e
contrários mobilizados por gestores universitários para a implementação de ações
afirmativas nos processos seletivos de pós-graduação. Por meio de abordagem
qualitativa, apoiada na técnica da entrevista em profundidade, a pesquisadora
identifica repertórios que mobilizam as cotas na pós-graduação tanto como
instrumento de correção de desigualdades de oportunidade e de promoção de
representatividade no meio acadêmico quanto como um mecanismo que
colocaria em risco a meritocracia e a excelência na formação de pesquisadores.

Políticas Públicas e Raça


As trajetórias da política pública de promoção à igualdade racial são
analisadas pelos trabalhos de Henrique Moreira e Jaciane Milanezzi. Ambos
reconstituem analiticamente a institucionalização de duas políticas de grande
relevo para a igualdade racial: o Sistema Nacional de Promoção de Igualdade
Racial (Sinapir) e a Política Nacional da Saúde Integral da População Negra
(PNSIPN).
Moreira interpreta o surgimento do Sinapir como consequência da chegada
do Partido dos Trabalhadores (PT) ao executivo federal em 2003 e da criação, no
mesmo ano, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(Seppir). O capítulo se fundamenta na análise dos marcos normativos e de
diferentes fontes de dados para identificar o cenário nacional e o perfil de adesão
ao sistema, assim como a capacidade orçamentária e de execução entre estados e
municípios das políticas de promoção da igualdade racial. Os resultados apontam
para entraves importantes, que comprometem o fortalecimento, a consolidação e
a responsividade ante a sociedade do Sinapir.
Jaciane Milanezi analisa, a partir da burocracia de gabinete, a
institucionalização da PNSIPN no período entre 1980 e 2017, processo que se
caracteriza como de longa duração, marcado por continuidades e intermitências.
No trabalho, é possível apreender a intrincada engenharia institucional acionada
para entregar políticas de saúde focalizadas para a população negra e
comprometidas com a redução da desigualdade racial. A ênfase está em
demonstrar o ativismo burocrático interno ao Estado, no caso, do movimento de
mulheres negras, que ora atuaram como representantes de seus movimentos, ora
como gestoras públicas.
Finalmente, Juliana Vinutto discute como o Estado produz desigualdade
racial ao analisar os determinantes da seletividade penal, que encarcera e vitima,
desproporcionalmente, homens negros. A autora destaca os marcadores de raça e
gênero para compreender, por meio do conceito de suspeição generalizada, as
dinâmicas que levam homens negros a serem encarados como fonte de ameaça
constante pelo sistema judicial. Para tal, ela investiga o comportamento e as
percepções de agentes socioeducativos que atuam diretamente com adolescentes
em conflito com a lei.

Por fim, é preciso agradecer às pessoas e instituições que se empenharam para


que este projeto se concretizasse. Agradecemos a revisão criteriosa de Luna de
Oliveira Sassara. Este livro não seria possível sem o apoio financeiro oriundo da
bolsa Jovem Cientista do Nosso Estado da Fundação Carlos Chagas de Apoio à
Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (processo E-26/202.721/2019) e do
Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense,
o PPGS-UFF, do Projeto Gestão da Igualdade Racial, uma parceria entre o
Departamento de Sociologia e Metodologia em Ciências Sociais, a Prefeitura de
Niterói e a Fundação Euclides da Cunha. Agradecemos ao Instituto de Estudos
Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o IESP-UERJ,
em particular do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa
(GEMAA). Devemos nossos imensos agradecimentos também ao Núcleo de
Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento, o Afro-Cebrap, e ao Núcleo de Estudos Guerreiro
Ramos, o Negra-UFF.

Referências

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Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
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Editora 34, 2005.

______. “Formações nacionais de classe e raça”. Tempo Social, v. 28, n. 2, p. 161-


182, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.11606/0103-
2070.ts.2016.109752. Acesso em: 24 abr. 2022.

Hasenbalg, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Belo


Horizonte: Editora UFMG, 2005 [1979].

Hofbauer, Andreas. Uma história do branqueamento do Brasil ou o negro em


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Nogueira, Oracy. “Preconceito de marca e preconceito racial de origem”. Tempo


social, v. 19, n. 1, jun. 2007 [1955]. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/S0103-20702007000100015. Acesso em: 24 abr.
2022.

Oliveira, Jane. Brasil, mostra a tua cara: imagens da população brasileira nos censos
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Paixão, Marcelo. “La variable color o raza en los censos demográficos brasileños:
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Schwarcz, Lilia. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no


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Skidmore, omas. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
Capítulo I

Movimento negro e ativismo institucional


no Brasil: da redemocratização ao
governo FHC (1978-2002)[1]
Cristiano Rodrigues

Introdução

Nos últimos anos, tem havido uma ampliação na agenda de pesquisas sobre
movimento negro e Estado no Brasil. Trabalhos recentes (Rios, 2014; Rodrigues,
2020) vêm contribuindo para que pesquisadores brasileiros voltem seu olhar para
a compreensão das interações entre movimento negro e política formal, o que,
segundo Bairros (1996), era uma temática frequentemente esquecida nos estudos
sobre relações raciais no país. Essas pesquisas permitem observar o adensamento
dos processos de aproximação institucional do movimento negro ocorridos após a
promulgação da Constituição de 1988, período a partir do qual aumentou o
interesse governamental em fomentar o debate, consolidar dados estatísticos e
formular políticas voltadas a promover cidadania e ampliar a participação social
de negros.
O presente capítulo visa contribuir para essa agenda de pesquisa ao escrutinar
o ativismo institucional do movimento negro entre o período da
redemocratização e o final do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC). A
literatura especializada revela que o processo de aproximação institucional do
movimento negro com o Estado passou a ocorrer de maneira mais sistemática
durante o governo FHC ( Jaccoud et al., 2009; Rodrigues, 2020). Nesse período,
as metas governamentais eram produzir e disponibilizar dados sobre a situação
socioeconômica e educacional da população negra e consubstanciar a
implantação de políticas valorativas. Apenas após a Conferência de Durban, já no
último ano do governo FHC, algumas propostas mais voltadas para a diminuição
de desigualdades étnico-raciais foram elaboradas (Daflon et al., 2013).
A fim de analisar esse processo de aproximação institucional do movimento
negro durante o governo FHC, este capítulo está dividido em seis seções, para
além desta introdução. Na primeira, analisa-se o processo de rearticulação do
movimento negro no final dos anos 1970. A segunda, terceira e quarta seções
versam sobre a relação entre movimento negro e política formal nos anos 1980,
com especial enfoque à inclusão do debate racial nos partidos e na Assembleia
Nacional Constituinte. Finalmente, a quinta e a sexta seções analisam a
consolidação do movimento negro nos anos 1990 e as mudanças nos contextos
políticos e oportunidades institucionais que influíram em uma maior
permeabilidade estatal às demandas vocalizadas pelo movimento negro durante o
governo FHC.

Redemocratização e rearticulação do movimento negro brasileiro na


década de 1980

Não apenas no plano intelectual, mas sobretudo no plano das ações coletivas,
a década de 1970 pode ser considerada um marco fundamental para uma parcela
significativa dos movimentos sociais no Brasil. Houve, naquele período, uma
eclosão de lutas políticas as mais diversas, consonantes com fenômenos
semelhantes no cenário internacional, como os emblemáticos protestos estudantis
de maio de 1968, na França, os movimentos por direitos civis e feministas norte-
americanos, os movimentos de defesa homossexual e ambientalistas, bem como as
lutas por independência em vários países africanos e pelo fim dos regimes
ditatoriais na América Latina.
Pode-se afirmar que há, para usar a terminologia empregada por Snow e
Benford (1992), a formação de um ame alignment entre os interesses vocalizados
por diferentes atores sociais. Isso é particularmente verdadeiro para as então
nascentes organizações do movimento negro que estabeleceram importantes
alianças estratégicas com outros movimentos sociais. Especialmente, com uma
parcela crescente de intelectuais que vinham desafiando, a partir de suas
pesquisas, o discurso estatal oficial sobre democracia racial. A entrada em cena
desses novos personagens, para utilizar a feliz expressão de Eder Sader, impôs uma
nova agenda política ao país e deu início a um processo de longo prazo, de
revolução democrática, molecular, com vistas a mitigar as desigualdades
estruturais, aumentar a cidadania de grandes contingentes populacionais e
redemocratizar a sociedade brasileira (Domingues, 2012).
De acordo com Gonzalez (1984), a reorganização do movimento negro
ocorreu, no Rio de Janeiro, a partir dos encontros para discussão do racismo e do
processo de exclusão dos negros do mercado de trabalho. Patrocinados em grande
medida pelo Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA) da Universidade
Cândido Mendes e organizados pela ativista e historiadora Beatriz Nascimento,
desses encontros nasceram, em 1975 e 1976, o Instituto de Pesquisa das Culturas
Negras (IPCN) e a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (SINBA).
Em outras regiões do país, também emergiram diversas organizações negras.
No Rio Grande do Sul, havia o Grupo Palmares, responsável por propor, em
1971, o dia 20 de novembro, presumível data de morte de Zumbi dos Palmares
em 1695, como Dia Nacional da Consciência Negra. Em São Paulo, surgiram
organizações que pensavam a constituição de um movimento negro com projeção
nacional, com destaque para o Grupo Evolução, criado em Campinas, em 1971,
por ereza Santos e Eduardo Oliveira e Oliveira; o Centro de Cultura e Arte
Negra (Cecan), de 1975; e a Associação Casa de Arte e Cultura Afro-Brasileira
(Acacab), fundada em 1977. Em Salvador, foi criado, em 1974, o bloco afro Ilê
Ayê, que fomentou todo um clima para afirmação do movimento negro na Bahia,
e o Grupo NEGO – Estudos Sobre a Problemática do Negro Brasileiro, de onde
saiu o quadro inicial de ativistas do Movimento Negro Unificado (MNU) do
estado (Gonzalez, 1984; Bairros, 2000; Hanchard, 2001; Guimarães, 2005a).
Além de organizações propriamente vinculadas às questões raciais, ativistas
negros também foram participantes fundamentais de outros grupos, como o
Movimento de Favelas do Rio de Janeiro, os Movimentos de Trabalhadoras
Domésticas em Belo Horizonte e em Salvador, as Associações Comunitárias, as
Comunidades Religiosas Afro-brasileiras, o Movimento Estudantil e as
organizações clandestinas de esquerda.
A criação do MNU em 1978 se deu como reação à discriminação sofrida por
quatro atletas negros no Clube Tietê e à morte de um operário negro, Robson
Silveira da Luz, devido a torturas policiais. O movimento, já no seu ato de criação,
tentava demonstrar como afro-brasileiros haviam sido, ao longo da história do
país, tratados como “outros”, ainda que o discurso oficial de integração harmônica
apontasse para o lado oposto. Lida em 7 de julho de 1978, no primeiro ato
público do MNU nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, a carta aberta
ao povo brasileiro afirmava:

Hoje estamos na rua, numa campanha de denúncia! Uma campanha contra a discriminação racial,
contra a repressão policial, o subemprego e a marginalização. Estamos na rua para denunciar a
qualidade extremamente precária da vida da Comunidade Negra […]. O Movimento Negro Unificado
contra a Discriminação Racial foi criado como um instrumento de luta da Comunidade Negra. Esse
movimento deverá ter como princípio básico o trabalho de denúncia permanente de todos os atos de
discriminação racial, a organização constante da Comunidade para enfrentar qualquer tipo de racismo
[…]. Por essa razão, propomos a criação de CENTROS DE LUTA DO MOVIMENTO NEGRO
UNIFICADO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL nos bairros, nas cidades, nas prisões,
nos terreiros de candomblé, em nossos terreiros de umbanda, no trabalho, nas escolas de samba, nas
igrejas, em todos os lugares onde as pessoas negras vivem: CENTROS DE LUTA que promovam o
debate, a informação, a conscientização e a organização da comunidade negra […]. Convidamos os
setores democráticos da sociedade que nos apoiam a criarem as condições necessárias para uma efetiva
democracia racial (MNU, 1988, p. 18).

Embora o mote central do movimento negro entre a década de 1970 e o


início da década de 1990 tenha sido o ataque ao mito da democracia racial,
Guimarães (2002) afirma que a permanência desse movimento ainda hoje pode
ser creditada à pluralidade de reivindicações com as quais esse sujeito político
emergiu, impedindo sua completa cooptação pelo Estado ou seu esgotamento
ideológico. Assim, as reivindicações do movimento negro orientam-se em torno
de uma tríade, que une a luta contra a discriminação racial, a luta pelos direitos
culturais dos afro-brasileiros e a luta pela redefinição do modo como negros são
tratados pela sociedade (Guimarães, 2002; 2005a; Domingues, 2007).
Importante ressaltar ainda que, do ponto de vista da práxis política, houve
grande disputa em torno de um tema que viria a adquirir centralidade entre
pesquisadores de relações raciais na década 1990, a saber, a distinção, por certo
borrada e incompleta, entre perspectivas culturalistas e políticas dentro das
organizações negras brasileiras e sua relação com a limitada capacidade de
mobilização social demonstrada pelo movimento negro de então.[2]
A despeito das disputas internas em torno do peso dado à cultura e à política
dentro do movimento, o MNU procurou arregimentar um grande leque de
alianças. E nesse leque estavam incluídos desde setores mais progressistas da igreja
católica até o sindicalismo mais tradicional, passando pela participação ativa nos
partidos de centro-esquerda que começavam a se organizar no país para disputar
as primeiras eleições municipais e estaduais diretas (Costa, 2006; Guimarães,
2005a; Domingues, 2007).
O processo de reorganização política do movimento negro brasileiro, sob
forte influência da criação do MNU, tinha uma estratégia clara de articular
demandas de cunho antirracista aos projetos políticos de outros grupos
marginalizados, aumentando em escala e alcance sua capacidade de impactar o
Estado e a sociedade civil. Essa estratégia está claramente apresentada no
programa de ação do MNU, lançado em 1982, que reivindicava, entre outras
coisas: o fim do mito da democracia racial brasileira; organização política da
população negra; transformação dos movimentos negros em movimentos de
massas; alianças das lutas de raça e classe; organização para combate à violência
policial; organização em sindicatos e partidos políticos; luta pela inclusão de
conteúdos sobre a História da África e dos negros nos currículos escolares; e busca
pelo apoio internacional no combate ao racismo no país (Domingues, 2007).
No mesmo período, o movimento negro passou a redefinir relações sociais de
inferiorização, discriminação e exclusão de negros com base em uma lógica de
reapropriação positiva e valorização da história e cultura da população
afrodescendente (Guimarães, 2005b). A adoção do termo negro, até então um
significante marcadamente pejorativo para designar o conjunto de indivíduos
descendentes de africanos escravizados, com o objetivo de lhe atribuir um
significado afirmativo de orgulho racial, neutralizando seu efeito deletério; o
resgate de raízes ancestrais para a constituição de identidades negras
“africanizadas”; e a reconstrução de padrões estéticos e de religiosidades de matriz
africana são todos parte dessa estratégia de reordenação do papel social e político
da população negra brasileira. Ademais:

[…] os conceitos ‘consciência’ e ‘conscientização’ passam a ocupar, desde a fundação do MNU, lugar
decisivo na formulação das estratégias do movimento. Trata-se da tentativa de esclarecer a população
negra sobre sua posição desvantajosa na sociedade, para, assim, constituir o sujeito político da luta
antirracista. […] Além de consciência e conscientização, os termos cultura negra e identidade negra
constituem peças fundamentais do discurso do MNU. Cultura negra é uma denominação genérica
para todo tipo de manifestação cultural relacionada com as diferentes formas de resistência da
população negra contra o racismo. A ideia de identidade negra, por sua vez, não diz respeito a uma
forma de vida específica ou a alguma referência estética particular. Trata-se de uma alusão a um tipo de
consciência política, qual seja, a assunção pública do antirracismo, que pode assumir naturalmente
formas culturais muito diversas (Costa, 2006, p. 144-145).

A refundação do movimento negro nos anos 1970 pode ser considerada um


marco histórico exatamente por suturar cultura e política de forma a demonstrar a
inextricabilidade dos elos, bastante estabelecidos e reforçados no Brasil, entre
desigualdades estruturais persistentes e identidades sociais racializadas (MNU,
1988).

Movimento Negro, Partidos Políticos e Participação Institucional

O contexto político brasileiro dos anos 1970 e início da década de 1980 era
bastante desfavorável à uma inserção institucional de atores da sociedade civil.
Porém, mesmo diante de profundos obstáculos político-institucionais, já havia
uma clareza por parte das lideranças do movimento negro que, juntamente com
as transformações das relações sociais dentro da sociedade civil, era importante
formular propostas de políticas públicas capazes de atender às especificidades da
população afrodescendente. Tal como fizera Du Bois no início do século XX,
ativistas brasileiros também apontavam para uma disjunção no modo como a
população negra vinha sendo tradicionalmente tratada pela sociedade brasileira.
De um lado, houve, indubitavelmente, um acoplamento da cultura negra ao cerne
da identidade nacional brasileira; de outro, a incorporação sociopolítica de
afrodescendentes foi sempre periférica (Guimarães, 2005b).
Isso posto, os ativistas reconheciam nessa dissociação entre apropriação
simbólica e respostas políticas às demandas da comunidade negra aquilo que
Mouffe (1988) aponta como uma das possibilidades de emergência de
antagonismos dentro da sociedade capitalista. Trata-se da situação em que sujeitos
coletivos construídos em subordinação por uma série de discursos são, ao mesmo
tempo, interpelados enquanto iguais por outros tantos discursos. Essa
interpelação contraditória, em que a subordinação da subjetividade é negada, abre
espaço para sua desconstrução e consequente contestação.
A metáfora do Atlântico Negro, como originalmente proposta por Paul
Gilroy (1993), também representa aqui a possibilidade de contestação dessa
interpelação contraditória na medida em que, enquanto expressão cultural da
diáspora negra, desconstrói noções essencialistas de identidade e cultura, que
passam a ser entendidas como fabricações (recombinações e reinvenções) acerca
da relação entre igualdade e diferença em contextos de disputa de poder,
constituindo-se, portanto, em um “mesmo mutável”. Por essa razão, Gilroy afirma
que diáspora é, ainda, um conceito indispensável para explicar as dinâmicas éticas
e políticas da história dos negros nas sociedades contemporâneas. Diáspora
fornece, segundo o autor, uma ferramenta heurística para se lidar com a
pluralização e a não identificação das identidades negras, pois aponta para a
possibilidade de existência de traços comuns sem, contudo, tomá-los como dados.
Intelectuais e ativistas da diáspora negra materializam o conceito de Atlântico
Negro em duas acepções: por um lado, trata-se das circulações culturais negras
(enquanto recombinações e reinvenções) dentro do triângulo atlântico
(representado pelos continentes americano, africano e europeu); por outro, um
sentido político-normativo, que busca aprofundar os direitos e as possibilidades
de participação de afrodescendentes na esfera pública burguesa (Gilroy, 1993).
Em sua chave político-normativa, o Atlântico Negro fornece os fundamentos para
compreender as aspirações de ativistas do movimento negro por ocupar espaços
de representação e participação e, a partir deles, aprofundar os processos de
democratização.
No Brasil do início dos anos 1980, ocupar espaços de representação implicava
uma atuação ativa junto às organizações sindicais e aos partidos de centro-
esquerda que foram criados ou se reestruturavam à época. Porém, mesmo dentro
dessas organizações, que lutavam juntamente pela democratização do país, o
diálogo sobre a centralidade da questão racial era controverso. Tanto partidos
oposicionistas quanto organizações sindicais tendiam a analisar a questão racial
como sendo secundária em relação à luta de classes ( Jaccoud et al., 2009).
Embora alguns setores do movimento negro mantivessem uma descrença em
relação aos partidos políticos, houve uma clara aproximação com algumas
legendas. Movimento Democrático Brasileiro (MDB), Partido Democrático
Trabalhista (PDT) e Partido dos Trabalhadores (PT) foram os principais
partidos que, com base nas chamadas comissões de negros, contribuíram para que
determinadas demandas do movimento negro fossem incluídas nas discussões
políticas da década de 1980.
Para Kossling (2007), a presença de políticos negros, como os vereadores
Benedito Cintra (PMDB-SP) e Benedita da Silva (PT-RJ), no início dos anos
1980, e a criação das comissões de negros nos partidos de centro-esquerda tiveram
um impacto positivo na arena política, principalmente por propiciar um espaço
profícuo de influências mútuas entre o movimento negro e os partidos.
A comissão de negros do PT nasceu praticamente junto com o partido.
Alguns ativistas negros acreditavam que, na criação do PT, estaria a possibilidade
de construção de um “novo quilombo de palmares”. Não por acaso, muitas
lideranças do MNU e de outras organizações negras estiveram presentes nos atos
de fundação do PT e, a partir de sua incorporação ao partido, parte de suas
reivindicações foram incluídas às propostas gerais do PT. Assim, quando o
partido começou a conquistar eleições, tais reivindicações tornaram-se projetos de
lei e políticas públicas específicas (Kossling, 2007).
Para a comissão de negros do PT, o mito da democracia racial era o maior
impeditivo para que setores da esquerda discutissem abertamente o papel das
desigualdades raciais na manutenção de privilégios sociais e de classe. A comissão
também argumentava que estatísticas sobre desemprego e violência policial eram
desproporcionalmente superiores para a população afrodescendente, como
subproduto do racismo insidioso da sociedade brasileira. A incorporação da
História da África nos currículos escolares, que se tornaria obrigatória com a
aprovação da Lei n.º 10.639/2003, durante o governo Lula, já fazia parte da pauta
de reivindicações de ativistas negros do PT do início dos anos 1980 (Kossling,
2007).
O PDT, primeiro partido brasileiro a criar uma estrutura interna dedicada à
luta contra a discriminação racial, também foi responsável por nomear os
primeiros políticos negros para ocupar Secretarias de Estado, além de estabelecer
metas internas para a candidatura de negros a cargos eletivos. Abdias do
Nascimento, principal liderança negra brasileira do século XX e um dos
fundadores do PDT, tornou-se o primeiro deputado federal brasileiro (1983-
1987) a dedicar seu mandato à luta contra o racismo. Enquanto esteve na Câmara
de Deputados, Abdias apresentou projetos de lei tipificando o crime de racismo e
criando mecanismos de ação compensatória para a promoção da igualdade racial
no país. Como senador da República (1991-1992, 1997-1999), deu continuidade
a essa linha de atuação. Em um de seus discursos, reafirmou essa necessidade de
implementação de leis e princípios normativos que assegurassem a igualdade
racial.

Sr. Presidente, Srs. Deputados, como representantes de todos os segmentos étnicos formadores do
nosso povo, da nossa história e da nossa cultura, precisamos manter-nos alerta contra todas as formas
de destituição, de exclusão, de humilhação, de marginalização e inferiorização, motivadas pelo racismo
e pela discriminação racial. Não bastam declarações de princípios. O que a comunidade exige são leis e
práticas que garantam efetivamente a igualdade de oportunidades a todos os brasileiros, sem que as
diferenças se transformem em desigualdades, conforme ocorre na sociedade brasileira de hoje.
Desigualdades econômicas, transformando o negro trabalhador em negro desempregado;
transformando a mulher negra em prostituta; transformando a criança negra em menor abandonado e
delinquente. Desigualdades culturais que definem a cultura de origem africana como folclore e
matéria-prima da indústria do esoterismo turístico. Desigualdades sociais, marcando as áreas em que
gente negra tem o seu lugar: as favelas, a fome e a mendicância, o carnaval, o futebol, as palafitas, os
presídios. Os hospitais psiquiátricos elitistas não oferecem, em qualquer dos seus graus, igualdade de
oportunidade aos brancos e aos negros. Isso sem contar os séculos de privilégios raciais, quando
somente os brancos mantiveram, com exclusividade, o monopólio das vagas nas escolas primárias,
secundárias e superiores (Brasil, 1985, p. 21).

Em 1990, Darcy Ribeiro e Abdias do Nascimento concorreram a uma vaga ao


Senado ao mesmo tempo em que Leonel Brizola candidatava-se, pela segunda vez,
a governador do Rio de Janeiro. No ano seguinte, já como governador, Brizola
implantou o primeiro órgão executivo estadual de políticas públicas para a
questão racial, a Secretaria Extraordinária de Defesa e Promoção das Populações
Negras (Sedepron), posteriormente denominada Secretaria Extraordinária de
Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras (Seafro), e nomeou Abdias
Nascimento titular da pasta.
O PMDB, partido com o melhor desempenho eleitoral em 1982, também
mantinha uma comissão de negros que, à esteira do sucesso alcançado pela
legenda, conseguiu indicar representantes para ocuparem espaços de participação
e deliberação estabelecidos pelo PMDB em São Paulo. Andre Franco Montoro,
eleito governador de São Paulo em 1982 na primeira eleição direta para o cargo
depois de 20 anos, tinha longa trajetória de participação em movimentos cristãos,
além de ser defensor de um tipo de democracia participativa, conforme expresso
por ele em seu livro Alternativa Comunitária: um caminho para o Brasil:

Surge no Brasil um fato promissor – o despertar da sociedade civil: trabalhadores, pequenos e médios
empresários, agricultores, professores, estudantes, mulheres, moradores de bairros, municípios e
regiões, Igreja, intelectuais, artistas cooperados, ecologistas e outros setores da sociedade deixam de
lado a antiga passividade e passam a atuar de forma consciente e organizada, na solução de seus
problemas. É a substituição do paternalismo governamental pela participação ativa das comunidades.
É o cultivo da solidariedade social como forma de combate a todos as modalidades de exploração e
opressão (Montoro, 1982, p. 9).

Por conta das ideias políticas de Franco Montoro e do otimismo causado pela
vitória do partido nas eleições, os ativistas negros viam ali a possibilidade real de
se fazerem representar junto ao sistema político tradicional. Integrantes da Frente
Negra de Ação Política de Oposição (Frenapo), organização criada em 1979 por
políticos negros vinculados ao PMDB, como Benedito Cintra, Milton Santos e
Hélio Santos, acreditavam, diante desse cenário favorável, que poderiam vir a ter
papel destacado dentro das articulações políticas do PMDB junto à sociedade
civil, de maneira geral, e ao movimento negro, de maneira específica (Santos,
2001).
Assim:

uando o Governador assumiu o Palácio Bandeirantes, procurou acomodar as lideranças da


comunidade negra que pressionavam para ter ‘espaço’. A reivindicação era uma Secretaria Estadual no
Governo do Estado ou uma Secretaria Municipal no Governo da Prefeitura de São Paulo, que seria
preenchida também por indicação do governador. Em um ambiente de muita disputa por cargos e de
competição para ocupar lugares estratégicos dentro da administração, as reivindicações ficaram sem
resposta.

Entretanto, um fato novo e auspicioso foi a designação de dois assessores negros para trabalhar no
Palácio dos Bandeirantes, estrategicamente nos cargos de Assessor Especial e de Assessor do Gabinete,
pois eram posições importantes para observar o que acontecia no Gabinete do governador. Eram
lugares privilegiados de aprendizes no exercício do cotidiano do que é fazer política no Estado de São
Paulo (Santos, 2001, p. 97).

Ao mesmo tempo em que os ativistas negros viam frustradas suas expectativas


de ocupar espaços no governo, assistiam à criação, em abril de 1983, do Conselho
Estadual da Condição Feminina (CECF), órgão do governo estadual que
pretendia integrar representantes da sociedade civil e do poder público para a
formulação e acompanhamento de políticas públicas relacionadas aos direitos das
mulheres.
Embora políticos e ativistas negros vinculados ao PMDB não vislumbrassem
a criação de um conselho semelhante para a questão racial, foram duplamente
preteridos pelas ações iniciais do governo, uma vez que ao CECF foram indicadas
30 mulheres representantes da sociedade civil e nenhuma delas era negra. Tal fato
desencadeou um processo de mobilização de ativistas negras, resultando na
nomeação de uma mulher negra para o CECF e na formação de uma Comissão
da Mulher Negra dentro do Conselho. As mulheres que se mobilizaram pela
inserção de uma representante negra junto ao CECF decidiram permanecer
organizadas e, em 1984, criaram o Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo.
Em maio de 1983, um fato inusitado estabeleceu a estrutura de
oportunidades políticas para que fosse instituído um conselho para a população
negra. Segundo relato de Santos (2001, p. 98):

[…] na celebração antecipada do dia 13 de maio, os assessores marcaram uma cerimônia com o
governador e militantes do Movimento Negro, com cobertura da TV Cultura. O objetivo da
cerimônia era realizar um ato de protesto contra o racismo e marcar a data como dia de luta do negro e
não de comemoração. Conhecedores dos detalhes da cerimônia no Palácio Bandeirantes, o evento foi
estruturado com um discurso de abertura, lido por quatro pessoas, acerca das temáticas: racismo no
trabalho, criança negra, mulher negra e ausência de negros no primeiro escalão. Ao final, uma
pergunta dirigida ao governador: Por que não criar um Conselho do Negro, a exemplo do Conselho
da Mulher? Em uma situação de desconforto, com a cobertura da televisão, o governador iniciou sua
fala dizendo que reconhecia a existência de problemas e pediu a um dos assessores para confirmar os
esforços do governo na inserção do negro na Administração. O assessor negro respondeu que,
infelizmente, sentia dizer, mas o negro ainda não estava plenamente inserido no Governo Montoro. O
governador retomou a palavra e disse que tomaria medidas, começando pela criação do Conselho do
Negro.

Entre a aquiescência do governador e a efetiva criação do Conselho de


Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra passou-se um ano. Houve
muita resistência – interna e externa – em relação à criação do Conselho e por
não se tratar de reivindicação originária de delegados negros do PMDB também
havia pouca experiência sobre como operacionalizar o funcionamento desse
Conselho.
Apesar das críticas, o Conselho da Comunidade Negra foi fundado em 1984,
com o objetivo de garantir direitos a partir de três eixos: promoção, controle e
defesa. O primeiro referia-se à formulação de políticas públicas e à inclusão da
temática racial em outras políticas governamentais; o segundo eixo pressupunha
uma interlocução ativa com a sociedade civil para acompanhamento e avaliação
do cumprimento dos preceitos defendidos pela plenária do Conselho. Por fim, o
eixo de defesa seria o espaço para assistir as vítimas de discriminação racial
(Santos, 2001).
A experiência, em certa medida exitosa, do Conselho da Comunidade Negra
em São Paulo inspirou a criação de órgãos semelhantes na Bahia, Rio Grande do
Sul e Mato Grosso do Sul. Além de Conselhos, houve também a criação e
proliferação, em diversos estados e municípios, de outros espaços para tratar
especificamente da questão racial, tais como assessorias, coordenadorias e centros
de documentação (Santos, 2001).
A despeito das inúmeras dificuldades encontradas pelas organizações e
militantes do movimento negro durante esse processo de aproximação com os
aparatos estatais e suas distintivas lógicas institucionais, o crescente intercâmbio
entre ativistas e agentes do Estado representa uma ruptura em termos das
estratégias estatais predominantes a respeito das relações raciais no país. O
reconhecimento oficial da existência de discriminação racial, ainda incipiente e
localizado, que se observa nas experiências de São Paulo e do Rio de Janeiro,
aponta para uma abertura nas estruturas de oportunidades discursivas, com
impactos importantes no processo de reforma constituinte iniciado em 1986.
O Movimento Negro e a Constituinte

Em julho de 1985, três meses após a morte de Tancredo Neves, José Sarney
decidiu pela manutenção da promessa de campanha e enviou ao Legislativo a
Proposta de Emenda Constitucional n.º 43, atribuindo poderes constituintes ao
Congresso Nacional, que deveria se reunir a partir de 1.º de fevereiro de 1987.
Seguindo outra proposta de Tancredo Neves, Sarney nomeou uma Comissão
Provisória de Estudos Constitucionais para a elaboração de um anteprojeto de
constituição. Essa comissão foi presidida pelo jurista Afonso Arinos de Mello
Franco e ficou conhecida como “Comissão de Notáveis”. Porém, entre os 50
integrantes da Comissão, representando diversas perspectivas políticas e
ideológicas, não havia uma única personalidade negra.
Insatisfeitos com a falta de representação junto à Comissão Pré-Constituinte,
os membros do Conselho da Comunidade Negra de São Paulo estabeleceram
uma estratégia para chamar atenção para o fato e, consequentemente, influenciar
na indicação de um provável integrante negro junto à Comissão (Santos, 2001).
Assim, foi programada para o dia 22 de agosto de 1985 uma manifestação no
Palácio Bandeirantes, com a participação do governador Franco Montoro, contra
o regime do apartheid e pelo fim das relações diplomáticas entre Brasil e África do
Sul. O objetivo principal da manifestação, conforme atesta Santos (2001),
consistia em dar visibilidade nacional ao Conselho da Comunidade Negra e, por
meio da denúncia sobre a discriminação racial, reivindicar a participação de pelo
menos um representante negro na Comissão Pré-Constituinte. Cito, mais uma
vez, o relato de Ivair dos Santos sobre a consecução de tal estratégia:

A preocupação com os detalhes do evento era de extrema importância, pois o anfiteatro do Palácio
dos Bandeirantes, além de grande, trazia a preocupação de como se criar um clima emocional, sem
deixar de ser um ato oficial, que teria muita repercussão. O horário foi acertado para que pudesse
constar do noticiário noturno daquele mesmo dia. Os detalhes nos preocupavam, já que o governador
do Estado de São Paulo iria se manifestar sobre um tema internacional. […] Na reunião preparatória
do ato, decidimos denunciar que na Comissão de Notáveis não havia um cidadão negro sequer. E
mais, decidimos ocupar estrategicamente o anfiteatro e combinamos que, durante essa passagem do
pronunciamento, ficaríamos em pé e batendo palmas durante um bom tempo, até que todos se
levantassem e nos acompanhassem. Foi pensado e realizado conforme o planejado. O clima foi de
muita emoção, com algumas pessoas vibrando com as palmas, confirmando o desabafo pela ausência
de negros na Comissão de Notáveis. Durante o encerramento do evento, na sua última fala, o
governador Montoro mencionou o episódio e disse que iria reivindicar a presença de um negro na
Comissão de Notáveis. O anfiteatro foi tomado pelas palmas (Santos, 2001, p. 153-54).

Dez dias após a manifestação, o então presidente José Sarney informou que
indicaria Hélio Santos, presidente do Conselho da Comunidade Negra, para se
juntar à Comissão Provisória de Estudos Constitucionais. Após a nomeação de
Hélio Santos, o Conselho da Comunidade Negra, em conjunto com organizações
do movimento negro, articulou uma série de eventos, em diferentes partes do país,
para a elaboração de propostas que viriam a ser incorporadas às discussões da
Comissão Pré-Constituinte (Santos, 2001).
Entre o conjunto de encontros municipais e estaduais organizados pelo
movimento negro para discutir a participação da comunidade negra no processo
constituinte, dois merecem destaque: o Primeiro Encontro Estadual “O Negro e a
Constituinte”, realizado na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, e I Encontro
de Comunidades Negras Rurais, com o tema “O negro e a constituição”, realizado
no Maranhão (Silvério, 2005).
A esses eventos seguiram-se diversos outros e, nos dias 26 e 27 de agosto de
1986, foi realizada, em Brasília, a Convenção Nacional do Negro pela
Constituinte, que contou com a presença de representantes de 63 entidades do
movimento negro de 16 estados, em um total de 185 inscritos. O documento
aprovado durante a convenção e entregue aos constituintes continha entre as suas
inúmeras propostas duas que acabariam incluídas no texto constitucional:
tipificação do preconceito racial como crime inafiançável e com pena de reclusão;
e garantia do título de propriedade de terras às comunidades remanescentes de
quilombos, quer no meio urbano ou rural (Silvério, 2005).
O texto final, aprovado pela Comissão Pré-Constituinte, contava com 436
artigos permanentes e 32 disposições transitórias. Apesar de seu conteúdo
progressista e democrático, o presidente Sarney, talvez por se opor ao regime
parlamentarista de governo defendido pela Comissão, decidiu-se por não enviar o
texto à Constituinte, encaminhando-o ao Ministério da Justiça, onde foi
arquivado (Sarmento, 2010).
Assim, sem poder utilizar o texto final da Comissão Pré-Constituinte para
respaldar suas decisões, a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) foi instalada
em 1º de fevereiro de 1987 e teve seus trabalhos concluídos em 2 de setembro de
1988, com a votação e aprovação do texto final da Constituição Brasileira. A
ANC foi dividida em oito comissões e 24 subcomissões temáticas, responsáveis
pela preparação dos anteprojetos básicos que, após apreciação e consolidação pela
Comissão de Sistematização, foram votados pela plenária da ANC (Silvério,
2005).
Por determinação do regimento interno da Constituinte, a temática racial foi
incluída e debatida dentro da VII Comissão, de Ordem Social, na Subcomissão
dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias Sociais. De 23
de abril a 8 de maio de 1987, a subcomissão realizou oito audiências públicas para
a confecção do anteprojeto. Conforme consta no Relatório Final da Subcomissão,
a temática racial foi discutida nos dias 23 de abril (em painel sobre preconceito,
discriminação e estigma); 28 de abril (dedicado exclusivamente à questão racial);
4 de maio (painel sobre deficientes visuais, hemofílicos e negros); e 5 de maio
(painel sobre populações indígenas, presidiários e minorias raciais e religiosas)
(Brasil, 1987).
O relatório final ainda afirma que:
A situação dos negros, praticamente cem anos após a abolição da escravatura, manifesta-se em
problemas sociais de triste e fácil constatação: esquecimento de seu papel na formação da
nacionalidade, marginalização social e econômica, preconceito racial manifesto, discriminação
acentuada, cidadania de segunda classe, imagem distorcida e estereotipada nos meios de comunicação.

A superação desse quadro, que passa pela organização civil dos negros enquanto comunidade racial, na
ativa defesa de seus direitos, deve ter por base princípios constitucionais definidos e duradouros, que
lhes garantam juridicamente efetiva igualdade de oportunidades e a punição exemplar dos autores de
atos discriminatórios (Brasil, 1987, p. 3).

E, mais adiante, detalha os princípios que nortearam o anteprojeto:

Em relação aos NEGROS, [buscou-se] estabelecer princípios destinados a impedir a discriminação


racial e, ao lado das demais garantias individuais, proporcionar a igualdade de direitos. Considerou-se
que é justificada a adoção, pelo Poder Publico, de medidas compensatórias voltadas a do princípio
constitucional de isonomia a pessoas ou grupos vítimas de discriminação comprovada.

Buscou-se, ainda, dar à educação a ênfase na luta contra o racismo e todas as formas de discriminação,
afirmando as características multiculturais e pluriétnicas do povo brasileiro e determinando a adoção
pelo Estado, de ação compensatória visando à integração plena das crianças carentes (Brasil, 1987, p.
5).

A versão final do anteprojeto, aprovada pela Subcomissão de Minorias em 25


de maio de 1987, detalha os direitos e as garantias que deveriam ser assegurados a
todas as minorias e, embora a maior parte das propostas não tenham sido
contempladas no texto final da Constituição de 1988, é inegável o quanto elas
informavam um novo modelo de nacionalidade. Havia nas propostas formuladas
na subcomissão, do ponto de vista político-normativo, o reconhecimento de um
processo de transformação em curso ao nível da sociedade civil, de uma
nacionalidade construída em princípios universalistas para a adoção de princípios
pluralistas e multiculturais (Silvério, 2005).

O Centenário de Abolição da Escravidão e a Constituição de 1988


No início de 1988, com os trabalhos da ANC ainda em andamento, o país
assistiu a uma intensa mobilização por parte das organizações negras. Por marcar
a celebração dos 100 anos de abolição da escravatura no país, o movimento negro
organizou uma série de atos públicos com o intuito de mostrar o quanto a
celebração do 13 de maio era enganosa, na medida em que a população negra
continuava sendo submetida a péssimas condições de vida. Várias marchas foram
organizadas em diferentes cidades e estados, sendo que a “marcha contra a farsa da
abolição: nada mudou, vamos mudar”, realizada na cidade do Rio de Janeiro,
chegou a ser proibida pelo Exército brasileiro. A Igreja Católica também se
aproveitou do centenário da Lei Áurea e, para sua campanha anual da
fraternidade, trouxe o debate sobre a questão racial para dentro da igreja com o
tema “A Fraternidade e o Negro”, cujo slogan era “Ouvi o clamor deste povo”.
Naquele contexto, o Governo Federal criou o que viria a ser a primeira
instituição brasileira, em nível federal, devotada à temática racial. Assim, no
âmbito do Ministério da Cultura, foi criada a Fundação Cultural Palmares, com o
objetivo de promover e preservar a cultura brasileira. Por muitos anos, coube à
Fundação Palmares a responsabilidade de identificar as comunidades quilombolas
e mediar o procedimento de demarcação de suas terras. O surgimento dessa
fundação:

[…] simboliza, em nível federal, a inauguração de uma nova etapa no tratamento da questão racial.
Essa temática passa a ser reconhecida como portadora de demandas de reconhecimento e
legitimidade, que se expressam na adoção da data de 20 de novembro como dia da consciência negra e
no reconhecimento de Zumbi como herói nacional, ambos resultado do esforço empreendido pelas
organizações negras. Tais conquistas, ainda que tivessem importante valor simbólico, estavam,
entretanto, bastante aquém dos anseios da população afro-brasileira da época ( Jaccoud et al., 2009, p.
267).

Outra medida governamental importante diz respeito à Lei n.º 7.716, de 15


de janeiro de 1989. De autoria do deputado federal Carlos Alberto de Oliveira –
conhecido como “Caó” – ex-presidente da Associação Brasileira de Imprensa
(ABI) e militante do PDT, o projeto de lei se propunha a definir quais são os
crimes resultantes de preconceito de raça e/ou cor. Os vetos presidenciais, no
entanto, limitaram o alcance da lei e a tornaram muito semelhante à Lei Afonso
Arinos, de 1951. Por essa razão, apesar de a lei conter algumas normas
incriminadoras comissivas (recusar, impedir, obstar acesso) e outras normas
omissivas (negar inscrição ou ingresso), poucos foram os procedimentos penais
instaurados com base em seus artigos. Para além disso, entre 1990 e 2007, a lei
sofreu quatro alterações significativas. A primeira, em 1990 (Lei n.º 8.821/1990),
estabeleceu que o juiz pode determinar a suspensão por três meses do
funcionamento do estabelecimento onde tenha ocorrido a prática de racismo,
bem como recolher e destruir os materiais relativos ao crime. Em 1994 (Lei n.º
8.882/1994), foi adicionada ao texto da lei a proibição de fabricação,
comercialização e divulgação de símbolos nazistas. Já em 1997 (Lei n.º
9.459/1997), ampliou-se o escopo da lei ao se explicitar que ela deveria reger
casos de racismo e preconceito, em vez de apenas casos de preconceito como
constava nas legislações anteriores. Em 2007 (Lei n.º 9.459/2007), projeto
apresentado pelo deputado Paulo Paim (PT-RS) incluiu na Lei Caó o crime de
incitação ao preconceito ou à discriminação, além de possibilitar o
reconhecimento do crime de injúria quando são utilizados elementos referentes a
raça, cor, etnia, religião ou origem.
Mesmo diante de tentativas contínuas de aprimorar a lei:

[…] analistas e militantes da questão racial passam a destacar, cada vez com maior ênfase, outras
limitações no uso da ação repressiva no enfrentamento da discriminação racial. Aponta-se que, ao
atacar sobretudo o resultado da discriminação, essa legislação afeta pouco suas causas: o preconceito, o
estereótipo, a intolerância e o racismo. Ao mesmo tempo, deixa intocada a forma mais eficaz e
difundida de discriminação: aquela que opera não por injúria ou atos expressos de exclusão, mas por
mecanismos sutis e dissimulados de tratamento desigual. A chamada discriminação indireta,
largamente exercida sob o manto de práticas institucionais, atua também nas políticas públicas por
meio da distribuição desigual de benefícios e serviços. Essas preocupações estarão progressivamente
presentes no debate sobre o tema do combate à discriminação ( Jaccoud et al., 2009, p. 271).

Em certa medida, tanto a criação da Fundação Cultural Palmares, organismo


circunscrito à preservação e divulgação da cultura negra, quanto a legislação sobre
crimes de racismo parecem, em termos políticos, ratificar certa posição mitológica
ocupada pela população negra no imaginário nacional brasileiro. Segundo
Guimarães (2002), o imaginário nacional brasileiro se caracteriza por reconhecer
negros e indígenas apenas enquanto objetos culturais, marcos fundadores da
civilização brasileira, mas não como cidadãos plenos de direito.
Todavia, ainda conforme Guimarães (2002), do ponto de vista do
ordenamento jurídico, o texto constitucional parece romper com essa simbologia
que relega a população negra à condição de objetos culturais. O autor destaca três
elementos da carta constitucional que revelam esse rompimento: a) maior firmeza
em termos de repúdio ao racismo, que passa a ser considerado crime inafiançável e
imprescritível (art. 5.º); b) estabelecimento da figura jurídica dos remanescentes
de quilombos, abrindo espaço para que possam requerer direito à posse de suas
terras (art. 216); e c) criação da possibilidade de ações reparatórias, por meio de
medidas de ação afirmativa, não apenas para quilombolas, mas para a população
negra de modo geral.
Segundo Silva Júnior (2000), as consequências da Constituição não podem
ser analisadas de forma reducionista, diminuindo o significado das leis que
criminalizam o racismo e criam a figura jurídica dos remanescentes de quilombos.
Na visão do autor, tais artigos trouxeram à tona um traço plural e diverso da
nacionalidade brasileira e reconstroem o papel ocupado pelas culturas negras e
indígenas no imaginário nacional. Embora o autor considere que o poder
Executivo tenha demonstrado pouco esforço em garantir eficácia às decisões
constitucionais, acabou criando uma janela de oportunidade para que o
movimento negro passasse a reivindicar o cumprimento dos direitos assegurados
pela Constituição. Silva Júnior (2000) argumenta, por fim, que a principal
contribuição da Carta de 1988, no que se refere à questão racial, está em conferir
tutela constitucional aos direitos emanados em tratados internacionais dos quais o
Brasil é signatário.
Sarmento (2010) também verifica uma potencialidade transformadora na
Constituição de 1988 no tocante à questão racial e entende que a Constituição
tem como uma de suas premissas a ideia de que a igualdade é um objetivo a ser
alcançado por meio de políticas públicas, o que implica a implementação de
iniciativas concretas para os grupos marginalizados dentro da sociedade. Além
disso, a Constituição propõe a criação de instrumentos de defesa de direitos
difusos ou coletivos, entre os quais ressalta a defesa dos direitos dos grupos étnicos
minoritários. Nesse ponto, o texto constitucional reconhece que a defesa de
direitos não pode se restringir apenas aos indivíduos, mas também deve ser
garantida a grupos sociais específicos ou que afetem a coletividade como um todo.
Ainda que o combate às desigualdades raciais não tenha sido objeto de
tratamento específico na Constituição, a promulgação da carta magna foi um dos
marcos mais importantes para as mudanças ocorridas no país no tocante à
questão racial a partir dos anos 1990. O reconhecimento da pluralidade étnico-
racial brasileira, o estabelecimento de medidas protetivas para as culturas afro-
brasileiras e a possibilidade da fixação de datas comemorativas relevantes para os
diferentes grupos étnicos nacionais, por exemplo, revelam uma tentativa, por
parte do Estado, de alterar o imaginário nacional a fim de reinterpretar o papel
desempenhado pelas minorias étnico-raciais na construção do país ( Jaccoud et al.,
2009).

Consolidação Institucional do Movimento Negro nos anos 1990


No Brasil, o período pós-constituinte foi marcado pelo crescimento
exponencial de organizações negras. Surgiram, em diferentes regiões do país, mais
de uma centena de entidades, com diferentes graus de mobilização contribuindo
significativamente para a ampliação do debate sobre a temática racial
nacionalmente. Lélia Gonzalez, uma das principais lideranças negras dos anos
1980, analisou, em entrevista ao jornal do MNU em 1991, as contribuições do
movimento em seu primeiro decênio e apontou para suas perspectivas futuras:

Eu acho que a contribuição foi muito positiva no sentido de que nós conseguimos sensibilizar a
sociedade como um todo; levamos a questão negra para o conjunto da sociedade brasileira.
Especialmente na área do poder político e nas áreas relativas à questão cultural. […] Nesse lado
cultural aí acho que nós sempre fomos vitoriosos, a verdade é essa. Agora, no que diz respeito às
questões político-ideológicas, a coisa é séria, a meu ver. O que a gente percebe é que o MNU cutucou
a comunidade negra no sentido de ela dizer também qual é a dela, podendo até nem concordar com o
MNU. Hoje, a gente verifica que ‘pintou’ uma certa autonomia no que diz respeito a algumas
entidades aí pelo Brasil, que articulam áreas de ação que não são, especificamente, aquelas que ficam
numa política abstrata, genérica, mas áreas de ação no sentido concreto, dentro da comunidade,
dentro das propostas e das exigências dessa comunidade. Para dar exemplo interessante, me recordo
do momento da Constituinte, em Brasília, quando eu atuava enquanto mulher negra dentro do
movimento de mulheres, no Conselho Nacional. Havia uma passagem de informações porque o
Movimento Negro estava reunido lá para fazer suas propostas aos constituintes. E eu me recordo que,
de repente, chegou uma mulher dizendo assim: ‘Olha, o Movimento Negro está reunido levantando
uma questão incrível, a questão do crime inafiançável com relação à discriminação racial, a gente tem
que trazer isso também para nós’. Esse tipo de troca, de contribuição, que para mim era uma coisa
abstrata que eu lia nas histórias, por exemplo, do Movimento de Mulheres, do Movimento Negro e do
Movimento de Homossexuais nos EUA. E eu verificava uma anterioridade do Movimento Negro na
colocação de uma série de questões para o Movimento Feminista que, por sua vez, passou para o
Movimento Homossexual e, de repente, você constata isso a partir de sua experiência concreta. Eu
acho que isso significa um avanço do Movimento Negro, uma contribuição extremamente positiva.
uer dizer, nós deixamos de ser invisíveis, a verdade é essa. Não dá mais para se ficar escamoteando a
questão das relações raciais no Brasil, pois nós estamos aí, de uma forma ou de outra (Gonzalez, 1991,
p. 8).

O depoimento de Lélia Gonzalez lança luz sobre uma variedade de questões


que, para além do olhar retrospectivo que ela lhes confere, dá o tom dos debates
em torno da questão racial na década de 1990. Para além da pluralização de
entidades negras, outros fenômenos correlatos desse processo de consolidação
institucional do movimento negro podem ser observados. São eles a
especialização das formas de atuação e a crescente institucionalização do
movimento.
Pereira (2008), afirma que houve, nos anos 1990, um grande “salto” do
ativismo negro no país. Segundo o autor, tal salto ocorreu em duas direções: para
cima e para baixo. A primeira relacionada à apropriação de oportunidades
institucionais e a segunda voltada para a ampliação da base social do movimento
negro:

No primeiro caso, os militantes mais voltados para as articulações político-partidárias e os processos


eleitorais – conquista de mandatos e assessorias parlamentares, cargos em órgãos oficiais, criação e
gestão de Conselhos do negro (criados como órgãos oficiais em circunstâncias políticas favoráveis,
graças à legislação específica ou ao aprendizado do ‘caminho das pedras’ nas burocracias oficiais). No
segundo caso, os que priorizaram o fortalecimento das entidades negras e das articulações internas do
Movimento Negro; de suas relações com comunidades de maioria negra e com as manifestações
culturais e religiosas de matrizes africanas (Pereira, 2008, p. 69).

O autor também ressalta que:

[…] embora seja possível distingui-las, não há, propriamente, separação entre os militantes das duas
vertentes. Muitas vezes, as suas estratégias se confundem. Na verdade, são parte de um mesmo
processo, sendo, desse modo, observadas pela maioria dos negros, pelo sistema de poder e pela
sociedade em geral (Pereira, 2008, p. 69).

Discuto, nesta seção, o papel desempenhado por essa dupla vertente apontada
por Pereira para o processo de consolidação e complexificação institucional do
movimento negro na década de 1990. Importante notar que, antes de se
constituir em uma operação orquestrada, com objetivos claros definidos a priori, a
interação entre setores do movimento negro e o Estado se deu, amiúde, de forma
errática, profundamente dependente das redes de solidariedade estabelecidas
entre ativistas negros e outros atores da sociedade civil e agentes estatais.
A pluralização e a especialização das organizações do movimento negro são
fenômenos correlatos, embora distintos. No início dos anos 1990, o projeto de
uma organização de caráter nacional, encabeçado principalmente pelo MNU, se
esvaneceu. Concomitantemente, várias organizações negras surgiram em todas as
regiões do país com demandas promovendo interseções inovadoras entre raça,
classe, gênero, geração e sexualidade, entre outras. A maior proximidade entre
organizações negras e atores de outros movimentos sociais também contribuiu
para ampliar sua agenda política e fortalecer alianças em prol de uma pauta pelo
fim das adscrições raciais. Também em decorrência dessa maior aproximação com
outros atores políticos, algumas organizações negras iniciaram um processo de
especialização passando a atuar em uma única frente. Destacam-se, nesse cenário:

[…] as entidades voltadas para atuar na área da educação, como a Associação Afro-Brasileira de
Educação Cultural e Preservação da Vida (Abrevida), em São Paulo; o Educafro, no Rio de Janeiro; o
Núcleo de Estudos do Negro (NEN), em Florianópolis; as entidades dedicadas à saúde reprodutiva da
mulher negra, como a ONG Fala Preta!, de São Paulo; as direcionadas aos empresários negros, como
o Coletivo de Empresários e Empreendedores Afro-Brasileiros do Triângulo Mineiro (Ceabra); as
destinadas a enfrentar o racismo à luz do Direito, como as Comissões do Negro da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB); as dirigidas para tratar dos problemas psicológicos decorrentes do
racismo, como o Amma – Psique e Negritude, de São Paulo; as voltadas para conscientizar os
protestantes negros, como o grupo Negros em Cristo e, até mesmo, aquelas criadas para defender os
direitos dos gays negros, como o uimbanda-Dudu, de Salvador (Domingues, 2008, p. 105).

Petrônio Domingues (2008) vê nessa proliferação de organizações negras


certo atomismo, uma vez que a diversificação do movimento negro se deu, de
acordo com o autor, às expensas da diluição da preponderância do MNU, que
perdeu sua força aglutinadora. A criação da Coordenação Nacional de Entidades
Negras (Conen), durante a realização do I Encontro Nacional de Entidades
Negras em 1991, como espécie de núcleo agregador de todas as entidades em
torno de fóruns estaduais, tampouco surtiu efeito capaz de barrar essa tendência à
pluralização.
A diversificação interna do movimento negro se reflete no conjunto de grupos
específicos que emergiram no período pós-constituinte. Houve um aumento
expressivo do protagonismo de mulheres negras, quer em organizações
autônomas, quer dentro de entidades negras mistas; dos movimentos
quilombolas; das organizações juvenis; dos cursos pré-vestibulares para negros e
carentes; e de instituições tais como a Central Única das Favelas (Cufa), o
Olodum, o AfroReggae e o Observatório de Favelas, que transitam entre políticas
culturais e de celebração da negritude e demandas por ampliação da cidadania
(Rodrigues e Prado, 2013; Silva, 2012; Sansone, 2004). As demandas do
movimento negro também se ampliaram, sendo que as principais temáticas
engendradas nesse contexto foram: reivindicações por reparações e políticas de
ação afirmativa, direitos territoriais, políticas públicas específicas, aumento da
representação política, aumento da representação negra na mídia, saúde da
população negra e direitos sexuais e reprodutivos.
Esse processo de consolidação, pluralização e institucionalização dos
movimentos sociais não pode ser visto apenas sob a óptica de sua provável
cooptação pelo Estado, como sugerem autores como Dryzek (1996) e Rahier
(2012). No caso específico brasileiro, faz-se mister compreender em que medida a
permeabilidade do Estado cria oportunidades políticas que são interpretadas
pelos movimentos sociais como possibilidade real de ampliação de seu escopo de
ação. Assim, espaços de mediação, como os partidos políticos, podem auxiliar os
movimentos sociais a reformular seus repertórios de ação coletiva para que
exerçam um maior impacto sobre as instituições estatais. Há casos ainda em que
os próprios movimentos sociais buscam influenciar os partidos políticos, para que
ajam como porta-vozes de suas reivindicações.
Nas décadas de 1990 e 2000 o PT foi, inegavelmente, o partido que mais
incorporou as reivindicações dos ativistas negros em sua agenda política e mediou
a inclusão de ativistas em esferas político-decisórias. Como já discutido
anteriormente, a participação de ativistas negros em partidos políticos iniciou-se
com a fundação das principais legendas de centro-esquerda do período de
transição democrática. Entretanto, a passagem para os anos 1990 marcou uma
institucionalidade distinta da década precedente. Se nos anos 1980 havia um
movimento dos ativistas em relação ao partido, na década de 1990 ocorreu o
contrário, com os partidos buscando incorporar ativamente lideranças – e
reivindicações – do movimento negro. A criação da Coordenadoria Especial do
Negro (Cone), durante o governo de Luiza Erundina na cidade de São Paulo, e da
Secretaria Municipal para Assuntos da Comunidade Negra, no governo de Célio
de Castro em Belo Horizonte, figuram entre os exemplos mais importantes desse
novo formato de institucionalidade que vai na direção do partido para o
movimento social.
Um dos aspectos positivos desse novo contexto de interação institucional
para o movimento negro foi a possibilidade de ampliação de seus repertórios de
ação. Ativistas negros envolvidos com o PT e órgãos governamentais foram,
gradativamente, adquirindo expertise técnica que os habilitou, na década de 2000,
a reivindicar, a partir do Estado, e não mais apenas por espaços de mediação,
medidas políticas que concretizassem suas demandas.
Contando com o apoio do PT e da Central Única dos Trabalhadores (CUT)
ocorreu, em 20 de novembro de 1995, em Brasília, a Marcha Zumbi dos Palmares,
contra o Racismo pela Cidadania e a Vida, que reuniu cerca de 30 mil
manifestantes na Esplanada dos Ministérios. A Marcha teve grande repercussão
política e um de seus impactos mais importantes foi a abertura de um diálogo
dentro do Estado brasileiro acerca da viabilidade de adoção de políticas de ação
afirmativa.
O trânsito institucional do movimento negro na primeira metade da década
de 1990 engendrou, a partir de disputas políticas e alianças pontuais com partidos
e sindicatos, uma nova estrutura de oportunidade discursiva que desembocou, nos
anos 2000, em maior inserção estatal e na ampliação do debate sobre políticas de
ação afirmativa, que se tornou central para o ativismo negro.

O debate público alcança o Estado: mudanças nos contextos


políticos e oportunidades institucionais

Entre a promulgação da Constituição de 1988 e a realização da Marcha


Zumbi dos Palmares, o espaço de abertura institucional para o debate racial se
restringiu às esferas municipais e estaduais, notadamente em localidades
governadas pelo PT e pelo PDT. A atuação do movimento negro naquele período
constituiu-se, conforme proposição teórica de McAdam et al. (2001), em uma
verdadeira política de conflito, posto que seus repertórios de ação se dirigiam,
ainda que parcialmente, ao Estado e, ao ter parte de suas reivindicações atendidas,
gerou-se um impacto prolongado tanto na estrutura estatal quanto na dinâmica
do movimento.
O efeito mais visível da Marcha Zumbi dos Palmares foi a assinatura, pelo
Governo Federal, de um decreto criando o Grupo de Trabalho Interministerial de
Valorização da População Negra (GTI). As funções desse grupo eram discutir e
propor políticas públicas para a população negra nos mais diversos âmbitos do
Estado e da sociedade civil, com especial atenção para políticas na educação,
mercado de trabalho, saúde, cultura e comunicação.
Em discurso proferido no ato de instalação do GTI, ocorrido em fevereiro de
1996, Fernando Henrique Cardoso (1988, p. 18) afirmou que:
O problema da valorização da população negra não é um problema burocrático, nem é um problema
meramente legal, embora haja aspectos legais na questão. É muito mais do que isso. É um problema
cultural, é um problema de participação, é um problema de cidadania, é um problema social. No caso
brasileiro, nós temos que valorizar o fato de nós constituirmos uma sociedade multirracial. Tenho dito
isso, seguidamente, nos meus pronunciamentos como presidente da República, porque não se trata de
valorizar por valorizar. É porque isso é parte constitutiva da nação. A nação brasileira se compõe dessa
multiplicidade. […] Nunca me esqueço que, certa vez, no Rio de Janeiro, numa reunião no Itamaraty,
onde mais tarde fui ministro, um embaixador esteve a ponto de me tirar da sala. Eu era então bastante
jovem e mais impetuoso. Eu disse coisas que digo sempre. E que continuo dizendo, de forma educada,
como fiz lá também nessa reunião do Itamaraty. Disse que havia preconceito no Brasil. O embaixador
considerava que isso era uma coisa contra o Brasil, contra a nossa imagem no exterior. Isso mudou
muito, de lá para cá. Hoje nós sabemos que a nossa imagem no exterior não depende dessas coisas.
Pelo contrário, depende de nós termos a coragem de reconhecer o que está errado e trabalharmos para
modificar o que está errado. Existe sim, preconceito no Brasil. A valorização do negro implica também
na luta contra o preconceito. Porque ele existe. Ele aparece muito objetivamente em termos de
discriminação de salário, de não utilização de pessoas, não só de negros, mas de certos grupos raciais.
O negro não é o único grupo discriminado. Há outros grupos. A formação de uma sociedade
democrática implica que o Governo atue muito claramente nessa direção. Se não houver essa
convergência de esforços da sociedade civil e do aparelho de Estado, não vamos conseguir, realmente,
transformar numa realidade cotidiana aquilo que gostamos de ressaltar como valor. Ou seja, a
tolerância, o fato de que somos capazes de conviver na multiplicidade de raças e de culturas.

O discurso de Fernando Henrique Cardoso reflete o resultado menos visível,


porém com efeitos mais prolongados e profundos sobre a relação entre Estado e
movimento negro, da Marcha Zumbi dos Palmares. Ao incorporar o ame dos
ativistas negros sobre o tema das desigualdades raciais no Brasil, FHC expandiu
os contornos das estruturas de oportunidades discursivas engendradas pelo
movimento em seu processo de institucionalização. uebrou-se, assim, a
estratégia estatal predominante sobre a temática (Kriesi, 2004). Para efeito de
comparação, enquanto presidente, José Sarney referiu-se à questão racial em
poucas ocasiões e, quando o fez, reafirmou princípios culturalistas e não
apresentou propostas governamentais de cunho mais político para lidar com as
desigualdades raciais (Grin, 2010). Nesse sentido, a criação do GTI constituiu o
primeiro passo em torno da gestação e implementação de políticas públicas
racialmente sensíveis.
Ainda em 1996, o Governo Federal, por meio da Secretaria de Direitos de
Cidadania (SDC), promoveu o Seminário Internacional Multiculturalismo e
Racismo: o papel da ação afirmativa nos Estados democráticos contemporâneos.
Seu principal objetivo era debater a validade e a aplicabilidade de políticas de ação
afirmativa. No mesmo ano, foi lançado o Programa Nacional de Direitos
Humanos (PNDH) que, entre suas inúmeras propostas, aventava a necessidade de
o Estado implementar políticas de ação afirmativa.
A principal conquista do GTI refere-se à relativa força com que o 1º PNDH
enfatizou a necessidade de superação das desigualdades raciais para um
aprofundamento da cidadania no país. As propostas apresentadas pelo programa
foram tanto uma resposta a demandas vocalizadas pelos movimentos sociais
quanto uma tentativa de redefinir o lugar do Brasil no cenário internacional, mais
voltado para a promoção de justiça social em suas variadas formas. A maior
receptividade governamental em relação à temática dos direitos humanos, de
maneira geral, e da implementação de políticas públicas racialmente sensíveis, de
maneira particular, representou uma mudança significativa do discurso estatal
predominante e se constitui em um preâmbulo para o caráter mais ativo, no que
tange às políticas de promoção de igualdade racial, que o Estado passaria a adotar
a partir da 3.ª Conferência Mundial Contra o Racismo (Kriesi, 2004).
Ademais, como resultado das pressões de diferentes movimentos sociais, o
Governo Federal criou, em abril de 1997, a Secretaria Nacional dos Direitos
Humanos (SNDH) vinculada ao Ministério da Justiça, em substituição à SDC.
Em 1.º de janeiro de 1999, a SNDH foi transformada em Secretaria de Estado dos
Direitos Humanos (SEDH), com assento nas reuniões ministeriais. Várias
lideranças do movimento negro tiveram a sua primeira inserção junto à burocracia
estatal via SNDH e buscaram pôr em prática as propostas deliberadas no PNDH.
Houve, nesse processo de inclusão no Estado, a criação de uma sinergia entre
atores institucionais e representantes da sociedade civil, com forte impacto na
agenda política de finais da década de 1990. Foi nesse contexto que o governo
brasileiro instituiu o Comitê Nacional Preparatório para a Conferência de
Durban, responsável por elaborar um relatório que consubstanciasse as atividades
e propostas que seriam debatidas pelos representantes estatais e por organizações
não governamentais brasileiras para a Conferência Mundial Contra o Racismo
(CMR).
Embora as Conferências da ONU contra o racismo sejam consideradas, no
cenário internacional, pouco efetivas, no âmbito doméstico podem se constituir
em importantes catalisadoras de transformações políticas. Tal discrepância em
termos de significância remonta a 1977, ano anterior à realização da 1.ª CMR em
Genebra. Naquela ocasião, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou uma
resolução equiparando o sionismo ao racismo. Como resultado, Estados Unidos e
Israel se recusaram a participar da conferência, impactando negativamente os
resultados dos debates realizados no evento. Tal fato se repetiu durante a 3.ª
CMR, ocorrida em Durban, na África do Sul. Naquela ocasião, Israel e Estados
Unidos se retiraram da Conferência por discordarem das reivindicações por
reparações pelo longo período de escravidão e colonização e a proposta de sanção
contra Israel por conta do tratamento dado aos palestinos (Telles, 2004). Além
disso, a Declaração Final do Programa de Ação da Conferência não conseguiu o
apoio e o consenso almejados entre os delegados presentes. Por fim, quatro dias
após o encerramento da Conferência houve o atentado às torres gêmeas, em Nova
Iorque, para o qual se voltaram todas as atenções, ao passo que as resoluções da 3.ª
CMR foram completamente obliteradas.
Para o Brasil, no entanto, os eventos preparatórios e as propostas apresentadas
no documento final da 3.ª CMR tiverem efeitos sem precedentes sobre a agenda
política nacional e para o aprofundamento de uma relação positivamente
sinérgica entre movimento negro e estado. Isso ocorreu devido a uma série de
razões. Primeiramente, a ênfase dada pelo movimento negro à denúncia do mito
da democracia racial teve forte impacto na estratégia estatal predominante, em
que agentes institucionais passaram a reconhecer o racismo como um eixo
importante para se entender as desigualdades sociais no país. Houve também,
especialmente a partir de finais da década de 1980, uma crescente participação de
ativistas do movimento negro brasileiro em redes internacionais de ativismo
antirracismo, que ajudaram a fortalecer e transformar as organizações negras
nacionais para torná-las mais eficazes.
Um efeito subjacente ao fortalecimento de tais redes diz respeito ao
incremento do escrutínio público dos movimentos sociais em relação à ação do
Estado, expondo as discrepâncias entre seu discurso internacional e suas práticas
domésticas. Além disso, as conferências internacionais da ONU são fóruns que os
estados acessam para aumentar seu prestígio internacional, o que os torna ainda
mais vulneráveis à pressão de redes transnacionais de ativismo e, portanto, mais
propensos a se comprometer a promover ações que reforcem o prestígio
alcançado (Telles, 2004).
No intervalo de duas décadas, por conta das pressões vindas do movimento
negro, o Estado brasileiro passou de uma estratégia predominantemente
negacionista a uma estratégia afirmativa-propositiva sobre o peso do racismo em
constranger oportunidades individuais, sociais e políticas de afro-brasileiros e as
instituições políticas se tornaram mais permeáveis (Kriesi, 2004; Dryzek, 1996).
Não por acaso, coube ao Estado brasileiro, em conjunto com fundações
internacionais, a condução dos processos preparatórios para a 3.ª CMR na
América Latina comprometendo-se, inclusive, a qualificar o discurso da delegação
oficial a partir dos interesses vocalizados pelos ativistas negros durante a
realização dos encontros prévios à conferência.
Essa aproximação programática entre Estado e movimento negro, todavia,
não aconteceu na ausência de conflitos, como demonstra o racha entre ativistas e
integrantes da Fundação Cultural Palmares no primeiro encontro preparatório
para a 3.ª CMR:

Antes das Conferências internacionais, o diálogo do movimento negro com o governo havia quase
sempre sido intermediado pela Fundação Cultural Palmares, desde sua criação em 1988. Na primeira
Conferência preparatória para a Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em Genebra entre
os dias 1o e 5 de maio de 2000, esse monopólio seria quebrado e o governo brasileiro iria logo mostrar
sinais de que buscava um diálogo com o movimento negro organizado. Embora o governo brasileiro
tivesse se comprometido em sediar uma reunião regional das Américas para preparação da
Conferência Mundial, a representante da Fundação Palmares anunciou que o Brasil não mais seria o
anfitrião, alegando que os líderes negros não queriam que a Conferência fosse no Brasil. Isso foi uma
declaração insincera considerando-se os esforços dos líderes do movimento negro em informar seus
membros sobre a Conferência. Além disso, era especialmente chocante dada a presença dos líderes do
movimento negro. Embora o chefe da missão brasileira em Genebra mais tarde tenha citado fatores de
ordem financeira como razão para não hospedar as reuniões locais, esse argumento era igualmente não
convincente considerando-se que essas Conferências são subsidiadas e que países pobres como o
Senegal e o Iraque foram anfitriões das Conferências para a África e a Ásia. A razão real parecia ser a
preocupação do governo com o rápido desmoronamento da imagem internacional de tolerância racial
do Brasil e com o fato de que tal Conferência chamaria a atenção para as reivindicações do
movimento negro. Apenas dez dias antes, no dia 22 de abril, o Brasil comemorava os 500 anos da
chegada à sua costa de navegadores portugueses com uma celebração presenciada pelos principais
dignitários, incluindo o presidente Cardoso, na praia onde esse evento histórico ocorreu. Por vários
dias, trabalhadores rurais sem terra, negros e índios que protestavam pacificamente contra o que seria
a comemoração de 500 anos de exploração europeia foram impedidos de chegar ao local da cerimônia
oficial, próximo a Porto Seguro, Bahia. Apesar de terem permissão garantida por decisão judicial,
quando eles tentaram marchar até o local, no dia da cerimônia, foram detidos, e vários brutalmente
espancados pela polícia em um evento amplamente transmitido pela mídia internacional (Telles,
2004, p. 64-65).
Como o governo brasileiro se manteve irredutível em sua decisão de não
hospedar a Conferência regional, o Alto Comissariado das Nações Unidas optou
por realizá-la em Santiago do Chile. Entre os encontros de Genebra e Santiago,
foram realizadas duas importantes reuniões nacionais envolvendo lideranças do
movimento negro. A primeira foi um encontro nacional organizado pela Conen,
para definir os objetivos da participação do movimento negro no evento do Chile
(Telles, 2004). Além disso, integrantes da diretoria do International Human
Rights Law Group, principal entidade responsável pela organização da 3ª CMR,
vieram pessoalmente ao Brasil capacitar advogados e ativistas negros sobre
questões técnicas e assuntos substantivos que viriam a ser discutidos durante a
Conferência e em seus eventos preparatórios (Telles, 2004).
Para além dos conflitos com o estado, também houve muita disputa interna
entre as organizações do movimento negro, sobretudo em relação à alocação de
recursos para as ONGs participantes do processo de Durban, que acabou sendo
centralizada nas mãos de poucas organizações do Sudeste, evidenciando as
disparidades de poder político e econômico entre os mais diversos grupos que
compunham, à época, o movimento negro.
Ainda que contando com inúmeros conflitos, a participação do Brasil foi
expressiva durante os eventos preparatórios e na 3.ª CMR. Segundo Telles (2004),
o governo brasileiro nunca havia investido tanto em apoiar movimentos sociais
em uma Conferência da ONU. Composta por 67 integrantes, a delegação oficial
brasileira foi a terceira maior da Conferência, que contava com delegações de 170
países, atrás apenas da África do Sul e da Croácia, com 978 e 130 integrantes
respectivamente (Peria, 2004). A delegação brasileira incluía o ministro da
Justiça, o secretário de Direitos Humanos, além de deputados federais e outras
autoridades. Ativistas do movimento negro, apoiados pela Fundação Ford, por
governos locais ou viajando com recursos próprios, perfaziam aproximadamente
200 integrantes (Telles, 2004). Ademais, o governo brasileiro, por intermédio do
embaixador Gilberto Vergne Saboia, pleiteou que um dos cargos da Conferência
fosse destinado a um integrante da delegação brasileira. Naquele contexto, foi
sugerido o nome de Edna Roland, à época presidente da ONG Fala Preta!, para
representar formalmente a delegação brasileira junto à Conferência (Rodrigues,
2006).
O esforço empreendido pelas autoridades brasileiras bem como a indicação
de Edna Roland para o segundo posto na hierarquia da 3ª CMR, o de relatora-
geral, geraram grande visibilidade midiática para o movimento negro brasileiro, e,
assim:

Enquanto ativistas participavam da conferência paralela das entidades não governamentais (ONGs)
em Durban nos dias que antecederam a Conferência oficial, o Brasil vivia uma transformação
histórica na forma como a mídia abordava as questões raciais. Como descreviam alguns ativistas do
movimento negro, ‘a questão racial estava pegando fogo’. Na semana anterior e durante a primeira
semana da Conferência, os maiores jornais brasileiros publicaram matérias diárias sobre questões
raciais, racismo e sobre a Conferência Mundial. Durante a semana entre os dias 25 e 31 de agosto, os
cinco maiores jornais brasileiros publicaram cerca de 170 artigos, editoriais, cartas e opiniões, fato sem
precedentes na história jornalística do Brasil, em que as questões de raça eram tratadas como sendo de
pouco interesse do público e artigos sobre esse assunto eram publicados apenas ocasionalmente
(Telles, 2004, p. 70-71).

O pós-Durban foi marcado pelo aprofundamento da institucionalização


político-estatal do debate sobre desigualdades raciais no Brasil. Pouco mais de um
mês após o encerramento da 3.ª CMR, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro
(Alerj) instituiu, por unanimidade, o sistema de cotas raciais nas universidades
estaduais fluminenses. Os efeitos de Durban também impactaram o governo
federal, ainda sob a administração de FHC. Entre as medidas propostas pelo
governo federal destacam-se: o Programa Nacional de Ações Afirmativas (lançado
por decreto presidencial, em maio de 2002), o Conselho Nacional de Combate a
Discriminação, o Programa Diversidade na Universidade e o Programa Brasil
Gênero e Raça, vinculado ao Ministério do Trabalho. Porém, a única proposta
que chegou a ser implementada, sendo, inclusive, mantida durante o governo
Lula, foi o Programa de bolsas-prêmio para a diplomacia, do Ministério das
Relações Exteriores ( Jaccoud et al., 2009).
Diante do exposto, a mudança de posição do Estado sobre a necessidade de
políticas públicas para enfrentar a desigualdade racial pode ser creditada a três
fatores interconectados: o processo de democratização, as reivindicações dos
ativistas da sociedade civil e as redes internacionais de ativismo antirracismo. O
processo de democratização, por si só, não teria força suficiente para pôr fim ao
mito da democracia racial e alterar a estratégia estatal predominante. Em 1988,
com a promulgação da Constituição, um grande passo (discursivo) foi dado, mas
as instituições estatais se mantiveram fechadas para debater as fontes estruturais
de racismo, mantendo as discussões ao nível da superfície e com prevalência de
medidas simbólicas e/ou de cunho individualista (Guimarães, 2002).
Foi apenas a partir do governo FHC que o processo de abertura institucional
tomou fôlego, mas ainda assim de forma ambígua e inconclusa. A Marcha Zumbi
dos Palmares e a criação do GTI fortaleceram o movimento negro e garantiram
uma maior adesão do Estado a suas reivindicações. Por fim, o governo FHC fazia
intenso lobby para que o país ocupasse, juntamente com EUA, Rússia, França,
China e Reino Unido, assento permanente no Conselho de Segurança das Nações
Unidas (CSNU), e para isso precisava projetar uma imagem progressista em
defesa dos direitos humanos e justiça social. Esse fato contribuiu para expandir
uma estrutura de oportunidades políticas para o movimento negro, cujo ponto
marcante foi o endosso governamental à elaboração de programas de ação
afirmativa como uma solução legítima para diminuir a desigualdade racial
brasileira.
No entando, conforme afirma Grin (2010), o governo FHC, em contraste
com a administração subsequente, de Luiz Inácio Lula da Silva, adotou uma
postura titubeante frente à temática racial. Por trás de um vigoroso plano de
intenções para combater as desigualdades sociais e raciais, revelava-se uma disputa
entre políticas universalistas (voltadas para a garantia de direitos individuais) e
específicas (focadas na garantia de direitos coletivos a grupos marginalizados). Por
essa razão, entre 1995 e 2000, a maior parte das políticas públicas formuladas
para a população negra não chegou a ser implementada (Grin, 2010).

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[1] Uma versão preliminar deste capítulo foi publicada em Cristiano, 2020.

[2] Cf. Hanchard, 2001; Bairros, 2000.


Capítulo II

Estado, raça e racismo: as Relações


Internacionais revisitadas
Giovana Esther Zucatto

Introdução

A historiografia das Relações Internacionais (RI) localiza o surgimento do


campo enquanto área científica autônoma e organizada na primeira metade do
século XX. De maneira mais específica, existe uma espécie de mito fundador da
disciplina que elegeu o ano de 1919, com a criação da Cátedra Woodrow Wilson
de Política Internacional na Universidade de Aberystwyth, no País de Gales,
como sua pedra fundamental. O período em que se institucionaliza está
diretamente ligado à sua razão de ser: uma disciplina destinada a entender – e, em
alguma medida, prever – o comportamento dos Estados, tendo a guerra e a paz
como seus temas centrais por excelência, que surge em um período marcado por
grandes guerras e pela decadência dos impérios coloniais. O trauma da Primeira
Guerra Mundial pode ser entendido como a força motora da institucionalização
da disciplina, enquanto a ordem mundial que emergiu após a Segunda Guerra
Mundial teria sido palco e combustível de uma expansão no campo.
Ancorados no contexto histórico do período entre guerras, idealismo e
realismo – as duas correntes teóricas emergentes – vão buscar na filosofia política
clássica seus pressupostos, a partir dos quais enunciarão regras sobre o
funcionamento das relações interestatais. Ainda que apontando para caminhos
diferentes, ambas as tradições pressupõem que a característica fundamental do
sistema internacional é a anarquia: não existe uma autoridade superior que
regulamente o comportamento das unidades – uma adaptação direta da ideia de
estado de natureza das teorias contratualistas. A partir daí, desenvolve-se todo um
campo intelectual com relações profundas com os processos decisórios políticos
das principais potências internacionais.
Um olhar um pouco mais atento para o campo de RI, especialmente para a
construção de teorias, permite observar uma importante ausência: o debate sobre
raça e racismo. O silêncio chama atenção porque boa parte dos fenômenos
internacionais dos últimos 200 anos é atravessada por questões raciais. Desde o
imperialismo e a colonização, as duas Guerras Mundiais, movimentos de
autoafirmação e independência, a guerra ao terror e, mais recentemente, o avanço
da extrema direita no mundo e a pandemia do Covid-19. Por que, então, os
desenvolvimentos teóricos de RI não parecem trazer raça e racismo como
variáveis importantes?
Para responder a essa pergunta e avançar o debate, este trabalho está dividido
em três partes. Na primeira seção, é realizada uma retomada da história da criação
da disciplina de RI, colocando em xeque seus pressupostos e apontando a
invisibilização da contribuição de W. E. B. Du Bois. Na segunda parte, é levada a
cabo uma reflexão sobre a influência da Segunda Guerra Mundial na
transformação da política internacional, mas, principalmente, do campo
acadêmico de RI. Novamente, questiona-se a aparente ausência da temática racial
da disciplina. Na terceira seção, parte-se do debate sobre racismo em RI e das
contribuições de Abdias Nascimento para uma breve crítica à inserção
internacional brasileira. Finalmente, nas considerações finais é retomada uma das
pressuposições que, de maneira velada, atravessa todo o trabalho: fazer essa
arqueologia do campo é importante para entender como o tema de raça (e o
racismo) estrutura a disciplina de RI implicitamente.
Antes de continuar, convém esclarecer que este capítulo é uma tentativa
inicial de contribuir com o debate sobre raça e racismo no campo acadêmico de
Relações Internacionais no Brasil. Ainda que seja uma área incipiente, já é possível
encontrar artigos publicados por pesquisadoras e pesquisadores brasileiros nesse
mesmo debate como em uadros (2019), Oliveira (2019) e Silva (2021). Este
trabalho é ancorado em dois livros seminais: e making of International
Relations (2019), de Amitav Acharya e Barry Buzan, e Race and Racism in
International Relations (2015), de Alexander Manchada, Nivi Shilliam e Robbie
Shilliam. Como nenhum dos livros foi traduzido, um dos objetivos centrais deste
capítulo é trazer, ainda que de maneira superficial, os debates neles desenvolvidos
para o público leitor em língua portuguesa.

A fundação das Relações Internacionais revisitada

A partir da criação da Cátedra Woodrow Wilson em Política Internacional na


Universidade de Aberystwyth, no País de Gales, em 1919, diversas universidades
inglesas e estadunidenses criaram institutos, departamentos, cátedras, think tanks
e publicações voltados especificamente para o estudo das questões internacionais.
Ainda de acordo com essa narrativa, o que impulsionou a criação de um campo
científico de RI foram os traumas da Primeira Guerra Mundial, que criaram uma
verdadeira obsessão com o estudo da guerra e da paz entre as nações europeias.
Acharya e Buzan (2019) ressaltam que a Conferência de Paz de 1919 e a criação
da Liga das Nações estavam intimamente conectadas à criação da nova disciplina.
Especialmente o estabelecimento da Liga foi circundado de um sentimento
antiguerra e de esperanças de que a instituição seria garantidora da paz mundial e
influenciou em grande medida os escritos em RI.
Na esteira de Aberystwyth, foi fundado em 1920 o Royal Institute of
International Affairs – ou como é conhecido mais comumente, Chatham House
–, que passou a publicar sua revista International Affairs em 1922. Dois anos
depois, a London School of Economics instituiu a Cátedra Ernest Cassel de
Relações Internacionais, criando um departamento específico para a disciplina em
1927. Finalmente, em 1930, Oxford inaugurou a Cátedra Montague Burton de
Relações Internacionais (Acharya e Buzan, 2019).
Nos Estados Unidos, um think tank irmão da Chatham House foi criado em
1921, o Council of Foreign Relations (CFR). Em 1923, a Foreign Policy
Association entrou em funcionamento, com importantes publicações sobre
política internacional como a Foreign Policy Reports, a Foreign Policy Bulletin e a
Headline Series. Hans Morgenthau e uincy Wright cofundaram o Comitê de
Relações Internacionais na Universidade de Chicago em 1928 e, dois anos depois,
a Universidade de Princeton inaugurou a School of Public and International
Affairs. A década de 1930 viu a proliferação de cursos e departamentos voltados
para RI. Curiosamente – e muito possivelmente sob influência do contexto da
criação da Liga das Nações –, a produção da área nos Estados Unidos naquele
primeiro momento foi amplamente vinculada a uma perspectiva Liberal/Idealista
Internacionalista, em oposição à política internacional do país, de caráter
fortemente isolacionista (Acharya e Buzan, 2019).[3]
As duas grandes correntes teóricas que emergiram em um primeiro momento
foram o liberalismo/idealismo e o realismo (ou realismo clássico). A primeira
menção a essa divisão apareceu na seminal obra de Edward H. Carr, Vinte anos de
crise (1939). Referindo-se aos primeiros acadêmicos que tiveram notoriedade na
disciplina de RI nas décadas anteriores, Carr afirmava que sua preocupação
normativa era tão grande que eles estavam apenas focados em como o mundo
deveria ser e acabavam abandonando o estudo de como ele realmente funcionava.
Carr classificou tal grupo de acadêmicos como utópicos ou idealistas, em
contraposição aos intelectuais realistas, que teriam uma visão mais objetiva da
política internacional e estariam mais alinhados com a dimensão dos interesses
nacionais dos países e do poder (Nogueira e Messari, 2005).
Essa divisão teórica é utilizada até hoje, e ambos os campos seguem relevantes
no debate em RI, tendo influenciado – mesmo que suscitando críticas –
praticamente todas as correntes teóricas que se desenvolveram no século que se
seguiu. Grosso modo, ambos os modelos compartilham de um pressuposto básico:
a anarquia internacional. O estado de anarquia não significa necessariamente um
ambiente caótico e desorganizado, mas se refere ao fato de que não existe uma
autoridade superior que regulamente o comportamento dos Estados, ou que dite
as regras sobre como essas unidades devem agir.
A partir daí, os teóricos seguiram caminhos bastante distintos. Sem grandes
pormenores, pode-se dizer que os idealistas acreditam que os interesses comuns
acabariam por incentivar a cooperação entre os países. Esse alinhamento levaria
não só à construção de um mundo mais pacífico, mas a um avanço moral da
humanidade. Os principais nomes do idealismo foram Andreas Osiander,
Norman Angell e Alfred Zimmern, além do próprio Woodrow Wilson.
Por outro lado, os realistas têm uma visão pessimista sobre a política
internacional. Os Estados seriam egoístas por natureza, colocando sua
sobrevivência como meta principal. A busca por sobrevivência criaria relações de
inimizade e desconfiança entre os países, e alianças seriam feitas apenas de
maneira temporária visando a interesses próprios. Essa busca passa por uma
tentativa de maximização dos recursos nacionais, principalmente os recursos
militares, e, em última instância, esse sistema tenderia ao conflito. Entre os
principais autores realistas estão o próprio Carr, Hans Morgenthau e seu Política
entre as Nações e Raymond Aron.
Apesar do mito fundador, Amitav Acharya e Barry Buzan (2019)
argumentam que é possível encontrar produção intelectual em RI do século XIX
até o final da Primeira Guerra Mundial, o que chamam de RI antes das RI. Essa
produção foi concentrada nos países do centro (Europa, Estados Unidos e, em
alguma medida, Japão) e foi influenciada diretamente pelos efeitos da Revolução
Industrial e pela emergência do que os autores denominam ideologias do
progresso: liberalismo, socialismo, nacionalismo e racismo científico. Esta última
foi originada na combinação de três fatores: os esquemas classificatórios da
Biologia, o Darwinismo social e os encontros entre a Europa e os povos do resto
do mundo. Daí desenvolveu-se a concepção de que o progresso equivaleria à
“melhoria” do contingente racial com a substituição dos tipos tidos como
inferiores pelos superiores.
Essa produção de RI antes das RI, ou pelo menos aquela elaborada no centro
capitalista, tinha como um de seus aspectos fundamentais uma forte distinção
entre as relações entre estados tidos como civilizados e entre as pessoas que lá
viviam e as relações entre tais estados e as regiões do mundo que eles colonizavam.
De um lado, isso significa que hierarquias raciais e de desenvolvimento (até onde
era possível separar as duas na época) tiveram um papel central na construção do
campo de RI. De outro, essa distinção aplicava-se – e ainda se aplica – não apenas
ao tratamento analítico, mas ao desenvolvimento de costumes e regras para reger
as próprias relações entre os estados.
Para exemplificar o argumento, podemos citar o fato de que a revista Foreign
Affairs, uma das mais importantes publicações em RI até hoje, foi fundada em
1910 com o nome Journal of Race Development. Em 1919, passou a se chamar
Journal of International Relations e, finalmente, em 1922, Foreign Affairs. Durante
uma década, a revista publicou artigos de temáticas variadas, mas voltados
principalmente para o problema da inserção internacional norte-americana. Não
cabe aqui uma análise mais demorada desses artigos, mas uma leitura rápida dos
números permite aferir que se tratava de uma revista de RI cuja preocupação
central eram as questões raciais.[4]
Errol Hendersen (2015) chama atenção para uma passagem igualmente
elucidativa. Alfred Zimmern, teórico idealista que por muitos é tido como um
dos fundadores da disciplina de RI, que foi o primeiro a assumir a supracitada
Cátedra Woodrow Wilson, declarou em uma palestra em 1905 que aquele era um
momento histórico singular. A razão? O Japão havia acabado de derrotar a Rússia
na Guerra Russo-Japonesa. Para Zimmern, aquele era provavelmente o momento
histórico mais importante que havia acontecido em seu tempo de vida: a vitória
de uma nação não branca sobre uma nação branca.
Se é verdade que o pensamento e a teorização sistemáticos sobre RI
começaram antes de 1919 e tinham como preocupação central os interesses das
nações imperialistas e a subjugação das raças “inferiores”, Acharya e Buzan (2019)
defendem que também é verdade que o trauma da Primeira Guerra Mundial
reorientou as prioridades do novo campo em direção aos problemas da guerra e da
paz entre as grandes potências em um mundo de divisões ideológicas cada vez
mais polarizadas. As relações com as nações periféricas teriam saído do foco dos
intelectuais, que se voltaram para o centro.
No entanto, o que procuro argumentar aqui é que essa reorientação do campo
não significou que a questão racial tenha desaparecido do pensamento em RI.
Primeiro, porque as unidades analisadas seguiam sendo impérios coloniais que
dependiam das ideologias racistas para legitimar seus empreendimentos além-
mar. Segundo, porque os próprios conceitos mobilizados pelos teóricos traziam
uma carga anterior, já que foram desenvolvidos partindo do pressuposto de que
haveria uma supremacia branca.
As correntes teóricas tidas como fundadoras do campo, idealismo e realismo,
compartilham pressupostos da filosofia política clássica, a saber: o estado de
natureza, o contrato social, e, a partir deles, o conceito de anarquia. O último,
central no estudo das RI como já exposto, deriva de insights de teóricos
contratualistas como Hobbes, Locke, Rousseau e Kant.
Charles Mills (2000) argumenta que o contrato social é embutido em um
contrato racial mais amplo, que estabeleceu uma humanidade heterogênea
arranjada hierarquicamente e refletiu um dualismo fundamentalmente
demarcado pela raça – que naquele momento trazia em si um entendimento
hierarquizante biológico do fenômeno. Segundo o autor, existe uma lógica racial
tácita em Hobbes: o estado de natureza literal, reservado para os não brancos, e o
estado de natureza hipotético, para os brancos – trata-se do dualismo das teses do
contrato social, em que há assunções para não brancos associadas à selvageria e à
irracionalidade.
Immanuel Kant tem, em sua teoria da paz republicana que prefigurou a tese
da paz democrática, o avanço moral da humanidade como um dos pontos
centrais. No entanto, Errol Hendersen (2015) aponta que em “Antropologia de
um ponto de vista pragmático”, Kant defendeu que os brancos ocupam as
posições mais altas na ordem moral e racional, seguidos pelos amarelos, os negros
e então os vermelhos. Esse ranking refletiria sua capacidade relativa de perceber a
razão e a perfeição racional-moral por meio da educação. Os negros, assim, não
alcançam os requerimentos mínimos para agência moral. Ou seja, o que define em
Kant a qualidade de uma pessoa é circunscrito por seu supremacismo branco. O
que é, então, o republicanismo defendido por Kant se não um regime para
brancos que provê a paz perpétua?
Uma passagem rápida por esses autores permite perceber que as raças tidas
como mais baixas – as mais escuras – eram consideradas não apenas
biologicamente inferiores aos brancos, mas em um estado de quase conflito
eterno. De um lado, legitimava-se a “missão civilizadora” do homem branco, a
qual teria que ser imposta pelo uso da força. Por outro lado, demarcava quais eram
os sujeitos: aqueles dotados de racionalidade – não por acaso um dos paradigmas
centrais de entendimento da modernidade. Essa orientação proveu uma
racionalidade intelectual para justificar os empreendimentos de escravidão,
conquista imperial e genocídio (Henderson, 2015).
Cabe questionar, então, se realmente não havia ninguém pensando essa
relação entre raça, racismo e política internacional. Convém aqui invocar o legado
de W. E. Du Bois, contemporâneo ao surgimento das Relações Internacionais
enquanto disciplina acadêmica e que, entretanto, é sistematicamente apagado da
narrativa dominante sobre a fundação da área. O currículo acadêmico e militante
de Du Bois é extenso: sociólogo, foi o primeiro negro a obter o título de doutor
por Harvard; participou das primeiras conferências panafricanas e foi um dos
fundadores da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP,
na sigla em inglês). Cabe citar ainda que, dentro da sua produção intelectual, Du
Bois publicou dois artigos na Journal of Race Development, o que aponta a baixa
probabilidade de outros internacionalistas da época não conhecerem seu trabalho.
Inspirado pelas experiências e pelo pensamento dos africanos escravizados na
América do Norte e os impactos de sua luta por libertação, Du Bois argumentava
que o problema da política internacional é o problema da linha de cor global, que
divide as raças mais escuras e as mais claras. O termo linha de cor foi cunhado por
Frederik Douglass e fazia parte da gramática de reconstrução do sul dos Estados
Unidos depois da proclamação da emancipação. Du Bois transfere, então, esse
termo para pensar a ordem mundial, colocando raça e racismo como princípios
organizacionais da política internacional em artigo publicado em 1925,
denominado “Worlds of Color”.
Du Bois defendia que a guerra, um dos objetos centrais de análise em relações
internacionais, não era uma aberração, mas a expressão máxima da política
imperial dos países ocidentais. Ainda ressaltou a discrepância entre a face
democrática que os impérios apresentavam em sua esfera
doméstica/metropolitana e a autocracia estrita e inflexível presente nas colônias.
Em As raízes aicanas da guerra (1915), anterior à publicação de Imperialismo, de
Lenin, defendeu que a Primeira Guerra Mundial foi amplamente o resultado de
disputas sobre as conquistas imperiais que fundiu os interesses da burguesia e do
proletariado europeus em uma busca mutuamente reforçadora da dominação
econômica e racista da Ásia e da África.
Uma vez que a hierarquia racial guiou as políticas internacionais dos Estados
predominantemente brancos, Du Bois argumentou que as relações internacionais
da época eram, mais acuradamente, relações interraciais. Ele iluminou, assim, a
significação crucial de raça e racismo enquanto princípios organizativos
fundamentais da política internacional; são eixos de hierarquia e opressão
estruturando a lógica da política mundial (Henderson, 2015). A partir desse
breve levantamento sobre as contribuições do autor, é possível perceber que Du
Bois elaborou uma sistematização sobre o funcionamento das relações
internacionais que coloca raça e racismo como princípios explicativos.

A Segunda Guerra Mundial como ponto de in exão política e


intelectual

A Segunda Guerra Mundial trouxe mudanças enormes tanto ao cenário


político internacional quanto à academia de RI. No primeiro plano, o principal
aspecto foi a emergência de um sistema internacional bipolar, centrado em
Estados Unidos e União Soviética, e das armas nucleares. Outro fator marcante
para a política internacional foi a força que ganharam os movimentos de
independência na Ásia e na África. Finalmente, a criação da Organização das
Nações Unidas (ONU), como o fórum por excelência para promover a paz
mundial, que tem como um de seus valores principais – pelo menos em sua carta
fundacional – a autoafirmação dos povos, institucionalizando a crítica ao racismo
e à colonização. Especialmente nesse último ponto, cabe questionar a hipocrisia
de Estados que defendiam ativamente um tipo de posicionamento na esfera
internacional e possuíam práticas opostas no âmbito interno, como os Estados
Unidos, que condenavam o racismo do regime nazista, mas mantinham um
regime segregacionista internamente.
A luta contra os nazistas na Segunda Guerra Mundial compeliu as elites
ocidentais a se afastarem, pelo menos superficialmente, da doutrina do regime que
eles haviam acabado de derrotar. O racismo passou a ser censurado
internacionalmente. Du Bois apontou a hipocrisia da condenação ocidental das
atrocidades nazistas à luz das práticas em suas colônias. De acordo com ele, não
havia nenhuma atrocidade nazista que a civilização cristã da Europa não praticara
contra povos de cor em todas as partes do mundo em nome e em defesa da raça
superior nascida para governá-lo. Assim, a ordem internacional não alteraria
substancialmente o statu quo racial mesmo que promovesse igualdade racial nas
suas principais instituições internacionais – como a Organização das Nações
Unidas (ONU) – se continuasse a subjugação de nações não brancas pelas
potências imperialistas que foram vitoriosas na Segunda Guerra Mundial
(Hendersen, 2015).
O contexto é importante para entender as transformações pelas quais o
próprio campo de RI passou – convém lembrar que isso tudo se deu quando a
disciplina ainda se encontrava em vias de institucionalização. No caso dos Estados
Unidos, um fator central foi a passagem de uma posição isolacionista para uma
não só de engajamento, mas de disputa pela hegemonia internacional.

A combinação de uma intensa rivalidade bipolar global, ideologicamente orientada, e o potencial


destruidor global de armas nucleares aumentou a obsessão com as RI no centro, já estabelecida
durante os anos entre guerras com os temas de relações entre grandes potências e da guerra. A
descolonização foi uma transformação bastante radical nas relações políticas entre o centro e a
periferia, mas ainda assim não foi muito presente nas preocupações do pensamento em RI das grandes
potências. Como observam Arlene Tickner e Ole Wæver (2009b: 7), a preocupação com as relações
Leste-Oeste dominou as RI durante esse período [pós-guerra até 1989], empurrando as reflexões
sobre as relações Norte-Sul e Sul-Sul para as margens (Acharya e Buzan, 2019, p. 138-139).

Krippendorff (1989 apud Acharya e Buzan, 1989) vai falar em uma segunda
fundação das RI pós-1945. A ideia baseia-se em fatores como a expansão massiva
da institucionalização da disciplina em termos de ensino, pesquisa e publicações;
a ascensão de associações independentes de RI nos diferentes países; uma
mudança em direção a uma maior profissionalização acadêmica dos intelectuais
da área; a rápida ascensão de novos subcampos, especialmente em países do
centro, voltados para assuntos específicos (por exemplo, a área de Estudos
Estratégicos que surgiu especificamente para o estudo das armas nucleares); e o
reconhecimento da produção em RI feita em países periféricos (Acharya e Buzan,
2019). Esse movimento foi acompanhado de uma multiplicação na arena teórica
de RI. A partir de 1945, novas interpretações da política internacional emergiram,
diversificando as chaves de análise e trazendo também disputas metodológicas e
epistemológicas para o campo.
De acordo com Vitalis (2015), se até a Segunda Guerra Mundial a
preocupação central das RI era com o imperialismo e as relações raciais (leia-se: a
manutenção da supremacia branca), a partir das décadas de 1940 e 1950 esse
quadro se alterou. O que houve foi um descompasso, uma vez que as relações
internacionais estavam mais do que nunca atravessadas por questões raciais – por
exemplo, movimentos de independência de nações asiáticas e africanas e votações
variadas na ONU –, enquanto as RI silenciaram sobre o assunto. Essa constatação
pode ser entendida por duas chaves, que não deixam de estar interconectadas.
A primeira diz respeito a uma substituição da hierarquia racial por uma
concepção igualmente distorcida de hierarquia cultural, na qual a raça biológica
pré-1945 foi substituída por um culturalismo eurocêntrico. Du Bois explica
novamente: o racismo passou por um processo de mudança estética para reinos
não biológicos, mas manteve seus atributos principais. John Hobson (2015)
definiu conceitualmente esse movimento: uma passagem do eurocentrismo
manifesto para um eurocentrismo subliminar. Isso aparece em grande medida no
conteúdo semântico das teorias: o institucionalismo eurocêntrico localiza a
diferença puramente em termos de cultura institucional – como, por exemplo,
ocidente racional versus oriente irracional; tradição versus modernidade; centro
versus periferia; hegemonia; estados párias e estados falidos.
Isso se deve, de um lado, à síndrome da culpa colonial, desencadeada no pós-
1945 pela imagem internacional de condenação do nazismo, por avanços teóricos
e pelas lutas por descolonização que conseguiram desacreditar tanto o racismo
científico como o império formal. A virada culturalista foi desencadeada, na
verdade, na antropologia com o trabalho de Franz Boas e acabou transbordando
para outras áreas do conhecimento. No reino da política internacional, a mudança
no entendimento de raça teve como grande expoente o documento Statement on
Race produzido pela Unesco entre 1950 e 1951: “Anunciando uma nova era na
compreensão humana após os terrores da guerra e as irracionalidades do
genocídio, o principal objetivo das declarações era separar o ‘fato biológico’ da
raça do seu ‘mito social’” (Montagu, 1972 apud Henderson, 2015, p. 8, tradução
nossa).[5]
Uma das coisas que as teorias de RI lograram fazer na virada para o
eurocentrismo subliminar foi sanitizar (whitewash) o imperialismo ocidental da
história da política mundial enquanto dava a ele uma progressão funcional. Um
exemplo disso é a obra seminal de Hans Morgenthau, Política entre as nações
(1948), em que o imperialismo é reimaginado não como uma política que o
Ocidente tem levado a cabo sobre o Oriente, mas como uma estratégia universal
normal de nações aspirantes a grandes potências em suas relações umas com as
outras. Ele passa a ser pintado, então, como uma oposição às políticas de
manutenção do statu quo e ganha uma fachada de neutralidade moral:
“imperialismo é uma forma de política externa que busca adquirir mais poder que
uma grande potência realmente tem, buscando reverter relações de poder
existentes” (Hobson, 2015, p. 83).
No mesmo livro, Morgenthau aborda, ainda, o que chama de revolução
colonial, que estaria atingindo seu clímax no período, com “o triunfo das ideias
morais do Ocidente”, pelos princípios do Estado-nação e da justiça social. Aqui
fica evidente o paternalismo, mais uma característica do eurocentrismo subliminar
definido por John Hobson: a história dos povos não brancos emulando e
aprendendo em face do professor ocidental benigno. O imperialismo torna-se
justo, se não celebrado como um presente da civilização ocidental. Na Escola
Inglesa, com Hedley Bull e Adam Watson e sua sociedade internacional, também
encontramos algo próximo a isso com a caracterização do imperialismo pré-1945
como a difusão da civilização pelo mundo. O que era a missão civilizadora e
depois o império liberal passa a ser chamado de expansão da sociedade
internacional.
Da mesma forma, a teoria da estabilidade hegemônica de Robert Gilpin
coloca a existência de uma hegemonia como fator fundamental para que exista
estabilidade no cenário internacional e eleva o exercício da anglo-saxã ao status
implícito de missão civilizatória. Ainda que hegemonia não signifique
necessariamente dominação colonial direta, a ideia prevê alguma forma de
subjugação – mesmo que moral – a um Estado e uma crítica implícita a tentativas
de desestabilizar o sistema. De maneira parecida, o institucionalismo neoliberal
de Robert Keohane faz o mesmo no que diz respeito ao papel desempenhado por
instituições internacionais ocidentais. O elogio é direcionado àquelas que seriam
capazes de garantir equilíbrio e desenvolvimento internacional, pensamento
herdeiro da ideia de paz democrática de Kant.
Em grande medida, ainda que não de maneira explícita, essas teorias estão
atravessadas diretamente por concepções subliminares do excepcionalismo norte-
americano, a ideia de destino manifesto e da missão civilizadora das nações anglo-
saxãs. Finalmente, grosso modo, as teorias do mainstream de RI são dominadas por
uma concepção reificada de grandes potências ocidentais como entidades
autoconstituídas e autônomas, cujas sociedades se desenvolvem de maneira
completamente independente das interações econômicas, militares, políticas e
culturais com as não ocidentais (Hobson, 2015).
A segunda chave de entendimento é a ideia de que as tradições teóricas em RI
sofrem de afasia racial, conceito cunhado por Debra ompson (2015). Trata-se
de uma incapacidade coletiva de se falar sobre raça; uma negligência calculada das
histórias e estruturas do racismo. Essa afasia indica um esquecimento calculado,
uma obstrução do discurso e da linguagem no que diz respeito a raça e racismo no
campo de RI. Nesse sentido,

As instituições são amplamente vistas como daltônicas, embora sejam mais provavelmente codificadas
por cores. Organismos internacionais e Estados professam compromissos normativos e legais com a
igualdade racial, enquanto a estratificação racial persiste entre os mundos desenvolvido e em
desenvolvimento e na maioria das sociedades racialmente heterogêneas, se não em todas. A
supremacia branca como instituição global e o racismo como estrutura social difusa são obscurecidos
pelo domínio positivista e o foco em empirismo na RI […]; como resultado, o racismo é reduzido a
atos ou atitudes individualistas abomináveis. A promessa da sociedade pós-racial é realizada não
através de reparações ou igualdade substantiva, mas na imposição de discursos livres de raça que
mantêm firmemente enraizadas as ordens raciais internacionais e nacionais (ompson, 2015, p. 45,
tradução nossa).[6]

Sankaran Krishna (2015) complementa que a complexidade da questão é


relacionada também com as orientações metodológicas que frequentemente
privilegiam teorizações abstratas sobre a análise histórica, o que permite aos
teóricos de RI fazerem uma sanitização do conteúdo histórico das relações
globais. Sob tais teorias, a violência, o genocídio e o roubo que marcaram o
encontro entre o “resto” e o Ocidente desde as grandes navegações são
reinterpretados.

Repensando a inserção internacional brasileira

A afasia racial no estudo da política internacional e o apagamento da


contribuição de importantes intelectuais voltados a esse empreendimento não são
exclusividade do centro. No Brasil, algo similar ocorre nos estudos da inserção
internacional do país e, para corrigir essa lacuna, é fundamental retomarmos o
trabalho de Abdias Nascimento. Ao denunciar as sistemáticas políticas de
erradicação do negro da sociedade brasileira e como isso refletiu e ainda reflete na
posição do país em relação ao resto do mundo, o professor trouxe uma
contribuição intelectual ímpar para o estudo das RI no e do Brasil. Em suas
principais obras, O quilombismo: documentos de uma militância pan-aicanista
(1980) e O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado (2016
[1978]), Abdias Nascimento desmonta o mito da democracia racial e demonstra
como ele tradicionalmente pautou também a política internacional brasileira.
Em termos acadêmicos, a construção historiográfica da política externa
brasileira coloca o Brasil como um país terceiro-mundista – no sentido de
alinhamento político – e defensor dos movimentos de independência das ex-
colônias africanas. Essa construção parece levar muito mais em conta o âmbito
dos discursos oficiais do que as efetivas políticas levadas a cabo pelo governo
brasileiro.
Na ONU, o Brasil submeteu seus interesses aos de Portugal até o final do
regime salazarista, em 1974, especialmente em relação à descolonização da África.
Esse posicionamento é mais bem explicado por uma vinculação ideológica das
elites políticas brasileiras conservadoras – como bem retrata Abdias em sua
extensa pesquisa documental – do que por interesses estratégicos. As políticas
migratórias levadas a cabo por diferentes governos brasileiros, especialmente no
início do século XX, foram desenhadas com foco acima de tudo no
branqueamento da população, não apenas por necessidades econômicas internas
ou por uma preocupação com crises humanitárias externas, tais como as guerras
europeias (Machado e Zucatto, 2019).
Historicamente, as elites brasileiras associaram-se aos poderes coloniais,
construindo – tanto no exterior como nacionalmente – a imagem de um país
branco; em termos práticos, isso se traduziu em alinhamentos internacionais e,
internamente, em políticas de branqueamento. No entanto, a partir do Estado
Novo, passou a vigorar o discurso da democracia racial e a construção da imagem
brasileira como um paraíso das raças. Essa associação aparece em diversos
discursos proferidos tanto por diplomatas como por presidentes brasileiros, além
de outras formas de propaganda. Em O quilombismo (2019[1978]), Abdias
denuncia como o governo brasileiro usou o discurso da democracia racial e de um
país livre de preconceito como o principal instrumento de so power da sua
diplomacia ao longo do século XX.
Esse uso pode ser mais bem evidenciado na diplomacia do governo Vargas
durante a Segunda Guerra Mundial. Uma vez que o Brasil finalmente abandona o
pragmatismo e passa a lutar ao lado dos aliados – já em 1944 –, o país se coloca
não só como uma liderança regional, mas como um árbitro capaz de mediar
conflitos internacionais. Tudo isso é calcado na construção da imagem de um
Brasil pacífico, diverso (racialmente) com “relações raciais harmoniosas” – uma
imagem especialmente poderosa para o mundo que emergia com a derrota do
nazifascismo. Ainda que não tenha conseguido a almejada vaga no Conselho de
Segurança das Nações Unidas, a crença no “laboratório de civilização” brasileiro
culminou no financiamento de estudos sobre relações raciais no país pela recém-
criada Unesco na década de 1950. O Projeto Unesco, como ficou conhecido,
propunha-se a ser uma “ampla pesquisa sobre os aspectos que influenciariam ou
não a existência de um ambiente de relações cooperativas entre raças e grupos
étnicos, com o objetivo de oferecer ao mundo uma nova consciência política que
primasse pela harmonia entre as raças” (Maio, 1998 apud Maio, 1999, p. 143). De
certa forma, o Brasil foi o grande exemplo da virada no tratamento do racismo no
âmbito da política internacional – tanto no âmbito da prática diplomática, como
objeto de estudo.
Importa perceber a contemporaneidade das denúncias e da militância de
Abdias Nascimento. De um lado, lições importantes foram implementadas com a
redemocratização. Como exemplo, podemos citar a ação da Fundação Palmares
durante governos FHC (1995-2002) e, especialmente, a do Movimento Negro
Unificado (MNU) e da Unegro durante os governos Lula da Silva (2003-2010).
Tais organizações tiveram espaços de atuação tanto na elaboração quanto na
execução da política externa para África, tendo inclusive integrado as delegações
brasileiras. Podemos citar, também, em que pese a importância de se fazer um
debate mais amplo sobre a questão, a valorização do continente africano na
política externa brasileira nesse período.
Por outro lado, as críticas à atuação internacional do Brasil são mais atuais do
que nunca. No governo de Jair Bolsonaro, especialmente no período em que
Donald Trump ocupou a presidência dos EUA, o que mais chamou a atenção foi
o movimento de realinhamento à dependência externa. Se outrora os interesses
brasileiros foram submetidos aos de Portugal, atualmente, volta-se para uma
similaridade com o discurso liberal/intervencionista norte-americano.
Novamente, essa escolha acontece muito mais em razão de uma orientação
ideológica conservadora do que por interesses estratégicos (Machado e Zucatto,
2019).
Para demonstrar o realinhamento, poderíamos citar medidas adotadas pela
chancelaria sob o mando de Ernesto Araújo ou mesmo comentários feitos tanto
pelo presidente Jair Bolsonaro como por seu filho Eduardo Bolsonaro, que
assumiu de maneira informal o comando da política externa do país. No entanto,
o que mais chamou a atenção recentemente foram os comentários explicitamente
racistas feitos pelo então ministro da Educação, Abraham Weintraub, sobre a
China e sobre populações originárias – que não cabem ser aqui reproduzidos.
Apenas alguns exemplos em que o racismo e a ideologia supremacista foram
forças mais fortes na agenda de política externa do que os interesses nacionais dos
manuais de teoria de Relações Internacionais.

Considerações nais

Com base nas breves reflexões aqui apresentadas, podemos considerar o


quanto raça e racismo continuam a estruturar – e não só de forma subliminar –
ideologicamente e materialmente a política internacional. As desigualdades
mantêm um caráter fundamentalmente racializado que remontam a séculos de
apropriação colonial (Brawen Jones, 2008 apud Hendersen, 2015). Da mesma
forma, o reconhecimento da realidade da afasia racial vincula nosso passado
racista ao presente ainda racista, talvez conectados por silêncios coletivos tanto
quanto pela persistência da opressão, dominação e desigualdade (ompson,
2015)
É urgente que tragamos o tema das relações raciais e do racismo para o centro
da análise das relações internacionais. Primeiro, é necessário que questionemos a
historicidade e as teorias tradicionais que insistem em apagar o racismo como
estrutura organizadora das relações entre os países. Segundo, porque a maior
parte dos fenômenos internacionais em voga atualmente tem uma dimensão racial
e racista muito evidente: migrações, meio ambiente, novas tecnologias
securitárias, uso de drones, intervenções humanitárias, missões de paz e
reconstruções pós-guerra, avanço da extrema direita no mundo e assim por
diante.
No caso do Brasil, políticas migratórias com caráter demarcadamente racista
entram novamente na pauta do dia. O realinhamento automático com a potência
central revela pouco apreço aos interesses econômicos e de desenvolvimento do
país, sendo a política externa pautada por termos puramente ideológicos que
remetem a uma suposta superioridade moral dos Estados Unidos em relação ao
resto do mundo. uando comparado ao trato dado à China e aos países africanos,
parceiros estratégicos históricos do Brasil, esse realinhamento revela preferências
que estão embutidas de julgamentos racializados. E, acima de tudo, o mito da
democracia racial é reanimado e ganha força mais uma vez como mote de
governo.
Em um cenário que é, em grande medida, desanimador, convém retomar o
legado de pensadores – e militantes – que colocaram a temática racial no centro
de suas análises. W. E. B. Du Bois nos ensina, com a ideia de uma linha global de
cor, que raça é um aspecto estruturante da política e das relações internacionais. É
impossível pensar as duas grandes guerras mundiais, por exemplo, sem levar em
consideração a colonização e o imperialismo do Ocidente sobre o resto do
mundo. E enquanto essas práticas persistirem, é impossível pensar em um cenário
de paz sustentada. Finalmente, no plano nacional, Abdias Nascimento nos
fornece importantes chaves interpretativas para analisar a política externa
brasileira e ir além da historiografia fornecida pelo discurso oficial.

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Iorque: Routledge, 2015. p. 44-61.

[3] Mesmo tendo sido Woodrow Wilson um dos grandes idealizadores da Liga das Nações, os Estados

Unidos não integraram a organização, fato que é tido como uma das principais razões de seu fracasso.

[4] É possível acessar gratuitamente todos os números da revista na biblioteca digital JSTOR.

[5] No original: “Announcing a new era in human understanding aer the terrors of war and irrationalities of

genocide, the main purpose of the statements was to separate the ‘biological fact’ of race from its ‘social

myth’”.

[6] No original: “Institutions are largely perceived as colour blind, though they are more likely colour-coded.

International bodies and states alike profess normative and legal commitments to racial equality, while racial

stratification persists both between the developed and developing worlds and within most, if not all, racially

heterogeneous societies. White supremacy as a global institution and racism as a pervasive social structure

are obscured by the positivist dominance and focus on empiricism in IR […]; as a result, racism is instead

reduced to abhorrent individualistic acts or attitudes. e promise of the post-racial society is realised not

through reparations or substantive equality but in the imposition of race-free discourses that keep

international and domestic racial orders firmly entrenched”.


Capítulo III

Tomando partido? A percepção de


candidaturas negras sobre os
obstáculos a sua ascensão política
Wescrey Portes Pereira
Luiz Augusto Campos

Introdução

O então pré-candidato a deputado federal por São Paulo em 2018, Douglas


Belchior, ganhou projeção nacional ao acusar de racismo seu próprio partido, o
PSOL, por priorizar candidaturas brancas já consolidadas na distribuição dos
recursos do fundo partidário (Adorno, 2018). Vale destacar que o próprio PSOL
adotou nas últimas eleições algumas medidas para fomentar sua diversidade
interna, como cotas de 30% para negros em sua direção e destinação de 5% do
fundo partidário exclusivamente para candidaturas negras, indicando alguma
sensibilidade prévia à temática, ainda que insuficiente na visão de Belchior. De
todo modo, a polêmica em torno do caso evidenciou para um público maior a
importância das estruturas partidárias nas chances eleitorais de candidatos e
candidatas negras, mesmo no âmbito da chamada esquerda política.
É verdade que isso já vinha sendo apontado por estudos recentes que sugerem
haver iniquidades nas chances eleitorais de brancos e não brancos fomentadas
pela desigual distribuição de financiamento de campanha, do acesso a estruturas
partidárias competitivas, do tempo de televisão etc. (Machado, Campos e Recch,
2016; Campos e Machado, 2015; Campos, 2015). As evidências disponíveis
indicam que o estoque de candidatos e candidatas pretas e pardas não é
substantivamente menor que a oferta de brancos e que o eleitorado brasileiro não
parece se basear em critérios explicitamente discriminatórios no momento de
definir seu voto (Bueno e Dunning, 2013; Berquó e Alencastro, 1992). Sendo
assim, parece ser o partido político – e sua importância na distribuição de
financiamento, treinamento, prestígio e visibilidade etc. – o principal
condicionante das chances eleitorais de determinadas categorias sociais.
Contudo, a maior parte desses estudos adota metodologias mais quantitativas
que pouco elucidam os mecanismos sociais concretos que levam a tal cenário.
Soma-se a isso a relativa carência de estudos monográficos sobre as dinâmicas
internas de determinadas legendas e os possíveis mecanismos institucionais que
redundam no alheamento político de candidaturas específicas (Maciel, 2014, p.
19). Nesse contexto, temos poucos elementos para compreender como
efetivamente determinadas candidaturas são preteridas em benefício de outras.
Note-se que só estudos de cunho qualitativo são capazes de subsidiar a
formulação de hipóteses explicativas mais refinadas para esses processos, muito
embora teste e validação posteriores possam se valer de análises estatísticas.
Este texto pretende contribuir para o preenchimento dessa lacuna com base
em um estudo qualitativo baseado em entrevistas com candidatos e candidatas
negras que concorreram nas últimas eleições municipais e estaduais da cidade e do
estado Rio de Janeiro, com ou sem sucesso. Discutimos as percepções desse grupo
sobre suas trajetórias prévias à entrada na política formal, os processos internos
aos partidos e suas respectivas experiências durante a competição eleitoral. Nosso
intuito é captar possíveis conexões de sentido feitas por esses atores e atrizes que
permitam vislumbrar hipóteses explicativas sobre os processos que levam à
construção de barreiras práticas à ascensão políticas de pretos/as e pardos/as. A
análise desse material não tem, e não poderia ter, pretensões inferenciais. Trata-se
de um número reduzido de entrevistas com candidatos/as selecionados
assistematicamente em um contexto restrito. Busca-se somente iluminar aspectos
da trajetória política desses atores imperceptíveis por meio dos estudos
quantitativos disponíveis, capazes de subsidiar a formulação de novas hipóteses
sobre os mecanismos que levam à sub-representação política de negros/as nos
legislativos.
O argumento se desenrola em três seções, além desta. Na primeira,
justificamos nossas escolhas metodológicas, bem como seus potenciais e limites.
Na segunda, apresentamos os resultados gerais da pesquisa, ressaltando as
percepções dos/as entrevistados/as sobre o tema em foco. Na terceira e última
seção, resumimos brevemente as conclusões deduzidas desses resultados.

Metodologia

As análises que se seguem basearam-se em nove entrevistas com diferentes


candidatos/as em duas esferas da competição eleitoral. uanto ao pleito
municipal de 2016, na cidade do Rio de Janeiro, foram realizadas entrevistas com
quatro pessoas, sendo duas mulheres, dois homens, dois eleitos e dois não eleitos
de quatro partidos distintos (PSB, PSOL, PRB e PT). Em relação ao pleito
eleitoral de 2018, foram realizadas cinco entrevistas com um pré-candidato[7] e
candidatos/as à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), sendo
quatro mulheres e um homem, nenhum eleito, distribuídos em três partidos
distintos (um do PDT, três do PCdoB, uma do PT).
A escolha da cidade e do estado do Rio de Janeiro como recorte explica-se não
apenas por critérios econômicos e demográficos – afinal, trata-se da segunda
capital e da segunda economia do Brasil e de uma das maiores populações não
brancas do país –, mas pela especificidade dessa região quando o tema é a relação
entre raça e eleições. O Rio de Janeiro foi um dos grandes palcos da articulação do
movimento negro e da formação de coalizões políticas voltadas explicitamente
para a ascensão de lideranças dessa categoria. Como exemplo, podemos citar o
trabalhismo e sua remodelação no que foi chamado de Socialismo Moreno,[8]
doutrina política fluidamente articulada que buscava, ao menos nomeadamente,
considerar as desigualdades de classe e raça simultaneamente (Campos, 2015;
Sento-Sé, 2004; Soares e Silva, 1985; Lamounier, 1968; Souza, 1971). Ademais,
grande parte das pesquisas sobre as chances eleitorais de pretos e pardos tomam
como objeto as eleições para o legislativo federal, focando o ponto final da
trajetória política no Brasil. Daí a importância do nosso interesse na análise de um
pleito municipal e um estadual, que costumam constituir momentos iniciais da
carreira política.
O roteiro utilizado para as entrevistas abrangeu três temas gerais, almejando
levantar informações em diferentes dimensões da competição política, partidária
e eleitoral: (i) trajetória na política formal e prévia a ela; (ii) inserção na vida
partidária; e (iii) experiência eleitoral e com o financiamento de campanha. O
item (i) abrangeu questões sobre a origem social do/a candidato/a, suas
experiências em movimentos sociais e ações coletivas e os obstáculos sociais e
políticos que antecedem suas experiências político-partidárias. O segundo item
englobou perguntas sobre o processo de conhecimento e posterior inserção em
um partido, suas experiências iniciais nessas legendas, motivações para a escolha
de uma agremiação e não outra e a posterior relação com os pares, a administração
e a gestão partidária. O terceiro item do roteiro incluiu indagações sobre a
competição eleitoral, a busca por financiamento e apoio, bem como as demais
dinâmicas de organização de uma campanha.[9]
As entrevistadas e os entrevistados até aqui são figuras do campo político mais
à esquerda (PT, PSOL, PDT, PCdoB e PSB) e de um partido mais à direita
(PRB), o que nos coloca alguns limites analíticos. Por outro lado, é via esquerda
partidária que grande parte dos/das políticas/a negros/as se consolidaram
eleitoralmente, a despeito da forma ambígua como diferentes agremiações dessa
cor ideológica lidam com a questão racial (Soares, 2009; Rios, 2014). Todas as
pessoas entrevistadas tiveram uma origem social muito similar e uma trajetória de
ascensão por meio do ensino formal, sobretudo pelo ensino superior. Eles
mencionam fatos de sua trajetória que corroboram suas origens em classes
socioeconomicamente desfavorecidas radicadas em bairros de periferia,
mormente da baixada fluminense, e/ou favelas. Ao mesmo tempo, todos
experimentaram algum processo de ascensão social prévio à entrada na política
partidária.
A seguir, uma lista dos entrevistados e seus perfis:

Clarice Avelar – PT: mulher negra, foi entrevistada no dia 4 de janeiro de


2019. Professora Clarice tinha 48 anos no momento da entrevista, sendo
oriunda do movimento negro. Foi candidata a vereadora em 2012 e
candidata a prefeita em 2016 na cidade de Barra Mansa. Em 2018, foi
candidata a deputada estadual.

Dani Balbi – PCdoB: mulher trans negra, foi entrevistada no dia 16 de


novembro de 2018 e tinha 29 anos no momento da entrevista. Dani se
envolveu com política por meio do Movimento Estudantil e sempre foi
filiada ao PCdoB. Em 2018 foi candidata a deputada estadual em sua
primeira experiência eleitoral.
João Júnior – PSB: João Junior, 32 anos à época da entrevista, homem
negro, com ensino superior completo, nascido na zona oeste, passou pelo
PSOL e foi candidato a vereador pela primeira vez em 2016 pelo PSB. A
entrevista ocorreu no dia 1 de novembro de 2017.

João Mendes de Jesus – PRB: bispo da Igreja Universal do Reino de Deus,


João Mendes de Jesus tinha 64 anos no momento da entrevista. Homem
negro e com uma trajetória longa na política, João foi candidato à reeleição
pelo PRB. Antes de ocupar as fileiras do PRB, foi eleito deputado federal em
2002 pelo PDT, passando por PSL e PSB, mas não conquistou a reeleição
em 2006. João está no PRB desde a fundação do partido, sendo eleito
vereador pela primeira vez em 2008. Foi entrevistado no dia 21 de
novembro de 2017.

Marielle Franco – PSOL: socióloga, mulher e negra, Marielle tinha 38 anos


à época da entrevista. Nasceu na Favela da Maré, onde iniciou sua relação
com os movimentos sociais e passou a atuar partidariamente, primeiro no
PT e posteriormente no PSOL. Foi candidata a vereadora pela primeira vez
em 2016. Sua entrevista ocorreu no dia 16 de novembro de 2017. Como é
de conhecimento público, a vereadora foi executada em uma emboscada no
bairro do Estácio no dia 14 de março de 2018, quando retornava de uma
atividade política. O assassinato político da vereadora que obteve a 5.ª maior
votação na cidade do Rio de Janeiro, com mais de 46 mil votos, reduziu em
50% a presença das mulheres negras na Câmara de Vereadores. A legislatura
2017-2020, após o grave ocorrido, passou a contar com apenas uma
vereadora negra.

Margot Ramalhete – PCdoB: mulher negra, com 53 anos à época da


entrevista, a candidata começou seu envolvimento com política por meio da
sua relação com as comunidades eclesiais de base e, posteriormente, com o
movimento sindical. Teve passagens por PT e PMDB (onde foi candidata
pela primeira vez em 2016 na cidade de Volta Redonda) e, por fim, filou-se
ao PCdoB para a disputa das eleições de 2018. Sua inserção no PCdoB é
fruto de discussões no Frente Favela Brasil, partido em fase de organização e
regularização. Foi entrevistada no dia 3 de janeiro de 2019.

Rute Salles – PT: mulher negra, 48 anos à época da entrevista, foi candidata
a vereadora pela segunda vez. Filiada ao PT, começou seu envolvimento com
política no Morro do Borel, onde morou. Rute Salles atua na setorial de
combate ao racismo do PT. Foi entrevistada no dia 27 de novembro de
2017.

Vitor Coff Del Rey – PDT: homem negro filiado ao PDT, era pré-
candidato no momento da entrevista. Vitor não conseguiu viabilizar sua
candidatura e, até o momento, nunca disputou uma eleição. Ele é natural de
Nova Iguaçu e construiu sua relação com a política por meio da inserção no
ensino superior e, posteriormente, na Educafro. Sua entrevista ocorreu no
dia 10 de setembro de 2018, antes da eleição daquele ano.

Tainá de Paula – PCdoB: mulher negra, tinha 35 anos no momento da


entrevista. Iniciou sua militância política nas pastorais de favela e, aos 16
anos, filiou-se ao PT. Após sua saída do partido, passou a atuar em outras
frentes e decidiu ser candidata a deputada estadual, em sua primeira
experiência eleitoral, pelo PCdoB. Foi entrevistada no dia 16 de novembro
de 2018.

Trajetória prévia ao partido


Nosso roteiro começou com perguntas sobre a trajetória política anterior ao
processo de inserção partidária, buscando levantar informações sobre a origem do
ativismo das candidatas e candidatos. Há algumas semelhanças nas trajetórias:
quase todos/as foram envolvidos com movimentos sociais, basicamente de quatro
tipos: (i) religiosos, (ii) de favela/periferia/comunitários, (iii) estudantil e (iv)
sindical. É importante advertir, contudo, que as fronteiras entre esses movimentos
está longe de ser clara. Muitos se referem aos movimentos eclesiais de base ou
evangélicos como comunitários, ou aos movimentos estudantis em prol dos
cursinhos pré-vestibular como movimentos comunitários, estabelecendo uma
continuidade entre eles. Poucos declararam, porém, envolvimento prévio com o
movimento negro, embora apresentem reflexões sobre a questão racial próximas
dos enquadramentos dominantes nessa militância.
Apesar de recorrentes, as menções à atuação prévia em igrejas ou movimentos
religiosos assume sentidos distintos nas falas dos/as entrevistados/as. Para alguns,
foi a ruptura com a vida religiosa que instilou uma vocação propriamente política;
para outros, há uma clara continuidade entre essas duas atuações. De todo modo,
quase todos reconhecem a importância da atuação religiosa no treinamento
necessário à militância dita política. João Júnior (PSB), por exemplo, deixou de
frequentar os espaços da Igreja para atuar nos movimentos LGBT justamente
porque via incongruências entre sua orientação sexual e os ditames de seu culto.
Nos seus termos:

Eu fui mórmon durante 12 anos e ao mesmo tempo eu sempre soube que eu era gay, mas vivia na
igreja, vivia no armário coisa e tal, quando decidi me assumir e sair do armário uma das coisas que
aconteceram comigo foi que eu percebi que eu não iria conseguir ser só um jovem gay, coisa e tal, eu
queria ajudar de alguma forma, queria fazer parte ( João Junior, 2017).

No entanto, apesar da forte distinção entre as duas militâncias, a religiosa e a


do movimento LGBT, ele já identificava certo treinamento político no seu
passado mórmon: “na igreja também sempre fiz alguma coisa, sempre fiz parte de
grupos, movimentos, corais, fui líder; quando fui missionário, fui um dos
principais missionários daquele grupo” ( João Junior, 2017).
João Mendes de Jesus (PRB) é outro exemplo de entrevistado que destaca a
fissura entre atuação religiosa e política, ainda que de modo mais marcado que
João Júnior. Nos seus termos:

Eu acompanhei a política muito de longe, um pouco distante porque eu me envolvi mais com a
questão espiritual, mais religiosa, e aí eu não tinha muita dedicação à parte da militância política. […]
uando me foi feita a sugestão de fazer a representação política é que eu me volto para o PDT e aí sim
a gente encontra obstáculos porque eu já vinha com uma carga muito forte de ser um pastor
evangélico (Mendes de Jesus, 2017).

Apesar disso, o político reconhece ter sido essa atividade religiosa o


trampolim para sua entrada na política. Mesmo tendo concretizado sua filiação ao
PDT nos anos 1980 no contexto do retorno de Leonel Brizola ao Brasil, ele
argumenta ter feito sua conversão religiosa e seguido o caminho da
espiritualidade, tornando-se pastor da Igreja Universal do Reino de Deus. “Na
Igreja eu tive um caminho mais direcionado para o lado espiritual de onde me
tornei pastor e hoje bispo da Igreja Universal do Reino de Deus. Então, daí que
posteriormente a esses anos todos já como pastor que veio a minha organização
para atividades políticas” (Mendes de Jesus, 2017).
Embora seja um dos poucos políticos que reporta uma trajetória prévia à
política relacionada ao movimento negro, Vitor del Rey (PDT) é outro a reiterar
a importância da igreja, mas estabelece uma continuidade dessa com a política
mais vacilante:

Talvez isso não tenha necessariamente ligação com minha trajetória política e de militância no
movimento negro, mas eu fui criado no contexto de igreja batista. Então, igreja batista tem uma
parada que eu acho muito que é interessante: é que ali você vê uns rolé de democracia muito vivo (Del
Rey, 2018).
Note-se que a continuidade aqui envolve certa pedagogia política, relacionada
ao fato de a administração de igrejas batistas ser classificada por Vítor como
“democrática”, isto é, coletiva ou comunitária.
Já para Rute Salles (PDT), a atuação religiosa como agente pastoral da
comunidade eclesial da Indiana confunde-se com sua atuação como uma
liderança política de base:

Depois eu passei a ser agente de pastoral, no lugar da minha mãe, passamos a organizar também as
comunidades. Eu era muito responsável, coordenadora de toda zona norte, que eram as comunidades,
de favela e morro da zona norte e eu organizava as comunidades e também tinha minha vida
comunitária dentro da Indiana (Salles, 2017).

Algo similar à trajetória de Margot Ramalhete (PT), igualmente conectada à


militância ligada à igreja católica, sem grandes distinções entre ambas. Embora
enfatize muito mais seu papel no movimento de luta por moradia e sua adesão ao
PT ainda bastante jovem, Tainá de Paula também estabelece uma linha de
continuidade entre sua atuação na pastoral das favelas e sua posterior militância
no partido: “eu me filei ao Partido dos Trabalhadores com uma afiliação da
juventude, ainda com 16 para 17 anos, por conta da minha participação na
pastoral de favelas e a minha discussão de cidade, discussão de moradia, veio
muito de base da pastoral de favelas que eu participava” (De Paula, 2018).
Já é possível antever nos trechos acima destacados a importância coetânea dos
movimentos comunitários de favela/periferia, não apenas pela intermediação de
entidades religiosas, mas também pelos cursinhos de pré-vestibular. Dani Balbi
(PCdoB) também localiza na sua relação com a escola em geral e com os
movimento estudantis em específico seus primeiros passos políticos:

uando eu comecei a estudar história contemporânea, eu comecei a gostar muito, achar maravilhoso
Lênin e tudo aquilo e logo que eu entro no ensino médio de uma escola chamada elitizada porque era
uma escola por concurso da rede Faetec, tinha e tem um núcleo estudantil muito forte, naquela época
a UJS[10] era predominante ali e então eu imediatamente entrei no grêmio na primeira semana
(Balbi, 2018).

A UJS teria sido, nos seus termos, uma “ponte” para a vida partidária, já que
desde os 15 anos ela é guiada à União e ao PCdoB. Para Marielle Franco (PSOL),
autodenominada “fruto de pré-vestibular comunitário”, o acesso à educação
formal e sua atuação no movimento comunitário aparecem superpostos como
parte de uma “mudança-chave” em sua trajetória política:

[…] porque até eu pensar em terminar o segundo grau, até pensar em fazer uma faculdade, isso era
condições da vida, tem que estudar mais para ganhar mais. uando abre o pré-vestibular comunitário,
eu sou aluna do 1.º pré na Maré que é o Ceasm, que dá origem ao Observatório de Favelas, a Redes.
Nesse momento, era nessa busca da qualificação, mas eu também engravidei, e saio da faculdade, saio
do pré, só volto na faculdade em 2000, entro na PUC em 2002, eu estou na PUC de 2002 a 2007. A
partir dos anos 2000 é onde eu me entendo cidadã do mundo, muito ainda – acho que isso é um
ponto importante na trajetória pensando teu recorte, tua centralidade na questão racial – ainda muito
enquanto favelada, eu não faço a perspectiva do debate racial desde o meu primeiro momento de
compreensão do mundo, […] é um ponto importante, importante até pra gente ver quão positivo é o
reflexo das nossas pautas e da centralidade que elas precisam ter agora, século XXI (Franco, 2017).

Explicitamente, Marielle Franco coloca um elemento que reaparecerá, ainda


que implicitamente, em outras entrevistas: a distância inicial das questões raciais e
do movimento negro, embora certo reconhecimento de sua influência mediada e
posterior.
Apenas Clarice Ávila (PT) coloca o movimento negro como sua origem
política:

Então, eu digo que a minha trajetória política iniciou há algumas décadas, quando eu ingressei no
movimento negro e comecei a ver como era importante a gente fazer essa militância dentro do
movimento negro por viver numa sociedade muito desigual, muito racista, e a cor da pele eu digo que
é o primeiro movimento. Então eu iniciei minha carreira ali. Mas política partidária, em 2009, quando
eu conheci meu companheiro, ele já era petista e aí eu me identifiquei com o partido dos
trabalhadores e das trabalhadoras. E comecei minha carreira política fazendo campanha em 2012 para
vereadora (Ávila, 2019).
Grosso modo, três elementos podem ser destacados sobre o modo como as
entrevistadas enxergam suas trajetórias. O primeiro tem a ver com certa
sobreposição entre movimentos religiosos, comunitários e estudantis, oriunda do
fato de que cada um deles lhes proporcionou acesso a múltiplos universos e
entradas na política partidária. O segundo refere-se ao reconhecimento desses
movimentos como espaços de pedagogia política, ora administrativa, ora
propriamente ideológica. O terceiro refere-se à relativa distância em relação ao
movimento negro e às pautas raciais, raramente mencionadas como marcantes em
um primeiro momento da carreira desses políticos, mas presente em seus discursos
atuais.

Inserção partidária

Já antecipamos na seção anterior os caminhos seguidos por parte dos/as


entrevistado/as até a filiação ao partido. Esta seção focará especificamente em sua
interação com as estruturas burocráticas das legendas, da filiação até a propositura
de uma candidatura. Ao que parece, o acesso prévio a cargos de assessoria ou de
liderança despontam como experiências fundamentais, seja para a obtenção de
espaços dentro das agremiações, seja para a incorporação de habilidades políticas.
Isso não quer dizer que a ocupação desses espaços intermediários garanta a
projeção política, mas que se constituiem uma espécie de nó do processo de
ascensão partidária.
O candidato a vereador João Júnior (PSB) é um bom exemplo de político que
teve alguma atuação como assessor. Mas apesar de ter auxiliado o então deputado
federal Jean Wyllys, importante liderança brasileira na defesa dos direitos
humanos e de grupos LGBT, Júnior afirma sempre ter enfrentado dificuldades de
fixação na burocracia interna do seu primeiro partido, o PSOL. Parte disso tem a
ver com seus receios em relação à pluralidade interna ao partido e às barreiras dele
em relação à causa LGBT. Embora reconheça a importância da proximidade às
estruturas internas do partido para incrementar as chances eleitorais, ele enfatiza
que sempre buscou instrumentalizá-las para fazer avançar suas pautas e não o
oposto.

[O Jean Wyllys] teve uma reunião comigo, ele falou que eu era muito inteligente, que minhas ideias
eram muito boas e que ele não queria que eu fosse voluntário não, queria que eu trabalhasse pra ele,
queria me contratar. […] Me tornei um dos coordenadores da campanha nacional pelo casamento civil
igualitário no Brasil, dentro de um gabinete, numa estrutura bacana de um deputado federal. Isso foi
um outro salto assim na minha vida, porque eu comecei a conhecer mais pessoas, comecei entender
como é que fazia as coisas acontecer. […] Eu estava usando aquele espaço do gabinete não só para
enaltecer a figura do meu chefe, mas para fazer o que eu queria fazer, que era trazer conquistas sociais
para comunidade a qual eu acredito que eu preciso ajudar. […] Eu nunca fui PSOLista, nunca
acreditei muito em partido político, não acreditava antes, passei a acreditar menos ainda, depois de
fazer parte. […] O Jean tem uma questão, uma boa questão, ele é do partido, mas não é do partido, a
grande verdade que as figuras públicas do partido estão pouco se lixando pra opinião de militante, essa
que é a verdade. Eles fingem que estão se preocupando, mas não estão se preocupando, então isso pra
mim era ótimo, porque não tinha que prestar contas pra militante. A gente participava das atividades,
mas ele não exigia que a gente fosse PSOLista arraigado nem que interpretasse esse personagem,
porque ele também não interpreta, publicamente isso é notável, então pra mim isso era ótimo. Tive
esse afastamento do PSOL, filiado ao PSOL, mas não vivia o PSOL, não defendia o modelo do PSOL
( João Júnior, 2017).

Essa relação ambígua com a estrutura partidária contrasta com aquela


reportada por Marielle Franco, que fora colega de partido de João Júnior. Além da
experiência prévia como assessora do deputado Marcelo Freixo, Marielle destacou
a importância de estar presente no partido antes mesmo da filiação, algo diferente
de João Júnior para quem a entrada no partido se deu em simultâneo ao primeiro
contato com a legenda. Outro ponto destacado por Marielle é a importância de
ter entrado pelo setorial de mulheres do partido onde participantes puderam
acumular sobre os desafios das candidaturas femininas ao longo de anos, o que
levou a conquistas internas como a disponibilização de assessores jurídico e
contábil para todas as candidatas, o que já teria significado uma enorme diferença:
Como eu falei que comecei a acompanhar antes de estar filiada, em 2007 eu entro pelo setorial de
mulheres, a temática gênero sempre esteve na minha perspectiva […]. uando eu decido assim [me
candidatar], eu já conhecia os núcleos, as atividades, e o partido há um tempo atrás, na verdade os
partidos há um tempo atrás. Tem questões pra garantir as suas legendas, e um debate que eu sempre
acompanhei no setorial é que sob hipótese alguma, e graças a Deus felizmente eu não tenho esse
histórico, e as mulheres, nós do partido, sempre reivindicamos muito isso de não ser candidata laranja.
Então a minha primeira eleição, foi minha primeira mesmo, eu nunca tinha enfileirado como
possibilidade de ser candidata. Então, quando essa decisão se coloca, eu começo uma série de
conversas e costuras. Não sou relacionada a nenhuma das tendências – no partido de esquerda você
tem a formação das suas tradições de acordo com de onde você vem, então tem mais os trotskistas,
você tem mais os leninistas, você tem as ramificações. Óbvio que eu dialogo com algumas, mas não
sou filiada a nenhuma das tendências auto-organizadas. […] Eu apareci na TV, eu tive financiamento
coletivo, onde a base e o aporte inicial foi dado pelo partido e todas as mulheres – a gente conseguiu
essa política para todas as mulheres agora em 2016 – tiveram advogado e contadora pra prestação de
contas, que é uma parada ensandecida, se você compra aqui, como você presta conta ali, o cheque, o
dia, a conta (Franco, 2017).

Filha de uma líder comunitária importante do antigo PCB, Rute Salles


passou pelo próprio PCB, pelo PCdoB e pelo PDT antes de chegar na sigla pela
qual ela se lançaria à disputa por uma vaga de vereadora, o PT. Mas apesar de
haver se tornado também uma líder comunitária relevante, ela destaca que pouco
conhecia da lógica eleitoral quando decidiu se candidatar e que o partido pouco a
auxiliou nesse quesito, embora tenha aceitado facilmente sua propositura em
2000:

A partir de então eu me ingressei muito no PT pensando nessa direção da questão racial, e comecei a
participar do combate ao racismo, setor de combate ao racismo do PT. E trazia debate pra dentro da
comunidade sobre a questão racial: pegava a juventude, gostava muito de sentar no Borel, na Indiana,
na associação. […] E ali na comunidade as pessoas começaram a falar: ‘Rute você tem que ser nossa
candidata! Você tem que ser nossa candidata!’, e eu fiquei assim: ‘Será que é legal? Não sei. Gente! Não
tenho dinheiro’. Até então, não sabia como era você ser uma candidata. E aí, eu peguei, liguei pro
Partido dos Trabalhadores: ‘Olha, eu quero vir candidata a vereadora’. O partido falou assim: ‘Legal’,
mas não me orientou no tempo, não me deu nenhuma orientação. Só disse que era pra eu levar os
documentos e tal, viram lá minha filiação, estava tudo ok e pum, em 2000 saí candidata a vereadora
(Salles, 2017).
Vale destacar que a própria candidata reconhece certa inocência ao apostar no
trabalho de base como principal meio de viabilização de uma candidatura de
sucesso, dando pouca ou nenhuma atenção às estruturas partidárias: “Eu não
sabia, eu não tinha ideia de que tinha que ter dinheiro, nada disso! Pra mim
bastava eu ser aquela pessoa comprometida, popular, moradora da comunidade,
comprometida com a luta das comunidades” (Salles, 2017). Ao mesmo tempo, ela
reconhece a relevância do comprometimento partidário para o sucesso eleitoral.
Nas eleições de 2016, Rute se aliou ao deputado Waldeck Carneiro (PT), o que já
incrementou suas chances eleitorais ao seu ver, mas ainda de modo insuficiente
por conta da indiferença do partido à causa racial em geral e a ela em específico:
“o mandato do deputado Waldeck me ajudou bastante, mas o partido, como
sempre, tem uma política que ainda não contempla a nós mulheres e mulheres
negras” (Salles, 2017). Na mesma direção, ela emenda:

Então tive muita dificuldade. Eu tive uma ajuda bem bacana daqui do gabinete do deputado, fizeram
uma página pra mim, tive um apoio todo de logística, mas não tive perna pra ir a todos os lugares, a
gente tem que ter uma estrutura de assessoria também, que eu não tive. Então, assim, é muito difícil
essa coisa de você sair candidato de um partido que não tem uma política igual pra todos os
candidatos, ou assim diferenciar aquele que precisa chegar, ter mais respaldo, ter mais apoio, ter uma
estrutura diferenciada […] daquele que já tem uma condição melhor e pode chegar. É isso que a gente
precisa mudar no partido (Salles, 2017).

Ao falar sobre as formas para contornar essa distância em relação ao centro de


decisão dos partidos, Tainá de Paula menciona duas estratégias simultâneas. Para
contornar as dificuldades de lançar uma candidatura por um partido consolidado,
ela optou por investir em uma legenda menor, o PCdoB. Ao mesmo tempo, ela
crê que o acúmulo de votações expressivas, ainda que insuficientes para se eleger, é
um meio de se consolidar como liderança partidária:

uem decide para onde vai o fundo são 80% homens brancos, velhos, de classe média alta e o restante
de mulheres que coadunam com a lógica da perpetuação do machismo. A minha única sorte é que o
PCdoB é um partido pragmático, então eu ter sido candidata e ter provado um potencial eleitoral sem
o menor suporte mais efetivo do partido me coloca como um holofote para 2020; eles não fazem uma
conta excludente racista como outros partidos fazem (De Paula, 2018).

A candidata mulher trans Dani Balbi complementa a percepção de Tainá de


Paula ao destacar as dificuldades do seu partido em constituir quadros a partir de
suas bases ainda diminutas: “acho que é isso, o PC do B tem muita dificuldade
ainda de acertar na condução da base, organizar a base e formar ou apresentar a
formulação para que a base se torne quadros. É muito difícil ainda” (Balbi, 2018).
Daí a opção por obter votações expressivas em uma primeira eleição teste, já que,
em seus termos, “no PC do B tinha um critério: os candidatos que já haviam sido
testados em urna” (Balbi, 2018).
A efetivação de uma candidatura em um determinado pleito pode ser
viabilizada pela associação com candidatos mais fortes ou pela existência de
votações expressivas acumuladas no passado, elementos mencionados nas
entrevistas. A condição de ter sido assessor de campanha ou trabalhado na
burocracia também desponta como elemento potencialmente frutífero, aliado à
boa relação com os diretórios internos. De modo geral, os/as entrevistados/as
convergem no diagnóstico: o partido é a peça-chave para o sucesso de suas
campanhas. É preciso, porém, ler esses diagnósticos com cautela. A partir de
alguns trechos, é possível notar que existem inúmeras modalidades de
engajamento partidário, com níveis de demanda e resultados distintos. Como
dito anteriormente, embora não tenhamos pretensões inferenciais ou
generalizantes, a capacidade do/a candidato/a se engajar dentro das estruturas
burocráticas partidárias configura um elemento importante do seu sucesso
eleitoral.
Nesse sentido, são sintomáticas as experiências eleitorais de João Júnior e
Marielle Franco no PSOL. Ambos haviam assessorado candidatos consolidados
( Jean Wyllys e Marcelo Freixo, respectivamente), se apropriado de pautas internas
(questão LGBTQ e setorial de mulheres) e liam os conflitos ideológicos internos
à legenda de formas similares. No entanto, João Júnior e Marielle Franco se
distanciam quando falam do padrão de atuação que estabeleceram em suas
legendas. Enquanto o primeiro admite que nunca buscou se envolver diretamente
na costura ou constituição interna da legenda, a segunda coloca tal atividade no
centro de sua atuação e como razão básica de seu sucesso.

Experiência eleitoral

Além do modo como as/os entrevistados/as enxergam suas posturas frentes


aos partidos, importa destacar como eles qualificam as intenções e posturas dos
partidos em relação a eles. “A primeira luta que um candidato tem que ter”, como
diz João Mendes, “é quebrar a barreira da legenda, ou seja, é obter a legenda; a sua
eleição começa pra ter a legenda do partido” (Mendes de Jesus, PRB). Nesse caso,
o candidato destaca o entrosamento com os diretórios do partido e com sua
militância como elemento fundamental para o sucesso eleitoral. Nos termos de
Tainá de Paula, “a máquina chega a mais pessoas, porque uma campanha eleitoral
é a arte de conseguir chegar em mais pessoas: quem te vê mais, quem é mais visto,
quem é mais ouvido” (De Paula, 2018).
Contudo parece mais complexa a relação entre tais candidaturas e seus
respectivos partidos. Apesar de reconhecer o espaço interno que lhe foi concedido
pelo PSB, João Júnior enxerga essa projeção como uma estratégia do partido em
constituí-lo como uma vitrine: “o partido deu muito espaço. Eu também,
querendo ou não, sou aquilo que todo partido hoje em dia quer: negro, gay,
nascido na periferia, que fala bem, escreve bem, inteligente, pronto” ( João Júnior,
2017). Tal posição perante o partido também teria se traduzido em recursos:
“então o partido me deu muito espaço, eu fui o candidato que mais apareceu na
televisão, no programa de TV eu era o que mais aparecia e o partido me deu um
financiamento”. No entanto, isso não expressaria um compromisso do partido
com a candidatura nem do candidato com o partido, segundo João Júnior. Isso
porque os distintos apoios do PSOL a ele, materializados nos recursos financeiros
destinados, no tempo de TV concedido, no número a ele destinado etc., não eram
propriamente conquistas articuladas dentro da burocracia partidária, mas, sim,
investimentos em uma candidatura vitrine: “depois que você perde, o partido te
ignora completamente, você passa a ser ninguém de novo. Então, assim, não devo
nada pra eles, mas eu não posso negar a verdade: o partido me deu um espaço que
certamente não teria em outros partidos” ( João Junior, 2017).
Tal situação contrasta com aquela relatada por Marielle Franco. Ainda que ela
também tenha sido um nome de expressão no partido, sua candidatura é
apresentada como fruto de uma lógica interna das forças políticas psolistas:

Então, quando essa decisão se coloca, eu começo uma série de conversas e costuras. Não sou
relacionada a nenhuma das tendências […]. Óbvio que eu dialogo com algumas, mas não sou filiada a
nenhuma das tendências auto-organizadas. Então eu fiz costuras e conversas com todo mundo de
falar: ‘É sério!’ (Franco, 2017).

Dois elementos são destacados por Marielle como estrategicamente


fundamentais para a consolidação de sua indicação e da sua campanha. Primeiro,
a articulação de seu nome no bojo de exigências internas feitas pelo setorial de
mulheres, o que englobou determinados diferenciais das candidaturas femininas.
Segundo, a política partidária de conceder um advogado e um contador para
todas as candidatas, possibilitando que elas articulassem formas mais complexas
de financiamento coletivo, inadministráveis sem que esses profissionais estivessem
envolvidos. Nos seus termos:

Então, a gente teve esse financiamento coletivo online, a gente teve advogada e teve contadora via
partido pra colocar em condições iguais às dos homens principalmente nesse sentido. Já tinha homem
reeleito e homens também com as tendências; as mulheres que vinham num processo mais
independente precisavam ter o mesmo ponto de partida ou mais próximo (Franco, 2017).
Muitos/as entrevistados/as reconhecem em suas trajetórias momentos de
desdém em relação às disputas partidárias. Dessas perspectivas, o partido é
reduzido a um instrumento eleitoral que permite a alguém se lançar candidato/a e
arrecadar recursos. Paulatinamente, porém, percebem que suas funções
extrapolam essas dimensões mais formais, possibilitando a potencialização da
arrecadação de fundos, de obtenção de fundos e de apoio. Para Rute Salles (2017),

O partido, você queira ou não queira, tem uma disputa, uma disputa de quem quer alcançar a legenda
[…] e você tem essa dificuldade, mas no tempo eu nem pensava na disputa, mas depois da minha
disputa em 2000 que eu fui com a cara e a coragem, sem a orientação do partido, o partido passou a
me olhar diferente.

Ao explicar as dificuldades de consolidação da sua pré-candidatura, Vitor Del


Rey também reconhece:

[…] me faltou foi traquejo, de alianças lá dentro que pudessem sustentar minha candidatura. Porque
eu fui pro PDT com minhas próprias pernas, eu não fui convidado por ninguém, aí eu conheci um
carinha que não teve problema na candidatura dele, que ele é branco e foi convidado pelo tio, que é
grandão no PDT. Tem um outro cara que foi convidado pelo líder do movimento negro do PDT,
comprou a candidatura dele. Eu não, eu fui com amor e fui construir a minha imagem lá dentro, hoje,
eu sou secretario de formação política do PDT, do movimento negro, mas, eu não tinha apoio lá
dentro (Del Rey, 2018).

Em muitos desses casos, há certa visão instrumental do partido como espaço a


ser ocupado para se ter acesso às eleições e a recursos eleitorais como tempo de
TV e financiamento. Mas em outros emerge uma distinção entre não apenas se
apropriar de espaços partidários, mas se tornar um projeto do próprio de partido.
Isso depende não apenas de provas de dedicação e tempo na estrutura partidária,
mas também da modificação mesma do modo como os partidos enxergam as
candidaturas negras e seus objetivos com elas.

Considerações nais
O objetivo deste texto foi apresentar, em linhas gerais, as percepções de
candidatas e candidatos negros sobre as dificuldades que tiveram na viabilização e
consolidação de suas carreiras políticas, especialmente de suas candidaturas. Mais
do que construir inferências a partir de suas falas, buscamos tipificar alguns
elementos que parecem influenciar no sucesso ou não dessas carreiras,
contribuindo assim para novas hipóteses de pesquisa capazes de preencher as
lacunas existentes na bibliografia especializada.
Em sua maioria, eles/as têm origem em movimentos sociais religiosos e/ou de
periferia, indicando pouca experiência prévia nos movimentos negros. A própria
distinção entre esses movimentos é difícil de ser traçada. Isso serve para relativizar
o diagnóstico de que haveria partidos mais identificados com uma militância
propriamente religiosa, enquanto outros estariam mais conectados com
movimentos ditos de base. Em muitos dos casos entrevistados, a atuação religiosa
forneceu não apenas o treinamento para uma profissionalização política inicial,
mas também as bases para a atuação em comunidades locais. Daí a importância de
retrabalhar os vínculos religiosos como importante esfera de ambientação e
capacitação política, ao menos para as candidaturas do perfil aqui considerado.
No que concerne à inserção na vida partidária, a relação com a burocracia das
legendas novamente se mostrou central. Seja pela relação com candidaturas
prévias e consolidadas, seja pela interface com organizações e movimentos da
sociedade civil, seja ainda por vínculos pessoais com membros do partido, o
processo de entrada em uma legenda é classificado como lento e difícil. Resulta,
daí, uma relação tensa desses atores e atrizes com o potencial e os condicionantes
impostos pelas lógicas internas aos partidos para a consolidação de uma carreira
política.
Entretanto, foi na parte dedicada à experiência eleitoral que a importância das
costuras partidárias se tornou mais saliente. Mesmo candidatos que reconhecem a
dedicação do partido às suas campanhas destacaram dificuldades em
instrumentalizar as legendas para seus fins políticos específicos. Ou seja, uma
candidatura pode ser apoiada pelo partido de modo diferencial e, ainda assim, não
se viabilizar pela carência de lastro interno. Nesse quesito, o acesso a um corpo de
funcionários como advogados e contadores pareceu ter mais peso do que o
simples acesso a recursos financeiros, embora estes sejam de grande importância.
Embora o texto não tenha pretendido inferir tendências gerais das entrevistas,
é notável certo cruzamento entre o grau de inserção dos/as entrevistados/as nas
burocracias partidárias e o grau de sucesso obtido no pleito disputado. Ao que
parece, quanto maior a experiência prévia em eleições e no cotidiano das disputas
intrapartidárias, maior também foi o sucesso eleitoral. Isso implica que os
investimentos em candidaturas negras que se pretendam “autônomas” em relação
à estrutura partidária ou que buscam instrumentalizá-las têm efeitos limitados
quando comparados àquelas consolidadas em disputas internas. Ao mesmo
tempo, cabe questionar em que medida tais disputas não interpõem a essas
candidaturas obstáculos discriminatórios específicos ligados à raça.

Referências

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coerência”. Uol eleições 2018, 23 jul. 2018. Disponível em:
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Apêndice
uestionário

1. Identi cação

a. Data da entrevista:___/___/___

b. Local da entrevista: __________

c. Nome completo: __________

d. Raça: __________

e. Profissão: __________

f. Religião: __________

g. Nível de escolaridade: __________

2. Trajetória social e política

a. Me conta um pouco da sua história?

b. uando e como você começou sua trajetória política?

c. O que lhe despertou esse interesse pela política?

d. Você destacaria alguma organização da sociedade (Igreja, movimento social,


ONG, Clube social, empresa etc.) que serviu de ponte para sua atuação
política?

3. Inserção Partidária
a. uais foram as circunstâncias e os motivos que lhe levaram a optar por uma
filiação partidária?

b. Como você descreveria sua atuação política e partidária? (Elementos


positivos e negativos)

c. Você ocupou algum cargo de direção partidária?

d. Houve algum tipo de dificuldade para sua inserção na direção partidária?

4. Competição Eleitoral

a. O que levou você a ser candidato? Como você descreveria essa opção?

b. O que precisa ser feito para ser um candidato?

c. Como é a organização de uma lista eleitoral do partido? Você teve algum


envolvimento na formação da lista eleitoral do partido?

d. Como foi a organização da sua candidatura?

e. ual é a importância do partido?

f. Para uma candidatura obter sucesso nas eleições, ela precisa de:

5. Financimento de Campanha

a. Como você foi a organização financeira da sua candidatura?

b. ual papel do partido na organização financeira da sua candidatura?

c. uais foram os critérios de distribuição dos recursos do fundo eleitoral?


d. Você encontrou dificuldade em relação ao financiamento da sua
candidatura? uais tipos?

e. Sua posição social teve/tem relação com o seu financiamento de campanha?

6. uestão Racial no Processo Eleitoral

a. Você acredita que há racismo no Brasil? Por quê?

b. Você abordou a questão racial na sua campanha? Como?

c. Você já sofreu discriminação racial? Dentro ou fora da política?

d. Existem empecilhos para o sucesso eleitoral dos negros nas eleições?

7. Religião

a. Você se identifica com alguma religião? ual?

b. Já exerceu alguma atividade profissional em organização religiosa?

c. Se sim, em que medida essa inserção religiosa te ajudou politicamente? Isso


mudou?

[7] Então pré-candidato à deputado estadual, Victor Dell Coff desistiu de disputar a eleição e não

homologou sua candidatura pelo PDT.

[8] No contexto da redemocratização, os trabalhistas buscaram reformular o discurso da ideologia. O

Socialismo Moreno apareceu como um vocábulo político mobilizado por intelectuais no seio do Partido
Democrático Trabalhista (PDT), que tinha o objetivo de adaptar as premissas ideológicas do socialismo

europeu à realidade brasileira. Assim sendo, debates acerca das classes, abarcados pelo discurso marxista,

passaram a ter importância equivalente, não idêntica, à da opressão sofrida pelos grupos não brancos

(Campos, 2015).

[9] O roteiro completo encontra-se na seção “Apêndice”, ao fim do capítulo.

[10] A União da Juventude Socialista (UJS) é uma organização de juventude fundada em 1984 ligada ao

Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e com atuação destacada no movimento estudantil brasileiro,

sobretudo por meio de sua intervenção na União Nacional dos Estudantes. Desde 1992, essa organização

preside a UNE, assim como tem atuação destacada na União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes)

e na Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG).


Capítulo IV

Raça, Estado e burocracias: as


comissões de heteroclassificação nas
Instituições Federais de Ensino Superior
Veronica Toste Da on
Graziella Moraes Silva
Camille Giraut

Introdução

Nas suas quase duas décadas de existência nas universidades brasileiras, as


ações afirmativas têm tido seu sucesso atestado por diversas pesquisas sobre
impacto, desempenho acadêmico, permanência estudantil e percepções da
política (Lloyd, 2015; Francis e Tannuri-Pianto, 2012). A classificação racial dos
beneficiários das cotas, no entanto, é um aspecto mais controverso, ainda que
inevitável, na implementação dessa política pública. Ao buscar produzir justiça
para grupos e coletividades, a ação afirmativa requer, paradoxalmente, a
especificação de indivíduos, um tema que foi explorado com grande sensibilidade
por Joan Scott (2005), para quem os conceitos de igualdade e diferença, de
indivíduo e de grupo mobilizados pelas ações afirmativas estão em permanente
tensão e interconexão.
Nas políticas públicas, a especificação definida por Scott (2005) recebe um
nome técnico e uma definição mais restrita: “operacionalização”. Operacionalizar
significa transformar questões complexas, ideias e teorias sobre o mundo social
em construtos ou conceitos mais simples que permitam um uso prático e
padronizado. O procedimento está presente, por exemplo, em políticas como a
Renda Básica Emergencial, o Programa Bolsa Família e o Benefício de Prestação
Continuada, que se apoiam na definição de indicadores empíricos como renda,
idade, desemprego e filhos para estabelecer categorias de beneficiários. Ao fazê-lo,
introduzem critérios de corte que incluem e excluem indivíduos: uma idade
mínima, uma renda máxima, o registro civil, entre outros. No caso das ações
afirmativas nas universidades, além dos indicadores socioeconômicos e de
escolaridade secundária, operacionaliza-se “raça”.
Ao lançar mão de “raça” como categoria, a ação afirmativa lida com uma
construção social complexa e multidimensional (Roth, 2016), originada em
contextos de escravidão, colonização, migração e diáspora como forma de
justificar a discriminação e opressão. No caso da ação afirmativa, no entanto, o
objetivo do uso de “raça” não é excluir e discriminar, mas incluir e reduzir
desigualdades. Isso não é incomum ou particular ao Brasil: hoje o conceito de
“raça” é mobilizado por diversos estados como instrumento para mensurar e
caracterizar populações e, em muitos casos, para implementar diferentes políticas
públicas de combate às desigualdades (Morning, 2008; Loveman, 2014, Bailey et
al. 2018; Skrentny, 2015; Posel, 2001).
Para além dos paradoxos entre direitos individuais e de grupo, dos desafios da
operacionalização em políticas públicas e da multidimensionalidade da “raça”, o
caso brasileiro se caracteriza ainda por possuir mais flexibilidade e variabilidade
regional e temporal dos esquemas de classificação racial, por associar formas
complexas de interação entre percepções de cor, classe social, ascendência e
cultura (Guimarães, 2011) e possuir fronteiras raciais menos consensuais do que
países como Estados Unidos e África do Sul (Telles, 2014; Marx, 1998; Lamont
et al., 2016). Tudo isso torna, como veremos, mais desafiador o uso de “raça” e a
especificação de indicadores empíricos individuais para fins de reparação e justiça.
Ao longo das duas últimas décadas, as universidades públicas brasileiras
experimentaram diferentes formas de operacionalizar “raça” nas ações afirmativas.
Durante a maior parte do tempo, o critério prevalente – e muitas vezes o único –
na maioria delas foi a autodeclaração racial dos candidatos. Com isso, as
instituições públicas puderam se esquivar da difícil tarefa de estabelecer uma linha
de corte entre beneficiários e não beneficiários, deixando que os próprios
candidatos avaliassem suas condições de elegibilidade. No entanto, uma série de
dilemas originados por esse procedimento, sobretudo em concursos federais para
servidores públicos, levou à publicação da Orientação Normativa n.º 3, 1/8/2016
pelo Ministério do Planejamento (2016), que estabeleceu procedimentos para a
instalação de comissões destinadas a aferir a veracidade da autodeclaração dos
candidatos às cotas nessas seleções.
Ainda que restrita aos concursos públicos para servidores federais, a norma
teve efeito cascata nas universidades, que já enfrentavam há tempos pressões de
organizações, coletivos negros e instâncias do judiciário em torno de denúncias de
fraudes e vinham realizando sindicâncias ou mesmo instituindo comissões
permanentes para lidar com os casos. A aliança entre essas organizações e o
Ministério Público contribuiu para impulsionar a criação de comissões de
heteroclassificação nas universidades. De acordo com o relato de um membro da
comissão da Universidade Federal no Rio de Janeiro, as fraudes concentram-se
nos cursos mais competitivos, como Medicina, Direito e Engenharia ou nos
cursos mais tradicionais e de mais prestígio de cada instituição.
Com a grande mudança procedimental introduzida pela Orientação
Normativa de 2016, a tendência dominante passou a ser uma combinação de
autoclassificação (pelo indivíduo) e heteroclassificação (por terceiros). Isso
representa uma mudança muito significativa na forma de trabalhar com “raça” nas
políticas públicas, uma vez que agora são as próprias instituições que devem
operacionalizar critérios e linhas de corte entre beneficiários e não beneficiários. A
fim de padronizar procedimentos, a mesma orientação, reforçada em 2018 pela
Portaria Normativa n.º 4, 6/4/2018 (Ministério do Planejamento, 2018),
estabeleceu que o “fenótipo” dos candidatos deve ser o único critério válido para a
aferição feita pelas comissões – o que significa também uma mudança com relação
a práticas anteriores, que levavam em conta outras dimensões da “raça”.
Neste capítulo, apresentamos achados de uma pesquisa exploratória sobre as
comissões de heteroclassificação racial criadas recentemente nas Instituições
Federais de Ensino Superior (IFES) no Brasil a fim de discutir aspectos, desafios e
paradoxos do uso de “raça” como instrumento de reparação e redistribuição
(Moraes Silva et al., 2018). A partir de entrevistas com gestores públicos e
membros das comissões e de levantamento e análise de documentos, apontamos e
discutimos como as IFES vêm lidando com os desafios colocados pela necessidade
de estabelecer a categorização legal e burocrática da “raça” por terceiros.
Decisões normativas como a Orientação Normativa de 2016 e a Portaria
Normativa n.º 4, de 2018, tendem a pressionar pela homogeneização para tornar
os procedimentos das comissões previsíveis e protegidos da judicialização. Ainda
que as normas resultantes tenham acabado, como veremos, propondo uma
concepção “inequívoca” de raça que se baseia unicamente no fenótipo, assumido
como um critério objetivo, isso não foi ponto pacífico entre os seus formuladores.
Por meio de palestras proferidas por membros do Ministério Público Federal, do
Ministério do Planejamento e do Ministério do Desenvolvimento Social e de
entrevistas realizadas em Brasília em 2016, constatamos que houve divergências
significativas entre os burocratas que construíram esses documentos.
No caso da seleção para as Instituições Federais de Ensino Superior, o fato de
essas decisões não serem obrigatórias concede espaço a variações. Em entrevistas
com membros de comissões das Ifes, observamos que a aplicação das orientações
impõe dificuldades que surgem das interseções de raça, etnia, identidade,
ancestralidade, antecedentes familiares, status socioeconômico no Brasil – e do
próprio fato de que raça não é uma realidade fixa e objetiva que possa ser medida
corretamente por um procedimento. Vários membros dessas comissões
demonstram estar cientes da complexidade da tarefa de operacionalizar “raça”
(Moraes Silva et al., 2018). Ao lidar cotidianamente com os beneficiários
potenciais da política pública, esses funcionários públicos fazem escolhas para
além das decisões dos gabinetes (Lipsky, 2010).
Nossa análise sinaliza que “raça” se transforma e muda ao ingressar no circuito
da política pública e do Estado (Roth, 2017) e que a moldura institucional das
ações afirmativas estabelece determinados incentivos burocrático-legais que
influenciam a forma como ela é operacionalizada e vista pelos atores sociais. Nesse
sentido, o Estado destaca-se como um dos atores mais importantes de
categorização, classificação e identificação de populações (Brubacker e Cooper,
2000), por concentrar mais recursos materiais, poder simbólico e capilaridade do
que outras organizações (omaskovic-Devey e Avent-Holt, 2019; Bailey et al.,
2018). Ainda assim, a construção da política pública depende da multiplicidade
de agentes que atuam na sua gestão cotidiana. Ao lidar cotidianamente com os
potenciais beneficiários das ações afirmativas, funcionários públicos exercem
discricionariedade e tomam uma série de decisões de cunho político, disputando
as regras da classificação (Lipsky, 2010).
Histórico: o Estado e as classi cações raciais

As ações afirmativas representaram uma inflexão da relação do Estado com a


questão racial no Brasil. Ao longo do século XX, as formas mais explícitas dessa
relação foram as políticas de incentivo à imigração europeia, os processos de
simbolização da “nação” e as classificações étnico-raciais inseridas nos censos
demográficos.[11] A despeito de especificidades, após a abolição o Brasil acabou
por compartilhar com os países da América Latina a ideia fundacional da
mestiçagem. Em um momento em que se associava fortemente “raça” e nação, os
países da América Latina reclamaram seu pertencimento ao rol de “nações
civilizadas” subsidiando a imigração de trabalhadores europeus e empregando a
linguagem prestigiosa da estatística nos censos para representar matematicamente
o que se acreditava ser um processo inevitável de embranquecimento de suas
populações (Loveman, 2014; Nobles, 2000).[12]
Na perspectiva da intelectualidade e da burocracia Estatal brasileiras, o censo
populacional deveria registrar a diminuição progressiva da população negra e o
incremento da população branca, isto é, os processos da homogeneização étnica e
do embranquecimento (Camargo, 2009). Essa visão perdurou até a década de
1930, quando a convicção no branqueamento se enfraqueceu e os sentidos da
produção do censo mudaram. Na pesquisa de 1940, por exemplo, a questão “raça”
foi substituída por “cor”, já interpretada como variações na tonalidade de pele e
não mais como índice de pertença “racial”, o que sinaliza uma mudança em
direção à desracialização das categorias (Moraes Silva e de Souza Leão, 2012).
É daquele período que data a construção da categoria “pardo”: no censo de
1940, os recenseadores foram instruídos a registrar apenas as categorias “branco”,
“preto” e “amarelo”, devendo as demais respostas serem anotadas com um traço.
Na tabulação dos dados, esse “resto” – que reunia uma miríade de tipos, como
índios, caboclos, morenos, “mulatos” – foi agrupado sob a denominação “pardos”
(Moraes Silva e de Souza Leão, 2012). Em 1950, a pergunta sobre identificação
racial assumiu categorias próximas às atuais (Loveman, 2009). Em contraste com
a maioria dos países da América Latina que excluiriam a questão a partir da
década de 1960, o Brasil coletou continuamente dados censitários sobre a
composição étnico-racial de sua população durante quase todo o século XX,
como também fez um pequeno grupo de países que inclui Cuba, EUA e África do
Sul (Nobles, 2000). Na maior parte desse tempo, os brasileiros foram solicitados a
se identificar com as mesmas categorias – “branca”, “preta”, “parda”, “amarela” e,
desde 1991, “indígena” no censo nacional e em pesquisas domiciliares (Powell e
Moraes Silva, 2018).
Os dados estatísticos que emergiram dos censos populacionais acabaram por
se tornar informação valiosa para movimentos sociais, burocratas e acadêmicos,
proporcionando subsídios para diagnósticos sobre as desigualdades raciais e para
a construção de demandas endereçadas ao Estado. Apesar de, nos anos 1980,
terem pleiteado ao IBGE a substituição das categorias “preto” e “pardo” por
“negro”, organizações e movimentos sociais antirracistas acabaram persuadidos do
contrário por dois motivos: primeiramente, a adoção de novas categorias
inviabilizaria a produção de séries históricas e a comparação com censos
anteriores; em segundo lugar, a substituição das categorias “preto” e “pardo” por
“negro” reduziria significativamente o tamanho da população negra mensurada
pelos censos (Silva, 1995).
Como contraofensiva às ideologias da “democracia racial” e do
branqueamento, os movimentos negros passaram a partir dos anos 1980 a
encorajar pardos de pele clara a se identificar como negros (Guimarães, 2012).
Igualmente, dadas as semelhanças entre os diversos indicadores socioeconômicos
de “pretos” e “pardos” e sua distância com relação aos “brancos”, o agrupamento
dos dois grupos para fins de produção de estatísticas de desigualdade tinha
respaldo técnico e acadêmico. Como apontou Nelson do Valle Silva, agrupá-los,
“mais do que mera simplificação, parece constituir uma abordagem sensível na
análise da discriminação racial no Brasil” (Silva, 1978, p. 215). O dilema foi
solucionado pelos movimentos sociais conforme a descrição de Rios (2019):

A resposta veio de uma geração que não tinha dúvidas de que a melhor estratégia para enfrentar o
racismo não era dividir a comunidade negra, mas ampliá-la. Os negros não deveriam ser a minoria no
país, como o são nos EUA. No Brasil, os movimentos sociais optaram por construir a população negra
como campo majoritário demograficamente e culturalmente. Nesse sentido, [Lélia] Gonzalez gostava
de dizer que o movimento social negro não era um movimento epidérmico, mas sim um movimento
político.

Como consequência, ainda que o Estado brasileiro tenha continuado a


coletar dados quantitativos sobre “pretos” e “pardos” separadamente, o
agrupamento desses dois grupos tornou-se procedimento padrão entre agências
públicas para fins de produção de diagnósticos e análise de indicadores sociais
(Nobles, 2000). Com a sanção do Estatuto da Igualdade Racial em 2010, uma
vitória histórica para os movimentos negros, a definição do negro como o
somatório de “pretos” e “pardos” se tornou oficial: em seu primeiro artigo, a lei
definiu como população negra “o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas
e pardas” (Brasil, 2010).
Em 1990, com a consolidação de um campo étnico-racial global, a rede de
ativismos negros nacionais e internacionais se adensou e fez avançar uma agenda
antirracista no Brasil que levou a uma série de mudanças nas políticas do Estado
(Lima, 2010; Paschel, 2016). Apesar de algumas variações, quando as políticas de
ação afirmativa começaram a ser implementadas, as categorias do Estado “preto”,
“pardo” e “indígena”, comumente referidas pelo jargão PPI, foram pouco a pouco
formando a base da definição para quem tem direito a se beneficiar delas (Daflon
et al., 2012).
Em 2001, o estado do Rio de Janeiro fez história ao aprovar a Lei Estadual n.º
3.708, que determinou a adoção das primeiras políticas de ação afirmativa no
Ensino Superior brasileiro. Nos anos seguintes, o trabalho incansável dos
movimentos negros e de organizações da sociedade civil junto aos gestores das
universidades e câmaras estaduais de todo o país levou várias instituições a
seguirem o exemplo (Paiva e Almeida, 2010). Como resultado desses ativismos e
de incentivos proporcionados pelo Governo Federal, as políticas de ação
afirmativa se disseminaram e, em 2012, 73% das universidades públicas brasileiras
já praticavam alguma de suas modalidades (Daflon et al., 2013).
A partir da implementação das políticas de ação afirmativa, a classificação
racial deixou de servir de base apenas para a mensuração das desigualdades e
caracterização de populações (Morning, 2008; Loveman 2014; Bailey et al.,
2018) para se converter também em categoria jurídica. A implementação das
ações afirmativas foi descentralizada até 2010, quando a decisão do Supremo
Tribunal Federal embasou e incentivou o Governo Federal a determinar a reserva
de vagas na seleção de graduação de todas as Ifes no Brasil por meio da Lei n.º
12.711, de 2012. De acordo com ela, a distribuição de cotas raciais deveria ser
definida conforme o percentual de pessoas que se identificaram como “pretas” e
“pardas” – entendidas pelo Estatuto da Igualdade Racial (Brasil, 2010) como
“negras” – no censo em cada estado da federação.
Nos anos seguintes, as ações afirmativas também começaram a expandir o
acesso a programas de pós-graduação (Venturini, 2018) e, em 2014, a agenda
antirracista alcançou mais uma vitória com a Lei n.º 12.990, que instituiu reserva
de 20% das vagas em concursos públicos federais para negros (Oliveira e Targino,
2017). Todas essas políticas empregaram sistematicamente as categorias “preto” e
“pardo” para a definição dos beneficiários. Desde então, o Brasil se tornou o país
que vem implementando esse tipo de política de maneira mais sistemática e
generalizada (Lloyd, 2015). Após a batalha de uma década pela legalidade da ação
afirmativa, hoje as cotas raciais são uma política pública consolidada em diversas
esferas.

Rumo às comissões de heteroclassi cação

uando as ações afirmativas chegaram ao Brasil, a operacionalização dos


conceitos de “raça” e etnicidade vieram para o centro do debate. Assim como
aconteceu com a maior parte da América Latina, no Brasil a ideologia da
mestiçagem dominou a formação racial do país, levando a maioria da população a
se ver como mestiça, morena ou parda (Loveman, 2014). Guimarães (2018, p. 24)
resumiu o dilema de forma direta: “num país que baseara toda a sua política racial
desde pelo menos o começo do século XX promovendo como mito nacional a
mestiçagem ou o branqueamento, como discernir agora o pardo do branco?”
A verificação da autodeclaração racial fez parte de uma das primeiras
iniciativas de cotas raciais implementadas no país. A Universidade de Brasília
(UnB), uma das universidades públicas brasileiras de mais prestígio, implementou
as cotas pela primeira vez como uma decisão institucional em 2003, reservando
20% de suas vagas em todos os cursos de graduação para candidatos negros. A
iniciativa surgiu um ano depois que a Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj) implementou cotas para negros e estudantes de escolas públicas em
cumprimento à Lei Estadual n.º 708/2001, baseando-se apenas na autodeclaração
dos candidatos (Peria, 2004).
Diferentemente da Uerj, a UnB exigia, além da autodeclaração, uma foto dos
alunos (Lima, 2005). Os aprovados eram, então, avaliados por uma comissão, e
aqueles que tivessem a autodeclaração rejeitada poderiam ser chamados para
entrevistas. O uso de imagens, no entanto, criou controvérsias, sendo a mais
conhecida o caso de gêmeos idênticos que, em 2007, foram avaliados pela
comissão: apenas um deles teve sua autodeclaração como negro validada. As cotas
raciais da UnB foram levadas ao Supremo Tribunal Federal e, em 2010, foram
declaradas legais, abrindo a porta para uma lei federal que tornaria as cotas raciais
obrigatórias para as Universidades Federais em 2012. Em seu voto, o ministro
Ricardo Lewandowski decidiu, ainda, que a heteroclassificação era legal e que
estavam autorizados procedimentos como formulários com múltiplas perguntas
sobre raça, declarações assinadas pelos candidatos, entrevistas, inspeções
fotográficas e formação de comissões para verificação racial de candidatos
(Supremo Tribunal Federal, 2012).
Mesmo com essa decisão favorável, a controvérsia em torno da
heteroclassificação, que ganhou as páginas dos jornais e incendiou o debate
público (Campos et al., 2013), parece ter inibido a prática, e a comissão de
heteroclassificação da própria UnB foi extinta. Como resultado, no ano de 2012,
80% das 40 universidades estaduais e federais que adotavam cotas raciais
contavam apenas com o método de autoclassificação para identificar beneficiários.
Apenas seis universidades faziam uso de comissões de verificação racial, análise de
fotografia ou ambos (Daflon et al., 2013).
O método preferencial tinha respaldo legal: com a Convenção da OIT C169
– Povos Indígenas e Tribais, ratificada pelo Brasil em 2002, o direito à
autoidentificação possibilitou o reconhecimento dos direitos à terra dos
quilombolas e grupos indígenas, não apenas no Brasil, mas também em outros
países da América Latina (French, 2009). A convenção foi usada pelos apoiadores
brasileiros das ações afirmativas como estratégia para combater as críticas de seus
detratores (Guimarães, 2005). Aqueles que historicamente opuseram-se às ações
afirmativas no Brasil, por sua vez, mobilizaram a ideia de que as comissões eram
uma intervenção inaceitável do Estado na identidade e na privacidade das pessoas.
Afirmavam, ainda, que qualquer tentativa de introduzir critérios raciais
“objetivos” e não subjetivos nas políticas públicas comprometia a ideia
fundamental de que a “raça” é uma construção social (Fry et al., 2007). Ao definir
os beneficiários de ações afirmativas por meio da autodeclaração, geralmente
combinada com o status socioeconômico, os formuladores de políticas
contornaram as críticas e, ao mesmo tempo, avançaram na implementação das
ações afirmativas no Brasil.
Como resultado, nas fases iniciais das políticas de ação afirmativa, nas quais
não havia regulamentos ou sanções do Estado, a definição individual de raça
baseada na autoclassificação a partir das categorias de cor do censo era muito
flexível. Na prática, bastava que as pessoas declarassem se identificar com as
categorias censitárias “preto”, “pardo” e “indígena” para se beneficiarem de cotas
raciais. Como afirma Lehmann (2018, p. 196):

a própria ambiguidade em torno de quem pode se dizer negro e os generosos critérios oficiais para
cotas para pretos, pardos e indígenas ampliaram ainda mais a base do movimento negro. A elas podem
ser acrescentadas pessoas que nunca se consideraram pretas ou pardas e o fazem não necessariamente
por razões oportunistas, mas porque genuinamente começam a interpretar sua desvantagem em
termos raciais.

Essa ambiguidade também criou a possibilidade de as pessoas reivindicarem


negritude por várias razões diferentes sob o risco de ampliar excessivamente o rol
de beneficiários, o que poderia abrir a possibilidade, também identificada por
Lehmann (2018, p.10), de que as cotas se tornassem “anômalas e possivelmente
insustentáveis”, porque muitas pessoas se qualificariam para elas. Como ficou claro
a partir de 2015, várias organizações do movimento negro não estavam satisfeitas
com o modo como essas políticas estavam sendo implementadas e expandidas.
Em particular, eles começaram a questionar se o procedimento da autodeclaração
era condição suficiente para definir os beneficiários (Conselho Nacional do
Ministério Público, 2015; Silveira, 2015).
Se tradicionalmente os movimentos negros celebravam o crescente número de
pessoas que se identificaram como “pretas” e “pardas”, o que era interpretado
como evidência do fortalecimento da consciência racial dos afrodescendentes, no
início dos anos 2010 alguns setores começaram a questionar a autodeclaração
como procedimento único para determinar os beneficiários da ação afirmativa. O
problema parece ter se manifestado de forma mais aguda nos concursos federais.
Conforme observou um integrante do Ministério do Planejamento, “quanto mais
alto o salário, maiores as chances de fraude”.
É possível organizar as críticas à autoidentificação como critério soberano em
dois eixos principais. Primeiro, e de maneira mais destacada no debate, há o receio
de que pessoas socialmente consideradas brancas burlem o sistema. Em janeiro de
2018, o jornal Estado de São Paulo entrou em contato com 63 universidades
federais para perguntar sobre alegações de fraude, obtendo resposta de 53 delas.
Dessas, 21 afirmaram ter recebido denúncias de fraude e estar conduzindo
sindicâncias. No total, 595 estudantes estavam sob investigação e a maioria teve
suas inscrições canceladas, ainda que muitos tenham retornado às universidades
posteriormente devido a ações judiciais (Toledo, 2018).
Segundo, e em parte como consequência do primeiro argumento, muitos
ativistas começaram a afirmar que o “colorismo” deveria ser levado em
consideração no debate sobre cotas raciais. De acordo com dados do censo e
pesquisas de survey, “pretos” e “pardos” são muito semelhantes em termos de
desvantagem social quando comparados aos “brancos”, mas as pesquisas mostram
que eles são muito diferentes em suas percepções sobre discriminação racial –
“pardos” mostram níveis consistentemente mais baixos de percepção de
discriminação racial do que “pretos” (Moraes Silva e de Souza Leão, 2012). Cabe
também destacar que, a despeito da semelhança de indicadores, “pardos” não
costumam ser vistos como um grupo racialmente discriminado pelo “senso
comum”. Em uma pesquisa de survey em que os respondentes classificaram
fotografias de pessoas com diferentes aparências, aqueles classificados como
“pretos” foram sistematicamente apontados como propensos a sofrer
discriminação, mas o mesmo não se constatou quanto àqueles classificados como
“pardos” (Daflon et al., 2017).
Historicamente, os movimentos negros interpretaram a baixa percepção de
discriminação racial pelos pardos como falta de consciência racial e os convidaram
a “não deixar a cor passar em branco”, incentivando-os a se identificarem como
negros (Nobles, 2000). Mas as novas vantagens emergentes dessa identificação
fizeram com que alguns setores do ativismo negro desconfiassem que as pessoas
estavam sendo “afroconvenientes”, reivindicando identidade parda por meio da
ascendência negra, enquanto em termos sociais elas poderiam ser percebidas
como brancas (Rosa, 2016; Santos, 2018). De acordo com relatos que coletamos
junto a membros de comissões, a discussão sobre o “colorismo” é muito incidente
entre os coletivos negros universitários e os jovens estudantes.
As crescentes alegações de fraude, sobretudo pelos coletivos negros, parecem
ter desempenhado um papel importante na criação de procedimentos de
verificação nas universidades. Por exemplo, em 2017, após a intensa divulgação do
caso de uma estudante de olhos azuis aprovada em Medicina por meio de cotas
raciais, a UFMG solicitou que “pretos” e “pardos” autodeclarados escrevessem
uma carta descrevendo suas razões para fazê-lo. “A UFMG deixa explícito nesse
edital que as cotas são dirigidas para candidatos autodeclarados negros, não é uma
reserva para candidatos que tenham ascendência negra”, disse o Pró-Reitor de
Assuntos Estudantis da ocasião (UFMG, 2017). Também descobrimos 13 casos
nos quais comissões extraordinárias – ou sindicâncias – foram instituídas para
validar casos individuais de autodeclaração de estudantes de graduação após a
apresentação de queixas. Em outros 17, as comissões foram previstas nas diretrizes
da instituição (Moraes Silva et al., 2018).
Finalmente, após anos de experimentos com diferentes desenhos de políticas
e um número crescente de denúncias de fraudes de autodeclaração racial, a pedido
de ativistas negros e do Ministério Público, o Governo Federal emitiu a
Orientação Normativa n.º 3, 1/8/2016, que determina que todas as seleções
federais em concursos públicos com ação afirmativa devem formar comissões para
verificar a veracidade da autoclassificação racial dos candidatos. Isso significa que a
autodeclaração ainda é uma condição necessária para ingressar nas cotas, porém
não é mais suficiente. Ainda que não se aplique às seleções para as universidades, a
Orientação Normativa teve um impacto muito significativo: dos 40 comitês
encontrados em universidades, 32 foram criados após 2017.
As comissões estão longe de ser uma unanimidade, mobilizando inclusive
críticos severos, que as chamam de “tribunais raciais”. Da mesma forma, a
percepção a respeito dos “pardos” está longe de ser consensual, como demonstram
as declarações de Sueli Carneiro (2011, p. 73), filósofa e ativista histórica do
movimento negro:

Há quase duas décadas, uma parcela significativa de jovens negros insertos no movimento hip-hop
cunhou politicamente para si a definição de pretos e o slogan PPP (Poder para o Povo Preto), em
oposição às classificações cromáticas que instituem diferenças no interior da negritude, sendo esses
jovens, em sua maioria, negros de pele clara, como um dos seus principais ídolos e líderes, Mano
Brown, dos Racionais MC’s. Esses jovens sabem, pela experiência, que o policial nunca se engana,
sejam esses jovens negros de pele mais clara ou escura. No entanto, as redefinições da identidade racial,
que vêm sendo empreendidas pelo avanço da conscientização de negros e já são perceptíveis em
levantamentos estatísticos, tendem a ser atribuídas apenas a um suposto ou real oportunismo
promovido pela política de cota, fenômeno recente que não explica a totalidade do processo em curso.

José Jorge de Carvalho (2005), um dos principais defensores da ação


afirmativa, afirmou em seu livro de 2005 que seria impossível evitar casos de
fraude racial na aplicação das cotas, preocupação também expressa por Antonio
Sérgio Guimarães (2018), mas que essa era uma injustiça menor diante da grande
mudança social produzida por elas. Como relatado por um membro de comissão,
parece haver uma crescente diferença intergeracional:

Nós trabalhamos com preto e pardo, porque é a nomenclatura oficial, o IBGE trabalha com isso. A
categoria política para mim é negro. Mas aí tem uma discussão que tem muito a ver com o geracional.
As pessoas mais novas que eu usam a palavra preta. A minha geração usa negra. Só que é curioso que
alguns anos atrás era a palavra preta que se usava. E aí é uma questão geracional, essa geração que está
agora na militância resolveu reinventar roda.

Mesmo entre coletivos negros, é possível encontrar divergências, conforme


nos relatou uma integrante de um coletivo de estudantes:

Toda política pública tem fraude. É um povo miserável que não tem nada que trapaceia para conseguir
alguma coisa. […] Então, por exemplo, talvez na frente de uma comissão eu não fosse considerada
negra. Talvez eu não pudesse fazer jus às cotas. Mas os dados do IBGE são claros. Graças à conquista
do movimento negro nós conseguimos reunir pretos e pardos no mesmo grupo. Porque essa é uma
consequência da democracia racial, o complexo de vira-lata que oprime e faz com que as pessoas se
odeiem, negando a própria existência. Então, muita gente diz que é parda em vez de negra. Esse grupo
de pretos e pardos soma 54% da população e, dentro dele, menos de 10% se autodeclara preto. A
maioria da população é extremamente miscigenada. […] Então uma comissão que vai checar sua
negritude baseada nos seus traços físicos é absurdo, é lombrosiano, é um corte. É um tiro no pé. Eu
acho que tem a ver com o método de exclusão da política.

Um discurso mais pragmático vem da Administração Federal: em uma


entrevista a uma das autoras, um administrador público influente no debate das
cotas argumentou que, como a entrada em uma universidade pública é um
processo burocrático, as pessoas devem apresentar evidências de que se formaram
no Ensino Médio, de sua nacionalidade e de seu endereço. Portanto, se foram
aprovados por meio de cotas, também precisam fornecer evidências de sua
classificação racial ou de que são os beneficiários visados pela ação afirmativa. Da
mesma maneira, uma integrante do Ministério do Planejamento atuante na
instalação de comissões para concursos públicos federais nos relatou que, apesar
dos prós e contras, a fraude precisava ser coibida. “E precisamos agir, pois não
temos tempo para as especulações da academia. Precisamos também ter um
mesmo procedimento para todo o país”, afirmou. No entanto, o que constitui
uma prova válida da classificação racial permanece em aberto, conforme
discutiremos a seguir.

Operacionalizando “raça” nas instituições de ensino superior

A operacionalização da “raça” tem estado no centro do debate sobre as ações


afirmativas brasileiras desde meados dos anos 2000. Apesar de o procedimento ser
uma parte importante das políticas de ação afirmativa, os dilemas que ele provoca
variam em diferentes contextos nacionais. Nos Estados Unidos não apenas existe
um relativo consenso em torno de quais grupos são discriminados e merecem ação
afirmativa, como também a autoclassificação (pela própria pessoa) e a
heteroclassificação (por outros) geralmente coincidem – ainda que o crescimento
da população latina tenha trazido alguns desafios, como discute Mora (2014).
O uso da “raça” pelo Estado acaba, assim, por se tornar relativamente
consensual, ainda que as batalhas judiciais em torno da própria legitimidade de se
levar “raça” em conta e como fazê-lo sigam intermináveis naquele país (Ruberg,
2019). Em outros casos nacionais, no entanto, a definição das fronteiras entre
beneficiários e não beneficiários pode ser mais controversa. Nas políticas de
reserva na Índia, por exemplo, há muito menos consenso em torno das fronteiras
entre os grupos discriminados e não discriminados, como se nota nos debates
sobre as scheduled castes e other backward classes na Índia encontrados em De
Zwart (2000) e Jenkins (2003).
No Brasil, como veremos, a operacionalização tem sido complexa como na
Índia, mas por razões diferentes. Enquanto no caso indiano o debate está em
torno de quais grupos são considerados suficientemente desfavorecidos para se
beneficiar das cotas, aqui o debate é sobre quem faz parte desse grupo. Ou seja, o
trabalho da comissão é decidir, individualmente, quais candidatos podem se
beneficiar das cotas. Para termos uma ideia da escala desse processo, podemos
observar a primeira comissão montada pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) em 2020. Uma das maiores universidades do país, a instituição
teve que revisar 1.549 arquivos de estudantes aceitos por meio de cotas raciais.
Entre eles, 1.270 compareceram a entrevistas ao longo de sete dias, e 306 pedidos
foram rejeitados na primeira rodada de avaliação. Dos rejeitados, 296 apelaram, e
98 foram aprovados posteriormente (Souza e Corrêa, 2020).
uando as primeiras comissões foram implementadas, no início dos anos
2000, havia muita heterogeneidade em seus procedimentos. O tipo mais comum
de comissão seguiu a prática da UnB de avaliar fotografias. Mas enquanto algumas
delas se concentravam apenas na inspeção do fenótipo, outras também pediam
aos candidatos que justificassem sua autodeclaração – por escrito ou em
entrevistas – e levavam em consideração seus pontos de vista sobre discriminação,
racismo, cultura negra, história da família e relações sociais (Silveira, 2015).
Ao decidir criar novamente comitês de verificação em anos recentes, as
universidades precisaram determinar os procedimentos a serem adotados. De
acordo com nosso levantamento, como regra geral, as instituições têm se apoiado
em dois documentos para estabelecer as comissões: a Orientação Normativa n.º 3,
de 1/8/2016, do Ministério Público Federal, e a Portaria Normativa n.º4, de
6/4/2018, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (Moraes
Silva et al., 2018). Embora ambas as normas se apliquem apenas a concursos
públicos federais, a adoção dos seus termos, procedimentos e orientações tem se
disseminado entre as universidades. A implementação na ponta frequentemente
difere das decisões de gabinete, no entanto.
Após a publicação da Orientação Normativa de 2016 pelo Ministério Público
Federal, comissões passaram a ser estabelecidas em todo o país. Em um caso
altamente polêmico envolvendo a seleção de funcionários públicos, o Instituto
Federal do Pará (IFPA) forneceu aos avaliadores um formulário a ser preenchido
caso houvesse dúvida sobre o fenótipo do candidato. O formulário trouxe
critérios adicionais como formato do nariz, lábios, mandíbula, crânio e arcos
zigomáticos, bem como tipo de cabelo, pelos faciais e cor dos dentes e gengivas. O
procedimento causou indignação, e a universidade foi acusada de racismo
(Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará, 2016).
Parte como reação ao caso da IFPA, o Governo Federal publicou a Portaria
Normativa n.º 4 em 6/4/2018, a fim de regular o processo de heteroclassificação.
O objetivo mais amplo era garantir a dignidade humana no procedimento, o
direito à autodefesa, a padronização e a igualdade de tratamento, a transparência e
o acesso do público, as normas legais e a efetividade da ação afirmativa em termos
da seleção dos candidatos. O documento definiu vários procedimentos para essas
comissões, entre os quais se destacam: a avaliação de candidatos em entrevistas
face-a-face, a obrigatoriedade de filmar todas as entrevistas e disponibilizar o
material à justiça em caso de contestação legal e a seleção de pessoas
preferencialmente “experientes na temática da promoção da igualdade racial e do
enfrentamento ao racismo” para integrar as bancas (Ministério do Planejamento,
2018).
Um ponto marcante da portaria é que ela determinou que o fenótipo deve ser
o critério exclusivo da verificação, ainda que deva haver uma presunção relativa da
veracidade da autodeclaração do requerente e que ela deva prevalecer em caso de
“dúvida razoável” quanto ao fenótipo do candidato pelos avaliadores. A
publicação dessas normas, no entanto, não deve ser tomada como evidência de
que as pessoas envolvidas no processo possuíam uma visão consensual em torno
da melhor forma de operacionalizar “raça”.
Em uma série de palestras proferidas em Brasília em 2016, até mesmo o
entendimento de quem eram os beneficiários visados pelas ações afirmativas
estava em disputa: uma integrante do Ministério Público Federal, por exemplo,
defendeu que a ação afirmativa não deveria contemplar os “pardos”: “Afinal, quem
é pardo? ual pardo? O resultado genético é diferente do resultado fenotípico.
Por isso, temos que nos basear nos traços fenotípicos. A categoria ‘pardo’ deve ser
interpretada de forma restritiva. Temos que pensar melhor no que é ‘pardo’”. Por
outro lado, uma integrante do Ministério do Planejamento atuante na
implementação das comissões de verificação racial nos concursos públicos federais
relatou estar adquirindo um conhecimento crescente sobre os beneficiários que
ampliou a sua ideia do que significa a soma de “pretos e pardos”: “É preciso incluir
as pessoas indiodescendentes, as nordestinas, etc. É preciso entender aqueles
pardos que não são negros. Nós sabemos reconhecer pardos afrodescendentes,
mas não sabemos muito sobre os pardos indiodescendentes”.

As comissões de heteroclassi cação nas Ifes

A partir de agora, discutiremos como as instituições de ensino superior têm


operacionalizado “raça” nas comissões. As observações que se seguem baseiam-se
em levantamento de documentos, editais, atas, reportagens e entrevistas (Moraes
Silva et al., 2018) em que conseguimos identificar tanto algumas tendências
comuns como também variações nas formas e procedimentos adotados.
Sustentamos que as semelhanças derivam de dois fatores: primeiro, e mais
saliente, há o impacto da influência padronizadora da orientação de 2016 e da
portaria de 2018; segundo, há efeitos da moldura institucional das ações
afirmativas, que cria determinados incentivos burocrático-legais que influenciam
a forma como “raça” é operacionalizada e encarada pelos atores sociais. Nas
próximas seções, discutiremos como as operacionalizações da “raça” por essas
comissões mudam: (i) o entendimento dos objetivos das ações afirmativas como
políticas antirracistas, (ii) a conceitualização do que é “raça”, (iii) os
procedimentos e conhecimentos necessários para reconhecer identidades e
categorias raciais, (iv) as concepções a respeito do grande número de brasileiros
que se identificam como “pardos”.

A especi cação individual

Com a criação das comissões, duas formas de operacionalizar “raça” agora


precisam ser combinadas: a autoclassificação, pela própria pessoa, e a
heteroclassificação, por outras pessoas. Embora os dois procedimentos sejam
diferentes, ambos exigem que a “raça” seja especificada no nível individual. Em
contraste, políticas públicas destinadas a proteger a diferença cultural e os direitos
coletivos difusos, como o acesso à terra, tendem a operacionalizar “raça” e etnia de
forma diferente: a especificação se dá em termos relacionais e coletivos por meio
da definição de grupos e coletividades detentores de direitos e proteções em
termos de cultura compartilhada, ancestralidade, parentesco, relações de grupo,
território, etc.
Em contraste, as políticas de ação afirmativa para acessar a universidade, e as
cotas raciais em particular, precisam especificar a raça no nível individual para dar
acesso a direitos. Esse é um aspecto intrínseco dos Estados liberais nos quais a
ação afirmativa tomou forma: uma vez que a unidade política básica do
liberalismo é o indivíduo, a afirmação de direitos geralmente é feita com base em
uma identidade aferida singular (Butler, 1997). Os próprios instrumentos
utilizados pelas ciências econômicas e sociais para detectar e diagnosticar
desigualdades se apoiaram nas formas de classificação desenvolvidas pelos Estados
liberais: os métodos consolidados de mensuração das desigualdades
desenvolveram-se no interior de teorias de estratificação e de obtenção de status
(status attainment) que tomam os indivíduos como unidade de análise e as
classificações do Estado como variáveis. Assim, processos sociais relacionais
complexos são transformados em indicadores individualizados, possibilitando a
análise, de forma agregada, de resultados, médias e tendências (Avent-Holt e
Tomaskovic-Devey, 2018).
Os dados estatísticos produzidos pelo Estado e analisados dessa maneira
foram fundamentais para produzir as evidências das desigualdades e
discriminações raciais que deram suporte às políticas de ação afirmativa (Lima,
2010). No entanto, as estatísticas de desigualdade e a mensuração indireta ou
presumida da discriminação (Pager, 2006) não permitem fazer inferências sobre
os mecanismos que produzem as desigualdades ou as formas pelas quais se dá a
discriminação. Além disso, eles operam as classificações instituídas pelo Estado
como atributos de indivíduos – e não como construções sociais (Zuberi, 2001).
As desigualdades raciais são um fenômeno multidimensional e complexo,
relacionado a grandes estruturas econômicas, políticas e institucionais de
segregação residencial, migração, exclusão educacional, exclusão laboral,
racialização pelo sistema de justiça criminal e pela mídia. Além disso, relacionam-
se a desigualdades duráveis, formas de transmissão intergeracional de vantagens e
desvantagens, patrimônio acumulado, distribuição de capitais sociais e
simbólicos, redes de relações sociais, entre diversos outros fatores. Ao falar das
famílias negras, por exemplo, Carneiro (2011) chama atenção para a grande
variedade de classificações no seu interior e ressalta a ligação entre identidade
racial, pertença familiar e desigualdade.
Com a aplicação das ações afirmativas no nível individual, uma tendência vem
se consolidando ao longo dos últimos anos: a redução do processo
multidimensional da desigualdade racial à discriminação racial sofrida
individualmente e a abstração desse indivíduo das suas relações sociais concretas.
Em diversos documentos a que tivemos acesso, os beneficiários das ações
afirmativas passam a ser definidos como pessoas que sofreram discriminação ou
que podem demonstrar ser potenciais vítimas do racismo. Freitas (2018, p. 183)
formulou essa posição:

Considerando que a discriminação e o preconceito na sociedade brasileira fundam-se essencialmente


no aspecto exterior da pessoa (preconceito de marca), torna-se possível afirmar que a política pública
em questão deve dirigir-se àquelas pessoas que possam ser vistas e identificadas como pertencentes ao
grupo discriminado e para o qual a política se direciona.

Assim, a ideia de um racismo estrutural, sistêmico ou institucional cede lugar


a uma definição mais restrita, que opera no nível individual e nas interações
sociais cotidianas. Da mesma forma, as ações afirmativas passam a ter como
propósito reparar discriminações sofridas individualmente. Em nossa pesquisa,
constatamos que há espaço para nuances e discordâncias nas comissões a respeito
do quão restrita deve ser a definição de racismo e, por consequência, da função
das ações afirmativas (Silveira, 2015). Mas, nas entrevistas que fizemos, tende a
prevalecer a noção de que o que interessa à comissão é se determinado indivíduo é
potencial vítima de discriminação no mercado de trabalho e em instituições
escolares, isto é, se poderia perder oportunidades em razão de sua aparência. Essa
visão é recorrente em diversos relatos de membros de comissões no Brasil (vide
dossiê temático de Benite et al., 2019) e de alguns setores do movimento negro
(Dias e Tavares Junior, 2018):

Assim, o racismo à brasileira afeta os indivíduos em virtude de sua aparência racial – que determina
sua potencial vulnerabilidade à discriminação racial –, e não de sua ascendência ou composição
genética. Nesses contextos sociorraciais, é usual que a discriminação racial se intensifique à medida
que as características fenotípicas do indivíduo se afastem daquelas consideradas típicas do grupo
dominante. Efetivamente, há diferenciações baseadas na pigmentação da cor da pele – combinada
com os traços faciais e textura dos cabelos –, numa espécie de escala ascendente de tons, na qual os
indivíduos de pele mais escura figuram na base da pirâmide sociorracial, em contraposição àqueles que
possuem a pele mais clara, aos quais é reservado status de superioridade. Ou seja, quanto mais
desviante do padrão fenotípico hegemônico, maior a potencialidade de o indivíduo sofrer
discriminação racial (Vaz, 2018, p. 37-38).

Como mostram as discussões sobre a ação afirmativa em vários âmbitos de


debate e deliberação ao longo dos anos, esse nem sempre foi o entendimento.
Entre 2001 e 2012, os argumentos mais prevalentes em defesa das ações
afirmativas na mídia, no sistema de justiça e nas universidades eram
redistributivistas: diminuição das desigualdades, inclusão, reparação histórica,
igualdade de oportunidades, promoção da diversidade e dessegregação de elites
eram argumentos mais frequentes do que o combate à discriminação racial sofrida
pelo indivíduo (Feres Júnior e Campos, 2016; Paschel, 2016). Apesar disso, é
interessante notar que há pessoas envolvidas na comissão que são críticas a uma
concepção estreita de racismo. Em entrevista a uma das autoras, um professor de
um Instituto Federal responsável pela montagem da comissão em sua instituição
teceu comentários a respeito disso:

Pensando na lei antirracismo, eu acho que as pessoas visualizam muito o racismo como a injúria racial.
Eu digo isso no meu pequeno laboratório que são as minhas aulas com os meus alunos. É
relativamente tranquilo discutir racismo como injúria racial, como um indivíduo ofendendo o outro,
ou como um indivíduo não podendo acessar um espaço, não entrar numa loja, por exemplo. Algo bem
concreto. Mas do ponto de vista que a gente pensa estrutural, assim, como uma conformação da
sociedade brasileira, o racismo estrutural mesmo, é muito difícil. Eu sinto que quando discuto com as
pessoas eu estou levando elas para um nível de abstração alto demais para a discussão recente. […]

Pensando o racismo só em termos de injúria, vai ter gente que vai retomar o debate da cota social, da
cota racial, falando ‘ah, mas e quem é pardo nunca sofreu preconceito, tem grana e estudou numa
escola privada?’ Sendo que, novamente, olha como isso estimula o debate!

No que se refere à operacionalização, a especificação do beneficiário nos


termos da discriminação sofrida pelo indivíduo traz dilemas: além de deixar de
lado outros mecanismos das desigualdades raciais que produzem o resultado
agregado identificado pelas estatísticas, essa forma de operacionalizar “raça” não
encontra ressonância entre parte significativa dos beneficiários visados por essa
política pública. Pesquisas de survey demonstram que sofrer discriminação (ou
enquadrar determinadas experiências como discriminatórias) aumenta a
probabilidade de uma pessoa se identificar como “preta” ou “negra”, mesmo depois
de se controlar pela cor da pele identificada pelo entrevistador. A probabilidade
de relatar discriminação também é maior para aqueles com status socioeconômico
mais alto (Lamont et al., 2016; Daflon et al., 2017). Sendo assim, a utilização da
discriminação como variável pode ter um viés não intencional de exclusão de
candidatos “pardos” de pele clara de baixa renda ao passo que pode beneficiar
estudantes “pardos” de pele clara com renda mais alta.
Esses dilemas estão presentes na operacionalização diária de “raça”, e os
depoimentos de membros das comissões mostram que alguns deles estão atentos
aos problemas da especificação individual e procuram se manter abertos a outras
evidências:

O questionário trazia alguma base para pensar como a pessoa entendia a sua condição, sua situação.
Mas mesmo se a pessoa dissesse ‘eu não sofri racismo’, a gente entendia que ela sofreu sim, mesmo que
ache que não. Tem que ter um entendimento do racismo estrutural, do racismo institucional, de uma
outra ideia do racismo.

As comissões em geral têm muita sensibilidade com essa combinação de raça e classe. Mas na hora de
fazer a avaliação eu acho que a cor tem mais importância do que a classe. Mas é curioso porque a classe
já foi marcada antes. Porque a rigor o que acontece é que quem passa até a chegar à comissão, já passou
pela verificação de classe. Agora é óbvio que na apresentação, nos discursos, nos recursos, nas
entrevistas, a classe aparece como uma argumentação também. Tem que ver também origem, pobreza,
desigualdade. Pelo que eu vi, tem uma leitura assim também. A região e a classe têm bastante
importância.

O fenótipo como critério


As escolhas sobre a implementação de formas burocráticas de controle podem
levantar dilemas e criar consequências não intencionais para a transformação e
reprodução de fronteiras raciais. A Orientação Normativa de 2016 determinou
que as comissões de verificação levem em consideração apenas o “fenótipo” dos
candidatos – isto é, as características físicas ou traços observáveis – e
desconsiderem outros critérios, como ancestralidade, parentesco, cultura,
identidade etc. Influenciadas por essa norma, muitas universidades determinam
que as comissões devem basear suas decisões no fenótipo dos candidatos e 23
delas também chegam a afirmar explicitamente em seus documentos que as
comissões devem rejeitar qualquer reivindicação de ascendência negra dos
estudantes (Moraes Silva et al., 2018).
Aí está uma mudança notável: enquanto no início dos anos 2000 era comum
se referir aos beneficiários de ações afirmativas no Brasil como “afrodescendentes”,
um termo que evoca ascendência e parentesco, hoje o termo raramente é usado. Se
considerarmos “raça” como uma categoria composta por múltiplas dimensões,
como sugerido por Wendy Roth (2016), deve-se notar que políticas públicas
como a ação afirmativa podem privilegiar uma dimensão sobre a outra e mudar a
própria compreensão do que venha a ser “raça”.
A ideia de que o fenótipo é um proxy “óbvio” para a classificação racial é uma
espécie de “senso comum” brasileiro, ilustrado pelo uso dos termos “cor ou raça”
na pergunta do censo. Um estudo realizado nas áreas metropolitanas em 2008
mostrou que, quando perguntados por que se identificam como pretos, pardos ou
brancos, os brasileiros apontam com mais frequência a cor e o fenótipo do que
outros fatores (86,6%) (PCERP, 2008). Mas a relação não é tão direta. Embora os
estudos mostrem, de fato, uma correspondência mais forte entre a cor da pele e a
autoidentificação no Brasil do que em outros países da América Latina, ainda há
muita variação entre os “pardos” (Telles e Perla, 2014).
Recorrendo à literatura sobre relações raciais no Brasil, Rios (2019)
argumentou que a própria noção de “cor” no Brasil não pode ser reduzida à mera
pigmentação da pele ou coloração do corpo. A combinação entre traços
fenotípicos e condição socioeconômica desempenha um papel muito importante
nas percepções de “cor”. A isso somam-se aspectos como ascendência e cultura.
Conceitualmente, portanto, a ideia de fenótipo como critério absoluto ignora que
ele é um dos elementos que compõem a ideia relacional e socialmente construída
de “raça”.
No nível macro, as fronteiras raciais dependem de marcadores fenotípicos
distintos em diferentes países, por exemplo, EUA e Brasil, mas essa variação
também ocorre em nível subnacional, por exemplo, Nordeste e Sudeste do Brasil.
No nível micro, a maneira como a pessoa se vê pode depender das suas interações,
permitindo que ela se perceba como mais escura ou mais clara do que as outras.
Portanto, o fenótipo dificilmente é um critério objetivo óbvio, mesmo que seja
importante e, portanto, que deva ser levado em consideração. Além disso, os
corpos e a aparência são culturalmente modelados e culturalmente interpretados
(Wade, 1993). Isso significa que, pragmaticamente, a maneira como o fenótipo é
percebido depende de quem o vê e como o avalia.
Muitos membros das comissões estão cientes de que o fenótipo também pode
ser “socialmente construído” e, por isso, muitas vezes contam com narrativas de
discriminação, em particular para avaliar candidatos cujo fenótipo é ambíguo. Por
exemplo, Silveira relata o caso de uma mulher loira com cabelos lisos e pele clara
que teve a autoidentificação validada porque ela afirmou que precisou alisar os
cabelos para encontrar emprego como vendedora (Silveira, 2015). Um dos nossos
informantes, atuante em comissão de um Instituto Federal, criticou a ideia de
fenótipo e acentuou que há diferenças na forma como os diferentes membros das
comissões encaram essa questão.
Se você quiser saber a minha opinião, eu não gosto do termo fenótipo porque eu acho que ele é um
conceito da biologia. A biologia rechaçou o conceito de raça pros seres humanos, mas o conceito de
fenótipo dela… Então eu acho que a gente não está ali para avaliar fenótipo, esse termo não deveria ser
usado. Eu acho que seria melhor, numa lei, falar de aparência, para demarcar subjetividade. Eu acho
que usar fenótipo pode ser um arcaísmo ou para dar alguma ilusão de objetividade nos concursos. Pra
falar estritamente a minha opinião, eu não acho que a gente tem que ficar tentando provar que os
concursos são objetivos. O concurso é subjetivo. E eu acho que é um racismo velado achar que
justamente quando ele produz uma cota racial ela está trazendo um elemento de subjetividade ao
concurso. Poxa, o que é uma banca de concurso? Eu sou cientista social, subjetividade não é um
palavrão pra mim. Agora, num lugar em que os cursos são todos de exatas, eles se apegam a esse
elemento da objetividade. […] Eu acho que usar fenótipo pode ser um arcaísmo ou pra dar alguma
ilusão de objetividade nos concursos.

Exemplos de visão do fenótipo como um indicador “objetivo” de “raça”


podem ser encontrados nos procedimentos das comissões da Universidade
Federal da Grande Dourados (UFDG) e da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (UFMS):

A confirmação ou não confirmação da autodeclaração ocorre por meio de aferição visual e presencial,
considerando o seguinte conjunto de características fenotípicas de pessoa negra: a) cor da pele (preta
ou parda); b) aspecto de cabelo; c) aspecto do nariz; d) aspecto dos lábios. São esses traços
objetivamente identificáveis que informam e alimentam as práticas insidiosas de hierarquizações
raciais ainda existentes no Brasil, ‘a confirmação da autodeclaração ocorre quando os membros da
comissão observam a cor da pele associada às demais marcas ou características que, em conjunto,
atribuem ao sujeito à aparência racial negra’. […] A análise dos traços fenotípicos do candidato é feita
presencialmente, com coleta de imagens fotográficas, vídeo e laudo fenotípico elaborado pelos
membros da comissão por meio de reconhecimento de aspectos característicos tecnicamente
sistematizados, como cor da pele, textura do cabelo, formato do nariz e lábios, conforme estabelecido
e informado a cada edital de convocação publicado pela PROGRAD (Marques et al., 2019, p. 67-74).

Como forma de avaliação e verificação foram adotados os seguintes critérios, segundo a normativa
citada: ‘A avaliação da veracidade da autodeclaração acontecerá por meio de bancas e entrevistas e
deverá considerar os aspectos fenotípicos e/ou de pertencimento étnico-racial da pessoa que se
candidatar’ […]. As pessoas pretas e pardas serão avaliadas por constatação visual no momento da
entrevista e ‘serão observados os seguintes aspectos fenotípicos na entrevista: cútis, cabelos, lábios e
nariz’ (UFMS, 2017), ou seja, as pessoas negras serão heteroidentificadas por meio da avaliação de seu
fenótipo (Maciel et al., 2019, p. 91).
Embora, como mostrado por Telles e Perla (2014), a categorização por cor da
pele pareça mais fortemente correlacionada com o status socioeconômico do que
a autoidentificação, a ação afirmativa também deve servir para rediscutir as
próprias fronteiras raciais. Ao se concentrar apenas na cor da pele, há um risco de
reificar esses limites a longo prazo. Embora a maioria dos candidatos que têm a
autoidentificação racial rejeitada tenda a apelar da decisão, nosso conjunto de
dados sugere que um número substancial tem seu apelo negado. Por meio de
artigos de jornal, também descobrimos que muitos dos candidatos recorrem aos
tribunais para contestar as decisões das universidades. Em seus apelos, eles
frequentemente mobilizam referências ao fenótipo e cor da pele que reificam uma
conceitualização taxonômica e quase biológica da “raça” (Moraes Silva et al.,
2018).

uem faz a classi cação?

A instrução normativa de 2018 determina que os membros dos comitês de


verificação tenham reputação ilibada, residam no Brasil, participem de um
workshop sobre promoção da igualdade racial e, preferencialmente, tenham
experiência nos tópicos de promoção da igualdade racial e do antirracismo. Mais
uma vez, embora não estejam sujeitas às determinações da orientação e da portaria
federal, as comissões nas Ifes têm que justificar sua legitimidade e frequentemente
o fazem com base na composição dos seus membros. Seguindo as pistas dadas por
Lempp (2019) a partir de observação sistemática dos procedimentos de uma
comissão de verificação de um concurso para servidor municipal na Bahia, a
composição das comissões sugere diferentes formas de conceitualizar raça,
oscilando entre um conhecimento que é compartilhado por toda a sociedade, um
conhecimento especializado e um conhecimento militante.
Além disso, os próprios membros das comissões costumam oscilar de posição:
às vezes expressam a ideia de que todos os brasileiros sabem identificar quem é
negro ou branco – o que Lempp (2019) chama de um “olhar social” – e às vezes
manifestam a noção de que eles próprios são mais preparados para identificar
quem deve se beneficiar das cotas – o que ela nomeia “olhar perito”. Além disso,
identificamos ainda a existência de um “olhar militante”, que recorre à sociedade
civil e aos movimentos sociais para a heteroclassificação (Moraes Silva et al.,
2018). Muitas vezes, recorre-se a uma composição mista para assegurar a
representação de diversos “olhares”, como nos relatou um membro de uma
comissão de uma universidade federal:

O que foi estabelecido como regra: primeiramente, ter uma comissão mista, para que não venha uma
pessoa só dizer se é ou não, porque não há nada que você possa dizer cientificamente sobre cor.

Por fim, cabe notar que o olhar político, o de especialista ou do senso comum
costuma estar associado a diferentes formas de compreender e operacionalizar
“raça”, o que confere instabilidade às classificações e pode levantar divergências no
interior das próprias comissões (Lempp, 2019). Nos relatos publicados sobre as
comissões, fica claro que seus membros frequentemente discordam sobre quão
ampla deve ser a definição de negritude e se devem ser considerados outros
elementos além do fenótipo. A discussão sobre quem são os beneficiários
merecedores está no centro de objetivos conflitantes dentro das comissões de
heteroclassificação (Silveira, 2015). Como nos relatou um membro de comissão
em um instituto federal:

Tem uma galera que interpreta negro como preto e outra galera que interpreta negro como pretos e
pardos. Então, assim, foi visível quando uma das professoras estava coordenando o debate, que estava
implementando no nível da reitoria, até apontou para mim e me usou como exemplo. E ela falou
assim: ‘Ah, não, ele aqui, pelo cabelo dele, eu acho que ele passaria, mas por exemplo se ele raspasse a
cabeça eu acho que ele não passaria’. É, eu me considero negro, mas eu tenho a pele mais clara e então
ficou esse debate se negro é só preto ou negro é pretos e pardos.
Em vários depoimentos, vemos que há discordâncias relativamente frequentes
em torno dessa questão:

As reuniões de avaliação, antes ou depois, têm tensões muito fortes, principalmente por parte dos
coletivos que questionam mais, que acham que têm que ser mais rígido, que têm que ter controle mais
forte. Eles têm uma fala mais crítica, mesmo, a respeito das comissões porque acham que elas têm que
ser mais incisivas. Por sua vez, os funcionários ficam numa posição mais intermediária, e os professores
têm uma visão mais conciliadora, tentam fazer uma mediação. Porque tem também a posição
institucional, tem muitas coisas que os professores estão olhando. Às vezes os alunos estão mais
concentrados em saber se tem fraudes, não tem fraudes. Enfim, tem essas tensões.

Por exemplo, alguns grupos achavam que só podia passar quem fosse preto de pele escura. Umas
achavam, por exemplo, que se a pessoa tivesse cabelo alisado, teria que ser reprovada. E aí eu disse isso
não tem como, por vários motivos. Primeiro que sou contrário a isso, sou contrário, eu acho isso uma
discriminação. E isso vai abrir brecha para quem quer abrir processo legal, e nós passamos por isso.
Pessoas que se sentiam assediadas na comissão, rir na cara da pessoa … várias coisas… E aí o que que
acontece, os alunos vão embora, mas nós que somos os técnicos e professores vamos ter que explicar
para o juiz. Duas semanas atrás eu fui pela justiça federal explicar uma situação que eu nem sabia o que
era.

Todos esses processos atestam que, embora se costume supor que a


autoclassificação é “subjetiva” e a heteroclassificação pelo “fenótipo” é “objetiva”,
há subjetividade em qualquer forma de classificação racial – as percepções sobre
“raça” e classificações raciais variam de acordo com o olhar de quem faz a
classificação.

A heteroclassi cação dos “pardos”

Concluímos nosso texto chamando atenção para o aspecto que tem se


mostrado um dos mais desafiadores para as comissões: a heteroclassificação dos
“pardos”. A Lei Federal de Cotas de 2012 não apenas considera “negros” o
somatório de “pretos” e “pardos” como também determina que o percentual de
vagas reservadas em cada instituição federal seja calculado com base na proporção
de “pretos” e “pardos” em cada estado da federação. No censo demográfico de
2010, 43,1% da população brasileira se declararam “parda” e 7,6% se declararam
“preta” (IBGE, 2013). Isso significa que o peso demográfico da população
autodeclarada “parda” é o que garante às cotas raciais um percentual alto em
muitos estados.
Sugerimos que o fato de os “pardos” ocuparem o centro das controvérsias
envolvendo as comissões – e, provavelmente, os debates públicos sobre fronteiras
raciais no Brasil atual – deve-se ao fato de se encontrarem no meio do continuum
racial, precisamente no ponto em que, ao operacionalizar “raça”, a política pública
precisa traçar uma linha de corte. Essa prática, apesar de necessária, colide com a
formação racial brasileira tradicional, que acentuou um continuum de cor no
lugar de divisões dicotômicas. Se a linha de corte já é normalmente um desafio
para qualquer política pública focalizada, é particularmente desafiador defini-la
em se tratando de algo multidimensional como “raça” (Roth, 2016).
Além disso, a premissa de que os “pardos” são todos afrodescendentes de pele
clara e que as percepções raciais são idênticas em todo território nacional perde de
vista que a categoria “parda” foi construída e operacionalizada pelo Estado ao
longo do tempo aglutinando aos afrodescendentes diversos grupos racializados,
como o caboclo indígena-descendente e o “nordestino” e apagando diferenças
regionais e sua ação sobre processos de racialização (Petruccelli, 2007; Verán,
2010). Como pontua Monsma,

“no Brasil, onde os debates públicos atuais sobre raça e racismo abordam quase exclusivamente a
situação do negro, boa parte da população do Norte e do Nordeste é pelo menos parcialmente
indígena e os ancestrais de muitos pardos incluem mais indígenas que africanos” (Monsma, 2014, p.
25).

Pesquisas subnacionais e estudos transnacionais sobre “raça” têm mostrado


também que, embora territórios, fronteiras e imaginários nacionais não possam
ser desprezados como fatores importantes na produção social da “raça”, não existe
coincidência entre uma forma de classificação racial e um espaço territorial. Nesse
sentido, não é possível ordenar as classificações raciais todas no interior de uma
mesma matriz (Roth, 2012). Nas entrevistas que realizamos, alguns dos membros
das comissões demonstraram estar atentos à questão regional e à complexidade da
categoria “pardo”:

Há alguns casos que influenciam muito a interpretação da comissão: a origem regional, a percepção da
cor que varia dependendo da região. Então uma pessoa vem do Sul do Brasil e tem a pele relativamente
clara para o Rio de Janeiro, mas ela sabe que no Sul tem uma predominância de pessoas brancas. Então
qualquer tonalidade mais escura já vira um elemento de discriminação naquela cultura e então a
pessoa vive a discriminação, e isso é um elemento importante. Também, por outro lado, há as pessoas
que vêm do Norte do Brasil, do Nordeste, e também têm características específicas, uma miscigenação
muito forte entre indígenas e negros, e pessoas que naquele lugar não se viam como negras, mas que
depois se viram. Então tem um conjunto de elementos que constituem a avaliação pelas comissões.
Em geral, dois elementos são muito centrais: a região e a classe.

A questão da indiodescendência de alguns “pardos” é um fator que aparece


com alguma frequência. Um membro de comissão relatou que isso o fez refletir
sobre os critérios de classificação mais usuais. Na sua opinião, é um equívoco
supor que o cabelo liso é necessariamente uma herança da branquitude e que não
pode denotar uma herança indígena. Outra participante relatou que a comissão
aceita “pardos” com aparente indiodescendência, por entender que essas pessoas
também podem sofrer racismo.
Contudo, apesar da sensibilidade às variações entre os “pardos”, é possível que
as práticas burocráticas criadas para desencorajar e prevenir fraudes possam afetar
a própria autodeclaração daqueles que estão no meio do continuum racial. As
categorias criadas para fins oficiais podem adquirir uma vida própria além da
intenção original dos seus formuladores (Roth, 2017) e já há evidências de que as
políticas de ação afirmativa mudaram a forma como as pessoas se identificam
etnorracialmente no Brasil, produzindo um crescente alinhamento entre as
categorias do Estado e a autoidentificação espontânea das pessoas (Bailey et al.,
2018). É razoável supor, nesse sentido, que as comissões de validação podem
redesenhar as fronteiras raciais brasileiras. Em um país onde os movimentos
negros costumavam incentivar os pardos de pele mais clara a se identificarem
como negros, como o processo de traçar linhas entre beneficiários e não
beneficiários afeta as identidades raciais, projetos políticos e o próprio
entendimento de “raça”?
No que tange a operacionalização da política pública, é possível que, ao focar
no combate à fraude, os comitês possam gerar formas de exclusão, sobretudo de
“pardos” pobres. Como pudemos verificar, em muitas instituições, a própria
existência das comissões em si é percebida frequentemente como uma ferramenta
para desencorajar as fraudes. Em artigo do jornal O Globo, quando 18% dos
candidatos não compareceram à “triagem” realizada pela comissão, a
Universidade Federal do Rio de Janeiro interpretou o fato como evidência de que
a autoidentificação dos desistentes era fraudulenta (Souza e Corrêa, 2020).
No entanto, essa interpretação pressupõe que as pessoas têm certeza de sua
identificação racial, o que pode não ser o caso. Além disso, os “pardos” pobres são
geralmente os mais incertos a respeito da sua classificação e os mais propensos a
sofrer os efeitos do racismo sem associar suas experiências à discriminação racial,
atribuindo-a frequentemente à sua classe social (Santana, 2016; Moraes Silva e de
Souza Leão, 2012; Daflon et al., 2017).[13] À medida que aumenta o controle
sobre as ações afirmativas nas comissões, é possível que essas pessoas desistam de
concorrer às cotas raciais.
Alguns relatos das próprias comissões contribuem para essa hipótese:

Muitas pessoas negras, a gente perguntava se elas tinham sofrido racismo, e elas diziam que não.
Outras pessoas que nós víamos como pardas, e o racismo que elas sofriam, elas diziam que era porque
‘ah, eu estou malvestida’ ou que eram perseguidas em shoppings, ou que não eram atendidas direito
em lojas, esse tipo de coisa.
Um fato que chamou atenção de um de nossos entrevistados é a tendência de
as pessoas assinalarem a categoria “pardo” mesmo sendo percebidas pelos
membros da comissão como “pretas”:
Também o que a gente estranha é que muitas pessoas que são
incontestavelmente negras:

assinalam, quando veem o documento […] como pardas. A gente não sabe se isso é uma insegurança
do candidato ‘olha, vai que alguém questiona que eu sou preto’, porque lá no formulário está preto,
pardo ou indígena. E quase todo mundo que passou pela comissão optou pelo pardo. uando coloca
preto a gente enxerga algum elemento de militância, cabelo trançado, uma camisa politizada, alguma
coisa. Ainda mais eu que fui de movimento estudantil por muito tempo, você fala, ‘não, essa pessoa
tem cara de militante’. Então é algo que a gente vê assim.

Evidências anedóticas da incerteza sobre a identificação racial podem ser


encontradas também nas pesquisas de usuários da internet no mecanismo de
pesquisa do Google. Como mostra a figura 1, os usuários brasileiros têm
mostrado um interesse crescente em aprender mais sobre as categorias usadas nas
políticas de ação afirmativa. Por exemplo, de acordo com o Google Trends, desde
2004, as pesquisas na web sobre o termo “pardos” tiveram um crescimento
constante e significativo. Os principais termos em ascensão associados à pesquisa
são “pele parda”, “pessoa parda”, “enem”, “raça parda”, “o que é cor parda” e “cor de
pele parda”.
Figura 1 – Pesquisas no Google em torno do termo “pardo” entre janeiro de 2004 e 14 de

maio de 2022

Fonte: Google Trends, 2022.

Nessas buscas, os usuários procuram informações a respeito de algo que está


em mudança. As ideologias racistas já proclamaram que os pardos eram uma
prova viva do embranquecimento da população, mas dos anos 1980 em diante, a
estratégia dos movimentos negros foi afirmar que os pardos eram negros.
Recentemente, alguns setores dos movimentos reacenderam o debate sobre o
lugar do pardo nas relações raciais brasileiras (Santos, 2018). Portanto, para
muitos potenciais beneficiários permanece incerto quem pertence a essa
categoria, o que pode levar os menos familiarizados com os discursos dos
movimentos negros a se autoexcluírem – e não necessariamente por serem de pele
mais clara ou por não merecerem cotas.

Uma nota (in)conclusiva


Neste capítulo, refletimos sobre como “raça” interage com procedimentos
burocráticos que valorizam indicadores empíricos “objetivos”, como
heteroclassificação e fenótipo e a especificação da “raça” ao nível individual. No
percurso, refletimos sobre como as comissões de validação veem as fronteiras
raciais brasileiras e podem estar contribuindo para modificá-las. Ao falar dos
dilemas enfrentados pelas comissões, procuramos chamar atenção para possíveis
consequências não intencionais dos procedimentos adotados, mas salientamos
também como os membros das comissões que entrevistamos tendem a identificar
e lidar com esses dilemas de forma sensível à complexidade da questão racial.
É importante ressaltar que, ao enfrentar esses debates, não estamos
argumentando que as ações afirmativas são desnecessárias, perigosas (Sowell,
2004) ou um novo tipo de imperialismo (Bourdieu e Wacquant, 1999).
Acreditamos que são políticas públicas fundamentais para corrigir desigualdades
históricas e reparar injustiças e que, portanto, devem ser continuamente avaliadas
e aprimoradas. Da mesma forma, para que as desigualdades raciais sejam tratadas
pela política pública, a operacionalização da “raça”, e sua consequente
arbitrariedade, é inevitável. Nosso objetivo é manter o debate aberto para que a
política e seus gestores sigam atentos aos pressupostos e consequências dessa
operacionalização.

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[11] A literatura recente sobre os processos de produção social da “raça” no Brasil do século XX tem

dedicado mais atenção ao plano das representações, imaginários, ideologias e classificações (Loveman, 2014;

Nobles, 2000) do que aos conflitos, negociações e coalizões entre grupos de interesse e o Estado que se

plasmaram em leis e formas de alocação de recursos que construíram e reificaram “raça” no pós-abolição

(Marx, 1998). Uma chave de compreensão promissora é investigar a relação entre formas de racialização,

elites e o processo de state-building brasileiro durante a transição do trabalho escravo ao livre (Reis, 1982).

Mantendo-se na coalizão de poder, as elites agrárias paulistas e nordestinas produziram uma verdadeira

segmentação regional do mercado de trabalho em torno de uma geografia racializada. Nesse sentido, a

solução imigracionista não apenas resolveu o problema imediato da competição por mão de obra entre

Sudeste e Nordeste, manteve salários comprimidos, sustentou formas de coerção extraeconômica do trabalho
e controlou o mercado político (Reis, 1982), como também se vinculou a um projeto de nação em que o

branqueamento era altamente desejado (Hasenbalg, 2005). As políticas de branqueamento mediante a

imigração em massa dos europeus traduziram-se em vantagens para imigrantes e seus filhos e desvantagens

duradouras para os negros e seus descendentes, contribuindo para a construção e reificação da “raça” na vida

cotidiana e na estrutura social (Andrews, 1991; Monsma, 2010).

[12] Explorar o domínio das classificações raciais e da sua relação com as fronteiras entre os grupos pode

contribuir para elucidar processos fundamentais para a produção social da “raça”. F. James Davis (1992)

voltou-se para a análise das origens históricas da one-drop rule (a regra de hipodescendência praticada nos

Estados Unidos) e demonstrou a importância de se olhar para as leis e censos populacionais para entender

como a “raça” é feita e transformada pelo Estado. Se até a metade do século XIX, diversas regiões dos Estados

Unidos reconheciam a existência de uma categoria social de “mulatos”, essa situação mudou substantivamente

com a aproximação da guerra civil e as mudanças que passaram a ser introduzidas nas leis e nas burocracias

estatais.

[13] Em uma pesquisa sobre experiências de discriminação cotidiana, constatou-se que os “pardos” pobres

reportam serem maltratados, desrespeitados, mal atendidos em lojas, restaurantes e portarias de edifícios,

serem tratados como pessoas suspeitas ou desonestas e desrespeitados pela polícia, mas não costumam

associar essas experiências à discriminação racial, supondo que se trata de um efeito da sua classe social

(Daflon et al., 2017).


Capítulo V

Aderências e resistências às ações


afirmativas na pós-graduação
Anna Carolina Venturini

Introdução

Nas últimas décadas, o sistema brasileiro de ensino superior passou por


diversas transformações, principalmente relacionadas à criação de políticas de
ação afirmativa e à ampliação do acesso de alunos de escolas públicas, de baixa
renda e autodeclarados pretos, pardos e indígenas aos cursos de graduação.
Apesar de ser usualmente associada à reserva de vagas ou cotas, a ação
afirmativa é conceituada de forma ampla pela literatura especializada, podendo
referir-se a uma série de políticas e iniciativas que promovem benefícios do bem-
estar social e uma ampla gama de direitos civis, políticos e culturais aos mais
variados grupos sociais que são ou foram objeto de discriminação (Feres Júnior et
al., 2018). Assim, a ação afirmativa não se restringe a políticas com recorte étnico-
racial, englobando também grupos diferenciados socialmente em razão de gênero,
sexo, casta, local de moradia, região de origem, religião, deficiência, condição
socioeconômica e outras condições de vida ( Jenkins e Moses, 2014).
A criação dessas políticas não se dá de forma tranquila e sem conflitos. Pelo
contrário: a adoção das cotas nos cursos de graduação no início dos anos 2000,
especialmente as de recorte racial, teve grande repercussão negativa na imprensa
(Kamel, 2006)[14] e no meio acadêmico (Kaufmann, 2012; Maggie e Fry, 2004).
Guimarães (1996, p. 249) lembra que, para alguns, a criação de ações afirmativas
representava o reconhecimento de que havia diferenças étnicas e raciais entre os
brasileiros, algo que contrariava o “mito” da democracia racial.
Além do debate na mídia, a discussão a respeito das ações afirmativas com
recorte racial já foi alvo de diversas ações na Justiça por aqueles que se sentiram
prejudicados pela reserva de vagas e por aqueles que entendiam que a política era
incompatível com a Constituição Federal de 1988. O debate chegou ao STF pela
primeira vez por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) n.º 186/DF, ajuizada pelo partido Democratas (DEM) em face da
política de cotas étnico-raciais adotada pela Universidade de Brasília (UnB). A
ADPF 186 foi julgada improcedente por unanimidade em 26/4/2012, tendo sido
considerada constitucional a criação de políticas de reserva de vagas pelas
universidades brasileiras.[15] Subsequentemente, em 2016 a Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) ajuizou a Ação Declaratória de Constitucionalidade
(ADC) 41, a qual foi julgada pelo STF em 8/6/2017 e reconheceu a
constitucionalidade da Lei n.º 12.990/2014 (Andrade, 2017), que reserva 20%
das vagas oferecidas em concursos públicos para provimento de cargos efetivos e
empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta
dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário).
Dados recentes mostram que as ações afirmativas tiveram um efeito positivo
sobre a inclusão de estudantes negros no ensino superior.[16] As desigualdades
entre brancos e negros ainda persistem, mas pesquisas demonstram que a adoção
de ações afirmativas representou um passo importante na redução dessas
desigualdades. Na pós-graduação especificamente, um relatório de pesquisa da
Fundação Carlos Chagas aponta que os negros (pretos e pardos) representam
apenas 15,2% dos doutores titulados e 19,3% dos mestres, o que corresponde a
uma média de 18,1% do total de titulados na pós-graduação (Artes, 2015, 2016,
2018). Esses percentuais estão longe de se aproximar da composição racial da
população brasileira, o que é essencial para a redução das desigualdades raciais e
promoção da igualdade de oportunidades (Feres Júnior, 2006; Rawls, 1971; Silva,
2006).
Guimarães (2009, p. 174) nos lembra que "a sobrerrepresentação de pessoas
com uma mesma característica ‘naturalizada’, em qualquer distribuição de
recursos, deve ser investigada, não porque seja anormal, mas porque ‘sexo’, ‘cor’,
‘raça’ e ‘etnia’ são construções sociais, usadas, precisamente, para monopolizar
recursos coletivos”. A baixa participação de determinados grupos em cursos de
pós-graduação está relacionada a um processo histórico de exclusão no sistema de
ensino superior do país. É importante ter em mente o quanto essas desigualdades
no acesso ao ensino superior (graduação e pós-graduação) contribuem para a
trajetória geral da desigualdade no Brasil (Lima e Prates, 2015).
Ações afirmativas já vêm sendo adotadas para o ingresso em alguns cursos de
pós-graduação stricto sensu de universidades públicas desde 2002 (Venturini,
2019). Entretanto, tais medidas são pouco conhecidas e sofrem com a falta de
análise por parte da literatura acadêmica, havendo apenas alguns poucos estudos
dedicados às experiências específicas de determinados programas (De Fiori et al.,
2017; Goldman e Banaggia, 2017; Pereira, 2017; Santos, 2010; Souza, 2017) e
universidades (Diniz Filho et al., 2016).
A Universidade Estadual da Bahia (Uneb) foi a primeira a criar, em 2002,
uma política de ação afirmativa voltada para a entrada de negros e indígenas em
cursos de pós-graduação. Isso mostra que as medidas para a pós-graduação
nasceram ao mesmo tempo que as destinadas à graduação, mas seu
desenvolvimento e difusão ocorreram de forma diferente (Venturini, 2019). No
período de 2002 a 2011, o número de programas que discutiram a criação de
ações afirmativas é baixíssimo (Venturini, 2019). Todavia, ainda que alguns
programas tenham criado políticas afirmativas paralelamente ao desenvolvimento
das medidas para graduação ao longo da década de 2000, a temática apenas
passou a ser discutida com mais intensidade a partir de 2012.
Em 2015, o MEC e a Capes criaram um grupo de trabalho (GT)[17] para
discutir medidas de inclusão na pós-graduação. No ano seguinte e às vésperas do
impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o MEC emitiu a Portaria Normativa
n.° 13, de 11 de maio de 2016, a qual estabeleceu que as Instituições Federais de
Ensino Superior deveriam apresentar propostas sobre a inclusão de pretos, pardos,
indígenas e estudantes com deficiência em seus programas de pós-graduação no
prazo de 90 dias. Embora a portaria apenas estabeleça que os programas deveriam
apresentar propostas de inclusão, vários deles entenderam que a criação de ações
afirmativas era obrigatória, o que contribuiu para o aumento do número de
instituições a adotarem esse tipo de política (Venturini, 2021; Venturini e Feres
Júnior, 2020).
Em 2020, no entanto, o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub
publicou a Portaria n.º 545/2020, revogando a Portaria Normativa n.º 13/2016.
[18] O episódio foi marcado pela desinformação, e diversos veículos de imprensa
afirmaram erroneamente que o Ministro havia acabado com as ações afirmativas
na pós-graduação. Em decorrência disso, foram apresentados projetos de lei sobre
o tema (PL n.º 3489/2020,[19] PL n.º3402/2020[20] e PL n.º 3425/2020,[21]
na Câmara dos Deputados, e PL n.º 3432/2020,[22] no Senado), os quais ainda
não foram submetidos à apreciação das comissões e do Plenário das respectivas
casas legislativas (Venturini, 2021).
A compreensão do ingresso das ações afirmativas na agenda dos programas de
pós-graduação das universidades públicas brasileiras envolve a análise dos
argumentos mobilizados quando da sua criação ou não pelas instituições. É sobre
isso que o presente capítulo se debruça. Na primeira parte, apresento uma breve
explicação sobre a metodologia adotada. Em seguida, passamos a um resumo dos
argumentos utilizados em favor da criação de ações afirmativas. Por fim, são
apresentados os principais argumentos apontados para justificar a não criação
dessas medidas.

Notas metodológicas

A pesquisa analisou os programas de pós-graduação acadêmicos (mestrado e


doutorado) de universidades públicas credenciados pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) com notas entre 3 e 7,[23]
totalizando 2.763 programas. Os dados coletados indicaram que, em janeiro de
2018, já havia 737 programas acadêmicos com algum tipo de ação afirmativa, o
que representava 26,4% de todos os programas. Algumas políticas decorreram de
decisões dos próprios programas, enquanto outras foram criadas por
determinação de leis estaduais ou de resoluções do Conselho Universitário válidas
para todos os cursos de pós-graduação de determinada universidade.
Após o levantamento dos programas quanto à adoção de ações afirmativas,
ficou claro que os dados documentais não eram suficientes para compreender suas
motivações para criação ou não dessas políticas. Em vista disso, a estratégia
adotada foi realizar entrevistas semiestruturadas (Hochschild, 2005; Kapiszewski,
2015; Mosley, 2013) que possibilitariam um aprofundamento dos casos.
O primeiro bloco de entrevistas foi realizado com integrantes, de gestões
atuais ou passadas, das reitorias de universidades que aprovaram resoluções
determinando que todos os programas de pós-graduação instituíssem ações
afirmativas. Nessa etapa, foram realizadas oito entrevistas. O segundo bloco foi
realizado com membros da equipe de coordenação, atuais ou passados, de
programas de pós-graduação das nove áreas do conhecimento.[24] Os casos
foram escolhidos por meio do método de amostragem aleatória aplicado sobre a
lista de programas de cada área. Subsequentemente, foram enviadas solicitações
por e-mail para os membros da coordenação dos selecionados. No total, 16
entrevistas foram realizadas. A área de Engenharias não possuía programas com
ação afirmativa criada por iniciativa própria[25] e nenhum programa com ação
afirmativa na área de Ciências Exatas e da Terra respondeu às solicitações de
entrevista.
Quadro 1 – Lista e codi cação dos entrevistados de programas e representantes de

universidades que aprovaram resoluções

Programas que criaram ações a rmativas por iniciativa própria

Código do Área do
Região Nota da Capes
Entrevistado Conhecimento

Entrevistado AG1 Ciências Agrárias Norte 4

Entrevistado Ciências
Sudeste 6
Bio1 Biológicas

Entrevistado S1 Ciências da Saúde Sudeste 4


Entrevistado H1 Ciências Humanas Sul 6

Ciências Sociais
Entrevistado SA1 Sudeste 6
Aplicadas
Entrevistado Linguística, Letras
Sul 5
LLA1 e Artes

Entrevistado M1 Multidisciplinar Norte 3


Programas que não possuem ações a rmativas

Código do Área do
Região Nota da Capes
Entrevistado Conhecimento
Entrevistado AG2 Ciências Agrárias Sul 5

Entrevistado Ciências
Sudeste 5
Bio2 Biológicas
Entrevistado S2 Ciências da Saúde Centro-Oeste 4

Fonte: A autora, 2022.


Entrevistado Ciências Exatas e
Sudeste 7
CET2 da Terra
Entrevistado H2 Ciências Humanas Sudeste 7
Ciências Sociais
Entrevistado SA2 Nordeste 5
Aplicadas
Entrevistado
Engenharias Sul 6
ENG

Entrevistado Linguística, Letras


Sul 7
LLA2 e Artes
Entrevistado M2 Multidisciplinar Norte 6

Universidades que aprovaram resoluções


Código do
Universidade Setor
Entrevistado(a)

Entrevistado
UFAM Pró-Reitoria de Pós-Graduação
UFAM
Entrevistado
UFMG Pró-Reitoria de Pós-Graduação
UFMG
Entrevistado Membro da comissão que elaborou a
UFMG
UFMG 2 proposta

Entrevistado
UFBA Pró-Reitoria de Pós-Graduação
UFBA
Entrevistado
UFPel Coordenação de Pós-Graduação
UFPel
Fonte: A autora, 2022.
Entrevistado
UFFS Pró-Reitoria de Pós-Graduação
UFFS
Entrevistado
UFG Pró-Reitoria de Pós-Graduação
UFG

Entrevistado Membro da comissão que elaborou a


UFG
UFG 2 proposta
Fonte: A autora, 2022.

As entrevistas foram transcritas e codificadas no soware NVivo e, em


seguida, as informações foram reescritas na forma de uma narrativa de estudo de
caso. Com base no material, foi possível identificar os principais argumentos
utilizados pelos programas para justificar a criação ou não de ações afirmativas.

uais problemas embasam a criação de ações a rmativas na pós-


graduação?

A literatura indica que as desigualdades educacionais, inclusive no ensino


superior, são marcadas pela cor/raça e que os indicadores relativos aos negros
(pretos e pardos) são muito inferiores aos dos brancos. Todavia, não se sabe muito
sobre as diferenças entre negros e brancos no acesso à pós-graduação: além de
serem poucos os trabalhos que tratam da criação de medidas de inclusão na pós-
graduação, também são escassos os dados a respeito da participação dos diversos
grupos étnico-raciais nesse nível educacional. Estudos iniciais a partir de dados
extraídos dos censos demográficos demonstram que a pós-graduação é composta
predominantemente por brancos e possui intensas desigualdades regionais,
étnico-raciais e econômicas (Artes, 2015, 2016; CGEE, 2012; Paixão et al.,
2010).
Partindo de uma análise do banco de dados divulgado pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) com
informações sobre gênero e raça declarados pelos doutores em seus currículos na
Plataforma Lattes, constata-se que os detentores de títulos de pós-graduação
stricto sensu são predominantemente brancos. Dentre os doutores registrados na
plataforma Lattes que declaram sua raça e cor,[26] os brancos representam
79,01%, enquanto há apenas 3,05% de pretos, 15,29% de pardos e 0,42% de
indígenas (gráfico 1). Os dados demonstram que a composição racial dos
doutores está bem distante da composição racial média do país segundo o último
censo demográfico, principalmente quanto a brancos, pretos e pardos.
A baixa participação de pretos e pardos em cursos de pós-graduação está
relacionada a um processo histórico de exclusão desses grupos das universidades
brasileiras, não apenas na pós-graduação, como também nos cursos de graduação.
Grá co 1 – Proporção de doutores segundo cor/raça[27]

Fonte: Venturini, 2019.

Nota: Elaboração a partir de banco de dados dos currículos Lattes disponibilizado pelo CNPq e dados do
Censo de 2010 do IBGE.

Na Plataforma Lattes e na Plataforma Sucupira, principais fontes de dados


sobre a pós-graduação brasileira, por exemplo, não há qualquer questão sobre
deficiência, identidade de gênero, nome social[28] ou situação de refúgio. Em
vista disso, os dados a respeito da participação desses grupos na pós-graduação são
escassos, quiçá inexistentes, visto que sua obtenção demanda o cruzamento de
dados de diversas plataformas governamentais em vez de serem abertos a todo e
qualquer interessado.
Apesar da ausência de dados e estudos aprofundados a respeito do acesso dos
diversos grupos sociais aos cursos de pós-graduação no Brasil, a desigualdade no
acesso é um dos principais fatores que ensejaram o início do debate sobre a criação
de políticas públicas que visassem incluir estudantes pertencentes a grupos
historicamente excluídos nos programas de universidades públicas brasileiras. Nas
entrevistas realizadas, foi possível identificar três formas principais de
representação do problema: (i) a desigualdade de oportunidades para acessar o
nível de pós-graduação; (ii) a sub-representação de estudantes de grupos sociais e
a falta de diversidade do corpo estudantil; e (iii) a falta de diversidade do corpo
docente. Vejamos como cada uma dessas representações foi construída.

Desigualdade de oportunidades no acesso à pós-graduação

A construção do problema que deveria ser remediado com as ações


afirmativas enquanto desigualdade de acesso à pós-graduação foi mencionada
pelos representantes da UFG e pelos entrevistados M1, H1 e SA1.
De acordo com o Entrevistado UFG (2018), as ações afirmativas deveriam ser
criadas para corrigir um problema nas condições iniciais dos estudantes que se
candidatam à pós-graduação. Isto é, os grupos que têm condições iniciais
diferentes e entram na competição por vagas com uma desvantagem deveriam ser
beneficiados pela política. Ainda segundo ele, essa forma de representação do
problema foi fundamental para convencer a comunidade acadêmica a iniciar um
debate sobre a questão e criar uma comissão para pensar nas alternativas possíveis.
Já o Entrevistado H1 (2018) ressaltou que, em seu programa, o problema foi
construído no sentido de demonstrar para os tomadores de decisão que o
conjunto de alunos não representava a diversidade social do país e que era
necessário criar estratégias para “permitir que esses grupos que frequentemente
não ingressam em sistemas de pós-graduação pudessem ingressar no âmbito do
programa”. A importância do contato prévio com determinados grupos em razão
das temáticas e linhas de pesquisa da universidade ficou clara durante a discussão
sobre a representação do problema. O coordenador ressaltou que, como o
programa possui uma linha de pesquisa de gênero e sexualidade muito forte e
existente há quase 30 anos, foi destacado o problema dos transexuais, que seriam o
segmento do grupo LGBT com mais dificuldade de acesso ao sistema de pós-
graduação.
Nos programas do Entrevistado SA1 (2018), por sua vez, a questão das
desigualdades foi uma das formas de construção do problema. Segundo o
coordenador, a tentativa de reduzir as desigualdades explícitas na sociedade é
fundamental para avançar na discussão da pauta e demonstrar que “a
discriminação não se encerra uma vez que se tenha conseguido isso na graduação”.

Sub-representação de grupos e falta de diversidade no corpo


discente

A baixa diversidade do corpo discente dos programas de pós-graduação e da


sub-representação de determinados grupos sociais foi ressaltada na maioria das
entrevistas. Segundo a Portaria Normativa nº 13/2016 emitida pelo Ministério da
Educação,[29] as ações afirmativas para negros, indígenas e pessoas com
deficiência têm por objetivo ampliar a diversidade étnica e cultural do corpo
discente (Brasil, 2016b). A diversidade étnica também é um dos argumentos
utilizados pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e pela Universidade
Federal de Goiás (UFG), instituições que aprovaram políticas afirmativas para
todos os seus cursos de pós-graduação em 2002 e 2015, respectivamente.
Comparada aos outros argumentos utilizados para a justificação das ações
afirmativas, a diversidade tem grande aceitação por conceber as ações afirmativas
de uma perspectiva utilitarista – voltada para o bem comum – e não de uma
perspectiva de compensação de injustiças passadas (Feres Júnior, 2006, p. 54-58;
Sabbagh, 2007, p. 43). Ao invocar-se a promoção da diversidade, a necessidade de
tratamento diferenciado em razão de injustiças passadas perde importância
(Warikoo, 2016), não sendo necessário mensurar e comprovar os danos causados
aos beneficiários da ação afirmativa, o que dilui a ideia de reparação (Feres Júnior,
2006, p. 54). Ademais, Feres Júnior (2006) ressalta que a diversidade trabalha, de
certa forma, contra o argumento da justiça social, visto que a questão da
desigualdade e da discriminação no presente é diluída pela valorização da
diferença em termos de cultura e etnia, conceitos mais vagos e de difícil
operacionalização.
A justificação das ações afirmativas no ensino superior com base na
necessidade de obter um corpo estudantil mais diversificado é bastante utilizada,
especialmente nos Estados Unidos, em decorrência das decisões da Suprema
Corte.[30] No caso “Regents of the University of California v. Bakke”, julgado em
1978, a decisão final escrita pelo juiz Lewis Powell reconheceu o objetivo de ter
um corpo discente diverso como compatível com a Constituição, autorizando,
assim, que o fator raça pudesse ser considerado um elemento adicional no
processo de admissão de alunos para cursos de graduação e também de pós-
graduação.
A diversidade intelectual é apresentada como tendo um valor instrumental na
esfera educacional, sendo a variedade de pontos de vista e a interação entre
estudantes com diferentes experiências e ideias[31] um elemento-chave para o
processo de produção e difusão do conhecimento. No caso da pós-graduação,
Liliana Garces (2012, p. 16-17) argumenta que, em várias áreas de estudo desse
nível educacional, a formação de um corpo discente diversificado é essencial para
a compreensão de certos objetos de pesquisa e para a preparação de indivíduos
para a prática profissional em ambientes multirraciais, especialmente em
sociedades diversas e com linhas étnico-raciais às vezes polarizadas.
No entanto, Elizabeth Anderson (2002, p. 1.221) sustenta que o argumento
de que a diversidade racial promoverá a discussão de assuntos sociais, políticos e
culturais e enriquecerá as perspectivas expressas no ambiente acadêmico é de
difícil aceitação e relevância cognitiva para investigações em matemática,
engenharia ou ciências “duras”. Portanto, a utilização do argumento da
diversidade dissociado da justiça social enfraquece a justificação das ações
afirmativas em todas as áreas de uma universidade. Como se verá adiante, nota-se
essa dificuldade de aceitação por parte de programas de pós-graduação brasileiros.
Na visão do Entrevistado UFFS (2018), a ausência de um corpo estudantil
diverso em termos étnicos, sociais e culturais tem impacto na formação do quadro
de pesquisadores do país. O entrevistado ressaltou que “toda a pós-graduação
brasileira essencialmente é branca” e que integrantes de outros grupos não estão
presentes no nível que forma pesquisadores e docentes do ensino superior. Dessa
forma, a criação de ações afirmativas mostrava-se fundamental para ampliar a
diversidade nesse âmbito.
Já o Entrevistado UFBA (2018) ressaltou que o problema foi construído no
sentido de demonstrar que “a ciência no Brasil e no mundo ganhará em qualidade
se ela se abre para diversidade étnica, de gênero e social”. Portanto, em vez de
construir o problema como uma questão de reparação de passivos históricos, os
empreendedores da universidade optaram por demonstrar que a ausência de
diversidade gerava efeitos negativos para a qualidade das pesquisas,
comprometendo a ciência. Para tanto, foram apresentados estudos
internacionais[32] mostrando os benefícios da diversidade em ambientes
educacionais e que tipos de melhoria seriam gerados com a sua ampliação.
Por fim, o Entrevistado UFMG (2018) ressaltou que o problema foi
construído no sentido de demonstrar que era necessário transformar a pós-
graduação da universidade em um espaço que pudesse acolher a diversidade.

Diversidade do corpo docente

Na UFPel, além da ausência de diversidade no corpo discente, também foi


destacada a questão do corpo docente. Segundo o ex-coordenador de pós-
graduação, em 2017 a universidade tinha em torno de 1.400 professores efetivos,
mas apenas 20 eram negros. A cidade de Pelotas possui uma das maiores
comunidades negras do Rio Grande do Sul, portanto, o corpo docente da
universidade evidentemente não era representativo da população local. Além
disso, era notável a diferença de cor da graduação e da pós-graduação. Então,
segundo ele, tendo em vista que o ingresso na carreira acadêmica depende do
doutorado, o problema foi construído no sentido de demonstrar que a criação de
ações afirmativas iria contribuir para a formação de um corpo docente mais
diverso e representativo da região e do país. Para tanto, a estratégia adotada foi
iniciar o debate com uma proposta de resolução em mãos e levar informações para
os docentes, de forma a “dar segurança para aqueles que não sabiam, não
conheciam, para que tivessem segurança e entendessem o porquê e como fazer”.
Conclui-se, portanto, que todas as representações do problema giraram em
torno da baixa presença de determinados grupos sociais na pós-graduação e de
como isso se relaciona com dificuldades no acesso e diferenças nas condições
iniciais dos candidatos. Os benefícios que um corpo estudantil mais diversificado
traria em termos de qualidade de pesquisa e formação de futuros docentes e
pesquisadores também foram levantados nas discussões, especialmente enquanto
estratégia de convencimento de grupos menos favoráveis à criação dessas políticas.

Principais motivações para a não criação de ações a rmativas na pós-


graduação

Para um melhor entendimento das políticas de ação afirmativa na pós-


graduação, é fundamental também analisar o porquê de alguns programas de pós-
graduação brasileiros não terem criado ações afirmativas, incluindo aqueles que
não discutiram a questão e os que tiveram propostas rejeitadas por seus
colegiados. Nas entrevistas, os principais argumentos contrários identificados
foram: (i) meritocracia; (ii) as ações afirmativas na graduação reduziram as
desigualdades de acesso; (iii) excelência acadêmica e avaliação dos PPGs; (iv)
processo seletivo já permite o ingresso de pessoas diversas; e (v) programas de
perfil técnico. Vejamos como cada um desses argumentos foi construído.

Meritocracia

Em geral, a meritocracia é vista como um sistema de valor por meio do qual


recompensas são distribuídas com base em qualidades pessoais, talentos e esforços
individuais e realizações, determinando, assim, o posicionamento dos indivíduos
na hierarquia social (Alon e Tienda, 2007, p. 489; Warikoo, 2016, p. 22).
Os dados apontam que o principal argumento apresentado contrariamente à
criação de ações afirmativas na pós-graduação é justamente que elas
representariam uma violação da meritocracia. Em todas as entrevistas, os
professores dos programas com e sem ação afirmativa ressaltaram a questão, seja
como argumento mencionado ao longo das discussões para aprovação das
políticas, seja como uma das justificativas apresentadas pelos programas que não
as criaram.
De acordo com o Entrevistado ENG (2019), a questão é extremamente
evidente em seu programa, visto que o processo seletivo é bastante rigoroso e
multidimensional, envolvendo a análise de cartas de recomendação, currículo,
histórico e índice de desempenho acadêmico da graduação, nota do Exame
Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) da instituição em que o
candidato se formou, conhecimento de idiomas estrangeiros, o que o candidato
fez após o término da graduação e por que ele quer fazer mestrado. Em vista disso,
o Entrevistado ENG afirmou que seria muito difícil a criação de ações afirmativas,
pois elas, a depender de sua forma de funcionamento, poderiam ser vistas como
uma violação da meritocracia.
Desde a criação das primeiras políticas de ação afirmativa no ensino superior,
críticas em razão de um suposto abrandamento do critério de mérito são feitas. O
argumento é comum tanto nas discussões das políticas para ingresso em cursos de
graduação como no recente debate sobre as medidas criadas por programas de
pós-graduação. Reforça-se, assim, o princípio da meritocracia, segundo o qual o
candidato mais qualificado deve ser sempre selecionado (Sabbagh, 2011, p. 472).
Tal argumento tem como base a ideia de que o merecimento, ou mérito, dos
candidatos é aferido por seu desempenho nos exames de seleção (Alon e Tienda,
2007; Guinier, 2015).
No entanto, os sistemas meritocráticos são caracterizados pela competição e
pela igualdade de oportunidades, de modo que “em um sistema verdadeiramente
meritocrático, a igualdade de oportunidades gera alto grau de mobilidade social,
porque o talento, sem restrições de origem social, sobe ao topo” (Alon e Tienda,
2007, p. 489).[33] Ocorre, porém, que não é possível falar em igualdade de
oportunidades em uma sociedade altamente estratificada, tal como a brasileira.
Logo, o mérito que é medido sem que exista igualdade de oportunidades entre os
indivíduos não é um mérito real e acaba por reproduzir disfarçadamente as
desigualdades de oportunidades.
Em vista disso, o mérito como um sistema de recompensas deveria ser julgado
de maneira mais sensível às desigualdades (Sen, 2000, p. 14; Warikoo, 2016, p.
90), de modo que sua avaliação seja calibrada de acordo com as circunstâncias de
vida dos candidatos, analisando as realizações no contexto das oportunidades que
cada pessoa teve ao longo da vida.
Em estudo sobre as seleções em programas de pós-graduação dos EUA,
Posselt (2016, p. 8-9) destaca que a forma como o mérito é definido pelo corpo
docente é complexa e dinâmica, de modo que o que é considerado um candidato
de qualidade varia de acordo com o comitê, o departamento, a disciplina e a
universidade, envolvendo uma série de inferências sobre os candidatos. Portanto,
é fundamental pensar em quem está definindo o que é desejável nos candidatos,
como isso é definido e quais são as consequências dessas escolhas.
Outra crítica feita às ações afirmativas relaciona-se à suposta queda de
qualidade no ensino superior em razão da entrada de alunos sem o necessário
nível educacional. Segundo o Entrevistado LLA2 (2019), quando foram iniciadas
as discussões sobre a criação de ações afirmativas em seu programa, diversos
docentes apontaram que os cotistas não iriam acompanhar o curso.
Warikoo (2016, p. 47) aponta que crenças sobre desigualdades raciais de
pessoas brancas são influenciadas por seu grau de exposição à diversidade racial.
Esse argumento pode nos ajudar a compreender a diferença existente entre as
visões sobre meritocracia em programas de diferentes áreas do conhecimento. Nas
entrevistas, os argumentos contra a criação de ações afirmativas que invocam a
meritocracia mais intensamente e ignoram a desigualdade racial incorporada nas
instituições foram apresentados por docentes de áreas mais técnicas como
Engenharias e Ciências Agrárias. Segundo informações do Entrevistado AG2
(2018), as cotas deveriam ter como critério apenas a renda e não a identidade
étnico-racial dos candidatos. Como apontado por Ribeiro e Schlegel (2015), o
aumento do número de pretos e pardos acessando à universidade deu-se de forma
desigual, havendo maior participação desse grupo em áreas como Humanidades e
Ciências Sociais Aplicadas em comparação às áreas duras. Portanto, tais
posicionamentos podem estar relacionados à menor exposição de docentes dessas
áreas a estudantes de diferentes perfis étnico-raciais.

As ações a rmativas na graduação reduziram as desigualdades de


acesso
Outra justificativa contra a criação dessas políticas foi que elas não seriam
necessárias porque a universidade já possui ações afirmativas nos cursos de
graduação. Na visão de alguns entrevistados, o estudante pertencente a um dos
grupos de beneficiários que passou por um curso de graduação em uma
universidade pública teve uma formação de qualidade e pode competir em
igualdade de condições com os demais candidatos. Isto é, as desvantagens são
igualadas na graduação, de modo que ao final desse nível todos os estudantes têm
as mesmas condições, não sendo necessário criar ações afirmativas para o ingresso
na pós-graduação.
Segundo o Entrevistado AG2 (2018), nos cursos de graduação todos os
estudantes têm as mesmas oportunidades educacionais, independentemente do
contexto racial ou socioeconômico.

Entrevistadora: Você acha que, depois que as pessoas ingressam na universidade pública, todas têm as
mesmas oportunidades acadêmicas independentemente da raça e da origem socioeconômica?

Entrevistado: Eu acredito que sim. Inclusive, a gente tem até na graduação os programas de iniciação
científica, só para dar um pequeno exemplo, e outras ações de extensão que priorizam as pessoas de
baixa renda, de ações afirmativas.

Todavia, nota-se que essas percepções são baseadas em experiências específicas


de universidades e não em estudos e pesquisas que comprovem que a graduação é
capaz de igualar as oportunidades educacionais de todos os discentes. Além disso,
esse entendimento ignora o fato de que muitos estudantes de baixa renda
trabalham ao longo dos cursos de graduação, não podendo se dedicar a atividades
de pesquisa e extensão com a mesma intensidade de estudantes de renda superior.
No Brasil, os valores das bolsas de iniciação científica são baixos, o que pode ser
um impeditivo para aqueles que precisam complementar a renda de suas famílias.
Segundo Barbosa e Silva (2017), a IV Pesquisa de Perfil dos Graduandos das IFES
realizada pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Comunitários e
Estudantis (Fonaprace/Andifes) em 2016 aponta que a necessidade de trabalhar é
uma dificuldade enfrentada pelos alunos de graduação.
Além disso, chama atenção o fato de que, nas entrevistas, as percepções sobre
a capacidade igualadora de oportunidades da graduação foram apresentadas
apenas por professores de programas da área de Engenharias e Ciências Agrárias.
O Entrevistado ENG, apesar de sustentar que não há dados sobre a suficiência das
medidas para ingresso na graduação em termos de equalização de oportunidades,
argumentou que o fato de a pessoa cursar uma graduação já reduz o gap social e
econômico:

Porque assim, o fato de uma pessoa que venha de uma situação de vulnerabilidade social – ou raça ou
condição social – já ter feito uma graduação, nesse momento o gap social e econômico já diminuiu
pelo fato de ela ter feito uma graduação, entende? […]

Então […], só o fato de o cara ter feito a graduação já diminuiu o gap que tinha antes; ele já é uma
pessoa, no Brasil, que tem uma ascensão social pelo fato de ele ter feito uma graduação (Entrevistado
ENG, 2019).

Um discurso semelhante foi apresentado pelo Entrevistado CET2 (2019),


segundo o qual, diferentemente do que ocorre na seleção da graduação em que os
candidatos chegam de lugares distintos, na seleção dos cursos de pós-graduação o
candidato já teve uma formação e passou por um curso de graduação em boas
universidades. Nas palavras do entrevistado:

Eu acho que a gente tem que ser cuidadoso ao comparar quando você faz uma seleção para um curso
de graduação de quando você faz pra uma pós. Isso altera. Na graduação você vai pegar um cara que
estudou na [periferia], é negro, é não sei o que, comparar com o cara que estudou no [colégio privado
de elite] ou não sei o que… Agora, a gente aqui, a gente pode pegar na nossa pós alunos que estudaram
na [universidade federal], na [universidade estadual], na [universidade federal]… Já passaram por
cursos… Então se espera que eles tenham conseguido receber… Então tratar eles de formas muito
diferentes se eles passaram pela mesma formação é um pouco diferente de eu pegar um cara que
chegou na faculdade vindo de lugares que de fato são diferentes, né? A pós é diferente. A entrada na
pós é para aluno graduado e majoritariamente graduado nessas nossas boas universidades públicas, né?
[…] A pós-graduação todo mundo já está vindo aqui da universidade.
No caso de programas de outras áreas, alguns entrevistados destacaram não
ser possível afirmar com precisão se a graduação é capaz de igualar as
oportunidades, sendo necessário realizar estudos aprofundados para averiguar os
dados. Todavia, a impressão que eles têm – baseada nos cursos de graduação da
sua área em suas universidades – é que as oportunidades são iguais.
Outros apontaram que a graduação ainda não é suficiente para que as
oportunidades educacionais de estudantes pertencentes a grupos vulneráveis
sejam equalizadas e que a cota para ingresso por si só não é suficiente. Após o
ingresso, é necessário criar medidas para garantir a permanência dos estudantes
(como moradia e subsistência), bem como pensar sobre as oportunidades
acadêmicas disponíveis aos alunos cotistas. De acordo com o Entrevistado LLA2
(2019), as ações afirmativas para ingresso na graduação estão promovendo uma
mudança lenta ao incluir mais pessoas. Todavia, após o ingresso na universidade
pública e gratuita, alguns grupos continuam enfrentando dificuldades.
Em um estudo sobre a distribuição de oportunidades acadêmicas[34]
ofertadas aos discentes da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) a partir de
uma perspectiva racial, Leonardo Barbosa e Silva (2017) indica que todas as
atividades disponíveis “recrutam discentes por meio de processo seletivo ou edital,
valendo-se de critérios meritocráticos”, não havendo “impedimentos evidentes nos
documentos de chamada para recrutamento que excluam a priori negros e negras
das seleções”. Todavia, a análise dos dados aponta que “uma vez dentro das IFES,
negros e negras não acessam com equidade oportunidades acadêmicas
fundamentais para uma formação universitária com qualidade”, visto que
costumam acessar aquelas de menor status e reconhecimento.
Portanto, os estudos e as avaliações recentes sobre a implementação das
políticas para graduação assinalam a existência de limites e demonstram que
estudantes cotistas também enfrentam barreiras no acesso a oportunidades
acadêmicas.

Excelência acadêmica e avaliação dos PPGs

Os dados e informações coletados demonstram que outro aspecto do debate


sobre a criação de ações afirmativas para ingresso em cursos de pós-graduação é a
preocupação com a excelência acadêmica dos programas e a eventual redução da
nota da Capes.
Em estudo realizado a respeito das bancas de seleção de bolsas de pesquisa nos
EUA, Michèle Lamont (2009) aponta que a criação de ações afirmativas raciais e
de gênero é questionada por muitos em razão de um suposto sacrifício da
excelência acadêmica. Todavia, apesar de ser frequentemente evocada, não há um
consenso a respeito do que significa a excelência acadêmica e de como ela é
alcançada, visto que muitos são os atores e os critérios utilizados para avaliá-la. Na
visão da autora, a diversidade suporta a existência de vários tipos de excelência
(Lamont, 2009, p. 10) e pode funcionar como um critério adicional e não
alternativo de avaliação (Lamont, 2009, p. 202).
No caso das políticas implementadas pelo IFCH-Unicamp[35] e pelo
PPGAS-USP,[36] foram apresentadas objeções relacionadas a uma possível
redução da qualidade e excelência dos programas como consequência da criação
das cotas (De Fiori et al., 2017; Silva, 2016, p. 170). Embora não seja possível
dizer com certeza que a mera criação de cotas ou vagas suplementares resultaria
em uma redução da excelência, há preocupações com impactos na qualidade dos
programas e, consequentemente, na avaliação da Capes, devido, por exemplo, à
suposta necessidade de ampliação dos prazos de defesa das teses e dissertações,
decréscimo no aproveitamento dos estudantes e no impacto de suas publicações
(De Fiori et al., 2017, p. 57).
Os dados coletados demonstram que a preocupação com a excelência e a
qualidade é muito mais forte na pós-graduação do que fora no debate da
graduação. Essa maior preocupação parece estar relacionada não apenas à questão
do prestígio e status social da pós-graduação, mas principalmente ao fato de a
avaliação da Capes ser utilizada diretamente na alocação de recursos e bolsas entre
os programas de pós-graduação.
O Entrevistado LLA2 (2019) apontou que, pelo fato de seu programa ser
nota 7, há uma grande preocupação em manter a excelência, e isso é usado como
argumento para que não sejam feitas mudanças. Em sentido semelhante, o
Entrevistado SA1 (2019) sustentou que essa preocupação é mais forte na pós-
graduação em razão da lógica de incentivo à pesquisa e publicação de artigos em
revistas internacionais, o que faz com que os professores prefiram aceitar alunos
que já tenham as condições necessárias para produzir artigos de excelência.

Eu acho mais forte porque tem um pouco dessa questão da pós-graduação, são os professores que
trabalham mais ou menos com pesquisa, e o nosso sistema de incentivo à pesquisa da CAPES, por
conta de uma série de questões, vai incorporando um pouco essa questão da excelência acadêmica
medida apenas pela produção de artigos internacionais e por aí vai. Então, essa preocupação está mais
presente nos professores que estão na pós-graduação. Então, tem aquela coisa, eu preciso de um aluno
que acompanhe uma leitura mais aprofundada do tema. Será que ele vai chegar com uma base
necessária para, enfim, produzir artigos de excelência e por aí vai? Esse tipo de argumento na pós-
graduação, eu acredito, talvez seja mais forte. Possa ter uma resistência maior dos professores da pós-
graduação.

Ao ser indagado se a criação de ações afirmativas poderia impactar a


excelência acadêmica e a qualidade do programa, o Entrevistado ENG (2019)
afirmou que algumas áreas de concentração do programa têm poucos estudantes
de mestrado ou doutorado (quatro ou cinco), de forma que o ingresso de um
aluno via ação afirmativa poderia ter um peso muito grande. Ou seja, enquanto
nos cursos de graduação a amostra de alunos é muito grande, na pós-graduação a
base de alunos é bem menor, o que pode tornar o impacto maior.
Como nos lembra Warikoo (2016, p. 30), os estudantes que já possuem
habilidades desenvolvidas e conhecimentos sobre o conteúdo das disciplinas
tornam o trabalho dos docentes mais fácil. Dessa forma, em um programa de pós-
graduação, obviamente é muito mais fácil receber alunos que já estão “prontos” e
têm condições de acompanhar todas as atividades sem grandes dificuldades do
que receber alunos que necessitarão de um acompanhamento mais constante e
intenso por parte dos docentes. Além disso, é importante lembrar que os
programas de pós-graduação recebem um número de alunos bem mais baixo se
comparado com a graduação, de forma que existe a possibilidade de acompanhar
de perto os alunos e identificar quaisquer eventuais deficiências acadêmicas que
possam acontecer.

Processo seletivo já permite o ingresso de pessoas diversas

Alguns programas relataram que o formato do processo de seleção de


estudantes já permite o ingresso de candidatos com perfil diversificado, razão pela
qual não haveria necessidade de reservar vagas ou criar vagas adicionais.
Segundo o Entrevistado Bio2 (2018), o edital do processo seletivo de seu
programa não prevê número fixo de vagas de antemão, visto que a demanda varia
bastante, o que não permite a criação de uma cota. Dessa forma, em cada processo
seletivo a comissão faz uma avaliação dos alunos que se inscreveram e verifica
quais têm condições de ingressar. Um dos aspectos valorizados na seleção é a
realização de estágios de iniciação científica durante a graduação. Diante da
constatação de que a maioria dos alunos era de São Paulo, há alguns anos o
programa criou um projeto realizado no mês de janeiro que recebe estudantes de
todas as regiões do país. Durante esse projeto, os discentes têm contato com
laboratórios, pesquisas e orientadores, o que acaba auxiliando no processo seletivo
para o mestrado. Na visão do Entrevistado Bio2 (2018), essa foi uma forma de
possibilitar o ingresso de pessoas de diferentes regiões do país. É possível
argumentar que, nesse caso, foi criada uma modalidade mais branda de ação
afirmativa, na qual estudantes têm a possibilidade de se aprimorar antes de
pleitear uma vaga na pós-graduação.
O Entrevistado AG2 (2018) também ressaltou que o processo de seu
programa permite o ingresso de pessoas de diferentes perfis em razão da
disponibilidade de bolsas. Segundo o entrevistado, há muitos alunos das regiões
Norte e Nordeste que dependem das bolsas para se manter. Além disso, na visão
do entrevistado, também contribui para a diversidade o fato de o processo seletivo
apenas exigir currículo e histórico escolar dos candidatos, não havendo etapas
como entrevistas e outros requisitos mais rigorosos.
Na área de Engenharia, ao ser questionado sobre a capacidade do processo
seletivo de admitir pessoas de diferentes contextos socioeconômicos e raciais, o
Entrevistado ENG (2019) destacou que o programa recebe pessoas das mais
variadas classes sociais. Todavia, nada foi dito a respeito da questão étnico-racial.

Programas de per l técnico

Foi destacado por alguns programas que a questão do acesso de determinados


grupos não faria sentido do ponto de vista da diversidade em cursos de caráter
mais técnico. Na opinião do Entrevistado AG2 (2018), a diversidade é pensada
no sentido de como as experiências da pessoa podem contribuir e trazer soluções
para o contexto agrícola, mas não há uma separação por grupos.

A diversidade no contexto de ambiente de pesquisa sempre traz benefícios, o que nós buscamos. Eu só
não consigo entender na questão de grupos, entendeu? De ideias. Porque, assim, nosso curso é bem
técnico. […]. Então, aqui nós somos bem técnicos, o curso é bem técnico, então é difícil pra gente
imaginar essa questão da diversidade pra vocês; pra nós tem outro contexto. Agora assim, se tu pensar
pessoas de áreas diferentes para trazer ideias para a nossa área de ciências agrárias, sem dúvida. Agora
diversidade de grupos eu tenho uma dificuldade de imaginar e eu não vejo isso como um fator
limitante, a gente não enxerga esse sentido, a gente enxerga na questão mais técnica mesmo, que
experiências que ele tem que trazem para o nosso contexto agrícola que a gente pode estudar e trazer
soluções, nesse sentido. Não se ele é de um grupo assim, ou grupo assado, enfim, é mais ou menos a
experiência que ele tem dentro da nossa expertise de estudo, sabe?

Na área de Engenharias, ao ser questionado se a admissão de pessoas


pertencentes a grupos vulneráveis traria algum benefício ao programa, o
Entrevistado ENG (2019) afirmou que o benefício será para a sociedade caso os
alunos tenham um bom desempenho, mas que nessa área “o fato de a pessoa ser
preta, parda, não importa”. Na visão do entrevistado, a questão é técnica, não
importando de onde o candidato vem, mas, sim, o que ele poderá fazer pelo país
ou pelo grupo de pesquisa.

Então o nosso grupo aqui, sinceramente falando, nossos professores, nosso laboratório, não vai fazer
diferença nenhuma, pode vir o cara de qualquer raça, a gente não seleciona por isso aí e eu não sei até
que ponto que ele sendo de uma raça, da raça negra ou asiática, vai ter diferença positiva. A questão é
muito técnica: o cara sendo bom, sobre e deu pra bola, entendeu? (Entrevistado EENG, 2019)

O Entrevistado CET2 (2019) também afirmou não saber se “a ação


afirmativa, no caso do nosso programa de pós, teria um impacto grande em
termos de ingresso de alunos com perfis diferentes”. No entanto, o entrevistado
afirmou que a política poderia trazer o benefício de atrair pessoas menos
favorecidas financeiramente e mais motivadas e dedicadas, pois em sua
experiência, os alunos de famílias mais favorecidas nem sempre são extremamente
dedicados. Novamente, há um reconhecimento da questão socioeconômica, mas
não da atração de pessoas com diferentes identidades étnico-raciais.
Nota-se, portanto, que a justificação das ações afirmativas no ensino superior
com base na necessidade de obter um corpo estudantil mais diversificado é
bastante frágil e de difícil aceitação em área mais técnicas como nas ciências
“duras”, visto que os docentes dessas áreas não conseguem identificar os benefícios
que esse tipo de política traria para o programa.
Além disso, em algumas entrevistas também foi destacado o fato de alguns
programas de áreas “duras” não receberem grande quantidade de candidatos em
seus processos seletivos. O Entrevistado CET2 (2019) afirmou que o programa
tem uma grande dificuldade de atrair alunos com boa qualificação para o curso de
pós-graduação, uma vez que são muitos cursos e não há tantas pessoas querendo
fazer pós na área, de modo que às vezes sobram bolsas de mestrado. Em vista
disso, o Entrevistado CET2 considera que talvez a criação de cotas fosse inócua:
“essa situação de cota me parece uma coisa importante quando você está lidando
com uma situação em que há uma competição”, isto é, quando há um número
considerável de pessoas competindo pelas vagas do programa. Inclusive, segundo
o entrevistado, ele nunca ouviu falar de um aluno indígena que tenha se
candidatado a uma pós-graduação na área do programa.

Outros argumentos

Além dos argumentos apontados acima, alguns programas de pós-graduação


apresentaram justificativas mais específicas. A questão da falta de bolsas de
estudos foi mencionada pelo Entrevistado LLA2 (2019), segundo o qual, apesar
de se tratar de um programa de excelência, há déficit de bolsas. O fato de o
programa não conseguir garantir uma quantidade razoável de bolsas para seus
estudantes dificulta a criação de ações afirmativas, pois não é possível garantir
condições de permanência aos beneficiários.
Também foi apresentado o argumento de que, antes de discutir a criação de
ações afirmativas na pós-graduação, a melhor estratégia a ser adotada seria realizar
“um estudo profundo do impacto das ações afirmativas no Brasil na graduação”
(Entrevistado ENG, 2019). Trata-se de um argumento muito semelhante àquele
apresentado durante as discussões das ações afirmativas na graduação, em que se
sustentava que primeiro era necessário melhorar a qualidade do ensino
fundamental e médio antes de criar políticas de acesso ao ensino superior.
Por fim, outro argumento contrário à discussão da questão foi o fato de a
universidade ainda não ter aprovado uma resolução em seus órgãos colegiados
(Câmaras e Conselho Universitário). Na opinião do Entrevistado ENG (2019),
os programas de pós-graduação da universidade não irão implantar uma política
se a Câmara de Pós-Graduação não estiver discutindo a temática.

Considerações nais

Este capítulo dedicou-se à compreensão da perspectiva dos atores que são


favoráveis ou que se opõem à política de ações afirmativas na pós-graduação, de
modo a avaliar os motivos e justificativas apresentados.
Para a maioria dos programas que criaram esse tipo de política, a ação
afirmativa era vista como uma alternativa para reduzir o problema da
desigualdade de oportunidades de acesso ao nível de pós-graduação. Com relação
aos programas que não as criaram, os dados coletados indicam que o argumento
da meritocracia é ainda mais forte nas discussões sobre ações afirmativas para pós-
graduação, visto que esse nível educacional é considerado um espaço de excelência
no qual apenas os mais qualificados devem ingressar.
Também fica evidente que a pós-graduação é marcada pela preocupação com
a excelência acadêmica e a avaliação da Capes. Isso parece estar relacionado ao fato
de a avaliação representar não apenas um reconhecimento e marcador de prestígio
social e acadêmico, mas também um critério para alocação de recursos entre os
programas.
Ademais, constatou-se que os programas de áreas do conhecimento tidas
como mais duras – tais como Ciências Agrárias, Exatas e da Terra e Engenharias –
apresentam argumentos no sentido de que as desigualdades no Brasil são sociais e
não raciais, de modo que não seria adequado considerar a raça dos candidatos.
Vale destacar, ainda, que os programas de perfil mais técnico demonstraram não
reconhecer os benefícios que eventual diversidade do corpo discente traria para o
programa, pois, segundo eles, bastaria que os candidatos fossem bons e dedicados.
Portanto, constata-se que a justificação das ações afirmativas com base na
diversidade é mais frágil e de difícil aceitação em áreas mais técnicas.
Os processos de admissão podem ser uma oportunidade para que os docentes
reflitam criticamente sobre sua própria prática profissional e sobre o papel da pós-
graduação na redução das desigualdades. A pós-graduação tem como missão e
papel social a formação de novos pesquisadores, razão pela qual é necessário que
os programas se preocupem com o aumento das oportunidades e os docentes se
esforcem e se dediquem ao acompanhamento de seus alunos.
É claro que a desigualdade no Brasil não será resolvida apenas com a
modificação dos processos seletivos dos programas de pós-graduação, já que isso
atinge uma parcela pequena da população. Todavia, a pós-graduação importa
muito em razão de seu papel e valor simbólico e prestígio na sociedade e porque
ela oferece chances de mobilidade social.

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[14] Sobre a repercussão na imprensa, vide: Campos (2014); Campos et al. (2013b); Daflon e Feres Júnior

(2012); Feres Júnior (2011).

[15] Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.° 186/DF. Disponível em:

http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6984693. Acesso em: 22 out.

2014.

[16] “Em 3 anos, 150 mil negros ingressaram em universidades por meio de cotas”. Disponível em:

https://www.mdh.gov.br/noticias_seppir/noticias/2016/03-marco/em-3-anos-150-mil-negros-ingressaram-

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sao-maioria-nas-universidades-publicas-diz-ibge,70003088013. Acesso em: 14 nov. 2019.

[17] Portaria MEC n.º 929/2015 e Portaria Capes n.º 149/2015.

[18] Sobre isso, vide Brito (2020). Disponível em:

https://www.folhape.com.br/colunistas/blogdafolha/portaria-editada-por-weintraub-que-revoga-cotas-na-

pos-graduacao-e-alvo-de-acoes-no-stf/18658/. Acesso em: 14 dez. 2021; e Folhapress (2020). Disponível

em: https://www.otempo.com.br/brasil/weintraub-acaba-com-cotas-para-negros-e-indigenas-na-pos-

graduacao-1.2350659. Acesso em: 14 dez. 2021.

[19] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?

idProposicao=2256140.

[20] Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?

idProposicao=2255581. Acesso em: 14 dez. 2021.

[21] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?

idProposicao=2255756. Acesso em: 14 dez. 2021.

[22] Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/142645. Acesso em:

14 dez. 2021. Acesso em: 14 dez. 2021.

[23] Os programas de pós-graduação (mestrado, doutorado e mestrado profissional) são submetidos a uma

avaliação pela Capes a cada 4 anos e recebem notas distribuídas entre 1 e 7, sendo que “os programas que

receberem notas 1 e 2 têm canceladas as autorizações de funcionamento e o reconhecimento dos cursos de

mestrado e/ou doutorado por ele oferecidos”.

[24] A Capes organiza o conhecimento em nove grandes áreas: Ciências Exatas e da Terra; Ciências

Biológicas; Engenharias; Ciências da Saúde; Ciências Agrárias; Ciências Sociais Aplicadas; Ciências
Humanas; Linguística, Letras e Artes; e a área Multidisciplinar.

[25] Todos os programas dessa área criaram ações afirmativas em decorrência de resoluções do conselho

universitário ou de leis estaduais.

[26] A autodeclaração étnico-racial dos pesquisadores passou a ser exigida no cadastro da Plataforma Lattes

no ano de 2013. Todavia, a questão contém as alternativas “não informado” e “não desejo declarar”, o que

permite que pesquisadores não indiquem sua raça/cor.

[27] As proporções indicadas no gráfico referem-se aos doutores registrados na plataforma Lattes que

declararam sua raça e cor – o que corresponde a 78,77% do total de cadastrados.

[28] Nome social é o prenome adotado pela mulher ou homem trans e pelas travestis. É o nome pelo qual

preferem ser chamadas/os cotidianamente, em contraste com o nome oficialmente registrado que não reflete

sua identidade de gênero. A legalização de seu uso foi um dos elementos que contribuiu para o acesso da

população trans ao ensino superior (Camillo Bonassi et al., 2015; Scote, 2017). Como exemplo, vide a

Portaria n.° 233, de 18 de maio de 2010: Art. 1.º Fica assegurado aos servidores públicos, no âmbito da

Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional, o uso do nome social adotado por travestis e

transexuais. Parágrafo único. Entende-se por nome social aquele pelo qual essas pessoas se identificam e são

identificadas pela sociedade.

[29] A Portaria Normativa n.º 13/2016 estabelece que as Instituições Federais de Ensino Superior deveriam

apresentar propostas sobre a inclusão de pretos, pardos, indígenas e estudantes com deficiência em seus

programas de pós-graduação no prazo de 90 dias.

[30] Vide: Bowen e Bok, 2000; Himma, 2010; Hochschild, 1998; Orfield et al., 2001; Post, 1998; Sabbagh,

2007; Sandel, 1982.

[31] As ideias seriam produto de experiências sociais de indivíduos localizados em estruturas e contextos

específicos (Sabbagh, 2007, p. 40).


[32] Em 2014, as revistas Nature e Scientific American lançaram uma edição especial conjunta sobre

diversidade, na qual todos os artigos apontavam a existência de estudos evidenciando que “abraçar” a

diversidade é fundamental para que se possa fazer uma boa ciência. Vide: Editorial, 2014.

[33] Posição semelhante é apresentada por Warikoo (2016, p. 199), segundo a qual “a meritocracia pura

significa que todos têm as mesmas oportunidades na vida”.

[34] As oportunidades acadêmicas incluem atividades de ensino (como Pibid e monitorias), atividades de

pesquisa (bolsas de iniciação científica, como Pibic), atividades de extensão (como Pibex e Peic), participação

em empresas júnior, estágios, programas de educação tutorial (PET) e intercâmbio acadêmico nacional e

internacional.

[35] Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas.

[36] Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo.


Capítulo VI

Raça e Estado: o caso da


institucionalização do Sistema Nacional
de Promoção da Igualdade Racial –
Sinapir
Henrique Rodrigues Moreira

Introdução

No debate público do Brasil contemporâneo ainda há, e muito provavelmente


continuaremos a ter por muito tempo, divergências profundas quanto ao
tratamento que a sociedade deve dar às nossas desigualdades étnico-raciais –
sobretudo, as respostas que o Estado brasileiro deve oferecer em termos de
políticas públicas e afirmativas. Contudo, a despeito das discordâncias e interesses
adversos e da dificuldade de se construir e manter de pé políticas antirracistas, é
impossível negar a existência dessa forma de desigualdade sem mentir ou omitir
dados. As desigualdades raciais – estruturantes da sociedade brasileira – são
desveladas em dados sobre segurança pública (Lima Junior, 2019), saúde
(Milanezi e Moraes Silva, 2019), educação (IBGE, 2020a), habitação (Mariani et
al., 2019), distribuição de renda (Osório, 2021) e outras tantas formas as quais
constituem situações de injustiça, violência simbólica e física, falta de
reconhecimento social, cultural e de efetivação de direitos sociais, políticos e
econômicos. Mesmo a pandemia de Covid-19 e seus efeitos correlatos
contribuíram para reforçar que, sim, há desigualdades étnico-raciais no Brasil
(Paz, 2020) e elas demandam intervenções diretas do poder público.
As décadas finais do século passado e os anos iniciais deste século são sempre
lembrados, por estudiosos/as da área e pelos movimentos sociais, como
importantes períodos de estruturação e institucionalização de políticas de
promoção da igualdade étnico-racial e de valorização das culturas negra e
indígena. Tendo como referência o tensionamento que os movimentos sociais
fizeram ao longo da elaboração do texto da Constituição de 1988 (Silvério e
Trinidad, 2012; Lima, 2010), a construção de igualdade racial passou a ter como
pressuposto a articulação entre políticas focalizadas e políticas gerais nas áreas da
educação, saúde, segurança pública, lazer etc. Os principais textos (decretos, leis e
portarias) de promoção da igualdade racial têm em comum o entendimento de
que uma sociedade mais igualitária exige que princípios de valorização e proteção
de grupos étnicos se façam presentes no momento de construção e
implementação das políticas de modo geral, complementando-as e as reforçando
com políticas específicas.
Os textos normativos também compreendem que tanto a construção quanto
a implementação e a contínua avaliação das políticas exigem ampla participação,
compreendendo esforços do poder público em articulação com a sociedade civil,
organizações sem fins lucrativos e a iniciativa privada. De igual modo, induzem
que a estruturação e a institucionalização das políticas de promoção da igualdade
racial sejam descentralizadas, sendo empenhadas tanto pelo governo federal
quanto pelos governos estaduais e municipais. Em suma, o norte das políticas
públicas devem ser os três princípios estipulados pela Política Nacional de
Promoção da Igualdade Racial (PNPIR) (Brasil, 2003): a transversalidade, a
descentralização e a gestão democrática.
Após a intensa mobilização dos movimentos negros, dos trabalhos científicos
de intelectuais e acadêmicos, da pressão de entidades estrangeiras etc., que
tornaram as desigualdades étnico-raciais um problema público, pondo abaixo o
mito da democracia racial e a impossibilidade de equiparar grupos étnico-raciais
somente por via de políticas universalistas e do desenvolvimento econômico, foi a
vez de pressionar os governos para que políticas públicas de promoção da
igualdade racial (PIR) ganhassem espaço nas agendas governamentais (Neves,
2005; Lima, 2010; Silva et al., 2021).
A institucionalização de políticas de PIR por meio da criação de organismos
incrustados nas estruturas administrativas de estados, municípios e do governo
federal data dos anos 1980-90 e se estende pelo início dos anos 2000 (Laeser,
2013; Lima, 2010). Com a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao
Executivo federal em 2002, esse processo ganha bases normativas para se
consolidar, alcançar todo o território nacional e coordenar todo o conjunto de
ações que estivessem sendo levadas a cabo nos mais diferentes níveis de governo e
territórios. A própria criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (Seppir), também em 2003, teve o efeito positivo de espraiar
organismos correlatos pelo país (Laeser, 2013).
Assim, vê-se não só o esforço para instituir as políticas nos organismos mais
vitais do Estado, mas, por um lado, o esforço de induzi-las para que se
ramificassem e alcançassem as estruturas do poder público que mais se aproximam
do fornecimento de bens e serviços a cidadãos/ãs e, por outro lado, o esforço para
que essas ações tivessem uma coordenação a nível nacional. A PNPIR expressa
que, além da transversalidade, descentralização e gestão democrática, também
constituem as bases das políticas de Estado a intersetorialidade e o alcance
intergovernamental. O decreto expressa que:

IV – Diretrizes

[…]

- Estabelecimento de parcerias entre a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade


Racial e os diferentes entes federativos, visando instituir o Sistema Nacional de Promoção da
Igualdade Racial.

[…]

V – Ações

[…]

- Criação de rede de promoção da igualdade racial envolvendo diferentes entes federativos e


organizações de defesa de direitos.

- Fortalecimento institucional da promoção da igualdade racial.

- Criação do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Brasil, 2003a).

É dessa forma que, desde 2003, observa-se a ideia de criação de um sistema


nacional de articulação, coordenação e fortalecimento dos organismos de
promoção da igualdade racial. A intenção avançou pela primeira década dos anos
2000 e, entre 2005 e 2006, a Seppir encomendou um estudo para avaliar o
andamento das políticas de PIR pelo território nacional e se elas teriam condições
suficientes para consolidar um “sistema” (Dal Rosso et al., 2008). A oportunidade
de pôr a ideia do sistema em prática veio em 2008, durante a tramitação do
Projeto de Lei do Senado Federal (PLS) n.º 213/2003, de autoria do senador da
República Paulo Paim (PT/RS), o qual propunha a promulgação de um estatuto
da igualdade racial. Ao apresentar o texto substitutivo da Câmara ao Projeto de
Lei (PL) inicial, o relator da matéria na Casa, deputado Antônio Roberto
(Partido Verde (PV)/MG), comentou que a ideia de introdução do sistema no
texto partiu da interlocução com a Seppir (Câmara Federal, 2005).
Desse modo, com o desafio de induzir a criação e a articulação de organismos
voltados à PIR, o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir)
foi instituído com a promulgação da Lei n.º 12.288, de 20 de julho de 2010
(Brasil, 2010), quando da aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, oriundo do
projeto de lei do senador Paulo Paim. O Estatuto promove uma série de objetivos
para a eliminação da discriminação e das desigualdades étnico-raciais, da
intolerância religiosa e para proteção e valorização da cultura afro-brasileira e
indígena, prevendo ações específicas na área da saúde, educação, cultura, esporte,
lazer, moradia e trabalho. O Sinapir fora instituído com a finalidade de
materializar e cumprir tais objetivos previstos no texto da lei.
Este capítulo tem por objetivo discutir algumas questões sobre a
institucionalização do sistema, sua expansão recente e pontos que ainda
permanecem omissos, usando o Sinapir como ilustração dos impasses e
descompassos das políticas estatais de promoção da igualdade racial.

Sinapir: processo de institucionalização

Percurso normativo

Conforme discutido na seção anterior, a criação de uma rede de articulação e


coordenação na forma de um sistema à nível nacional é prevista, pela primeira vez,
no ano de 2003, com a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial,
instituída em 2010, com o Estatuto da Igualdade Racial, regulamentada em 2013
por meio do Decreto n.º 8.136 (Brasil, 2013a), cujas regras de consolidação foram
fixadas pela Seppir somente em 2014, através da Portaria n.º 8 (Brasil, 2014). O
Sinapir, desse modo, mostra o longo caminho percorrido pelas políticas de
igualdade racial como políticas de Estado. Vejamos uma importante síntese do
que significa a institucionalização do sistema:

A regulamentação do Sinapir foi discutida ao longo de 2012, com a participação do CNPIRs,[37] do


FIPIRs[38] e de outros atores sociais a fim de detalhar e aperfeiçoar seu desenho. Decerto, a
construção e operacionalização deste sistema acena com potencial de adensar as políticas; evitar
sobreposições; promover ganhos de sinergia; otimizar recursos; criar fluxos mais consistentes de
repasse de recursos para o alinhamento da política; possibilitar o maior controle social e executar, de
maneira consolidada, as políticas transversais do governo federal, a exemplo das citadas anteriormente
nas áreas de educação e saúde […] um sistema nacional de promoção da igualdade racial deve oferecer
metodologias de suporte para diagnósticos que apoiem os governos locais no desenvolvimento de
estratégias que considerem as características específicas de sua região, como os diferentes percentuais
de participação e as desigualdades nas condições de vida da população negra, a existência de
comunidades quilombolas, a articulação com outras políticas e instâncias de igualdade racial,
mecanismos de diálogo e participação social (Santos et al., 2013, p. 472-473).

Além de articular os órgãos de PIR dos governos federal, estaduais e


municipais por meio de fóruns, conferências e conselhos, as normas que o
fundamentam legalmente utilizam o Sinapir para estimular o espraiamento de
organismos de PIR pela federação através de regras de financiamento: estados e
municípios que tiverem aderido ao sistema multiplicam suas pontuações nos
editais e chamadas públicas do órgão federal de PIR em vigência.
Para aderir ao sistema, estados e municípios devem comprovar ter em
funcionamento ou encaminhado a criação do (i) Conselho Estadual ou Conselho
Municipal de Igualdade Racial; (ii) um organismo no poder público local
responsável pelas políticas de PIR; e (iii) um conjunto de ações previstas ou já em
desenvolvimento.
uando estados e municípios (i) executam ou preveem executar ações e
projetos, (ii) não têm um plano estadual ou municipal de igualdade racial
implementado e (iii) seus órgãos locais de promoção da igualdade racial não
dispõem de recursos consignados pelas leis orçamentárias, sendo subordinados a
outras unidades da gestão local, são considerados de modalidade de gestão básica,
tendo sua pontuação em editais e chamadas públicas multiplicada por 1,5.
uando estados e municípios (i) executam ou preveem executar ações e
projetos, (ii) têm um plano estadual ou municipal de igualdade racial
implementado e (iii) seus órgãos locais dispõem de recursos consignados pelas leis
orçamentárias sem que, contanto, gozem de plena autonomia para gerir esses
recursos, são considerados de modalidade de gestão intermediária, tendo sua
pontuação em editais e chamadas públicas multiplicada por 2.
uando estados e municípios (i) executam ou preveem executar ações e
projetos, (ii) tem um plano estadual ou municipal de igualdade racial
implementado e (iii) seus órgãos locais dispõem de recursos consignados pelas leis
orçamentárias tendo plena autonomia para gerir esses recursos, são considerados
como de modalidade de gestão plena, tendo sua pontuação em editais e chamadas
públicas multiplicada por 3. Em síntese, as unidades administrativas partem de
modalidade de gestão básica para gestão plena conforme aumentam o grau de
autonomia, disposição de recursos financeiros e recursos humanos das estruturas
locais de PIR.
Mais recentemente, em 2021, o Ministério da Mulher, Família e Direitos
Humanos publicou a Portaria n.º 1.968 (Brasil, 2021) alterando a Portaria n.º
8/2014 da Seppir que fixava as regras de adesão ao sistema. Dentre as alterações,
consta que: (i) estados e municípios que não possuam conselhos de igualdade
racial podem fazer uso de conselhos já existentes em sua estrutura administrativa,
desde que acrescentem a eles o tema e o nome “promoção da igualdade racial”; (ii)
entes que queiram aderir ao sistema na modalidade básica não precisam mais ter
um conselho e um órgão local de PIR instituídos e em funcionamento, bastando
apresentar comprovação de que essas estruturas tenham sido recém-criadas;
também desobrigou, para municípios dessa modalidade, que ações e projetos
estejam em execução, dando um prazo de 60 dias, a contar da data de publicação
da adesão no Diário Oficial da União, para que comecem a ser implementados;
(iii) tornou obrigatório que os órgãos de PIR dos municípios de modalidade
plena e intermediária tenham dotação orçamentária aprovada; (iv) tornou
obrigatório que municípios de modalidade plena e intermediária enviem, até o dia
10 de fevereiro de cada ano, o cronograma das ações a serem realizadas naquele
ano; (v) tornou obrigatório que municípios de modalidade plena e intermediária
participem de um dos encontros nacionais do Sinapir e do Fórum
Intergovernamental de Promoção da Igualdade Racial (Fipir).
A mudança foi celebrada pelo ministério e pela coordenação do Sinapir como
forma de facilitar a incorporação de novos entes. Acrescenta-se a isso o fato de
que, ao obrigar que os entes das modalidades de gestão superiores prevejam
dotação orçamentária[39] para sua estrutura de PIR local, bem como ao obrigar
que esses entes enviem à pasta anualmente informações sobre as ações executadas
ao longo do ano, a medida incide sobre dois dos principais entraves para a má
gestão da igualdade racial e uma das principais justificativas para descontinuar as
políticas de PIR: a disposição de recursos orçamentários e a falta de fluxo de
informação sobre as medidas executadas pelos órgãos em diferentes níveis (Dal
Rosso e Oliveira, 2006; Dal Rosso et al., 2008).

Da lenta implementação (2010-2014) à expansão recente (2019-


2021)

Conforme observado anteriormente, após ser finalmente instituído na


legislação em 2010, junto à promulgação do Estatuto da Igualdade Racial, quatro
anos foram necessários para que o desenho institucional do Sinapir tomasse
forma. Nesta seção, trazemos alguns dados relativos ao lento processo de
consolidação do sistema. Uma ressalva deve ser feita de antemão: embora tanto
estados quanto municípios possam solicitar a adesão ao sistema, a pesquisa aqui
apresentada privilegia a adesão dos municípios – teoricamente, a estrutura
político-administrativa que mais se aproxima do/a cidadão/ã no fornecimento de
bens e produtos e prestação de serviços. Embora se dê enfoque aos entes
municipais, cabe ao menos sinalizar que, até o período analisado, 23 estados da
federação assinaram o convênio com a SNPIR (ex-Seppir): Acre, Amapá, Pará,
Rondônia, Tocantins, Alagoas, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Rio Grande do
Norte, Distrito Federal, Goiás, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná,
Rio Grande do Sul e Santa Catarina, de modalidade básica; Paraíba, Mato
Grosso, Mato Grosso do Sul e Espírito Santo, de modalidade intermediária; e o
estado da Bahia, de modalidade plena.
Voltando-nos aos municípios, a Seppir iniciou as adesões de entes municipais
e estaduais em 2014 e de lá para cá o processo tem sido lento; porém,
recentemente, tem-se observado uma tendência de crescimento no número de
adesões municipais. Até meados de 2021, menos de 2% dos municípios brasileiros
haviam aderido ao sistema, um dado pífio quando colocamos em perspectiva a
necessidade de criar uma rede articulada e coordenada que tenha capilaridade o
suficiente para alcançar todo o território nacional. A baixa participação dos
municípios virou notícia em 2019, ganhando atenção da Agência Brasil
(Tokarnia, 2019) e da Confederação Nacional de Municípios (CNM, 2019).
Tendo como referência a base com estimativas populacionais utilizada na pesquisa
(IBGE, 2020c), à época, menos de 2% dos municípios aderentes representavam,
aproximadamente, 47.748.472 habitantes – ou, cerca de 22% da população total
estimada para aquele ano. Já no período aqui analisado, isto é, até novembro de
2021, o alcance do sistema em termos populacionais é de aproximadamente
60.465.501 habitantes – ou, cerca de 28,5% da população estimada para o
período.
No gráfico 1, a seguir, é possível perceber que em 2019 houve uma queda
acentuada no número de adesões em comparação com 2018, número que voltou a
se elevar nos anos de 2020 e 2021. Nota-se que nesse último ano o sistema bateu o
recorde de adesões anuais do ano de 2018, tendo incorporado 43 novos entes
municipais. Até 2018, a média de adesões anuais foi de aproximadamente 12
municípios por ano. No período entre 2019 e 2021, a média de adesões anuais
cresceu para aproximadamente 22 novos municípios ao ano.
A marca de 100 municípios foi atingida com a adesão da cidade de Recife
(PE), em agosto de 2021. A respeito das capitais, 12 não eram aderentes no
período observado: Porto Velho (RO), Manaus (AM), Boa Vista (RR), Belém
(PA), Palmas (TO), São Luís (MA), Teresina (PI), Natal (RN), João Pessoa (PB),
Maceió (AL) e Cuiabá (MT).

Grá co 1 – Número de adesões anuais (2014 a novembro de 2021)

Fonte: Elaboração do autor com base em SNPIR/MMFDH e Diário Oficial da União. Nota: Dados até 19
de novembro de 2021.
Grá co 2 – Total de adesões dos municípios brasileiros

Fonte: Elaboração do autor com base em SNPIR/MMFDH e Diário Oficial da União. Nota: Dados até 19
de novembro de 2021.
Grá co 3 – Total de municípios aderentes por modalidade de gestão

Fonte: Elaboração do autor com base em MMFDH, Diário Oficial da União e IBGE. Nota: Dados até 19 de
novembro de 2021.

Até novembro de 2021, 110 municípios (83,3%) compunham o sistema na


modalidade básica, 13 (9,8%) na modalidade intermediária e nove (6,8%) na
modalidade plena, conforme demonstrado no gráfico 3. Em comparação com
dados de 2019, a variação em pontos percentuais no período foi de 93% para os
de modalidade básica (eram 57 até 2019), 44,4% para os de modalidade
intermediária (eram 9 até 2019) e 50% para plena (eram seis até 2019).
Das 16 capitais aderentes no período, um número muito pequeno delas está
habilitado na categoria mais avançada de gestão da igualdade racial dentro do
léxico normativo do sistema: 10 são de modalidade básica (62,5% do total);
quatro são de modalidade intermediária (25%); e apenas duas, Salvador (BA) e
Macapá (AP), de modalidade plena (12,5%).
Tomando como referência estudo da Fundação Getúlio Vargas (2020) que
analisou dados de rendimentos declarados no Imposto de Renda Pessoa Física
(IRPF) para o ano de 2018, dos 50 municípios com maiores rendas médias da
população, apenas 15 compunham o Sinapir, 30% do total. Já entre os 100
municípios com maior Produto Interno Bruto (PIB) no ano de 2019, 29 (58%)
integravam o Sinapir, sendo 22 na modalidade básica, cinco na modalidade
intermediária e dois na modalidade plena. Outros 21 municípios do ranking
(42%) não haviam aderido ao sistema dentro do período analisado.
A região Sudeste compõe, ao longo da série histórica, a de maior participação
no sistema, constituindo pouco mais de 40% dos municípios que integravam o
Sinapir. Contudo, nos dois últimos anos, além do crescimento no número total de
aderentes, houve também um crescimento na adesão de municípios das regiões
Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Nos gráficos 4 e 5, a seguir, é possível notar que
o sistema se expandiu, mesmo que timidamente, para essas regiões, alterando seu
quadro de composição quanto à regionalização. Em 2019, 1,3% dos municípios
da região Centro-Oeste fazia parte do Sinapir; no período em discussão eles eram
cerca de 2,6%. Do Nordeste, o percentual era de 0,9% em 2019 passando para
1,6%; do Norte, eram 0,7% passando para 2,9%; do Sudeste, de 2% para 3,5%; e
da região Sul, de 1,2% para 1,8%, como mostra o gráfico 6 adiante. As UFs que
não possuíam adesões municipais eram: Tocantins, Roraima, Rondônia, Alagoas
e Amazonas, conforme indicado no gráfico 8, adiante.
Fonte: Elaboração do autor. Dados até 19 de novembro de 2021.

Grá co 6 – Taxa de adesão dos municípios por região da UF


Grá co 7 – Composição do Sinapir por região dos municípios e por modalidade de gestão

Fonte: Elaboração do autor com base em SNPIR/MMFDH e Diário Oficial da União.Nota: Dados até 19 de
novembro de 2021.
Grá co 8 – Taxa de adesão dos municípios por total de municípios da UF

Fonte: Elaboração do autor com base em SNPIR/MMFDH e Diário Oficial da União. Nota: Dados até 19
de novembro de 2021.

Como exemplo do avanço do sistema pelo território no ano de 2021, os dois


primeiros municípios do Mato Grosso a aderirem ao Sinapir foram Rondonópolis
e Várzea Grande; já no estado da Paraíba, o primeiro município a integrar o
sistema foi Cubati, em outubro de 2021. Além desses, o estado do Acre também é
representativo da atual expansão do sistema. Até 2019, apenas a capital, Rio
Branco, fazia parte, representando 4,5% do total de 22 municípios do estado. Em
2021, conta com outros 10 municípios aderentes, representando 45,5% do total.
As adesões no estado do Acre parecem ser uma resposta direta à Campanha
Nacional de Adesão ao Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial
(MMFDH, 2021), lançada pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos
Humanos em abril de 2021 e que contou, ao longo do ano, com visitas da SNPIR
e da coordenação nacional do Sinapir a estados e municípios apresentando o
sistema. Como exemplo, a secretaria percorreu municípios de estados como o
Acre (onde até mesmo o governo do estado se comprometeu com a adesão), do
Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e da Paraíba, os quais ainda não contavam com
municípios no sistema.
Tabela 1 – Variação de adesões anuais por tamanho da população (2020) e IDHM (2010) dos

municípios

População (2020) Até 2019 Até 2021 Var. %


Abaixo de 50 mil habitantes 16 43 168,8%
Entre 50 e 100 mil 6 12 100,0%
Entre 100 mil e 500 mil 29 47 62,1%
Entre 500 mil e 1 milhão 12 19 58,3%
Acima de 1 milhão 9 11 22,2%
IDHM (2010) Até 2019 Até 2021 Var. %
Baixo 4 14 250%
Médio 16 36 125%
Alto 37 63 70,3%
Muito alto 15 19 26,7%
Fonte: Elaborado pelo autor com base em MMFDH, DOU, IBGE, 2020b e IPEA, 2017. Nota: Dados até
19 de novembro de 2021.

Também se percebe que, na atual fase de expansão, têm sido alcançados


municípios menores em termos populacionais e de menor Índice de
Desenvolvimento Humano Municipal. Na tabela 1, se vê que a variação, em
pontos percentuais, foi maior entre municípios com população abaixo de 100 mil
habitantes e entre municípios com IDHM considerado baixo e médio.
Atualmente, o menor índice do conjunto é 0,517 (“baixo”), sendo o maior 0,847
(“muito alto”) e o IDHM médio do conjunto 0,716 (“alto”). Vale lembrar que o
IDH da população branca é de 0,777, “alto”, acima da média nacional, de 0,727, e
acima do IDH da população negra, de 0,679, considerado “médio” (IPEA, 2017).
Tabela 2 – Variação de adesões anuais ao Sinapir por itens da MUNIC 2019 (IBGE)

População (2020) Até 2019 Até 2021 Var. %


Abaixo de 50 mil habitantes 16 43 168,8%
Entre 50 e 100 mil 6 12 100,0%
Entre 100 mil e 500 mil 29 47 62,1%
Entre 500 mil e 1 milhão 12 19 58,3%
Acima de 1 milhão 9 11 22,2%
IDHM (2010) Até 2019 Até 2021 Var. %
Baixo 4 14 250%
Médio 16 36 125%
Alto 37 63 70,3%
Muito alto 15 19 26,7%
Fonte: Elaboração do autor com base em MMFDH, DOU e IBGE, 2020c. Nota: Dados até 19 de
novembro de 2021.

Do mesmo modo, o sistema também parece ter avançado para municípios


que, ao menos segundo a Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic) do
IBGE de 2019 (IBGE, 2020c), aparentemente não contavam com uma estrutura
de PIR local até aquele ano. Na tabela 2, cruzou-se as informações da Munic 2019
com as informações de adesões, possibilitando observar que as variações do
número de aderentes, em pontos percentuais, foram maiores entre municípios que
não possuíam conselhos municipais de igualdade racial, legislação local de PIR
etc., até o ano em que a pesquisa fora realizada.
Outro ponto que merece a atenção de gestores/as do Sinapir no seu processo
de expansão é buscar sensibilizar, estimular e oferecer apoio à estruturação e
institucionalização de políticas de PIR em municípios que possuem comunidades
quilombolas e indígenas, com terras já oficialmente delimitadas ou não. Tomando
como referência dados do IBGE (2020d), nas tabelas 3 e 4, adiante, verifica-se
que boa parte dos municípios com localidades indígenas e/ou quilombolas não
compõem o sistema e que o Sinapir avançou pouco entre eles no período 2019-
2021. Isso pode ocorrer por variadas razões, sobretudo por falta de vontade
política e de recursos para estruturar os órgãos necessários à adesão ao sistema, um
grave entrave orçamentário que coloca em risco um bom e devido fornecimento
de serviços essenciais a essas comunidades, cujas vulnerabilidades históricas
ficaram à mostra durante a pandemia de Covid-19 (Rocha, 2020).
Os gráficos 9 e 10, a seguir, mostram que menos da metade desses municípios
informou à Munic 2019 (IBGE, 2020c) ter conselhos municipais de igualdade
racial, ou mesmo executar políticas de PIR em seus territórios. Uma atenção
especial tanto em termos orçamentários quanto em apoio institucional e
administrativo a esses entes serviria como importante laboratório de construção
de políticas públicas da parte da secretaria nacional de PIR no projeto de
crescimento e fortalecimento do Sinapir. Para isso é que serviria uma eficaz
política orçamentária que desse aporte à secretaria para sensibilizar gestores/as e
fornecer o apoio necessário a esses municípios na estruturação de seus órgãos e
ações.
Tabela 3 – Adesões ao Sinapir versus Base de Informações Sobre Povos Indígenas e

Quilombolas (IBGE)

População (2020) Até 2019 Até 2021 Var. %


Abaixo de 50 mil habitantes 16 43 168,8%
Entre 50 e 100 mil 6 12 100,0%
Entre 100 mil e 500 mil 29 47 62,1%
Entre 500 mil e 1 milhão 12 19 58,3%
Acima de 1 milhão 9 11 22,2%
IDHM (2010) Até 2019 Até 2021 Var. %
Baixo 4 14 250%
Médio 16 36 125%
Alto 37 63 70,3%
Muito alto 15 19 26,7%
Fonte: Elaboração do autor com base em MMFDH; DOU e IBGE, 2020d. Nota: Dados até 19 de
novembro de 2021.
Tabela 4 – Total de municípios da Base de Informações Sobre Povos Indígenas e

Quilombolas (IBGE) que integram e não integram o Sinapir

Não
Integra
integra
Comunidades e terras indígenas e quilombolas o % %
o
Sinapir
Sinapir
Existência de terras quilombolas Sim 19 6,5% 275 93,5%
oficialmente delimitadas no município
aderente Não 113 2,1% 5163 97,9%

Existência de localidades quilombolas no Sim 74 4,4% 1590 95,6%


município aderente Não 58 1,5% 3848 98,5%
Existência de terras indígenas Sim 17 3,6% 460 96,4%
oficialmente delimitadas no município
aderente Não 115 2,3% 4978 97,7%

Existência de localidades indígenas no Sim 35 4,7% 716 95,3%


município aderente Não 97 2% 4722 98%
Fonte: Elaboração do autor com base em MMFDH; DOU e IBGE, 2020d. Nota: Dados até 19 de
novembro de 2021.
Grá co 9 – Execução de políticas de PIR e/ou enfrentamento ao racismo em municípios com

comunidades indígenas e quilombolas


Grá co 10 – Existência de Conselho Municipal de Igualdade Racial em municípios com

comunidades indígenas e quilombolas

Fonte: Elaboração do autor com base em MMFDH; DOU e IBGE, 2020c, 2020d. Nota: Dados até 19 de
novembro de 2021.

E falando sobre a questão orçamentária…

O orçamento público não é uma mera peça governamental de planejamento e


tampouco é elaborado por gestores/as públicos/as com base em um léxico (e
racionalidade) puramente técnico. O orçamento público, desde a sua concepção,
construção e planejamento até a sua real execução, é uma “peça de cunho político”
e, portanto, é politicamente “[…] utilizado como instrumento de controle e
direcionamento dos gastos” (Oliveira, 2009 apud Salvador e Teixeira, 2014, p.
17). Tratando-se de uma sociedade em que as categorias “raça”, “cor” e
“etnicidade” são marcadores sociais estruturantes das relações de poder e da
distribuição de recursos, entende-se que as políticas de PIR enfrentam sérios
desafios para ocupar seu espaço na formulação dos orçamentos anuais e
plurianuais – seja nos níveis federal, estadual ou municipal. Exemplo disso é que a
proposta de criação um fundo nacional de PIR não vingou ao longo da tramitação
do estatuto da igualdade racial e a lei em vigência foi aprovada, portanto, sem que
esse fundamental aporte orçamentário conseguisse ser instituído em conjunto
(Silva, 2012).
Em parte, para solucionar esse problema, é que o Sinapir foi criado como
forma de fomentar e consolidar os órgãos de PIR subnacionais, aspecto já
discutido. A falta de orçamento e de infraestrutura dos órgãos de PIR era uma
necessidade destacada já nos estudos encomendados pela Seppir antes mesmo do
Sinapir ser, de fato, instituído (Dal Rosso e Oliveira, 2007). Por outro lado, a
dificuldade da própria Secretaria Nacional em conseguir sustentar seus recursos
ao longo do período histórico também assombra (Dal Rosso e Oliveira, 2007;
Santos et al., 2013). Mais recentemente, um estudo do Ipea (2021a, 2021b)
mapeou que não só os recursos destinados às áreas temáticas de igualdade étnico-
racial, políticas para mulheres, políticas para a comunidade LGBTQI+ etc. foram
perdendo participação nas políticas orçamentárias, como também perderam
capacidade de aplicação. Em suma: entre 2012 e 2020, mesmo quando estavam
presentes nas leis anuais e plurianuais e com previsão de recursos, esses eixos
temáticos sofreram com a baixa ou não execução dos recursos previstos.
De igual modo, o estudo também demonstrou que o PPA 2020-2023 é o que
menos contemplou a temática das desigualdades étnico-raciais desde o início dos
anos 2000. Mais grave que não prever programas, ações ou metas específicas, é
que as temáticas de direitos humanos foram colocadas, todas, sob um único
programa, uma espécie de guarda-chuva que engloba todos os assuntos que são de
competência do MMFDH, dificultando o monitoramento e a transparências das
políticas públicas (IPEA, 2021b).
Tendo isso em vista, de modo a levantar subsídios para pensar qual apoio se
tem dado, em nível federal, à estruturação de organismos de PIR nos estados e,
especialmente, nos municípios, realizou-se uma pesquisa nos PPAs de 2004-2007
a 2020-2023 para mapear quais programas, ações, metas e/ou objetivos
contemplavam, explicitamente, o fomento a tais organismos. Após mapear os
programas previstos nas leis, uma nova consulta foi feita no painel do Sistema
Integrado de Planejamento e Orçamento do Governo Federal (SIOP) buscando
por suas aplicações.[40] Os resultados das programações orçamentárias podem
ser vistos a seguir.

Grá co 11 – Dotação disponível aos programas, ações e planos de fortalecimento dos

organismos subnacionais de PIR (Valores em milhões)[41]

Fonte: Elaboração do autor com base em dados do Siop – Ministério da Economia. Nota: Valores
deflacionados pelo IPCA/IBGE. Mês de referência: outubro de 2021.
Tabela 5 – Orçamento de programas, ações e planos de fortalecimento dos organismos

subnacionais de PIR (Valores em R$1.000)

Fonte: Elaboração do autor com base em dados do Siop – Ministério da Economia Nota: Valores
deflacionados pelo IPCA/IBGE. Mês de referência: outubro de 2021.

No gráfico 11, é possível visualizar que há drástica redução nas programações


orçamentárias disponibilizadas ao financiamento de organismos de PIR nos
estados e municípios. Já no início da série histórica, se vê que a dotação
orçamentária disponível no ano está abaixo dos R$5 milhões, tendência mantida
ao longo do período. A exceção é o ano de 2010, quando quase R$20 milhões
estavam previstos para essa finalidade. Entretanto, se a composição do orçamento
anual demonstra a atenção dada a cada eixo temático e política social, é na
execução, de fato, que se percebe qual é a “priorização de gastos governamentais”
(Salvador e Teixeira, 2018, p. 18-19). Embora seja em 2010 que se encontre a
maior dotação orçamentária disponível em um ano, vê-se nos montantes que
foram empenhados, liquidados e, finalmente, pagos que a execução dos recursos
disponíveis foi baixa: o montante pago corresponde a menos de 5% do montante
disponível, como indicado na tabela 5.
Tabela 6 – Valores do orçamento de programas, ações e planos de fortalecimento dos

organismos subnacionais de PIR gastos nos MUNICÍPIOS (Valores em R$1.000)

Ano Valores Empenhados Valores Liquidados Valores Pagos


2008 417,26 417,26 417,26
2009 0,00 0,00 0,00
2010 210,56 210,56 210,56
2011 0,00 0,00 0,00
2012 0,00 0,00 0,00
2013 0,00 0,00 0,00
2014 0,00 0,00 0,00
2015 874,41 0,00 0,00
2016 526,45 0,00 0,00
2017 679,32 0,00 0,00
2018 1.535,59 0,00 0,00
2019 1.298,00 0,00 0,00
2020 0,00 0,00 0,00
2021 0,69 0,00 0,00
Total 5.541,58 627,82 627,82
Fonte: Elaboração do autor com dados do Siop – Ministério da Economia. Nota: Valores deflacionados
pelo IPCA/IBGE. Mês de referência: outubro de 2021. O dado “0,00” significa que não houve valores
empenhados, liquidados e/ou pagos para municípios no período de acordo com a metodologia de coleta já
justificada.
Tabela 7 – Valores do orçamento de programas, ações e planos de fortalecimento dos

organismos subnacionais de PIR gastos nos Estados e/ou Distrito Federal (Valores em

R$1.000)

Ano Valores Empenhados Valores Liquidados Valores Pagos


2008 0,00 0,00 0,00
2009 0,00 0,00 0,00
2010 733,09 733,09 733,09
2011 0,00 0,00 0,00
2012 4.827,68 4.212,60 4.212,60
2013 0,00 0,00 0,00
2014 0,00 0,00 0,00
2015 1.695,51 0,00 0,00
2016 609,64 0,00 0,00
2017 756,78 0,00 0,00
2018 1.789,90 1.456,58 1.456,58
2019 0,00 0,00 0,00
2020 0,00 0,00 0,00
2021 0,00 0,00 0,00
Total 10.412,59 6.402,27 6.402,27
Fonte: Elaboração do autor com base em dados do Siop – Ministério da Economia.Nota: Valores
deflacionados pelo IPCA/IBGE. Mês de referência: outubro de 2021. O dado “0,00” significa que não
houve valores empenhados, liquidados e/ou pagos para Estados e Distrito Federal no período de acordo
com a metodologia de coleta já justificada.
Por fim, cabe ressaltar que os montantes destinados às transferências a entes
municipais (tabela 6) foi consideravelmente inferior ao montante destinado a
transferências aos estados e/ou ao Distrito Federal (tabela 7). Evidentemente,
oferecer aporte aos organismos estaduais é essencial, e as ações podem ser
traduzidas em serviços importantes aos grupos demandantes de políticas de PIR.
Porém, o fato de haver mais recursos sendo destinados às esferas estaduais em
detrimento das municipais significa que menos verba, bens e/ou serviços estão
sendo aplicados diretamente nas estruturas municipais, justamente aquelas mais
próximas de cidadãos/ãs e, a depender do tamanho populacional, da participação
no PIB estadual e federal e da robustez do orçamento municipal, são as mais
carentes de recursos para estruturar políticas sociais.

Sete anos depois: onde estão os dados?

Apesar de o Sinapir passar por uma importante fase de expansão, algumas


questões ainda pairam sobre sua institucionalidade. Principalmente, até o
momento, a secretaria nacional responsável pelas políticas de igualdade racial
deve à sociedade a instituição da Rede-Sinapir, um sistema virtual e de acesso
público com a disseminação de dados e informações sobre as ações do Sinapir e a
veiculação de notícias sobre os entes aderentes. No Decreto n.º 8.136/2013
(Brasil, 2013a), o qual, como já dito, regulamenta o Sinapir, a “Rede-Sinapir”
consiste em um dos instrumentos de gestão do sistema, devendo ter sido criada
“[…] a fim de promover: a) a gestão de informação; b) as condições para o
monitoramento; c) a avaliação do Sinapir; e d) o acesso e o controle social”, de
acordo com o inciso III, art. 6.º do referido decreto. A previsão de criação de um
sítio eletrônico é expressa no inciso II do art. 7.º: “desenvolvimento de portal na
internet, com acesso diferenciado e voltado para a divulgação das ações dos
diversos órgãos e entidades que compõem o Sinapir”.
O parágrafo seguinte do inciso deixa evidente que a preocupação de
gestores/as ao elaborarem a norma, à época, era não só dar visibilidade às ações do
sistema, como também criar um espaço de monitoramento e avaliação das
políticas implementadas, para além dos conselhos, fóruns e conferências que
constituem o Sinapir conforme determinação dos marcos legais. Lê-se no
parágrafo único, Inciso II do art. 7.º:

Simultaneamente ao funcionamento do Sistema, ocorrerão o aperfeiçoamento e a disseminação dos


instrumentos e técnicas de avaliação e monitoramento das ações dos órgãos e entidades que compõe o
Sinapir e a análise do impacto dessas ações nas condições de vida das populações negra, indígena e
cigana.

Além disso, a “Rede-Sinapir” também serviria como espaço para os entes da


federação solicitarem o seu processo de adesão. Justamente essa característica que
atribui o status de sistema e confere a articulação e coordenação dos órgãos, além
de ser um importante espaço de circulação de ideias e um repositório de políticas
públicas que poderiam auxiliar e servir como referências para gestores/as –
especialmente aqueles/as que precisam lidar com questões mais salientes de
conflitos étnico-raciais, como no caso dos municípios com comunidades
indígenas e quilombolas. Por isso, destacou-se os dados sobre o mapeamento
dessas localidades nas seções anteriores, nas tabelas 3 e 4.
Aliás, esse é outro problema que a Rede-Sinapir ajudaria a resolver: o acesso
aos dados e informações básicas dos municípios que compõem o sistema. Os
dados aqui discutidos provêm do cruzamento de outras bases de dados nacionais,
como é o caso do Índice de Desenvolvimento Humano (Ipea, 2017), as
Estimativas Populacionais para o ano de 2020 (IBGE, 2020b), a Pesquisa de
Informações Básicas Municipais (IBGE, 2020c) e a Base de Informações sobre
Povos Indígenas e uilombolas (IBGE, 2020d). Da parte da SNPIR e,
anteriormente a ela, da Seppir, encontramos apenas uma listagem dos municípios
recém-aderentes (Brasil, s/a), bem como a publicação dos extratos de adesão no
Diário Oficial da União. Os perfis regionais, socioeconômicos e demais
informações apresentadas são, portanto, um esforço de compor uma base de
dados ampla cujas fontes são diversas, já que o sistema ainda carece de um veículo
único de onde essas informações pudessem ser extraídas.
Uma arquitetura de referência, nesse sentido, poderia ser o portal do Sinajuve,
o Sistema Nacional de Juventude,[42] onde se pode consultar desde indicadores
sociais e dados georreferenciados até um repositório de políticas públicas e de
legislações. O Sistema Nacional de Juventude, por seu turno, “[…] constitui forma
de articulação e organização da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos
Municípios e da sociedade civil para a promoção de políticas públicas de
juventude” (Brasil, 2018), conforme definição do decreto que regulamenta a
instância, que fora criada pelo Estatuto Nacional da Juventude, lei promulgada
em 2013 (Brasil, 2013b).
O referido Estatuto, tal como o Estatuto da Igualdade Racial, estabelece
princípios e diretrizes para uniformizar os programas governamentais e as
políticas públicas para a juventude executados pelo território nacional, definindo,
também, um conjunto de ações a serem cumpridas em diferentes eixos temáticos,
como educação, profissionalização, trabalho e renda, saúde, cultura, desporto e
lazer.
Criado pelo mesmo diploma legal, o Sinajuve distribui as competências de
cada nível de execução das políticas (nacional, estadual, municipal) e da
participação da sociedade civil, através dos Conselhos de Juventude. Também
dispõe de ferramentas que permitem que cada política pública executada pelos
entes aderentes passe, necessariamente, pelo sistema, possibilitando a integração
das unidades de juventude ao redor do país, a otimização da comunicação entre
gestores/as federais e gestores/as estaduais, municipais e distritais, o
estabelecimento de parâmetros de desenvolvimento equitativo para todos os
equipamentos da rede, e o incentivo à pesquisa e produção de conhecimento e
indicadores na área de juventude (Lozzi, 2020, p. 29).
Tal articulação entre organismos e gestões compõe a Rede Sinajuve, cuja
captação de dados e indicadores das políticas públicas executadas pelos entes (ou
que sirvam como diagnóstico para construí-las) forma o Sistema Nacional de
Informação da Juventude, que pode ser entendido como “[…] uma importante
ferramenta de tecnologia a ser utilizada pelas instâncias governamentais
envolvidas, além dos demais entes que integram as Políticas Públicas de
Juventude”, também tendo por finalidade “[…] atender às demandas de informação
e de acesso a dados no que tange a Política Nacional de Juventude” (Lozzi et al.,
2019, p. 50, grifo nosso).
O portal do Sinajuve, citado anteriormente como exemplo, é a ferramenta
tecnológica indicada como ponto de acesso a esse sistema de informação (Macêdo
et al., 2020, p. 102). Além de ser possível consultar parâmetros para mensurar a
execução da política nacional de juventude, o portal também serve como espaço
para reunir: a Plataforma Virtual Interativa, a qual serve para atender a demanda
por participação social e capacitação de gestores/as; o Cadastro Nacional das
Unidades de Juventude, que reúne informações sobre as unidades aderentes; e o
Subsistema de Informação, Monitoramento e Avaliação, que permite acompanhar
as ações do poder público (Lozzi, 2020, p. 30-33).
Desse modo, é possível estabelecer paralelos, com as devidas ressalvas, entre as
políticas nacionais elaboradas para a promoção da juventude e para a promoção
da igualdade racial. Por exemplo: ambas compartilham o princípio de
descentralização e desconcentração da execução das políticas, a articulação entre
entes de diferentes níveis da federação, participação social e políticas públicas
intersetoriais; e ambas têm uma trajetória longa de implementação – a construção
de uma Política Nacional de Juventude data de 2004, a criação de uma secretaria
especial no âmbito do poder executivo federal foi em 2005, a promulgação do
Estatuto da Juventude ocorre em 2013, o primeiro decreto para regulamentar o
Sinajuve, criado pelo Estatuto, data de 2018, corrigido por outro decreto, de
fevereiro de 2020 e, por fim, as portarias que consolidam os processos de adesão
das unidades de juventude são publicadas em abril de 2020.
Contudo, em suas respectivas trajetórias de implementação, o Sinajuve –
apesar de ser mais recente – desenvolveu mais rapidamente e de maneira mais
robusta um sistema de informação e gestão da política nacional de juventude. O
crédito do desempenho pode ser dado a uma parceria realizada entre a Secretaria
Nacional de Juventude, responsável por gerir o Sinajuve, e o Instituto Brasileiro de
Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), responsável por desenvolver as
ferramentas tecnológicas citadas (Lozzi, 2020).
A Secretaria Nacional de Juventude, tal como as secretarias nacionais de
promoção da igualdade racial (Moreira, 2021), também foi vítima da turbulência
político-institucional que atingiu o país especialmente da década de 2010 em
diante – tendo sido alterados os órgãos superiores aos quais seria subordinada e
sofrido as consequentes alterações na estrutura administrativa etc. Porém, ter
firmado um acordo técnico com um organismo especializado, com ampla
experiência no desenvolvimento de soluções em tecnologia da informação para o
setor público e que estava menos suscetível à alteração institucional a que está
submetido um órgão diretamente ligado à presidência da República podem ter
sido fatores que tenham contribuído para o desenvolvimento de um sistema mais
robusto de gestão da política e de captação, tratamento e disseminação de dados.
Experiência similar poderia ter sido – e ainda pode ser – desenvolvida por
gestores/as do Sinapir.
Como destacado por Secchi (2013, p. 9): “[…] a cada nível da política
pública, há um entendimento diferente dos problemas e das soluções, há uma
configuração institucional diferente, existem atores e interesses diferentes”.[43]
Por isso é tão importante a coordenação dos entes,[44] a publicização de ações e
do histórico de ações, a divulgação de indicadores sociais, bem como a circulação
de informações e experiências, sendo este último, em especial, um problema o
qual Dal Rosso et al. (2008) destacam desde o início dos anos 2000.
Outro ponto que o portal virtual do sistema ajudaria a desvelar é sua real
composição. A Portaria n.º 8/2014 (Brasil, 2014) estabelece que tanto a
Secretaria Nacional quanto os entes aderentes podem romper o termo de
compromisso a qualquer momento – principalmente, a própria coordenação do
Sinapir pode rescindir o termo de adesão de um ente se a secretaria observar que
não estão sendo cumpridas as suas exigências. Outro ponto relevante é que as
modalidades de gestão podem ser alteradas se, de igual modo, houver alteração na
estrutura administrativa do ente. Aliás, a própria portaria obriga que os entes de
modalidade básica e intermediária não excedam o período de cinco anos em cada
modalidade, uma clara medida para obrigar os poderes públicos locais a
fornecerem cada vez mais autonomia, infraestrutura e recursos para suas
respectivas gestões da igualdade racial. Portanto, há essas possibilidades de
alteração da situação cadastral; contudo, conforme discutimos, limita-se o
monitoramento do sistema apenas aos dados do momento de adesão.
Em abril, foi publicada no site do Ministério da Mulher, Família e Direitos
Humanos uma nota anunciando a criação do Sistema de Monitoramento de
Políticas Étnico-Raciais – Simope,[45] o qual, segundo informado no site do
MMFDH, “[…] permitirá a análise de dados e indicadores com vistas ao
monitoramento e aperfeiçoamento das políticas públicas direcionadas à
população negra e aos Povos e Comunidades Tradicionais” e “[…] disponibilizará,
sob a forma de tabelas e gráficos, a evolução histórica de indicadores como
presença territorial, escolaridade, renda média, infraestrutura e acesso a
programas sociais”. Não há, ao menos nesse comunicado, nenhuma vinculação aos
dados do Sinapir. Porém, se o chamado Simope, de fato, sair do papel, seria de
grande valia aproveitar a base do novo sistema para lançar em conjunto a Rede-
Sinapir, cumprindo tanto o decreto de 2013 quanto a portaria de 2014.

Considerações nais

Ao longo do texto, dedicamo-nos a traçar algumas discussões sobre o


processo de institucionalização do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade
Racial. A síntese consistiu em recapitular o itinerário percorrido pela ideia de
formar uma estrutura sólida, articulada, que desse conta de conectar e coordenar a
nível nacional os principais atores, instituições e organismos de promoção da
igualdade racial.
Além de discutir o sistema, em si, também o utilizamos como exemplo do que
ocorre com as políticas antirracistas no país: ao traçar o seu desenvolvimento
histórico, percebemos que tais políticas levam considerável tempo para serem
constituídas, colocadas na forma de lei ou demais atos normativos e, por fim,
implementadas – vimos que se conta pouco mais de uma década desde que o
sistema foi citado, pela primeira vez, em uma política governamental até que
começasse a ser operacionalizado. Ao discutirmos os processos de adesão,
expomos que tais políticas, ao menos no que diz respeito à interação entre
administrações subnacionais e nacional, ainda não conseguiram ter capilaridade o
suficiente para alcançar todo o território.
Também observamos que o modelo de ingresso das gestões locais ao sistema
nacional é o modelo mais básico disponível, revelando a fragilidade dessas
estruturas e o quão vulneráveis elas são às mudanças político-institucionais –
como enfatizam Dal Rosso et al. no que diz respeito às estruturas de PIR: “tudo
pode mudar com a alteração de governos, com as reformas políticas e
institucionais e com as crises”; portanto, quanto mais sólidas, regulares e
incrustadas estiverem as políticas públicas de igualdade racial na cultura política
local, mais protegidas elas estarão “[…] contra as turbulências político-partidárias
e conjunturais” (Dal Rosso, 2008, p. 181-182).[46]
Ao passarmos pela questão orçamentária, observou-se que esse é um dos
principais entraves à consolidação das políticas de PIR: aporte financeiro e
regularidade de sua presença nos planejamentos orçamentários.[47] uando não
ausente ou pouco destacada, a temática sofre com a baixa execução, sério
indicador de não execução das políticas públicas que coloca em xeque todo o
histórico de luta política para que o Brasil reconhecesse a obrigatoriedade de
pautar as desigualdades raciais como tema transversal às demais políticas de
Estado.
Por fim, além da lentidão na implementação das políticas e a falta de recursos,
também lembramos que a falta de indicadores sociais e transparência na gestão da
igualdade racial é uma outra dificuldade na aplicação dessas políticas públicas. As
gestões das secretarias nacionais simplesmente ignoraram, por sete anos, a
constituição da Rede-Sinapir, ferramenta que seria importante não só para
monitorar as políticas, mas para aprimorá-las e para tornar o processo
transparente.
Além das questões comentadas, muitas outras dúvidas e omissões
permanecem e o sistema precisa avançar. O fortalecimento e a consolidação do
sistema são imprescindíveis não só para monitorar o cumprimento da legislação e
dos atos normativos, mas para aprimorar as ferramentas de avaliação das políticas
públicas de igualdade racial, contribuindo para o amadurecimento das estratégias
de combate a uma das principais mazelas que acometem a sociedade brasileira: as
desigualdades étnico-raciais.

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nov. 2021.

[37] Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial.

[38] Fóruns Intergovernamentais de Promoção da Igualdade Racial.

[39] Reitera-se que “dotação orçamentária” prevista para o órgão gestor por meio de lei não significa

“autonomia orçamentária”. O que a Portaria n.º 1.968 (Brasil, 2021) induz é que as leis orçamentárias

municipais ou estaduais prevejam, de maneira explícita e concreta, a execução específica de parte do

orçamento para que o órgão responsável pelas políticas PIR de modalidade plena ou intermediária cumpra o

seu programa de ações. Já quanto ao grau de autonomia para execução desse orçamento, viu-se que as

unidades gestoras de modalidade plena têm maior autonomia de gestão de seus recursos em relação às de

modalidade intermediária.

[40] Uma breve questão metodológica: é importante, antes de se consultar diretamente o painel do Siop,

mapear os PPAs que encobrem o recorte temporal da pesquisa, dado que uma consulta apenas por termos

(ex.: “racial”, “igualdade racial”) diretamente no painel do sistema pode não retornar todos os dados possíveis.

Como as metodologias de registro, nomes de programas etc. podem se alterar ao longo das gestões do

executivo federal, buscar a cada período o programa ou as ações exatas do planejamento orçamentário pode

ser mais eficiente. Em nosso caso, a pesquisa foi realizada mapeando as seguintes unidades por período: [i]

2008-2012: “Ação – 2D54 – Apoio a conselhos e organismos governamentais de promoção da igualdade

racial”; [ii] 2015-2019: “Ação – 213Q – Fortalecimento institucional dos órgãos estaduais e municipais para
o enfrentamento ao racismo e promoção da igualdade racial”; [iii] 2020-2021: “Plano orçamentário – 000J –

Fortalecimento institucional dos órgãos estaduais e municipais para o enfrentamento ao racismo e promoção

da igualdade racial”. Portanto, os dados aqui relatados só se referem a essas linhas. No PPA 2004-2007 até há

um programa voltado à promoção da igualdade racial; contudo, como nenhuma das ações previstas estava

explicitamente orientada ao apoio de organismos de PIR subnacionais, o período não foi adicionado à série

histórica. Por fim, para todos os períodos, foram excluídas da base de dados todas as despesas com pagamento

de “diárias”, “passagens”, “despesas com locomoção” e afins; foram mantidos apenas os gastos cuja “natureza de

despesa” fossem transferências a entes da federação, aplicações diretas etc.

[41] Por “dotação disponível” estou compreendendo aquilo que no painel de consulta do SIOP se chama

“dotação atual”, isto é, os recursos disponibilizados pela lei orçamentária anual acrescentados às emendas

parlamentares individuais ou de comissões, acrescentados aos créditos suplementares e/ou decrescidos das

reduções realizadas.

[42] Disponível em: https://sinajuve.ibict.br/. Acesso em: 25 nov. 2021.

[43] Cf. Milanezi e Silva, 2019, p. 444-446.

[44] Cf. Pereira, 2017, p. 107.

[45] Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/igualdade-etnico-racial/acoes-e-

programas/sistema-de-monitoramento-de-politicas-etnico-raciais-2013-simope. Acesso em: 25 nov. 2021.

[46] Cf. Heringer, 2003, p. 292.

[47] Cf. Abreu e Lima Júnior, 2020, p. 293.


Capítulo VII

Práticas de gabinete: a institucionalização de ações de


equidade racial no poder executivo federal entre 1980 e 2017
Jaciane Milanezi

Introdução

Em 23 de abril de 2020, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) enviou uma carta ao Ministério da
Saúde (MS) solicitando a divulgação de dados desagregados por raça/cor das infecções e mortes por Covid-19 na
população brasileira.[48] Para isso, a Associação demandou do Ministério a inclusão da variável racial na ficha de
notificação da doença a ser preenchida nos equipamentos de saúde, principalmente nos hospitais e unidades básicas. A
coleta da raça/cor nos sistemas de informações de saúde nacionais é legal desde 1998[49] e foi atualizada três anos antes
da pandemia de Covid-19, em 2017,[50] sendo um dos principais protocolos da Política Nacional da Saúde Integral da
População Negra (PNSIPN). Ainda assim, a gestão pública brasileira do controle da doença foi marcada pela baixa
informação sobre dados raciais (Lima et al., 2020; Santos et al., 2020).
Legalmente, o objetivo do levantamento do quesito raça/cor de usuárias(os) do Sistema Único de Saúde (SUS) é
diagnosticar as diferenças nas condições de saúde entre brancos e negros (pretos e pardos), a partir da autodeclaração
racial das pessoas. Contudo, quando as administrações públicas passaram a publicar a incidência das infecções,
recuperações e mortes da nova doença pela raça/cor, o que ficou visível foi a fragilidade do SUS em monitorar as
desigualdades raciais em saúde. O problema deu visibilidade a processos históricos que tornaram as desigualdades um
objeto sistemático da ação do Estado, após a redemocratização. O quesito raça/cor é uma expressão da história da
institucionalização da PNSIPN dentro do Estado.
Neste capítulo, analiso a institucionalização da PNSIPN no âmbito do poder executivo federal, entre 1980 e 2017,
pelo mapeamento e qualificação das práticas estatais do campo conhecido como focalização da saúde na população negra.
Assumo aqui o conceito de focalização atrelado a uma concepção de justiça social distributiva (Kerstenetzky, 2006). No
contexto de institucionalização de políticas afirmativas no país (Feres Júnior et al., 2018), essas políticas na área da saúde
pública brasileira devem ser entendidas como ações de equidade racial.
A análise foi feita por meio da revisão de pesquisas sobre a focalização e da análise de diversos documentos de Estado
(leis, decretos, resoluções, planos operativos, relatórios, publicações de estatísticas), o que permitiu identificar a
engenharia institucional da política vigente no país. Pelo termo, refiro-me ao formato atual da focalização, moldado por
normas, objetivos, metas, instâncias burocráticas, políticas públicas, publicações e conferências. Esse formato define como
deveria ser a regulação da saúde às populações negras, ao menos da perspectiva legal. Por meio desse mapeamento, é
possível observar como a questão racial foi inserida dentro da saúde pública brasileira.
Identifico que foi elaborada uma governança oficial da saúde da população negra, construída continuamente nesses
40 anos, que teve como efeito tanto períodos de escassez quanto de massividade de práticas estatais de equidade racial, a
depender das relações políticas possíveis entre ativistas do movimento de mulheres negras e o Estado. O resultado, até o
momento, é a existência legal de inúmeros expedientes da focalização, típicos do cotidiano de burocracias de gabinetes,
construídos por burocratas negras(os) e/ou ativistas do feminismo negro, por meio da política interna às burocracias.
Por burocracias de gabinetes, defino as instâncias burocráticas que legalizam as políticas públicas, em contraste com
as burocracias de guichê (Dubois, 2010), que as implementam a partir de elevado nível de discricionariedade e da relação
face a face com usuárias(os) dos serviços públicos. Analiticamente, assumo essas instâncias como tipos distintos de
burocracias em função dos diferentes perfis profissionais, cotidianos de trabalho e poderes na implementação de políticas.
Ambas produzem ações, mas a partir de singularidades que mereceram ser analisadas, especialmente, pelo poder de
produzirem distintas práticas legitimadas como de Estado, como as normas ou as interações locais com beneficiárias(os).
Além desta introdução, este capítulo conta com uma segunda seção na qual apresento o debate conceitual sobre a
relação entre Estado e movimentos negros, que surgiu nos Estados Unidos a partir da década de 1970, e as perspectivas
críticas sobre o conceito homogêneo de Estado utilizado por essa literatura. Também discuto como as políticas públicas
brasileiras para as populações negras têm sido analisadas com base nessa relação, enfatizando a necessidade de maior
fragmentação das burocracias do Estado.
Na terceira seção, analiso como o Estado foi um espaço de produção de práticas voltadas à diminuição das
desigualdades raciais no campo da saúde pública a partir da atuação dos movimentos de mulheres negras desde 1980,
culminando na adoção de uma política afirmativa na área na primeira década do século XXI, a PNSIPN, instituída pela
Portaria n.º 992 do Ministério da Saúde (MS), de 13 de maio de 2009. Categorizo essa trajetória em dois ciclos, sendo o
primeiro, entre 1980 e 1995, marcado por uma intermitência de práticas burocráticas típicas de gabinetes. O segundo
ciclo, entre 1996 e 2017, é caracterizado por um período de contínua e massiva produção de práticas dessas burocracias.
Ao final da seção, sistematizo a institucionalização do segundo período em termos de leis, burocracias, focos e
publicações chanceladas pelo MS.
Nas considerações finais, argumento que a produção dessa institucionalização ganhou ampliação principalmente em
decorrência do ativismo institucional (Abers e Tatagiba, 2015). Mobilizo, para isso, perspectivas teóricas da relação
Estado e sociedade civil que possibilitam analisar a institucionalização de políticas para além dos clássicos protestos
públicos (Alonso, 2012) e pelos processos incrementais (Lindblom, 2006). O caso da PNSIPN exemplifica que a
permeabilidade da questão racial dentro do Estado depende das relações que se estabelecem entre os movimentos negros
e diversos estratos das burocracias. Além disso, reflito sobre as implicações de a agenda de pesquisa sobre a focalização se
concentrar no poder burocrático de legislar.

Raça, Estado e Movimentos Sociais

Estado e movimentos negros pela perspectiva do Racial Formation

A institucionalização da PNSIPN é parte de uma “trajetória” (Omi e Winant, 1986, p. 84) mais ampla da relação
entre os movimentos negros e o Estado na produção da “raça” nos aspectos distributivos e identitários.[51] Compreender
a construção social da raça a partir dessa perspectiva processual é uma abordagem, hoje, já clássica, presente nos estudos
de relações raciais dos autores citados. Eles argumentam que a ideia de raça serve a diferentes projetos e categorias raciais
que mudam ao longo do tempo a partir de processos políticos mediados pelo Estado.
Nessa perspectiva, o Estado é ator político mediador desses projetos por ser o espaço de absorção, marginalização,
transformação e rearticulação de interpretações, categorias e alocação de recursos com base na raça, a partir da relação
com os movimentos sociais. As transformações significativas nos projetos raciais ocorrem por relações conflituosas ou
consensuais entre esses atores, o que leva os autores da formação racial a nomearem essa relação como uma “trajetória”.
Nesse sentido, eles estão interessados na trajetória de equilíbrio e desequilíbrio dos projetos raciais que se
desenvolvem a partir da relação entre Estado e movimentos. Essa relação é marcada por constantes rupturas, que podem
ser apreendidas nos momentos de construção e desconstrução das políticas públicas, coalizões políticas, governabilidade
e burocracias que gestam ou não os aspectos distributivos e identitários em torno da raça. Como interpretam Feagin e
Elias (2012), o Estado é o principal lugar de contestação racial para os movimentos sociais e ele próprio se reorganiza
politicamente e legalmente para governar a raça, a depender das relações entre Estado e sociedade.
Um exemplo de análise sobre a sucessão de projetos raciais a partir do Estado é a de Antony Marx, em Making Race
and Nation, quando investigou por que Estados advindos de processos coloniais (Brasil, Estados Unidos e África do Sul)
adotaram, ou não, a segregação racial nacionalmente legalizada após a emancipação dos escravos, opções que resultaram
em projetos raciais posteriores específicos em cada um desses países. Marx (1998) observa, paralelamente, como
ocorreram as organizações políticas de negros após a colonização em função dos projetos de segregação.
A chave explicativa de Marx (1998) para o tipo de segregação racial adotado pelo Estado e a formação das resistências
políticas foram os arranjos de unidade política entre as elites brancas de cada país. Ele identificou que, após a abolição,
onde as elites brancas mais se uniram para manutenção de uma supremacia racial branca, o Estado adotou a segregação,
como ocorreu nas experiências norte-americana e sul-africana. Onde as elites brancas não necessitaram de união, pois sua
supremacia na sociedade não estava ameaçada pelos escravos libertos, o Estado não adotou segregação racial, a exemplo
do caso brasileiro.
O autor argumentou, também, que onde o Estado reforçou legalmente uma dominação racial, surgiram mais
conflitos raciais públicos e protestos contra a supremacia branca, gerando uma organização política tida, pelo autor, como
mais forte entre os negros. Por outro lado, onde o Estado não sustentou legalmente a supremacia branca, essa contestação
política ocorreu mais tardiamente, o que dificultou a formação de uma identidade negra pela política.
A obra de Marx (1998) é um exemplo de como refletir sobre os projetos raciais a partir da intermediação do Estado.
Além de sublinhar a agência dos indivíduos coletivamente, como a organização dos movimentos negros na contestação
das ordens raciais vigentes, seu argumento, adotado nessa tese, é pelo papel central da mediação do Estado na definição
dessas relações raciais e de uma dominação racial no curso da história.
Apesar da utilidade da relação entre Estados e movimentos sociais, no entanto, Marx (1998) ainda escreve o Estado
de forma homogênea, sem levar em conta as disputas que ocorrem em seu interior. De fato, apesar de Omi e Winant
(1986) destacarem o aspecto da complexidade interna, ao enfatizarem o quanto as instituições do Estado são
heterogêneas e contraditórias entre si, podendo agir mediante objetivos raciais opostos, esse argumento gerou poucas
pesquisas que investissem em compreender como essa intra-heterogeneidade estatal influenciou na construção de
políticas raciais institucionalizadas.
Enfatizando esse ponto, Goldberg (2002) sublinha um Estado mais complexo e menos coerente, a partir da
fragmentação interna das agências, das burocracias e das políticas públicas, ampliando a análise sobre como o Estado
produz raça para incluir valores dentro de suas instituições. Para ele, se o Estado é instrumental a interesses da sociedade,
é, concomitantemente, oposição a eles. Já Loveman (1999), sublinha a necessidade de desagregação das dimensões das
atividades estatais, bem como dos tipos, papéis e interesses das elites estatais, ou seja, para os conflitos políticos entre
elites concorrentes dentro do Estado.
No caso norte-americano, mais recentemente, Skrentny (2013) também partiu da centralidade do Estado para
analisar as implicações das percepções de uma elite burocrática no sucesso das demandas políticas dos movimentos sociais
raciais nos Estados Unidos. A elite que ele define contempla atores com poder de influenciar o processo de fazer a política
(policy making). O elemento que faz o autor alocar o representante estatal na categoria de elite é sua capacidade de
influenciar resultados políticos que serão materializados em políticas públicas. Com esse critério, essa elite inclui um
amplo leque de pessoas: presidentes, chefes de gabinetes, membros do legislativo, burocratas de agências, juízes.
Ele identificou que a variação no sucesso da implementação de políticas afirmativas demandadas pelos grupos
racializados esteve relacionada às percepções que a elite burocrática tinha sobre os movimentos sociais. Ao comparar a
luta por políticas inclusivas para negros, latinos, asiáticos, indígenas e mulheres, Skrentny (2013) analisou como cada
grupo conseguiu efetivar, politicamente, suas demandas, a depender das percepções dessa elite. Por exemplo, as pressões
dos afro-americanos pelas políticas apenas foram atendidas após massivos protestos violentos que mudaram o
entendimento dessa elite, que passou a ver aquele público como merecedor de uma política pública focalizada. A partir
da experiência com o movimento negro, essa elite conduziu com muito mais facilidade e rapidez políticas posteriores
voltadas para outros grupos socialmente vulneráveis (com exceção das mulheres), pois, automaticamente, passou a
compará-los com os afro-americanos.
Com essa proposta de análise, o autor está chamando atenção para a importância de se estudar os detentores de poder
dentro do Estado, com foco em elites burocráticas. Nesse sentido, interessa-se pela perspectiva de um Estado heterogêneo
e não apenas unitário. Está interessado nas estruturas de poder dentro do Estado e como isso afetará as demandas dos
movimentos sociais. Coaduna com a ênfase do Racial Formation na relação entre Estado e movimentos sociais, mas
marca uma perspectiva de Estado incongruente e não unitário, comparado com estudos pioneiros sobre as relações entre
Estado e movimentos negros, como o de Marx (1998).

Estado, raça e movimentos negros no Brasil

A focalização da saúde na população negra no Brasil é parte de um processo de interferência no Estado, pelos
movimentos negros, desde a redemocratização do país. Como identifica a literatura sobre as relações entre o Estado
brasileiro e os movimentos negros (Lima, 2010; Rodrigues, 2014; Rios, 2014; Paschel, 2016), o período de políticas de
“consciência racial” (Caldwell, 2017, p. 8), visando mitigar desigualdades raciais no país, advém de dois tipos de relação
entre o Estado e os movimentos. Primeiro, a clássica pressão externa ao Estado, após a redemocratização. Posteriormente,
um ativismo interno ao Estado, não necessariamente consensual, com quadros burocráticos atuantes nos diversos níveis
estatais.
Estudos indicam que a elite dos movimentos negros não conseguiu penetrar na política institucional brasileira até a
redemocratização (Rios, 2014), com exceção da transformação da Frente Negra Brasileira (FNB) em partido político na
década de 1930. Por isso, no regime militar, ativistas se organizavam e atuavam politicamente por meio de associações
políticas e culturais fora das instituições políticas clássicas. Como argumentam Andrews e De La Fuente (2018), as
análises das mobilizações negras, na América Latina, tendo como parâmetro os direitos civis norte-americanos e o
antiapartheid sul-africano, impedem a identificação da mobilização política por outras atividades, como estudos mais
recentes já tem demonstrado – revoltas, quilombos, clubes, jornais, organizações civis, irmandades religiosas e sociedades
de ajuda mútua. Ou seja, antes da redemocratização, não houve ausência de contestação política negra no Brasil, mas
mobilizações singulares próprias à história das relações raciais na região.
Apenas na pós-redemocratização, representantes de movimentos negros entram no Estado (Rios, 2014). Desse
período de maior inserção, a avaliação de Lima (2010) é que os governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002)
marcaram uma inflexão no tratamento da raça pelo Estado. Se, antes, o Estado silenciava as desigualdades raciais e
propagava uma harmonia racial no país, aquele governo marcou o reconhecimento do racismo pelo Estado e o início da
adoção de ações para lidar com as desigualdades.
Como analisa a autora, as políticas estavam atreladas à agenda e às burocracias dos Direitos Humanos, com uma
estratégia discursiva e política de reconhecimento das desigualdades, sem ações específicas na redistribuição dos recursos
públicos (Lima, 2010, p. 81). O período produziu ações geradas por uma relação entre os movimentos e Estado mais por
fora, com pouca inserção nas burocracias, a exceção do Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da
População Negra (GTI), sob a coordenação de Hélio Santos.
Já os governos petistas, segundo Lima (2010), modificaram a relação de atuação dos movimentos negros exterior ao
Estado, com representantes ocupando cargos e/ou instâncias de controle da nova gestão governamental, com o tema
racial atrelado a uma pasta específica, a Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), criada em 2003, e a
uma instância colegiada específica, o Conselho Nacional de Participação da Igualdade Racial (CNPIR), do mesmo ano,
pressionando por políticas repressivas, de reconhecimento identitário e de redistribuição de recursos.
Para Paschel (2016), essa mudança no Estado brasileiro, do universalismo para o reconhecimento de direitos à
população negra, é explicada pela atuação dos movimentos negros, mesmo com poucos recursos, falta de apoio popular e
poucos aliados políticos. Segundo a autora, os movimentos negros conseguiram mudar o discurso do Estado, fazendo
com que ele começasse a assumir ações voltadas às desigualdades raciais, em razão de transitarem entre os campos
políticos nacionais e internacionais ao mesmo tempo, conformando o que ela chama de “campo político étnico-racial
global”, entendido como “conjuntos de instituições internacionais e redes transnacionais, bem como normas globais e
repertórios de ação transnacionais” (p. 26, tradução nossa). Para a autora, os ativistas foram capazes de mudar políticas
nacionais por estarem sempre aliados a esse campo, evidência da transnacionalidade da luta política negra (Braga, 2020).
Esses autores convergem para o achado de que os movimentos negros buscaram transformar as desigualdades raciais a
partir de diferentes contextos políticos. Desde a redemocratização, o tema do racismo ganhou espaço na agenda do
Estado, a partir da estratégia adotada por uma elite negra de assumir cargos dentro do aparelho estatal, ou de se
articularem diretamente com os profissionais do Estado, ou, ainda, de assumirem ambos os papéis, transitando entre
movimentos e burocracias, com o objetivo de problematizarem a universalidade dos direitos estabelecidos na
Constituinte e distribuírem esses direitos aos negros via políticas públicas. Como consequência, Rios (2014) e Paschel
(2016) argumentam que esse momento da trajetória gerou a ascensão de uma elite política negra concebida no processo
de construção de políticas públicas raciais via Estado, o que propiciou muito conhecimento aos ativistas em fazer
políticas públicas, legado cujos efeitos ainda demandam análise pelo campo das relações raciais.
Em comparação à literatura norte-americana do Racial Formation, identificam-se poucas pesquisas nacionais que
analisam o comportamento de grupos de elites burocráticas no Estado em torno das recentes políticas raciais.
Investigações nesse sentido poderiam melhor elucidar, por exemplo, se e como a diversidade racial dos quadros
burocráticos do Estado brasileiro mudou e se isso implica em diferentes processos de construção de políticas públicas,
especialmente em função das políticas afirmativas nos concursos públicos federais (Silva e Silva, 2014) e após quase 20
anos desde que os profissionais do Estado passaram a administrar políticas raciais.
Um exemplo é a pesquisa de Powell e Moraes Silva (2018) analisando o processo político de construção e
manutenção das categorias raciais utilizadas no censo do Estado brasileiro (pretos, pardos, amarelos, indígenas e brancos)
nas últimas quatro décadas, apesar das mudanças das narrativas estatais sobre raça. As autoras identificaram o papel
central de burocratas em promover a continuidade dessas categorias diante das disputas por escolhas de categorias mais
válidas e desenvolveram o conceito de technocratic compromise. O termo revela a influência desses profissionais no
processo político de construção das categorias raciais, apesar de não estarem ligados nem às lideranças governamentais
que ocupam o Estado nem às lideranças políticas dos movimentos sociais, mas de usufruírem de um nível de autonomia
para desenhar e implementar as categorias oficiais.
Outro exemplo de análise interna à formação das políticas de cunho racial no Brasil, pode ser encontrado em Gomes
e Alves (2017) ao analisaram a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) em
2003. Eles argumentam que a criação da nova burocracia ocorreu por meio da cooptação de lideranças dos movimentos
sociais para acomodar demandas e tensões do Estado com os movimentos negros, resultando na gradual criação de
“lugares” organizacionais para possibilitar o combate às desigualdades raciais. Ou seja, esses autores argumentam que foi
exatamente esse processo, entendido como uma estratégia política dos movimentos, que promoveu mudanças
institucionais internas ao Estado já que “o cooptador também sofre alterações” (2017, p. 397).
Com o foco nas burocracias do Estado do poder executivo, ainda ficam abertos alguns questionamentos. Como se
formaram, dentro delas, grupos com percepções distintas sobre desigualdades raciais como um problema a ser abordado
pelo Estado? uais são os níveis de centralidade da raça entre as burocracias? ual é a relação das percepções raciais dos
profissionais com as das suas instituições regulamentadoras de políticas afirmativas? Como esses grupos profissionais
influenciaram as políticas raciais mediadas pelo Estado? O quanto a relação com os movimentos sociais raciais
influenciou nas concepções raciais dos profissionais? Dentre outras questões.

Institucionalização da PNSIPN pelos movimentos de mulheres negras

Ciclo 1: escassez de práticas de Estado (1980 – 1995)

Na trajetória de relação entre os movimentos negros e o Estado, o tratamento das desigualdades raciais em saúde foi
impulsionado largamente por ativistas dos movimentos de mulheres negras (Damasco et al., 2012; Caldwell, 2017;
Coelho e Lavalle, 2019; Lima e Rios, 2019). As pessoas identificadas pela literatura como históricas lideranças dessa
construção estão sintetizadas no quadro 1.
Quadro 1 – Lideranças negras da focalização da saúde

Liderança Perfil e vinculações institucionais


Ex-Coordenadora do Programa de Saúde do Geledés, foi Secretária-
Edna Roland
Geral da Conferência de Durban, em 2001.
Médica, elaboradora do Programa de Anemia Falciforme e autora da
Fátima Oliveira publicação “Saúde da População Negra”, em 2002, da Organização Pan-
Americana da Saúde (Opas).
Membra do Grupo de Trabalho Racismo e Saúde da Associação
Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, e atual diretora do Fundo
Fernanda Lopes
Baobá. Foi primeira a representar o movimento negro no Conselho
Nacional de Saúde (CNS).
Membro da Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde (in
José Marmo da Silva
memoriam).
Fundadora de Criola e atual Diretora da Anistia Internacional no
Jurema Werneck Brasil. Representou o movimento negro no CNS e presidiu a 14°
Conferência Nacional de Saúde.
Lúcia Xavier Fundadora de Criola.
Membro do Grupo de Trabalho Racismo da Abrasco e gestor do
Luís Eduardo Batista
Estado de São Paulo.
Ex-Coordenadora Nacional do Movimento Negro Unificado – MNU,
Luiza Helena de Bairros
e Ex-Ministra da Igualdade Racial.
Matilde Ribeiro Ex-Ministra da Igualdade Racial.
Sueli Carneiro Fundadora do Geledés.
Fonte: A autora, 2022.

Conforme a literatura, as organizações dos movimentos negros do início da década de 1970 eram patriarcais e, entre
os conflitos internos aos movimentos, o bloqueio à liderança política das mulheres negras e os posicionamentos sexistas
em relação à reprodução feminina e à violência doméstica favoreceram a criação de organizações específicas de mulheres
negras. Por outro lado, as especificidades desses temas às mulheres negras não encontravam recepção nos movimentos
feministas das mulheres brancas de classe média.
Contra o sexismo e o racismo vindos de ambos os movimentos sociais em que elas circulavam, foram essas ativistas
que inseriram o tema da saúde pública focalizada na população negra dentro dos movimentos sociais e na relação com o
Estado. O ativismo das mulheres negras perante o Estado gerou o campo da saúde da população negra e essa agenda, em
específico o tema da saúde reprodutiva, foi central à própria constituição do feminismo negro no Brasil (Maher, 2005;
Caldwell, 2017; Lima e Rios, 2020).
No processo de construção do campo “saúde da população negra”, o período de 1980 a 1995 é marcado pela pressão
das ativistas negras, externas ao Estado, para que ele lidasse com a diminuição das desigualdades raciais em saúde. Com
pouca permeabilidade dentro das administrações públicas, elas estavam organizadas politicamente em organizações da
sociedade civil brasileira, fundadas a partir da década de 1980. As organizações pioneiras desse processo estão listadas no
quadro 2.

Quadro 2 – Organizações de mulheres negras atuantes na focalização

Ano de fundação Capital Organização


1987 Porto Alegre Maria Mulher
1988 São Paulo Geledés
1992 Rio de Janeiro Criola
Associação Cultural de Mulheres Negras –
1994 Porto Alegre
ACMUN
1997 São Paulo Fala Preta
2002 Rio de Janeiro Rede Lai Lai Apejo
Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e
2003 Rio de Janeiro
Saúde
Fonte: A autora, 2022.

A transnacionalidade dessas lideranças e organizações era fortalecida pela cooperação internacional e pela circulação
em arenas internacionais (Caldwell, 2017; Paschel, 2018; Braga, 2020), especialmente aquelas voltadas à saúde sexual e
reprodutiva sob a organização das Nações Unidas (ONU). No que tange a transnacionalidade dos movimentos
feministas negros, as décadas de 1970, 1980 e 1990 do século XX são marcadas pelos seguintes acordos e eventos
multilaterais que favoreceram a pressão por uma saúde pública focalizada em nível local: a Convenção Internacional
sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1969), a Década Internacional da Mulher (1970-1980),
o III Encontro Feminista da América Latina e do Caribe (1985), a V Conferência Mundial sobre População e
Desenvolvimento (Cairo/Egito, 1994), a IV Conferência Mundial da Mulher (Pequim, 1995).
Além do fortalecimento político das ativistas por fora do Estado e nas arenas internacionais, as décadas de 1980 e
1990 geraram duas delimitações à focalização: o foco na saúde sexual e reprodutiva da mulher negra; e a produção de
informações estatísticas das desigualdades raciais pelo Estado. A luta pelos direitos sexuais e reprodutivos, desde 1980,
pode ser interpretada como o ponto de partida para a atuação das organizações de mulheres negras no Estado, marcando
o início da construção de uma saúde focalizada, legalizada apenas em 2009. Foi por meio da luta junto ao movimento
feminista pela construção dos direitos sexuais e reprodutivos que as ativistas negras incorporaram a perspectiva
interseccional entre raça, gênero e classe, conforme as norte-americanas (Crenshaw, 2004). Conforme aponta Caldwell
(2017), as abordagens feministas provocaram mudanças na perspectiva estatal brasileira de cuidado da saúde das
mulheres. Em contraste ao controle da natalidade, que recaía sobre mulheres negras e pobres (Caetano, 2004), adotou-se,
legalmente, uma perspectiva integral à saúde das mulheres, que estabeleceu cuidados amplos e em todas as fases de vida e
culminou na criação do Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), em 1983.
Naquele período, a atuação das ativistas no campo da saúde sexual e reprodutiva priorizou denunciar e reverter a
incidência da esterilização de mulheres negras, entendida como uma política pública de natalidade no país (Caetano,
2004; Ribeiro-Corossacz, 2009; Caldwell, 2017). Situações-chaves que marcaram esse período de denúncia foram: 1) a
reação das ativistas ao estudo do Governo Maluf (O Censo de 1980 no Brasil e no Estado de São Paulo e suas
curiosidades e preocupações), com propostas racistas de controle de natalidade (1982); 2) a Campanha Nacional contra a
Esterilização de Mulheres Negras (1990); 3) a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Esterilização (1991-
1992); 4) a Declaração de Itapecerica da Serra, do Seminário Nacional de Políticas e Direitos Reprodutivos das Mulheres
Negras (1993).
A denúncia da esterilização como uma política pública de controle demográfico foi motivada por uma série de
publicações com dados estatísticos das desigualdades por instituições da sociedade civil. Destacaram-se os estudos
populacionais da demógrafa Elza Berquó, do Centro Brasileiro de Análise Planejamento (Cebrap) e do Núcleo de
Estudos de População (Nepo/Unicamp), como o “Dinâmica Demográfica da População Negra Brasileira” (1982). Além
da produção estatística, o Cebrap, por meio das iniciativas de Berquó e do Programa de Saúde Reprodutiva da Mulher
Negra, foi responsável pela formação de pesquisadores, principalmente pesquisadoras negras, que atuaram,
posteriormente, na construção da focalização junto ao Estado. Também se destacaram as publicações do Programa de
Saúde do Geledés, coordenado na época por Edna Roland, como o “Esterilização: impunidade ou regulamentação?”
(1991).
Desde o período das denúncias da prática de esterilização de mulheres, a produção de dados estatísticos para
visibilizar as desigualdades raciais em saúde passou a ser uma estratégia política das ativistas (Ribeiro-Corossacz, 2009;
Damasco et al., 2012; Caldwell, 2017; Lima e Rios, 2020), que se manteve no ciclo seguinte. Em parte, porque na época
das denúncias faltavam dados para sustentar a alegação de racismo nas políticas de controle de natalidade. Vale relembrar
que dados estatísticos do Estado com a clivagem racial não eram publicados, sendo exceção o Suplemento Especial sobre
esterilização, da Pesquisa Nacional por Amostragem em Domicílio (PNAD), em 1986. Por isso, a produção estatal de
estatísticas das desigualdades raciais em saúde, via criação de um quesito raça/cor nos sistemas de informações da saúde
pública, passou a ser uma estratégia política dessas mulheres. Assim, o Estado poderia adotar ações a partir desses dados.
Ao qualificar as práticas que resultaram da relação dos movimentos de mulheres negras com o Estado no ciclo que vai
de 1980 a 1995, identifiquei que o período foi majoritariamente caracterizado por ações esparsas entre si, tipicamente de
gabinetes, relacionadas à saúde sexual e reprodutiva e à produção pública de estatísticas das desigualdades raciais em
saúde. Exemplos típicos de práticas foram as instâncias de participação, como o Conselho Estadual da Condição
Feminina do Estado de São Paulo, em 1980, e grandes programas, como o Programa de Atenção Integral à Saúde da
Mulher – Paism, em 1983. A criação de instâncias e programas tornou-se mais sistemática no período seguinte.
Esse ciclo escasso de tecnologias de governo encerra-se com um protesto dos movimentos negros, a Marcha Zumbi
dos Palmares, ocorrida em 20 de novembro de 1995, que pautou demandas perante o Estado por meio de uma clássica e
bem visível estratégia dos movimentos sociais, o protesto público.

Ciclo 2: a massividade de expedientes de Estado (1996 – 2017)

Caracterizo o segundo ciclo, entre 1996 e 2017, como um período de contínua e massiva produção de práticas
burocráticas do tipo de gabinetes, culminando na institucionalização da focalização pela Portaria do Ministério da Saúde
n.º 992, de 13/05/09, sob o nome de Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). Os
aproximados vinte anos do ciclo foram influenciados pelas demandas de dois grandes protestos políticos, distantes
temporalmente: a Marcha Zumbi dos Palmares, de 20 de novembro de 1995, e a Marcha das Mulheres Negras, ocorrida
em 18 de novembro de 2015.
Além dos ocorridos no Brasil, um evento internacional foi central para fornecer a intensidade das ações que
culminaram na regulamentação da focalização em 2009: a Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação
Racial, a Xenofobia e formas Correlatas de Intolerância, em Durban, entre 31/8/2001 e 8/9/2001. Especialmente, os
governos do PT (Lula e Dilma) foram os mais pressionados pelos compromissos internacionalmente firmados em
Durban (Ribeiro, 2014; Paula e Heringer, 2009).
As demandas do protesto de 1995 atravessaram os governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC – 1995 a 2003) e
dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT – 2003 a 2016). Mas, após a Conferência de Durban (2001) e, em
paralelo à chegada ao poder do PT, a produção de práticas burocráticas da focalização passaram a ser feitas com ativistas
por dentro das burocracias de Estado (Caldwell, 2017; Paschel, 2018).
Essa inserção não está descolada de um movimento mais amplo de entrada dos movimentos sociais nas burocracias do
Estado na América Latina (Paschel, 2016; Lavalle, 2019). Representantes dos movimentos de mulheres também
passaram a atuar internamente no Estado, ocupando cargos comissionados ou posições em instâncias participativas
(Caldwell, 2017). Isso não significa que as relações com o Estado passaram a ser consensuais, mas que as novas
configurações do poder permitiram que representantes dos movimentos negros penetrassem as burocracias federais
(Araújo, 2015).
A construção da focalização nesse período, por representantes dos movimentos negros foi analisada por Araújo
(2105). O autor entrevistou as principais lideranças dos movimentos que atuaram nessa institucionalização, a exemplo
dos representantes das instituições Criola, Geledés, Unegro, Renafro. As lideranças avaliaram o processo a partir das
ações do Estado e das estratégias políticas adotadas por essas organizações. Segundo ativistas, a atuação do Estado fora
paradoxal: apesar da adoção da temática racial na saúde, a gestão do tema dentro do próprio ministério se deu de forma
lenta. Eles indicaram, também, outras características da atuação estatal, como o foco pouco preventivo da política, as
ações fragmentadas, a falta de pressão política entre os entes federados para a implementação local e a falta de decisão
política em torno dos próprios dados estatísticos de desigualdade do Estado. Ao avaliarem as estratégias adotadas pelas
organizações que representam, os ativistas focaram em discorrer sobre a fundamentação legal da Política e a ocupação de
instâncias centrais de gestão do SUS, a exemplo do Conselho Nacional de Saúde (CNS).
Observa-se que, nesse longo lobby burocrático, conhecer o perfil epidemiológico da população negra pela clivagem da
raça continuou sendo um ponto de luta política central que atravessou os dois ciclos. Como analisou Lima (2010; 2020),
a produção de conhecimento a partir desses dados e o acesso a eles sempre foi um obstáculo no campo da saúde. Observa-
se que, no período anterior, marcado pela construção dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, as ativistas
indicavam a ausência de dados oficiais que possibilitassem comprovar, estatisticamente, as desigualdades nos resultados de
saúde entre mulheres brancas e negras. Como narrou em entrevista Edna Roland (ex-presidente da ONG Fala Preta! e
relatora geral da Conferência de Durban) a Ribeiro-Corossacz (2009), a classificação racial foi uma estratégia utilizada
para visibilizar as desigualdades na saúde pela produção estatística do Estado.
Algumas leis específicas sobre a inserção do quesito raça/cor nos sistemas de informação do SUS se materializaram no
segundo ciclo. Por exemplo, em 1996, ocorreu a legalização da coleta da raça/cor para alimentar o Sistema de
Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc) e o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), sistemas com melhores
completudes da informação (Braz et al., 2013). Para isso, o quesito foi inserido nas Declarações de Nascidos Vivos
(DNV) e Declarações de Óbito (DO) – Resolução n.º 196, de 10/10/1996, do Conselho Nacional de Saúde (CNS).
Recentemente, a coleta recebeu reforço legislativo. A Portaria n.º 344, de 1/2/2017, dispõe sobre o preenchimento
do quesito raça/cor nos formulários dos sistemas de informação em saúde do SUS. Já o artigo 243, da Portaria de
Consolidação n.º 1, de 28/9/2017, que consolida “normas sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde, a organização
e o funcionamento”, reforça a coleta do quesito pela criação de ferramentas para o monitoramento e avaliação,
qualificação da coleta do dado raça/cor e publicação sistemática anual de relatório sobre a saúde da população negra. Isso
indica o esforço político dos movimentos sociais em assegurar que o Estado continue a dar visibilidade às desigualdades
raciais por sua produção estatística.
Se a criação e uso do quesito raça/cor ainda é um dos principais protocolos da PNSIPN, sua utilização gerou
controversa entre ativistas e cientistas no campo da saúde na época. A quantidade de artigos publicados sobre isso no ano
de 2005 é exemplar. Para as ativistas, a produção estatística pela raça/cor era necessária para evidenciar as diferenças e
combater desigualdades. Alguns pesquisadores (Maio e Monteiro, 2005; Fry, 2005) argumentavam que essa ação não era
acompanhada de duas reflexões. Uma, sobre o impacto da classificação estatal na construção de identidades racializadas
(Bailey et al., 2018). Outra, sobre a relação não comprovada, geneticamente, entre raça e doença, o que induziria à
perspectiva biológica da ideia de raça (Morning, 2011).
Apesar da controversa no campo da saúde, a busca por fornecer visibilidade às desigualdades pelas estatísticas estatais
não está desassociada da estratégia mais ampla desse momento da relação entre os movimentos negros e Estado: o uso de
dados numéricos de desigualdades raciais para legitimar as demandas políticas mediadas por ele. Conforme indica Lima
(2010), a inclusão do quesito cor nos sistemas de informação do Estado e a produção de informações públicas sobre a
população negra foi, oficialmente, estabelecida como meta pelo Estado já no I Programa Nacional de Direitos Humanos
(PNDH), em maio de 1996.
Posteriormente, o uso de estatísticas das desigualdades passou a ser uma ação política mais ampla para a ida à Durban
(2001). Como identificou Paschel (2016), o movimento negro brasileiro mobilizou os dados como uma estratégia
política na Conferência. A estratégia brasileira diferiu daquela adotada pelos pares colombianos e por outros países
latino-americanos que não produziam estatísticas étnico-raciais, que se limitaram a mobilizar politicamente os símbolos
da cultura e identidade afro, menos efetivos para demandar políticas de redistribuição.
No campo da saúde, um exemplo do uso das estatísticas em Durban (2001) foi a publicação do relatório Nós,
mulheres negras, da Articulação de Organização de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), sediada em Salvador/BA. O
documento foi publicado após encontro nacional da organização, em setembro de 2000, que traçou a situação da mulher
negra brasileira, incluindo as questões da saúde reprodutiva (Caldwell, 2017). Segundo a autora, para a Conferência de
Durban (2001), o relatório foi traduzido para outros idiomas e distribuído aos representantes dos países na conferência.
As estatísticas desafiavam a narrativa do Estado brasileiro caracterizada pelo silenciamento das desigualdades raciais
vividas pelas mulheres negras com vistas à manutenção da imagem de país racialmente harmônico.
Ao revisar as ações afirmativas no campo da saúde, Lima (2010) argumentou que a trajetória da relação entre
movimentos e Estado teve três momentos. O primeiro foi marcado pela demanda por produção pública de dados das
desigualdades raciais. Depois, recebeu ênfase a visibilidade pública da incidência de doenças na população negra. Por fim,
o foco atual no racismo institucional. Apesar da visibilidade das práticas advindas dessa nova relação com o Estado, o
ativismo interno no SUS ainda foi pouco analisado. Como evidencia Paschel (2016) em sua etnografia sobre a
construção das políticas afirmativas no Brasil, os representantes dos movimentos negros com quem a pesquisadora
conversou tenderam a privilegiar os momentos visíveis dos protestos públicos na explicação sobre a mudança no discurso
e nas políticas do Estado em detrimento das estratégias não midiáticas. Uma cronologia sintética desse processo e das
principais ações de equidade racial em saúde podem ser encontradas em linha do tempo elaborada por mim para o Nexo
Políticas Públicas (Milanezi, 2020a).
A engenharia institucional da PNSIPN entre 1996 e 2017

Foram muitas as práticas de Estado resultantes da estratégia do ativismo institucional para construir a focalização por
dentro das burocracias de gabinetes. Para melhor sistematizá-las, passo a agrupá-las por tipo: a) legislação; b) metas e
focos; c) instâncias de assessoramento/gestão; e) publicações do Ministério da Saúde; e f ) encontros e conferências. Esse
agrupamento permite melhor identificar as práticas que estão protocoladas como de equidade racial pelo governo federal.
A legislação sobre a focalização da saúde na população negra versa, principalmente, sobre direitos sexuais e
reprodutivos, coleta do quesito raça/cor nos sistemas de informações do SUS, instâncias de participação dos movimentos
negros nas políticas de saúde e formas de operacionalização das ações entre os entes federativos. No quadro 3, elenco as
principais leis, resoluções e portarias em vigor.
Quadro 3 – Legislação nacional sobre a saúde da população negra

Ano Legislação Conteúdo


Regulamentação do planejamento familiar, após quase duas
1996 Lei n.º 9.263, de 12 de janeiro décadas de atuação política dos movimentos feministas por
direitos sexuais e reprodutivos.
Resolução n.º 196, de 10 de
Inclusão do quesito raça/cor nas Declarações de Nascidos
1996 outubro, do Conselho Nacional de
Vivos (DNV) e Declarações de Óbito (DO).
Saúde (CNS)
Inclusão da doença falciforme dentro do Programa
Portaria n.º 822, de 6 de junho, do
2001 Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), o famoso Teste do
MS
Pezinho.
Portarias n.º 1.678, de 17/8/04, e Instituição do Comitê Técnico de Saúde da População
2004
n.º 2632, de 15/12/04, do MS Negra (CTSPN).
Portaria n.º 992, de 13/5/09, do Instituição da Política Nacional de Saúde Integral da
2009
MS População Negra (PNSIPN).
Aprovação do Estatuto da Igualdade com o Capítulo de
2010 Lei n.º 12.288, de 20 de julho
Saúde.
Resolução n.º 2, de 2 de setembro, Estabelecimento do II Plano Operativo da PNSIPN
2014
do MS (2013-2015).
Extinção do CTSPN e instituição da Comissão
Resolução n.º 513, de 6 de maio,
2016 Intersetorial de Políticas de Promoção da Equidade
do CNS
(CIPPE).
Resolução n.º 16, 30 de março, do Estabelecimento do III Plano Operativo da PNSIPN
2017
MS (2017-2019).
Portaria n.º 344, de 1 de fevereiro, Atualização do preenchimento do quesito raça/cor nos
2017
do MS formulários dos sistemas de informação em saúde do SUS.
Portaria de Consolidação n.º 2, de Estabelecimento da PNSIPN como uma política de
2017
28 de setembro, do MS Promoção da Equidade em Saúde.
Fonte: A autora, 2022.

A última norma de 2017 merece maior atenção, pois permanece válida até o momento da escrita deste capítulo,
período governamental de mudanças no discurso e nas políticas sobre raça, racismo e desigualdades raciais (Rios, 2020).
Em Brasília, no dia 3 de outubro de 2017, no Diário Oficial da União (DOU), Seção 1, Suplemento n.º 190, foi
publicada a primeira etapa da elaboração do Código do SUS, documento de 716 páginas que visa atualizar e compilar as
normas do sistema. No suplemento, a Portaria de Consolidação n.º 2, de 28 de setembro de 2017, que estabelece “normas
sobre as políticas nacionais de saúde do Sistema Único de Saúde”, reafirmou a PNSIPN como uma política do SUS, no
Anexo XIX, entre as páginas 120 e 122.
De acordo com essa Portaria, a PNSIPN passou a ser uma política de Promoção da Equidade em Saúde, prevista no
âmbito do Capítulo I – Das Políticas de Saúde, na Seção IV – Das Políticas de Promoção da Equidade em Saúde, no Art.
5.º, com o seguinte objetivo: “Promover a saúde integral da população negra, priorizando a redução das desigualdades
étnico-raciais, o combate ao racismo e à discriminação nas instituições e serviços do SUS” (Portaria de Consolidação n.º
2, de 28/9/17, p. 120).
Isso significa que a partir da gestão de Michel Temer (2016-2018), a PNSIPN passou a ser considerada uma das
políticas de equidade no âmbito do SUS, juntamente com as relacionadas às populações LGBT e em isolamento
territorial (campo, floresta, água). Ou seja, no campo da saúde pública, observam-se mudanças semânticas oficiais na
focalização. Até o momento, o Ministério da Saúde reconhece o racismo como um determinante social de saúde e
mantém normas para lidar com as desigualdades raciais em saúde. Porém, opta por outros termos menos racializados,
como nos ciclos anteriores.
A lei da PNSIPN (inicialmente, pela Portaria n.º 992, de 13/5/09 e, depois, pela Portaria de Consolidação n.º 2, de
28/9/17) convoca três grupos de princípios democráticos: 1) constitucionais, 2) do SUS, 3) outros definidos na própria
lei (equidade, transversalidade e integralidade). Da Constituição Federal de 1988, mobilizou os seguintes princípios:
seguridade social, cidadania, dignidade, repúdio ao racismo e igualdade. Do SUS (Lei n.º 8.080, de 19/9/1990):
universalidade, integralidade, igualdade, descentralização, participação popular, controle social.
O princípio da equidade é definido na Portaria da PNSIPN como aquele “que embasa a promoção da igualdade a
partir do reconhecimento das desigualdades e da ação estratégica para superá-las”. A transversalidade é definida como
“complementaridade, confluência e reforço recíproco de diferentes políticas de saúde”. A visão integral do sujeito é
estabelecida nos seguintes termos: “considerando a sua participação no processo de construção das respostas para as suas
necessidades, bem como apresenta fundamentos nos quais estão incluídas as várias fases do ciclo de vida, as demandas de
gênero […]”.
Além da tríade equidade-transversalidade-integralidade, a Portaria oficializa o reconhecimento do racismo pelo
Estado brasileiro nas condições de saúde: “Reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo
institucional como determinantes sociais das condições de saúde, com vistas à promoção da equidade em saúde” (Portaria
de Consolidação n.º 2, de 28/9/2017, Anexo XIX – PNSIPN, Capítulo II – Objetivo Geral, p. 120).
A partir dessa legislação, identifico três grandes grupos de ações delimitados para intervenção do Estado. O quadro 4,
a seguir, sintetiza o foco da política em termos de agravos, grupos populacionais e expedientes estatais.
Quadro 4 – Delimitações da focalização da saúde na população negra

Ação Detalhamento

Morbimortalidade materna e infantil


Violências

Doença falciforme
DST/HIV/Aids
Agravos Tuberculose

Hanseníase
Câncer de colo uterino
Câncer de mama

Transtornos mentais
Jovens e adolescentes negros

Adultos em conflito com a lei


Grupos Comunidades quilombolas
Mulheres negras (assistência ginecológica, obstétrica, puerpério, abortamento,
situações de violência)

Institucionalizar instrumentos de monitoramento via previsão orçamentária,


seminários nacionais, comitês internos, cooperações federativas, metas em planos e
orçamentos públicos
Diagnosticar situação de saúde pelo quesito raça/cor nos formulários do SUS
Práticas Produzir materiais sobre a saúde da população negra, com foco na perspectiva das
religiões de matriz africana

Realizar estudos sobre acesso aos recursos de saúde pública, especialmente, da


Atenção Primária à Saúde (APS)
Formar profissionais do SUS
Fonte: A autora, 2022.

Em função desses focos, ações específicas transformaram-se em políticas públicas ou programas, como: Programa de
Anemia Falciforme (PAF) de 1996; Programa de Combate ao Racismo Institucional de 2001; Programa Estratégico de
Ações Afirmativas: população negra e AIDS de 2005; Ação de Atenção à Saúde das Populações uilombolas, no
Programa Brasil uilombola de 2005; Programa de Combate ao Racismo Institucional na Saúde de 2005; Programa
Nacional de DST/AIDS de 2005; Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) de 2009.
Da legislação mencionada, os Planos Operativos (PO) também merecem análise mais detalhada, pois são exemplares
do percurso da focalização dentro das instâncias do Ministério da Saúde. Os PO da PNSIPN são tecnologias que
transformam a política em estratégias de ação e orientam os quadros burocráticos para sua implementação. Existiram três
Planos. O I Plano, para os anos de 2008 a 2011, foi estabelecidoem umdocumento do Ministério da Saúde (MS), em
abril de 2008, intitulado Política Nacional de Saúde Integral da População Negra – Plano Operativo. O II Plano, para os
anos de 2013 a 2015, foi estabelecido pela Resolução n.º 2, de 2 de setembro de 2014, da Comissão Intergestores
Tripartite do MS; o III Plano, para os anos de 2017 a 2019, foi estabelecido pela Resolução n.º 16, de 30 de março de
2017, também pela Comissão Intergestores Tripartite do MS.
Entre os nove anos que separam os três Planos, de 2008 a 2017, observa-se que a focalização da saúde na população
negra foi pactuada em diferentes instâncias do ministério, mudou de formato institucional, ampliou a mobilização das
convenções internacionais, ampliou a mobilização das regulamentações nacionais sobre políticas afirmativas e delimitou a
focalização dentro do SUS. No que se refere às convenções multilaterais, os dois primeiros planos não as mobilizaram em
seus preâmbulos. Já o III Plano registrou o compromisso do governo brasileiro em relação à Convenção Internacional
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; à Conferência Mundial contra o Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, Durban, África do Sul; e à Década Internacional de
Afrodescendentes (2015 e 2024).
No que tange à legislação nacional, os planos passaram cada vez mais a mobilizar as legislações que foram criadas
dentro do Estado no período de políticas de “consciência racial” (Caldwell, 2017). Se no I PO, há menção ao PAC Mais
Saúde e ao Pacto pela Saúde, nos II e III Planos são acionados o Estatuto da Igualdade Racial (Lei n.º 12.288, de 20 de
julho de 2010), a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra – PNSIPN (Portaria GM/MS n.º 992, de 13
de maio de 2009) e os acordos com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da
República (Seppir/PR).
Apesar da variação no quantitativo de metas a ser alcançado pelo Governo Federal, Estados e Municípios, o comum
aos três Planos é o que se priorizou para a PNSIPN: a formação dos profissionais da saúde; a produção de conhecimento
sobre desigualdades raciais na área; a criação de instrumentos de monitoramento dessas desigualdades (indicadores e
avaliações); a ampliação do acesso aos serviços; a participação social no controle das políticas de saúde; o fortalecimento
das religiões de matriz africana; as violências às populações negras (homicídios, materna-infantil, doméstica); a saúde
sexual e reprodutiva da mulher negra; e a doença falciforme.
A análise desses planos indica, também, que a gestão da política se inseriu em diferentes espaços de poder de decisão
sobre a saúde pública entre 1996 e 2017. Isso nos leva a entender melhor as instâncias da administração pública que
assessoraram, administraram e monitoraram a implementação da focalização, conforme quadro a seguir. Este inclui,
também, a mudança mais recente de posicionamento da política dentro do MS. Essas burocracias variaram entre espaços
de participação da sociedade civil nas políticas, espaços de decisão entre os entes federativos sobre as políticas de saúde e
espaços de implementação cotidiana por burocratas no MS.
Quadro 5 – Instâncias burocráticas da focalização entre 1996 e 2019

Ano Burocracia
Grupo de Trabalho (GT) sobre saúde da população negra, no âmbito do Grupo de
1996
Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra
2004 Comitê Técnico de Saúde da População Negra (CTSPN), extinto em 2016
2006 Conselho Nacional de Saúde (CNS)
2008 Comissão Intergestores Tripartite (CIT)
Coordenadoria-Geral de Apoio ao Controle Social, à Educação Popular em Saúde
e às Políticas de Equidade do SUS, dentro da Diretoria de Apoio à Gestão
2009
Participativa (Dagep) da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (Segep),
que geriu a PNSIPN desde a criação da política e foi extinta em 2019
Comissão Intersetorial de Políticas de Promoção da Equidade (Cippe), que passou
2016
a concentrar as políticas nomeadas de equidade
Coordenação de Garantia da Equidade (Coge), da Coordenação-Geral de Garantia
2019 dos Atributos da Atenção Primária (CGGAP), do Departamento de Saúde da
Família (DESF), da Secretaria de Atenção Primária em Saúde (SAPS)
Fonte: A autora, 2022.

Para legitimar as ações de equidade racial, várias publicações sobre a saúde da população negra foram
sistematicamente publicadas por agências estatais e se encontram disponibilizadas ao público, como na Biblioteca Virtual
em Saúde (BVS) do MS. No quadro 6, estão registradas as principais publicações com a chancela do Ministério da Saúde.
Quadro 6 – Publicações do governo federal sobre a saúde da população negra

Ano Publicação Disponibilidade


Manual de
Doenças Mais
Importantes, por
2001 Razões Étnicas, https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/doencas_etnicas.pdf
na População
Brasileira
Afrodescendente
Política
Nacional de
Saúde Integral
2001 da População https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_populacao_negra_3d.pdf
Negra: uma
questão de
equidade
Saúde da
População Negra
no Brasil –
2005 https://bvsms.saude.gov.br/bvs/pop_negra/pdf/saudepopneg.pdf
contribuições
para a promoção
da equidade
Perspectiva da
Equidade no
Pacto Nacional
pela Redução da
Mortalidade
2005 https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/perspectiva_equidade_pacto_nacional.pdf
Materna e
Neonatal:
atenção à saúde
das mulheres
negras
Saúde da
2012 https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/saude_populacao_negra.pdf
População Negra

Fonte: A autora, 2022.


Painel de
Indicadores do
SUS n.º 10 –
2016 http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2016/maio/13/painel10-130516.pdf
Temático Saúde
da População
Negra
Política
Nacional de
Saúde Integral
2017 https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_populacao_negra_3d.pdf
da População
Negra – uma
política do SUS
O SUS está de
braços abertos
2017 https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/SUS_bracos_abertos_saude_populcao_negra.pdf
para a saúde da
população negra
Fonte: A autora, 2022.

Os encontros, conferências e seminários de Estado também foram práticas sistemáticas desse processo institucional.
Como eventos específicos da focalização, a partir de 1996, destaco: a Mesa-Redonda sobre Saúde da População Negra
com a divulgação de uma taxonomia de doenças negras (1996); a realização do seminário internacional
Multiculturalismo e Racismo: o Papel da Ação Afirmativa nos Estados Democráticos Contemporâneos (1996); o
Workshop Interagencial sobre Saúde da População Negra, por iniciativa do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento/PNUD e da Organização Pan-Americana da Saúde/OPAS (2001); o I Seminário Nacional de Saúde
da População Negra (2004); e o II Seminário Nacional de Saúde da População Negra (2006). Somando-se a eles, a 12.ª e
a 13.ª Conferências Nacionais de Saúde (2003 e 2007) também passaram a registrar a focalização em seus documentos.
Para marcar o tema, foi definida uma data: 27 de outubro, escolhido como o Dia Nacional de Mobilização Pró-Saúde
da População Negra. Recente memória desses quase quarenta anos de ativismo institucional perante o Estado foi
realizada pelas representantes do Grupo de Trabalho Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva
(Abrasco), Maria do Carmo Sales Monteiro e Fernanda Lopes, em entrevista a esta pesquisadora em 27 de outubro de
2020 (Milanezi, 2020b). Naquele ano, o governo federal não organizou nenhum evento sobre a focalização, mesmo
diante da desigual distribuição da infeção e morte pela Covid-19 (Marinho et al., 2021).

Considerações nais: a focalização da saúde da população além da legislação

Essa síntese de ciclos, práticas e protocolos da focalização revela um resultado da trajetória da relação entre
movimentos negros e Estado no campo da saúde pública: um arcabouço de práticas estatais características das burocracias
de gabinete que regulamentam a proposta de governar a saúde de negras e negros. Identifica-se que a construção da
PNSIPN foi longa, contínua, entre intermitência e continuidade na produção dessas práticas. Por isso, a perspectiva de
incrementalismo na mudança das ações do Estado parece apropriada para o caso: “uma sequência rápida de pequenos
passos, alterando drasticamente o statu quo antes que uma mudança maior de golpe” (Lindblom, 2006, p. 107, tradução
nossa).
Como evidencia Lima (2010, p. 83) ao analisar uma década de políticas afirmativas nos campos da educação,
trabalho e saúde, “o volume de documentação encontrada […] sinaliza o esforço de institucionalizar a questão racial por
meio do recurso de programas, leis e decretos”. Mas, como argumenta a autora, esse não é um projeto acabado, mas um
processo mais longo e em curso sobre políticas de redistribuição e reconhecimento no país.
Os estudos das relações raciais (Omi e Winant, 1986), da ação coletiva (Lavalle et al., 2019), da implementação de
políticas (Zittoun, 2014) e dos processos de formação de Estado (Shore e Wright, 1997) argumentam pela compreensão
das políticas públicas a partir da disputa contínua de diversos agentes, em distintos espaços do Estado. Como argumenta
Vianna (2013), quando se analisa o universo das leis, tende-se à distinção precisa entre o que seja Estado e Sociedade, pela
separação de fazeres, sendo a primeira instituição a responsável em legislar e a segunda a sede de aplicação das leis.
Contudo, conforme a autora, ao analisarmos atores, instâncias e práticas envolvidas na produção da legislação, essa
separação é inviável.
A análise desse processo revela como o ativismo burocrático interno ao Estado possibilitou que a focalização fosse
construída, muito mais que pelos grandes protestos políticos dos movimentos sociais, tidos como as clássicas ações
coletivas que mudam a trajetória da relação com o Estado. As ativistas dos movimentos de mulheres negras, ora como
representantes de seus movimentos, ora como profissionais do Estado, podem ser caracterizadas como “desafiantes”
(Alonso, 2012) e sua atuação pode ser descrita como “ativismo institucional” (Abers e Tatagiba, 2015), por se
apropriarem de redes de relacionamentos dentro e fora do Estado para suas movimentações políticas dentro das
burocracias. Essa foi a estratégia mobilizada para provocar uma mudança política incremental em um período em que o
Estado reconheceu publicamente as desigualdades.
Os profissionais não eleitos que atuam pelo Estado não são meros operadores de decisões governamentais, mas atores
dentre tantos outros que definem e disputam politicamente as ações do Estado. Segundo Rua e Aguiar (2006), burocratas
não são agentes neutros; eles mobilizam recursos políticos em seus grupos de interesse, desenvolvem concepções próprias
sobre as políticas que competem com as dos próprios políticos eleitos, definem um papel no jogo político das políticas
públicas. Ainda segundo as autoras, os funcionários do Estado fazem governo quando conseguem formular metas
políticas próprias, as ajustam a procedimentos governamentais já existentes, ocupam posições centrais no governo e
controlam decisões em torno da implementação das ações.
Conforme pesquisas sobre a PNSIPN com foco locais (Araújo e Teixeira, 2013), é possível interpretar que a
construção das práticas institucionais da focalização no nível federal, atualmente sendo replicadas no estadual e
municipal, advém de uma circulação de ativistas e gestoras(es) públicos articulados com os movimentos de mulheres
negras. O universo de articulação política dentro e entre essas burocracias de gabinete do poder executivo indica o quanto
a produção da institucionalização foi difusa entre os níveis federativos e conflitiva com os quadros do Estado (Batista et
al., 2016) e dos movimentos sociais (Maher, 2005).
Como apresentei no item 2, ainda são escassas pesquisas sobre como as burocracias do poder executivo se
transformaram para a construção e implementação de políticas afirmativas desde a redemocratização. Como exemplo,
sabemos pouco ainda sobre a criação, perfil e comportamento dos quadros burocráticos dentro do Ministério da Saúde
(MS) para gerir políticas de equidade racial. Ou sobre os fluxos de institucionalização dessas políticas a partir das
disputas internas dentro das burocracias do ministério.
Atualmente, o Brasil passa por transformações políticas em direção ao espectro conservador (Lima, 2018). Também,
as mudanças recentes no governo federal já caminham para processos de desinstitucionalização de políticas públicas
destinadas às populações negras e retração da permeabilidade dos movimentos negros dentro Estado (Rios, 2020). No
novo contexto, será necessário analisar como essas transformações entram nas burocracias centrais da saúde pública e
como influenciam a trajetória da focalização nos próximos anos. De fato, as transformações internas e cotidianas do
poder executivo para administrar políticas voltadas ao combate das desigualdades raciais e seu oposto, as modificações
para esvaziamento dessa gestão, são temas em aberto atualmente no campo das relações raciais.
A histórica institucionalização da focalização revela um lado da governança de populações. A trajetória possibilitou
experiência com práticas de institucionalização dentro do Estado brasileiro que pode ser mobilizada pelos movimentos
sociais para demandar continuidade e capilaridade política nas burocracias do SUS. Mas, como argumenta literatura
sobre o Estado, essas práticas são a parte visível e espetacular do poder de governar (Fonseca et al., 2016). Tão espetacular
que levam os próprios agentes da regulamentação a priorizarem a análise, a narração e as propostas de monitoramento a
partir desse conjunto de ações (Werneck, 2016). O foco, portanto, volta-se para o campo jurídico, ou os “grandes papeis”
das políticas públicas (Nogueira, 2016).
Por isso, vale avançar na análise sobre a institucionalização em burocracias da ponta do SUS, com base nas
perspectivas fragmentadas de Estado (Shore e Wright, 1997). Como conclui Caldwell (2017), é necessário analisar a
reverberação da focalização dentro do próprio sistema de saúde. Eu sublinharia maior esforço analítico em torno das
burocracias do “guichê” (Dubois, 2010), a exemplo de hospitais e unidades básicas de saúde. Como ocorre a construção
da focalização em burocracias que se relacionam diretamente com os usuários, majoritariamente pessoas negras, que estão
mais distantes do processo institucional via leis, estatísticas, metas e publicações? Como dinâmicas locais dessas
burocracias criam práticas de equidade racial, reproduzem ou minimizam desigualdades, apesar dos distintos governos?
uais são as características da institucionalização da equidade racial por outras práticas estatais? Se a perspectiva de
análise de implementação da PNSIPN estiver inclinada apenas a considerar as transformações das práticas de gabinetes,
pouco espaço há para a análise da reverberação da política nos equipamentos públicos de saúde. Dessa forma, são
desconsiderados os aspectos políticos e discricionários de outras instâncias burocráticas que também fazem raça.

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[48] Para acesso à carta da Abrasco, ver: https://www.abrasco.org.br/site/noticias/posicionamentos-oficiais-abrasco/carta-ao-ministerio-da-saude-sobre-a-

informacao-raca-cor-nos-sistemas-de-informacao-da-covid-19/47320/. Acesso em: 20 abr. 2022.

[49] Portaria n.º 3.947, de 25 de novembro de 1998, do Ministério da Saúde (MS).

[50] Portaria n.º 344, de 01 de fevereiro de 2017, do Ministério da Saúde (MS).

[51] Na perspectiva desses autores, Raça é campo autônomo de produção de conflitos sociais, organização política e significados culturais, entendida como “um

conceito que significa e simboliza conflito e interesse social por meio da referência aos diferentes tipos de corpos humanos” (Omi e Winant, 1986, p. 55, tradução

nossa). Ao usarem o termo trajetória, eles a definem como “padrão de conflito e acomodação que ocorre ao longo do tempo entre movimentos sociais de base

racial e as políticas e programas de Estado” (p. 78). Outra categoria dessa abordagem é a de Projeto Racial, definido como “interpretação, representação ou

explicação das dinâmicas raciais, e um esforço de reorganizar e redistribuir recursos ao longo de linhas raciais específicas” (p. 56).
Capítulo VIII

Suspeição generalizada:
entrelaçamentos entre raça e gênero na
produção da repressão estatal seletiva
Juliana Vinuto

Introdução

Este texto propõe algumas discussões sobre o entrelaçamento entre gênero e


raça para compreender processos de suspeição que, quando institucionalizados,
produzem seletividade penal. Como sabemos, ativistas e, em menor grau,
pesquisadores, têm se debruçado sobre as dimensões raciais de abordagens
policiais (Medeiros, 2018; Ramos e Musumeci, 2005; Schlittler, 2016), de
políticas de segurança orientadas pela lógica da guerra (Leite, 2014), de decisões
dos operadores do Poder Judiciário (Vargas, 1999), dentre outras questões.
Entretanto, a análise sobre o imbricamento da questão racial com suas dimensões
generificadas costumam não aparecer sob o crivo analítico de grande parte das
pesquisas, exceto quando o foco são mulheres (Alves, 2015; Braga, 2015). A
situação parece ser efeito de concepções que desconsideram que homens também
são atravessados pelo gênero.
A partir de algumas conclusões de minha pesquisa de tese (Vinuto, 2020)
[52] em diálogo com abordagens propostas por outros pesquisadores que se
debruçaram sobre os diferentes modos como a seletividade penal opera (Adorno,
1995; Alexander, 2017), gostaria de aprofundar o conceito de “suspeição
generalizada”, de modo a destacar como ela produz repressão seletiva a
masculinidades negras. Para tanto, proponho analisar as expectativas tácitas sobre
o “bandido”, entendido aqui como imagem de controle (Collins, 2019) que
produz sujeição criminal (Misse, 2010). A partir do debate colocado por Lélia
Gonzalez, é possível pensar o rótulo de “bandido” como um processo que atinge a
população negra, mas que se singulariza a partir do gênero (Gonzalez, 2019).
Desse modo, espero trazer elementos que, ao se ampararem no debate
feminista negro e decolonial (Hooks, 2019; Miñoso, 2020), demonstrem como as
duas matrizes de opressão se realizam reciprocamente e produzem repressão
arbitrária e desproporcional ao homem negro. Portanto, alinho-me a uma
perspectiva que recusa o “feminismo carcerário e punitivo” (Vergès, 2020) que se
satisfaz com uma abordagem judicial das relações sociais e, assim, abre mão de
entender adequadamente as diferentes formas de violência atravessadas pelo
gênero e pela raça.
O racismo que permeia a repressão estatal seletiva tem sido nomeado como
genocídio da população negra (Flauzina e Pires, 2020; Ramos, 2014; Rocha,
2014; Vargas, 2010), já que revela modos de negar o direito à existência do povo
negro por meio da violência gratuita e desproporcional (Flauzina, 2006) que
acarreta um número inaceitável de homens negros encarcerados ou mortos pela
polícia. Assim, ainda que mulheres sofram inúmeras consequências por conta da
repressão seletiva (Rocha, 2016; Vianna e Farias, 2011), serão os homens negros
os mais visados pelos operadores das forças de segurança, dada a representação de
suspeição que projetam. Desse modo, argumento que o imbricamento de raça e de
gênero funciona como uma razão alheia aos acontecimentos concretos, mas que
afeta a percepção de risco dos operadores das forças de ordem e, assim, a repressão
seletiva é naturalizada.
Como é possível observar até aqui, este trabalho pretende ir além da triste
constatação de que a maior parte dos presos e mortos pela polícia são homens
negros, a fim de pensar o “bandido” enquanto palavra cifrada (Alexander, 2017)
que justifica a repressão estatal seletiva e, portanto, vai além de um termo que
simplesmente acusa ou desmoraliza. Como pano de fundo, este texto defende que
as dimensões raciais e de gênero que operam conjuntamente ao produzir os
suspeitos de sempre – que podem ser mortos sem comoção por parte da sociedade
– revelam que, em um país com hierarquias tão profundas, “a afirmação de que
todos são iguais perante a lei assume um caráter nitidamente formalista”
(Gonzalez, 2020, p. 43).

Modos de operação da suspeição generalizada

Minha pesquisa de doutorado debruçou-se sobre o trabalho dos agentes


socioeducativos, que são os profissionais responsáveis pela realização de
procedimentos de segurança nos centros de internação em que as medidas
socioeducativas para adolescentes em conflito com a lei são executadas.[53] A
jornada de trabalho dos agentes é legalmente atravessada pelo duplo objetivo
sancionatório-educativo singular às medidas socioeducativas (Vinuto e Duprez,
2019) e por isso, esses profissionais vivem no “fio da navalha” (Vinuto et al.,
2017) entre procedimentos de segurança e atividades socioeducativas. Para os
propósitos aqui apresentados, destaco meu interesse em compreender a obviedade
com que eram encaradas tanto a prioridade destinada aos procedimentos de
segurança quanto a prescindibilidade com que eram vistas as atividades
socioeducativas nos centros de internação acessados. Para entender esse modo de
funcionamento que centraliza a dimensão securitária, analisei as expectativas
tácitas desses profissionais, elaboradas coletivamente quando atribuíam sentido ao
seu próprio trabalho. E um dos elementos centrais para entender tais expectativas
é o que chamei de “suspeição generalizada”.
A primeira vez que li a expressão “suspeição generalizada” foi no trabalho de
Sidney Chalhoub (Chalhoub, 1990), que discorria sobre os primeiros anos após o
fim da escravidão brasileira e, portanto, tratava de um contexto diferente do que
eu analisei em minha pesquisa de tese. Ao analisar as relações estabelecidas entre
elite carioca, escravizados e ex-escravizados, Chalhoub argumenta que os
membros da alta sociedade da cidade do Rio de Janeiro se sentiam
constantemente intimidados e aterrorizados pela população negra. Isso ocorria
porque essa elite vivia em um contexto em que a maior parte da população era
formada por escravizados e negros libertos, que eram vistos como ameaça. Como
o autor afirma:

A cidade que escondia, porém, ensejava aos poucos a construção da cidade que desconfiava, que
transformava todos os negros em suspeitos. É esta suspeição que Eusébio de ueiroz está preocupado
em afirmar: ‘qualquer’ ajuntamento de escravos deve ser dissolvido; ‘os que nele se encontrarem’
devem ser presos; os ‘que se tornarem suspeitos’ devem ter o mesmo destino. A suspeição aqui é
indefinida, está generalizada, todos são suspeitos […]. Ao invés de uma suspeição ‘pontual e nominal’,
é a suspeição generalizada e contínua que se torna o cerne da política de domínio dos trabalhadores
(Chalhoub, 1990, p. 192).

Vemos que o autor indica que a suspeição com relação a negros no pós-
escravidão não era pontual, mas generalizada, contínua e indefinida, atuando
sobre qualquer ajuntamento de negros, que eram vistos automaticamente como
suspeitos. E foi essa a razão pela qual optei por utilizar o mesmo termo para
nomear o que eu via em minha pesquisa de campo: apesar de se tratar de um
contexto histórico diverso do abordado por Chalhoub, o termo tinha a
conveniência de descrever a constante sensação de desconfiança que um grupo
quantitativamente minoritário sente em um contexto no qual a maior parte dos
membros são negros e vistos como ameaça.
A ideia embutida no termo “suspeição generalizada” ajudou-me a
compreender a prioridade que os agentes socioeducativos destinavam aos
procedimentos de segurança em sua jornada de trabalho, enquanto atividades
socioeducativas eram vistas como prescindíveis e, por vezes, até como
desarrazoadas. O contexto de superlotação, precariedade e presunção da culpa
fazia com que o centro de internação fosse visto como um ambiente de perigo
constante e, consequentemente, de suspeição ininterrupta. Essa demanda de
desconfiança intermitente é ilustrada no seguinte trecho de entrevista:

Nós somos adestrados aqui, enquanto agente, a se antever ao conflito. Então, quando você começa, na
gíria, a ficar escaldado, aprender a… mais ou menos igual a cachorro, farejar mesmo o tumulto onde
vai ter, então a gente consegue precaver, a gente consegue… Entendeu? Impedir, até que ocorram
prováveis conflitos (Entrevista, agente de segurança socioeducativo masculino, junho de 2016).

Esse trecho ilustra uma característica mencionada recorrentemente por meus


interlocutores durante a pesquisa, na qual os centros de internação do Degase são
vistos como territórios nos quais os agentes de segurança socioeducativa devem
controlar antecipadamente os comportamentos dos adolescentes internados, que
são vistos sempre pelo viés de desconfiança e risco. Isso faz com que esses
profissionais estejam constantemente preocupados e posicionados para antever
qualquer possibilidade considerada “anormal” dentro dos muros da instituição, o
que fomenta uma atuação pautada em procedimentos que almejam controlar as
possibilidades de perigo futuro.
É importante atentar que tal modo de atuação não é resultado de atitudes
individuais, já que há uma configuração organizacional que fomenta a suspeição e
exige essa postura dos agentes. A demanda fica especialmente clara no trecho
apresentado a seguir, retirado do Plano de Segurança Socioeducativa organizado
pelo próprio Degase e no qual constam os procedimentos de controle adequados
ao ambiente socioeducativo:

Por certo, é fundamental o investimento nas medidas de prevenção das situações-limite, tais como:
motins, fugas, evasões, descumprimento, invasões, incêndios, agressões, depredações e outras
ocorrências desse tipo. No entanto, a realidade tem demonstrado que é quase impossível torná-las
inexistentes num estabelecimento de privação e restrição de liberdade de adolescentes em conflito
com a lei. As situações-limite estão potencialmente presentes e podem eclodir a qualquer momento,
em qualquer lugar, envolvendo uma, duas, dez pessoas, atingindo um ou mais setores e, até mesmo, a
unidade toda (Degase, 2013).

Assim, a suspeição generalizada passa a ser vista como ferramenta preventiva


de trabalho que busca controlar virtualidades em circunstâncias desfavoráveis. Tal
configuração pode ser vista em outros contextos, como é o caso do sistema
socioeducativo paulista (Almeida, 2010). Em sua pesquisa em centros de
internação de São Paulo, Bruna Gisi de Almeida analisa a maneira como os
funcionários identificam os adolescentes internados como “criminosos”, o que se
torna “um fator de tensão, pois a construção dessa identificação traz consigo
ideias de perigo e imprevisibilidade” (2010, p. 39). Para a autora, a crença no
“perigo iminente” produz o sentimento compartilhado de que a desconfiança é a
característica central de um centro de internação.
Os centros de internação são ambientes organizacionais atravessados pela
desconfiança e marcados por uma constante percepção de ameaça, o que torna
aceitável a imposição do medo como ferramenta preventiva de trabalho. Ou seja,
a suspeição generalizada afeta o equilíbrio entre as dimensões de sanção e de
educação imposto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei Federal
n.º 8.069, de 13 de julho de 1990) e pelo Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo (Sinase, Lei Federal n.º 12.594, de 18 de janeiro de 2012). Os
discursos institucionais oficiais evidenciam a relevância da socioeducação ao
mesmo tempo em que os discursos dos profissionais que atuam cotidianamente
nas unidades socioeducativas ressaltam justamente sua impossibilidade (Vinuto e
Franco, 2019). Desse modo, a configuração híbrida entre sanção e educação, em
um contexto de suspeição generalizada, legitima um processo no qual os agentes
socioeducativos interpretam a lei baseando-se no que acham que é possível de ser
feito, priorizando os procedimentos de segurança. E já que um centro de
internação recebe adolescentes “que merecem estar ali”, a prescindibilidade da
socioeducação se justifica.
Ao apresentar minha pesquisa em eventos acadêmicos, uma interpelação
constante é que tal suspeição generalizada não é exclusiva dos centros de
internação para adolescentes em conflito com a lei, dado o modo como residentes
de favelas são vistos pelas organizações policiais. E, de fato, muitas pesquisas têm
demonstrado que certa suspeição territorialmente generalizada não é fenômeno
novo (Leite, 2012; Silva e Leite, 2007). Entretanto, não é possível atrelar a
discussão histórica proposta por Chalhoub ao modo como eu mesma mobilizo o
termo suspeição generalizada ou ao resultado dessas pesquisas, já que são
inúmeras as diferenças entre os contextos. Ainda assim, penso que hipóteses de
trabalho que se debrucem sobre legados coloniais nos modos de punição
contemporâneos podem ser especialmente produtivas para o debate brasileiro
sobre violência e controle social.
Ao discutir alguns estereótipos que naturalizam a vigilância desigual em
espaços de pobreza, como favelas, comunidades e periferias, Lélia Gonzalez
(Gonzalez, 2019) fornece elementos relevantes para compreendermos os modos
como a suspeição generalizada opera sobre pessoas negras. Gonzalez argumenta
que enquanto o homem negro é visto como aquele “que não gosta de trabalho” e,
portanto, “é natural que seja perseguido pela polícia”, a mulher negra é pensada
irremediavelmente como “cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou
prostituta”. Em comum, homens e mulheres negros compartilham uma imagem
que “basta a gente ler jornal, ouvir rádio e ver televisão” para concluir que “eles
não querem nada. Portanto, têm mais é que ser favelados” (Gonzalez, 2019, p.
240). Aqui vemos que, para a autora, a suspeição que atinge a população negra se
singulariza a partir do gênero.
Com base em uma reinterpretação do “lugar natural” de Aristóteles, Gonzalez
afirma que desde o período colonial há uma separação do espaço físico ocupado
por dominadores e dominados, afirmando a existência de um “lugar natural do
negro”, sendo a favela um desses lugares. Se considerarmos as pesquisas que
indicam que a maior parte dos residentes de favelas são negros, em uma
porcentagem maior do que a apresentada no restante da sociedade brasileira
(Pinheiro et al., 2008), torna-se possível verificar a existência de uma segregação
racial do espaço (Vargas, 2005). Ao constatar tal segregação, Marcia Lima afirma
que: “[…] as periferias e as favelas do Brasil são espaços racializados, o que
autoriza o Estado a chegar atirando deliberadamente porque o que prevalece
nesses espaços são corpos negros”. E complementa: “Da mesma forma que
raça/cor atua como marca de classe, ela atua como marca de pertencimento à
suspeição” (Lima, 2020).
Se concordarmos que raças são ficções sociais com efeitos hierarquizantes e
desumanizadores (Guimarães, 1999), é possível observar que a raça que se imputa
a alguém não decorre apenas de suas características físicas, mas também de
elementos do contexto social em que o sujeito está inserido. Ainda que o critério
por meio do qual o racismo se expresse no cotidiano seja sobretudo o fenótipo,
em favelas e demais espaços de pobreza, as pessoas que aí vivem acabam por sofrer
coletivamente a suspeição direcionada a homens negros. Como afirma Palloma
Menezes (2015, p. 189):

Por ser constantemente criminalizado em seus contatos com a polícia, o ‘favelado’ precisa a todo
instante fazer um esforço para provar que é ‘trabalhador’ e que não tem envolvimento com os bandos
armados que atuam em seu local de moradia. Mas, por serem quase que automaticamente
considerados como ‘coniventes’ com as atividades ilícitas praticadas por traficantes, os moradores de
favela, mesmo quando sofrem violações de seus direitos e/ou atos violentos promovidos pelos
próprios agentes do Estado, enfrentam uma enorme dificuldade para denunciar essas ações.

A segregação residencial (Telles, 2003) produz suspeição territorialmente


seletiva e justifica uma política de segurança de caráter genocida. Máximas como
“ordem” e “segurança” aparentemente não são racializadas, mas fazem parte da
lógica interna de funcionamento do racismo brasileiro. Dessa forma, os espaços de
pobreza são compreendidos a partir de enquadramentos interpretativos
(Goffman, 2015) em que expectativas tácitas acarretam um curso fatal e
implacável de autoconfirmação. Isso significa que “a definição da situação
imediata e do atores presentes é o que estabelece os parâmetros de tudo o que
acontecerá” (Neitzel e Welzer, 2014, p. 394). É essa moldura interpretativa que
faz com que segurar um saco de pipoca (Araújo, 2016) ou um guarda-chuva
(Moura, 2018) seja visto automaticamente sob a ótica da suspeição e possa
acarretar assassinatos tidos como legítimos pelo Estado.
Apesar de a localidade ser um elemento central para a compreensão de
processos estatais de suspeição generalizada, é importante destacar que o
fenômeno não se restringe a territórios específicos. A seguir, replico um trecho de
entrevista que ilustra como representações socialmente partilhadas sobre homens
negros, que apresentam aspectos relevantes de gênero, são recorrentemente
mobilizadas, ainda que irrefletidamente, para naturalizar a expectativa de que se
trata de criminosos. Leonardo Peçanha, ativista, homem trans e negro, singulariza
os estereótipos que foram mobilizados em diferentes momentos de sua
experiência pessoal:

uando eu era lido como mulher negra, antes da minha adequação, eu sofria outro tipo de
preconceito e de racismo. As pessoas tinham uma leitura que hipersensualizava e objetificava as
mulheres negras – é claro que a mulher em si é objetificada, mas no caso da mulher negra há uma
objetificação específica – que tem que ser a gostosona, a passista, a que sempre tem que servir ao
homem, com determinado padrão de corpo, resquícios relacionados ao processo de escravidão
também estão aqui e toda maneira de preconceito racista tem essa ligação.

Mas depois que eu fiz a adequação e eu passei a ser lido como homem negro pela sociedade, o racismo
mudou. Mesmo que exista o privilégio por ser homem, senti e sinto, que o homem negro é visto como
o bandido, aquele que rouba, que é marginal, que é ameaça e ameaçador, que é visto como uma
virilidade inquestionável e a ligação cultural com o falocentrismo. Ou seja, enquanto homem negro
trans, eu deixei de ser objeto para ser ameaça (Portal Geledés, 2015).

Peçanha destaca que só percebeu que era lido socialmente como homem no
momento em que sofreu racismo: ao entrar em um ônibus, viu a movimentação
de uma senhora com cara de “acuada” que tirou sua bolsa de um lado e passou
para o outro. Ele percebeu que causou medo e que esse medo era decorrente de
sua existência enquanto negro e enquanto homem (Portal Geledés, 2015).
Tais considerações sugerem que a suspeição generalizada atinge mesmo
aqueles que não cometem crimes ou que não estão em territórios que ensejem
ameaça. Basta que os indivíduos articulem negritude e masculinidade para que a
suspeição ocorra, como sugere a afirmação de iago Alves, jovem ativista do
Morro do Jacarezinho (RJ):

A tecnologia mesmo do racismo é bastante complicada… uando alguém olha pra mim, com um
olhar estranho, com um olhar de suspeita, e segura a bolsa de forma mais forte, como é que eu vou
explicar, através de palavras, que aquela pessoa está sendo racista? Como é que eu vou explicar que um
olhar está sendo racista? É bastante complicado.[54]

iago fala sobre um “olhar de suspeita” que, apesar de ser percebido por ele,
dificilmente pode ser explicado em palavras. É possível conjecturar que, ao fazer
um “olhar de suspeita”, uma pessoa não necessariamente percebe o racismo em sua
própria ação, já que a suspeição é tida como reação natural a uma situação
ameaçadora. Entretanto, a construção do medo é atravessada por inúmeros
elementos, alguns deles produzidos historicamente. O ditado popular “branco
correndo é atleta, negro correndo é ladrão” (Ribeiro, 1995) é exemplar de um
racismo “sem intenção”: parte-se de uma representação em que é primordialmente
o homem negro que causa medo, já que o olhar de quem vê, ainda que desconheça
as desigualdades raciais que produz e reproduz, foi habituado para não sentir
temor do branco que corre.
É importante lembrar que esses modos cotidianos de hierarquização racial
ocorrem também frente a homens negros que trabalham em instituições estatais
de lei e ordem, como é o caso do policial civil negro que, enquanto levava
suspeitos para uma delegacia, foi agredido por um policial militar que não
acreditou em suas credenciais. Por aparentar ser um suspeito por excelência, o
policial negro ouviu durante a abordagem: “Vai, negão, deita no chão” e “ue
polícia que nada, seu filho da puta” (Adorno, 2020).
Convém acessar essas nuances que demandam e legitimam a repressão estatal
seletiva com base em suas dimensões racializadas e generificadas e assim
compreender como ocorre a produção de hierarquias implícitas que também
atuam na desumanização de determinados grupos. Por isso, é necessário
compreender as dimensões menos conscientes e/ou evidentes do racismo para,
desse modo, compreender seus efeitos institucionais (Carmichael e Hamilton,
1992; Vinuto, 2020).
Proponho aqui uma hipótese de trabalho que sugere que a suspeição
generalizada é elemento central para entendermos como as instituições de
segurança e justiça produzem hierarquias raciais e de gênero a partir do modo
como administram os conflitos que chegam até elas. Por ora, meu interesse
principal é compreender como essa constante sensação de risco e de presunção da
culpa produz representações, legitima práticas e silencia saberes em contextos de
privação de liberdade e, desse modo, reproduz um modo de funcionamento
pautado no imperativo securitário, minando iniciativas de caráter humanitário.
A partir de agora gostaria de propor uma discussão de caráter conceitual a fim
de ressaltar dois efeitos centrais da suspeição generalizada: a reprodução de uma
imagem de controle (Collins, 2019) que estabiliza uma representação socialmente
partilhada do que seria um “bandido”; e, como tal representação atravessa o modo
de funcionamento das organizações estatais e produz sujeição criminal (Misse,
2010), normalizando a prisão e a morte de homens negros.

Alguns efeitos da suspeição generalizada nas instituições de


segurança e justiça: “bandido” enquanto imagem de controle

Já há muito tempo temos dados empíricos e debates intelectuais rigorosos que


propiciaram um consenso sobre a existência de repressão seletiva sobre indivíduos
e territórios negros (Sinhoretto e Morais, 2018). Em pesquisa acerca de processos
criminais sobre “crime de sangue” instituídos nas três primeiras décadas do século
XX, Carlos Antônio da Costa Ribeiro (1995) demonstra que a cor dos
envolvidos funcionava como uma razão alheia que efetivamente afetava o
julgamento da justiça: a cor parda e, sobretudo, preta, aumentava a probabilidade
de sua acusação; ao mesmo tempo, a probabilidade de absolvição de um acusado
de crime de sangue contra um preto ou pardo era maior do que a de acusados por
crime semelhante contra uma pessoa branca. Com base em tal cenário, Ribeiro
afirma: “Ser preto ou pardo não é sinônimo de criminalidade, mas os funcionários
jurídico-policiais pareciam não acreditar nisso e tratavam com mais severidade
quem não fosse branco” (Ribeiro, 1995, p. 144).
Muitos trabalhos descrevem como essas premissas racializadas de suspeição
permanecem até hoje, ainda que sob outras formas. Além de pesquisas que
revelam que acusados negros são proporcionalmente mais condenados do que
pessoas brancas (Adorno, 1995; Vargas, 1999), há trabalhos que demonstram que
essas pessoas enfrentam um tempo médio de encarceramento maior (Lima et al.,
2003). Nesse sentido, como realça Sérgio Adorno, “se o crime não é privilégio da
população negra, a punição parece sê-lo” (Adorno, 1995, p. 47).
Como sabemos, os dados estatísticos sobre processamentos, condenações e
prisões são bastante defasados, mas ainda assim permitem acessar alguns padrões
racializados e generificados de funcionamento estatal. O Mapa do
Encarceramento (Sinhoretto, 2015) revela que entre 2005 e 2012 houve
mudanças na população prisional, com aumento no número de jovens e negros
encarcerados. O trabalho indica que, em 2012, a taxa de encarceramento por 100
mil habitantes foi 1,5 vez maior para negros. Já segundo o Levantamento
Nacional de Informações Penitenciárias de 2016 (Depen – Departamento
Penitenciário Nacional, 2016), em apenas 72% dos registros dos indivíduos
presos havia informação sobre sua raça, cor ou etnia e, com relação a tais registros,
verifica-se que 64% das pessoas presas eram negras, apesar de negros
representarem 53% da população brasileira acima de 18 anos naquele momento.
O levantamento mais atualizado do Infopen, divulgado por painel interativo
em dezembro de 2019,[55] não apresenta dados desagregados por raça, mas ainda
assim é possível verificar um perfil de gênero, já que dentre as 748.009 pessoas
presas no Brasil, 711.080 são homens (95,06%). Vale lembrar que a repressão
seletiva do Estado brasileiro não é observada apenas nas estatísticas referentes à
prisão. A 13.ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (Fórum
Brasileiro de Seguranaça Pública, 2019) demonstra que 99,3% dos mortos pelas
polícias brasileiras eram homens e 75,4% eram negros. O documento identifica o
problema também dentro das corporações policiais: 99,3% dos mortos eram
homens, com destaque para os negros, que totalizavam 51,7% dos óbitos apesar
de representarem apenas 34% do efetivo.
A repressão seletiva estatal fortalece uma imagem socialmente partilhada que
naturaliza a vinculação de homens negros ao crime, mesmo quando a referência
explícita não ocorre. Nesses casos, termos como bandido, traficante ou criminoso
funcionam como palavras codificadas que fazem todos entenderem que se fala de
homens negros (Alexander, 2017). Como afirma Juliana Borges (2018, p. 17),

A figura do criminoso abre espaço para todo tipo de discriminação e reprovação com total respaldo
social para isso. E ao retomarmos os dados que demonstram que há um grupo alvo e predominante
entre a população prisional, ou seja, que é considerada criminosa, temos aí uma fórmula perfeita de
escamoteamento de um preconceito que é racial primordialmente.

Nessa direção, expectativas tácitas sobre homens negros apresentam caráter


racializado e generificado e, assim, produzem imagens de controle que
naturalizam a desigualdade embutida na repressão estatal (policial e judicial) e
tornam a seletividade penal algo esperado e normal. Patrícia Hill Collins (2019)
define imagens de controle como representações socialmente partilhadas que,
apesar das especificidades possíveis, são uniformemente negativas e tentam
designar lugares subordinados. Ao pensar especificamente sobre mulheres negras,
Collins revela um padrão histórico de relações de poder que permeia a cultura
popular e as políticas públicas e, ao mesmo tempo, demonstra como tais mulheres
têm resistido às imagens que sustentam práticas discriminatórias.
O termo “bandido” pode ser pensado como uma imagem de controle que
subjuga homens negros e, assim, justifica uma opressão específica a esse grupo,
cuja generificação e racialização diferem dos estereótipos mobilizados na opressão
de outros grupos. Se concordarmos com Collins quando ela ressalta que práticas
de opressão são justificadas por ideias, podemos pensar que o uso do termo
“bandido” permite a manipulação de representações que projetam socialmente a
imagem de homens negros e assim: “Essas imagens de controle são traçadas para
fazer com que o racismo, o sexismo, a pobreza e outras formas de injustiça social
pareçam naturais, normais e inevitáveis na vida cotidiana” (Collins, 2019).
Considerar imagens de controle possibilita compreender como diferentes
matrizes de opressão, como raça e gênero, se interseccionam concretamente,
produzindo representações naturalizadas e revelando um pensamento binário que
categoriza pessoas, coisas e ideias segundo supostas diferenças essenciais. Dessa
forma, imagens de controle revelam “outros” vistos como opostos que devem ser
controlados.

Alguns efeitos da suspeição generalizada nas instituições de


segurança e justiça: “bandido” enquanto concretização da sujeição
criminal

O efeito mais bem acabado da construção do “bandido” enquanto imagem de


controle no Brasil é o que Michel Misse chamou de “sujeição criminal” (Misse,
2010). Misse demonstra diferentes etapas da repressão estatal: criminalização,
criminação e incriminação, que têm como efeito a produção de um quarto
processo subsequente nomeado pelo autor como sujeição criminal, que é
produzido pela lei e pela moral. Segundo o pesquisador, “Não é qualquer sujeito
incriminado, mas um sujeito por assim dizer ‘especial’, aquele cuja morte ou
desaparecimento podem ser amplamente desejados” (Misse, 2010, p. 17).
Nesse momento há um entrelaçamento entre Estado e sociedade, com especial
atenção à mídia, por meio de seus programas vespertinos de cobertura policial,
novelas, filmes, dentre outros, que representam homens negros quase que
exclusivamente como criminosos. Tais instâncias produzem conjuntamente
representações socialmente partilhadas do que seria um bandido, com base na
condensação de características que norteiam a repressão das instituições estatais.
Assim, apesar de tais representações serem construídas sobretudo no âmbito de
organizações da justiça criminal e da segurança pública, as maneiras pelas quais
são reforçadas e legitimadas dependem fortemente do apoio que a sociedade
destina a essas atividades. A sujeição criminal antecipa a etapa de incriminação,
criando os habituais indivíduos e territórios suspeitos que norteiam a repressão
estatal.
Misse ressalta que a sujeição criminal se completa quando tal busca
antecipada afeta a identidade pública e íntima dos indivíduos eleitos como os
suspeitos de sempre (Freitas, 2016). Porém, não é a subjetivação da acusação que
define a sujeição criminal, já que como nos lembra César Teixeira: “Mesmo que os
atores sob sujeição não a subjetivem, isto é, não a tomem como uma verdade de si,
outros atores podem esperar deles que mantenham uma relação com o crime que
esteja para além de uma transgressão pontual” (Teixeira, 2013, p. 121). Isto é, a
sujeição criminal ocorre quando elementos existentes na trajetória de um
indivíduo – como a realização de um crime – passam a ser considerados
características da natureza do indivíduo, criando uma identidade social
essencializada. Nesse caso – ao contrário do que ocorre, por exemplo, em crimes
de colarinho branco – ao chamar o indivíduo de bandido não se empreende
apenas uma acusação, mas se mobiliza um substantivo que, a priori, definiria o
sujeito. Isso cria um dispositivo de criminalização ao dividir pessoas que cometem
crimes em “bandidos” e “não bandidos”. Tal divisão não se baseia exclusivamente
no conteúdo da lei, mas em julgamentos morais com base em estereótipos de
classe, raça e gênero, que acabam impondo uma verdade frente ao sujeito tido
como criminal.
Ainda que indivíduos possam neutralizar, redimensionar ou positivar a
sujeição criminal (Freitas, 2016; Hernandez, 2018), é relevante pensar como o
Estado produz uma “estratificação social dos agentes passíveis de sujeição
criminal” (Misse, 1999, p. 217). Misse discorre sobre um processo que nomeou
como “acumulação social da violência”, que revela transformações nas práticas
criminais desde o início do século XX e, ao mesmo tempo, mudanças nos tipos
sociais de incriminados regulares. Ao analisar as metamorfoses nos principais
tipos sociais da sujeição criminal na cidade do Rio de Janeiro desde os anos 1950,
Misse discorre sobre as diferentes representações personificadas nas imagens do
“malandro”, do “marginal” e do “vagabundo”. Apesar das singularidades em cada
uma dessas imagens, é possível admitir a existência de dimensões generificadas,
racializadas e territoriais comuns que têm orientado a repressão estatal na cidade
em busca indivíduos que as personificam.
Observa-se uma recorrência histórica de imagens de controle que produzem
expectativas tácitas sobre quem é o sujeito criminal. O processo de sujeição
criminal – que produz e, concomitantemente, é produzido por tais expectativas –
justifica a preferência por um policiamento ostensivo e orientado por operações
em detrimento de um policiamento investigativo. Isso acarreta repressão
espacialmente seletiva em territórios em que se pressupõe haver tais sujeitos,
ocasionando, dentre outras coisas, a insuficiência de averiguação de crimes
ocorridos nos demais espaços da cidade, o que produz as características dos presos
e mortos em operações policiais. Como Misse destaca, a sujeição criminal ganha
contornos espaciais e se territorializa (Misse, 2010): ao mesmo tempo em que
outros sujeitos não são vistos como bandidos em potencial, a repressão e a morte
em territórios de pobreza são naturalizadas e legitimadas. Assim, as expectativas
tácitas sobre os que ali vivem fazem com que a sujeição criminal seja autoevidente,
já que: “O rótulo ‘bandido’ é de tal modo reificado no indivíduo que restam
poucos espaços para negociar, manipular ou abandonar a identidade pública
estigmatizada” (Misse, 2010, p. 23).

Considerações nais

Este trabalho propôs uma discussão sobre o que tenho chamado de “suspeição
generalizada”, termo que ajuda a compreender expectativas tácitas históricas e
territorializadas bem como sua decorrente repressão estatal seletiva, com base no
imbricamento entre dimensões racializadas e generificadas. Observamos que a
figura do “bandido”, vista aqui enquanto imagem de controle que concretiza
sujeição criminal, é construída não apenas legalmente, mas moral e
historicamente, o que legitima a violência estatal desproporcional que produz os
números de encarcerados e de mortos durante operações policiais. Assim, penso
que a análise de processos de suspeição generalizada em instituições privativas de
liberdade tem o potencial de proporcionar um debate sobre racismo que vá além
de dados estatísticos, já que se revela um fenômeno dificilmente mensurável, mas
nem por isso menos relevante para a dinâmica dessas instituições. Ao atentar para
processos de suspeição generalizada, o pesquisador pode elencar elementos que
permitam entender como o racismo opera cotidianamente na privação de
liberdade. Se estatísticas nos ajudam a explicitar o racismo embutido nos
processos de seletividade penal, pouco sabemos sobre como o racismo atravessa o
cotidiano daqueles que são encarcerados e da jornada de trabalho dos que ali
atuam.
Vale lembrar que questionar a repressão estatal seletiva não significa
desconsiderar as facções de tráfico de drogas que existem em muitos espaços de
pobreza e que causam violências aos moradores desses territórios. O que se
questiona é a maneira como a repressão estatal seletiva é realizada nesses espaços,
que além de diferir das ações executadas em outros lugares, produz punições e
mortes de caráter racializado e generificado. Assim, ainda que a raça e o gênero
dos suspeitos habituais não sejam mencionados diretamente, a invocação de
estereótipos raciais e de gênero é óbvia, ainda que muitas vezes mediada pela
referência ao local de moradia do “bandido”, como se a repressão particular nas
favelas fosse cega ao gênero e à raça. Ao analisar os imbricamentos de diferentes
matrizes de opressão que naturalizam a repressão seletiva a homens negros, espera-
se fortalecer um feminismo que não está interessado somente na igualdade entre
homens e mulheres, mas na erradicação das diferentes estruturas de dominação
que atravessam o sexismo (Hooks, 2019).

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de violência institucional”. Cadernos Pagu, n. 37, p. 79-116, dez. 2011.

Vinuto, Juliana. “O outro lado da moeda”: o trabalho de agentes socioeducativos no


estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Autografia, 2020.

______ e Duprez, Dominique. “O duplo objetivo sancionatório-educativo no


Brasil e na França: as diferentes configurações organizacionais direcionadas
ao adolescente em conflito com a lei”. Dilemas – Revista de Estudos de Conflito
e Controle Social, Edição Especial, n. 3, p. 115-135, 23 jul. 2019.

______ e Franco, Túlio Maia. “‘Porque isso aqui, queira ou não, é uma cadeia’: as
instituições híbridas de interface com a prisão”. Revista Mediações, v. 24, n. 2,
p. 265-277, ago. 2019.

______ et al. “No fio da navalha: efeitos da masculinidade e virilidade no


trabalho de agentes socioeducativos”. Plural, v. 24, n. 1, p. 54-77, 30 ago.
2017.
[52] Este texto apresenta parte dos resultados da pesquisa de doutorado já finalizada, realizada no Programa

de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O

presente trabalho foi realizado com o apoio da Capes por meio de bolsa de pesquisa de doutorado.

[53] A medida socioeducativa de internação é uma das sanções previstas no art. 112 do Estatuto da Criança e

do Adolescente (ECA), destinadas a adolescentes com idade entre 12 e 17 anos incompletos que cometam

atos infracionais. Além da internação – que é considerada a mais grave, sendo a única privativa de liberdade –

há também as seguintes medidas: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à

comunidade, liberdade assistida (medidas socioeducativas em meio aberto) e semiliberdade (restritiva de

liberdade).

[54] A fala em questão foi realizada durante o webnário “Prisão, Direitos e Coronavírus”, organizado pela

pesquisadora Juliana Sanches no âmbito do projeto de extensão “UFF nas Ruas: assessoria popular em

administração de conflitos urbanos na cidade de Niterói (RJ)”, coordenado pelo Prof. Lênin Pires e por mim.

[55] Disponível em: https://app.powerbi.com/view?

r=eyJrIjoiZTlkZGJjODQtNmJlMi00OTJhLWFlMDktNzRlNmFkNTM0MWI3IiwidCI6ImViMDkwN

DIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZlMSJ9. Acesso em: 30 jun. 2020.


Sobre os autores

Anna Carolina Venturini


Doutora em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj). Pós-doutorado em curso
vinculado ao Programa Internacional de Pós-Doutorado do Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento (IPP-Cebrap) e Pesquisadora do Afro-Cebrap. E-mail:
annac.venturini@gmail.com

Camille Giraut
Doutoranda no Anthropology and Sociology Department em Graduate
Institute Geneva. Atualmente, é pesquisadora Sanduíche no Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail:
camille.giraut@graduateinstitute.ch

Cristiano Rodrigues
Doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e professor do
Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais
(DCP-UFMG). E-mail: cristianor@gmail.com

Flavia Rios
Doutora pela Universidade de São Paulo (USP), professora da Universidade
Federal Fluminense (UFF) e integrante do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia na mesma instituição (PPGS-UFF). Além disso, é pesquisadora do
Núcleo de Estudos Guerreiro Ramos (Negra-UFF), do Afro-Cebrap e coordena o
Projeto Gestão Municipal da Igualdade Racial de Niterói (GIRA-Niterói). E-
mail: flaviarios@id.uff.br

Giovana Esther Zucatto


Doutoranda e Mestra em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e
Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), bolsista
CNPq, pesquisadora do Observatório Político Sul-Americano (Opsa) e do
Núcleo de Estudos de Teoria Social e América Latina (Netsal). E-mail:
giovanazucatto@gmail.com

Graziella Moraes Silva


Doutora em Sociologia pela Universidade de Harvard e professora da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, é docente na
Graduate Institute of International and Development Studies, em Genebra. E-
mail: graziella.moraes@graduateinstitute.ch

Henrique Rodrigues Moreira


Doutorando em Ciências Humanas (Sociologia) no Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (PPGSA-UFRJ) e pesquisador no projeto Projeto Gestão Municipal da
Igualdade Racial de Niterói (Gira-Niterói). E-mail: henriquerm@id.uff.br

Jaciane Milanezi
Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Atualmente, faz pós-doutorado no Programa Internacional de Pós-Doutorado do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (IPP-Cebrap), com bolsa da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Também é
pesquisadora do Afro-Cebrap. E-mail: jaciane.milanezi@cebrap.org.br

Juliana Vinuto
Pesquisadora de pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA-UFF). Doutora em
Sociologia pela UFRJ, com estágio doutoral de um ano no Centre de Recherches
Sociologiques sur le Droit et les Institutions Pénales (Cesdip), na França.
Pesquisadora do Projeto Gestão Municipal da Igualdade Racial de Niterói (Gira-
Niterói). Integrante do Núcleo de Estudos Guerreiro Ramos (Negra-UFF), do
Laboratório de Estudos sobre Conflitos, Cidadania e Segurança Pública (Laesp-
UFF) e do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana
(Necvu-UFRJ). E-mail: j.vinuto@gmail.com

Luiz Augusto Campos


Luiz Augusto Campos é doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos
Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e
professor na mesma instituição. Coordena o Grupo de Estudos Multidisciplinares
da Ação Afirmativa (Gemaa) e é editor-chefe da revista Dados. E-mail:
lascampos@iesp.uerj.br

Raquel Guilherme de Lima


Doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e professora do
Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da Universidade
Federal Fluminense (GSO-UFF). Coordena o grupo de pesquisa Desestrutura. E-
mail: rglima@id.uff.br

Verônica Toste Da on
Doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp-
Uerj). Professora adjunta do Departamento de Sociologia e Metodologia em
Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da mesma instituição. E-mail:
veronicatoste@id.uff.br

Wescrey Portes Pereira


Doutorando em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), onde atua em pesquisas na
área de sociologia política, relações raciais, desigualdades e representação política.
E-mail: wescrey.portespereira@gmail.com

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