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ENEGRECENDO

• C O O R DENAÇ ÃO •
JULIO CESAR DE SÁ DA ROCHA
• ORGANIZAÇÃO •
CAMILA GARCEZ LEAL
ÉRIKA COSTA DA SILVA
JOÃO PABLO TRABUCO
LÁZARO ALVES BORGES

OQ U EDIREITO
STÕES RACIAIS NO BRASIL
O livro Enegrecendo o Direito: questões raciais no Brasil
representa, de forma competente, as investigações em-
preendidas por pesquisadoras(es) negras(os) do Programa
de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal da
Bahia (PPGD/UFBA). Mais do que isso, significa construção
teórico-conceitual que rompe epistemologicamente com a
“neutralidade racial” e assume a construção de uma her-
menêutica negra, o que torna a obra necessária e urgente,
em tempos de recrudescimento do racismo em suas dife-
rentes vertentes.
Assim, esta obra é excelente contribuição acadêmica com-
prometida com o combate ao racismo e ao epistemicídio
do pensamento negro.

Professor Dr. Julio Cesar de Sá da Rocha


(Membro do Colegiado do Programa de Pós-Graduação em Direito.
Diretor da Faculdade de Direito da UFBA.)

ISBN 978-65-86483-09-3

9 786586 483093
8
ANTES DE LER O LIVRO – OU MESMO DEPOIS...

Enegrecendo o Direito: questões raciais no Brasil é um livro


que nasceu do duplo esforço coletivo de seus autores: na elabo-
ração dos textos e no financiamento da obra.

Sua disponibilização gratuita, na forma de e-book, revela o in-


teresse do coletivo em disseminar ideias e, sobretudo, em con-
tribuir para o tão necessário e indispensável enegrecimento do
Direito no Brasil.

Você, que já leu ou lerá este livro, pode igualmente contribuir


para essa causa, reconhecendo os esforços, aqui materializados,
na forma de colaboração com uma instituição que tem prestado,
ao longo dos anos, importante contributo às causas raciais no
Brasil.

Referimo-nos à REAJA OU SERÁ MORTA, REAJA OU SERÁ


MORTO, que luta contra o racismo, o machismo, a homofobia e
o genocídio do povo negro. Alguns de seus trabalhos podem ser
conhecidos através dos seguintes meios virtuais:

- Facebook: Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto

- Instagram: @reajaouseramorta;

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- E-mail: reajanasruas@gmail.com;

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pósito bancário de qualquer valor. Como a REAJA está com-
pletando 15 anos de resistência, sugerimos que, à sua colabo-
ração, seja acrescentada a soma simbólica de R$ 0,15 (quinze
centavos), para que a REAJA saiba que partiu de alguém que leu
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melhoria das condições de vida das pessoas negras. REAJA!!!
ENEGRECENDO
ENEGRECENDO
• C O O RDE N A Ç Ã O •
JULIO CESAR DE SÁ DA ROCHA
• ORGANIZAÇÃO •
CAMILA GARCEZ LEAL
ÉRIKA COSTA DA SILVA
JOÃO PABLO TRABUCO
LÁZARO ALVES BORGES

OQ U EDIREITO
STÕES RACIAIS NO BRASIL
Editora Mente Aberta
Endereço Eletrônico: editoramenteaberta.com.br
Instagram: @ed_mente_aberta
E-mail: contato@editoramenteaberta.com.br
Coordenação Editorial
Pedro Camilo de Figueirêdo Neto

Conselho Editorial
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Mariana Balen Fernandes Laerte de Paula Borges Santos
Nadialice Francischini de Souza Marcelo Politano de Freitas
Régia Mabel da S. Freitas Misael Neto Bispo da França
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Programação Visual de Capa Revisão
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Diagramação
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A reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer modo, somente será
permitida com autorização da editora.
(Lei nº 9.610 de 19.02.1998)

CIP – Brasil. Catalogação na fonte

Leal, Camila Garcez.


Enegrecendo o Direito: questões raciais no Brasil [livro eletrônico] /
coordenação Julio Cesar de Sá da Rocha / organização Camila Garcez Leal,
Érika Costa da Silva, João Pablo Trabuco e Lázaro Alves Borges – Salvador,
Ba: Editora Mente Aberta, Junho, 2020.

4955 Kb / pdf

174 p.
ISBN: 978-65-86483-09-3

1. Direito. 2. Enegrecer. 3. Questões raciais. 4. Brasil. I. Rocha, Julio


Cesar de Sá da, apresentação. II. Vida, Samuel, prefácio. III. Título.

CDD – 340

SUMÁRIO
Apresentação – Enegrecendo o Direito: questões raciais no Brasil, 7
Julio Cesar de Sá da Rocha

Prefácio – Enegrecer o Direito: o desafio de seguir construindo a


trajetória de luta pela emancipação no campo jurídico, 13
Samuel Vida

1 A questão quilombola – entre vulnerabilidae e resistência: breves


considerações acerca do julgamento da ADIN n. 3.239, 29
Misael Neto Bispo da França

2 A construção do conceito de dignidade da pessoa humana em face do


ser negro: questões de gênero e raça no Brasil, 45
João Pablo Trabuco

3 A constitucionalização tributária como ação afirmativa, 61


Aline Santana Alves

4 Liberdade de expressão e racismo: discursos discriminatórios e


presidencialismo, 89
Lázaro Alves Borges

5 Os tiros disparados pelos homens da lei: violência policial, coronavírus


e a reiteração do óbvio, 103
Daiane Ribeiro

6 “Nossos passos vêm de longe”: os desafios de uma advogada negra


candomblecista no exercício da profissão, 111
Camila Garcez Leal

7 O sistema de justiça criminal e a questão racial: caminhos para a


ocupação de pessoas negras nos espaços de poder, 121
Jonata Wiliam Sousa da Silva
5
6 | Diversos Autores

8 A (des)assistência das garantias previstas na Lei de Execução Penal


enquanto vertente do genocídio antinegro, 133
Érika Costa da Silva

9 “E não sou uma mulher?”: a desumanização dos corpos negros


femininos encarcerados sob a perspectiva do genocídio no sistema
prisional brasileiro, 145
Lethycia Laynne Santos Pereira
Ana Luiza Teixeira Nazário

10 Entre a seletividade e a estigmatização: as potencialidades da justiça


restaurativa, 163
Caio Vinícius de Jesus Ferreira dos Santos
APRESENTAÇÃO
ENEGRECENDO O DIREITO:
QUESTÕES RACIAIS NO BRASIL

Fui convocado por pesquisadoras e pesquisadores do Programa de


Pós-graduação em Direito (PPGD/UFBA) a apoiá-las(os) na presente
publicação, Enegrecendo o Direito: questões raciais no Brasil. Preliminar-
mente, o convite me ofereceu dupla sensação: de gratidão, por um lado, e
de preocupação, por outro lado.
A gratidão me faz retomar lembranças, registros de memórias do
meu lugar no campo jurídico e na universidade. Minha infância e juven-
tude com bolsa em colégio confessional jesuíta, pouquíssimos colegas
negros/as. Na Faculdade de Direito, nas turmas de graduação, da mesma
maneira, poucas exceções, como os colegas Jadir Anunciação de Brito,
Augusto Desterro e Vera Virgens. Bom lembrar da liderança de Samuel
Santana Vida, referência que desde lá vem afirmando o legado democrá-
tico e das lutas de combate ao racismo. Ademais, a experiência de ou-
tra universidade que o movimento estudantil me proporcionou com o
CARB, o DCE e o SAJU, descortinou-me outras vivências, estéticas e
concepções ideológicas. Que boas memórias de Ubiratan Félix, da Enge-
nharia Civil, Olívia Santana, de Pedagogia, Célia Sacramento, de Ciências
Contábeis, Ana Cristina Muniz Décia, de Secretariado Executivo, Sérgio
São Bernardo, da Católica, e outros colegas do movimento estudantil. Foi
a universidade que me deu aproximação com iniciativas plurais, como o
Programa UFBA EM CAMPO e o Projeto SAJU/OLODUM. Entrar no
Programa de Pós- Graduação da UFBA (PPGD/UFBA) era algo dis-
tante nas minhas expectativas à época. Depois, como docente da Univer-
sidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) tive total apoio para sair e
complementar minha formação acadêmica no Programa de Pós-gradua-
ção em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/
São Paulo), com registro raro de colegas negros ou negras.
Outrossim, pontuo a marcante experiência de residir e pesquisar em
Nova Orleans, Louisiana (EUA), quando estava no Doutorado Sanduíche

7
8 | Apresentação - Julio Cesar de Sá da Rocha

na Tulane University Law School. Foi na cidade mais negra dos Estados
Unidos que várias questões me fizeram perceber e analisar a realidade
sob perspectiva distinta da lógica da supremacia branca norte-ameri-
cana com as discussões pioneiras sobre racismo ambiental no Câncer
Valley em meio à influência yoruba na santeria, do red bens and rice (feijão
e arroz) toda segunda-feira, do jazz negro da Bourbon Street, do okra co-
zido (bom registrar sua origem africana, precisamente na Etiópia, tam-
bém conhecido como quiabo, quingombô, gombô, quibombô, quigombó,
quibombó, quimbombô, quingobó) ou do carnaval do Mardi Gras. Ao
mesmo tempo, somente observava a presença de negros/as quando eram
atletas na Tulane University. A todo momento, reflexões sobre Salvador, a
Bahia e o Brasil vistos de fora. Enfim, a desigualdade racial é manifesta,
com implicações na reduzida presença negra nas universidades, inclusive
nos Estados Unidos (lá, os black comunnity colleges cumprem relevante
papel) e no Brasil. De fato, após toda a fase de formação e passagem como
docente pela Universidade do Estado da Bahia (com a feliz experiência
no Mestrado de Ecologia Humana e Gestão Socioambiental, em Pau-
lo Afonso), ingressei por concurso na Faculdade de Direito da UFBA.
Aqui nem planejava, mas fui eleito vice-diretor e, atualmente, diretor da
Faculdade de Direito, com seus 129 anos de criada. Aliás, os registros
históricos nas fichas de matrícula dos primeiros discentes (1891) não
indicavam a identificação étnico-racial, apesar de registro de ingresso da
primeira mulher em 1908 e conclusão em 1911.1
Por sua vez, a preocupação com o convite implica na grande res-
ponsabilidade diante da proposta, mas não podia recusar o projeto como
iniciativa e esforço do protagonismo das/os próprios discentes em aqui-
lombar pesquisadoras negras e pesquisadores negros, tendo em vista a
presença, quase escassa, destes(as) nas instituições de ensino superior
(IES), especialmente no nível do mestrado e doutorado. Com razão, Ab-
dias Nascimento (2020) indica, em seu livro O genocídio do negro brasi-
leiro, que uma das estratégias de extermínio foi omitir e mascarar dados
censitários e impossibilitar o acesso a direitos, como a educação. Assim,
em 1950, após um período de apagamento de dados de censo, o percen-
tual da população negra no ensino superior era de cerca de 0,5% (meio

1  Informações adicionais na publicação: Julio Cesar de Sá da Rocha. Faculdade de


Direito da Bahia: processo histórico e agentes de criação da Faculdade Livre no final do
Séc. XIX. Salvador: Fundação Faculdade de Direito, 2015. A estudante e graduada em
Direito foi Marietta Gomes de Oliveira Guimarães.
Enegrecendo o Direito | 9

por cento), já os dados atuais giram em torno de 15% (quinze por cento)
da população negra, muito por conta da política de cotas de acesso im-
plementada pelas universidades públicas, nas quais o percentual é su-
perior. 2
Com efeito, no universo em que a maioria da população é negra
(56%), o déficit de presença negra em espaços públicos e implementação
de cidadania ainda é abissal. Nesse sentido, é fundamental ressaltar a
noção do protagonismo e da fala das pesquisadoras e dos pesquisadores
aqui neste livro. No dizer de Grada Kilomba (2020, p. 50), em Memórias
da Plantação, “O centro acadêmico, não é um local neutro. Ele é um espa-
ço branco onde o privilégio de fala tem sido negado para pessoas negras”.
A elaboração dos capítulos a deste livro respondem a uma reflexão
teórica, mas, além disso, uma reflexão sobre “raça, gênero e o próprio
conhecimento jurídico”. A seguir, como indica Adilson José Moreira,
no campo jurídico existe um discurso não explicitado da “celebração da
neutralidade racial” como parâmetro de interpretação da norma jurídica
e, porque não afirmar do conteúdo do ensino e investigação no direito.
Assim, a presente coletânea de capítulos, redigidos por pesquisadoras
negras e pesquisadores negros do PPGD/UFBA, aponta uma postura
decolonial e antiracista em detrimento do saber formal apresentado nos
cursos jurídicos com seus manuais e influência do paradigma da bran-
quitude, adotado como universal e pretensa via única do conhecimento.
Como exemplo, cito a representação encaminhada ao Ministério Público
Federal e o questionamento, por ofício, sobre o porquê de, em concurso
público de História do Direito na Faculdade de Direito da UFBA, três
dos dez pontos abordados girarem em torno das seguintes temáticas:
“Colonialidade Jurídica e Constitucionalismo nas Américas: EUA, Haiti
e Brasil”, “Cultura jurídica e diáspora africana. História e Racismo no
Brasil: Direito e Relações Raciais” e “História das ideias jurídicas e intro-
dução dos discursos racialistas na Bahia”. Portanto, o que seria louvável
e incentivado como exigência para o certame de docente em História do
Direito, passou ser questionado, pois são temas que “fogem” à normalida-
de dos referenciais teóricos conhecidos universalmente na matriz histo-
riográfica eurocentrada.
2  50,3% em 2018. Apesar dessa parcela da população representar 55,8% dos brasileiros,
é a primeira vez que os pretos e pardos ultrapassam a metade das matrículas em
universidades e faculdades públicas. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/
geral/noticia/2019-11/pela-primeira-vez-negros-sao-maioria-no-ensino-superior-
publico. Acesso em: 20 jun. 2020.
10 | Apresentação - Julio Cesar de Sá da Rocha

Por conseguinte, o livro oportuniza a retomada do debate racial


frente a um direito embranquecido, cuja linguagem foi criada e mantida
por pessoas brancas, redirecionando a reflexão a partir de uma epistemo-
logia negra. No meu registro, as falas e os escritos do mestre quilombola
Antônio Bispo dos Santos (2015), com seu direito orgânico, e do mestre
e geógrafo Diosmar Marcelino Santana Filho (2018) com sua geopolí-
tica do estado e do território negro quilombola. Desse modo, todos os
capítulos do livro tiveram, como pressuposto, o debate racial em alguma
área do direito, como observa-se dos capítulos aFo seguir indicados: no
capítulo primeiro, Misael Neto Bispo da França trata da questão qui-
lombola, entre vulnerabilidade e resistência com breves considerações
acerca do julgamento da ADI n. 3.239; no segundo, João Pablo Trabuco
de Oliveira estabelece a análise sobre a construção do conceito de dig-
nidade da pessoa humana em face do ser negro, pontuando questões de
gênero e raça no Brasil; adiante, Aline Santana Alves traz reflexão so-
bre a constitucionalização tributária como ação afirmativa; em seguida,
Lázaro Alves Borges reflete sobre a liberdade de expressão e imunidade
presidencial, indagando até que ponto um presidente da República pode
ter discursos discriminatórios; no quinto capítulo, Daiane Ribeiro anali-
sa os tiros disparados pelos homens da Lei e reflete sobre a violência po-
licial, coronavírus e reiteração do óbvio; já no sexto, Camila Garcez Leal
analisa a influência da ancestralidade e reflete sobre os desafios de uma
advogada negra candomblecista no exercício da profissão; no seguinte,
Jonata Wiliam Sousa da Silva reflete sobre o Sistema de Justiça Criminal
e a questão racial, analisando os possíveis caminhos para a ocupação de
pessoas negras nos espaços de poder; no capítulo oitavo, Érika Costa
da Silva avalia a (des)assistência das garantias previstas na Lei de Exe-
cução Penal enquanto vertente do genocídio antinegro; no penúltimo
capítulo, Ana Luíza Teixeira Nazário e Lethycia Laynne Santos Pereira
tratam da desumanização dos corpos negros femininos encarcerados sob
a perspectiva do genocídio no sistema prisional brasileiro; por fim, no
último capítulo, Caio Vinícius de Jesus Ferreira dos Santos reflete sobre
a seletividade e estigmatização, avaliando as potencialidades da Justiça
Restaurativa.
Assim, o livro Enegrecendo o Direito: questões raciais no Brasil, publi-
cado pela Editora Mente Aberta, representa, de forma competente, as
investigações empreendidas por pesquisadoras(es) negras(os) do Pro-
grama de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia
Enegrecendo o Direito | 11

(PPGD/UFBA). Mais do que isso, significa construção teórico-concei-


tual que rompe epistemologicamente com a “neutralidade racial” e assu-
me a construção de uma hermenêutica negra, no dizer de Adilson José
Moreira (2019, p. 39-40, “comprometida com a promoção da igualdade
de status entre grupos raciais”, e que enfatiza “o caráter anti-hegemônico
dos direitos fundamentais [...] com potencial de promover a proteção de
minorias raciais contra práticas e tradições que estabelecem a confor-
midade com identidades hegemônicas para o acesso a direitos”. E tudo
isso torna a obra necessária e urgente, em tempos de recrudescimento do
racismo em suas diferentes vertentes, como ensina Milton Santos (2012,
p. 158), pois no Brasil, a “marca predominante é a ambivalência com
que a sociedade branca dominante reage quando o tema é a existência, no
país, de um problema negro”. Aliás, os dados oficiais revelam a gritante
desigualdade racial, como nos índices da população negra em cárcere, no
acesso diferenciado à educação e excessiva desistência escolar, nos dados
de empregabilidade, na ocupação reduzida em cargos e funções públicas
no campo jurídico (pesquisa do CNJ/2018 indica que 63% da magistra-
tura é branca e masculina, chegando a 84% nos tribunais superiores). Em
tempos da violência policial que escancara o racismo estrutural, como
lembra o ator afro-americano Will Smith, o “racismo não está ficando
pior, está sendo filmado”. Como propõe Djamila Ribeiro, o “racismo no
Brasil: todo mundo sabe que existe, mas ninguém acha que é racista”,
propondo que “não basta só reconhecer o privilégio, precisa ter ação an-
tirracista de fato” e, no espaço acadêmico, entre outras inciativas, “ler
intelectuais negros, colocar na bibliografia”.3
Em suma, Enegrecendo o Direito: questões raciais no Brasil é excelente
contribuição acadêmica comprometida com o combate ao racismo e ao
epistemicídio do pensamento negro, no dizer de Sueli Carneiro (2005).
Aliás, no caminho do que tem sido proposto pelo Programa Direito e Re-
lações Raciais (PDRR/Direito/UFBA), coordenado pelo professor Sa-
muel Vida.
Em tempos de pandemia da Covid-19, que tem dizimado despro-
porcionalmente negros e negras, intensificado pelas atitudes genocidas
do atual governo federal, que tem descumprindo orientações da Organi-
zação Mundial de Saúde (OMS), rendo minha homenagem e luto pelas

3  “Racismo no Brasil: todo mundo sabe que existe, mas ninguém acha que é racista”, diz
Djamila Ribeiro. Entrevista BBC Brasil 07 de junho 2020. Disponível em: https://www.
bbc.com/portuguese/brasil-52922015. Acesso em: 22 jun. 2020.
12 | Apresentação - Julio Cesar de Sá da Rocha

famílias que perderam seus entes queridos/as. Claro que é importante


deixar registrado que o coronavírus é ainda mais adverso diante do le-
gado histórico e perverso do racismo e da forma violenta como atinge
corpos negros.
Por fim, quero agradecer e abraçar cada uma e cada um das/os pes-
quisadoras/es Ana Luíza Teixeira Nazário, Aline Santana Alves, Caio
Vinícius de Jesus Ferreira dos Santos, Camila Garcez Leal, Daiane Ribei-
ro, Érika Costa da Silva, João Pablo Trabuco de Oliveira, Jonata Wiliam
Sousa da Silva, Lázaro Alves Borges, Lethycia Laynne Santos Pereira e
Misael Neto Bispo da França.

Salvador, 23 de junho de 2020.

Professor Dr. Julio Cesar de Sá da Rocha


(Membro do Colegiado do Programa
de Pós-Graduação em Direito. Diretor da
Faculdade de Direito da UFBA)
PREFÁCIO
ENEGRECER O DIREITO: O DESAFIO DE SEGUIR
CONSTRUINDO A TRAJETÓRIA DE LUTA PELA
EMANCIPAÇÃO NO CAMPO JURÍDICO

Samuel Vida4

Contrariando os discursos consagrados sobre a formação históri-


ca, social e institucional brasileira, pautados pela narrativa eurocêntrica
guiada pelos interesses do colonizador e sua descendência direta ou indi-
reta,5 constitutiva das elites raciais dominantes, detentoras dos privilé-
gios, riquezas e recursos materiais e simbólicos produzidos socialmente,
colocam-se em movimento iniciativas de resgate, visibilização e reconhe-
cimento de outras narrativas que desvelam contribuições e protagonis-
mos que foram silenciados ou menosprezados. Esse esforço, desenvolvido
em diversos campos do saber há algum tempo, vem desafiando os sabe-
res e práticas jurídicas hegemônicas, insulados em suas torres brancas de
marfim, seus templos egrégios, fóruns semidivinos e ilusões olímpicas,
colocando um horizonte de inflexão, autocrítica e reorganização plura-
lizante do campo jurídico brasileiro. Cada vez menos sustentáveis, o dis-
curso unidisciplinar e a episteme monocultural6 da Modernidade Jurídica
e suas pretensões de a-historicidade e universalidade racional vêm sendo
rasurados por iniciativas de produção de conhecimento que começam a
trazer para o Direito uma necessária perspectiva transdisciplinar, o que
produz pontes com os debates teórico-epistemológicos. Esta reorientação
4  Ogan de Xangô do Terreiro do Cobre. Professor de Direito da UFBA. Coordenador do
PDRR – Programa Direito e Relações Raciais.
5  Por descendência indireta do colonizador, refiro-me aos imigrantes europeus acolhidos
em larga escala entre 1870-1930 pela política pública imigrantista implementada pelo
Estado brasileiro, tendo como sentido geral a afirmação de um vetor político, identitário
e demográfico de fortalecimento de um projeto de hegemonia racial branca e contenção
e negação dos estoques raciais negros, indígenas e mestiços.
6  Cf. “O nó górdio epistemológico” em: SEMPRINI, 1999.
13
14 | Prefácio - Samuel Vida

epistemológica reconhece o valor que outras matrizes epistêmicas e seus


legados negados ofertam a partir da constatação da presença e ação, nos
processos históricos, de protagonismos dos grupos raciais subalterniza-
dos, num movimento que revisita o passado, expande as possibilidades de
reinterpretação do presente, e ressignificação e construção do futuro da
sociedade e das instituições político-jurídicas.
Atendendo ao generoso e honroso convite para prefaciar este livro,
Enegrecendo o Direito: questões raciais no Brasil, formulado pelas autoras-
-pesquisadoras Camila Garcêz Leal e Érika Costa da Silva, representan-
do um conjunto de acadêmicos negros do Programa de Pós-graduação
em Direito da Universidade Federal da Bahia, com o aval do estimado
colega e amigo, professor doutor Júlio César de Sá da Rocha, coordena-
dor da obra, apresento, a seguir, uma sucinta e despretensiosa cartogra-
fia delineando aspectos gerais das várias empreitadas práticas e teóricas
relacionadas ao enegrecimento do Direito brasileiro. Longe de qualquer
pretensão de esgotar o cenário e apontar todas as iniciativas, vislumbro,
tão somente, apresentar um quadro geral que possibilite avançar na ex-
ploração das ricas possibilidades que a temática comporta, assumindo os
riscos pelas inevitáveis simplificações e omissões que o empreendimento
revelará. Trata-se de uma espécie de mapeamento do rico processo de
contribuições ao Direito desenvolvido pela trajetória negra no Brasil, que
precede e responsabiliza os investimentos e iniciativas atuais e seus esfor-
ços de produção intelectual voltado para o diálogo com as relações raciais
na esfera jurídica contemporânea. Afinal, como dizem as mulheres negras
em sua trajetória de organizações insurgentes, “Nossos passos vêm de
longe”! (WERNECK, 2000; IRACI, 2019).
Neste prefácio, serão sumariadas algumas iniciativas referentes ao
enegrecimento do direito no Brasil, num movimento meramente ilustra-
tivo e provocador de autorreflexão do campo jurídico e da cultura jurídica
hegemônica, tensionando seus dogmas, sua hermenêutica e sua gramática
ilusória de autossuficiência e descolamento das relações raciais constituti-
vas de nossa historicidade, no passado e no presente. Assim, este resgate
reconecta o passado e o presente, num diálogo que, de certa forma, se con-
funde com a própria história da presença negra no turbulento processo de
formação social e institucional, desde a colonização até o tempo presente.
Seus vestígios mais remotos se fazem presentes desde o início do pro-
cesso de resistência negra e desafio ao projeto de sociedade e país de-
senvolvido em torno dos pilares do genocídio (NASCIMENTO, 2016;
Enegrecendo o Direito | 15

FLAUZINA, 2008) indígena e negro, do terror racial institucionaliza-


do, do apartheid normalizado e do supremacismo branco naturalizado, os
quais atravessam a formação social e institucional do Brasil e vertebram
as relações sociorraciais nas esferas privadas e públicas. Somente o pac-
to narcísico da branquitude (BENTO, 2002) possibilitou as tentativas de
apagamento e desconsideração de evidências salientes, que irreversivel-
mente agora começam a ser resgatadas e reconhecidas. Uma firme aliança
intrarracial estabeleceu o compartilhamento de privilégios por todos os
estratos brancos da sociedade, independendo de outras clivagens distin-
tivas,7 lastreada na moeda do silêncio e do silenciamento de quaisquer
vozes e intervenções dissidentes. Cabe bem, para caracterizar esta incrível
situação, o trecho da canção de Caetano Veloso, “Um índio”, que diz: “E
aquilo que nesse momento se revelará aos povos / Surpreenderá a todos
não por ser exótico / Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto /
Quando terá sido o óbvio.”
A resistência indígena, o quilombismo e a insurreição individual
inauguraram, no período colonial, a longeva trajetória de “desobediên-
cia civil” e disputa intuitiva pela juridicidade em sua inseparável conexão
com justiça, além de fomentar a emergência de juridicidades alternativas
ou reativas, marcando tanto experiências ético-políticas utópicas e contra
hegemônicas de emancipação, quanto a produção jurídico-normativa con-
duzida pelos aparatos estatais e instrumentalizadora do empreendimento
racista-colonial-capitalista desenvolvido no que chamamos de Brasil, des-
de a invasão de Pindorama, em 1500.
Não se trata de metáfora ou “licença poética”. Somente o racismo
epistêmico (DÍAZ, 2011) e seu produto dileto, o epistemicídio (CARNEI-
RO, 2005), podem autorizar uma abordagem histórica que silencia e busca
apagar o protagonismo indígena e negro e suas permanentes tensões e
disputas em todos os momentos do desenvolvimento social e institucional
do Brasil, desde a época colonial. As relações jurídicas que pretendiam
estruturar a suposta legitimidade da escravização e desumanização dos

7  “Outra característica do refinado apartheid brasileiro foi a transferência, pelo Estado


e pelas elites brancas, de parte da responsabilidade pela opressão racial para todos os
estratos brancos da sociedade. Através de uma espécie de ‘terceirização’ da implementação
da exclusão racista, desenvolveram-se políticas formais e informais de privilégios para
os brancos, independentemente de origem, situação socioeconômica, crença religiosa,
sexo ou preferência político-ideológica, que consolidaram uma inabalável aliança que
isolou e implementou derrotas parciais ao povo negro nas tentativas de enfrentamento
do aparato racista”. (VIDA, 2004).
16 | Prefácio - Samuel Vida

africanos e indígenas e seus descendentes se constituíram e se desenvol-


veram, desde seus fundamentos teoréticos da filosofia política e jurídica
modernas, tensionadas pelas relações raciais e seus conflitos. Tome-se,
como exemplo da dimensão teórica do fenômeno, o clássico debate sobre
as guerras justas, seus desdobramentos na edificação do Estado Moderno
e sua expansão colonial, assim como a configuração da arquitetura políti-
co-jurídica do Direito Internacional Público e Privado. Para além dos fun-
damentos teóricos (e teológicos) que oferecem uma “racionalidade racia-
lizada”, a empreitada colonial se move como engrenagem racionalizadora
de ordem prática, operacionalizando a montagem e o desenvolvimento do
capitalismo a partir da gestão jurídico-política do terror racial e do geno-
cídio, como condições de possibilidade para a edificação da Modernidade.
Como exemplo desta segunda dimensão das tensões das relações raciais,
vale a pena a releitura do Regimento do Governador-Geral, formulação
normativa metropolitana do Estado Colonial Português, investindo Tomé
de Souza na condição de preposto e comandante militar das incursões
genocidas contra os povos ameríndios que ocupavam Kirymurê8 e amea-
çavam, com sua brava resistência, a ocupação permanente da região da
Baía de Todos os Santos. A fundação de Salvador e seu desenvolvimen-
to histórico são indissociáveis do plano de tensões e disputas raciais que
vertebram toda a história do país. Gilberto Gil, na canção “Toda menina
baiana”, nos indica esta dimensão inafastável, quando diz: “Que Deus en-
tendeu de dar a primazia / pro bem, pro mal, primeiro chão da Bahia / pri-
meira missa, primeiro índio abatido também / que Deus deu / que Deus
entendeu de dar toda magia / pro bem, pro mal, primeiro chão da Bahia /
primeiro carnaval, primeiro Pelourinho também / que Deus deu”...
Mesmo na vigência da subalternidade, após a crescente consolidação
da empreitada racista-colonial, a trajetória de resistência desenvolvida
pelos indígenas e africanos e seus descendentes escravizados, desde os
albores do século XVI, prosseguiu se infiltrando nas esferas das disputas
político-jurídicas, deixando legados significativos para a sociedade e cum-
prindo papel constitutivo da juridicidade estatal. Aqui, impõe-se um “des-
locamento epistemológico” que possibilite a problematização e superação
das formas de abordagem historiográficas que silenciam os subalterniza-
dos, reduzindo a narrativa histórica à celebração do poder público e seus
triunfos e demiurgos, bem ao gosto da tradição juridicista capturada pelo
estatalismo, afeita ao reducionismo do fenômeno jurídico ao fetiche da
8  Nome originário da região batizada como Baía de Todos os Santos pelos invasores.
Enegrecendo o Direito | 17

norma formal, supostamente formulada pela razão e seus manejos ins-


titucionalizados pelos “sacerdotes” do direito estatal. Também se impõe
a superação de uma matriz epistemológica supostamente voltada para a
história dos oprimidos, quase sempre reduzindo-a aos esquemas eurocên-
tricos de inteligibilidade exclusiva dos recortes economicistas que sobre-
determinam as complexas relações sociais a meros reflexos das infraes-
truturas produtivas, favorecendo as mistificações da luta política reduzida
às insurgências revolucionárias deliberadamente anti-estruturais e a um
heroísmo reducionista e desumanizante, minimizando, desqualificando
ou desconsiderando a atuação político-jurídica e seus ricos significados
para a resistência negra, bem como os impactos na institucionalidade e
os deslocamentos nesta produzidos pelo uso, apropriação e produção de
juridicidades.
O quilombismo (NASCIMENTO, 1980) sempre representou um in-
solente desafio político às pretensões racistas-coloniais e ao Estado Na-
cional supremacista branco, tendo suas variadas expressões e formas or-
ganizacionais produzido, pelo menos, quatro relevantes consequências
jurídicas: a afirmação da liberdade como um direito construído pela luta
insurgente que implodia, ainda que momentaneamente, a legalidade racis-
ta escravocrata e os instrumentos e instituições estatais que pretendiam
capturar e monopolizar a juridicidade; a produção coletiva de juridicidades
comunitárias alternativas, com graus variáveis de sofisticação institucio-
nal e normativa, como pode ser observado na experiência da República de
Palmares; a produção de normas jurídicas interculturais, intercomunitá-
rias e interinstitucionais mediando a juridicidade colonial instituída e re-
presentações de juridicidades instituintes das comunidades quilombolas,
das quais o exemplo mais emblemático se apresenta no “Tratado” firmado
entre Palmares e a Coroa Portuguesa, estabelecendo a paz; a produção de
normas jurídicas coloniais repressivas como resposta institucionalizada
das frustradas tentativas de eliminação do quilombismo, das quais sobres-
sai a norma do Conselho Ultramarino que “positiva” o conceito de qui-
lombo no ordenamento jurídico colonial, de forma suficientemente ampla
para evidenciar a amplitude do movimento quilombista, a mobilidade e
pluralidade morfológica e situacional do fenômeno e os incômodos e ins-
tabilizações provocados na ordem jurídico-política escravista.
As insurreições urbanas e rurais, as práticas coletivas de transgressão
e manutenção de legados civilizatórios comunitários, a exemplo da reli-
giosidade negra, a rebelião individual de homens e mulheres escravizados,
18 | Prefácio - Samuel Vida

assim como as micro transgressões disseminadas nas variadas práticas


insurgentes, também deixaram importantes marcas e implicações nas re-
lações jurídicas, seja na esfera difusa, implicando o desenvolvimento de
uma complexa e espessa teia de normatividades direcionadas ao controle
social, criminalização e repressão às movimentações e práticas sociais das
pessoas escravizadas; seja na esfera da introdução de contradições lógico-
-formais nas pretensões de coerência e integridade do ordenamento jurí-
dico colonial e pós-colonial, a partir da independência. Aqui, talvez a mais
significativa dessas contradições se inscreveu na solução esquizofrênica
que negava personalidade jurídica ao escravizado na esfera dos direitos
civis e políticos, ao tempo em que admitia a personalidade jurídica para
figurar como réu na esfera do direito penal. Uma outra repercussão de
extrema importância para a compreensão da cultura jurídica nacional se
expressou na escandalosa introdução da legislação simbólica ou “legisla-
ção-álibi” (NEVES, 2007), meramente protocolar e dirigida ao atendimen-
to de interesses e razões políticas circunstancialmente inescusáveis, sem
qualquer pretensão de efetividade ou aplicabilidade. O caso mais notório
é o da Lei Diogo Feijó, adotada em 1831, criminalizando o tráfico escra-
vista, que de tão desconsiderada pela institucionalidade jurídico-política e
seus sacerdotes, mereceu o jocoso epíteto de “Lei pra inglês ver”! Por fim,
um outro exemplo emblemático pode ser extraído do medo do Haiti, for-
temente presente no processo constituinte inaugurador do ordenamento
constitucional, resgatado com maestria pela pesquisa de Marcos Queiroz
(2016). O fantasma do Haiti vai atravessar todo o século XIX, fortalecido
pela onda de assombro pós-Revolta Malê, em 1835, ocasião em que, pela
primeira vez, tivemos a supressão formal de direitos constitucionais como
resposta da razão de estado racializada.
Durante o desenvolvimento das instituições e cultura jurídica do Es-
tado Nacional, a partir de 1822, as tensões e movimentações das confliti-
vas relações raciais se agudizaram e ganharam novos contornos e instru-
mentos. Ao precedente inaugurado por Esperança Garcia que, em 1770,
em Oeiras, no Piauí, apresenta a primeira petição reclamando direitos,
formulada por uma pessoa escravizada, consagrando-se como a primeira
advogada brasileira, somam-se inúmeras iniciativas de “ações civis de li-
berdade”, colocando pessoas escravizadas como sujeitos processuais que
apresentam suas demandas por direitos e suas interpretações da juridi-
cidade no seio das instituições jurídico-políticas estatais. Pelo seu papel
destacado na luta pelo acesso e uso do direito formal para a afirmação da
Enegrecendo o Direito | 19

cidadania negra, Luiz Gama desponta como o mais importante jurista


brasileiro do século XIX, deixando um imponente legado na advocacia e
na teorização sobre o direito e o judiciário.
Nas primeiras décadas do século XX, merecem destaque a intensa
movimentação associativista e reivindicativa da comunidade negra, cul-
minando com uma prolífica Imprensa Negra que buscava exercer o direi-
to à informação e livre expressão, denunciando as desigualdades raciais
e apresentando agendas reivindicativas para o Estado e a sociedade, bem
como a organização política da Frente Negra Brasileira como um promis-
sor partido político, que teve sua trajetória interrompida pelo autoritaris-
mo do Estado Novo. Na luta por liberdade religiosa para as religiões de
matrizes africanas, entre as décadas de 1920 e 1930, desenvolveu-se mais
um importante capítulo do Constitucionalismo Negro (VIDA, 2018), lide-
rado pelo povo de santo como Sujeito Constitucional Insurgente (VIDA,
2018). As lutas e mobilizações pela descriminalização da capoeira, do sam-
ba e de outras manifestações culturais negras, as iniciativas associativistas
das trabalhadoras domésticas, combinadas com reivindicações de direitos
e políticas públicas, também encorparam a experiência constitucionalis-
ta negra e redundaram numa histórica atuação na Constituinte de 1945,
mediante a apresentação de proposições formais antirracistas para a ela-
boração constitucional, através da Convenção Nacional do Negro, sob a
liderança de Abdias do Nascimento.
No período nefasto da ditadura militar, a partir de 1964, o protago-
nismo jurídico-político negro se ampliou para outras formas associati-
vas, como a formação dos Blocos Afro, em Salvador, e o revolucionário
processo de reafricanização do carnaval (RISÉRIO, 1981); as tentativas
de retomada do controle das Escolas de Samba (CANDEIA; ISNARD,
1978), no Rio de Janeiro; um ensaio de ocupação de espaços acadêmicos
universitários, especialmente por articulações negras estudantis e alguns
intelectuais negros e aliados; a rearticulação de organizações políticas do
Movimento Negro, a exemplo do Grupo Palmares, em Porto Alegre, e da
aglutinação nacional de várias iniciativas na fundação do Movimento Ne-
gro Unificado, em 1978. Convém destacar que a pauta do Movimento Ne-
gro reorganizado durante a ditadura militar incluía tanto reivindicação de
direitos sociais e culturais, quanto direitos civis e políticos diversos, como
direito ao voto para analfabetos, criminalização da tortura, ampliação de-
finitiva do direito à liberdade religiosa, criminalização do racismo etc.
20 | Prefácio - Samuel Vida

Esse ciclo de mobilizações e intensa atuação político-jurídica do Mo-


vimento Negro redundou numa vigorosa participação no processo cons-
tituinte desencadeado com o fim da ditadura militar, atualizando e forta-
lecendo a trajetória do Constitucionalismo Negro, produzindo a consti-
tucionalização do antirracismo na CF de 1988, através da construção de
um microssistema constitucional antirracista9 que atravessa transversal-
mente a Constituição Federal de 1988, implicando consequências norma-
tivas e hermenêuticas significativas para o constitucionalismo brasileiro.
Numa síntese apertada, o microssistema antirracista se delineia desde o
preâmbulo, passando pelos objetivos da República e suas prescrições de
combate às desigualdades, vinculantes da ação estatal e de suas políticas
públicas, atingindo o plano das relações internacionais, maximizando o
repúdio ao racismo ao equipará-lo ao terrorismo, ampliando os direitos
e garantias fundamentais, com a supressão das restrições à liberdade re-
ligiosa, a criminalização do racismo e a eliminação da prisão arbitrária e
sem fundamento constitucional, incorporando a agenda antidiscriminató-
ria na esfera do trabalho, inclusive com a constitucionalização do traba-
lho doméstico, reconhecendo o pluralismo étnico e cultural da formação
social, validando o patrimônio cultural afro-brasileiro, indicando a inclu-
são da diversidade na educação e assegurando os direitos territoriais das
comunidades quilombolas.
As mobilizações do Constitucionalismo Negro também impactaram
os processos constituintes estaduais, a exemplo das preciosas contribui-
ções apresentadas à Assembleia Constituinte Baiana pelo Movimento Ne-
gro e incorporadas à Constituição do Estado da Bahia, com inovações
expressivas, como a estipulação de cotas raciais para a publicidade, um
conjunto de deveres e responsabilidades para o Estado diante das mani-
festações de religiosidade negra, uma ousada normatização da titulação
dos territórios quilombolas, dentre outras conquistas.
Um capítulo especial dessas movimentações estratégicas do Movi-
mento Negro contemporâneo, com impacto na esfera jurídico-política,
vem sendo desenvolvido pela articulação do Movimento de Mulheres Ne-

9  “Através de poucos, mas valorosos constituintes, como Benedita da Silva e Carlos


Alberto Oliveira, Caó, fizeram ressoar a voz de milhões de negros e negras, inscrevendo
na Constituição Federal promulgada em 1988, um ‘sistema normativo antirracista’ – que
carece ser melhor considerado no âmbito jurídico-político-institucional – que guarda
relação de articulação e complementação com o projeto de construção de uma sociedade
democrática e de um Estado Democrático de Direito, devendo pautar a ação estatal,
traduzindo-se em iniciativas governamentais e administrativas” (VIDA, 2004).
Enegrecendo o Direito | 21

gras e suas pautas disruptivas que provocam reorientação de rotas para


o conjunto da luta negra, das formas organizacionais aos programas de
ação, ampliando e enriquecendo o repertório de reivindicações por direi-
tos das comunidades negras em todos os domínios da vida social e fortale-
cendo um perfil de liderança institucional, bem exemplificado pela figura
pública de Marielle Franco. Neste sentido, o assassinato de Marielle Fran-
co é revelador do desconforto que esse perfil de liderança provoca junto às
elites brancas e seu imaginário supremacista, mobilizando o mais abjeto
ódio racial, pois significa a subversão do papel extremo da subalternidade
racial na arquitetura do edifício da supremacia racial brasileira, represen-
tado pela mulher negra desumanizada e confinada no mundo do trabalho
servil e da coisificação sexual. A potência revolucionária do protagonismo
interrompido de Marielle Franco maximizou a trajetória de insurgência
de mulheres negras do passado, como Zeferina do Quilombo do Urubu,
Tereza do Quariterê, Esperança Garcia, Maria Firmina Reis, Mãe Aninha
Obá Biyi, Mãe Senhora Oxum Miwá, dentre tantas outras espalhadas pelo
país, e de mulheres negras contemporâneas, como Stella de Oxóssi, Lélia
González, Beatriz Nascimento, Luiza Bairros, Benedita da Silva, Francis-
ca Trindade, Sueli Carneiro, Ana Célia Silva, Valdina Pinto, Valnízia de
Ayrá, Conceição Evaristo e inumeráveis outras lideranças que são as mais
legítimas porta-vozes das melhores tradições e saberes da resistência ne-
gra na diáspora.
A partir da ordem constitucional inaugurada em 1988, a ação políti-
co-jurídica da comunidade negra por intermédio do Movimento Negro
desenvolveu-se na direção de duas prioridades: a institucionalização de
órgãos e políticas dirigidas à promoção da equidade racial, a exemplo da
criação da Fundação Cultural Palmares, criada em meados dos anos 1980,
na efervescência das movimentações que deram início à transição demo-
crática na fase pré constituinte, e a SEPIR, criada no primeiro governo
Lula, no embalo de novas expectativas de democratização e retomada da
agenda inconclusa que se arrastava na longa e lenta transição iniciada
com o fim do regime militar, e a densificação normativa infraconstitu-
cional através de um conjunto de normas jurídicas instrumentalizadoras
da agenda constitucional antirracista. São exemplos desta segunda prio-
ridade: a proposição e aprovação da Lei n. 10.639/2003, estabelecendo a
obrigatoriedade do ensino da história da África e do negro; o Decreto n.
4.887/2003, estabelecendo o regramento da titulação dos territórios qui-
lombolas; a Lei n. 12.288/2010 – Estatuto da Igualdade Racial –; a Lei n.
22 | Prefácio - Samuel Vida

12.711/2012, instituindo a obrigatoriedade de cotas nas universidades; a


Lei n. 12.990/2014, estabelecendo cotas no serviço público federal.
Essa produção legislativa teve sua origem nas agendas do Movimen-
to Negro, juridicizando formalmente, em normas estatais, uma vasta pro-
dução jurídica insurgente instituinte de novos direitos, contando com a
intensa participação de lideranças negras nos processos de formulação
dos projetos de lei e substitutivos, bem como na tramitação e aprovação
no interior do Poder Legislativo.
Essa estratégia também se capilarizou para as demais entidades fe-
derativas, produzindo relevantes instrumentos normativos em Estados e
municípios brasileiros. Merece registro o esforço produzido pelo Movi-
mento Negro baiano, através da campanha “Na Fé e na Raça”, realizada
em 2005, sob a coordenação do AGANJU,10 que redundou na formulação e
posterior aprovação do Estatuto Estadual da Igualdade Racial e Combate
à Intolerância Religiosa.11 Na mesma trilha, também merece registro a
iniciativa desenvolvida junto à SEMUR,12 durante a gestão do Secretário
Gilmar Santiago, elaborada por Samuel Vida, na condição de consultor,
que formulou as diretrizes para a elaboração do Estatuto Municipal da
Igualdade Racial e Combate à Intolerância Religiosa (VIDA, 2006).
Uma outra importante trincheira do Movimento Negro na seara do
direito desenvolveu-se a partir da Constituição de 1988 e da Lei Caó, atra-
vés da estruturação de assessorias jurídicas voltadas para a busca de efe-
tividade da aplicação da legislação antirracista. Em todo o país, diversas
organizações negras13 mobilizaram advogados e advogadas engajados no
atendimento às vítimas de discriminação racial e religiosa, desenvolven-
do, também, iniciativas importantes de diálogo e pressão às instituições
jurídicas, como o Ministério Público, as Defensorias e instâncias judi-
ciais. Desta experiência rica de atuação jurídica, podem ser destacadas
duas iniciativas marcantes: em Salvador, após um seminário organizado
em parceria entre membros do Ministério Público Estadual e organiza-
ções do Movimento Negro, foi criada formalmente a primeira Promotoria
10  Afro-gabinete de Articulação Institucional e Jurídica, organização do Movimento
Negro, criado em 2001 e dedicado à intervenção jurídica.
11  Campanha “Na fé e na raça”, coordenada por Samuel Vida.
12  Secretaria Municipal da Reparação.
13  Desde o final dos anos 1980, surgiram assessorias jurídicas em organizações negras,
como Olodum, Níger Okan, Disque-Racismo, na Bahia; CEAP, no Rio de Janeiro;
GELEDÉS e CEERT, em São Paulo; NEN, em Florianópolis; Djumbay, em Recife;
Escritório Nacional Zumbi dos Palmares, em Brasília.
Enegrecendo o Direito | 23

de Combate ao Racismo do Brasil, oportunizando uma intensificação das


ações institucionais de uso do direito. A outra experiência marcante se
desenvolveu através da organização da Rede Nacional de Advogados e
Advogadas Antirracistas, iniciada em 1998 e nucleada pelo Escritório Na-
cional Zumbi dos Palmares (ENZP), com presença em quase duas dezenas
de estados da Federação, cumprindo um papel muito ativo nas mobiliza-
ções para a participação brasileira na III Conferência Mundial Contra o
Racismo, organizada pela ONU e realizada em 2001, em Durban, África
do Sul, tendo impulsionado as agendas voltadas para a adoção das ações
afirmativas no Brasil.
Nos últimos vinte anos, o protagonismo jurídico negro experimentou
uma nova dimensão de alargamento e avanço nos debates e decisões ju-
risprudenciais do Supremo Tribunal Federal, nas duas primeiras décadas
deste século, expandindo o Constitucionalismo Negro para a jurisprudên-
cia constitucional brasileira. Essa movimentação superou definitivamente
a armadilha do confinamento da abordagem jurídica sobre o racismo na
esfera do Direito Penal e suas aporias e impossibilidades. A previsível rea-
tividade do supremacismo branco, através de suas retóricas de negação do
racismo e seus instrumentos institucionais de manutenção do status quo,
conduziram o debate jurídico sobre a temática do racismo e das políticas
públicas de ações afirmativas para a contestação da constitucionalidade
junto ao STF. Em quatro casos emblemáticos, a jurisprudência do STF
validou e consolidou a constitucionalidade da experiência de juridicização
da pauta antirracista, acolhendo, em seus julgados, importantes aspectos
das formulações jurídicas insurgentes produzidas pelo Movimento Ne-
gro, reconhecendo-o como Sujeito Constitucional Insurgente.
No primeiro caso, em 2004, a partir de episódio envolvendo a publica-
ção de material negacionista antissemita, conhecido como Caso Elwanger,
em decisão histórica, a Suprema Corte consolidou interpretação acerca
do caráter e formas de manifestação do racismo com razoável consonân-
cia com o entendimento sustentado pelo Movimento Negro e com a pro-
dução da pesquisa acadêmica especializada na temática, pondo um freio
numa movimentação insidiosa que buscava esvaziar hermeneuticamente
o alcance da normativa antirracista.
No segundo caso, em 2012, em julgamento da ADPF n. 186, inter-
posta pelo DEM, questionando a constitucionalidade das cotas raciais nas
universidades, o STF reafirmou a constitucionalidade, recusando a inter-
pretação que sugere a contrariedade ao princípio da igualdade, firmando
24 | Prefácio - Samuel Vida

as ações afirmativas como modalidade constitucional de políticas de cor-


reção de desigualdades raciais.
No terceiro caso, em 2018, a partir de uma ADI interposta pelo PFL/
DEM, questionando a constitucionalidade do decreto regulamentador da
titulação dos territórios quilombolas, tivemos nova manifestação do STF
razoável e consoante a interpretação constitucional adotada pelo Poder
Executivo, em diálogo com as formulações produzidas pelo movimento
quilombola e respaldado pela produção intelectual, acadêmica e não aca-
dêmica, sobre o fenômeno dos quilombos no presente.
No quarto caso, em 2019, no julgamento do Recurso Extraordiná-
rio n. 494601, interposto pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul,
questionando a constitucionalidade do sacrifício de animais em rituais das
religiões de matrizes africanas, o STF rejeitou a tese da inconstituciona-
lidade e reconheceu a histórica discriminação dirigida às religiões negras,
assegurando-lhes a preservação dos ritos.
Por fim, os movimentos mais recentes do protagonismo jurídico ne-
gro se desenvolvem nos espaços jurídicos universitários recentemente
ocupados, nas atividades de extensão e pesquisa desenvolvidas e na inci-
piente atuação no interior de instituições jurídicas na advocacia, Ministé-
rio Público, Defensorias Públicas e Judiciario.
Na esfera acadêmica, uma pesquisa produzida no Mestrado em Di-
reito da UFSC, em 1989, por Dora Lúcia de Lima Bertúlio, intitulada
“Direito e Relações Raciais: Uma Introdução Crítica ao Racismo”, repre-
sentou um marco divisor nessa trajetória multifacetada, inaugurando um
novo ciclo de sistematização e produção de conhecimento jurídico a partir
de uma concepção inovadora epistemologicamente no interior da univer-
sidade brasileira. A pesquisa de Dora Lúcia de Lima Bertúlio introduz
algumas significativas novidades, a exemplo de uma articulação entre a
experiência militante organizada no Movimento Negro,14 um sofisticado
deslocamento epistemológico operado pela incorporação de referenciais
teóricos da tradição intelectual negra pan-africanista e a ousadia de pro-
por uma ampla e generalizada avaliação da experiência de produção de
conhecimento jurídico à luz das relações raciais. A partir da obra de Dora
Bertúlio, o debate sobre direito e racismo não cabe mais no estreito nicho
do Direito Penal, tampouco persistem ilusões acerca da pretensa neutra-

14  A intelectual-pesquisadora teve participação orgânica no NEN, em SC, e no Jornal


Maioria Falante, editado por Ele Semog e outros intelectuais negros vinculados ao
Movimento Negro contemporâneo.
Enegrecendo o Direito | 25

lidade axiológica da dogmática jurídica ou de seu aparato instrumental


materializado na normatividade em todos os domínios e ramos da juridi-
cidade.
Desde então, surgiram algumas iniciativas inspiradas pela pesquisa
original e seminal desenvolvida por Dora Bertúlio, destacando-se a cria-
ção, em outubro de 2003, na Faculdade de Direito da UFBA, do Pro-
grama Direito e Relações Raciais (PDRR),15 organizado como grupo de
pesquisa e extensão que agrupa professores e estudantes em torno de uma
variada agenda de intervenções, reflexões e formação teórica e produção
de pesquisas no interior do campo jurídico. Ao longo de 17 anos de fun-
cionamento, o PDRR desenvolveu parcerias com diversas organizações
do Movimento Negro em torno de temas sensíveis e estratégicos para
a agenda jurídica negra, a exemplo da assessoria jurídica a comunida-
des quilombolas, do enfrentamento ao racismo religioso, da introdução
da abordagem sobre racismo ambiental no campo jurídico brasileiro, do
desenvolvimento de pesquisa sobre o direito à literatura negra, direito
à cidade e relações raciais, constitucionalismo negro, racismo fundiário,
trabalho doméstico e relações raciais, militarização e violência policial em
territórios negros, programas de TV, racismo e criminalização negra, ge-
nocídio negro, dentre várias temáticas.
O campo de intervenção e pesquisa jurídica denominado Direito e Re-
lações Raciais (VIDA, 2017) vem sendo construído por muitas mãos, em
diversas frentes e por diversos caminhos. Implica uma rasura nas narrati-
vas e teorizações sobre a experiência jurídica moderna, seus protagonis-
tas, suas instituições e sua história. Pretende habilitar outras epistemes,

15  Trecho da carta de apresentação do PDRR, disponível em www.pdrr.ufba.br: “A


reflexão em torno do Direito e das relações raciais se constitui num campo novo na
abordagem acerca do racismo e suas implicações na sociedade brasileira. A ausência
de preocupação acadêmica com o assunto reflete o descaso político e a amplitude do
mito da democracia racial brasileira. Coloca-se, hoje, como um desafio inadiável para
a Universidade Pública brasileira a construção de espaços teóricos e práticos de
articulação do acúmulo experimentado no campo dos movimentos negros e da tradição
jurídico-institucional de resolução dos conflitos no interior da sociedade. Cumprindo
esse papel, o PROGRAMA DIREITO E RELAÇÕES RACIAIS – PDRR, vinculado
ao Departamento de Direito Privado da Faculdade de Direito da Universidade Federal
da Bahia, pretende ser um instrumento de reflexão e intervenção na realidade das
comunidades negras, pelas comunidades negras, dentro e fora da Academia, para tanto
objetivamos parcerias com as organizações dos movimentos negros, a exemplo da
recém-firmada com a ACBANTU. Para o desenvolvimento de iniciativas propiciatórias à
reversão do apartheid brasileiro, pretende-se utilizar dois fundamentais instrumentos de
intervenção na vida social e econômica do país, o Direito e o Estado.”
26 | Prefácio - Samuel Vida

práticas jurídicas e horizontes epistemológicos e metodológicos adequa-


dos à construção de experiências e processos societais emancipatórios,
democráticos e interculturais.

REFERÊNCIAS

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28 | Prefácio - Samuel Vida

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1
A QUESTÃO QUILOMBOLA – ENTRE VULNERABILIDAE
E RESISTÊNCIA: BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA
DO JULGAMENTO DA ADI N. 3.239

Misael Neto Bispo da França16

“Na verdade, se não nos deixassem tocar os batuques


Nós, os pretos, faríamos do corpo um tambor
Ou, mais grave ainda
Percutiríamos com os pés sobre a superfície da Terra
E, assim, abrir-se-iam brechas no mundo inteiro”.
(COUTO, 2016).

Em Direito, é comum tratar-se da questão racial sob o enfoque do


sistema penal, como se essa fosse a única forma de abordagem do tema.
Com efeito, uma das características da falência da pena e seus consectá-
rios é a seletividade do sistema do qual faz parte, que privilegia as classes
hegemônicas, criminalizando as castas mais vulneráveis da sociedade. No
Brasil, os preteridos provêm da juventude pobre e negra, cujo horizonte,
cada vez mais próximo, tem sido a cela ou a vala.
Se, por um lado, a associação entre negritude e crime desperta para
a necessidade de um debate a respeito da seletividade do sistema de jus-
tiça criminal pátrio, por outro acaba por gerar uma tendência ao recru-
descimento dessa mesma seletividade. É que o imaginário construído na
sociedade brasileira, muito por conta da colonização, associa a negritude
à delinquência, formando a base das estruturas cognitivas que movem
as agências formais de controle – polícia, Poder Judiciário e Ministério
Público.

16  Doutorando em Direito (UFBA). Professor efetivo de Processo Penal e Prática


Jurídica Penal (UFBA). Analista do MPU/Direito.
29
30 | Misael Neto Bispo da França

Daí que, para romper estruturas cognitivas que tais, faz-se relevante
estudar a questão racial sob o prisma de outras esferas do saber jurídico,
para além das ciências criminais. Há, por exemplo, que se explorar a racia-
lização das relações trabalhistas, para montar uma estatística do racismo
no ambiente laboral. Há que se analisar a presença de negros e negras no
Poder Judiciário e no Ministério Público, para testar a idoneidade da polí-
tica de cotas, bem como para verificar o reflexo de tal presença na atuação
dos respectivos órgãos. Também, faz-se necessário estudar o superendivi-
damento da negritude no contexto das relações de consumo, dentre tan-
tos outros enfoques que a racialização, ínsita à formação do país, permite.
A proposta do presente trabalho passa pela questão fundiária, verti-
calizada para abordar os direitos e vicissitudes por que passam os rema-
nescentes quilombolas no Brasil dos últimos anos, demonstrando como a
referida comunidade assume perfil ambivalente, que ora expressa vulne-
rabilidade, ora resistência.
Trata-se de um povo que combateu, por décadas, as investidas de in-
vasores europeus, rompendo os grilhões da escravidão e elevando o espíri-
to identitário que, ainda hoje, serve-lhe de guia. Sucede que a necessidade
de resistência foi e é, para as comunidades quilombolas, necessidade de
reclusão, de ocupação de espaços que oscilam entre o sagrado e o clandes-
tino, suscetíveis à violência da disputa por terras agrícolas e do racismo
ambiental.
Nesse panorama, põe-se o problema: o julgamento da ADI n. 3.239
pode ser considerado um divisor de águas em benefício da questão qui-
lombola?
Tal como a ambivalência que marca o perfil do povo em tela, esse
julgamento pode, de fato, ser considerado um marco na defesa do seu pa-
trimônio e, por via de consequência, um tributo à sua memória, costumes
e origens. Sob outro ângulo, considerados os entraves políticos e admi-
nistrativos que dificultam a efetivação da justiça fundiária no Brasil, o
julgamento da ADI n. 3.239 pode consistir em mais uma demonstração do
caráter simbólico que ostenta a Constituição de 1988 e os diplomas legais
devotos à sua axiologia.
A presente abordagem é robustecida com dados coletados do con-
texto sociopolítico nacional, bem como pela breve análise do processo de
regularização fundiária das comunidades de Salinas da Margarida, São
Tiago do Iguape e Rio dos Macacos, todas situadas no Estado da Bahia,
visando a conferir ao tema um recorte mais nítido.
Enegrecendo o Direito | 31

1 ENTRE VULNERABILIDADE E RESISTÊNCIA

Menos no Direito, mais na Sociologia, têm-se constatado que a socie-


dade brasileira alicerçou-se em um estrutura heteropatriarcal que exala
misoginia e racismo, na qual mulheres e negros ou, com maior exatidão,
a mulher negra constitui, a um só tempo, a base explorada e oprimida e o
ápice na escala das vulnerabilidades. No Brasil, é rica a coleção de violên-
cias que se abateram sobre o povo negro, de 1500 aos dias atuais, passando
pela omissão do Estado no pós-“Abolição” da Escravatura, que contribuiu
para o seu genocídio (NASCIMENTO, 2017).
No dizer de Carla Pimentel Águas, tratando dos caminhos para a
emancipação social dos quilombos:

O sistema escravista foi um universo de silêncios. Por não existirem como


pessoas, os povos escravizados também representaram, em grande medi-
da, uma ausência na história. De um lado do Atlântico, a invenção do afri-
cano selvagem – que ganhou grande impulso com as crônicas de viagens
inglesas dos séculos XVIII-XIX – representou a África como um conti-
nente obscuro, uniforme e sem passado. (ÁGUAS 2013).

Tal ocorreu, apesar de o povo de África ter trazido, na mesma baga-


gem que o sofrimento, a riqueza dos seus costumes, que se disseminaram
pelo país e resistiram à opressão da branquitude heteropatrial. Vulnerabi-
lidade e resistência como marcas de um mesmo povo.
Aqui, merece destaque a vulnerabilidade e a resistência dos negros
remanescentes de quilombos espalhados pelo país. Vulneráveis por suas
origens, sua cor e sua identidade. Vulneráveis, também, pelos espaços que
ocupam, situados abaixo do campo de visão do Estado brasileiro, que in-
siste em negar a existência dessas comunidades, sem prejuízo de alguma
boa intenção institucional em seu benefício.
Neste ponto, convém registrar importante contribuição da bioética a
respeito do conceito de vulnerabilidade. Trata-se da susceptibilidade de
alguém a ser ferido por outrem, de quem reclama uma postura respon-
sável diante do sujeito vulnerável. Vislumbra-se, nesta concepção, uma
preocupação de fundo ético que diz respeito a um indivíduo ou a uma cole-
tividade, e que se vincula, ao fim, à realização da pessoa humana (ANJOS,
2006).
Assim, a vunlerabilidade torna-se parceira da autonomia e aproxima
a finitude humana da solidariedade entre os indivíduos. Ser vulnerável é,
32 | Misael Neto Bispo da França

pois, característica da própria condição humana (ANJOS, 2006). Aduz-se,


também na bioética, no sentido da existência de uma vinculação entre
vulnerabilidade, autonomia e poder, na medida em que o reconhecimento
da condição de vulnerável conduz (ou deve conduzir) ao exercício respon-
sável da autonomia, pautado no pleno respeito ao outro.
Em termos antropológicos, essa responsabilidade tende a desapare-
cer, diante do uso desmedido da autonomia que relativiza a vulnerabilida-
de alheia. Aqui reside uma importante chave de discussão para o presente
trabalho: as elites governantes do país, no afã de manterem seus privilé-
gios e, assim, perpetuarem-se no poder, não enxergaram limites à sua au-
tonomia e agravaram a vulnerabilidade das comunidades remanescentes
de quilombos, que amargam o alto custo da autoafirmação identitária.
Outro dado importante, quando se aborda a vulnerabilidade das co-
munidades remanescentes de quilombos no Brasil. De fato, o perfil desse
povo revela, mesmo, uma ambivalência, na medida em que retira forças da
sua própria fraqueza para, sendo vulnerável, resistir. Tratam-se de comu-
nidades que enfrentam os mais diversos matizes da discriminação institu-
cionalizada, com destaque para as mazelas do racismo ambiental. Zumbi e
Dandara não conheceram a fraqueza e resistiram até o último grau da sua
vulnerabilidade, fazendo de Palmares digno monumento da representati-
vidade para os seus descendentes.
No ponto, vale o registro das considerações de Milton Santos a res-
peito da “natureza do espaço”:

O investimento público pode aumentar em uma dada região, ao mesmo


tempo em que os fluxos de mais-valia que vai permitir irão beneficiar a
algumas firmas ou pessoas, que não são obrigatoriamente locais. Essa con-
tradição entre fluxo de investimentos públicos e fluxo de mais-valia consa-
gra a possibilidade de ver acrescida a dotação regional de capital constante
ao mesmo tempo em que a sociedade local se descapitaliza. Da mesma
forma, a vulnerabilidade ambiental pode aumentar com o crescimento eco-
nômico local. (SANTOS, 2006, p. 170).

Essa força, herança dos líderes aquilombados, corre nas veias dos
seus remanescentes e lhes permite persistir na luta pelo reconhecimento
do seu território e pela preservação dos seus costumes e de sua ancestrali-
dade. É o que lhes permite reivindicar, do Direito pátrio, a tutela dos seus
direitos, alcançando alguma vitória, a partir de previsões constitucionais,
como explanado no tópico seguinte.
Enegrecendo o Direito | 33

2 UM SOPRO DE ESPERANÇA PELA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS


DOS REMANESCENTES DE QUILOMBOS

A Constituição Federal de 1988, a par de guindar a dignidade da pes-


soa humana ao status de fundamento da República, trouxe pulverizados,
ao longo do seu texto, direitos fundamentais que visam a concretizar os
valores que dimanam da concepção liberal clássica de pessoa, de fundo
kantiano, com destaque para a promoção da igualdade material e a erradi-
cação da pobreza e da marginalização.
No concernente aos povos tradicionais, o Texto Magno proclama,
entre os seus artigos 215 e 216-A, uma série de medidas tendentes à pre-
servação das suas manifestações culturais, valendo registrar a redação
emblemática do §1º do artigo 215, segundo o qual “O Estado protegerá
as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das
de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”.
Mais especificamente, quanto ao patrimônio das comunidades rema-
nescente de quilombos, a previsão do §5º do artigo 216 é no sentido de que
“Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminis-
cências históricas dos antigos quilombos”.
Sobre a expressão “comunidade”, é interessante a abordagem dada
por Ilka Boaventura Leite, como expressa o excerto a seguir:

As histórias se iniciam com um pequeno grupo familiar em busca


de um lugar para viver: instalando-se em terras devolutas do Es-
tado, em áreas desvalorizadas ou inóspitas, próximas aos locais de
trabalho, que são regularizadas pouco a pouco através da compra
ou usucapião. O grupo cresce, torna-se uma família extensa ou vá-
rias delas vivendo como “uma comunidade”. Casa na periferia da
cidade, perto do emprego ou lote no campo, roça para viver. Daí
inicia-se o processo de expulsão. (LEITE, 199, p. 123).

Ocorre que a principal referência constitucional aos direitos dos po-


vos em tela, certamente, encontra-se no artigo 68 do ADCT, em razão da
sua parca efetividade e da dificuldade que isso representa para o fim da
sua marginalização e, por conseguinte, para a minoração da sua vulnera-
bilidade.
O dispositivo citado prevê que, “Aos remanescentes das comunidades
dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a pro-
priedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
34 | Misael Neto Bispo da França

O texto econômico, composto por um único período e duas orações, não


esconde a magnitude do comando nele contido, de grande valia para o
reconhecimento dos povos em questão, como detentores das terras por
eles ocupadas.
Tão emblemática quanto o sobredito comando foi a data da assinatura
do Decreto n. 4.877, de 20 de novembro de 2003, dia criado para a reve-
rência à consciência negra no Brasil. Trata-se de decreto que, revogando
o seu congênere de n. 3.912/200, regulamenta o processo de reconheci-
mento e demarcação de terras ocupadas por remanescentes de quilombos,
para conferir efetividade ao artigo 68 do ADCT e regulamentar as Leis n.
9.649/1988 e n. 7.668/1988.
A grandeza do decreto e a sua importância para as comunidades tra-
dicionais é notória, uma vez que, muito além de descrever o procedimento
para a regularização fundiária, a norma enaltece o perfil identitário dos
remanescentes quilombolas e a sua ancestralidade, consoante se depreen-
de do dispositivo a seguir transcrito:
o
Art. 2 Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos,
para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de
auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações ter-
ritoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada
com a resistência à opressão histórica sofrida.

§ 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das


comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da pró-
pria comunidade.

§ 2o São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos


quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social,
econômica e cultural.

§ 3o Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consi-


deração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das
comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada
apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental. (BRASIL,
2003). (Grifos apostos).

Observa-se o cunho antipaternalista da norma, que reconhece aos re-


manescentes de quilombos o direito à sua autodefinição como tais, valo-
rizando sua autonomia perante o Estado. Tal observação vai ao encontro
das considerações de Jurandir de Souza, segundo o qual:
Enegrecendo o Direito | 35
[...] quem constrói a identidade coletiva, e para que essa identidade é
construída, é em grande medida, o conteúdo simbólico dessa identidade,
bem como o seu significado para aqueles que com ela se identificam ou dela
se excluem. (SOUZA, 2012, p. 16).

Destaca-se, também, a multicitada ambivalência que marca a trajetó-


ria desses povos no território nacional, uma vez que, nos termos do caput
do dispositivo em tela, a presunção da ancestralidade negra para o reco-
nhecimento da comunidade relaciona-se com a resistência e a opressão
histórica sofrida.
O Decreto n. 4.877/03 destaca-se, também, pelo seu caráter pluri-
focal, na medida em que impõe, a órgãos e entidades públicas diversas,
notadamente ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA) e à Fundação Palmares, a reunião de esforços no sentido de via-
bilizar a titulação das terras ocupadas pelos remanescentes quilombolas.
Nada obstante, o aludido decreto foi alvo da Ação Direta de Incons-
titucionalidade n. 3.239, ajuizada pelo então Partido da Frente Liberal,
PFL (atual Democratas), no ano de 2004, logo após sua publicação, ques-
tionando-se, dentre outros pontos, o critério de autoatribuição para iden-
tificar os remanescentes dos quilombos e a caracterização das suas terras.
A ADI foi julgada improcedente, por maioria de votos (oito votos a
três), em fevereiro de 2018, reconhecendo-se a constitucionalidade do De-
creto n. 4.877/03 tal como publicado e garantindo-se, aos remanescentes
quilombolas, o direito de propriedade sobre suas terras.
O relator, ministro Cezar Peluso, ficou vencido, tendo a ministra Rosa
Weber aberto a divergência ao considerar que o art. 68 do ADCT é “nor-
ma definidora de direito fundamental de grupo étnico-racial minoritário,
dotada, portanto, de eficácia plena e aplicação imediata, e assim exercitá-
vel, o direito subjetivo nela assegurado, independentemente de integra-
ção legislativa”. Quanto à opção pelo critério de autodefinição, a ministra
considerou ter:

[...] a virtude de vincular a justiça socioeconômica reparadora, consisten-


te na formalização dos títulos de domínio às comunidades remanescentes
dos quilombos, à valorização da específica relação territorial por eles de-
senvolvida, objeto da titulação, com a afirmação da sua identidade étnico-
-racial e da sua trajetória histórica própria.

O entendimento vitorioso no STF harmoniza-se com as diretrizes


de órgãos e entidades públicas que, afinados com os valores preconizados
36 | Misael Neto Bispo da França

pela CF/88, visam a tutela dos direitos das comunidades tradicionais no


Brasil. Tal é o caso do Ministério Público da União que, por conduto da
6ª Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria-Geral da Repúbli-
ca, tem-se dedicado à causa com destacado zelo. É o que se depreende da
leitura do seu Enunciado n. 25, assim transcrito:

Os direitos territoriais dos povos indígenas, quilombolas e outras comuni-


dades tradicionais têm fundamento constitucional (art. 215, art. 216 e art.
231 da CF 1988; art. 68 ADCT/CF) e convencional (Convenção nº 169 da
OIT). Em termos gerais, a presença desses povos e comunidades tradicio-
nais tem sido fator de contribuição para a proteção do meio ambiente. Nos
casos de eventual colisão, as categorias da Lei 9.985 não podem se sobre-
por aos referidos direitos territoriais, havendo a necessidade de harmoni-
zação entre os direitos em jogo. Nos processos de equacionamento desses
conflitos, as comunidades devem ter assegurada a participação livre, infor-
mada e igualitária. Na parte em que possibilita a remoção de comunidades
tradicionais, o artigo 42 da Lei 9.985 é inconstitucional, contrariando ain-
da normas internacionais de hierarquia supralegal.

Por seu turno, a Convenção n. 169 da Organização Internacional do


Trabalho (OIT), promulgada no Brasil pelo Decreto n. 5.051/2004, ci-
tada no enunciado supra, dispõe acerca da responsabilidade dos gover-
nos para com as comunidades tradicionais (indígenas e tribais), valendo a
transcrição do seu art. 2º, 1, segundo o qual:

Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a


participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática
com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela
sua integridade.

As previsões constitucionais e legais atinentes aos direitos dos rema-


nescentes quilombolas decorrem de esforços acumulados em um passado
de luta pelo reconhecimento e pela efetivação desses direitos. A partir das
demandas desses povos, impôs-se ao Direito (ordenamento juírico e Ad-
ministração Pública, mais exatamente) o dever de tutelar os interesses das
comunidades tradicionais e de ponderá-los diante de outros interesses do
Estado, sobretudo no seio do conflito entre a concretização da dignidade
da pessoa humana, proclamada como fundamento da República, e os cla-
mores da política neoliberal.
Desse conflito, cuidam os expoentes do multiculturalismo e do plura-
lismo jurídico, cujas contribuições servem ao presente estudo, como forma
Enegrecendo o Direito | 37

de compreender as tentativas de reconhecimento dos anseios de remanes-


centes quilombolas, por meio do Direito (WOLKMER, 2006; WARAT,
2010).
Os estudiosos do multiculturalismo têm estudado o capitalismo avan-
çado e os seus consequentes prejuízos sociais, como expressão da submis-
são do Estado ao mercado, da qual os direitos humanos não saem indenes.
A atenção às demandas das categorias marginalizadas, portanto, na
perspectiva aqui vertente, constitui uma forma de contenção da economia
neoliberal. Surge para o Direito, assim, a necessidade de reconhecer os
valores de coletividades vulnerabilizadas, ouvindo os clamores de quem,
tradicionalmente, esteve alijado da produção normativa ditada pelas cate-
gorias hegemônicas da sociedade.
Neste ponto, calha o registro de elucidativo trecho da obra de Wolk-
mer, assim transcrito:

Ora, diante dos recentes processos de dominação e exclusão produzidas


pela globalização, pelo capital financeiro e pelo neoliberalismo que vem
afetando substancialmente relações sociais, formas de representação e de
legitimação, impõe-se repensar politicamente o poder de ação da comuni-
dade, o retorno dos agentes históricos, o aparecimento inédito de direitos
relacionados às minorias e à produção alternativa de jurisdição, com base
no viés interpretativo da pluralidade de fontes. [...] O nível dessa eficácia
passa pelo reconhecimento da identidade dos sujeitos sociais (aqui incluin-
do os grupos culturais minoritários), de suas diferenças, de suas necessi-
dades básicas e de suas reivindicações por autonomia. [...]. (WOLKMER,
2006).

Eis, então, que, com base em uma concepção multicultural e plura-


lista do Direito, encetou-se a valorização dos interesses das comunidades
remanescentes de quilombos, para fazer frente à sua vulnerabilidade e
efetivar a solidariedade, segundo critérios contra-hegemônicos.

3 DIREITOS ASSEGURADOS SÃO DIREITOS EFETIVADOS? EM


BUSCA DE UM (VERDADEIRO) DIVISOR DE ÁGUAS PARA A
QUESTÃO QUILOMBOLA

A água é, para os remanescentes de quilombos – certamente, muito


mais do que para os outros habitantes do planeta -, de vital importância.
Na água e através dela, esses povos buscam alimento para a alma e para
o corpo, sacralizando-a em múltiplos aspectos. A relação entre esses re-
38 | Misael Neto Bispo da França

manescentes e a água é tão forte que dita normas a respeito do senso de


propriedade da terra, como retratado na dissertação de Bruna Zagatto:

O discurso sobre a necessidade da terra e da água para a reprodução de um


modo de vida com base no trabalho agrícola e na pesca, nesse caso aparece
como legitimador da reivindicação territorial. Na concepção dos líderes
do Guaí, o “trabalho de preto” vincula pessoas ao território, uma vez que
somente quem trabalha na terra ou na maré deveria é de fato dono dele.
Aquele que tem o documento da terra mas não “usa” o território através do
trabalho, não merece a posse da terra [sic]. (ZAGATO, 2011).

Não à toa, os aludidos remanescentes escolhem as margens de rios


e beiras de marés, como espaços para seus cultos e lugares onde (sobre)
viver. Da água, retiram a resistência em meio à vulnerabilidade. Com a
água, saciam a vontade de perpetuar seus costumes e sua identidade.
Na luta pela superação de uma cultura escravocrata, que racializa as
relações sociais17 e acentua a marginalidade para onde se relegou as co-
munidades tradicionais no Brasil, o povo de quilombo (sobre)vive na espe-
rança de encontrar um divisor de águas. Um marco que estabeleça limite
a uma trajetória de lutas, um horizonte onde cessem as angústias de um
povo que herdou, dos seus ancestrais, cultura e sofrimento.
Como bem capturado por Eurípedes Funes, tratando da Comunidade
do Pacoval, situada às margens do Rio Curuá, no Pará:

[...] suas manifestações culturais, seu cotidiano e seu modo de ser revelam
suas origens. Origens mais bem expressas não apenas na cor da pele de sua
gente, mas sobretudo na memória, nas lembranças dos velhos, de histórias
contadas por seus avós, que nos remetem sempre a um outro passado: o
dos mocambos. (FUNES, 1997, p. 140).

17  “A ‘raça’, como o gênero, é um modo bivalente de coletividade. Por um lado, ela se
assemelha à classe, sendo um princípio estrutural da economia política. [...] Ela estrutura
a divisão dentro do trabalho remunerado, entre as ocupações de baixa remuneração, baixo
status, enfadonhas, sujas e domésticas, mantidas desproporcionalmente pelas pessoas de
cor, e as ocupações de remuneração mais elevada, de maior status, de ‘colarinho branco’,
profissionais, técnicas e gerenciais, mantidas desproporcionalmente pelos ‘brancos’. [...]
Atualmente, além disso, a ‘raça’ também estrutura o acesso ao mercado de trabalho
formal, constituindo vastos segmentos da população de cor como subproletariado ou
subclasse, degradado e ‘supérfluo’ que não vale a pena ser explorado e é totalmente
excluído do sistema produtivo. O resultado é uma estrutura econômico-política que
engendra modos de exploração, marginalização e privação especificamente marcados
pela ‘raça’. [...]” (FRASER, 2006, p. 231-9).
Enegrecendo o Direito | 39

De fato, a Constituição de 1988, com suas proclamações protetoras


dos remanescentes de quilombos, representa um avanço rumo ao reco-
nhecimento da dignidade de seus integrantes, assim como o Decreto n.
4.877/03, o Enunciado n. 25 da 6ª CCR e a Convenção n. 169 da OIT.
Não obstante, a propositura de uma ADI contra o Decreto de 2003,
por si só, já demonstra que os comandos constitucionais não passam de
um verdadeiro aceno à efetivação dos direitos de tais comunidades, corro-
borando o caráter programático das normas da CR/88. Noutras palavras,
a falta de efetivação dos direitos desses povos – e sua luta inglória – passa
pela carência de efetivação dos valores postos pelo constituinte, desafia-
dos que são, diuturnamente, pelo próprio Estado que aspira à condição de
democrático de direito.
Ademais, a própria decisão do STF na ADI n. 3.239, reconhecendo a
constitucionalidade do Decreto n. 4.877/03, com a força dos argumentos
que conduziram à vitória do voto da telatora, representa um esforço na
direção do reconhecimento dos direitos e valores dos remanescentes de
quilombos, mas está muito distante de um verdadeiro divisor de águas.
Isso porque, no Brasil de hoje, (ainda) é possível conviver com notícias
sobre perseguições e violência institucional às comunidades tradicionais,
inclusive mediante postura omissa do Estado, que insiste em descumprir
ordens impostas por sua própria Constituição.
A gama de violações aos direitos do povo em comento é vasta, de
modo que os fatos aqui registrados têm caráter meramente ilustrativo.
De início, convém pontuar que dados da Coordenação Nacional de
Articulação das Comunidades Negras e Rurais Quilombolas e Terra de
Direitos, em parceria com o Coletivo de Assessoria Jurídica Joãozinho
de Mangal e a Associação de Trabalhadoras e Trabalhadores Rurais da
Bahia (AATR), dão conta de que o número de assassinatos de quilombolas
no país cresceu 350% em apenas um ano, com registro de quatro assassi-
natos em 2016 contra 18 em 2017 (CONAQ, 2017).
Em apenas um ano, mais do que dobraram os índices de extermínio
de remanescentes de quilombos no país, revelando que a opressão que ex-
põe a vulnerabilidade desse povo, malgrado três décadas da Constituição
Cidadã, de forma semelhante, só faz crescer.
No mesmo intervalo de tempo (2016/2017), houve séria redução
no repasse de recursos federais ao INCRA, para viabilizar o processo de
regularização fundiária de terras quilombolas. A escassez do orçamento
forçou o órgão a dedicar atenção a, apenas, 500 (quinhentos) processos
40 | Misael Neto Bispo da França

de um total de 1.675 (mil, seiscentos e setenta e cinco) em andamento no


ano de 2018, ocasião em que se constatou que menos de 7% das terras
pertencentes a remanescentes de quilombos haviam sido regularizadas
(BRITO, 2018).
Já nos primeiros dias de 2020, em 5 de janeiro, dois remanescentes
quilombolas – Celino Fernandes e Wanderson de Jesus Rodrigues Fernan-
des, pai e filho, respectivamente – foram assassinados a tiros, no município
de Arari/MA, após terem a residência invadida por quatro pistoleiros. Os
trabalhadores teriam denunciado o conflito agrário entre a comunidade
que integravam e grileiros que cercaram terrenos públicos da região para
a criação bubalina, segundo apurou a Comissão Pastoral da Terra.
Os referidos trabalhadores somam-se à grande quantidade de lide-
ranças indígenas dizimadas, representando o maior número de tais episó-
dios nos últimos onze anos (SUDRÉ, 2020).
Também no Maranhão, o projeto de ampliação do Centro de Lança-
mentos da Base de Alcântara ameaça a situação de trezentas e cinquenta
famílias de remanescentes de quilombos, que se encontram em vias de
remoção. Nada obstante, a comunidade tradicional afetada, até dezembro
de 2019, não havia sido ouvida a respeito, como determina a Convenção n.
169 da OIT (FOLHA DE SÃO PAULO, 2019).
Na Bahia, a leniência da Administração Pública para com a causa qui-
lombola fica evidenciada nos entraves à conclusão do processo de titula-
ção de terras, levando a anos de atraso, mesmo nos casos judicializados
e com decisão favorável aos povos tradicionais; mesmo após o STF ter
reconhecido a constitucionalidade do Decreto n. 4.877/03.
Três desses casos merecem destaque, sobretudo diante do longo pra-
zo de tramitação do processo de regularização fundiária no INCRA. To-
dos eles contaram com a intervenção da Procuradoria da República na
Bahia, com vinculação temática à 6ª CCR, resultando na instauração de
Inquéritos Civis Públicos.
O primeiro deles é o IC n. 1.14.000.000833/2011-91, que apura su-
postas ilegalidades perpetradas por militares da Marinha do Brasil, em
detrimento de moradores da Vila Naval da Barragem dos Macacos, no
contexto da disputa entre tais moradores e a União em torno de área ad-
ministrada pela Marinha. O conflito foi gerado há mais de vinte anos, em
decorrência do interesse da população remanescente quilombola local no
Rio dos Macacos, local de águas sagradas, cujo acesso tem sido dificultado
pela Força, por se tratar de área militar.
Enegrecendo o Direito | 41

Houve a propositura da Ação n. 0017512-34.2014.4.01.3300, julgada


procedente pela 1ª Vara da Seção Judiciária da Bahia, para condenar o
INCRA a garantir o prosseguimento célere do Processo Administrativo
n. 54160.003162/2011-57, bem como sua conclusão no prazo máximo de
540 (quinhentos e quarenta) dias. Nada obstante, o processo de regula-
rização em tela encontra-se no INCRA, em Brasília, sem avanço, até o
momento.
Outro caso que contou com a intervenção do MPF na Bahia foi o da
pretensão fundiária da comunidade de São Tiago do Iguape, situada no
município de Cachoeira, objeto do IC n. 1.14.000.000518/2011-63, ins-
taurado para monitorar o seu processo de regularização territorial.
Recentemente, o INCRA encaminhou ofício ao Cartório de Regis-
tro de Imóveis da Comarca de Cachoeira/BA, visando a obter certidões
de inteiro teor ou fotocópia das matrículas de alguns imóveis, para via-
bilizar o levantamento fundiário do respectivo território (Processo n.
54160.001702/2008-62). Munida de tal informação, a PRBA fixou o pra-
zo de 30 dias para que o órgão preste informações atualizadas sobre a
resposta do cartório.
O INCRA recebeu as informações da serventia e se comprometeu
a, até abril de 2020, concluir os trabalhos de confrontação de dados para
sanar eventuais inconsistências.
Por fim, embora não menos importante, registre-se que o IC n.
1.14.000.002396/2014-92 foi instaurado para apurar o processo de re-
gularização fundiária da comunidade remanescente quilombola de Con-
ceição de Salinas, em Salinas da Margarida/BA. Aqui, houve promessa
do INCRA no sentido de contratar e concluir o relatório antropológico
respectivo no ano de 2019.
Ainda não houve resposta da autarquia a respeito do cumprimento da
aludida promessa. No mesmo caso, houve a propositura de ação por parte
da DPU (Ação n. 1007492-25.2018.4.01.3300), pleiteando a suspensão da
obra de loteamento em terras da mencionada comunidade, especialmente
pelo caráter sagrado de árvores e pedras, sob argumento de que a prefei-
tura local concedeu alvará para construção de empreendimento imobiliá-
rio, sem conclusão do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação
(RTID) da área. A liminar foi indeferida pela 14ª Vara da Seção Judiciária
da Bahia, permitindo o prosseguimento da obra.
42 | Misael Neto Bispo da França

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O julgamento da ADI n. 3.239, pela constitucionalidade do Decreto


n. 4.877/03, não há dúvida, representa um importante marco no reco-
nhecimento dos direitos das comunidades tradicionais que, por comando
constitucional, são legítimas proprietárias das terras que habitam.
Trata-se de avanço, não só no âmbito da regularização fundiária de
tais terras, mas também na preservação da ancestralidade de um povo e na
valorização da sua luta pela autoafirmação identitária. No ponto, o STF
irmana-se com o MPF, na reunião de esforços pelo atendimento das prin-
cipais demandas das comunidades tradicionais e, juntos, buscam a concre-
tização das promessas da CR/88 para o setor.
Sucede que a violência constante a que estão expostas as comunida-
des remanescentes de quilombos no Brasil, mesmo após a proclamação
da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, e após
a decisão do STF pela improcedência da ADI n. 3.239, reforçam a vulne-
rabilidade dessa categoria, marginalizada sob estruturas cognitivas que
reforçam a racialização das relações sociais no país, desde a colonização.
Essa vulnerabilidade é, também, expressão do caráter programático
das normas constitucionais, que ostentam um simbolismo muitas vezes
desacompanhado de densidade, decorrente da omissão do Estado quanto
aos clamores das comunidades tradicionais, sem olvidar de alguma ma-
nifestação institucional em sentido oposto, a exemplo das providências
adotadas pelo Ministério Público.
Os remanescentes quilombolas no Brasil ainda buscam um verdadei-
ro divisor de águas que rompa, em definitivo, com um passado/presente
de luta pela efetivação dos seus direitos. E a esperança advém da resis-
tência que extraem da própria fragilidade, enquanto negros e negras que
disputam com o Estado e com particulares a propriedade e melhores con-
dições de habitabilidade de terras que são suas, por direito.
Uma ruptura definitiva, no entanto, só é possível com o respeito aos
valores da República e com a efetivação das normas constitucionais que
garantem a autoafirmação das multicitadas comunidades, a fim de que sua
força esteja, sempre, à frente das suas vulnerabilidades.
Enegrecendo o Direito | 43

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2020.
2
A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE DIGNIDADE
DA PESSOA HUMANA EM FACE DO SER NEGRO:
QUESTÕES DE GÊNERO E RAÇA NO BRASIL

João Pablo Trabuco18

“Um dia aprendera a ler. A leitura veio


aguçar-lhe a observação. E da observação
à descoberta, da descoberta à análise, da
análise à ação. E ele se tornou um sujeito
ativo, muito ativo. Não era um mero
observador, um enamorado das coisas e do
mundo. Era um operário, um construtor da
vida”.
(EVARISTO, 2017).

Analisar as questões de raça e gênero no âmbito legal significa afir-


mar que a escrita científica ocorre a partir de uma objetividade parcial
e corporificada, pautada num saber localizado (HARAWAY, 1995, p. 33)
e que, por isso mesmo, tal literatura se torna menos excludente e mais
inclusiva, de forma política e engajada (CARDOSO, 1995, p. 71). Assim,
a discussão a respeito da dignidade da pessoa humana não pode ser viabi-
lizada da melhor forma sem antes pontuar problemas estruturais da so-
ciedade.

18  João Pablo Trabuco de Oliveira é mestrando em Direitos Fundamentais e Justiça


pela Universidade Federal da Bahia, Membro do Grupo Núcleo de Estudos sobre
Sanção Penal (NESP - Diretório Nacional / CNPq), Membro do Grupo Historicidade
do Estado, Direito e Direitos Humanos: interações sociedade, comunidades tradicionais
e meio ambiente (Diretório Nacional / CNPq), Bolsista FAPESB (Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado da Bahia) 2019/2020, Advogado. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/7413703346253343. E-mail: jptrabuco@gmail.com.
45
46 | João Pablo Trabuco

Compreende-se, então, que a gênese do conhecimento a respeito da


dignidade do indivíduo dentro do campo de estudo das relações raciais19
no Brasil atenta para questões outras que não apenas a terminologia.
Notam-se distintas concepções de dignidade, posteriormente analisadas
neste texto, bem como a aplicação do positivismo20 de forma sistêmica
nas esferas legais, tornando-se, desse modo, uma forma de silenciar um
importante valor protegido pela Constituição Cidadã:21 o direito à vida.
Não obstante, faz-se necessário, ainda, dissertar sobre a questão dos
direitos humanos, contribuindo diretamente para a noção de dignidade e
interferindo na produção de conteúdo acadêmico, jurisprudencial e legal.
Afirma-se, de antemão, que o conceito de raça se estende a um com-
plexo nível de ramificações socioambientais e políticas das quais derivam
sujeitos distintos e particulares. Também a perspectiva teórica do femi-
nismo negro descarta um ponto de vista único, evidenciando distintas
realidades vividas por diferentes mulheres.
É certo ainda refutar o pensamento estabelecido a respeito de raças
biológicas, visto que, historicamente, o Brasil não foi construído sob a
égide de uma sociedade homogênea, no que aponta Kabengele Munanga
(1999, p. 19) que a raça se trata de “categorias cognitivas largamente her-
dadas da história da colonização”,22 sendo, portanto, um conteúdo “mais
ideológico que biológico”.23

19  Observa-se que o termo “relações sociais” não exprime a verdadeira finalidade do
tema, como bem demonstra Ângela Figueiredo (2017, p. 84) ao afirmar que julga ser
mais adequado falar de “’hierarquias raciais’, já que enfatizaríamos a verticalidade das
relações sobre a suposta horizontalidade expressa na definição ‘Estudos das Relações
Raciais’”.
20  Entender o positivismo aqui destacado de acordo com a concepção do Direito
como ordem estabelecida, ou seja, da forma como assentada na sociedade capitalista
contemporânea, através de normas redigidas e impostas pela classe dominante (LYRA
FILHO, 1982, p. 18).
21  Termo utilizado para se referir à Constituição da República Federativa do Brasil
(1988).
22  Sobre o papel da colonização na construção da ideia de raça vigente no Brasil,
tem-se por centro do debate a escravização de pessoas negras e sua coisificação pelos
colonizadores, impondo uma cultura hegemônica de caráter ocidental, violando as
demais realidades e subjugando-as ao padrão europeu. (SANTOS, A. B., 2019, p. 47-48)
23  O autor aponta ainda que há, no Brasil, manipulação do biológico pelo ideológico.
Enegrecendo o Direito | 47

Resta, desse modo, a discussão acerca de como essas raças, que não
respondem ao conceito amplamente refutado da biologia,24 enfrentam-se
dentro de uma sociedade capitalista colonizada e estruturalmente racista.
Este texto, assim, busca: apontar, inicialmente, como o racismo cons-
trói, de forma estrutural, uma sociedade dividida entre pessoas brancas
privilegiadas e pessoas negras historicamente vilipendiadas; ulteriormen-
te, compreender a conexão que se faz entre o estudo dos direitos humanos
e a questão racial; apontar a inércia da doutrina ao ignorar a questão de
gênero; por fim, analisar quais as dimensões da dignidade da pessoa hu-
mana desenvolvidas na doutrina, com enfoque na produção brasileira, e
como a confluência desses sentidos interfere nas teorias raciais que culmi-
naram em leis com teor reparatório e protetivo para pessoas negras.

1 O RACISMO COMO PRESSUPOSTO DE SEGREGAÇÃO SOCIAL

De acordo com o artigo 2º do item 2 da Declaração sobre Raça e os


Preconceitos Raciais, proposta pela Unesco (1978):

O racismo engloba as ideologias racistas, as atitudes fundadas nos pre-


conceitos raciais, os comportamentos discriminatórios, as disposições es-
truturais e as práticas institucionalizadas que provocam a desigualdade
racial, assim como a falsa idéia de que as relações discriminatórias entre
grupos são moral e cientificamente justificáveis; manifesta-se por meio de
disposições legislativas ou regulamentárias e práticas discriminatórias,
assim como por meio de crenças e atos antisociais; cria obstáculos ao de-
senvolvimento de suas vítimas, perverte a quem o põe em prática, divide
as nações em seu próprio seio, constitui um obstáculo para a cooperação
internacional e cria tensões políticas entre os povos; é contrário aos prin-
cípios fundamentais ao direito internacional e, por conseguinte, perturba
gravemente a paz e a segurança internacionais.

Ante a definição de preceitos outros que não biológicos, a concepção


de raça comporta a realidade histórica e política (FIGUEIREDO, 2017,
p. 163), razão pela qual a conceituação aplicada pelos estudos contempo-
râneos aponta para a não aceitação do genoma como fator exclusivo de
identificação da raça.

24  Para grandes autores e autoras críticas (os) do Direito posto, a definição de raça
humana como a única existente é tratada como leviandade, o que subverteria o papel
da discussão racial para desvirtuar e neutralizar o discurso negro. Assim dispõe, por
exemplo, Ana Flauzina (2006, p. 02).
48 | João Pablo Trabuco

Esse conceito restritivo afastaria a possibilidade de estudar, de forma


crítica, as manifestações interpessoais que caracterizam atos de racismo,
visto que deslegitimaria o negro como indivíduo, englobando-o numa es-
fera de pertença social que lhe foi negada durante a história. O direito às
características individuais é assegurado e protegido tanto pela Constitui-
ção Federal (art. 5º, XLII), quanto pela Lei de Racismo (art. 1º).
Para Achille Mbembe (2014, p. 28), falar sobre raça gera não somente
desconforto, mas medos e tormentos, pairando sobre o termo uma di-
mensão fantasmagórica. O autor atribui a esses sentimentos o que chama
de “alterocídio”, isto é, o tratamento do Outro de forma distinta, não se-
melhante a si mesmo, sendo ele um objeto ameaçador do qual se precisa
defender.
O negro, nesse sentido, torna-se o ser-outro, produto da contra-he-
gemonia ocidental, sendo, pois, o Ocidente que construiu a ideia de seres
humanos civis e políticos, codificando rol de costumes e, nitidamente, ne-
gando a existência do diferente.
A identidade do negro é, para Kabengele Munanga (1999, p. 19),
“sempre um processo e nunca um produto acabado”, razão pela qual se faz
necessário o debate acerca das questões raciais e a manutenção da preser-
vação identitária do povo negro, a partir de medidas concretas por parte
do Estado, vinculando-se, especialmente, às comunidades de base.
Ainda que parte do Congresso Nacional reconheça existir um déficit
histórico que influi diretamente no contexto contemporâneo, impondo,
assim, a necessidade de políticas públicas para reparação do dano causado
à população negra (que será descrito mais adiante), por outro lado há um
grupo social branco e elitista que se recusa a enxergar os conflitos de raça
e busca, pormenorizadamente, atacar os poucos avanços conquistados,
como a Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012).
O racismo, portanto, tem se mostrado como fator de manutenção não
da preservação identitária, mas de um processo de descaracterização e
aculturação do negro, o que favorece a permanência de um cenário social
disposto a matar três vezes mais negros que brancos.25

25  Tal afirmativa se encontra disposta no Atlas da Violência de 2018, produzido pelo
Ipea, e que elucida a partir de dados alarmantes a evidente desigualdade racial enraizada
no Brasil. Nesta seara, por exemplo, aponta-se a discrepância entre a porcentagem da
morte de mulheres negras, que é 71% maior que a de mulheres brancas, confirmando,
assim, que a violência neste país tem um grupo étnico-racial como alvo e se alimenta
da inércia das instituições para se firmar. Também os dados gerais de 2006 até 2016
Enegrecendo o Direito | 49

É neste contexto que se apresenta a real discussão acerca da dignidade


da pessoa humana. Não se pode pensar a imagem de um indivíduo e
deslocar dele as suas particularidades, a fim de encaixá-lo numa redoma
de brevidades que compõem a esfera dos direitos humanos. Antes disso,
seria necessário reconstruir toda a exegese do que significa ser “bom”26 e
ser “humano”.27
Esta última denominação é peça central para definir (para além do
objeto de estudo) o papel da dignidade da pessoa humana nos direitos
(igualmente humanos) e, consequentemente, nas hierarquias raciais.

2 OS DIREITOS HUMANOS E A QUESTÃO RACIAL

A gênese da conceituação de “direitos humanos”, como amplamente


propagado nos dias correntes, tem origem muito antes de o termo ser
cunhado pelos franceses ou pela Carta de Independência de Thomas Jef-
ferson. O período axial, compreendido entre séculos VIII a II a.C., abor-
dou, inicialmente, os preceitos de racionalidade e consciência humana,
com forte influência religiosa.
Não obstante, firmou-se através da ideia do imperativo categórico e
imperativo hipotético a distinção entre pessoas e coisas, respectivamente,
o que viria a desencadear o processo de reconhecimento do homem como
um fim em si mesmo. Ante tal apontamento, presume-se que a pessoa tem
dignidade, ao contrário da coisa, que possui preço, de modo que as pessoas
não podem ser coisificadas e vice-versa (COMPARATO, 2013, p. 4).
Nessa seara, os direitos humanos surgem como suporte a esse ideal
de direito natural já construído durante anos e que eclodiu na Declaração

demonstram que a morte de não-negros diminuiu 6,8%, enquanto a morte de pessoas


negras aumentou 23,1%.
26  A obra Genealogia da moral, de Friedrich Nietzche (2009, p. 17) desenha o conceito
histórico do que significa ser bom, não pelo seu valor como utilitário ou em razão da
origem da benesse, mas como uma denominação criada pelos “bons”, isto é, os nobres
declaravam que seus próprios atos eram bons e, por essa lógica, também eles eram
bons. Deste modo, ser “bom” era um atributo negado àqueles cuja natureza não era a
aristocracia: ser “bom” era uma virtude dos poderosos e não dos plebeus.
27  A discussão a respeito deste tema perpassa a construção social do ser filosófico
“homem”, cuja essência é moldada de forma científica a partir do século XIX (ALMEIDA,
2018, p. 23). Para Patricia Hill Collins (2016, p. 105), as autodefinições oriundas das
mulheres negras são uma forma de resistir à desumanização que o sistema de dominação
vigente impõe.
50 | João Pablo Trabuco

do Bom Povo da Virgínia, nos Estados Unidos, em 1776, e na Declaração


dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França, em 1789 (HUNT, 2009).
Nesse sentido, o conteúdo das declarações supracitadas era voltado
para um público específico e muito bem definido: o homem branco, haja
vista que o sistema escravista se manteve, enrijecido pelo positivismo, de
modo que, em que pese tais textos apresentarem grande avanço para a
política emancipatória e progressista, restringiram também a população
que se beneficiou dele.
A negativa do reconhecimento de direitos voltados para a população
negra se estendeu por séculos e resultou numa teoria amplamente deno-
minada como mito da democracia racial. Esta, por sua vez, refletiria um
retrato das relações dinâmicas dispostas na sociedade brasileira e conver-
giria para a unidade de raças, no sentido de empreender maiores esforços
com a finalidade de explicar que “pretos e brancos convivem harmonio-
samente, desfrutando iguais oportunidades de existência, sem nenhuma
interferência, nesse jogo de paridade social, das respectivas origens raciais
ou étnicas” (NASCIMENTO, 2016, p. 47-48).
Florestan Fernandes (2008, p. 58) defende que, após a abolição da
escravatura em 1888, o negro ficou fadado a uma condição marginal, por
não encontrar suporte material ou moral na legislação, nem no poder pú-
blico.
Há que se ressaltar, ainda, as deformidades incontestáveis introdu-
zidas pelo processo de escravização, que os impedia de se adaptar à nova
vida urbana como libertos. Não havendo qualquer previsão legislativa ou
indicação formal de proteção ao direito dos negros, estes se viram obriga-
dos a migrar para as zonas rurais ou viver em condição degradante nas
grandes cidades (FERNANDES, 2008, p. 58).
Esse fato justifica a adoção de medidas políticas reparatórias, a exem-
plo do sistema de cotas, bem como outras intervenções públicas com o fito
de reduzir a desigualdade racial, num âmbito substancial, e não apenas em
matéria de forma.
A partir do conteúdo exposto, pode-se formular duas perguntas: até
que ponto a diferença cultural pode ser motim para a imposição de um
princípio ideal de igualdade? De que forma o pensamento progressista
pode agir na imposição de um conceito universal de igualdade sem ferir
diretamente as diferenças que caracterizam determinada cultura?
Boaventura de Souza Santos (1997, p. 122) entende ser necessária
a implementação de uma concepção multicultural de direitos humanos,
Enegrecendo o Direito | 51

defendendo a escolha de um círculo mais amplo de reciprocidade dentro


da cultura in loco.
Desse modo, para fins de selecionar a aplicabilidade do direito frente
a culturas distintas, prioriza-se aquela que melhor se adequa ao reconhe-
cimento do outro, garantindo que o indivíduo se faça diferente quando a
igualdade o descaracterizar e permitindo que os grupos sociais mirem a
igualdade quando tal diferença, de alguma forma, inferiorizá-lo perante
os demais.
Agrava-se tal pensamento quando o foco passa a ser a origem do co-
nhecimento em termos de ciência aplicada, dado que grande parte do sa-
ber acadêmico ainda é pautada em doutrinas criadas por teóricos homens,
brancos e europeus. Assim, a amplitude do que se entende por direitos
humanos ainda tem sua maior acepção no mundo ocidental, ignorando
por completo a existência e individualidade de culturas distintas, inclusive
dentro de um mesmo grupo social.

3 A INVISIBILIDADE JURÍDICA DO FEMINISMO NEGRO

Para além da negativa frente à existência do sujeito negro, o reconhe-


cimento dos direitos humanos não mencionou a problemática das mulhe-
res. A insurgência do gênero como fator determinante para a estrutura da
sociedade reclama, neste seio, uma posição para elas (SCOT, 1989, p. 3).28
Aqui, a problemática em torno da categoria gênero se estende tam-
bém à linguagem. Dimensionar a existência humana racializada à figu-
ra do “sujeito negro” invisibiliza as experiências de mulheres e pessoas
LGBTTQIA+ negras, de modo que a performática alusão à masculinida-
de branca é mantida.
Grada Kilomba (2019, p. 96) explica que “essa conceituação simples-
mente transforma o conceito clássico ‘homem branco heterossexual’ em
‘homem negro heterossexual’, sendo ‘raça’ a única categoria alterada”.
Prudente, portanto, que se escreva e fale a respeito de pessoas negras, e
não apenas sujeitos (homens, cisgêneros, heterossexuais) negros.
Em que pese as áreas das ciências humanas tenham tato a contribuir
com as questões teóricas a respeito do feminismo, o Direito encontra um
28  Falar sobre gênero não significa necessariamente que o tema se volte às mulheres,
mas as posições teóricas da análise do gênero criadas por historiadores adota essa
postura binária ao recortá-lo em: 1) origem do patriarcado; 2) tradição marxista/críticas
feministas; 3) produção e reprodução da identidade de gênero do sujeito (SCOTT, 1991,
p. 03 e 09).
52 | João Pablo Trabuco

limite quando se depara com a personificação daquilo que não está codi-
ficado.
Partir de um pressuposto no qual as mulheres negras eram tidas
como anomalias (DAVIS, 2016, p. 24), seguindo da vivência da escraviza-
ção, em que seus corpos recebiam a alcunha e o valor de uma propriedade,
certamente demonstrará que o momento atual dever ser analisado com as
devidas reticências.
Negado o título de “humano” ao sujeito negro, restava à mulher ne-
gra os resquícios daquilo de que podia desfrutar o homem. Muitas eram,
e ainda são, as formas de combater essa desumanização.
A começar pelas fugas e abortos das gravidezes frutos de estrupo
dos senhores de engenho (DAVIS, 2016, p. 199), contando hodiernamente
com a criação de uma epistemologia feminista negra que atribui à mulher
de cor a autonomia de se autodefinir, formando de si a imagem que quer,
e não a que lhe foi historicamente imposta por “outros” (COLLINS, 2016,
p. 105).
Mary Castro (1992, p. 57) pontua que “a cultura política das mulheres
deve ser construída no reconhecimento, e não na negação, das hetero-
geneidades”, razão pela qual, dentro do próprio movimento feminista, é
possível encontrar diversas vertentes.
O feminismo no Brasil, nesse sentido, não possui um sentido con-
fluente, isto é, não é hegemônico. Subdivide-se em feminismo da igual-
dade (cuja subordinação feminina é universal e decorre de fatores socio-
culturais) e da diferença (pautada na distinção entre mulheres e homens).
Dentro daquele, encaixam-se os feminismos liberal, socialista e o radical
(CARDOSO, 2012, p. 79-80).29
Assim, o feminismo negro é definido como um pensamento consisten-
te em “ideias produzidas por mulheres negras que elucidam um ponto de
vista de e para mulheres negras”, podendo ser registrado por outras pes-
soas, devendo, contudo, ser “produzido por mulheres negras” (COLLINS,
2016, p. 101). Inserir a palavra “negro” no feminismo é também uma for-
ma de desafiar a branquitude presumida do movimento (COLLINS, 2017,
p. 13), bem como pontuar, de forma sistemática, o protagonismo epis-

29  O feminismo liberal prega uma igualdade jurídica, levando em conta a meritocracia.
O feminismo socialista/marxista põe a opressão como fruto do patriarcado mesclado ao
capitalismo. Já o feminismo radical coloca a subordinação feminina como fruto do papel
de reprodução, sendo as mulheres prisioneiras da sua própria biologia (CARDOSO,
2012).
Enegrecendo o Direito | 53

temológico e socioantropológico negado por séculos quando se trata da


temática racial (ALMEIDA, 2018, p. 25).
Com tantas ramificações e tamanha profundidade do tema, não é pos-
sível conceber a ideia de dignidade da pessoa humana sem antes viabilizar
o debate acerca da mulher negra, histórica e socialmente vilipendiada pelo
sistema.

4 AS DIMENSÕES DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Grande valor aporta nos desígnios concernentes ao significado do


que viria a ser a dignidade da pessoa humana. O primeiro passo para com-
preender esses termos é identificar que a pessoalidade é fator determi-
nante para diferenciar a relevância do tema, isto é, a dignidade humana
pertence a todos e a todas, mas a dignidade da pessoa humana direciona o
direito a um contexto de desenvolvimento social e moral que se apregoa
de forma personalíssima ao indivíduo.
Distinguem-se, ulteriormente, três dimensões-base para esmiuçar o
conceito de dignidade da pessoa humana: ontológica, comunicativa e ne-
gativa.30

4.1 DIMENSÃO ONTOLÓGICA

Como parte da matriz kantiana, o conceito de dignidade da pessoa


humana está centrado na autonomia e no direito de autodeterminação do
ser, reconhecendo a dignidade como um vetor intrínseco a qualquer que
seja o indivíduo. Considera-se, ainda, em abstrato, ou seja, analisa-se a
capacidade potencial de autodeterminar a conduta, não sendo necessário
que se realize no plano fático (SARLET, 2007, p. 368).
Pode-se correlacionar tal entendimento com o princípio da igualdade
material disposto na Constituição Cidadã, que se diferencia das cartas an-
teriores ao distanciar tal princípio das concepções liberais que norteavam
a igualdade apenas em sentido formal.31
30  O texto de Ingo Wolfgang Sarlet (2007) desenvolve tais teorias, mas desconsidera
completamente a questão de raça e de gênero em território brasileiro, razão pela qual o
presente artigo toma por dever (e com a devida audácia) fazer uma releitura dos pontos
levantados sob uma ótica que não se deve ignorar em quesito algum numa sociedade
contemporânea massivamente racista: a pessoa negra.
31  Toma-se como exemplo os textos oitocentistas oriundos das revoluções francesas e
americanas.
54 | João Pablo Trabuco

Para o ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da igualdade adota


uma postura plural que privilegia novas dimensões de direito e cidadania
próprias das sociedades democráticas contemporâneas. Assim, vivencia-se
uma experiência de igualdade material, convergindo para um tratamento
diferenciado em relação ao Outro, sempre que se mostre necessário tal
posicionamento numa situação concreta (SOUSA, 2006, p. 83).
Nesse sentido, Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 367) discursa na con-
tramão do que se pretende atingir em questões de direito quando se trata
de desigualdade racial, visto que o autor, dentro da dimensão ontológica,
afirma que a dignidade “independe das circunstâncias concretas” e que
todos “são iguais em dignidade”, tratando a qualidade como um atributo
intrínseco, incapaz de vincular a diferença de distribuição dessa mesma
qualidade que marginaliza a população negra ante a força estruturante do
racismo institucional movido pelo Estado.
De acordo com Bomílcar, citado por Nascimento (2016, p. 108):

Os órgãos e instituições do poder público no Brasil, o governo, os legis-


ladores, o sistema de justiça criminal, a polícia, os intelectuais, a imprensa
etc., lançam uma guerra contra os negros sem nenhuma piedade ou com-
paixão; uma guerra nunca de direta confrontação, mas sutil e indireta, per-
seguição persistente e sem pressa dessas vítimas do destino, pervertendo
ou negando a eles seus direitos civis, subvertendo seu direito á educação,
negando-lhes assistência pública ou qualquer tipo de apoio oficial para
custeio de educação ou subsistência.

Tal diferenciação, reforça-se, está disposta na marginalização vivida


pela população negra quando distribuída em ambientes da cidade cada
vez mais distantes do centro, por discriminação no emprego, carência de
preparo técnico e aptidão que, por sua vez, são frutos da falta de dinheiro.
Assim, a desigualdade racial no Brasil se mostra como um ciclo vicio-
so que retira brutalmente a dignidade da pessoa negra. Desse modo, não
há que se falar em “dignidade intrínseca” quando, na verdade, a política
estatal dizima qualquer atributo destinado às pessoas de cor que não a do
genocida.
Sendo um valor abstrato, a dignidade da pessoa humana na dimensão
ontológica não somente negligencia a razão negra, mas também ignora o
princípio da igualdade material do modo como é concebido na Constitui-
ção Brasileira de 1988.
Enegrecendo o Direito | 55

4.2 DIMENSÃO COMUNICATIVA

Em que pese a dimensão ontológica prezar pelo caráter abstrato da


dignidade da pessoa humana, a dimensão comunicativa versa a respeito de
um dogma de caráter instrumental. Significa dizer que a dignidade do in-
divíduo passa também pela intersubjetividade criada a partir das relações
sociais e comunitárias de cada um e cada uma, ou seja, a relação do ser
humano com os demais finda por criar uma nova dimensão da dignidade.
Tal dimensão encontra embasamento na ideia de pluralidade que cir-
cunda os grupos sociais e dialoga com o pensamento já firmado de ser, a
dignidade, parte da condição humana e, desse modo, intrínseca (SARLET,
2007, p. 371). Essa definição pode se chocar com dois conceitos-chave pre-
sentes na epistemologia jurídica contemporânea: o utilitarismo e a razão
negra.
A respeito do primeiro termo, cabe lembrar as afirmações de Dworkin
(2001, p. 312) sobre aspectos econômicos, para além da definição habitual
de utilitarismo conhecida por maximizar as questões em sua utilidade
para benefício do bem-estar geral.
Dworkin demonstra que, para justificar ganhos para a grande maio-
ria, causam-se, em contrapartida, perdas irreversíveis para uma minoria,
exatamente como faz pensar a dimensão comunicativa de dignidade ao
imaginar um conceito de moral coletiva a partir da pluralidade.
Para além do conceito de utilitarismo, Achille Mbembe (2014, p. 57-
58) esclarece que a razão negra “consiste num conjunto de vozes, enun-
ciados e discursos, comentários e disparates, cujo objeto é a coisa ou as
pessoas de origem africana e aquilo que afirmamos ser o seu nome e a sua
verdade (os seus atributos e qualidades)”. Assim, a razão negra designa
também uma série de discursos e de práticas cujo fito é “inventar, contar,
repetir e pôr em circulação fórmulas, textos, rituais, com o objetivo de fa-
zer acontecer o Negro enquanto sujeito de raça e exterioridade selvagem”
(MBEMBE, 2014, p. 57-58), o que justificaria a atitude eurocêntrica de
desqualificação moral e de instrumentalização prática da pessoa negra.
Essa seria a consciência ocidental do negro, ou seja, uma identidade
negra forjada por pessoas brancas (classe dominante), retirando nova-
mente a questão da origem do discurso como centro de debate e de afli-
tivas modificações na conjuntura social. Reside aí certo problema ao se
alocar o entendimento da dignidade num patamar de condição humana
56 | João Pablo Trabuco

intrínseca e plural, visto que, quando não pesa como contradição, pesa
como fortalecimento de um discurso colonialista e verticalizado.
Assim, deve-se indagar: como não considerar idílica uma teoria que
entende a dignidade da pessoa humana a partir do reconhecimento de ter-
ceiros (SARLET, 2007, p. 373), quando se vive numa sociedade que não
consegue reconhecer sequer a dívida histórica que tem com as pessoas e,
muito especificamente, com as mulheres negras?

4.3 DIMENSÃO HISTÓRICO-CULTURAL/POSITIVA-NEGATIVA

O tom adotado por Ingo Wolfgang Sarlet (2007) se torna mais bran-
do ao tratar da esfera histórico-cultural da dignidade, compreendendo de
forma simplista que a dimensão ontológica não deve ser observada isola-
damente, mas em conjunto com o aspecto cultural, formado pelo trabalho
de gerações e da humanidade como um todo, complementando-se.
Ignora, portanto, a existência de fatores de sobreposição e invalida-
ções históricas de culturas, a exemplo da violência sociocultural e do trá-
fico humano praticado pelos europeus no Continente Africano (MATTO-
SO, 1990, 31).
Pode-se afirmar, ainda, que “o estado-nação brasileiro moderno é in-
compatível com a presença negra plena” e que “a presença negra é de
fato marcada por uma não presença” (VARGAS, 2016, p. 14), tornando
impossível tomar, como objeto de estudo, a possível cultura de algo que
não existe – ou melhor, que não se quer que exista. A imposição de algo
abstrato como o supracitado “trabalho da humanidade como um todo” não
pode ser adotado nessa discussão, senão num sentido pejorativo.
Ao dialogar com o conceito de multiculturalidade proposto por Boa-
ventura de Souza Santos (1997), a definição da dimensão em comento se
torna dúbia. Inicialmente, o termo cunhado como “multiculturalidade”
não é um conceito novo, sendo ainda alvo de críticas por parte de autores
como Stuart Hall (2003, p. 53-54), que aponta as incongruências de uma
“ideia profundamente questionada” e “longe de ser uma doutrina estabe-
lecida”.32

32  As críticas realizadas pelo autor ao termo “multiculturalismo” podem ser transferidas
para a temática do artigo, ou seja, a abordagem abstrata do conceito se assemelha com o
entendimento de dignidade da pessoa humana, especialmente quando Stuart Hall (2003,
p. 53-54) cita que os conservadores tratam o multiculturalismo como direitos de grupo,
desfazendo a ideia de nação.
Enegrecendo o Direito | 57

O autor desenha outras definições para um conceito macro de digni-


dade que envolveria um sentido positivo e outro negativo. Tal distinção
dialoga com o entendimento de um dos elementos da dignidade humana,
proposto por Comparato (2013, p. 21), ao dizer que “o homem é um ser
essencialmente moral, ou seja, que todo o seu comportamento consciente
e racional é sempre sujeito a um juízo sobre o bem e o mal”, contradizendo
a ideia de dignidade intrínseca, defendida anteriormente por Sarlet.
Não obstante, as dimensões citadas são suficientes para explorar a
verdadeira faceta racista de uma dogmática colonizada, cujas fontes evi-
denciam a reprodução do pensamento europeu e introjetam um papel
classicista do que viria a ser (tão somente) a dignidade do homem branco.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante a necessidade de afirmação dos direitos raciais na dogmática ju-


rídica brasileira, entende-se que as dimensões e conceitos de dignidade da
pessoa humana não podem ser formulados sem considerar a mulher negra
como protagonista de um sistema social coercitivo voltado para dizimá-la
por meio de políticas genocidas de Estado.
Não apenas os alarmantes índices de assassinato de negros e negras
demonstram que a dignidade pode ser mensurada pela cor da pele (são
vinte e três mil mortes de jovens negros por ano), como a ausência de
políticas públicas efetivas contribuem para uma invisibilidade da ques-
tão racial no meio acadêmico, o que leva à construção de um pensamento
branco e elitista a respeito dos mais diversos setores sociojurídicos, que
demandam um olhar crítico para que se promova justiça social.
Pensar a dignidade em território brasileiro sem pensar a questão de
gênero e raça seria, portanto, dispensar a exegese de maior parte dos ci-
dadãos como indivíduos titulares de deveres e direitos.
Desse modo, o papel da dignidade da pessoa humana no ordenamento
jurídico deve ser o de considerar a tensão racial instalada e promovida
pelo Estado, tocando no certame de forma crítica e assertiva, abrangendo
as individualidades e multiculturalidade presentes na sociedade como for-
ma de implementar a aplicação do princípio da igualdade material.
58 | João Pablo Trabuco

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3
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA COMO
AÇÃO AFIRMATIVA

Aline Santana Alves33

“De fato, é uma questão crucial pensar em como uma


nação pode se constituir em um país de profundas
desigualdades, atravessado pelo estigma de 388 anos de
escravidão.” (ALMEIDA, 2019).

O Brasil foi o último país do Ocidente a findar formalmente a escra-


vidão negra. O objetivo era atender, o máximo possível, aos interesses das
elites agrícolas, que dependiam em absoluto desse tipo de mão-de-obra. O
Estado não só teve ingerência em favor dos negócios das elites, como foi
beneficiário direto da situação (MARTINS, 2017, p. 2 e 4).
Depois de tanto se favorecer do regime, nada o Estado fez para re-
parar a condição deixada aos cidadãos negros ou para coibir as décadas
de racismo estrutural que se seguiriam. A primeira repressão estatal an-
tirracismo só veio depois de muito tempo, por meio da Lei n. 1390, de 3
de julho de 1951, cuja eficácia é bastante questionável, visto que nunca
ninguém foi punido, ao longo dos trinta e sete anos de sua vigência.
Pode-se dizer que só em 1988, com o advento da Constituição Cidadã,
o combate jurídico ao racismo passou a tomar forma. E só no início do sé-
culo XXI surgiram outros meios de enfrentamento, com a implementação
das políticas de ação afirmativa. Porém, ainda se faz necessário que os ju-
ristas se disponham a pensar em outros caminhos idôneos para promover

33  Mestranda pelo Programa de Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade


Federal da Bahia. Pós-graduada em Direito da Comunicação Social pelo Instituto Jurídico
da Comunicação da Universidade de Coimbra. Bacharela em Direito pela Universidade
Federal da Bahia. Licenciada em Direito pela Universidade de Coimbra. Bacharela em
Comunicação Social, com habilitação em Publicidade e Propaganda, pela Universidade
Católica do Salvador. E-mail: alinesantana287@gmail.com.
61
62 | Aline Santana Alves

a inclusão social dos descendentes de pessoas escravizadas e de libertos


ao longo do regime – pauta deliberadamente negligenciada desde o final
do século XIX.
Destarte, é oportuno entender que o Direito é amplamente afetado
pela conjuntura social e política do Estado no qual atua. Na verdade, con-
forme pontua Sacha Calmon Narravo Coêlho (2018), Estado e Direito se
entrelaçam. É legítimo, assim, inferir que a tributação brasileira se gizou
dentro de uma sociedade permeada pelo racismo estrutural. Tanto é assim
que, ao arrepio da Constituição Federal, a tributação brasileira é feita de
forma a aumentar as desigualdades raciais e manter privilégios seculares.
Com foco nessas questões centrais, o presente trabalho utiliza o ra-
ciocínio dedutivo no intuito de restar provado que a inconstitucionalidade
tributária é uma problemática imbricada com o racismo estrutural – sen-
do tanto consequência, quanto um dos muitos reforços para a sua perpe-
tuação. A hipótese trazida, tanto acerca da realidade sociorracial, quanto
da tributária do Brasil, mostra-se pertinente por meio da interpretação de
estudos, dados e índices oficiais. Isso porque, por se tratar de uma premis-
sa comprovadamente verdadeira, os resultados tendem a convergir para a
hipótese deduzida.
A explicitação da causa do problema faz com que a solução jurídi-
co-legislativa se desenhe de forma simples, quase intuitiva. Então, con-
siderando os dados históricos, sociais e estatísticos – tanto qualitativos,
quanto quantitativos –, torna-se viável apontar um caminho jurídico para
se vislumbrar possibilidades de ações afirmativas tributárias.
Trata-se de uma pesquisa aplicada, cujo objetivo é trazer conheci-
mentos para embasar práticas voltadas para a solução dos problemas tra-
zidos. Desta forma, é esperado que o resultado do trabalho contribua com
o debate acerca das causas e consequências do racismo estrutural brasi-
leiro, pontuando a imprescindibilidade de ampliar a pesquisa jurídica no
âmbito das relações raciais e do racismo.
Qualquer política tributária que mereça ser levada a sério precisa in-
corporar o debate da desigualdade racial. Além do imperativo de justiça
histórica e social, é também uma forma de constitucionalizar a legislação
tributária. Apesar de soar redundante, visto que nosso sistema jurídico é
necessariamente constitucionalizado – no sentido de ter, por lei maior, a
Constituição –, na prática, há leis que chegam até a contrariar o texto fun-
damental. Parece difícil explicar esse paradoxo jurídico, mas o contexto
Enegrecendo o Direito | 63

histórico-social do Brasil cuida de dar a resposta central para a questão.


Basta olhar com mais atenção.

1 O RACISMO ESTRUTURAL NO BRASIL

“Comportamentos individuais e processos


institucionais são derivados de uma socieda-
de cujo racismo é regra e não exceção.”
(ALMEIDA, 2019).

Racismo estrutural “é a relativa sobreposição estrutural entre negri-


tude e pobreza que reforça crenças (ideológicas) e atitudes (práticas) con-
tra os negros, ainda que elas sejam inconscientes ou apresentadas em um
discurso classista” (CAMPOS, 2017, p. 16). Também se pode dizer que “é
uma decorrência da própria estrutura, ou seja, do modo ‘normal’ com que
se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares,
não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O ra-
cismo é estrutural.” (ALMEIDA, 2019).
Por se tratar de uma realidade socialmente assimilada, o racismo es-
trutural pode ser entendido como força motriz da concentração pacífica
de poder e riqueza nas mãos das elites brancas locais. A ausência do racis-
mo no tecido social seria um indício de que a tentativa de subjugação de
grupos subalternizados não mais existiria. Como há racismo, a conclusão
é que os grilhões foram ressignificados, no intuito de manter os privilé-
gios na esfera jurídica do mesmo grupo de outrora. Mais do que um arca-
bouço ideológico, o racismo se firmou na estrutura do Estado brasileiro
como um meio de conservar a população negra subjugada e explorada, em
benefício das aspirações capitalistas das elites nacionais.
Por se beneficiarem diretamente dessa injusta realidade, muitos agen-
tes públicos, em prol da arrecadação, defenderam até o último instante a
continuidade da escravidão, conforme se verifica na fala do deputado An-
drade Figueira, no parecer nº 1 da Sinopse dos trabalhos da Câmara dos
Deputados (BRASIL, 1888, p. 15-16):

Abra-se o relatório do Ministério da Fazenda, vejam-se os balanços do


Tesouro, coteje-se a renda arrecadada nas alfândegas, visto que os nossos
tributos consistem quase que exclusivamente em direitos de exportação
e direitos de importação. Encontram-se aí lições eloquentes. O que dizem
elas? Dizem que três províncias do Império, as províncias do Rio, Minas e
S. Paulo, concorrem para as rendas públicas com dois terços da sua soma
64 | Aline Santana Alves
total. Pois bem: estas três províncias têm dois terços da escravatura matri-
culada no ano findo, e representam apenas um terço da população total do
Império; de maneira que, com um terço da população nacional, elas con-
correm com dois terços das rendas públicas, porque têm dois terços dos
trabalhadores escravos. Quer-se agora extinguir tudo isso: já se pensou
no resultado que esse acontecimento acarretará para as rendas públicas?

A situação econômico-demográfica trazida pelo parlamentar já se ve-


rificava no censo de 1872, o primeiro completo feito no Brasil, o que indica
que o Estado se beneficiou amplamente do sistema escravagista e teve
influência direta tanto na sua perduração, quanto na forma estouvada com
que a extinção do instituto foi realizada.
Vale salientar, contudo, que a via crucis da escravidão, ainda que re-
levante, não estagna o destino e a sorte dos afrodescendentes. Conforme
explica Silvio Almeida (2019), essa corrente de pensamento adotada aqui:

[...] apesar de não negar os impactos terríveis da escravidão na formação


econômica e social brasileira, dirá que as formas contemporâneas do racis-
mo são produtos do capitalismo avançado e da racionalidade moderna, e
não resquícios de um passado não superado. O racismo não é um resto da
escravidão, até mesmo porque não há oposição entre modernidade/capita-
lismo e escravidão. A escravidão e o racismo são elementos constitutivos
tanto da modernidade, quanto do capitalismo, de tal modo que não há
como desassociar um do outro.

A verdade é que as elites brasileiras nunca abriram mão da forma de


exploração pretérita, sempre se adaptando às regras da macroeconomia
internacional vigente. Para além da coação física, a subjugação moral e os
variados braços do racismo estrutural configuravam a dominação neces-
sária para que se explorasse a mão-de-obra escravizada por tanto tempo.
Restringindo-se a possibilidade da coação física com a abolição, as demais
formas de dominação seguiram, aprimoraram-se e ainda se mostraram
como meios idôneos para manter a posição exploradora do passado. E
o Estado colaborou diretamente para que esse processo de transição em
nada salvaguardasse direitos, liberdades e garantias dos recém-libertos.
Assim explica Florestan Fernandes (2008, p. 29):
A desagregação do regime escravocrata e senhorial se operou, no Brasil,
sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo
de assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema
de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela
manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qual-
Enegrecendo o Direito | 65
quer outra instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por ob-
jeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho.
O liberto se viu convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mes-
mo, tornando-se responsável por sua pessoa e seus dependentes, embora
não dispusesse dos meios materiais e morais para realizar essa proeza nos
quadros de uma economia competitiva.

Essas facetas da situação humana do antigo agente do trabalho escravo


imprimiram à Abolição o caráter de uma espoliação extrema e cruel.

Ainda nesse sentido, é importante pontuar que, mesmo antes da ine-


vitável abolição, havia a noção de que a ruptura da relação escravista tra-
ria consequências sociais graves, sendo que “durante todo o século XIX a
grande questão foi ‘o que fazer com o negro após a ruptura da polaridade
senhor-escravo, presente em todas as dimensões da sociedade’” (ABREU;
PEREIRA, 2011, p. 498). Mas isso não foi suficiente para haver uma ação
estatal que norteasse meios de subsistência dos negros, quando libertos
fossem. Muito pelo contrário: houve um reforço ao racismo e uma exclu-
são deliberada dessa população cidadã vindoura, tanto social quanto poli-
ticamente, conforme aponta o Decreto nº 3.029, de 9 de janeiro de 1881,
que só permitia a candidatura e o voto dos que soubessem ler e escrever.
Essa negação de direitos políticos aos não-alfabetizados ganhou força
constitucional dez anos depois dessa reforma, quando já havia se iniciado
a República e findada a escravidão; isso, em um contexto no qual aos ne-
gros ainda era negado o acesso à educação, sendo praticamente todos eles
analfabetos. Portanto, as bases políticas da recente república não tiveram
espaço para a população que fora escravizada e seus descendentes.
Se, antes, essa negação era direta, sob o véu do instituto da escravi-
dão, agora ela passa sutilmente a integrar o ordenamento jurídico bra-
sileiro. Nesse momento crucial, que serviu para se fazer a base política
da recém-nascida República, foi ceifado o direito dos negros de elegerem
seus representantes e serem elegíveis. As bases políticas, hoje refletidas
no Congresso Nacional, deixaram de fora a voz dos negros.
Consequentemente, de maneira geral, foram praticamente 100 anos
de exclusão da população negra de um exercício político efetivo. Foi um
século de direitos indefesos e interesses praticamente ausentes nas dis-
cussões e pautas legislativas, além de praticamente nenhuma política edu-
cacional de inclusão, ampla o bastante para reverter a dura herança his-
tórica. E por que, afinal, nunca houve referida política inclusiva para os
66 | Aline Santana Alves

ex-escravizados e seus descendentes? Porque o plano nunca foi incluir os


negros: a ideia de muitos legisladores era que a raça negra fosse elimina-
da, conforme consta nos dados reunidos por Edgar Roquette-Pinto e uti-
lizados pelo cientista João Baptista de Lacerda, no congresso de Londres,
em 1911:

No final da apresentação, Lacerda enunciaria sua principal tese acerca do


resultado da miscigenação no Brasil. Segundo ele, o cruzamento racial
tenderia a fazer com que negros e mestiços desaparecessem do território
brasileiro em menos de um século, ou seja, antes mesmo do final do século
XX, possibilitando o branqueamento da população. [...]

Além disso, a crescente entrada de imigrantes europeus no país, somada


aos problemas sociais, e o abandono que os negros foram obrigados a en-
frentar desde a abolição, traziam a perspectiva futura de uma nação intei-
ramente branca. (SOUZA; SANTOS, 2012, p. 754).

Embora Edgar Roquette-Pinto fosse favorável à miscigenação, ao


contrário de muitos teóricos que, à época, condenavam a mestiçagem –
a exemplo de Louis Agassiz, Josiah Not e Samuel George Morton, que
acreditavam que o hibridismo levava à degenerescência –, o fim eugenista
de terminar com a raça negra na população brasileira estava traçado por
ele. Acreditar em algo não tem o poder de fazê-lo ser real, mas as con-
sequências de acreditar o são. Então, a imigração, força motriz para que
as projeções se efetivassem, foi bastante estimulada no período, além dos
problemas sociais e do abandono que foram impostos aos negros.
Mesmo assim, por se tratar de ações obstativas intentadas basicamen-
te pelo Poder Executivo, havia risco de “descaminhos” na efetivação dessa
política de branqueamento da população. Exemplo disso foi o que ocorreu
quando muitos americanos, a princípio aptos para imigração, foram recu-
sados, ao verificarem se tratar de pessoas negras, conforme explicita a fala
de Francisco de Oliveira Vianna, em apoio ao projeto do deputado Fidélis
Reis para impedir a imigração desses negros, em 1923, trazida por Ramos
(1996, p. 65):

Estes, que nos ameaçam vir da América, se acham modelados por uma
civilização superior, falando uma língua própria e tendo um sentimento de
altivez e agressividade, natural no meio em que vivem e que não possuíam
os africanos que para cá vieram, em outros tempos da costa da África.
Esses, pela inferioridade de sua civilização, fundiram-se com os brancos
superiores; quem nos dirá que farão o mesmo os negros americanos? Mas
Enegrecendo o Direito | 67
se se conservarem infusíveis, neste caso teremos mais um perigo político
a nos ensombrar os destinos. Se se fundirem, neste caso teremos aumen-
tado a massa informe de mestiçagem inferior que tanto retarda o nosso
progresso.

Essa fala do sociólogo ilustra o claro enfrentamento racista feito


diante de alguma possibilidade de democracia racial, que poderia vir a
ser imposta com a chegada em massa de afro-americanos ao Brasil, além
da questão racial em si, já que não era perdido de vista o tão ambicionado
branqueamento da população brasileira. Nesse sentido, Telles (2003, p.
251) pontua que:

De forma mais destacada, políticas de imigração continuaram a apoiar a


desigualdade racial por, pelo menos, duas décadas após a Abolição. Em um
esforço para “branquear” e civilizar a população brasileira, empregadores,
em conluio com os governos federal e estaduais, buscaram imigrantes eu-
ropeus para substituir escravos, barrando a imigração de africanos, asiáti-
cos e afro-americanos.

Em oposição a uma efetiva política de acolhimento aos cerca de 1,5


milhão de imigrantes que chegaram nesse período, assim como e função
da ampla disponibilização de terras e meios de subsistência aos imigran-
tes brancos, os negros foram virtualmente excluídos da economia formal,
sendo que aos recém-libertos sequer era dado o mínimo acesso a terras,
sendo “expulsos pelos seus ex-senhores, que passaram a não ser mais res-
ponsáveis pela subsistência que lhes era garantida quando eram escravos”
(TELLES, 2003, p. 251).
Posteriormente, para não haver mais dúvida acerca do tipo de imigra-
ção que convinha ao Brasil, lançou-se mão dos meios legais para efetivar
essa política de europeização da população brasileira. Sem “descaminhos”.
Assim, o art. 2º da Lei de Imigração de 1945, a qual só foi revogada dé-
cadas depois, pela Lei nº 6.815, de 1980, dispõe que “Atender-se-á, na ad-
missão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na com-
posição étnica da população, as características mais convenientes da sua
ascendência europeia” (BRASIL, 1945).
Malgrado todo esforço político e legislativo empregado desde o fim
do século XIX até meados do século seguinte, esse branqueamento da
população brasileira não vingou. Seja em decorrência de nuances gené-
ticas; seja pela resiliência secular dos negros; seja em consequência da
perduração da mão-de-obra escravizada por um período tão longo e em
68 | Aline Santana Alves

escala tão ampla, a qual resultou em outras formas de adaptação alheias à


mestiçagem.
A soma da sequela deixada pelo prolongado regime escravocrata com
a ausência de políticas públicas para a inclusão dessas pessoas outrora
escravizadas e seus descendentes, bem como a presença massiva dos “co-
tistas” da imigração branca, os quais tiveram amplo acesso a facilidades
e recursos públicos durante as décadas que se seguiram à abolição, resul-
tou em uma situação social marcada pela persistente iniquidade racial. O
plano de branqueamento não vingou, mas o racismo estrutural, refletido
mais abertamente no genocídio cotidiano da população negra, ainda vin-
ga. E a tributação brasileira é um claro reflexo disso.

2 AS INCONSTITUCIONALIDADES TRIBUTÁRIAS DO BRASIL

“O racismo se manifesta no campo econômico


de forma objetiva, como quando as políticas
econômicas estabelecem privilégios para o
grupo racial dominante ou prejudicam as mi-
norias. Um exemplo disso é a tributação. [...]

“Ou seja, o Brasil é um típico exemplo de


como o racismo converte-se em tecnologia
de poder e modo de internalizar as contradi-
ções.” (ALMEIDA, 2019).

Por se tratar de uma questão assaz complexa, neste tópico são men-
cionados os pontos principais que corroboram com a conclusão de que
existe uma ação jurídico-legislativa para que os tributos não se confor-
mem aos objetivos fundamentais da República brasileira.
Com fundamento na Constituição Federal, o sistema tributário se
mostra como um meio idôneo de reduzir a concentração de rendimentos
existentes no Brasil, sendo esse o efeito direto das medidas políticas in-
clusivas. Vale pontuar ainda os efeitos indiretos, tais como a diminuição
da criminalidade, a melhoria no bem-estar social e o aumento da produti-
vidade do país, mas acerca dessas decorrências indiretas não haverá, aqui,
maiores aprofundamentos.
O ponto central é que a incidência tributária sem distorções incons-
titucionais perfaria um caminho apto a resolver um gritante problema
social, que já passou do tempo de encontrar solução, mas que só se agrava,
Enegrecendo o Direito | 69

por força de uma conjuntura estatal de poder que trabalha em prol da per-
petuação dos privilégios de uma parcela ínfima da sociedade.
Na perspectiva jurídica, observa-se uma omissão advinda de um Di-
reito Tributário majoritariamente branco e que se resguarda sob a égi-
de de um fazer acadêmico eminentemente técnico, a serviço das finanças
públicas e da legalidade tributária, quase não havendo, por consequência,
pressão doutrinária no sentido de fazer coro e impulsionar as autoridades
tributárias a tomarem medidas em prol das ações afirmativas redistribu-
tivas.
A progressividade fiscal, ferramenta fundamental na prossecução dos
referidos objetivos, é uma técnica tributária que consegue fazer com que
os maiores rendimentos e patrimônios contribuam mais para o erário, ao
estabelecer maiores taxas sobre montantes que refletem uma elevada dis-
ponibilidade financeira. O seu oposto é a incidência regressiva, na qual
todos os contribuintes, independentemente de suas respectivas capacida-
des contributivas, pagam a mesma taxa. É o que ocorre com os impostos
indiretos.
Se há uma taxa de 30% de imposto indireto sobre um produto, todos
os contribuintes, dos mais pobres aos mais abastados, em regra, pagarão
a mesma taxa de 30% ao consumi-lo. Essa forma de tributar é um me-
canismo de aumento das desigualdades e da concentração de riquezas,
além de ser uma afronta direta ao princípio da capacidade contributiva.
Não por acaso, o maior montante de impostos arrecadados no Brasil vem
da tributação indireta, conforme expõe o economista Fabrício Oliveira
(FAGNANI, 2018, p. 88):

[...] outro desafio fundamental da reforma é alterar a composição da es-


trutura do sistema entre impostos diretos e indiretos, visando a tornar
mais justa a distribuição de seu ônus entre os membros da sociedade e a
contribuir para reduzir as desigualdades de renda, o que é essencial para
o crescimento econômico. Enquanto nos países desenvolvidos, o peso da
tributação direta representa, de modo geral, cerca de 70% da tributação,
mesmo com as reformas realizadas à luz das novas propostas do pensa-
mento ortodoxo, no Brasil essa relação se mostra diametralmente oposta,
com impostos indiretos, incluindo os incidentes sobre a folha de salário,
ultrapassando 70% da carga tributária.

Como quase toda a arrecadação indireta vem do consumo, que em


geral não mensura a real capacidade financeira dos contribuintes, o peso
dessa carga tributária necessariamente prejudica as pessoas mais pobres.
70 | Aline Santana Alves

Essa realidade é facilmente verificável, conforme pontua Silvio Almeida


(2019):

[...] a carga tributária torna-se um fator de empobrecimento da população


negra, especialmente das mulheres, visto que estas são as que recebem os
menores salários. Segundo o relatório da pesquisa As implicações do sistema
tributário na desigualdade de renda, sendo a carga tributária brasileira re-
gressiva, [...]pois mais da metade dela incide sobre o consumo, isto é, está
embutida nos preços dos bens e serviços, a consequência é que as pessoas
com menor renda (por exemplo, as mulheres negras) pagam proporcional-
mente mais tributos do que aquelas com renda mais elevada.

Assim, a renda dos contribuintes mais pobres – negras e negros, em


sua maioria – é transferida para o erário em uma proporção muito maior
do que a dos mais ricos. Ou seja, os mais pobres contribuem majoritaria-
mente com a receita do Estado, o qual é o grande responsável por garan-
tir essa conjuntura jurídico-política que favorece sobremodo os interesses
das elites. Essa lógica de Robin Hood às avessas só terá termo quando
a tributação sobre patrimônio, rendas e proventos for verdadeiramente
progressiva e os impostos indiretos não tenham tanto peso sobre a arre-
cadação, nos termos da Constituição:

O alcance da progressividade efetiva depende, não apenas da isonomia de


tratamento entre as rendas, mas também de uma nova configuração da
tabela de alíquotas progressivas, cujos contornos devem ser definidos ten-
do em conta o contexto de profunda desigualdade de renda que coloca o
Brasil entre os países mais desiguais do planeta. Busca-se, portanto, cons-
truir um sistema que promova a redução efetiva da desigualdade social,
onerando mais as rendas das parcelas mais ricas da população e aliviando
a carga tributária sobre os mais pobres. [...]

O combate às desigualdades econômicas e sociais também requer sistema


tributário efetivamente progressivo, condição comprovada pelas experiên-
cias históricas dos países que lograram estabelecer um Estado de Bem-Es-
tar social. (FAGNANI, 2018, p. 276 e 278).

Outro ponto altamente controvertido na tributação brasileira está no


fato de lucros e dividendos serem isentos de tributação há quase 25 anos,
por força da Lei nº 9.249/95, o que assinala mais uma forma de “negligên-
cia” com o princípio da capacidade contributiva, já que essa cobrança faria
com que as pessoas com mais rendas – que são, em regra, os beneficiários
de lucros e dividendos – contribuíssem mais com as receitas públicas.
Enegrecendo o Direito | 71

Essa decisão político-legislativa, eivada de inconstitucionalidades, só


reforça a conformação da incidência tributária brasileira à conveniência
dos mais ricos. A justificativa, ao implementar essa isenção, era o aumento
dos investimentos – sendo que, curiosamente, não se verificou se, de fato,
isso ocorreu ao longo dessas mais de duas décadas. Na prática, o que segu-
ramente ocorreu foi o beneficiamento fiscal das pessoas mais abastadas, já
que praticamente todo o rendimento desse grupo é oriundo de aplicações
financeiras e lucros de suas empresas, a exemplo de Joesley Batista, dono
da empresa JBS, cuja “quebra do sigilo fiscal mostrou que ele recebeu, em
2016, R$ 105 milhões, mas pagou apenas R$ 340 mil de IR, ou seja, 0,3%,
tudo porque 95% da renda dele veio de lucros e dividendos distribuídos”
(JORNAL DO COMÉRCIO, 2017).
Essa incoerente opção tributária de isentar lucros e dividendos – que
não ocorre em praticamente nenhum outro país –, além de aumentar a
concentração de renda, termina por impactar negativamente na arreca-
dação e produzir ainda mais distorções e é, por tabela, uma sabotagem ao
erário. Ou seja, o interesse público é atassalhado por medidas políticas em
defesa dos interesses privados dos segmentos mais ricos da população. A
consequência disso é que o combate às desigualdades nunca se efetiva e a
eficiência tributária perde espaço para as demandas usurárias dos deten-
tores do capital. Nesse sentido, Piketty (2014, p. 363) pontua:

Até a Primeira Guerra Mundial, não existia na maior parte dos países ne-
nhum imposto sobre as rendas do capital ou sobre os lucros das empresas;
nos raros casos em que eles existiam, seus coeficientes eram baixíssimos.
Tratava-se, assim, de condições ideais para o acúmulo e a transmissão de
fortunas consideráveis, e para se viver da renda produzida por essas ri-
quezas. Ao longo do século XX, surgiram inúmeras formas de tributação
de dividendos, juros, lucros e aluguéis, o que mudou radicalmente a dis-
tribuição.

Por fim, dentre as principais distorções tributárias, que acabam por


solapar a pretensa redução das desigualdades, seguramente está a opção
legislativa por não implementar a cobrança do Imposto sobre Grandes
Fortunas – IGF. Ora, como reduzir as desigualdades sem tributar as gran-
des fortunas de um país tão desigual, em que 1% dos mais ricos ganharam
trinta e seis vezes o que recebeu 50% da população em 2017?34 E há algo

34  Esses números são parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)
realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgada no início
de 2018.
72 | Aline Santana Alves

que demonstre maior capacidade econômica do contribuinte do que a titu-


laridade de uma grande fortuna?
Nesse aspecto, o texto constitucional é explícito, no §1º do art. 145,
ao determinar que “sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal
e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte”. Por-
tanto, inclusos patrimônio e renda, a Constituição é clara acerca da pro-
gressividade tributária em face da capacidade contributiva dos cidadãos. E
havemos de convir que não existe impossibilidade alguma de identificar as
grandes fortunas desse país: o abismo da desigualdade sociorracial deixa
bem claro exatamente onde elas estão.
Partindo-se da razoável perspectiva de que a cobrança de determina-
dos impostos é autorizada pela Constituição e reforçada pelos princípios
gerais do Sistema Tributário Nacional nela trazidos, a renúncia tributária,
por meio da não cobrança, implica indiretamente em entregar dinheiro
nas mãos desses particulares.
Mesmo havendo controvérsias acerca da cobrança desse imposto, nos
países em que havia a arrecadação, a exemplo da França, o tributo repre-
sentava 0,25% do Produto Interno Bruto (PIB) local e 2% da arrecadação
federal. Segundo Carvalho Júnior (apud PEREIRA, 2018), pesquisador do
IPEA, há cálculos mostrando que no Brasil a aplicação ajudaria a arreca-
dar de 0,25% a 0,5% do PIB.
Assumindo que a desigualdade social no Brasil é radical o suficiente
para justificar a incidência do IGF, é fundamental considerar como se efe-
tivaria a sua incidência. Contrário ao argumento de que existiriam dificul-
dades técnicas para essa tributação, Machado (2017, p. 355) assevera que:

O argumento é inconsistente. Os bens que integram as grandes fortunas


são os mesmos cuja transmissão de propriedade é tributada. Se a título
oneroso, pelo Município. Se a título gratuito, ou em virtude de sucessão
por causa da morte, pelo Estado. E ninguém sustentou a inviabilidade do
imposto de transmissão causa mortis e doação, de que trata o art. 155, I,
nem do imposto de transmissão inter vivos, de que trata o art. 156, II, da
CF.

Não sendo um entrave de viabilidade técnica ou arrecadatório, então,


o que viria a explicar a disparatada renúncia, em um território que só não
é mais desigual por falta de espaço? Prossegue Machado (2017, p. 355):
Enegrecendo o Direito | 73
Não acreditamos na instituição de um imposto sobre grandes fortunas,
por uma razão muito simples: quem manda no mundo, seja pelo poder,
seja pela influência sobre os que o exercem, é sempre titular de grande
fortuna, e certamente não vai admitir essa tributação. Se um dia ocorrer
a instituição de um imposto com esse nome, não será devido pelos ricos,
mas pela classe média, incrementando a enorme carga tributária por essa
já suportada.

No Brasil, essa constatação é ainda mais segura, tendo em vista o


contexto histórico-social explanado aqui. Ou seja, no polo diametralmen-
te oposto ao desses detentores de grandes fortunas não tributadas es-
tão as mesmas pessoas que, desde a formação do Estado brasileiro, foram
marcadas pelo estigma da exclusão social. E são essas pessoas que, como
sempre, pagam muito caro por essa política superprotetora das elites.
Toda falta de incidência tributária sobre os mais ricos configura uma
corrupção real, conforme pontua Jessé Souza (2017, p. 163), por ser resul-
tado direto de uma gestão pública entranhada pelos interesses particula-
res dos detentores dos meios de produção, o que provoca uma reação em
cadeia que resvala em um problema de receita que é “solucionado” com
mais corrupção. Só que, dessa vez, com o Estado enquanto devedor dessas
mesmas pessoas que, por suposta liberalidade política, ficaram isentas de
figurar como devedores fiscais.
A autorização constitucional para a incidência do IGF também en-
contra guarida na legislação pátria, mais especificamente no que tange à
responsabilidade fiscal, estabelecida pela Lei Complementar nº 101, de 4
de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF). O diploma legal,
no art. 11, determina que “Constituem requisitos essenciais da responsa-
bilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de
todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação”.
Quanto à conformidade com a ordem mundial, considerando que em
quase nenhum outro país esse imposto é aplicado, vale salientar que em
nenhum outro país o instituto da escravidão perdurou por tanto tempo;
em quase nenhum outro país a desigualdade social é tão profunda; em
quase nenhum outro país é tão difícil ascender socialmente (OECD, 2018).
Considerando essas particularidades do Brasil, é muito defensável a ne-
cessidade da instituição desse tributo. Tanto assim, que o legislador ori-
ginário teve o cuidado de autorizá-lo, em consonância com os princípios e
os objetivos precípuos da Constituição Cidadã.
74 | Aline Santana Alves

A obrigatoriedade fica ainda mais patente quando se constata que to-


dos os outros impostos que competem à União, por força do art. 153, fo-
ram implementados. Havia a pretensão, por parte do constituinte, de que
existisse também esse imposto, a ser criado por lei complementar, fosse
para aumentar a arrecadação de receitas pela União, fosse para reduzir a
concentração de riquezas e combater o racismo estrutural. Porém, o que
se verifica é que legislação tributária brasileira vai na contramão da busca
pela democracia racial.

3 A MANUTENÇÃO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL

“Para Foucault a emergência do biopoder


inseriu o racismo como mecanismo funda-
mental do poder do Estado, de tal modo que
‘quase não haja funcionamento moderno do
Estado que, em certo momento, em certo
limite e em certas condições, não passe pelo
racismo’”. (ALMEIDA, 2019).

A consolidação do racismo estrutural na população brasileira não é


obra do acaso, visto que “os párias eram escravos e negros e, deixando de
ser escravos, permaneciam negros e continuavam párias” (BERTULIO,
1989, p. 1). Essa dimensão do racismo, perpetuada ao longo do tempo, é
bastante nociva, porque constitui um forte ciclo de causa e efeito, confor-
me explana Jessé de Souza (2017, p. 72):

É em nome dela também que se passa a operar um novo código social


nascente, uma nova “hierarquia social” que vai estipular os critérios que
permitem e legitimam que alguns sejam vistos como superiores e dignos
de privilégios, e outros sejam vistos como inferiores e merecedores de sua
posição marginal e humilhante. A distinção entre os estratos europeizados
em relação aos estratos de influência africana e ameríndia, com toda sua
lista de distinções derivadas tipo doutores/analfabetos, homens de boas
maneiras/joões-ninguém, competentes/incompetentes etc., vai ser a base
dessa nova hierarquia das cidades que se criam e se desenvolvem.

A imagem prévia do negro seria o seu destino, por força dos efeitos
do racismo sobre a existência dessas pessoas; e o destino, forjado pelo
racismo, sustentava a imagem atribuída. E sendo, a contrapartida da ma-
nutenção desse ciclo, a perpetuação dos privilégios dos brancos, não havia,
por parte do Estado, a menor pretensão de romper o ciclo. Na verdade,
Enegrecendo o Direito | 75

por conta do persistente plano de branqueamento da população brasileira,


a atuação do Estado, por meio de políticas públicas e controle de acesso a
direitos e garantias, sempre foi justamente no sentido oposto ao da inclu-
são dos cidadãos negros. Mas não se trata unicamente de uma fatalidade
histórica, conforme pontuam Schwarcz e Gomes (2018, p. 40 e 41):

Depois de 130 anos da extinção da escravidão, existem, porém, permanên-


cias fortes e teimosas na sociedade brasileira. O racismo continua estru-
tural no país, e continua inscrito no presente, de forma que não é possível
apenas culpar a história ou o passado. A violência e a desigualdade têm na
raça um fator a mais, com as pesquisas mais contemporâneas mostrando
como negros morrem antes, estudam menos, têm menos acesso ao mer-
cado de trabalho, contam com menos anos de educação, sofrem com mais
atos de sexismo, possuem acesso mais restrito a sistemas de moradia e
acompanhamento médico. Por fim, o trabalho escravo, mesmo que infor-
mal, está longe de se encontrar extinto no país.

O Estado brasileiro, de forma direta ou indireta, criou tamanha desi-


gualdade racial, tanto por meio de políticas públicas racistas quanto por
nunca ter posto em pauta, durante mais de um século, os interesses dos
cidadãos negros. Nesse sentido, afirma Bertulio (1989, p. 102 e 103):

O racismo institucional foi definido a partir de ações oficiais que, de al-


guma forma excluíam ou prejudicavam indivíduos ou grupos racialmente
distintos: “a manipulação consciente de instituições a fim de atingir objeti-
vos racistas.”. Para tal, as instituições racistas são extensão do pensamento
racista individual. [...]

É dessa forma que o racismo individual se introduz no sistema de ma-


cro-relações sociais, atendendo os objetivos de discriminação ou segrega-
ção raciais. O sistema de empregos, educacional, econômico e jurídico, são
exemplos marcantes dessa ação racista institucionalizada.

A desigualdade racial persistente também é, por conseguinte, um


problema jurídico, já que, nessa dimensão institucional, fazem-se presen-
tes as “ideologias racistas na formação, apreensão e utilização do Direito”
(BERTULIO, 1989, p. 8). E é indispensável atentar para essa condição, a
fim de que o Direito deixe de ser uma ferramenta de reprodução de desi-
gualdades, tornando-se, enfim, meio de resolvê-las. Portanto, o enfoque
central do Direito deve, sim, ser racial (ALMEIDA, 2019):
76 | Aline Santana Alves
Logo, o racismo não deve ser tratado como uma questão lateral, que pode
ser dissolvida na concepção de classes, até porque uma noção de classe que
desconsidera o modo com que esta se expressa enquanto relação social
objetiva torna o conceito uma abstração vazia de conteúdo histórico. São
indivíduos concretos que compõem as classes à medida que se constituem
concomitantemente como classe e como minoria nas condições estruturais
do capitalismo. Assim, classe e raça são elementos socialmente sobrede-
terminados.

A exploração desmedida das negras e negros não é uma mera es-


colha pactuada entre as elites e as forças estatais. Trata-se, na verdade,
de um método de produção nacional advindo do período colonial e hoje
reforçado pelo mister imperialista do capitalismo. Nunca houve a ruptura
necessária para que o Estado e a sociedade se reestruturassem no sentido
de findar esse esquema de exploração de tantos em benefício da pequena
elite branca de sempre. É uma sequência do mesmo regime cruel inicia-
do no século XVI. As instituições consentiram com esse prosseguimento,
valendo-se do racismo estrutural e de suas sofisticadas ferramentas para
efetivá-lo, efetivando-o porque racistas estruturalmente.
O Brasil é o país do futuro. Ontem, hoje e, seguindo essa marcha de
incessantes desigualdades raciais, amanhã também. O tão enaltecido cres-
cimento econômico nunca efetivou a promessa de formar um país iguali-
tário. Mesmo quando houve um aumento econômico ou no rendimento
médio da população, a desigualdade racial sempre se fez presente ao longo
de todo o século passado e do atual.
Por exemplo, o rendimento médio total de pessoas ocupadas, em
2016, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
foi de R$ 2.043 (dois mil e quarenta e três reais). Quando visto o valor
médio recebido em relação a cada raça, o rendimento dos pardos – R$
1.480 (mil, quatrocentos e oitenta reais) – e dos pretos – R$ 1.461(mil,
quatrocentos e sessenta e um reais) – correspondiam, respectivamente, a
55,6% e 54,9% do rendimento dos brancos (IBGE, 2016). Outro ponto tão
relevante quanto a desigualdade racial é a baixíssima mobilidade social
brasileira, verificada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvi-
mento Econômico (OCDE, 2018), que culmina na perpetuação das desi-
gualdades raciais ao longo de gerações.
As ações institucionais ou políticas públicas que ignoram os dados ou
negam a existência de uma elevada ou crescente desigualdade racial, inde-
pendentemente do país, são igualmente racistas. Portanto, trata-se de uma
Enegrecendo o Direito | 77

omissão racista, que ignora deliberadamente a necessidade da democracia


racial, conforme explana Bertulio (1989, p. 8, 9 e 11):

Dado que este fenômeno não é exclusivo do Brasil, o estudo do Direito nas
sociedades ocidentais capitalistas enseja a constatação de que o racismo e
todas as agressões e violentações aos direitos dos povos coexistem com os
mais puros e rígidos critérios de direito justo, igualdade jurídica, princí-
pios de humanidade, legalidade, legitimidade, etc.[...]

A apreensão dogmática do Direito, por outro lado, impede o questiona-


mento das situações que culminam com fatos tipificados pelo Direito. E,
estas ações legitimadas e cobertas com a legalidade, no interesse do Di-
reito e da Justiça, subrepticiamente formam e intensificam a apreensão do
estereótipo racista negro como elemento diferenciado e inadequado para
o convívio social. [...]

A realidade sócio-econômica brasileira, e alguns registros dela nos Censos


Estatísticos feitos e orientados pelo menos Estado onde a marginalização
e discriminação da população negra é constatado, estão a nos provar a
orientação racista de todo o sistema estatal brasileiro.

Assim, “O Estado, grande reprodutor e interessado na reprodução


da ideologia das classes dominantes do Brasil, acompanha e intensifica a
invisibilidade do problema racial brasileiro” (BERTULIO, 1989, p. 17).
E cabe a esse mesmo Estado enxergar e resolver o grave problema racial
posto, implicando necessariamente em perda de privilégios para os que
sempre os tiveram, em prol da implementação de direitos básicos para os
subalternizados de sempre.
O fim dessa reprodução de injustiças só se efetivará quando não mais
estivermos diante de um país tão racista. Portanto, o compromisso do
Estado, a fim de solucionar essa problemática, deve se situar em duas fren-
tes: o combate ao racismo estrutural e o enfrentamento das desigualdades
sociorraciais, por meio de políticas de ação afirmativa e de redistribuição
de riquezas em diversos âmbitos.
Por restar tardio, o enfrentamento desses problemas por meio da tri-
butação precisa ser bastante amplo para surtir um efeito transformador.
A política fiscal brasileira deve priorizar o combate ao racismo por meio
da redistribuição de riquezas e rendimentos, por mais que isso signifique
alterar uma estrutura secular de poder. Na verdade, a saúde social do país
passa justamente por findar essa estrutura e o ciclo jurídico-legislativo
que a sustenta.
78 | Aline Santana Alves

4 O COMPROMISSO CONSTITUCIONAL NA TRIBUTAÇÃO

“Por isso, diversidade não basta, é preciso


igualdade. Não existe nem nunca existirá
respeito às diferenças em um mundo em que
pessoas morrem de fome ou são assassinadas
pela cor da pele.” (ALMEIDA, 2019).

Como há muitas normas tributárias na nossa Constituição Federal,


não é exagero algum pontuar que ela é o texto fundante da ordem jurídi-
co-tributária nacional. Ainda que não houvesse essa constitucionalização
tributária, todo o ordenamento deve ser estabelecido necessariamente em
obediência à Carta Magna. O legislador originário elencou, no art. 3º, os
pontos principais de uma política social inclusiva, voltada para o bem-es-
tar de todos os seus cidadãos. Sob a égide do espírito constitucional, ficou
firmado um pacto social em prol do combate à pobreza e às desigualdades
regionais e sociais (FAGNANI, 2018, p. 276):

A isonomia de tratamento entre as rendas auferidas pelas pessoas físicas


é condição essencial para a equidade do sistema tributário brasileiro. Tri-
butar os lucros e os dividendos e outras rendas do capital da mesma forma
que se tributam as rendas do trabalho significa o primeiro passo para a
construção de uma tributação mais justa e, consequentemente, uma socie-
dade mais justa e igualitária, cumprindo com os objetivos fundamentais da
República, previstos no Artigo 3º da CF/88.

Essa redução das desigualdades mostra-se como ponto tão proemi-


nente na Constituição que se repete no título VII (“Da Ordem Econômica
e Financeira”, art. 170, VII), como um dos princípios gerais da atividade
econômica. Ou seja, além de surgir como um princípio fundamental da
República Federativa do Brasil, subentendendo-se ser um objetivo sob to-
dos os aspectos possíveis da atuação pública, o texto constitucional vem
reforçar, no âmbito da atividade econômica, a prossecução da redução das
desigualdades regionais e sociais.
Partindo desse pressuposto, seria de se esperar que as normas tri-
butárias fossem fiéis ao texto constituinte e efetivassem suas diretrizes.
Só que, apesar do espírito constitucional voltado para a efetivação da so-
lidariedade e do compromisso com a redução das desigualdades, não tem
sido esse o desejo do Poder Legislativo, de 1988 para cá. Na contramão da
pretensão do legislador originário, constata-se que as normas tributárias
Enegrecendo o Direito | 79

possuem fins e efeitos que divergem dos preconizados constitucionalmen-


te.
Também era de se esperar que, com o impulso constituinte, o com-
bate a esse sistema cíclico de desigualdades se efetivasse. Entretanto, no-
vamente não houve a necessária ruptura e, apesar da nova Constituição
Federal, as velhas instituições se mantiveram e, com elas, o mesmo racis-
mo estrutural. Por isso que só no século seguinte à promulgação do texto
constituinte, mediante muitos embates, foi possível a adoção de políticas
de ação afirmativa para a população negra – as quais, comparadas com
o esforço empreendido pelo poder público no financiamento da imigra-
ção branca do final do século XIX, foram bastante ínfimas. Ainda assim,
graças ao impulso do início da implementação dessas políticas, foi enfim
promulgado o Estatuto da Igualdade Racial – Lei n. 12.288, de 2010.
O enfrentamento e a efetivação de direitos para a população negra
felizmente têm acontecido em diversos campos. Essas duas últimas déca-
das foram cruciais para que a consolidação de soluções das problemáticas
de raízes seculares tomasse forma. No entanto, é preciso ter um olhar
mais crítico sobre o enfrentamento do racismo no Brasil, inclusive sobre
a postura do Poder Judiciário brasileiro que, conforme resta cristalino,
reproduz, no plano material, assim como as outras instituições de poder
permeadas pelo racismo estrutural, as formas de operacionalizar a con-
centração geracional de patrimônio (FAGNANI, 2018, p. 715):

Questões de direito tributário relativas à gestão tributária da União e dos


entes federados se decidem na suprema corte – o STF –, tendo esse cole-
giado até pouco tempo impedido a tributação progressiva sobre o patrimô-
nio (recorrentes e na transferência) com base na capacidade de pagamento.
Sustentava-se que a posse de bens imóveis não se relaciona à capacidade
de pagamento, uma vez que a donatária do bem pode contar com fluxo
de rendimentos aquém do custo da recepção do bem doado ou herdado.
A discussão se estendeu por quase 30 anos e a ‘concessão’ do STF na RE
562.045 – acima citada – foi dividida, e os votos mostram claramente uma
visão patrimonialista, pois foram fundamentados com base em casos esti-
lizados, não se levando em conta os dados da concentração patrimonial e
o peso que o instrumento da herança tem na preservação da desigualdade.

Se a razão precípua do racismo sempre foi a manutenção de privilé-


gios e sua consequente concentração de poder, renda e riquezas, e a estru-
tura financeira favorável à concentração ainda se perpetua – visto que não
houve uma reforma tributária, agrária ou uma ruptura estrutural nesse
80 | Aline Santana Alves

sentido –, algo está faltando. Ou seja, o Estado racista cedeu legislativa-


mente no que tange às políticas de ação afirmativa, mas, ao longo desse
período, não promoveu políticas fiscais transformadoras de redistribuição
de renda ou riquezas. Portanto, a resposta à Constituição precisa vir nesse
âmbito também. Caso contrário, a “conta não fecha”.

5 A TRIBUTAÇÃO COMO AÇÃO AFIRMATIVA

“Se o direito é produzido pelas instituições,


as quais são resultantes das lutas pelo poder
na sociedade, as leis são uma extensão do
poder político do grupo que detém o poder
institucional. O direito, nesse caso, é meio e
não fim; o direito é uma tecnologia de con-
trole social utilizada para a consecução de
objetivos políticos e para a correção do fun-
cionamento institucional, como o combate ao
racismo por meio de ações afirmativas, por
exemplo.” (ALMEIDA, 2019).

Não há como a incidência de alguma tributação em nada alterar a di-


nâmica social ou econômica do meio em que atua – independentemente de
a instituição do tributo ter, como objetivo principal, a obtenção de receita.
Ao ser implementado um imposto, para além da finalidade arrecadatória,
deve-se ter em vista os impactos sociais e econômicos advindos de sua
cobrança. Ou seja, os efeitos da norma tributária, que sempre existem,
não relevam para definir sua função, mas o fim da norma tem relevância.
O Estatuto da Igualdade Racial é bastante preciso quando afirma que
as ações afirmativas são “programas e medidas especiais adotados pelo
Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais
e para a promoção da igualdade de oportunidades”. A democracia racial,
ainda que bastante tardia, precisa ser efetivada. Portanto, não basta contar
somente com programas sociais assistencialistas, como o bolsa-família,
para estancar a sangria sociorracial deixada por tantos séculos de escra-
vização cumulados com mais de um século de descaso estatal com os cida-
dãos negros e a perpetuação de racismo estrutural.
As mudanças sociais têm um papel determinante no combate à desi-
gualdade racial no Brasil. Essa convergência quase que sobreposta entre
desigualdade social e racial se efetivou, conforme já explanado, por conta
Enegrecendo o Direito | 81

do longo período de escravidão, da perpetuação e consolidação do racismo


e pela conformação estatal aos anseios das classes dominantes.
Dentro desse contexto, é preciso considerar que o Direito Tributá-
rio, enquanto agente ativo desse processo de sucessivas injustiças estatais,
pode vir a atuar como um meio idôneo de promover a democracia racial.
Uma política fiscal que prioriza a tributação indireta em detrimento da
direta, por exemplo, neutraliza as políticas assistencialistas.
Quando o Estado provê um auxílio para pessoas que auferem pouca
ou nenhuma renda, todo esse dinheiro é gasto com consumo – o que faz
com que boa parte dele volte ao erário na forma de impostos indiretos. Se
uma significativa parte desse valor vai para impostos sobre consumo, en-
tão esse auxílio não está atingindo sua finalidade redistributiva. Portanto,
ao se pensar em políticas assistencialistas ou de reparação social, neces-
sariamente deve-se pensar conjuntamente na tributação voltada para a
redução das desigualdades, sob pena de não haver redistribuição alguma.
Entretanto, a desigualdade racial no Brasil não é causada somente
pela má distribuição de renda e riquezas. Não é somente com o combate às
desigualdades sociais que se efetivará a democracia racial. É um caminho
indireto bastante seguro, mas não deve ser pensado isoladamente. Como o
racismo tem um papel crucial na forma como as relações sociais e econô-
micas se estabelecem no Brasil, é preciso um enfrentamento direto desse
problema também; é por isso que existem as políticas de ação afirmativa
já conhecidas. Quanto ao mister dessa ação conjunta, Telles (2003, p. 274)
assevera que:

O objetivo da ação afirmativa é reduzir a desigualdade racial e aliviar os


seus sintomas. No Brasil, isso requer que sejam atacadas as três maiores
barreiras à verdadeira democracia racial: a hiperdesigualdade, as “barrei-
ras invisíveis” e a cultura racista. Se o governo brasileiro deseja fazer uma
significativa diferença na vida da maioria dos pretos e pardos, necessita de-
senvolver um conjunto de políticas que combinem políticas sociais univer-
salistas de desenvolvimento para reduzir a hiperdesigualdade existente no
país com ação afirmativa de natureza racial, que possa anular as barreiras
invisíveis e minorar a cultura racista.

Conseguidas após décadas de lutas dos movimentos negros, essas


políticas de ação afirmativa de natureza racial são um caminho, de curto
e médio prazos, voltado para a ocupação de espaços e criação de opor-
tunidades equitativas para as pessoas negras. Porém, conforme pontua
82 | Aline Santana Alves

Telles no excerto acima, essas ações afirmativas, sozinhas, não resolvem


o complexo problema da desigualdade racial brasileira. Tanto assim que,
em uma pesquisa recente, constatou-se que a desigualdade sociorracial,
antes estagnada, agravou-se (GEORGES, 2018). Os dados, ao exporem o
aumento dessa desigualdade, demostram que as ações afirmativas de na-
tureza racial, sozinhas, não efetivaram a igualdade pretendida no âmbito
econômico: de 2016 para 2017, os negros da metade mais pobre da popu-
lação tiveram uma redução na renda (-2,5%), enquanto que os brancos do
mesmo estrato social tiveram um aumento (3%).
Sem uma interferência estatal voltada para a redistribuição de renda e
riquezas, a tendência é que a desigualdade sociorracial não seja reduzida.
Em contrapartida, não se pode fiar tão somente na redistribuição de
riquezas para a redução das desigualdades raciais, cuja origem combina
fatores sociais que transpassam a mera questão da injustiça econômica.
Caso contrário, os efeitos da redistribuição racial tendem a ser enfraque-
cidos.
Essa constatação foi teorizada, no início deste século, por Nancy
Fraser, filósofa estadunidense e importante expoente da Teoria Crítica
contemporânea. Para solucionar a referida questão de injustiças sociais
sobrepostas, ela propõe uma teoria dualista, na qual se combinam os dois
fatores de injustiças. Fraser (2006, p. 238 e 239) explica que:

A lógica aqui se aplica à redistribuição afirmativa em geral. Embora essa


abordagem vise a compensar a injustiça econômica, ela deixa intactas as
estruturas profundas que engendram a desvantagem de classe. Assim, é
obrigada a fazer realocações superficiais constantemente. [...]

Remédios transformativos comumente combinam programas universalis-


tas de bem-estar social, impostos elevados, políticas macroeconômicas vol-
tadas para criar pleno emprego, um vasto setor público não mercantil, pro-
priedades públicas e/ou coletivas significativas, e decisões democráticas
quanto às prioridades socioeconômicas básicas. Eles procuram garantir a
todos o acesso ao emprego, enquanto tendem também a desvincular a par-
te básica de consumo e o emprego. Logo, sua tendência é dissolver a dife-
renciação de classe. Remédios transformativos reduzem a desigualdade so-
cial, porém sem criar classes estigmatizadas de pessoas vulneráveis vistas
como beneficiárias de uma generosidade especial. Eles tendem, portanto,
a promover reciprocidade e solidariedade nas relações de reconhecimen-
to. Assim, uma abordagem voltada a compensar injustiças de distribuição
pode ajudar também a compensar (algumas) injustiças de reconhecimento.
Enegrecendo o Direito | 83

O combate às desigualdades sociorraciais apenas com políticas de re-


conhecimento dá margem às supracitadas injustiças de reconhecimento,
que são, por exemplo, a insatisfação do branco pobre com a política de
cotas raciais, ao erroneamente visualizar a criação de um privilégio para
pretos e pardos. Além de presumir uma generosidade imerecida para os
negros, há ainda a perda do seu “salário público e psicológico” de outrora
– termo que o intelectual Du Bois (1920) criou para explicar a satisfação
do branco em estar acima dos negros tão somente em decorrência de sua
branquitude.
Assim, o reconhecimento racial, sozinho, não finda o racismo, porque
a persistência da desigualdade sociorracial, que não se resolve só pelas
ações de reconhecimento, resulta em mais racismo e mais injustiças de
reconhecimento. Então, o branco pobre, que poderia ser um aliado na bus-
ca por uma política tributária voltada para a redistribuição – que neces-
sariamente o favoreceria –, vira um inimigo que se ocupa em combater o
“privilégio” que, na sua perspectiva, resulta das ações de reconhecimento
para os negros. Isso porque, conforme expõe Almeida (2019), “‘Patologia
social do branco’ era como Guerreiro Ramos referia-se à postura de opo-
sição e de rejeição que caracterizava as pessoas brancas brasileiras diante
da possibilidade de integração social com negros”, bem como “O pavor de
um dia ser igualado a um negro é o verdadeiro fardo que carrega o homem
branco da periferia do capitalismo e um dos fatores que garante a domina-
ção política, econômica e cultural dos países centrais”.
Portanto, Nancy Fraser estabelece que, por se tratar de dois proble-
mas sobrepostos – racial e econômico –, são necessárias duas soluções.
Dessa forma, a política de ação afirmativa de reconhecimento sem redis-
tribuição, a exemplo das cotas em concursos públicos, faz com que o negro
ocupe alguns lugares nas esferas de poder, mas a falta de uma política re-
distributiva universal não permite que os negros se equivalham financei-
ramente aos brancos, em uma verdadeira democracia racial. E essa conti-
nuidade – ou aumento – da desigualdade racial resulta em uma constante
necessidade de ações de reconhecimento para sanar a falta de ocupação
natural e ampla dos negros nos espaços de poder, o que aconteceria pau-
latinamente, caso houvesse, concomitantemente, políticas de ação afirma-
tiva de redistribuição.
84 | Aline Santana Alves

6 CONCLUSÃO

“Talvez essa presença ausente da questão


racial seja a prova mais contundente de que o
racismo pode obstruir a capacidade de com-
preensão de aspectos decisivos da realidade,
mesmo daqueles que querem sinceramente
transformá-la.” (ALMEIDA, 2019).

Por se tratar de um país no qual o racismo é estrutural e estruturante,


faz-se mister questionar o quanto tal realidade influencia o sistema jurí-
dico brasileiro. Sendo assim, o Direito Tributário não pode se eximir de
buscar formas de minorar o abismo sociorracial que, há muito, perdura
na sociedade brasileira. Isso porque o trabalho parte do pressuposto, de-
fendido pela maioria da doutrina, de que a cobrança de tributos não serve
somente à arrecadação de receitas, havendo na sua incidência, necessaria-
mente, consequências econômicas e sociais. Qualquer contribuição para o
aumento ou a manutenção das desigualdades sociais é um entrave ao fim
do status quo nas esferas de poder e um estímulo natural à continuidade do
racismo estrutural.
Diante da constatação de que existe o racismo e que ele é causa e
reflexo das instituições públicas brasileiras, perfaz-se uma hipótese ra-
zoável deduzir que o Direito Tributário integra esse sistema reprodutor
de racismo, ainda mais ao se considerar o fato de que os tributaristas nem
sempre buscam novas formas de ampliar o alcance social do Direito Tri-
butário. No geral, há apenas o esforço acadêmico, meramente técnico, de
questionar se a aplicação e a existência (ou inexistência) de determinados
tributos estão de fato submetidas às normas e aos princípios constitucio-
nais e tributários estudados.
A fim de anular o risco de depreenderem se tratar de uma iniciativa
meramente universalista de redistribuição de renda, a perspectiva trazida
aqui é sobretudo racial. Essa anulação ocorre justamente porque expor
o racismo institucional no âmbito do Direito Tributário embasa a possi-
bilidade de fazê-lo numa nova forma de política de ação afirmativa, que
diminua as desigualdades sociorraciais e efetive a democracia racial.
Ao fim e ao cabo, a pesquisa vem fundamentar a presença do racismo
na construção tributária do país. Reconhecer a problemática racial é o cer-
ne da questão, visto que se trata de uma relação cíclica, na qual o racismo
estrutural é causa e consequência de tantas mazelas jurídico-legislativas
Enegrecendo o Direito | 85

verificadas. Por isso, é tão importante ter o Direito Tributário como um


agente de ação afirmativa, com todas as abordagens e fundamentos reque-
ridos para esse efeito.
Portanto, a raiz e o objetivo precisam ser claros para produzir o re-
sultado esperado. Não é possível entender e repensar a tributação sem
enfrentar o racismo brasileiro. Na verdade, não é possível entender e re-
pensar todo o ordenamento jurídico sem fazê-lo.

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sociológica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: Fundação Ford, 2003.
4
LIBERDADE DE EXPRESSÃO E RACISMO: DISCURSOS
DISCRIMINATÓRIOS E PRESIDENCIALISMO

Lázaro Alves Borges35

“E na TV se você vir um deputado em pânico mal


dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer,
qualquer plano de educação que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização do
ensino do primeiro grau.
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena
capital”. (HAITI, 1997).

“O negacionismo da discussão racial é tentativa de


silenciamento de grupos que não tiver voz. Só lhes
restaram o grito”

Inicialmente, este texto não visa avaliar condutas específicas de pre-


sidentes ou candidatos específicos na história do Brasil ou da América
Latina. Este trabalho seria da militância política ou de intenções político-
-partidárias, as quais não serão objeto de discussão. Por isso, as ilações e
as análises normativas são realizadas em abstrato.
A liberdade de expressão, valor democrático, é um direito de matriz
liberal de garantia à pluralidade e à exposição de ideias no espaço público,
implicando esfera de não ingerência. Busca se contrapor ao absolutismo,
em que a hierarquia, baseada no poder régio, não poderia ser contestada
pelo povo, havendo religião oficial e perseguição aos cultos contrários. O
direito à crítica da opinião pública, inicialmente face ao governo e, poste-

35  Mestrando em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Analista ministerial.


Professor universitário.
89
90 | Lázaro Alves Borges

riormente, no tocante aos particulares, denuncia privilégios, reequilibra a


balança da justiça social e pluraliza o discurso.
Constituído em momento posterior na contestação do poder divino
dos reis, o direito de participação nas decisões comunitárias consiste em
patamar de valorização do indivíduo em sua esfera de impenetrabilidade.
A eleição é um momento de pluralidade de ideias em que um dos progra-
mas ideológicos é eleito como condutor da sociedade. O candidato torna-
-se um representante de um projeto político, uma pauta, um modelo de
Estado.
Nos países da América Latina, o presidente da República, como chefe
do Poder Executivo Federal e de Estado, ocupa papel central na mídia
e nas expectativas sociais pelo hiperpresidencialismo. Distintamente dos
parlamentares, a Constituição reservou um estatuto jurídico distinto ao
presidente da República – não extensível aos ministros de Estado e gover-
nadores –, o que, a princípio, parece deixar de fora os crimes relacionados
ao discurso racista.
O racismo, em sentido amplo, consiste em compreensão do mundo
através de uma ótica hierárquica entre o sujeito padrão e os outros, classi-
ficados em relação ao modelo ideal. Na história ocidental recente, consti-
tuiu-se a partir da modernidade, quando os escravizados africanos foram
trazidos para o sistema mercantilista colonial e os saberes indígenas fo-
ram observados como de menor valor.
Em sentido estrito, consiste em discursos e práticas segregacionis-
tas de grupos minoritários. No Brasil, as populações negras e indígenas
foram historicamente perseguidas e alijadas dos centros de poder, muito
embora outros grupos, como os orientais, comecem a sofrer discrimina-
ção, principalmente nas regiões sul e sudeste do país.36 A inclusão de no-
vos grupos mostra que a luta contra a opressão racial é universal e situa-
cional: um negro sofrerá racismo, por conta da sua cor de pele na Bahia;
um nordestino branco será alvo de preconceito no sudeste, por elementos
como sotaque ou tradições regionais; um brasileiro branco terá um olhar
diferenciado e pejorativo fora do país, pela sua nacionalidade.
Questiona-se quais os contornos jurídicos do discurso racista profe-
rido pelo presidente da República a partir de pesquisa jurisprudencial e
doutrinária. Baseia-se, como marco teórico, nos estudos de Caleb Yong
(2011), que distingue o discurso genérico do específico no tocante às mi-
norias, e de Paulino (2018), que realizou similar estudo com relação aos
36  Conferir um interessante estudo em: ITO, 2020.
Enegrecendo o Direito | 91

parlamentares. A liberdade de expressão presidencial encontra-se em es-


tatuto jurídico mediano da liberdade irrestrita e da impossibilidade de
manifestação de alguns temas – censura a posicionamento individual.
O trabalho possui os seguintes objetivos: (a) definir liberdade de ex-
pressão e irresponsabilidade temporária do presidente a partir de estudos
liberais, como os trabalhos de Dworkin, Mill, Waldron e Voltaire; (b) deli-
near os contornos da liberdade de expressão e do discurso de ódio a partir
da doutrina de Yong e Paulino; (c) realizar estudo de caso, analisando a
manifestação do presidente atual e anteriores acerca de temáticas que se
encontram amparadas pela irresponsabilidade penal e civil; (d) estuda o
racismo como forma de silenciamento de grupos vulneráveis.

1 A LIBERDADE DE EXPRESSÃO COMO EXPRESSÃO DA
AUTONOMIA

A liberdade de expressão é direito individual elencado no art. 5º da


Constituição Federal no intuito de possibilitar, ao indivíduo, sua partici-
pação na esfera pública. Compreende o falar e o silenciar, bem como ex-
pressões não-verbais como o riso, as palmas, o deboche, o grito.
Em que pese a posição do autor, neste trabalho, adota-se a concep-
ção ampla de liberdade de expressão. Isto porque, segundo as teorias da
comunicação, é impossível não comunicar, uma vez que a transmissão de
ideias não se resume ao verbal, mas também ao não-verbal. O silêncio
é uma mensagem no diálogo, sendo mais comunicativo quando imposto
pelo aparato estatal, uma vez que pode significar, ora a censura, ora o
desinteresse do Poder Público na implementação de uma política pública.
Todavia, atualmente, alguns discursos difamatórios parecem não ser
mais cabíveis pelo momento civilizatório e pelo patamar de alteridade que
a comunidade desenvolveu. Nesse sentido, o preconceito e a discrimina-
ção, como entraves ao desenvolvimento humano, mostram-se, amiúde,
inaceitáveis. Na Constituição de 1988 foi inserido um mandado de crimi-
nalização do racismo37 e, recentemente, o Supremo Tribunal Federal equi-

37  Segundo a Constituição Federal, art. 5 XLII: “a prática do racismo constitui crime
inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. Para dar
cumprimento a essa previsão constitucional, foi promulgada a Lei n. 7716/89, que, em
seu artigo 1º, prescreve: “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de
discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.  (Redação
dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)”.
92 | Lázaro Alves Borges

parou ao racismo os casos de homofobia e outras discriminações atinentes


a grupos (travestis, transexuais, dentre outros).38
Por outro lado, na prática, a restrição de discurso não parece ter mi-
tigado práticas e discursos discriminatórios. Em busca de uma pedagogia
do patamar civilizatório, práticas que anteriormente permeavam a esfera
pública passaram a estar em âmbito privado. Ao que parece, esconder o
preconceito e não o trabalhar se tornou a opção de milhares de brasileiros,
que concordam com os estereótipos, mas, por medo da restrição de discur-
so, deixam de se manifestar abertamente.
As próprias campanhas eleitorais mostram a prevalência de um dis-
curso em detrimento de outros. Nas eleições de 2018, por exemplo, obser-
vou-se que os grupos minoritários – mulheres, indígenas, negros, mino-
rias sexuais – foram derrotados nas urnas pelo discurso homogeneizador
de tipos ideais – brasileiro, judaico-cristão, liberal.
A própria legislação, inobstante não imponha ao candidato a
realização obrigatória de campanhas, comícios ou manifestações públicas,
prevê a obrigatoriedade do registro da proposta de campanha.39 Nesse
sentido, uma vez que a restrição do discurso do candidato já se mostra
com um âmbito normativo maior do que o de um cidadão comum, o de um
eventual chefe do Executivo ganha contornos ainda maiores, por ressoar
a opinião da maioria.

2 IMUNIDADE PRESIDENCIAL E CRIMES CONTRA HONRA

Tradicionalmente, a discussão sobre os crimes contra a honra no


exercício de cargos eletivos está relacionada aos deputados e senadores
na doutrina constitucional. Tal fato se deve à menção explícita da Consti-
tuição Federal, no artigo 53, sobre a proteção consagrada ao detentor do
poder político, que poderia ter sua atividade parlamentar criminalizada.
Cabe salientar que, no intuito de proteger as opiniões, palavras e vo-
tos, foi reservada aos congressistas a imunidade material, sendo atípicos
esses atos. Trata-se de prerrogativa dos membros do Congresso, para ga-
38  Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 26, do Supremo Tribunal
Federal, julgada em 13 de setembro de 2019.
39 Art. 11 do Código Eleitoral: “Os partidos e coligações solicitarão à Justiça Eleitoral
o registro de seus candidatos até as dezenove horas do dia 15 de agosto do ano em que
se realizarem as eleições.§ 1º O pedido de registro deve ser instruído com os seguintes
documentos: IX - propostas defendidas pelo candidato a Prefeito, a Governador de
Estado e a Presidente da República. (Incluído pela Lei nº 12.034, de 2009)”.
Enegrecendo o Direito | 93

rantir a mais ampla liberdade de expressão oral ou gestual na realização


de suas funções, amparando-os contra abusos e violência por parte do
Executivo ou do Judiciário.
No que toca ao presidente da República, não ocorre uma proteção tão
abrangente quanto aos discursos, mas uma impossibilidade de averigua-
ção do crime durante o mandato, a fim de possibilitar a governabilidade.
Isso porque o principal papel do Executivo não é discutir ideias para le-
gislar, mas dar exequibilidade às leis como um gestor público. A atividade
normativa primária do Poder Executivo é hipótese excepcional e criticada
pela doutrina – medidas provisórias, leis delegadas – e independem de
qualquer discussão por serem editadas de forma unipessoal.
Defende-se, portanto, que a imunidade do presidente é: a) temporária,
quanto às opiniões e manifestações; b) menos ampla do que a parlamentar,
pois suas condutas podem ser consideradas típicas.
A Constituição Federal prescreve que o presidente da República, na
vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estra-
nhos ao exercício de suas funções. Tal prerrogativa difundiu-se na doutri-
na como imunidade temporária à persecução penal, não sendo absoluta e
restrita no âmbito penal (CUNHA JUNIOR, 2011. p. 966).
A própria imagem do chefe do Poder Executivo é trabalhada pela
assessoria de imprensa para veicular determinados discursos e se omitir
em outras pautas não-prioritárias, mas sempre parecer acessível a todos.
Nesse sentido, num viés clássico da teoria política, adverte Maquiavel que
o monarca deve parecer aquele se revela “todo fidelidade, todo integrida-
de, todo humanidade, todo religião” (VATTER, 2017. p. 133), dado que
os súditos se fixam mais no parecer, realidade que se acirra no hiperpre-
sidencialismo caudilhista sul-americano (GARGARELLA, 2013. p. 52).
Acerca do comportamento autoritário possivelmente presente nos
atos do presidente da República, Steven Leevitsky e Daniel Ziblatt elen-
cam indicadores de comportamento antidemocráticos. Ressalte-se que,
para os autores, a presença de um desses marcadores já sinaliza o com-
prometimento da democracia (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018. p. 32). Eles
são a rejeição das regras democráticas do jogo (ou compromisso débil),
a negação da legitimidade dos oponentes políticos, a tolerância ou enco-
rajamento à violência e a propensão a restrição das liberdades civis de
oponentes, inclusive da mídia.
Os autores são contrários à ideia de que democracia é tão somente o
respeito às regras do jogo e que as instituições conseguem conter auto-
94 | Lázaro Alves Borges

cratas eleitos (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018. p. 19). Para eles, é possível


a manipulação da máquina para “virar o jogo” contra os oponentes. As
grades de proteção da democracia estariam em dois elementos comuns
retroalimentadores ao regime (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018. p. 100): a
tolerância mútua – aceitação de que adversários políticos tenham igual
direito de existir, competir e governar – e a reserva institucional – auto-
controle do poder-dever que lhe é inerente.
Existe uma distinção entre o discurso realizado pelo parlamentar e
pelo chefe do Poder Executivo. Fábio Lima Quintas e Fernanda de Olivei-
ra Andrino (2019, p. 129) ensinam que a atividade parlamentar é baseada
no livre debate de ideias, representada por diversos grupos do eleitorado.
Assim, a responsabilidade civil do Estado pelo discurso parlamentar deve
se basear na teoria da irresponsabilidade dos atos estatais, ao considerar
que é inaplicável o artigo 37, § 6º, da Constituição. Ressaltam que o dis-
positivo constitucional não objetiva a regulamentação do sistema político,
mas a ação administrativa.
O chefe do Poder Executivo, embora eleito, após as eleições, torna-
-se um gestor. Assim, embora seja possível o direcionamento de políticas
públicas pelos critérios de conveniência e oportunidade, deve garantir o
bem-estar social de todos, não proferindo discursos supremacistas, dado
que seus discursos são similares aos proferidos por um agente público e,
portanto, passíveis de responsividade.
Ademais, a própria legislação eleitoral impede o uso da máquina pú-
blica como forma de plataforma eleitoral durante o cargo, como modalida-
de de abuso de poder político.40 Ao proferir discursos políticos que violem
as minorias sob o manto eleitoral, a conduta pode implicar em propaganda
eleitoral antecipada.
Há uma distinção clássica entre o candidato e o chefe do Poder Exe-
cutivo. No tocante à candidatura, é possível utilizar-se de diversas ma-
nifestações a fim de obter a maioria do eleitorado. Estrategicamente, no
plano de governo, já se mostram preferências de áreas e grupos sociais e
econômicos a favorecer.

40  Tem-se como exemplo a proibição de propaganda eleitoral antecipada, vedações de


campanha (a exemplo da proibição de aumento de despesa com pessoal, cessão de bens
em benefício de candidatos, uso promocional em favor de candidato, partido político
ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou
subvencionados pelo Poder Público, pronunciamento em cadeira de rádio e televisão fora
do horário eleitoral gratuito, contratação de shows artísticos) (BARREIROS NETO,
2018. p. 319).
Enegrecendo o Direito | 95

Por outro lado, o papel do presidente da República é conciliar in-


teresses da Administração Pública Federal e do Estado, para além dos
grupos que o elegeram. Deste modo, prudência e cautela nos discursos
são virtudes a serem seguidas, sob pena de se incorrer em crime de res-
ponsabilidade, o que resulta em posterior perda do cargo, ou em sanção
penal posterior.
Uma das discussões acerca da persecução penal do presidente da
República diz respeito à prescrição. Isso porque, enquanto há previsão
expressa de suspensão do prazo para a persecutio criminis para os deputa-
dos e senadores, o constituinte não fez tal reserva. Deste modo, alguns
defendem a inaplicabilidade da prescrição por aplicação do princípio da
legalidade.
Contudo, por essa interpretação, o mandato em curso seria uma ir-
responsabilidade penal, figura compatível com o Estado Absolutista (“the
king can do no wrong”) e contrária à responsabilidade do Estado Demo-
crático de Direito. Assim, no caso, uma contravenção penal ou um crime
de menor potencial ofensivo realizado no primeiro ano de mandato dificil-
mente seria punido.
Assim, deve-se observar a suspensão da prescrição criminal enquanto
estiver no curso do mandato, sob pena de retorno à irresponsabilidade dos
governantes estatais (CUNHA JUNIOR, 2017. p. 966).

3 CRITÉRIOS ELENCADOS POR MILL, DWORKIN, WALDRON


E CALEB YONG ACERCA DOS LIMITES DA LIBERDADE DE
EXPRESSÃO E O DISCURSO DE ÓDIO

Diversos autores buscam traçar os contornos da liberdade de expres-


são, de libertários a comunitaristas. Já no auge do liberalismo político,
Jonh Stuart Mill, na obra Sobre a liberdade, defende que, inobstante se
negue a verdade de uma opinião que se queira suprimir, não há prova
irrefutável de que ela não seja verdadeira, havendo um viés autoritário
em definir, em nome de toda humanidade, ao se excluir todas as outras
pessoas da possibilidade de julgar (MILL, 2018. p. 91). Assim, o filósofo
denuncia a atitude do Estado de, em vez de informar, aconselhar e denun-
ciar, tutelar os indivíduos, direcionando o discurso e sancionando o livre
espaço de ideias (MILL, 2018. p. 211).
Já Ronald Dworkin, baseado numa doutrina liberal, sobretudo a de
Mill, delineia uma irrestrita possibilidade de emissão, observando que
96 | Lázaro Alves Borges

qualquer cerceamento de ideias configura um árbitro que elege a preva-


lência de um pensamento individual sobre outro. Para o autor, o Estado
não pode ser juiz moral dos pensamentos da população, sendo o debate
irrestrito de ideias como a luz solar a favorecer a melhor ideia, na crença
de que a verdade sempre prevalecerá (DWORKIN, 2006, p. 389).
Para o libertário, a atuação do Estado não deve eleger uma pedagogia
perante a autonomia individual do cidadão de condução do pensamento
público. Crente no entendimento esclarecido de todos os cidadãos – até
mesmo daqueles que não tiveram escolarização -, o autor deixa a cargo do
indivíduo permitir-se convencer acerca de determinadas ideias.
Esse pensamento mostra-se coerente filosoficamente, embora, no
Brasil, sua aplicação encontre certas incongruências. A primeira delas é a
realidade fática latino-americana: um país onde a informação é conduzida
ideologicamente e de forma desigual pela presença de milhares de analfa-
betos funcionais.
A segunda é o autoritarismo ou pessoalidade no debate público. Se,
em um dado momento histórico, falava-se sobre a cordialidade do brasi-
leiro – que nada tinha a ver com a educação ou com a doçura, mas com a
pessoalidade no trato na esfera pública (HOLANDA, 2015, p. 189) -, hoje
se vê uma sociedade autoritária e dividida por posicionamentos políticos
radicais, em que o diálogo se perde. No pensamento de Dworkin, o debate
se funda na escolha individual sem qualquer tentativa de eleição de um
acordo comum – a premissa habermasiana de consenso na esfera pública
(HABERMAS, 2014. p. 393). O debate de políticas públicas deve se basear
em premissas racionais, e não em meras opiniões pessoais (favoráveis ou
contrárias a determinado tema, como se o debate fosse um time de futebol
em que se escolhe pelas paixões ou interferências do grupo).
Contrapondo o pensamento de Dworkin, Jeremy Waldron (2014, p.
105) entende que deve haver restrições à liberdade de expressão no to-
cante à proteção contra o discurso de ódio e, portanto, o racismo. O autor
ressalta que, ainda nos países de origem anglo-saxã (Inglaterra, Canadá,
França, Dinamarca, Alemanha, Nova Zelândia e em estados da Austrália),
há leis que proíbem a discriminação por raça, cor, origem nacional ou
etnia. Não ocorreria paternalismo na tutela do combate ao racismo, con-
siderando que a manifestação de pensamento fica resguardada. O autor
foca-se na existência ou não de dano ao grupo minoritário, alvo de tutela
jurídica. Observa-se ainda que, no mais das vezes, o conteúdo do discurso
de ódio vem carregado de preconceitos factuais, como o que atribui armas,
Enegrecendo o Direito | 97

crime e maconha, de alguma forma, ao “negro”, ou que diz que todos os


mulçumanos são terroristas (WALDRON, 2014. p. 125). Assim, para o
autor, há um grande entrave entre o direito de liberdade e a igualdade
material de povos historicamente oprimidos, que devem ser tutelados.
Em posicionamento intermediário, Caleb Yong (2011) trabalha com
4 (quatro) categorias de ofensas: (1) vilificação direcionada, (2) vilifica-
ção difusa, (3) defesa política organizada de políticas excludentes e/ou
eliminacionistas e (4) outras afirmações de fato ou valor que constituem
um julgamento adverso sobre um grupo racial ou religioso identificável
(YONG, 2011, p. 385). Para o autor, os controles no discurso de ódio não
violam injustamente os direitos de autonomia dos falantes, porquanto o
respeito pelos direitos de autonomia dos oradores é um compromisso de
justiça liberal, mas não é o único compromisso. Na hipótese de violação
do direito de autonomia dos oradores previsíveis resultar em políticas
que violam outros compromissos fundamentais de justiça liberal, como os
direitos básicos iguais dos cidadãos, há necessidade de tutelar a violação
dos direitos de autonomia dos oradores.
Segundo Paulino, em análise das prerrogativas materiais parlamenta-
res, “a defesa de políticas excludentes e a possibilidade de se fazer juízos
de fato ou de valor sobre grupos identitários, desde que não difamatórios
da dignidade dos membros do grupo, estão abrangidas pela imunidade
material parlamentar” (PAULINO, 2018. p. 161). Isso porque tal violação
seria criminalização da atividade do parlamentar.
Lógica semelhante poderia ser aplicada ao presidente da República
nos crimes de racismo, não se podendo proclamar ofensas individuais ou
difusas a negros, asiáticos ou grupos de matriz africana como quilombo-
las, tampouco afirmações que constituam um julgado adverso, pela sim-
ples intenção de ofender (animus ofendendi).

4 A QUESTÃO RACIAL E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Inicialmente, o combate ao racismo é princípio que norteia as rela-


ções exteriores (art. 4 CF/88) e as políticas públicas internas (Estatuto da
Igualdade Racial). Nesse sentido, a inércia do Estado na implementação
de medidas de equiparação social constitui omissão inconstitucional, pas-
sível de interferência judicial na consecução de políticas públicas.
Amiúde, a questão racial é alvo de discussões sobre um suposto vi-
timismo ou uma construção de um imaginário social que inclui o negro
98 | Lázaro Alves Borges

como sujeito pleno de direitos. Uma redução simplória da realidade per-


mite a distinção de dois grupos: os liberais, que focam os direitos civis e
políticos e que entendem que o racismo é pontual e atinge o indivíduo, e
os sociais, que entendem que, para além dos direitos individuais, haveria
uma pauta comum, necessária à comunidade negra. Adilson José Moreira
distingue idênticas categorias, denominando-as entre juristas brancos e
juristas negros a partir de seus pontos de vista.41 Um ponto de intersecção
entre os grupos é a existência de práticas discriminatória por conta da
origem ou da cor da pele, ainda que remotamente ou num passado distan-
te ou em outra realidade.42
Isso ocorre porque o racismo não se constitui em movimento ativo
e consciente. O racismo na lei, como forma de discriminação direta, é de
combate mais simples por se constituir em violação ao princípio da igual-
dade.
Todavia, atualmente, a discriminação se modificou para um pata-
mar mais sutil, sendo normalmente indireta, quando a atuação impacta
um grupo de forma mais agravada do que os demais (teoria do impacto
desproporcional) (GOMES, 2001). Para tanto, faz-se necessária a pesqui-
sa empírica, baseada em critérios científicos. Um exemplo é a pesquisa
nos Estados Unidos que revela que, após a lei que proibiu empregadores
de perguntar acerca do histórico criminal dos entrevistados, as ligações
para candidatos brancos aumentaram em detrimento de negros (STARR,
2016). Nesse particular, a igualdade formal e o intuito do legislador foram
contrariados, transformando uma discriminação pela prática de crimes em
racial.
A experiência de construção como sujeito, em que pese ensinada na
academia como objetiva e a partir de noções objetivas, como dignidade da
pessoa humana e direitos objetivos, deve ser observada em sociedade. Por
isso, debates sobre cotas raciais são elaborados a partir de relatórios como
o Reserva de Vagas para Negros na Administração Pública, não sendo
arbitrárias politicamente (IPEA, 2016).

41  Ou que pensa como brancos ou que pensa como negros (MOREIRA, 2019. p. 120 e
ss).
42  Há aqueles que atribuem o racismo apenas às práticas escravagistas até a abolição
de 1888 ou a questões como o apartheid na África do Sul ou a doutrina do “equal but
separeted” do caso Plessy versus Ferguson (1896) até o Movimento de Direitos Civis a
partir da década de 60 nos Estados Unidos. Esses pertencem ao grupo liberal porque
tendem a acreditar possíveis práticas racistas realizadas por indivíduos.
Enegrecendo o Direito | 99

Quando as estruturas sociais são racistas, ou seja, excluem pessoas


negras de postos de poder ou simplesmente olvidam a discussão do deba-
te, o fenômeno se torna comum. O combate à discriminação perpassa pela
exigência da presença do debate público constante, o ensino nas escolas, a
divulgação de atos racistas na mídia. Nesse sentido, movimentos como o
black lives matter e as ações de inclusão são posturas bem-vindas no com-
bate à branquitude (RIBEIRO, 2019. p. 43).
Por outro lado, se os indivíduos não expressarem suas opiniões so-
bre determinado tema, dificilmente haverá construção social (NOELLE-
-NEUMANN, 1995). Todos os assuntos na República devem ser objeto de
deliberação, sob pena de criação de privilégios. Isso não implica na impu-
nidade dos atos individuais e coletivos racistas envolvendo indivíduos ou
grupos, processo de correção socialmente constituído (função da pena de
prevenção geral e especial).43
Assim, entende-se, com base nos critérios de Yong, que o debate pú-
blico contrário a indivíduos ou a grupos constitui racismo punível como
crime. Todavia, no que tange à opinião favorável ou contrária a adoção
de determinadas políticas públicas, em que pese ignorantes da realidade
social, não pode ser punível sob pena do cerceamento do debate das es-
tratégias mais eficazes ao fomento da justiça social. A discussão deve se
amparar na maneira de implementar políticas públicas (debate acerca do
meio), e não devem ser criadas políticas (discussão de possibilidade de
atuação do Estado), sob pena de descumprimento do mandamento consti-
tucional de combate ao racismo.

5 CONCLUSÃO

Como direito civil e político, a liberdade de expressão é um direito na-


tural inerente ao ser humano. Nesse sentido, é impossível não comunicar,
sendo, até mesmo o silêncio, uma forma de manifestação de pensamento.
Entretanto, isso não significa a ausência de qualquer restrição imposta
pelo Direito. Ademais, o consenso democrático do discurso da igualdade
é, em parte, contrário ao discurso da liberdade. Nesse sentido, defende-se
as restrições à liberdade de comunicação em juízo de ponderação no caso
concreto para tutelar a igualdade dos indivíduos.

43  A prevenção geral é aquela que cria desestímulos à sociedade na prática de infrações
penais, enquanto que a especial dirige-se ao indivíduo, para que ele não volte a delinquir
(ARAÚJO, 2018. p. 777).
100 | Lázaro Alves Borges

Quanto aos parlamentares, há uma doutrina aprofundada e previsão


constitucional de proteção ao discurso no artigo 53 da CF/88. Todavia,
por fatores históricos e de separação de poderes, a doutrina e a jurispru-
dência acerca dos limites da liberdade de expressão do Poder Executivo
são incipientes, sendo tuteladas pela imunidade genérica presidencial en-
quanto no exercício do mandato.
O hiperpresidencialismo latino-americano corrobora uma cultura de
reverência ao chefe do Executivo, que pode verberar discursos favoráveis
ou contrários a determinada política pública. A princípio, mera estratégia
de governo. Todavia, reiterados discursos racistas contra determinados
grupos minoritários violam direitos humanos e justificam a intervenção
judicial e de instâncias supranacionais para abster o ato lesivo. Segundo
Caleb Yong, há uma liberdade ampla para difundir programas de gover-
nos distintos dos anteriores ou de favorecimento de determinados grupos.
Todavia, o discurso que gere a discriminação grave e individualizada ou
a um grupo específico não está abarcado pela imunidade de expressão
presidencial.
São remédios, para sanar o ato lesivo, as ações de responsabilidade ci-
vil e as criminais ajuizadas posteriormente ao mandato. Isso porque, pela
soberania das urnas, deve viger a imunidade temporária à persecução pe-
nal, ficando suspensa a prescrição durante o mandato de forma análoga ao
que ocorre aos parlamentares. Tal conclusão decorre da lógica do Estado
Democrático de Direito, em que não devem existir danos indissociáveis de
quaisquer reparações, sob pena de retornarmos ao Estado Absolutista de
irresponsabilidade dos atos estatais (“the king can do no wrong”).
Nesse sentido, discursos racistas proferidos pelo presidente da Re-
pública são configurados quando há críticas a indivíduos ou grupos es-
pecíficos por sua raça, etnia, procedência nacional ou orientação sexual.
Resta possível ao governante o debate das políticas públicas no seu modo
de implementação – se de forma genérica ou específica (critérios, popula-
ção beneficiária, formas de fomento). A crítica a políticas afirmativas pelo
simples fato de existirem, e não pelos critérios da política pública em si,
constitui racismo proclamado e desprezo ao discurso científico.

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Enegrecendo o Direito | 101

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Daiane Ribeiro44

“Em um país onde reina a impunidade,


o governo está efetivamente
concedendo à polícia
uma licença para matar”
(Ilona Szabó)

1 “O PAÍS ONDE A FACADA QUE NÃO ALEIJA, ELEGE”45

Enfrentando crise econômica, institucional e política, e com o sistema


de saúde à beira do colapso, o Brasil caminha para seu terceiro mês de
isolamento social em razão da COVID-19. O eleito, chefe do executivo,
coleciona, além de demissões injustificadas e falas irresponsáveis que mi-
nimizam a pandemia, graves acusações de interferência na autonomia da
Polícia Federal, denunciadas por seu ex-ministro da justiça, Sergio Moro.
Enquanto a direita eminentemente branca e antes rachada entre team
Bolsonaro versus Moro silencia, o contingente negro segue espremido nas
comunidades. Famílias inteiras dividindo barracos minúsculos e ouvindo
sobre a necessidade de lavar as mãos constantemente, quando em muitos
casos não há saneamento básico e a falta de água é uma constante; escu-
tando sobre os benefícios de itens de higiene, a exemplo do álcool em gel,
quando falta dinheiro até para a comida.

44  Advogada. Bacharela em Direito e mestranda em Direito Penal e Liberdades Públicas


pela Universidade Federal da Bahia – UFBA.
45  BENÉ. 2019.
103
104 | Daiane Ribeiro

Os números relacionados a educação, saúde, moradia, saneamento


básico, trabalho e demais determinantes, associados à possibilidade de
sobrevivência plena, denunciam o abismo em que estão imersas as co-
munidades negras na diáspora (VARGAS, 2010). O coronavírus joga luz
sobre o genocídio antinegro em toda a sua complexidade, desnudando as
assimetrias, demonstrando que a maior sujeição do corpo negro ao exter-
mínio pode jazer numa bala, mas também na ausência de políticas públicas
capazes de garantir o mínimo existencial a negras e negros.
Quando se fala da dimensão mais insidiosa dentre as incursões geno-
cidas – o extermínio de corpos negros –, a violência policial assume um
papel determinante. A polícia que mais morre no mundo é, também, a que
mais mata, com destaque para o Rio de Janeiro, Estado em que a repres-
são policial vitima 1 (um) a cada 5 (cinco) horas e responde por 30% das
mortes violentas.
Eleito em 2018, a gestão de Witzel tem sido marcada pela institu-
cionalização de caveirões aéreos, espécie de helicópteros com atiradores
que sobrevoam as comunidades, atiradores de elite autorizados a alvejar
suspeitos, e drones, que se tornaram rotineiros nas periferias do Rio de
Janeiro. Sob acusação de genocida e atentatória aos direitos humanos, a
política de segurança do governador foi alvo de denúncias à Organização
das Nações Unidas – ONU.
O coronavírus, entretanto, modificou a lógica de operações e patru-
lhamentos em curso até então. Com o avanço da COVID-19, o governa-
dor do Rio de Janeiro decretou estado de emergência em 16 de março de
2020 e, posteriormente, em 20 de março de 2020, situação de calamidade
pública. Em razão disso, parte do efetivo policial passou a atuar em ati-
vidades relacionadas ao controle do vírus, a exemplo do monitoramento
de embarque em trens e metrôs, limitação de entrada em ônibus interes-
taduais e averiguação de denúncias relacionadas à venda de álcool em gel
adulterado.
Nesse período, aponta estudo realizado pela Rede de Observatórios
da Segurança (2020), houve uma diminuição de 74% das operações e de
49% dos patrulhamentos. O mesmo estudo dá conta de que houve uma
significativa queda no número de mortos e feridos, sendo que as vítimas
fatais, que em março de 2019 somaram 36 (trinta e seis), em março de
2020 totalizaram 15 (quinze), ratificando o que há muito se denuncia: as
mortes violentas nas favelas e comunidades, que vitimam, majoritaria-
Enegrecendo o Direito | 105

mente, jovens negros, estão diretamente ligadas às ações de repressão


perpetradas pelas agências policiais.

2 “O QUE VALE MAIS, UM JOVEM NEGRO OU UM GRAMA DE PÓ?


POR ENQUANTO, NINGUÉM RESPONDE E MORRE UMA PÁ”46

Para além da diminuição no número de operações e patrulhamen-


tos e, consequentemente, do número de vítimas fatais, os dados coletados
pela Rede de Observatórios constatam outra importante informação: a
diminuição de operações voltadas à repressão ao tráfico de drogas, que
em 2019 representavam 30%, em março deste ano somaram 16%. Assim,
se antes tínhamos as vítimas (jovens negros), a trincheira (favelas e co-
munidades), os agentes (força policial), podemos adicionar a motivação, a
suposta repressão ao tráfico de drogas.
Se as primeiras medidas direcionadas ao combate do vírus deman-
daram contingente policial, diminuindo o número de ações e, consequen-
temente, das mortes durante o mês de março, nos meses seguintes essa
tendência não se manteve. Ao contrário, percebe-se não só uma retomada,
mas um acirramento nas incursões, causando uma sucessão de mortes
violentas nas comunidades do Rio de Janeiro.
A Rede de Observatórios da Segurança (2020) apurou que, durante
os meses de abril e maio, houve um aumento de 63,6% das operações po-
liciais, tendo como foco o suposto combate ao tráfico de drogas, e também
de sua letalidade, 57,9% maior quando comparado com o mesmo período
durante o ano de 2019.
Somente em março e abril deste ano, 290 (duzentas e noventa) pes-
soas morreram em operações policiais, nessa estatística não se incluindo
João Pedro, assassinado em maio. O nome do jovem de 14 anos morto no
Complexo do Salgueiro, após ter sua casa alvejada por 71 (setenta e um)
tiros, juntou-se aos de Jenifer, Kauan, Kauê, Ágatha, Kethellen e de tantas
outras crianças e jovens que tiveram seu futuro interrompido pela necro-
política47 empreendida pelo Estado brasileiro.
46  BENÉ. 2019.
47  Necropolítica é um conceito cunhado pelo filósofo negro, historiador, teórico político
e professor camaronense Achille Mbembe, que questiona os limites da soberania quando
o Estado escolhe quem deve viver e quem deve morrer. Se relaciona com o racismo, na
medida em que uma de suas grandes características é a desumanização de corpos negros
e, segundo Mbembe, a negativa da humanidade do outro termina por tornar possível a
utilização de violência, inclusive a letal. A necropolítica é a política de morte adotada
106 | Daiane Ribeiro

O assassínio de João Pedro veio mostrar para parte dos brasileiros


o que as/os negras/os moradores de comunidades há muito já sabem:
estar em casa não é garantia de segurança. Além disso, para tornar tudo
ainda mais absurdo e revoltante, após ser alvejado, o garoto foi levado de
helicóptero pelos agentes, deixando a família sem qualquer informação até
o dia seguinte, quando, depois de uma intensa mobilização, inclusive por
redes sociais, o corpo foi encontrado no Instituto Médico Legal.
A brutalidade policial, que no ano passado foi responsável por um
décimo das 57.000 (cinquenta e sete mil) mortes violentas, não é uma
particularidade de um Estado ou outro, mas uma realidade percebida no
Brasil inteiro, sobretudo nos grandes centros. Ocorre que o Rio de Janeiro
tem sido apontado como epicentro desse tipo de violência e, em que pese
a situação tenha sido especialmente agravada pela pandemia, as/os mo-
radoras/es de comunidades já vinham sofrendo os efeitos dos discursos e
políticas genocidas defendidas e empreendidas, tanto por Witzel, quanto
por Bolsonaro.
Em 2019, período em que os assassinatos bateram recorde – 1.814
(mil, oitocentos e quatorze) –, o The New York Times realizou um es-
tudo detalhado intitulado “‘Licença para matar’: por trás do ano recorde
de homicídios cometidos pela polícia no Rio” (ANDREONI; LONDOÑO,
2020), em que revela os dados alarmantes das mortes causadas por agen-
tes das forças de segurança. Dentre as constatações apontadas pela pes-
quisa, está a de que os policiais disparam sem restrições sob proteção de
superiores e políticos, certos de que não haverá consequências para os
homicídios perpetrados.
O estudo que narra, de maneira individual, o assassinato de Rodrigo
dos Santos, 16 anos, que estaria portando drogas, analisa ao todo 48 (qua-
renta e oito) homicídios e desnuda a operacionalidade da dimensão mais
gravosa do genocídio antinegro: o extermínio. Tendo morrido a caminho
do hospital, com ferimentos no braço e nas costas, Rodrigo foi alvejado
por cerca de 38 (trinta e oito) tiros, ao acelerar a motocicleta que condu-
zia. A polícia jamais alegou que o adolescente estivesse portando arma;
um dos policiais envolvidos na operação, todavia, aguardava julgamento
por outro homicídio em que teria atirado no pescoço de um homem a cur-
ta distância.

pelo Estado, que não é episódica, mas uma regra, a exemplo do que ocorre nas favelas
do Rio de Janeiro.
Enegrecendo o Direito | 107

Analisando o fato de, oficialmente, a polícia brasileira só poder usar


força letal em caso de ameaça iminente, o estudo pontua que, nas quarenta
e oito mortes investigadas, é possível depreender que os agentes atiram
sem restrições, sendo que, em pelo menos metade dos casos, os mortos
foram baleados pelas costas, levantando questionamentos acerca da real
existência de ameaça iminente justificadora dos disparos.
Além disso, em 20 (vinte) dos casos analisados, os mortos foram ba-
leados ao menos três vezes, enquanto que apenas dois policiais sofreram
ferimentos: um em razão de disparo acidental do próprio fuzil e o outro
por ter tropeçado e caído. Outro dado que merece destaque é que, dentre
os policiais envolvidos nos homicídios estudados, um quarto já havia sido
processado por homicídio anteriormente, sendo que um dos agentes já
havia sido suspenso para avaliação psicológica em razão de ter utilizado
mais de 600 (seiscentos) cartuchos no período de um ano.
Entrevistado pelo Times, o tenente-coronel que comandava o bata-
lhão responsável pela morte de Rodrigo admite que, em áreas difíceis, cos-
tumam contar com policiais implacáveis, que se sentem confortáveis em
ambientes perigosos, mesmo que já tenham sido acusados de homicídio ou
estejam sob suspeita de outros crimes.
Outro comentário feito pelo tenente-coronel e que revela o sadismo
daqueles que ocupam a linha de frente da incursão genocida é que, uma
vez suspensos, os policiais geralmente pedem para retornar ao trabalho,
porque “há um elemento viciante na descarga de adrenalina durante o
combate” (ANDREONI; LONDOÑO, 2020).
O 41° Batalhão de Polícia, no qual o estudo em análise foi efetuado, é
conhecido como “batalhão da morte”. Responsável por um território que
inclui cerca de 50 (cinquenta) favelas, é considerado um dos mais violentos
do Rio de Janeiro, desde a sua criação em 2010. Em 2015, em razão de
intenso monitoramento do uso de força letal efetuado pelo Ministério
Público, a taxa de homicídios caiu em quase 30% no batalhão. Entretanto,
em 2019, voltou a verificar aumentos alarmantes, curiosamente após a
ascensão de Witzel e Bolsonaro ao poder.
No que tange às investigações dos homicídios perpetrados pelos poli-
ciais, a promotora responsável pela força-tarefa, à época em que o estudo
foi realizado, aponta obstáculos como o orçamento apertado, que por ve-
zes inviabiliza a aquisição de materiais necessários às perícias, e ainda a
extraordinária dificuldade encontrada para denunciar os abusos, uma vez
que as vítimas temem sofrer retaliações, caso façam a denúncia.
108 | Daiane Ribeiro

Tombado aos 16 anos, Rodrigo tinha como responsável Yasmin, de


18, que, conforme aponta o Times, chegou ao local minutos depois. O
irmão estava sangrando dentro do veículo policial. Ao tentar se aproxi-
mar, relata a jovem, foi tratada com hostilidade: “Vai dizer que ele não era
bandido, que você não sabia?” (ANDREONI; LONDOÑO, 2020), teria
perguntado um dos policiais.
É sabido que há muito a política de combate a ilícitos tem sido utilizada
como aval para a incursão genocida. Há uma seletividade relacionada às
infrações que leva em conta a hierarquia social e é utilizada pelas agências
formais do Estado para criminalizar os sujeitos (FLAUZINA, 2017). Esses
sujeitos, “aviõezinhos a caminho do World Trade Center” (BENÉ, 2019),
embora não possuam importância frente ao empreendimento milionário
que o mercado de drogas representa, são discursivamente demonizados
e se tornam alvos do “narcogenocídio” (ALAGIA; BATISTA; SLOKAR;
ZAFFARONI, 2003).

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cenário atual reafirma que “a vida das pessoas negras consiste


numa estrutura de desvantagens que as põe em uma situação, destrutiva,
hostil e socialmente opressiva” (HAMILTON, 1995). O cessar-fogo par-
cial observado no início da pandemia, responsável por poupar, momenta-
neamente, algumas vidas negras, em muitos casos só modificou sua causa
mortis, já que, embora as/os brancas/os representem o maior número de
infectados, as/os negras/os são os que mais morrem, segundo dados do
Ministério da Saúde.
A retomada da letalidade com ainda mais força, após um pequeno
período de aparente latência, vem para demonstrar que o genocídio anti-
negro não cessa, ele apenas movimenta os peões naqueles momentos em
que estes se fazem mais necessários em ações que visam proteger a bran-
quitude que o sustenta. Voltam, porém, aos postos de costume, ainda mais
ferozes, ávidos por recuperar o tempo perdido.
Ao fim e ao cabo, em se tratando de vidas negras, nunca será apenas o
tiro disparado pelas agências repressivas, tampouco a impossibilidade de
respirar – seja causada pela síndrome respiratória aguda, seja pelo joelho
sobre o pescoço. Existe um legado de expropriação de longa data que dita
a cor da pobreza, define o não acesso a bens e serviços, orienta o controle
sobre os corpos e a desvalorização da vida.
Enegrecendo o Direito | 109

A pandemia é, mais do que nunca, sobre reafirmação de privilégios,


uma vez que um mesmo segmento, o branco, conjuga a possibilidade de se
prevenir e o direito de ficar doente, além de não ser o alvo preferencial das
agências repressivas. Enquanto isso, o contingente negro segue à própria
sorte, quase nunca pode ficar em casa e, quando pode, não está a salvo.
Da pobreza. Do vírus. Do tiro. Do desprezo que sucede a queda... Há um
revezamento de causas, mas a cor dos corpos que tombam permanece a
mesma.

REFERÊNCIAS

ALAGIA, Alejandro; BATISTA, Nilo; SLOKAR, Alejandro;


ZAFFARONI, Eugenio Raul. Direito Penal Brasileiro: primeiro
volume, Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
ANDREONI, Manuela; LONDOÑO, Ernesto. ‘Licença para matar’: por
trás do ano recorde de homicídios cometidos pela polícia no Rio. 18
maio 2020. The New York Times. Disponível em: https://www.
nytimes.com/pt/2020/05/18/world/americas/rio-abuso-policial.
html. Acesso em: jun. 2020.
BENÉ. [Compositor e intérprete]: Djonga. Belo Horizonte: Ceia, 2019.
Disponível em: https://www.letras.mus.br/djonga/bene/. Acesso em:
02 jun. 2020.
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o
sistema penal e o projeto genocida do estado brasileiro. 2. ed.
Brasília: Brado Negro, 2017.
HAMILTON, Ruth. Simms. Conceptualizing the African Diaspora. In:
MOORE, Carlos; MOORE, Shawna; SANDERS, Tanya R. African
Presence inThe Americas. Trenton: Africa World Press, 1995
MAZZA, Luigi; ROSSI, Amanda. A polícia que mais mata. Disponível
em: https://piaui.folha.uol.com.br/policia-que-mais-mata/. Acesso
em: 30 abr. 2020.
REDE DE OBSERVATÓRIOS DA SEGURANÇA. Operações policiais
em meio à pandemia: primeiros efeitos das medidas de combate
ao coronavírus na ação policial. 2020. Disponível em: http://
observatorioseguranca.com.br/wp-content/uploads/2020/04/
Operac%CC%A7o%CC%83es-policiais-em-meio-a%CC%80-
pandemia_-primeiros-efeitos-das-medidas-de-combate-ao-
110 | Daiane Ribeiro

coronavi%CC%81rus-na-ac%CC%A7a%CC%83o-policial-1.pdf.
Acesso em 22 de maio de 2020.
REDE DE OBSERVATÓRIOS DA SEGURANÇA. Operações policiais
no RJ durante a pandemia: frequentes e ainda mais letais. 2020.
Disponível em: http://observatorioseguranca.com.br/wp-content/
uploads/2020/05/Operac%CC%A7o%CC%83es-policiais-no-RJ-
durante-a-pandemia.pdf. Acesso em: 02 jun. 2020.
VALOR ONLINE. Coronavírus é mais letal entre negros no Brasil,
apontam dados do Ministério da Saúde. 11 abr. 2020. Portal G1.
Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/
noticia/2020/04/11/coronavirus-e-mais-letal-entre-negros-no-
brasil-apontam-dados-do-ministerio-da-saude.ghtml. Acesso em: 01
maio 2020.
VARGAS, Joao H. Costa. A Diáspora Negra Como Genocídio: Brasil,
Estados Unidos Ou Uma Geografia Supranacional Da Morte E Suas
Alternativas. Revista da ABPN, v. 1, n. 2 – jul.-out. de 2010. 
6
“NOSSOS PASSOS VÊM DE LONGE”:48 OS DESAFIOS
DE UMA ADVOGADA NEGRA CANDOMBLECISTA NO
EXERCÍCIO DA PROFISSÃO

Camila Garcez Leal49

“Fragmentos. Pedaços de ideias, partes de


sensações, cortes de enredos. Só isso.
Tem verdade, tem demanda, tem excesso,
tem cor. Preta. É o que interessa”. (FLAUZINA, p. 10.).

Inicio este texto pedindo agô, palavra em yorubá que significa licen-
ça, permissão. Peço licença para falar em primeira pessoa com a força da
ancestralidade que carrego no orí (cabeça). Utilizando-me dos ensinamen-
tos ancestrais das ialodês e com o poder de Carla Akotirene, “proponho
cantiga decolonial por razões psíquicas, intelectuais, espirituais, em nome
d’águas atlânticas” (AKOTIRENE, 2019, p. 21).
Peço permissão a essa mesma ancestralidade para falar o pretuguês
ensinado por Lélia González (1982, p. 69-82), “marca de africanização
do português falado no Brasil”, e trazer à baila um conceito de advocacia
feito por uma mulher negra advogada que luta pelos seus objetivos e pelos
objetivos da sua comunidade.
Esta escrita não fala só sobre a minha dor. Na verdade, as dores da ne-
gritude são compartilhadas. As vivências são entrelaçadas, pois, uma vez
que “o racismo é a neurose cultural brasileira”, precisamos nos irmanar
(GONZÁLEZ, 1983, p. 224). Escrevo sobre o que nos interessa e procuro
trazer as pessoas à reflexão.
48  WERNECK, 2009.
49  Candomblecista. Advogada. Mestranda em Direito Público pelo Programa de Pós-
graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia. Membra da Comissão de
Combate à Intolerância Religiosa e da Comissão de Direito Criminal da OAB-BA.
111
112 | Camila Garcez Leal

Proponho que seja uma reflexão inquietante, porém interessante.


Digo isto porque, na condição de advogada e yàwó50, recém-iniciada no
candomblé, percebi que, no campo do Direito e no sistema de justiça como
um todo, há preconceito51 das pessoas ao cruzarem com praticantes de
religiões de matriz africana nos fóruns e nos órgãos públicos em geral.
Eu fui protagonista em episódios de racismo que testaram a minha
capacidade intelectual enquanto advogada e vítima dos olhares desconfia-
dos dos/das colegas advogados/as quando me apresentava nesses espaços
vestida de branco, com turbante na cabeça e minhas guias no pescoço.
“Pessoas negras estão sempre sendo julgadas a partir de estereótipos des-
critivos e prescritivos e esse fato determina nossa experiência social em
praticamente todas as dimensões das nossas vidas”, versa Adilson Morei-
ra (2019, p. 87).
A despeito do pensamento hegemônico da branquitude selecionar o
ser humano pelo estereótipo, a humanidade do corpo negro para outro cor-
po negro está em todos os sentidos. Nas palavras de Akotirene, “Orixá
ilustra bem nossa base ética civilizacional: o corpo se relaciona com alte-
ridade, baseado na memória, informação ancestral do espírito, e não pela
marcação morfofisiológica, anatômica, fenotípica” (AKOTIRENE, 2019,
p. 25).
Apesar de viver sob a égide da Constituição Federal de 1988, ape-
lidada cidadã, bem como no Estado Democrático de Direito, os olhares
demonstravam que eles/elas ainda tinham muito o que aprender sobre o
respeito à diversidade e à laicidade desse mesmo Estado Democrático. Se,
teoricamente, não há uma religião patrocinada pelo Estado, o respeito às
diferenças de liturgia deveria ser parte da luta de toda a sociedade.
O artigo 5º da Constituição Federal (BRASIL, 1988), mais precisa-
mente o inciso VI, versa que é inviolável a liberdade de consciência e de
crença, bem como o inciso VIII reza que ninguém será privado de direitos
por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, re-
sumidamente. Ou seja, o direito é constitucionalmente assegurado, mas
violações diuturnas desses mesmos direitos seguem fazendo vítimas, físi-
ca e psicologicamente.

50  Yàwó é a/o filha/filho de santo que já passou pela iniciação religiosa.
51  De acordo com Silvio Almeida (2019, p. 32), o preconceito é o juízo baseado em
estereótipos acerca de indivíduos que pertençam a um determinado grupo racializado, e
que pode ou não resultar em práticas discriminatórias.
Enegrecendo o Direito | 113

A luta do povo de santo por professar a fé de forma livre e igual é ár-


dua e contínua. Makota Valdina52 costumava dizer: “eu não quero que me
tolerem, eu quero que respeitem o meu direito de ter uma crença.”
O candomblé, religião afro-brasileira, foi o suporte para os ances-
trais, sequestrados e trazidos para o Brasil como escravizados. Ao passo
em que os/as negros/as se opunham à estrutura escravocrata, principal-
mente nas décadas finais do regime escravista, seja comprando a liberda-
de dos irmãos e irmãs, seja fugindo para quilombos, implantando outra
estrutura de vida (MUNANGA; GOMES, 2016, p. 70-72), o governo se
encarregava de promulgar leis que ratificassem o status do negro como
propriedade, dentro de um movimento de pseudolibertação.
Nas palavras de Abdias Nascimento (1978, p. 125), “constituindo a
fonte e a principal trincheira da resistência cultural do africano, bem como
o ventre gerador da arte afro-brasileira, o candomblé teve de procurar
refúgio em lugares ocultos, de difícil acesso, a fim de suavizar sua longa
história de sofrimentos às mãos da polícia”.
Percebam que mesmo tendo sido editado pelo presidente Getúlio Var-
gas, o Decreto-lei nº 1202 de 08 de abril de 1939,53 que vedava aos Estados
e municípios embargarem o exercício de cultos religiosos, os terreiros
necessitavam de alvará de funcionamento, expedido pela Delegacia Espe-
cial de Jogos e Costumes, órgão subordinado à Secretaria de Segurança
Pública, ou seja, continuavam sujeitos aos controles das autoridades. E
esse controle nunca foi instrumento desconhecido pela população negra.
O racismo é projeto político. Durante muitos anos, os terreiros de
candomblé eram as únicas instituições religiosas que precisavam de regis-
tro obrigatório na polícia para funcionamento.
Na Bahia, o governador Roberto Figueira Santos editou o Decreto nº
25.095,54 de 15 de janeiro de 1976, que veio a revogar essa exigência de

52  Educadora, líder religiosa brasileira, militante da liberdade religiosa, porta-voz das
religiões de matriz africana, bem como dos direitos das mulheres e da população negra.
Faleceu em 19 de março de 2019.
53  “Art. 33. É vedado ao Estado e ao Município: 3 - Estabelecer, subvencionar ou
embargar o exercício de cultos religiosos” (BRASIL. 1939).
54  “O GOVERNADOR DO ESTADO DA BAHIA no uso de suas atribuições e
CONSIDERANDO que na expressão “sociedades afro-brasileiras para atos folclóricos”,
a que se refere a Tabela I, anexa à Lei nº 3.097, de 29 de Dezembro de 1972, se tem
identificado para fins de registro e controle nela previstos as entidades que exercitam o
culto afro-brasileiro, como forma exterior da religião que professam; CONSIDERANDO
que semelhante entendimento se não ajusta no sentido e alcance da lei, sendo antes
antagônico aos princípios constitucional que assegura a liberdade do exercício do culto;
114 | Camila Garcez Leal

registro, pagamento de taxa ou obtenção de licença junto a autoridades


policiais no Estado.
Até os dias atuais, as religiões de matriz africana são eminentemente
compostas por pessoas negras, eis o motivo para ser tão discriminada. Na
qualidade de religiosa do candomblé, muitos são os impedimentos com os
quais me deparo, frutos do racismo que é fundante em nossa sociedade.
A ideia de hierarquização das raças foi usada como mote para a exclu-
são do negro na sociedade, e a desumanização da cultura negra, praticada
outrora, é perpetrada ainda hoje e perpassa pela imposição de uma fé que
seja cristã e europeia em sua essência.
Vários são os exemplos do racismo estrutural a que praticantes das
religiões afro-brasileiras são submetidos/as. Com essa narrativa, julgo
válido ilustrar o quanto temos disputado lugar com o desrespeito e o ce-
ticismo. Sueli Carneiro, em artigo denominado “Odô Iya”, discorre sobre
dois manifestos publicados pela igreja metodista e seus bispos sobre a má
qualidade dos programas de televisão. Até aqui, tudo em ordem.
Entretanto, em certo momento, os manifestos exibem o caráter racis-
ta. Trago esse texto, publicado em 2001, uma vez que cumpre fielmente
55

CONSIDERANDO QUE É DEVER do poder público garantir aos integrantes da


comunhão política que dirige o livre exercício do culto de cada um, abstendo quaisquer
embaraços que o dificultam ou impeçam; CONSIDERANDO AFINAL que, se assim lhe
incumbe proceder para com todas as crenças e confissões religiosas, justo não seria que
também não fizesse em relação às sociedades do culto afro-brasileiro, que de idêntico
modo têm a liberdade de regerem-se de acordo com a sua fé. DECRETA: Art. 1º. Não
se incluem, na previsão do item 27 da Tabela nº I, anexa à Lei 3.097, de 29 de dezembro
de 1972, as sociedades que pratiquem o culto afro-brasileiro, como forma exterior da
religião que professam, que assim podem exercitar o seu culto independentemente de
registro, pagamento de taxa ou obtenção de licença junto a autoridades policiais. Art. 2º
Este Decreto entrará em vigor na data da sua publicação, revogadas as disposições em
contrário” (NASCIMENTO, 1978, p. 127-128).
55  “Agora, em um gesto de desprezo ao seu público evangélico (ou simplesmente apostando
na indiferença dele!), a TV Globo promove abertamente o candomblé na novela Porto dos
milagres, com direito a música-tema dedicada a Iemanjá, na voz de Gal Costa. E lá estão
profissionalismo, recursos tecnológicos, muito dinheiro e artistas queridos pelo público,
como Marcos Palmeira, Letícia Sabatela, Flávia Alessandra e Antônio Fagundes, dando
vida, conteúdos e realismo à história [...]. E, aparentemente, a maioria dos atuais autores
de novelas poderosos da TV Globo é agnóstica, esotérica ou do candomblé”. Dizem os
bispos: “Agora, em duas novelas novas, há quebra dos valores morais e da prática de
uma filosofia de vida que não combina com a formação cristã do povo brasileiro, sendo
vítima a religião. De um lado, uma das novelas exalta o candomblé e o culto a Iemanjá.
A outra promove o esoterismo. Como os atores que as representam são queridos pela
população, essas novelas acabam influenciando milhares de pessoas, particularmente
os fãs adolescentes, a aceitar uma espiritualidade mágica que se opõe radicalmente ao
Enegrecendo o Direito | 115

o papel de demonstrar a maneira pela qual a intolerância religiosa, ainda


hoje, em 2020, molda os pensamentos e as ações.
O texto tem quase 20 anos e acredito que será utilizado por muito
tempo. Entendam o meu realismo que, para alguns, pode ser pessimismo,
mas o racismo tem atualizado as suas formas. Seja como for, filio-me à
posição de Sueli Carneiro (2011, p. 185-186), para quem:

Além da intolerância às formas não cristãs de religiosidade e espirituali-


dade, chocam a arrogância e o autoritarismo de quem se sente imbuído do
direito de nomear, classificar, catalogar e definir o que seja ou não religião
e espiritualidade. A mera pretensão e a prepotência que lhe acompanham
depõe contra a legitimidade religiosa e espiritual de quem assim procede.
Na tradição afro-brasileira, Iemanjá tem sob seu domínio as forças do in-
consciente. [...] Estão sob sua guarda as forças irracionais do psiquismo
humano, que recalcadas produzem comportamentos antissociais ou into-
lerantes.

Os terreiros de candomblés, bem como as/os suas/seus adeptas/os,


sofrem perseguição de grupos evangélicos, sendo vítimas contumazes do
crime de racismo religioso. A menina de 11 anos leva pedrada na cabeça,56
na saída de culto de candomblé na cidade do Rio de Janeiro, jogam sal na
pedra de Xangô,57 o monumento em homenagem a Mãe Stella de Oxóssi
é alvo de vandalismo.58

Evangelho de Jesus, vendendo, ou iludindo, o povo brasileiro ao considerar o candomblé


como religião e o esoterismo como espiritualidade” (CARNEIRO, 2011, p. 184-185).
56  Kailane Campos foi agredida no ano de 2015 por dois homens. “O que chamou a
atenção foi que eles começaram a levantar a Bíblia e a chamar todo mundo de ‘diabo’, ‘vai para
o inferno’, ‘Jesus está voltando’, afirmou a avó da menina, Káthia Marinho. Na delegacia, o caso
foi registrado como preconceito de raça, cor, etnia ou religião e também como lesão corporal,
provocada por pedrada. Os agressores fugiram num ônibus que passava pela Avenida Meriti,
no mesmo bairro. A polícia, agora, busca imagens das câmeras de segurança do veículo para
tentar identificar os dois homens. A avó da criança lançou uma campanha na internet e tirou
fotos segurando um cartaz com as frases: ‘Eu visto branco, branco da paz. Sou do candomblé,
e você?’. A campanha recebeu o apoio de amigos e pessoas que defendem a liberdade religiosa.”
(G1, 2015).
57  “Localizada na área do antigo Quilombo Buraco do Tatu na Av. Assis Valente, a
Pedra de Xangô é alvo de constante depredação. A Pedra é um marco de resistência das
religiões de matriz africana” (FALA CAJAZEIRAS, 2019).
58  “O monumento em homenagem à Iyalorixá do Ilê Axé Opó Afonjá, Mãe Stella de
Oxóssi, foi alvo de vandalismo. Além de pichações, a placa com a marca da prefeitura foi
arrancada” (BRITO, 2019).
116 | Camila Garcez Leal

Nós, adeptos e adeptas da religião, somos recorrentemente vilipen-


diados nos espaços públicos e privados. Paga-se um preço muito alto pela
demonização imputada à fé de matriz africana. O terreiro de candomblé do
qual sou filha de santo está localizado na cidade de Dias D’Ávila, Região
Metropolitana de Salvador-Bahia, e foi alvo de criminosos por 10 (dez)
vezes consecutivas no período de 1 (um) ano.
As ocorrências foram formalizadas por meio de notícias-crime na De-
legacia da cidade, bem como houve notícia do fato ao Ministério Público.
Passado algum tempo, recebi a resposta por e-mail na qual a titular da 3ª
Promotoria de Justiça da cidade indeferia a instauração da notícia de fato,
sob a alegação de que “não havia relação do fato com intolerância religio-
sa, tampouco restava configurada a prática de algum dos crimes previstos
na Lei n. 7716/89”,59 pelo que procedeu ao arquivamento do caso.
Fico pensando sobre as nuances que envolvem esse tipo de conduta
dos órgãos do sistema de justiça. Na delegacia, nunca fomos bem recebi-
dos, o olhar que lançam sobre o corpo negro é o olhar da desconfiança,
do inimigo. Esses locais se tornam espaços de hostilidade e, por isso, os
dados sobre os eventos criminosos contam com uma cifra oculta que salta
aos olhos.
“Apesar de tanto não, tanta dor que nos invade” (ALEGRIA DA CI-
DADE, 2019), não podemos perder a fé nas instâncias formais de poder.
As vítimas muitas vezes passam por um processo re-vitimizador perpe-
trado pelo sistema, mas precisamos adentrar e cobrar posicionamentos
nesses espaços. O descaso e a falta de acolhimento institucionais não po-
dem ser ensejadores das subnotificações.60
A grande maioria dos/as servidores/as públicos do sistema de justiça
não tem o cuidado mínimo no trato com a tipificação desses crimes. Há
certa resistência nos locais que deveriam fazer as vezes do acolhimento e
da proteção. Assisto atônita ao antagonismo da comoção social quando se
trata de religiões cristãs e da apatia quando a bola da vez são as religiões

59  Define os crimes resultantes de preconceito de raça e de cor. “Art. 1º: Serão punidos,
na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor,
etnia, religião ou procedência nacional”.  
60  Segue reportagem que aponta provável subnotificação nos casos de intolerância
religiosa: CANÔNICO, Marco Aurélio; CAPETTI, Pedro. Denúncias de ataques a
religiões de matriz africana sobem 47% no país. O Globo, 26 jan. 2019. Disponível
em: https://oglobo.globo.com/sociedade/denuncias-de-ataques-religioes-de-matriz-
africana-sobem-47-no-pais-23400711. Acesso em: 05 jan. 2020.
Enegrecendo o Direito | 117

de matriz africana, o que assegura a manutenção de hierarquias sociais e


raciais.
Em uma das vezes em que a minha roça de candomblé sofreu depre-
dação, os policiais chegaram para atender a ocorrência e, logo após eu me
apresentar como advogada, um dos integrantes da guarnição fez a seguin-
te indagação: “Vocês aqui estão dando comida direito a Exú?”61 Essa fala
reforçou a ideia de que, ao fim e ao cabo, estamos por nossa própria conta
e o enfrentamento passa pela solidão e pela necessidade de provar o valor
da religião.
Naquele espaço sagrado, eu, mulher negra, filha de santo, advogada,
ouvi de um representante do Estado que o babalorixá não estava exer-
cendo bem o seu papel de “alimentar” as divindades do terreiro e, por
“castigo”, estávamos vulneráveis. A falha do Estado em prevenir delitos e
preservar a ordem pública não podia ser contestada àquela altura, quando
o espaço religioso já contava com oito invasões.
Nas palavras de Silvio Almeida, “em uma sociedade em que o racismo
está presente na vida cotidiana, as instituições que não tratarem de ma-
neira ativa e como um problema a desigualdade racial irão facilmente re-
produzir as práticas racistas já tidas como ‘normais’ em toda a sociedade”
(ALMEIDA, 2019, p. 48).
O Brasil é um país de forte passado colonial e atual passado escrava-
gista; portanto, o racismo é o modus operandi estruturador da nossa socie-
dade. “Se há instituições cujos padrões de funcionamento redundam em
regras que privilegiem determinados grupos raciais, é porque o racismo é
parte da ordem social” (ALMEIDA, 2019, p. 47).
É uma falácia dizer que atualmente o país vive tempos de exceção,
porque, para candomblecistas, a exceção sempre foi a regra. Não se vive
tempos difíceis, agora, o racismo não é algo novo, o racismo é algo que
está sendo visibilizado e escancarado.
Há muito trabalho a ser feito no que tange o respeito às religiões de
matriz africana no Brasil. Não desistirei de lutar, pois os nossos passos
vêm de longe. Utilizo-me, então, de Patrícia Hill Collins para dizer que
“cada mulher negra toca a outra como parte de uma comunidade que cura
a que sente a dor, mas só depois que esta deu o primeiro passo – o desejo
de ser curada, de seguir o caminho em busca da voz do empoderamento”
(COLLINS, 2019, p. 213).

61  Exú é o orixá mensageiro entre o orun (mundo espiritual) e o aiyê (terra), é o guardião
dos caminhos.
118 | Camila Garcez Leal

Este último parágrafo não será utilizado como conclusão do meu


pensamento. Espero que este texto, fruto de sementes lançadas por mu-
lheres negras ancestrais, seja flecha atirada por quem foi ensinada a nunca
ser caça. “Meu tempo é agora”!62

REFERÊNCIAS

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Pólen, 2019.
ALEGRIA DA CIDADE. [Composição e interpretação de]: Lazzo
Matumbi. Lazzo Matumbi, vol. 1, CD, 2019.
ALMEIDA, Sílvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen,
2019.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa
do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. Decreto-lei nº 1.202, de 08 de abril de 1939. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/
Del1202.htm. Acesso em: 04 abr. 2020
BRASIL. Estatuto da advocacia e Ordem dos Advogados do Brasil
(1994). Estatuto da advocacia e da OAB e legislação complementar.
Versão eletrônica atualizada. Brasília: OAB, Conselho Federal, 2019.
BRITO, Juliana. Monumento a Mãe Stella de Oxossi é alvo de
vandalismo. Mídia 4p, 19 set. 2019. Disponível em: https://midia4p.
cartacapital.com.br/monumento-a-mae-stella-de-oxossi-e-alvo-de-
vandalismo/. Acesso em: 15 jan. 2020
CANÔNICO, Marco Aurélio; CAPETTI, Pedro. Denúncias de ataques
a religiões de matriz africana sobem 47% no país. O Globo, 26
jan. 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/
denuncias-de-ataques-religioes-de-matriz-africana-sobem-47-no-
pais-23400711. Acesso em: 05 jan. 2020.
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São
Paulo: Selo Negro, 2011
COLLINS, Patrícia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento,
consciência e a política do empoderamento. Tradução Jamille
Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2019.

62  Frase da Yalorixá Mãe Stella de Oxóssi do Terreiro Ilê Asé Opô Afonjá, falecida em
27 de dezembro de 2018 e que dá título ao seu livro mais famoso – Meu tempo é agora,
1993.
Enegrecendo o Direito | 119

FALA CAJAZEIRAS. Intolerância religiosa: Pedra de Xangô é alvo


de vandalismo. 2019. Disponível em http://falacajazeiras.com.br/
intolerancia-religiosa-pedra-de-xango-e-alvo-de-vandalismo/. Acesso
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FLAUZINA. Ana Luiza Pinheiro. Utopias de nós desenhadas a sós.
Brasília: Brado Negro, 2015, p. 10.
G1. Menina vítima de intolerância religiosa diz que vai ser difícil esquecer
pedrada. 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/
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GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade.
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WERNECK, Jurema. Nossos passos vêm de longe! Movimentos
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Mouvements de femmes et féminismes anticoloniaux [en línea].
Genève: Graduate Institute Publications, 2009.
7
SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL E A QUESTÃO
RACIAL: CAMINHOS PARA A OCUPAÇÃO DE PESSOAS
NEGRAS NOS ESPAÇOS DE PODER

Jonata Wiliam Sousa da Silva63

“Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes


Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes
Que nem devia tá aqui
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nós?
Alvos passeando por aí
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Se isso é sobre vivência, me resumir à sobrevivência
É roubar o pouco de bom que vivi
Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Achar que essas mazelas me definem é o pior dos
crimes
É dar o troféu “pro” nosso algoz e fazer “nóis” sumir.”
(AMARELO, 2019).

À guisa de introdução, cumpre trazer à memória o fato de que em 520


(quinhentos e vinte) anos de história (contados a partir da colonização
portuguesa em 1500), o Brasil foi por 322 (trezentos e vinte e dois) anos
uma colônia da Coroa Lusitana e se constituiu como República Federativa
somente 67 (sessenta e sete) anos após sua independência.

63  Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em


Ciências Criminais pela Universidade Católica do Salvador. Bacharel em Direito pela
mesma instituição. Membro da Comissão Especial de Sistema Prisional e Segurança
Pública, e de Direito Criminal e de Direito Militar da OAB-BA. Associado ao Instituto
Baiano de Direito Processual Penal. Advogado criminalista. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/0568256907374105. E-mail: contato@jonatawiliam.adv.br.
121
122 | Jonata Wiliam Sousa da Silva

Cumpre ressaltar que, entre o período de Brasil Colônia e Brasil Im-


pério, vigorou durante 358 (trezentos e cinquenta e oito) anos um regime
escravocrata no Brasil (a contar da chegada do primeiro navio negreiro
no Brasil, em 1530, até a abolição que deu fim à escravidão formal, em
1888), estruturando a sociedade e a economia através do tráfico maciço
de pessoas sequestradas do continente africano e aqui escravizadas, sendo
o Brasil o último país a abolir a escravidão na América, um ano antes do
golpe militar que proclamou a República. Portanto, a rigor, temos o Brasil
como um país fundado e desenvolvido em base escravocrata e com menos
de 200 (duzentos) anos de uma democracia norteada por princípios de
liberdade e igualdade.
Essa contextualização histórica se faz absolutamente necessária, por-
quanto a abolição da escravatura no Brasil veio completamente desacom-
panhada de políticas de inserção e integração das pessoas negras escravi-
zadas no contexto social, relegando-as ao desamparo e à marginalidade.
Desde então, o sistema de justiça criminal e as forças de segurança públi-
ca passaram a atuar ostensivamente para reprimir a presença dos corpos
negros nos centros urbanos, atuação essa que ao longo do tempo passou
por diversas transformações e muita sofisticação na forma de execução. E
perdura até os dias atuais.
É nesse contexto que se evidencia premente uma discussão acerca das
questões raciais no sistema de justiça criminal e a participação de pessoas
negras nesses espaços, abrangendo o sistema de justiça em sentindo
amplo, desde os espaços institucionais públicos e privados, tais como o
Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Ordem dos
Advogados do Brasil, até os espaços de produção científica, que produzem
e legitimam os saberes teóricos aplicados na prática judicial.
Partiremos, portanto, da discussão das matrizes do sistema proces-
sual penal brasileiro. Abordaremos a seletividade desse sistema e o en-
carceramento em massa que incide, não por acaso com mais força, sobre a
população negra, bem como o silenciamento e a marginalização das pes-
soas negras nos espaços de poder e na academia, para, por fim, discorrer
acerca da importância do acesso de pessoas negras a esses espaços, para
a promoção efetiva de ações afirmativas e a reforma do sistema de justiça
criminal, a fim de que, de fato, haja uma ruptura do paradigma racista
nesse sistema.
Enegrecendo o Direito | 123

1 DAS MATRIZES DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO


E O ENCARCERAMENTO EM MASSA DA POPULAÇÃO NEGRA

O nosso sistema de justiça e a sistemática processual penal, vigente


a partir de 1941, tem uma matriz autoritária e fascista, sendo que a nossa
legislação processual penal opera sob uma dialética inquisitória, carente
da reforma que jamais veio após a redemocratização do país em 1988. O
Brasil, um dos únicos países da América Latina que ainda não realizou a
transição do sistema processual penal inquisitorial para um sistema pe-
nal acusatório (GONZÁLEZ, 2018, p. 503-505), de modo a estabelecer
instrumentos concretos de freios e contrapesos aos arbítrios punitivistas,
limitou-se a trazer reformas pontuais e esparsas na legislação e nos pro-
cedimentos, sem verdadeiramente alterar a raiz dos problemas.
Uma consequência dessa cultura inquisitória no processo penal é a
ampla subjetividade dos atos decisórios judiciais através do livre conven-
cimento motivado e a utilização do direito penal como instrumento de
controle social, que reflete diretamente no fenômeno de encarceramento
em massa da população negra.
Nesse contexto, válido trazer dados do relatório do Levantamento
Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN) de 2016, que dá con-
ta de que a população carcerária saltou de 90 mil, em 1990, para 726,7
mil, em 2016, sendo 64% da população carcerária composta por pessoas
negras (BRASIL, 2016).
Para além do expressivo aumento da população carcerária em geral,
a taxa de negros comparada à taxa de brancos aprisionados apresentou
um crescimento exponencial nas últimas décadas. No Brasil, cabe apontar
que o aumento do controle punitivo, com ênfase na guerra às drogas e no
expansionismo penal, são causas diretas desse crescimento desenfreado,
decorrente também da globalização.
Um dos reflexos do fenômeno da irrefreável globalização é o alar-
gamento da criminalidade clássica e a introdução de uma nova criminali-
dade, calcada numa suposta prevenção de riscos sociais, incidindo sobre
novos bens jurídicos penais, relativizando garantias, institucionalizando a
segurança e desacreditando outras instâncias de proteção, conforme ex-
plica Almeida (2012, p. 216):

A globalização enseja um trânsito jurídico, político, cultural, econômico,


das comunicações, ampliando as relações e atividades sociais, atravessando
124 | Jonata Wiliam Sousa da Silva
regiões e fronteiras, intensificando as interações globais, e via regressa a
explosão de riscos e de toda sorte de problemas.

Como resultado do alargamento do conceito de criminalidade oriun-


do de uma tentativa de resposta e de repressão desse fenômeno, temos um
sistema de justiça criminal estruturalmente seletivo, marcado pela ineficá-
cia das suas finalidades que, de acordo com Zaffaroni (2003, p. 47), no que
se refere à criminalização secundária (a ação punitiva exercida por pes-
soas concretas), atinge apenas aqueles que têm baixas defesas perante o
poder punitivo e cujo ordenamento jurídico-penal busca se expandir cada
vez mais e em velocidade alarmante, visando a prevenir, coibir ou mesmo
“combater” maior número de riscos.
O que não muda nesse cenário é justamente o componente racial dessa
criminalização secundária, tendo em vista que quando falamos de pessoas
com baixas defesas perante o poder punitivo, estamos invariavelmente nos
referindo à população negra, que ainda hoje detém maior vulnerabilidade
política e socioeconômica na sociedade brasileira.
O Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking de países que mais en-
carceram no mundo, seguindo os passos dos Estados Unidos (BRASIL,
2016). Segundo Borges (2018, p. 83), o perfil da população selecionada
pelo sistema prisional brasileiro é bem específico: “56% dos acusados em
varas criminais são negros, enquanto em juizados especiais que analisam
casos menos graves, este número inverte tendo maioria branca (52,6%)”.
Por essa razão, Borges (2018, p. 9), em diálogo com Alexander, numa
postura crítica para além dos estudos criminológicos hegemônicos, as-
severa que “o caráter do sistema de justiça penal é outro. Não se trata
da prevenção e punição do crime, mas sim da gestão e do controle dos
despossuídos. […] encarceramento em massa tende a ser categorizado
como problema de justiça criminal oposto à justiça racial ou problemas de
direitos civis (ou crise)”.
Dessa maneira, entendendo o sistema de justiça criminal como um
instrumento de matriz inquisitorial que opera um sistema de controle e
opressão de corpos negros, faz-se mais d que necessário entender o pro-
cesso de formação dos estudos criminológicos que legitimam esse siste-
ma, analisar quem de fato compõe a classe de operadores do sistema e os
caminhos necessários à quebra dessa lógica.
Enegrecendo o Direito | 125

2 A QUESTÃO RACIAL E O PAPEL DOS OPERADORES DO SISTEMA


DE JUSTIÇA CRIMINAL

Se o encarceramento em massa dá a tônica no sistema de justiça cri-


minal, servindo de controle social dos corpos negros, temos o inverso
quando tratamos da composição nos espaços de poder desse sistema. Juí-
zes, promotores, defensores públicos e advogados são predominantemen-
te homens brancos. Inevitável trazer os dados compilados pelo Conselho
Nacional de Justiça acerca do perfil sociodemográfico do magistrado bra-
sileiro em 2018: a partir das informações prestadas por 11.348 magistra-
dos – 62,5% do total de 18.168 juízes, desembargadores e ministros de tri-
bunais superiores –, extrai-se que a maioria se declara branca (80,3%). Os
negros compõem 18,1% desse total (16,5% pardos e 1,6% pretos) (SOA-
RES, 2018). 
Já no Ministério Público, à míngua de um censo racial em escala na-
cional, valemo-nos do censo realizado pelo MP/SP no ano de 2015, que
certamente serve de paradigma para a análise proposta.
O levantamento das informações a respeito dos membros e servidores
foi obtido a partir das respostas de 82% que atenderam à solicitação de au-
todeclaração de raça/cor. Também foram elaborados relatórios a partir de
cruzamentos com outras informações cadastrais dos referidos membros.
De acordo com as informações obtidas, 93% dos membros do MP
de São Paulo se declararam brancos e 4% negros. Entre os servidores do
MP/SP, 80% se declararam brancos e 14% negros (BRASIL, 2015).
A Defensoria Pública não é diferente: de acordo com o IV Diagnós-
tico da Defensoria Pública no Brasil, 76,4% dos defensores públicos es-
taduais são brancos, enquanto 21,3% são negros (19,2% pardos e 2,2%
pretos) (BRASIL, 2015a, p. 20).
Por fim, mas não menos importante, temos ainda a advocacia, por se
tratar de atividade privada, mas com função social e de caráter indispen-
sável à administração da justiça por força constitucional. Uma pesquisa
realizada em 2018, pela ONG Centro de Estudos das Relações de Traba-
lho e Desigualdades (CEERT), em parceria com a Aliança Jurídica pela
Equidade Racial e com a Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, contou
com 3.624 profissionais de nove dos maiores escritórios brasileiros e mos-
trou que só 2% dos advogados declararam ser negros (BRANCO, 2019).
Percebe-se, então, que o sistema de justiça criminal é dominado por
pessoas brancas, a mesma realidade que é encontrada nos espaços acadê-
micos, bem como no Poder Legislativo. Logo, temos uma realidade em que
126 | Jonata Wiliam Sousa da Silva

pessoas brancas produzem as leis vigentes, analisam-nas e produzem as


críticas, integrando um ambiente hegemônico e pouco aberto a reformas.
Os impactos dessa hegemonia da branquitude no sistema de justiça
criminal se relacionam diretamente com a predominância da população
negra no sistema prisional. Afinal, de acordo com Maria Aparecida “Cida”
Bento (2002, p. 159-160):

A semelhança entre as pessoas pode desenvolver condutas que não pare-


çam, à primeira vista, como defensivas. O grupo torna-se objeto de todos
os investimentos: narcisismo individual ou narcisismo de grupo coinci-
dem. Conflitos intra-individuais ou interindividuais não são aceitos ou não
se tornam possíveis. [...] a identidade racial é profundamente ideológica,
porque auxilia a identificação de quem são o “eles” e quem são o “nós”.
Sobre o “eles”, ficará depositado o pior do “nós”. E esse pior do “nós” jus-
tificará a rejeição, a preterição, a exclusão.

Logo, a hegemonia branca nas funções pública e privada que promo-


vem a “justiça” resulta em opressão e controle social da população negra,
notadamente através do sistema de justiça criminal e do uso ostensivo das
forças de segurança pública, de modo que se faz mais do que necessário
pensar em ações concretas de acesso de pessoas negras a esses espaços,
para que haja uma efetiva mudança de status quo e uma necessária reestru-
turação do sistema. Afinal de contas, Bento (2002, p. 158-159) diagnostica
há muito tempo:

[...] a ausência de diversidade, leva à deteriorização da reflexão e da in-


ventividade e, inconscientemente, causa a falta de inovação e a utilização
de uma língua inflexível e primitiva. Assim, a uniformidade e homogenei-
dade nos lugares de comando da sociedade não se afiguram como bons
sintomas.”

Para além das instituições que atuam diretamente no sistema de jus-


tiça, contuto, também é importante analisar o papel dos espaços de produ-
ção intelectual acadêmica na perpetuação e legitimação dessa hegemonia
branca, como discutiremos no tópico seguinte.

2.1 A ACADEMIA E A INVISIBILIZAÇÃO DAS QUESTÕES


RACIAIS NO SISTEMA DE JUSTIÇA

Neste ponto, centraremos os debates no estudo da criminologia e dos


processos de marginalização e invisibilização das discussões raciais nos
Enegrecendo o Direito | 127

espaços acadêmicos, bem como os impactos do pensamento criminológico


em articulação com o projeto de encarceramento e genocídio da população
negra.
Felipe Freitas (2016) explica que o advento dos estudos de crimino-
logia no Brasil, a partir da década de 1970, culminou na concentração
em investigações acerca da seletividade do sistema de justiça criminal e
“organizou uma formulação teórica, que, ao lado de desnudar a fragilidade
e o cinismo do discurso penal moderno, também logrou colaborar com a
denúncia sobre as violações de direitos humanos, as condições desumanas
de encarceramento no Brasil e o caráter de extermínio largamente verifi-
cado na concepção e no funcionamento das forças policiais”. Cita ainda a
constatação de Nilo Batista (apud FREITAS, 2016, p. 491):

Inequivocamente, a criminologia contribuiu para o adensamento da crítica


ao sistema punitivo e para o aprimoramento das denúncias quanto ao cará-
ter autoritário e violento das instituições dedicadas ao controle penal. Tais
denúncias, feitas majoritariamente a partir de um enfoque marxista, foram
capazes, ainda, de apontar que, além de pobres, são negras as vítimas pre-
ferenciais do sistema punitivo ou, ainda, que estas estruturas deitam suas
raízes no, ainda recente, passado escravista brasileiro.

Todavia, essa constatação não foi o suficiente, como denuncia Felipe


Freitas, para que fosse promovida uma discussão consistente acerca das
questões raciais no sistema de justiça e mesmo na sociedade brasileira.
Assim, afirma que:

Mesmo que a criminologia estivesse denunciando os efeitos do racis-


mo, ela jamais se interessou em investigar o racismo como parte da
estrutura e da própria lógica de funcionamento do sistema, daí o re-
chaço à ideia de genocídio e a busca por caminhos “menos radicais” de
aproximação da temática racial, caminhos que indicassem os sintomas
do problema, mas que evitassem o racismo como centro do debate.”
(FREITAS, 2016, p. 491)

A realidade que se mostra nos ambientes acadêmicos, mesmo nos


espaços de pensamento crítico, que reconhecem as falhas do sistema de
justiça e a seletividade que o permeia, é que a crítica só é validada quando
proposta por pessoas brancas e desde que não envolva a centralização dos
espaços raciais. Esse fenômeno é também explicado pelo professor Adil-
son Moreira (2019, p. 217):
128 | Jonata Wiliam Sousa da Silva
Esse cinismo acadêmico determina quem pode falar sobre racismo e a ideia
é clara: só pessoas brancas podem se pronunciar sobre o tema, só pessoas
brancas podem fazer uma análise objetiva dele. Discussões sobre ques-
tões raciais e, principalmente, sobre políticas públicas, precisam estar sob
a tutela branca para que possam ser legitimadas. Esse argumento é parte
de um projeto de dominação que tem como principal objetivo promover o
silenciamento.

Vê-se, portanto, que embora produza pensamento crítico acerca das


graves falhas do sistema judicial e mesmo sobre os impactos dessas falhas
na população negra, a academia é mais um dos espaços de marginalização
e silenciamento do pensamento negro, sendo mais um espaço de poder
negado à comunidade negra, funcionando como um braço operacional do
sistema, ajudando a legitimar os discursos hegemônicos e a sofisticar as
formas de opressão.

3 CAMINHOS PARA A OCUPAÇÃO DE PESSOAS NEGRAS


NOS ESPAÇOS DE PODER

Após estas breves considerações acerca dos principais problemas do


sistema de justiça criminal, seja na clara seletividade e virulência no con-
trole de corpos negros, seja na hegemonia e controle dos espaços políti-
cos, do funcionalismo público e do espaço acadêmico, uma reestruturação
não passa por outro caminho que não o da ocupação de pessoas negras
nesses espaços, promovendo a pluralidade e a diversidade, concretizando,
de fato, uma democracia, e mudando a forma de atuação das instituições.
Nesse sentido, oportuno trazer as lições de Djamila Ribeiro (2019, p.
63) sobre a importância desta representação:

Uma simples pergunta que nos ajuda a refletir é: quantas autoras e autores
negros o leitor e a leitora, que cursaram a faculdade, leram ou tiveram
acesso durante o período de graduação? Quantas professoras e professores
negros tiveram? Quantos jornalistas negros, de ambos os sexos, existem
nas principais redações do país ou mesmo nas mídias ditas alternativas?

Essas experiências comuns resultantes do lugar social que ocupam impe-


dem que a população negra acesse certos espaços. [...] não poder estar de
forma justa nas universidades, meios de comunicação, política institucio-
nal, por exemplo, impossibilita as vozes dos indivíduos desses grupos se-
jam catalogadas, ouvidas, inclusive, até em relação a quem tem mais acesso
à internet.
Enegrecendo o Direito | 129

E na mesma esfera intelectiva, as contribuições do professor Adilson


Moreira (2019, p. 223):

A discussão sobre justiça social, tema central da Hermenêutica Negra,


precisa ser situada dentro das discussões sobre protagonismo e empode-
ramento. Um jurista que pensa como um negro está ciente de que a inter-
pretação da igualdade tem uma função essencial: a promoção da transfor-
mação social. Ela só pode ocorrer na medida em que pessoas negras têm
a chance de participar dos processos decisórios, articulando demandas de
direitos que expressam a experiência de subordinação negra.

Depreende-se, então, que os caminhos para uma necessária ocupa-


ção de pessoas negras nos espaços de poder passam, primeiramente, pela
promoção de políticas afirmativas por parte do Estado, mas também pela
articulação e protagonismo dos movimentos negros, pela reconstrução
dos saberes acadêmicos com franqueamento de voz e vez aos intelectuais
negros, além do incentivo à pluralidade nos espaços sociais.
As políticas afirmativas trazidas, e aqui destaco a Lei n. 12.711/2012
(reserva de vagas para concorrência entre negros e outras minorias so-
ciais no ensino técnico e superior público federal) e a Lei n. 12.990/2014
(reserva de vagas para concorrência entre negros e outras minorias so-
ciais nos concursos públicos federais), que têm fundamental importância
como passo adiante nesse longo caminho em busca de igualdade e promo-
ção da diversidade nos espaços públicos. Essas iniciativas, contudo, devem
ser acompanhadas de instrumentos que permitam garantir sua efetivida-
de, tais quais ações de combate às fraudes nos processos seletivos, realiza-
ção de censos periódicos destacando a identificação racial nas instituições
públicas e o acompanhamento do preenchimento das vagas destinadas aos
grupos étnico-raciais nessas instituições, para que se constate a efetivida-
de das ações afirmativas.
Mas não só isso. É também necessário o comprometimento das pes-
soas brancas, para que de fato entendam as dinâmicas de opressão e se
aliem às pessoas negras no combate ao racismo. É preciso também que
as organizações privadas que tanto se beneficiam dessa estrutura racista
promovam ações de inclusão de pessoas negras, invistam e financiem o
trabalho de pessoas negras. E que todos deem visibilidade a essas pessoas
e às questões raciais, afinal, como revela a frase icônica de Ângela Davis
(apud MUNIZ, 2019), “Numa sociedade racista não basta não ser racista.
É necessário ser antirracista”, sendo que essa postura deve ser de auxílio,
130 | Jonata Wiliam Sousa da Silva

propiciando o protagonismo das pessoas negras em ações efetivas a partir


do seu local de privilégio, construindo-se, assim, uma sociedade efetiva-
mente antirracista que beneficiará a todos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As dinâmicas excludentes que se perpetuam e se reproduzem desde a


abolição da escravatura, no Brasil, fazem-se ainda solidamente presentes,
alterando tão somente o modo de incidência e os requintes de sofisticação.
O sistema de justiça criminal é um braço operacional nesse arranjo volta-
do a controlar socialmente os corpos negros.
Assim sendo, faz-se premente que pensemos uma reestruturação do
sistema de justiça criminal, a possibilidade de uma democratização do
processo penal e a modificação das dinâmicas que impedem o acesso das
pessoas negras a espaços de poder e articulação.
A transformação necessária, nessa configuração, permeia as institui-
ções públicas, as associações privadas e a academia, tendo a ocupação ne-
gra desses espaços o caráter emancipatório, apto a reorganizar os arranjos
sociais excludentes através da consolidação das ações afirmativas e estrito
acompanhamento da efetividade das políticas públicas, pluralizando as es-
tratégias de ação e promovendo justiça social.
Através da pluralidade, reconhecimento e ampliação dos locais de fala
destacando o protagonismo das pessoas negras, do movimento negro e
das articulações verdadeiramente antirracistas com os esforços voltados
para a consecução dessa liberdade, não só formal, mas principalmente ma-
terial, poderemos avançar nesse campo, protegendo esses grupos sociais e
caminhando para que a democracia racial deixe de ser um mito e seja o pa-
vimento da necessária transformação social de que o Brasil tanto carece.

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8
A (DES)ASSISTÊNCIA DAS GARANTIAS PREVISTAS NA
LEI DE EXECUÇÃO PENAL ENQUANTO VERTENTE DO
GENOCÍDIO ANTINEGRO

Érika Costa da Silva64

“E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo


Diante da chacina
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão
pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se
tratam os pretos”. (HAITI, 1997).

Para tratar sobre qualquer vertente que compõe o sistema de justiça


criminal brasileiro, é preciso pontuar o processo histórico de construção
do país, fundado na escravização do povo africano, cujos efeitos estrutu-
raram a formação social e econômica do Brasil de maneira tão articulada
que “as dinâmicas das relações sociais são totalmente atravessadas por
essa hierarquização racial” (BORGES, 2019, p. 53).
João Costa Vargas (2010, p. 11), discorrendo sobre o encarceramento
em massa da população negra enquanto efeito do processo histórico de
escravização, afirma que, “se as políticas da justiça criminal são parte de
uma rede de conhecimentos historicamente racializados do mundo, então
a super representação de afro-brasileiros nas celas é um indicador da aná-
loga discriminação nos sistemas de educação, trabalho, moradia e saúde”.
Assim, a ausência do Estado, desenhada na insuficiência de serviços
públicos essenciais para a população negra, tais como o acesso à saúde,
educação, habitação, saneamento básico, garantia de direitos no âmbito do
64  Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Mestranda em Direito
Público pela Universidade Federal da Bahia. Advogada. E-mail: erikacostaa@gmail.com.
133
134 | Érika Costa da Silva

mercado de trabalho, entre outros, engrossam a tônica da exclusão social


que tem, como um dos seus principais elementos, o racismo. De fato, o
“grande item inegociável da agenda das elites é o direito de decretação da
morte física e social da massa vulnerável, sendo o racismo a pedra angular
dessa sentença executada diuturnamente” (FLAUZINA, 2017, p. 17).
Dessa maneira, toda a estrutura e todas as instituições que compõem
a sociedade são pensadas por não-negros, para garantir a segregação,
anulação, precarização e morte dos corpos negros de maneira estrutural
e sistemática.
Assim, qualquer leitura acerca do sistema criminal brasileiro só se
torna possível se realizada através do viés racial, tomando-o como eixo
central da discussão, de modo que o presente trabalho irá direcionar o
olhar para esse sistema, considerando, para fins de recorte, a extensão das
ausências estatais no âmbito das prisões brasileiras, desenhado pela (des)
assistência dos direitos previstos na Lei de Execução Penal (LEP).

1 O LEGAL E O REAL

Conforme pontuado, o sistema criminal brasileiro, assim como os de-


mais sistemas que tecem a malha social do país, foi pensado para proteger
os não-negros e tomar, como principais inimigos, os corpos negros.
Nesse sentido, Juliana Borges (2019, p. 57) afirma que é o próprio
Estado brasileiro que “formula, corrobora e aplica um discurso e políticas
de que negros são indivíduos pelos quais deve se nutrir medo e, portanto,
sujeitos à repressão”.
A segregação e anulação social de milhares de corpos negros compõe
o projeto genocida adotado pelo Estado brasileiro, denunciado por Ana
Flauzina (2017, p. 114-115) que, por sua vez, elenca as origens e vertentes
desse projeto:

[...] é o racismo que sustenta a produção da morte. A partir das distinções


de tipo biológico que atravessam a população, será possível ao Estado re-
crutar os indivíduos a serem eliminados, numa perspectiva que garante a
manutenção de uma sociedade pura e saudável. No esquema assumido pela
modernidade, o racismo passa, portanto, a ser a condição para o direito de
matar. Daí a sua centralidade para o funcionamento do Estado. [...]

Atentando para a realidade brasileira, a atuação estatal na produção da


morte está inscrita nas diversas vulnerabilidades construídas em torno
do segmento negro. A pauta de extermínio inaugurada no século XIX,
Enegrecendo o Direito | 135
intensificando-se com a proximidade da Abolição, será recepcionada na
República dentro dessa nova metodologia. Assim, embalado na cantiga da
democracia racial, o Estado, pela precarização da vida do contingente ne-
gro, foi construindo as condições para o descarte do segmento.

Essa conformação sócio-política vai construir, por exemplo, uma ar-


quitetura e um urbanismo executores de projetos segregadores;65 igual-
mente, as polícias terão as suas armas apontadas sempre para cabeças
negras, nunca para cabeças não-negras; e, ainda, na educação, o currículo
escolar, será moldado pelo discurso do colonizador, e não do colonizado,66
e suas ementas engessadas vão reforçar a lógica dessa sociedade orques-
trada pela branquitude.67

65  Sobre o tema, Lélia Gonzales afirma que “as condições de existência material da
comunidade negra remetem a condicionamentos psicológicos que têm que ser atacados
e desmascarados. Os diferentes índices de dominação das diferentes formas de produção
econômica existentes no Brasil parecem coincidir num mesmo ponto: a reinterpretação
da teoria do “lugar natural” de Aristóteles. Desde a época colonial aos dias de hoje,
percebe-se uma evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores
e dominados. O lugar natural do grupo branco dominante são moradias saudáveis,
situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por
diferentes formas de policiamento que vão desde os feitores, capitães de mato, capangas,
etc., até a polícia formalmente constituída. Desde a casa grande ao sobrado até aos
belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido o mesmo. Já o lugar natural do
negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, invasões, alagados e
conjuntos “habitacionais” [...] dos dias de hoje, o critério tem sido simetricamente o
mesmo: a divisão racial do espaço. [...] No caso do grupo dominado o que se constata são
famílias inteiras amontoadas em cubículos cujas condições de higiene e saúde são as mais
precárias. Além disso, aqui também se tem a presença policial; só que não é para proteger,
mas para reprimir, violentar e amedrontar”. (GONZALES, 1984, p. 232).
66  Frantz Fanon ensina que “a zona habitada pelos colonizados não é complementar
da zona habitada pelos colonos. Estas duas zonas se opõem, mas não em função de uma
unidade superior. Regidas por uma lógica puramente aristotélica, obedecem ao princípio
da exclusão recíproca: não há conciliação possível, um dos termos é demais. [...] este
mundo cindido em dois, é habitado por espécies diferentes. A originalidade do contexto
colonial reside em que as realidades econômicas, as desigualdades, a enorme diferença
dos modos de vida não logram nunca mascar as realidades humanas. Quando se observa
em sua imediatidade o contexto colonial, verifica-se que o que retalha o mundo é antes de
mais nado o fato de pertencer ou não a tal espécie, a tal raça”. (FANON, 1968, p. 28-29).
67  Sobre o sistema educacional como um dos ângulos do genocídio, Ana Flauzina
ensina que, “dos efeitos mais visíveis das dificuldades de acesso, segurança e condições
financeiras para a aquisição do material escolar, também estão colocadas as questões
epistemológicas que fazem do ensino um local de reprodução e reconhecimento dos
acontecimentos relacionados ao segmento branco e de estigmatização dos eventos e das
contribuições referentes à população negra e indígena. [...] O viés eurocêntrico que
permeia a produção intelectual no Brasil acaba por produzir uma educação silente no
136 | Érika Costa da Silva

Esse ajustamento social vai ser refletido, também, nos deveres e nas
supostas garantias da instituição prisão, que é composta predominante-
mente por pretos e pardos, que representam um pouco mais de 65% de
toda a população carcerária do país (INFOPEN, 2019).
De modo que, destaco no presente trabalho as garantias previstas na
Lei de Execução Penal, dispostas essencialmente nos artigos 10 e 11, que
preveem que a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, cujo
principal objetivo é prevenir o crime e orientar o retorno desses condena-
dos à convivência social, sendo certo que essas assistências devem ser ao
menos material, de saúde, jurídica, educacional, social e religiosa.
O rol previsto no artigo 11 da LEP é meramente exemplificativo, de
modo que o Estado deve oferecer todo o tipo de assistência ao condenado,
a fim de melhor atender as suas necessidades.
O advento da LEP e do seu rol de garantias gerou uma expectativa de
que o condenado não seria mais “considerado mero objeto”, mas passaria
a ser o “titular de posições jurídicas de vantagem como sujeito proces-
sual [...] Não mais simples detentor de obrigações, deveres e ônus, o réu
torna-se titular de direitos, faculdades e poderes” (GRINOVER, 1987, p.
5-14). Ocorre que essa legislação não foi capaz de resolver o problema
das violações perpetradas pelo Estado contra a população prisional, pois,
de fato, o conteúdo da LEP se mostrou ineficaz em relação ao controle da
legalidade do cotidiano carcerário.
Nesse sentido, Ela Castilho sinaliza, por exemplo, que a criação da
LEP não foi capaz de diminuir as denúncias de maus-tratos contra a po-
pulação carcerária, sendo sintomática, ainda, “a inexistência de litígios
versando diretamente sobre direitos e deveres dos presos, bem como so-
bre questões decorrentes da imposição de sanções disciplinares” (CASTI-
LHO, 1988, p. 108).
Assim, o advento da LEP não superou o encarceramento em massa,
a política criminal punitivista, a superlotação das unidades prisionais com
a ausência de estrutura e de vagas, a morosidade do Poder Judiciário no
processamento das ações penais e na apreciação das prisões preventivas,
bem como a manutenção de uma política de segurança pública genocida.
Todos esses mecanismos potencializam as violações aos direitos hu-
manos da pessoa encarcerada e a LEP, mesmo com todas as garantias e

que tange às contribuições de negros e índios na formação história e cultural do país”


(FLAUZINA, 2017, p. 123-124).
Enegrecendo o Direito | 137

direitos, não conseguiu dar conta das violações perpetradas pelo Estado
contra essa população.
A título de exemplo, uma das maiores tragédias do sistema prisional
brasileiro, o massacre do Carandiru, que ocorreu em 02 de outubro de
1992, deixando 111 (cento e onze) pessoas mortas pela Polícia Militar
após a entrada, autorizada pelo governo do Estado de São Paulo, para
conter uma rebelião na Casa de Detenção, ocorreu sob “o olhar” da LEP,
que já estava em vigor no país há oito anos.
Em julho de 2019, ocorreu também o massacre no Pará, em que 58
(cinquenta e oito) pessoas morreram em um conflito de facções, no super-
lotado Centro de Recuperação Regional de Altamira, Pará.
Dados de estudos do país apontam que 61% dos acusados de crimes
de tortura são agentes públicos, sendo que 42% da violência contra a po-
pulação carcerária é praticada pela polícia penal (PASTORAL CARCE-
RÁRIA, 2015).
Neste ponto, importante registrar que esses servidores públicos pos-
suem, como função, exatamente o oposto, considerando que deveriam
zelar pela vigilância, custódia, guarda e orientação das pessoas encarce-
radas. Estes deveres funcionais guardam relação direta com o poder disci-
plinar exercido pelo Estado e que, nestes casos, é realizado através desses
agentes públicos.
Desse modo, segundo afirma Luís Carlos Valois (2020), toda prisão
no Brasil é ilegal. Isto porque, para o autor, a prisão deve ser sempre
considerada como “instituição do Estado que deve cumprir a lei, coisa
evidente, mas que a prisão não faz”, pois apesar de existir a LEP desde o
ano de 1984, “em cada uma de suas páginas há pelo menos um artigo que
não é cumprido. Ou seja, a lei que prevê a própria prisão é violada cons-
tantemente”.
Com efeito, há um verdadeiro desinteresse, por parte do Estado e
da sociedade civil, na promoção de políticas públicas e na execução das
garantias e direitos da população carcerária, muitas vezes travestido do
frágil argumento da ausência de recursos materiais, o que acaba por trans-
formar o sistema prisional, em resumo e, nas palavras de Rochester Oli-
veira Araújo (2014, p. 135), em um “ambiente mais representativo de que
os objetivos constitucionais da construção de uma sociedade justa estão
mais longe de serem alcançados do que se imagina”, e a não aplicação das
assistências legais garantidas aos condenados apenas “demonstram como
a Execução Penal retrata bem uma zona escura de injustiça social”.
138 | Érika Costa da Silva

A não aplicação das assistências previstas na LEP, pelo Estado e pelas


instituições que compõem o sistema de justiça criminal brasileiro, apre-
senta-se como verdadeira violação estrutural de direitos das pessoas en-
carceradas. Nesse sentido, Renato Marcão (2015) afirma que “o Estado só
cumpre o que não pode evitar. Proporcionar a alimentação ao preso e ao
internado, nem sempre adequada. Os demais direitos assegurados e que
envolvem a assistência material como regra não são aplicados”.
No Brasil, essa omissão estatal é tão patente que ganhou destaque
através do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fun-
damental (ADPF) nº 347 (BRASIL, 2015), sendo colocada em discussão
no Supremo Tribunal Federal (STF) a situação degradante do sistema
prisional brasileiro, que submete as pessoas privadas de liberdade a uma
constante violação de direitos fundamentais constitucionalmente garan-
tidos.
Assim, o cenário do sistema prisional brasileiro é desenhado por au-
sências e violações permanentes às assistências estabelecidas na LEP, não
havendo garantia nem mesmo dos direitos mais básicos, tais como o espa-
ço, a alimentação e as condições mínimas de higiene, não sendo raras as
constatações acerca da degradação da prisão, em razão da sua superlota-
ção, insalubridade e precariedade física, ambiental e de pessoal.
O não cumprimento das assistências elencadas no artigo 11 da Lei
n. 7.210/1984 está expresso nos próprios crivos institucionais. É o que
demonstram, por exemplo, os diversos relatórios produzidos pelo Depar-
tamento Penitenciário Nacional (DEPEN), órgão institucional vinculado
ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Segundo informações extraídas da leitura do Relatório INFOPEN
2019, 22% dos estabelecimentos prisionais do país não possuem módulo
de saúde, ou seja, não há estrutura mínima, como consultórios médicos,
odontológicos, sala de curativos e enfermarias, nem estrutura complemen-
tar, que são as salas de atendimento clínico multiprofissional e salas para
realização de procedimentos e exames; ainda, 25% dos estabelecimentos
não possuem sala para atendimento psicológico.
Sobre a assistência à educação, o relatório aponta que 26% dos estabe-
lecimentos prisionais não possuem módulo de educação e 56% não contam
com módulos para realização de oficinas (INFOPEN, 2019).
Em relação à garantia de assistência social, 44% dos estabelecimentos
no país não possuem local específico para visita social e 22% não contam
com sala de atendimento para serviço social (INFOPEN, 2019).
Enegrecendo o Direito | 139

Dito isso, necessário registrar que a não aplicação dessas assistências


materiais acarreta uma série de consequências para população carcerária,
a exemplo da degradação da sua saúde física e mental. Apenas em 2019, o
número de óbitos por motivo de saúde totalizou 738 (setecentas e trinta
e oito) mortes, sendo que, destas, 24 (vinte e quatro) foram de mulheres,
havendo, ainda, 80 (oitenta) suicídios, sendo 8 (oito) de mulheres (IN-
FOPEN, 2019). Nessa linha, afirma Rafael Damasceno de Assis (2007 p.
75) que, no Brasil, há uma “dupla penalização do condenado: a pena de
prisão propriamente dita e o lamentável estado de saúde que ele adquire
durante a sua permanência no cárcere” .
Assis ainda alerta que os condenados, durante o cumprimento da
pena, contraem uma série de doenças no interior da prisão, em razão da
sua precariedade e insalubridade, pois há um verdadeiro “descumprimen-
to dos dispositivos da Lei de Execução Penal, que prevê, no inc. VII do art.
40, o direito à saúde por parte do preso como uma obrigação do Estado”
(ASSIS, 2007 p. 75).
Ademais, em relação à prestação da assistência jurídica gratuita, o
Relatório do INFOPEN 2019 registrou que 15% dos estabelecimentos
prisionais não contam com estrutura física (sala) para o atendimento jurí-
dico ao condenado, 17% não possuem prestação sistemática de assistência
jurídica gratuita e o atendimento jurídico gratuito prestado pela Defen-
soria Pública só está presente em 72% dos estabelecimentos prisionais,
ou seja, 28% deles não contam com qualquer assistência prestada pela
instituição (INFOPEN, 2019).
Sobre esta última (des)assistência, importa registrar que a garantia
de assistência jurídica gratuita no ambiente prisional viabiliza não apenas
o acesso à justiça do custodiado, mas possibilita, também, o seu acesso aos
demais direitos previstos na LEP.
Afinal, a população carcerária depende necessariamente da assistên-
cia jurídica para acessar os termos e os procedimentos jurídicos que pos-
sibilitam o exercício da sua defesa durante o cumprimento da pena, em
razão da existência de uma vulnerabilidade de ordem técnica que, se não
for devidamente suprida por profissional competente, poderá gerar conse-
quências gravosas ao condenado, fazendo-o perder direitos que lhes eram
devidos.
140 | Érika Costa da Silva

2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste brevíssimo e limitado apanhado, abordei, por lentes racializa-


das e, tomando como campo de estudo a prisão, que a ausência da presta-
ção, pelo Estado, das garantias previstas na Lei de Execução Penal, com-
põe mais uma vertente do genocídio antinegro, evidenciado através da
precarização da vida desses corpos encarcerados.
Para essa leitura considerei, sobretudo, os dados dos estudos sociais
e institucionais do país, que indicam que pretos e pardos compõem 65%
da população prisional brasileira, sendo esse percentual sintomático, pois
evidencia, denuncia e comprova algumas das facetas desse projeto geno-
cida – segregação, anulação, precarização e morte dessa população –, que
é adotado pelo Estado brasileiro e suas instituições formais (Judiciário,
Legislativo, Executivo, polícias, entre outras).
Afinal, o próprio STF, quando do julgamento da aqui citada ADPF
nº 347, não enfrentou o maior problema do encarceramento em massa: a
cultura punitiva perpetrada pelo Poder Judiciário, através das inúmeras
decisões de aprisionamento.
Por outro lado, o Poder Legislativo segue criando novos tipos penais
e endurecendo as penas já existentes. Basta realizar uma rápida leitura do
Código Penal brasileiro para ser possível identificar as diversas alterações
realizadas na legislação penal nos últimos 4 (quatro) anos, a exemplo da
inclusão das previsões contidas nos artigos 149-A; 155, §§ 4º-A e 7º; 157,
§§2º, VI e 2º - A; 171, §4º; 180-A; 232-A (BRASIL, 1940), dentre tantas
outras.
O Poder Executivo, por sua vez, reforça os números das violações
contra os corpos negros e encarcerados através de políticas que favore-
cem o silenciamento e a ausência de fiscalização. A título de exemplo, em
junho de 2019, o Governo Federal exonerou todos os peritos do Meca-
nismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), além de
retirar o apoio administrativo e limitar o acesso às dependências do órgão.
A situação só conseguiu ser parcialmente revertida em agosto de 2019,
após a concessão de liminar pela 6ª Vara Cível da Justiça Federal do Rio
de Janeiro (RODRIGUES, 2019).
Nesse sentido, João Costa Vargas afirma que as comunidades da
“Diáspora Negra são vítimas preferenciais de processos socioestruturais
relacionados que resultam de uma política pública ativa (como é o caso da
Enegrecendo o Direito | 141

brutalidade policial) ou passiva (da qual a assistência médica inadequada é


um exemplo)” (VARGAS, 2010, p. 4).
Por fim, deixo ao leitor o questionamento feito por Michelle Alexan-
der (2017, p. 165) que, tomando o sistema criminal dos Estados Unidos
da América para estudo, explica seu caráter racializado, sendo que essa
leitura cabe também ao Brasil, considerando que, assim como os EUA
sustentam uma suposta neutralidade racial, o sistema criminal brasileiro
se sustenta no mito da democracia racial68 para defender as suas práticas
como não discriminatórias e/ou discricionárias.
Assim, é possível questionar ao leitor:” como exatamente um sistema
de justiça criminal neutro racialmente do ponto de vista formal obtém
resultados tão discriminatórios quanto à raça?” (ALEXANDER, 2017, p.
165).
Peço que pensem sobre isso.

REFERÊNCIAS

ALEXANDER, Michelle. A Nova Segregação: racismo e


encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo, 2017.
ARAÚJO, Rochester Oliveira. A Atuação da Defensoria Pública na
Execução Penal: A função política na promoção do Acesso à Justiça
Social. Revista Transgressões, Ciências Criminais em Debate.
Natal, v. 2, n. 2, p. 133-147, nov., 2014.
ASSIS, Rafael Damasceno de. A realidade atual do Sistema Penitenciário
Brasileiro. Revista CEJ, Brasília, Ano XI, n. 39, p. 74-78, out./dez.
2007.

68  O mito da democracia racial é denunciado por Abdias do Nascimento em 1977, em


sua tese Democracia racial: mito ou realidade, apresentada no II Festival de Artes
e Culturas Negras e Africanas (Festac), em 1977. O autor disserta, sustentando que “o
Brasil, como nação, se proclama a única democracia racial do mundo, e grande parte
do mundo a vê e respeita como tal. Mas, um exame de seu desenvolvimento histórico
revela a verdadeira natureza de sua estrutura social, cultural e política: é essencialmente
racista e vitalmente ameaçadora para os negros. Através da era da escravidão, de 1530 a
1888, o Brasil levou a cabo uma política de liquidação sistemática dos africanos. Desde a
abolição legal da escravidão, em 1888, até agora, essa política tem sido levada avante por
meio de mecanismos bem definidos de opressão, mantendo a supremacia branca isenta
de ameaças neste país. Durante a escravidão, a opressão aos africanos era tão flagrante
que mereceu pouca atenção aqui; eram considerados sub-umanos e forçados a viver na
imundície, miséria e degradação de seu status social. Isso significa negligência médica
e higiênica, desnutrição, sujeição e abuso sexual [...] O meu argumento é que a futura
vitória na luta pela vida entre nós pertencerá aos brancos”.
142 | Érika Costa da Silva

BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Pólen, 2019.


BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código
Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
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de Preceito Fundamental n.347. 2015. Proc. 0003027-
77.2015.1.00.0000. REQTE.(S) PARTIDO SOCIALISMO E
LIBERDADE – PSOL. INTDO.(A/S) UNIÃO. Relator: Ministro
Marco Aurélio. Brasília, DJ 09 de set de 2015. Disponível em: http://
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Enegrecendo o Direito | 143

VALOIS, Luís Carlos. A frágil empatia do Fantástico show da prisão.


GNN, 2020. Disponível em: https://jornalggn.com.br/artigos/a-
fragil-empatia-do-fantastico-show-da-prisao-por-luis-carlos-valois/.
VARGAS, Joao H. Costa. A Diáspora Negra Como Genocídio: Brasil,
Estados Unidos Ou Uma Geografia Supranacional Da Morte E Suas
Alternativas. Revista da ABPN, v. 1, n. 2 – jul.-out. de 2010.
9
“E NÃO SOU UMA MULHER?”:69 A DESUMANIZAÇÃO
DOS CORPOS NEGROS FEMININOS ENCARCERADOS
SOB A PERSPECTIVA DO GENOCÍDIO NO SISTEMA
PRISIONAL BRASILEIRO70

Lethycia Laynne Santos Pereira71


Ana Luiza Teixeira Nazário72

“Sim, eu trago o fogo,


o outro,
aquele que me faz,
e que molda a dura pena
de minha escrita.
é este o fogo,
o meu, o que me arde
e cunha a minha face
na letra desenho
do auto-retrato meu.”
(EVARISTO, p. 81).

69  Sojouner Truth, em discurso na Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados
Unidos, em 1851.
70  Texto extraído e adaptado do artigo de mesmo título apresentado em junho de 2020
como Trabalho de Conclusão de Curso da faculdade de Direito do Centro Universitário
UniRuy.
71  Bacharelanda do curso de Direito do Centro Universitário UniRuy. Membro do
Núcleo Multidisciplinar de Pesquisa e Extensão em Relações Raciais (NUMPERR/
UniRuy). Lattes: http://lattes.cnpq.br/1105943646679098. E-mail: lspereira.direito@
gmail.com.
72  Especialista em Ciências Penais (PUCRS). Mestranda em Direitos Fundamentais
e Justiça (UFBA). Integrante do Núcleo de Estudos sobre Sanção Penal (CNPq/
UFBA). Professora no Centro Universitário UniRuy nas disciplinas Direito Penal e
Processo Penal. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5564775889838065. E-mail:
teixeiranazario@gmail.com.
145
146 | Lethycia Pereira & Ana Nazário

1 O DESEMBARQUE

A configuração da sociedade patriarcal, racista e sexista tem como


componente a “sistemática desvalorização da mulheridade negra”
(HOOKS, 2019), consubstanciada pelo período escravagista que, embo-
ra documentalmente abolido, de forma intrínseca e extrínseca demons-
tra suas facetas até os dias atuais. Através de mecanismos que atuam na
manutenção da desumanização de pessoas negras, coloca-se em constan-
te prática o projeto genocida de extermínio desses corpos por meio das
violências fisíca, psicológica, espiritual e sexual, destacando-se o cárcere
como principal engrenagem desse maquinário de dominação.
O genocídio da população negra (NASCIMENTO, 2016), aqui tra-
tando das mulheres negras privadas de liberdade, não se concentra apenas
na morte física, mas também no modus operandi segundo o qual sua iden-
tidade social e suas vivências são exterminadas antes, durante e depois de
suas condutas serem tipificadas como crime e assim punidas.
Esse processo de destruição é indispensavel para sustentar a gama de
privilégios da branquitude, sendo que não é exclusividade do sistema pe-
nal e tampouco novidade. Como destaca Bell Hooks (2019, p. 43), sabe-se
que já integrava o rol de práticas adotadas durante a escravidão:

Eram cruciais, no preparo das pessoas africanas para o mercado de escra-


vos, a destruição da dignidade humana, a eliminação de nomes e status, a
dispersão de grupos, para não haver uma língua comum, e a retirada de
qualquer sinal evidente de herança africana.

Nesse ponto, percebe-se que a “genealogia” entre escravidão negra e


presídios, proposta por Davis (2009), é essencial para a melhor compreen-
são do fenômeno do “encarceramento de mulheres negras”, consideran-
do que a estruturação social criada no período da escravidão por pessoas
brancas, baseando-se em raça e gênero, posicionou homens brancos em
primeiro lugar, mulheres brancas em segundo, homens negros em tercei-
ro e, em último, as mulheres negras (HOOKS, 2019, p. 93), conferindo-se
a estas uma posição de desprestígio perante a sociedade que reverbera até
hoje.
A condição social da mulher negra teve, como base, as opressões de
raça, classe e gênero, conforme Cipriano (2019, p. 2-3), indicando “a ne-
cessidade de que suas histórias e experiências sejam colocadas no centro
de análises”, levando em consideração suas particularidades.
Enegrecendo o Direito | 147

A subalternização das demandas específicas dessas mulheres é poten-


cializada pelo tratamento de justiça desigual que lhes é conferido, compa-
rado ao que é disposto às pessoas brancas, situação que acentua a dupla
vulnerabilidade decorrente do binômio raça-gênero. Atingidas frontal-
mente pelo sistema de opressão estatal de negativa da conferência do sta-
tus de cidadãs, e consequente não concessão de direitos fundamentais, as
mulheres negras em suposto “conflito com a lei” estão sucumbidas à vio-
lência institucional da negligência e da invisibilização de suas existências
para além de um “tipo penal”.
O encarceramento tem-se mostrado como a solução punitiva para
uma série de problemas sociais que não são enfrentados pelo Poder Públi-
co, aquele que deveria ser responsável por fornecer meios para que essas
pessoas alcançassem vidas mais dignas (DAVIS, 2009, p. 47). Atualmente,
de acordo com dados do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (2019),
68% das mulheres encarceradas no Brasil são negras.

2 BREVES REFLEXÕES HISTÓRICAS SOBRE O ESPÓLIO NEGATIVO


TRANSMITIDO ÀS MULHERES NEGRAS

Durante trezentos e cinquenta e três anos, o sistema escravocrata


brasileiro violentou cruelmente aqueles e aquelas que mantinham a estru-
tura econômica do país, desde o plantio à colheita da riqueza material da
terra brasilis. Os africanos escravizados não eram “pessoas”, e sim merca-
dorias ou moedas de troca para negócios. Como resultado dessa desuma-
nização, enraizadas no povo negro estão marcas que vão além dos açoites,
do sangue derramado e da dor dilacerante sentida a cada provável ques-
tionamento feito aos céus e à terra: “por que o nosso povo?”.
O processo de colonização no Brasil foi instaurado sob a égide da ex-
ploração de mão-de-obra escravizada (institucionalizada), corroborando
para a coisificação do corpo negro, sobretudo o feminino, processo fun-
dante da esfera física de opressão e do funcionamento e organização social
e política do país (BORGES, 2018).
Impedida de formar qualquer estrutura familiar estável, a mulher ne-
gra era amplamente explorada pelo “seu senhor”. Conforme alude Abdias
Nascimento (2016, p. 54), “o costume de manter prostitutas negro-africa-
nas como meio de renda, comum entre os escravocratas, revela que além
de licenciosos, alguns se tornavam também proxenetas”.
148 | Lethycia Pereira & Ana Nazário

A coerção sexual era praticada de todas as formas contra as mulheres


em situação de escravidão, que eram mutiladas, açoitadas e também estu-
pradas. Como Davis (2016, p. 20) ensina, através do estupro expressava-se
a ostensividade do domínio econômico do “senhor de escravos” e do con-
trole do feitor sobre o corpo daquelas mulheres escravizadas.
Nesse aspecto, Nascimento (2016, p. 54) comenta sobre a dolorosa
herança recebida pelas mulheres negras brasileiras, denunciando-a no
Manifesto das Mulheres Negras, apresentado ao Congresso das Mulhe-
res Brasileiras realizado na Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de
Janeiro, em 02 de julho de 1975:

[...] as mulheres negras brasileiras receberam uma herança cruel: ser o


objeto de prazer dos colonizadores. O fruto deste covarde cruzamento de
sangue é o que agora é aclamado e proclamado como ‘o único produto na-
cional que merece ser exportado: a mulata brasileira’. Mas se a qualidade
do ‘produto’ é dita ser alta, o tratamento que ela recebe é extremamente
degradante, sujo e desrespeitoso.

Destaca-se que as mulheres eram as “prediletas” dentre os escravi-


zados, pois, além de serem responsáveis pelas atividades nos engenhos e
plantações, eram utilizadas como “geradoras de filhos”, aumentando de
forma numérica a população da comunidade e, consequentemente, a pro-
dução, como uma espécie de máquina viva.
Em Mulheres, Raça e Classe, Angela Davis (2016, p. 19) destaca que as
escravizadas não eram vistas “mães”, mas sim classificadas como “repro-
dutoras”:

Na verdade, aos olhos de seus proprietários, elas não eram realmente mães,
eram apenas instrumentos que garantiam a ampliação da força de trabalho
escravo. Elas eram “reprodutoras” – animais cujo valor monetário podia
ser calculado com precisão a partir de sua capacidade de se multipicar.

Em 1851, a abolicionista afro-americana e ativista dos direitos das


mulheres Sojouner Truth proferiu discurso durante a Convenção dos Di-
reitos da Mulher, em Ohio (EUA), que corrobora o acima mencionado:
“pari cinco filhos e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando
manifestei minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não
sou uma mulher?” (apud RIBEIRO, 2019, p.19-20).
No Brasil, reconhece-se que a Lei Áurea não foi capaz de dar fim a
essa subjugação, pois se sabe que a abolição não foi um ato libertador, mas
Enegrecendo o Direito | 149

sim exonerador de responsabilidades tanto do Estado, quanto dos pro-


prietários de escravizados, uma vez que não foram estabelecidas políticas
públicas efetivas que visassem ações de inclusão a serem adotadas a partir
de 14 de maio de 1888. O que ocorreu, na realidade, foi um assassinato co-
letivo – para além de mortes físicas –, promovido pela falta de assistência
econômico-social e, também, pela adoção e expansão de outros mecanis-
mos de dominação.
Com o término do regime escravocrata, os corpos de mulheres ne-
gras e homens negros que transitavam dos interiores para as cidades no
processo de urbanização saíram do controle dos “senhores” – legitimados
pelo Estado – e começaram a ser contidos diretamente pelo Poder Público
através de sua ferramenta mais eficaz: o sistema criminal.
Nesse sentido, o Estado passou a se aparelhar para melhor gerir esse
contingente populacional indesejado, configurando o sistema penal de
forma republicana, juntamente ao Código Penal de 1890 e a reorganiza-
ção dos órgãos de justiça, para essa função. Por óbvio, sabe-se que, já no
período escravagista, a reprimenda criminal recaía sobre pessoas negras,
porém com a abolição, essas práticas se intensificaram e o alvo ficou cada
vez mais evidente. Diante do total abandono e descaso estatal, a quem
restava ser mendicante ou vadio?73
Sobre o sistema penal contra a “vadiagem”, Vera Batista (2003, p. 59)
destaca a criação de um estereótipo para aqueles que se encontravam fora
do mercado de trabalho:

Em 1890, aparecem as primeiras referências à aplicação do sistema penal


para “vadios” e “vagabundos”, para a massa excluída do novo mercado de
trabalho. [...] Pode-se imaginar que estereótipo se armava para o contin-
gente de ex-escravos sem perspectiva de inserção no mercado de trabalho,
desqualificados pelas condições de miséria e opressão de ordem escravo-
crata.

Outro exemplo disso é que o referido diploma legal, em grande par-


te, destinava-se à repressão das manifestações culturais afro-brasileiras, o
que era operado através da Delegacia de Entorpecentes Tóxicos e Misti-
ficação (Rio de Janeiro-RJ) ou da “elegacia de Tóxicos e Costumes (Salva-
dor-BA), órgãos responsáveis por coibir, além dos cultos de candomblé,

73  Condutas já tipificadas no Código Criminal do Império, nos artigos 295 e 296, e
mantidas no Código Penal de 1890 nos capítulos “Dos mendigos e ébrios” e “Dos vadios
e capoeiras”.
150 | Lethycia Pereira & Ana Nazário

a prática de capoeira, rodas de samba e combater o uso de cannabis sativa


(AMARAL; NAZÁRIO, 2017, p. 53).
Portanto, ainda que abolida formalmente no Brasil, a escravidão se
perpetuou de forma transmutada, inserindo outros mecanismos utilizados
para conter74 e, como pontua Juliana Borges (2018, pp. 28-29), “garantir
controle social, tendo como foco os grupos subalternizados estrutural-
mente”, baseando-se em opressões, racismo, genocídio e disparidades de
gênero.
Aparelhos estatais, nem sempre muito visíveis, fizeram a contenção
do avanço da emancipação da mulher negra, de sua atuação na política e
nas micropolíticas cotidianas. Esse extermínio se deu de diversas manei-
ras, sendo a mais comum o encarceramento, um subterfúgio do sistema
genocida e necropolítico perante os corpos negros, sobretudo os femini-
nos.
De acordo com Achile Mbembe (apud BORGES, 2018, p. 20), necro-
política é uma estrutura de poder para ditar quem deve viver e quem deve
morrer, como a “determinação sobre a vida e a morte ao desprover o status
político dos sujeitos”. Assim, o processo de desumanização abre espaço
para arbitrariedades, dispondo de técnicas e aparatos planejados para a
execução da política de desaparecimento e de morte, tal qual a seletivida-
de dos corpos negros femininos encarcerados.

3 POR TRÁS DAS GRADES: A OUTRA FACE DA ESTRUTURAÇÃO


DO ENCARCERAMENTO FEMININO

O sistema penal seleciona o corpo preto feminino e o torna mais vul-


nerável, do mesmo modo que o corpo preto vulnerável se torna apto à
captação sistemática pelo poder hegemônico patriarcal-racista. Essa en-
grenagem sistêmica torna-se insumo para o genocídio que é conceituado
como estratégia de extermínio deliberado de um grupo étnico, racial ou
religioso (NASCIMENTO, 2016; FLAUZINA, 2006), utilizado historica-
mente tanto no processo de escravização, quanto no processo de pós-abo-
lição, submetendo, sobretudo, o corpo negro a uma política de exclusão,
bem como na concretude do extermínio da população negra.

74  Nessa linha, vale lembrar a menção de Alexander (2017, p. 44), que refere: “os
governos usam em primeiro lugar a punição como ferramenta de controle social e que
por isso a extensão ou o rigor das punições com frequência não guardam relação com os
padrões de criminalidade”.
Enegrecendo o Direito | 151

Na obra Democracia da abolição: para além do império das prisões e da


tortura, Davis (2009, p. 16) afirma que o sistema prisional naturaliza a vio-
lência perpetrada em desfavor das minorais raciais “ao institucionalizar
uma lógica circular viciosa: os negros estão presos porque são criminosos;
eles são criminosos porque são negros, e, se eles estão presos é porque eles
mereceram”.
Nesse sentido, quando a mulher negra é aprisionada pelo sistema,75
além de diversas violências se intensificarem, outras novas passam a ocor-
rer. Inicia-se um processo de ruptura com a maternidade, com os laços fa-
miliares e afetivos, por exemplo, potencializando o abandono, bem como o
processo de isolamento e completa desassistência, inclusive familiar, para
com essa mulher negra, produzindo impacto sobre seu psicológico, ali-
mentação, afetividade e saúde (ABPN, 2020).
O encarceramento de mulheres negras é proveniente do processo
histórico de subjugação, silenciamento e invisibilidade dos corpos negros
femininos frente à estrutura patriarcal existente; há uma seletividade no
sistema penal brasileiro, oriundo da desigualdade social baseada na hie-
rarquia racial e nas ideologias da punição articuladas no Brasil (BORGES,
2018).
Nesse sentido, Dina Alves (2017, p. 109) assevera que:

[...] podemos considerar o ordenamento jurídico brasileiro como uma (re)


atualização da ordem escravocrata. Que tal sistema patriarcal-punitivo ti-
nha (e tem) no corpo da mulher negra um de seus principais alvos pode ser
ilustrado não apenas na experiência de mulheres empregadas domésticas
negras aprisionadas nas cozinhas das elites brancas, mas também nas esta-
tísticas prisionais que apontam aumento consistente no número de mulhe-
res negras presas. [...] o lugar social que as mulheres negras ocupam na
sociedade brasileira é refletido nas decisões desfavoráveis a elas no sistema
de justiça penal.

De acordo com informações colhidas no Sistema de Informações Es-


tatísticas do Sistema Penitenciário Brasileiro (INFOPEN, 2016), enquan-
to no início dos anos 2000, a população prisional feminina alcançou o nú-
mero de 42 (quarenta e duas) mil mulheres privadas da liberdade, no ano

75  A situação torna-se ainda mais difícil se vivenciada por mulheres trans, idosas,
portadoras de doenças crônicas, grávidas ou lactantes que demandam ainda mais cuidado,
principalmente quando, por exemplo, necessitam de atendimento médico especializado e
não são assistidas pelo Estado.
152 | Lethycia Pereira & Ana Nazário

de 2016 houve o exacerbado aumento de 656% dessa mesma população


prisional.
Existem mecanismos constituídos de vários dispositivos, dentro e
fora do sistema de justiça, que operacionalizam o processo de aprisiona-
mento das mulheres negras, fazendo com que este cresça de forma ex-
ponencial. Consequentemente, estabelece-se uma condição imperativa de
sobrevivência dentro do sistema prisional, excluindo as finalidades legais
da tutela penal, quais sejam: a ressocialização e a prevenção de crimes.
O encarceramento contribui para que as mulheres negras continuem
ocupando o mesmo espaço de negação e invisibilidade, principalmente em
relação ao tratamento desigual conferido a mulheres brancas, tendo em
vista que, dentro do cárcere, a existência do sistema de privilégios basea-
dos na cor da pele também é presente.
Por essa razão, assim como pela sua condição social e econômica, ten-
do acesso limitado ao sistema de justiça e à sua própria defesa, muitas
dessas mulheres negras encarceradas passam mais tempo dentro de um
cárcere do que autorizaria a legislação penal, em flagrante desrespeito ao
disposto na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), em seu art.
1º, inciso III, que traz o princípio fundamental da dignidade da pessoa
humana.
Dessa forma, o sistema prisional demonstra-se intimamente articu-
lado sob a lógica escravista, controlando seus alvos socialmente vulnerá-
veis, tendo como preferência mulheres negras nos últimos 20 (vinte) anos.
O crescimento carcerário feminino exacerbado atua, portanto, como ten-
tativa de contenção do avanço emancipatório dessas mulheres, que ocu-
pam espaços sociais e econômicos de grande importância, situação essa
que provoca aversão no padrão de sociedade patriarcal, racista, misógina
e genocida historicamente instaurada (ABPN, 2020).

4 O SISTEMA PATRIARCAL-RACISTA COMO OPERADOR DA


VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

O Brasil é o quarto país que mais encarcera mulheres no mundo, fi-


cando atrás dos Estados Unidos, da China e da Rússia no que tange ao
tamanho da sua população prisional feminina, apresentando 27.029 (vinte
e sete mil e vinte e nove) vagas disponíveis para mulheres, com uma taxa
de ocupação de 156,7% (INFOPEN, 2016). Novamente, pode-se constar
a negligência estatal que reverbera para além do desrespeito aos direitos
Enegrecendo o Direito | 153

das mulheres segregadas, replicando a violação de direitos femininos em


todas as esferas sociais.
O número de mulheres encarceradas sem condenação ultrapassa o
número de 19.000 (dezenove mil), indicando o percentual de 45%. Nesse
sentido, é inegável a alarmante situação do Brasil, precipuamente em ra-
zão do cômputo de mulheres sentenciadas em regime fechado apresentar
uma porcentagem menor, de 32%, com relação àquelas que não foram
condenadas (INFOPEN, 2016).
Esse grande encarceramento é um fenômeno da formulação prévia
da população carcerária, seguindo uma política criminal predefinida que
permite ao Estado manter alto ou baixo o índice dessa população, alimen-
tando a ideia da normalidade prisional (FERREIRA, 2018).
Conforme ilustra o Infopen (2016), cerca de 74% dos estabelecimen-
tos prisionais são destinados ao sexo masculino, 17% para estabelecimen-
tos mistos e somente 7% diz respeito ao público feminino. Logo, resta
evidente a demonstração de desprezo às necessidades específicas das mu-
lheres.
À época da pesquisa realizada pelo Infopen (2016), demonstrava-se
que 62% da população carcerária feminina era composta por mulheres ne-
gras, enquanto mulheres brancas eram 37%. Entretanto, em dados mais
recentes, evidencia-se que 68% das mulheres encarceradas no Brasil são
negras (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, 2019).
A sistemática de extermínio é mecanizada institucionalmente para
impor seus interesses políticos e econômicos, sendo muito bem sucedida
no que tange à manutenção da imposição de regras que são normalizadas
e naturalizadas, entendimento corroborado por Silvio Almeida (2018, p.
29), que aduz:

O racismo não se resume a comportamentos individuais, mas é tratado


como o resultado do funcionamento das instituições, que passam a atuar
em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens e
privilégios a partir da raça.

Portanto, nessa esteira, entende-se que regras e padrões atreladas ao
domínio de homens brancos em instituições públicas, por exemplo, são
imprescindíveis maneiras de invisibilizar e dificultar o processo de as-
censão de homens negros e, sobretudo, de mulheres negras que, além de
possuírem seus espaços indeferidos devido à desigualdade racial, precisam
enfrentar a desiguldade de gênero (ALMEIDA, 2018). Sobe esse aspec-
154 | Lethycia Pereira & Ana Nazário

to, vale mencionar que, segundo levantamento realizado pelo Conselho


Nacional de Justiça (CNJ, 2018), a magistratura brasileira é composta
majoritariamente por homens (63%), brancos (80,3%), católicos (57,5%),
casados (80%) e com filho (78%).
A ascenção da política punitivista – desproporcional e ineficaz –, na
qual se enquadra a República Federativa do Brasil, compromete a reali-
dade da mulher negra encarcerada, tendo em vista a constante restrição
de direitos. Essa inobservância conduz o Estado à “não elaboração de po-
líticas aptas a atender as necessidades específicas do gênero em encarce-
ramento”, colocando em risco a dignidade dessas mulheres, situação que
se pauta na desigualdade de gênero existente no sistema prisional (SAN-
TIAGO, 2018, p. 10).
Ainda que diversas modificações tenham sido executadas no âmbito
penal no decorrer da história, é inegável a atuação seletiva perante a dis-
tinção feita pelo Estado, quando pretos e brancos possuem tratamentos
dessemelhantes. Por essa esteira, o quadro da ascenção punitiva continua
reforçando a política do encarceramento, bem como do populismo penal,
fator gerador de uma política criminal seletiva que solidifica a ideia da
desigualdade social existente no Brasil (FERREIRA, 2016).
Operado em prejuízo da população negra, o encarceramento des-
proporcional induz a movimentação de um empreedimento pautado no
racismo institucional, produzindo o genocídio da população negra, muito
embora negado nas análises criminológicas.
Conforme Ana Flauzina (2006, p. 8), “de uma forma geral, contentam-
-se, em assumir a categoria raça dentro de um rol ilustrativo das muitas
assimetrias perpetuadas pelo sistema e não como elemento estruturante
de sua atuação,” exposição do projeto do Estado de inspiração racista,
sobretudo sexista, no que tange aos corpos negros femininos, que se con-
figura para exterminar a população negra do país.
A ascenção punitiva comprova o reforço à política do encarcera-
mento quando denota o salto na produção legislativa de forma histórica,
produto da crescente variação da criminalização de novas condutas, uma
falsa salvaguarda legislativa que “alerta à relação entre o aumento das leis
penais com o aumento da desigualdade social” (FERREIRA, 2016, p. 48).
A falta de inserção de políticas públicas, que objetiva a opressão e
a existência isolada, marcada por violência, desamparo, desassistência e
toda e qualquer forma de abandono por meio do Estado, solidifica a ideia
Enegrecendo o Direito | 155

da desumanização dos corpos que se encontram vulneráveis a esse siste-


ma repleto de crueldade (FERREIRA, 2016).
Renegando preceitos constitucionais, o cenário do sistema penal bra-
sileiro é estruturado por meio de uma ideologia racista e sexista, pauta-
do em discursos que, além de denotarem características “da escravização;
imputam as negras a responsabilidade pelo assédio sexual, pelo tráfico
de mulheres, pela violência sexual no trabalho doméstico”, sem ter seus
direitos assegurados, à revelia de possuir uma posição de classe favorável
(SANTOS, 2014, p. 33).
Não obstante, os aparelhos repressivos do Estado apresentam um
comportamento direcionado a controlar os corpos das mulheres negras
que, muito provavelmente, passaram a causar incômodo a partir do mo-
mento que contrariaram a lógica patriarcal. Ao oferecer representativida-
de de resistência, “subjetividades e caminhos políticos à forma de se inter-
pretar o mundo e subverter as ordens instituídas”, por meio do feminismo,
sobretudo do feminismo negro, as mulheres negras caminharam contra
as desigualdades e opressões históricas presentes na sociedade (SANTOS,
2014, p. 34).
Acometidas por um sistema de justiça estrategicamente seletivo, bem
como instaladas em ambiente carcerário insalubre, humilhante e degra-
dante, que reforça a política genocida constituinte do processo civiliza-
tório do Brasil, demonstra-se a total ausêcia de aparato digno para a sua
permanência no cárcere. Sem dúvidas, constata-se grave afronta à obser-
vância da Constituição Federal e também dos Direitos Humanos. Sobre
essa dupla invisibilidade, aponta Carla Santos (apud BORGES, 2018, p.
58):

A prisão, na perspectiva das mulheres, precisa ser analisada na contempo-


raneidade sobre alicerces interseccionais, pois nela reside um aspecto de
sexismo e racismo institucionais em concordância com a inclinação ob-
servada da polícia em ser arbitrária com o segmento negro sem o menor
constrangimento, de punir os comportamentos das mulheres de camadas
sociais estigmatizados como sendo de caráter perigoso, inadequado e pas-
sível de punição.

Ademais, a inobservância de princípios basilares, como a dignidade


da pessoa humana, caminha na contramão de um Estado que se Demo-
crático de Direito. Muito embora a República Federativa do Brasil esteja
favorável à preservação de tais direitos constantes na Lei nº 7.210/84,
156 | Lethycia Pereira & Ana Nazário

por exemplo, questiona-se a efetividade do postulado legal em razão da


prática e da teoria estarem caminhando por direções opostas, confirmadas
pelo desprezo das reivindicações por meio das autoridades (KIRST, 2010).
A estrutura da prisão física e os modos de subjugação, de humilha-
ção, de tortura psicológica, corporal e espiritual a que as mulheres encar-
ceradas, majoritariamente negras, estão sujeitas dentro da estrutura do
sistema, faz “cair por terra” a função ressocializadora da prisão, já que o
sistema prisional apresenta características mortificadoras.
Desde o momento em que essa mulher negra é inserida no cárcere,
violências anteriormente sofridas se intensificam e novas violências pas-
sam a existir, o que comprova a cruel exarcerbação da pena como uma
das violações dos inúmeros direitos que diuturnamente são ignorados e
infringidos.
Dessa forma, constata-se a notável semelhança existente entre o cár-
cere e o período da escravidão, haja vista o seu remanejamento perante a
sociedade, ainda que documentalmente abolida, como forma de rememo-
rar as opressões que marcaram um período histórico doloroso, objetivan-
do a manutenção da subalternização desses corpos.
Além disso, a ausência de assistência à saúde, à alimentação de qua-
lidade, às condições sanitárias e higiênicas, dentre tantas outras, além de
ser totalmente desumanizadora, é uma ofensa aos preceitos assegurados
pelo capítulo II, da Lei n. 7.210/1984, conhecida como Lei de Execução
Penal (BRASIL, 1984), que garante exatamente o contrário do que é ofe-
recido pelo Estado.
Veja-se que a situação da execução penal no Brasil é tão deplorável
que o Supremo Tribunal Federal assim reconheceu ao declarar, pela siste-
mática da repercussão geral na Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 347, um estado de coisas inconstitucional.
Apesar de incorporar os instrumentos internacionais de proteção dos
Direitos Humanos, como o Pacto San Jose da Costa Rica (1969), que cor-
robora a implementação de direitos e garantias no Brasil, bem como pelo
disposto no art. 5º, inciso III e XLIX, pelos quais “ninguém será subme-
tido a tortura, tampouco a tratamento desumano” e “é assegurado aos
presos respeito à integridade física e moral” (BRASIL, 1988), o mesmo
não se encontra efetivado no plano real.
Ademais, ainda que seja de suma importância a internacionalização
por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948)
que tenha estabelecido a Convenção sobre a eliminação de todas as formas
Enegrecendo o Direito | 157

de discriminação racial (1965), a Convenção para a prevenção e repressão


de crime de genocídio (1948), a Convenção sobre a eliminação de todas as
formas de discriminação contra a mulher (1979), dentre outras conquis-
tas, há incontestável negativa a esses e demais direitos, que continuam
sendo violados.
Tendo em vista a vulnerabilidade dos corpos vítimas dessa dispari-
dade, como também a ausência de políticas públicas por meio do Estado,
principal interessado em não salvaguardar os direitos dessas pessoas, o
Brasil lamentavelmente demonstra imprudência ao não cumprir o papel
de garantidor e mantenedor dos direitos humanos no que tange ao seleto
sistema prisional. Nesses termos, afronta a Constituição Federal de 1988
que, em seu art. 4º, inciso II, certifica que a República Federativa do Bra-
sil rege-se, nas suas relações internacionais, pela prevalência dos direitos
humanos (BRASIL, 1988).
Assim, o sistema prisional brasileiro se baseia em um movimento
político com atuação seletiva acometendo a situação da população car-
cerária (FERREIRA, 2016). Por isso, em se tratando, principalmente, de
uma massa desassistida e ignorada em suas necessidades particulares e
específicas, sobretudo de gênero e raça, em razão de uma herança patriar-
cal-racista, é inegável a necessidade da luta pelo nivelamento de direitos, a
fim de extinguir as ilegalidades que permeiam esse cruel aparelho estatal,
bem como defirir aos corpos negros femininos o pleito que lhes foi negado
desde o período da escravidão: viver de forma indiscriminada.
Assim, ao contrário do que se pensa comumente, o que se pode con-
cluir é que a desassistência estatal não é sinônimo de “falhas” do sistema
penal a que essas mulheres negras estão submetidas, mas sim a demons-
tração da extrema competência desse maquinário que visa a manutenção
de estruturas sociais desiguiais, carregando o racismo como nota repetida
e cumprindo com o seu papel genocida.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A insistência em sustentar que “Casa Grande & Senzala” vivem em


harmonia, logo, que no Brasil existe a “democracia racial” fantasiada por
Freyre, denota a tentativa falaciosa de renegar a existência do racismo na
sociedade brasileira, a mesma que determina a posição social através do
fator racial (NASCIMENTO, 2016). Portanto, indubitavelmente, negros
e brancos não ocupam posições convergentes.
158 | Lethycia Pereira & Ana Nazário

Nessa linha, percebe-se que o encarceramento é um dos mecanismos


do genocídio da população negra, especialmente dos corpos negros fe-
mininos. Ao cárcere são inerentes violências como a invisibilidade social,
a negativa de direitos constitucionais e a subalternização das mulheres
duplamente vulneráveis em razão da raça e do gênero, visto que o sistema
penal seletivo reafirma o racismo em suas diversas nuances, sobretudo a
institucional.
Os aparelhos estatais, enquanto ferramentas de opressão e violação
de direitos fundamentais no âmbito do sistema jurídico, são demonstra-
tivos explícitos – e não velados – da permanência da escravidão perante
a sociedade, direcionando, à mulher negra, as mais desumanas formas de
violação e de contenção da sua emancipação.
Corpos negros femininos não são apenas corpos físicos; são identida-
des, vivências, emoções e afeições. Logo, garantir a inviolabilidade de seus
direitos fundamentais é o mínimo para demonstrar, na prática, que vidas
negras importam.
Assim, diante da genealogia brevemente exposta, conclui-se que, para
além da efetivação de direitos, faz-se imprescindível atender à provocação
feita por Angela Davis (2009), para reimaginar as instituições, as ideias e
as estratégias vigentes, visando criar novas formas de pensar e agir que
tornarão os presídios (ainda mais) obsoletos. Não há como sustentar meras
reformas, é preciso reivindicar novas instituições democráticas que deem
conta dos problemas sociais que não são (e nunca foram) solucionados
com o encarceramento.

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10
ENTRE A SELETIVIDADE E A ESTIGMATIZAÇÃO: AS
POTENCIALIDADES DA JUSTIÇA RESTAURATIVA 

Caio Vinícius de Jesus Ferreira dos Santos76

“Oyá, olha, Oyá ...


Olha pelos teus filhos, mãe
Terra do Negro, Terra do Índio
E nossas aspirações [...]

Não deixa o cravo nos ferir


Não deixa o grilhão nos acorrentar
Abre os caminhos com a tua luz
Chegou nossa hora de respirar
Tradição é coisa sagrada
O peito não pode arranjar
É força que vem dentro da alma
Da bola do zói do meu olhar ...
Olha, Oya, Olha ...
Oyá, Olha, Oyá ...
Olha pelos teus filhos mãe [...]
Moça com cabelo ao vento
Na casa branca vem adentrar
Com os pés no chão e as mãos no tempo
Pedindo pra seu Orixá
Olha, Oyá, Olha ...
Oyá, Olha, Oyá “. (VLASAK, 2012).

1 RACIONALIDADE PENAL MODERNA E JUSTIÇA RESTAURATIVA:


A CONSTRUÇÃO DE UM OLHAR MENOS ESTIGMATIZANTE

O paradigma punitivo se caracteriza por um modelo em que a pena e


a estigmatização estão em primazia (LUZ, 2012). Neste sentido, pode-se

76  Graduado e mestre pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.


Doutorando pelo Programa de Pós-graduaçao da Faculdade de Direito da Universidade
Federal da Bahia. Professor de Direito e Advogado.
163
164 | Caio Vinícius de Jesus Ferreira dos Santos

anunciar que a sanção é oferecida como a principal (LUZ, 2012), quando


não a única, resposta capaz de resolver os problemas sociais demarcados
como delitos, restando às suas teorias, muitas vezes desprovidas de empi-
ria, chancelar as suas bases ideológicas e fixar fundamentos para o exer-
cício do controle social.
Por consequência, a projeção da punição é, enquanto conteúdo ex-
pressivo, o elemento responsável pelo desenvolvimento das correntes teó-
ricas que penetram as finalidades do sistema criminal em busca de sua
legitimidade, sendo marcadas pela seletividade e marginalização. Assim,
os objetivos do direito penal são aferidos, sempre, tendo por lastro a puni-
ção, ou seja, a aplicação de uma pena, sem, com isso, aprofundar o debate
sobre a desigualdade social e a vulnerabilidade de sua principal clientela.
Zehr (2008, p. 8) indica que, ao identificar o crime com fundamento
exclusivo na pena, em razão de uma proposição de justiça, presume-se
que os ofensores devem receber o justo castigo, criando-se uma dívida
metafísica que deve ser quitada por meio de alguma imposição aflitiva e
aviltante.77
Nessa dívida, parece ser necessária a inclusão de uma programação
histórica, de uma dimensão estrutural e política, que aproxima a delin-
quência de determinados indivíduos e grupos sociais. Pior, fixa-se um ple-
xo de culpa em determinadas pessoas, em que o controle social aplica a
presunção de culpabilidade.
Nesse sentido, o paradigma retributivo recorre, ainda nos dias ho-
diernos, às abstrações que garantam a manutenção de sua própria retórica
sistemática,78 filtrando de suas conjecturas o conteúdo histórico, cultural,
ideológico e axiológico da pena concretamente realizada.

77  Toma-se as penas privativas de liberdade, em especial, como aflitivas em razão da


“aflição corporal da pena carcerária somadas a aflição psicológica: a solidão, o isolamento,
a sujeição disciplinaria, a perda da sociabilidade e da afetividade e, por conseguinte,
da identidade [...] a prisão é, portanto, uma instituição antiliberal, desigual, atípica,
extralegal e extrajudicial, ao menos em parte, lesiva para a dignidade das pessoas”
(FERRAJOLI, 2006, p. 379).
78  Para Karam (1997, p. 67), “as tradicionais teorias sobre a pena, fundadas em
irrealizáveis ideias de retribuição e prevenção especial ou geral (negativa ou positiva)
[...] se caracterizam por um irracionalismo induvidoso, derivado da própria falta de
racionalidade daquele instrumento de realização do poder de punir do estado [...]”. Nesse
passo, a pena só pode ser explicada em razão de “sua função simbólica de manifestação
de poder” com finalidade de manutenção e reprodução desse mesmo poder (KARAM,
1997, p. 71).
Enegrecendo o Direito | 165

Essa construção é, sumariamente, a consequência da vinculação en-


tre duas composições diferentes de “normas”, porquanto o primeiro ele-
mento alude ao comportamento e o segundo se refere às normas de san-
ção (PIRES, 2004). Transcorre que, como a aplicação da pena comunica o
valor da norma de comportamento, aquela se sobrepõe à última, dogmati-
zando79 e filtrando a teia complexa entre o delito e a sanção, subtraindo as
narrativas que perpassam pela edificação do direito penal.
Nesse contexto teórico, a punição dos indivíduos é o principal desi-
derato do complexo de normas penais, fundando-se na ideologia criminal
clássica,80 seja no modelo retributivo, seja preventivo – a pena é o elemen-
to nuclear do sistema de interesses políticos.81
Ademais, a pena é reflexo da violência institucionalizada, produto da
manifestação do poder estatal (KARAM, 1997, p. 67-84). Assim, o dese-
nho da crise (de racionalidade e legitimidade da interferência penal) torna
evidente a instrumentalização de valores e interesses determinados, en-
contrando, na reação punitiva, o suporte e a força ideológica para incluir
ou marginalizar indivíduos e grupos sociais.
Vale observar que o estigma de criminoso não alcança todos aqueles
que cometem ou cometeram condutas tidas por criminosas. Com isso, a
excepcionalidade penal não pode ser olvidada, enquanto fenômeno com-

79  “O processo se tornou “um espaço de formas de repetição frenéticas”, onde os


indivíduos se veem presos a um discurso que se prolifera, mas que não se escuta, que
não há interação, um discurso egoísta e surdo. A própria sala de audiência é um lugar
de movimentos e espaços pré-estabelecidos, que pode parecer hostil e frio. Neste local o
olhar do jurista e seu ouvido são disciplinados. Isto serve para que as regras do discurso
judicial sejam automaticamente seguidas, concentrando-se na análise normativa do
litígio, numa atividade técnica que rouba a originalidade dos conflitos, despreocupada
com as sensações de angústia sentida pelas partes” (DEDAVID, 2011, p. 34).
80  Álvaro Pires (2004, p. 40) explica que, num sentido empírico e descritivo, essa
performance aponta uma forma concreta de racionalidade que se atualizou num
determinado período histórico. Desse modo, o autor a considera como moderna em razão
de ter se organizado no ramo penal, construindo-se no Ocidente a partir da segunda
metade do século XVIII.
81  Ao considerar a pena como a forma primordial de consequência ao delito, afiança
Karam (1997, p. 67) que “o controle social formal manifestado no poder do Estado,
estruturando-se em um sistema que se materializa através do processo de criminalização
de determinadas condutas conflituosas ou socialmente negativas, ao mesmo tempo que
reduz o enfrentamento de tais condutas à simplista reação de impor uma pena a seus
responsáveis, produz um enorme volume de violência e de dor, sob a forma de deterioração
moral, privação de liberdade e morte”. Com isso, já se pode sentir o anacronismo de um
modelo que pretende a proteção contra a violência dos bens jurídicos mais relevantes
para a coletividade, que se utiliza da violência para alcançar seu objetivo.
166 | Caio Vinícius de Jesus Ferreira dos Santos

plexo, porque destila efeitos no campo comunitário, consumando a desi-


gualdade social como resultado da interferência seletiva e arbitrária.
Nesse passo, dentre os instrumentos de controle social, a justiça penal
se caracteriza como a esfera pública e política onde as normas expressam
o poder do Estado com mais força violenta e interferência coativa, em que
se reafirma cotidianamente a pena como instrumento principal e excep-
cional82 de finalização do conflito penal e marginalização dos indesejáveis.
Além disso, não se pode esquecer que a suposta função primordial do
plexo penal perpassa por finalidades ditas e “não ditas”, em que as últimas
são sumariamente constatadas na coloração do cárcere.
O paradigma retributivo, desse modo, impõe a pena com matriz defi-
nidora do direito criminal, delineando os métodos de estudo e os proble-
mas para alcançar sua legitimidade científica, mais uma vez pautando sua
cientificidade em um objeto supostamente “tangível” para sua configura-
ção epistemológica; com isso, escamoteiam-se as relações de poder que se
reproduzem historicamente. Nesse sentido, a modificação epistemológica
é desafiada por outras formas de solução dos conflitos – classificados en-
quanto criminais.
A questão principal é a evidência de um novo modelo de justiça crimi-
nal, que procura instrumentos para elucidar as situações-problemas, con-
soante Achutti (2014), respeitando os direitos e garantias constitucionais,
sem simplesmente atribuir culpa ao sujeito para posteriormente imputar-
-lhe a estigmatização, negando a cidadania com o cárcere e ampliando a
desigualdade social.
Estamos diante da necessidade de confrontar a sistemática penal,
buscando alternativas que almejem a transformação da estrutura penal.
O modelo retributivo não oferece as questões, as respostas e as meto-
dologias suficientemente adequadas para a análise das relações de poder
que estruturam a criminalidade, na realidade brasileira, pois a reação ao
delito não vislumbra a multifacetada questão social que envolve o próprio
delito e a emancipação da cidadania das pessoas envolvidas.
É importante salientar que a dinâmica penal promove o etiquetamen-
to e a estigmatização do delinquente e da vítima, diferenciando-os dos
83

82  “Diante da pena excepcional, todos os princípios basilares da intervenção penal –


igualdade perante a lei, igualdade material, segurança jurídica, punição do criminoso
– caem por terra, gerando injustiça e ampliando a desigualdade social” (KARAM, 1997,
p. 73).
83  Em análise, o direito penal deve estar atento aos efeitos jurídicos, sociais, pessoais
e culturais da aplicação da etiqueta de criminoso, em especial para a manutenção da
Enegrecendo o Direito | 167

demais membros da comunidade, por meio do cárcere e do esquecimento,


ampliando e definindo a fragmentação social.
De acordo com Karam (1997, p. 67-84), evidencia-se que a seletivida-
de da pena e a sua intervenção na esfera pessoal dos agentes garantem que
a manifestação do poder punitivo do Estado seja frequentemente atenta-
tória à dignificação humana e à cidadania.
Mesmo que individualizada a pena, a justiça penal, na maioria das
vezes, não restabelece a autonomia e a autoestima dos envolvidos e, sem
dúvida, não atua em proveito dos vínculos sociais dilacerados em conse-
quência da conduta criminosa ou de um ato infracional, ao custodiar os
delinquentes em condições degradantes,84 por exemplo.
Nesse espeque, mesmo que não se intente a eliminação do sistema
penal, requer-se o reexame e a transformação de suas abordagens e di-
retrizes tradicionais, a fim de atingir as estruturas que o lastreiam, sob
diferentes enfoques.
Assim sendo, é premente considerar, em síntese, que as principais
teorias fundamentadoras do direito penal e dos fins da pena se revelam
insuficientes para legitimar e justificar o jus puniendi,85 razão pela qual o
descrédito da norma criminal e das suas instituições, como meio fomenta-
dor da liberdade, igualdade, fraternidade e da própria paz social86 solici-
tam novas formas de condução.
O próprio enredo da conduta humana pleiteia o abandono de instru-
mentos padronizados que pretendem exclusivamente finalizar a contenda
jurídica, sem espaço para aquilatar a (inter)subjetividade e historicidade
que cercam o problema direcionado à solução judicial.
cidadania do indivíduo (BARATTA, 2011, p. 89). Vale lembrar que os processos de
imputação de pena resultam na fixação de uma imagem pública do delinquente com
componentes sociais, étnicos, etários, de gênero e estético, sendo o estereótipo o principal
critério seletivo da criminalização secundária, daí a uniformidades da população
carcerária (ZAFFARONI, 2001 p. 46).
84  “Ao sair do presídio, na maioria das vezes, ou o indivíduo sai demente, impossibilitado
de retornar à normalidade, ou sai revoltado, disposto a retribuir à sociedade os seus
anos de martírio” (EL HIRECHE, 2004, p. 117). Igualmente, fomenta-se a mistificação
social de que “o egresso significa um perigo constante, que a qualquer momento poderá
delinquir, carregando na pele uma marca indelével que afasta as pessoas” (EL HIRECHE,
2004, p. 122).
85  Vale anotar que, de acordo com El Hireche (2004, p. 138-140), as teorias absolutas
não servem à legitimação do direito penal, quase concebidas como um ato de fé, bem
como as finalidades das teorias preventivas não são verificáveis na realidade.
86  Trata-se da paz em sua feição integrativa, harmonizadora das etnias, culturas, reflexo
da solidariedade (BONAVIDES, 2007, p. 38-39).
168 | Caio Vinícius de Jesus Ferreira dos Santos

Desse modo, faz-se necessária a formação de outro instrumento re-


flexivo que possibilite a inclusão das diferentes narrativas e fomente a
transparência da interferência penal, se possível. Assim, Aguiar (2009)
assevera que é chegada a hora de a ciência jurídico-penal se sensibilizar
para a criação de novos canais de conversação atrelados a diversificados
saberes, que melhor estruturem as contingências das relações humanas,
com o intuito de aproximar a sociedade e o sistema penal, para além do
proposito punitivo.
Nesse sentido, a bússola acerca do novo paradigma aponta para a ins-
trumentalização de mecanismos comunicacionais de controle da conduta
humana, com arrimo nos direitos humanos a partir da interface histórica,
social e cultural localizada.
Para Tiveron (2014, p. 29-30), em decorrência do cenário de fragi-
lidade dos pilares fundantes do direito penal, novas ideias passam a ser
consideradas frente às devastações transcorridas e aos caminhos já suce-
didos. Com isso, pensar a justiça restaurativa como um novo paradigma de
resposta à violência é fomentar outro olhar em relação à concretização de
um sistema criminal mais humano, democrático e igualitário dentro dos
parâmetros do Estado Democrático de Direito, ou seja, faz-se necessária a
transformação da justiça penal ou seu esfacelamento.

2 O POTENCIAL TRANSFORMATIVO DA JUSTIÇA


RESTAURATIVA

Pode-se considerar a justiça restaurativa como um paradigma de


combate à violência que se realiza através de programas materializados
por procedimentos e finalidades particulares, que buscam integrar vítima,
ofensor e comunidade envolvida na ofensa, lastreando-se em princípios e
valores específicos, tendo em vista o encontro, a reparação e a transforma-
ção (JACCOUD, 2005, p. 164-5).
Diante disso, a justiça restaurativa auxilia na formação de abordagens
que pretendem lidar com a violência, na esfera penal ou não, enquanto
fenômeno complexo, fomentando, também, estratégias para minimizar o
efeito negativo do sistema penal sobre o ofensor e a vítima. Frente ao
desgaste do sistema carcerário e à debilidade política e jurídica da pena
enquanto resposta majoritária (TIVERON, 2014, p. 29-30), é premente
a relação entre os fatores culturais, sociais, históricos e econômicos, com
a forjadura do controle social, tomando a análise da violência como uma
Enegrecendo o Direito | 169

questão multifacetada, de interesses interdisciplinares, mesmo no âmbito


criminal.
A complexidade intentada pela justiça restaurativa tem, por crítica,
a flexibilidade conceitual que se destila em diferentes concepções, con-
ferindo proposições diferenciadas que se agregam, em alguma medida,
na integração de fins convergentes, apesar das diferentes experiências
(PALLAMOLLA, 2009). Uma das concepções conceituais entende a jus-
tiça restaurativa a partir da noção de transformação, em que se pretende
a modificação do sistema penal, bem como a emancipação dos envolvidos
no conflito.
Ademais, a resposta transformativa se pauta nos estudos da vitimo-
logia, em que se visibiliza a insuficiência da justiça penal em garantir os
interesses da vítima, bem como nas críticas abolicionistas, a partir de suas
diferentes teorias,87 negando, em alguma medida, o império de sistemas
formais de controle. A partir das críticas, ela absorve algumas proposições
abolicionistas, fomentando a substituição da justiça penal tradicional por
um modelo informal, comunitário e emancipatório – ainda que se instru-
mentalizem em conjunto.
Assim, a restauração, enquanto programa teórico, provoca a comuta-
ção e evidencia os elementos estruturais e institucionais da modelo tradi-
cional de reposta ao delito, fomentando a produção de técnicas diferencia-
das para a formação da resposta penal.
Nesse passo, a emancipação, por meio das práticas mencionadas, pos-
sibilita a não estigmatização e, também, a capacitação dos intervenientes a
desnudarem e exercerem a expressividade, desvelando as contradições do
próprio contexto social. Para tal, se faz necessária uma interação, na busca
da solução mais adequada para a contenda, diante das relações de poder e
sua interferência nas narrativas em conflito.
Trata-se de uma possível subjetivação da interpretação da realidade
na trincheira do controle social, promovendo, na interface de saberes, a
revitalização das cidadanias vilipendiadas pelo delito, evitando ou mini-
mizando a reprodução das violências institucionais.
Assim, a justiça restaurativa toma corpo por meio de técnicas, em que
a pena não é a primordial, mitigando a violência na construção e concre-
87  Hulsman (1997, p. 197) indica duas posturas abolicionistas, dentre elas, uma que
nega a legitimidade de atividades realizadas na organização cultural e social da justiça
criminal. Para tal, a justiça criminal não é uma resposta legítima a situações-problema
(crime). Em outro ângulo, têm-se uma postura que não requer a negativa de legitimação
do sistema criminal, mas a abolição do modo tradicional de realização da justiça em voga.
170 | Caio Vinícius de Jesus Ferreira dos Santos

tização da resposta criminal. As práticas restaurativas podem ser exem-


plificadas em: conferências restaurativas, círculos restaurativos, mediação
vítima-ofensor, círculos de sentença, comitês de paz e conselhos de cida-
dania (ACHUTTI, 2014).

3 O LUGAR RESTAURATIVO

Para perceber as imbricações do modelo restaurativo frente ao siste-


ma penal tradicional, é imprescindível considerar a classificação realizada
por Van Ness (2010), que identifica quatro modelos possíveis de aplicação
da justiça restaurativa.
O primeiro arquétipo desenhado pelo autor (VAN NESS, 2010) é o
modelo unificado (unified model), no qual o sistema de justiça criminal
passa a ser completamente restaurativo, estabelecendo os valores e princí-
pios da justiça restaurativa como paradigma dominante. Neste parâmetro
teórico, os procedimentos restaurativos são o único mecanismo de reso-
lução dos conflitos ofertados aos participantes, ainda que não tenha sido
voluntariamente acatado.
O segundo modelo é o dual track (VAN NESS, 2010), em que o siste-
ma de justiça criminal atua em conjunto com a justiça restaurativa, man-
tendo sua autonomia e independência em relação àquele. Assim, promove-
-se o desenho cooperativo e simultâneo dos dois mecanismos.
O terceiro arquétipo apresenta uma variação dos dois modelos ante-
riores. No beckup model (VAN NESS, 2010), a característica principal é a su-
premacia da justiça restaurativa, sendo, a justiça penal tradicional, subsidiá-
ria. Neste contexto, a justiça restaurativa compreende a justiça tradicional
como suporte residual de resolução dos conflitos penais. Assim, apenas
nos casos em que a justiça transformativa não puder atuar, o sistema tra-
dicional destilaria seus efeitos.
O último padrão é o hybrid model (VAN NESS, 2010), no qual a justi-
ça restaurativa e o controle punitivo convivem em complementariedade.
Todavia as práticas restaurativas ficam limitadas à fase de sentença. Dessa
maneira, o procedimento penal comum segue até a promoção da senten-
ça e, posteriormente, adotam-se as práticas restaurativas na fase de exe-
cução. Com isso, a justiça restaurativa se qualifica como um mecanismo
complementar.
A partir do exposto, é insuficiente pensar que a justiça restaurativa
deva fincar seus fins no objetivo de complementar as instituições crimi-
Enegrecendo o Direito | 171

nais de reação ao crime, sob pena de ser integrada à estrutura penal tradi-
cional ou promover uma dupla penalização do indivíduo.
Nesse mesmo sentido, afirma-se que a justiça restaurativa emerge
com a pretensão de construir um novo paradigma criminal. Essa perspec-
tiva é conduzida a partir da mensagem desvinculada dos preceitos legais,
abraçando uma perspectiva de aproximação comunitária – de formação de
empatia e, muitas vezes, de sensibilização, distante da oficialidade tradi-
cional.
Assim, observa-se que a justiça restaurativa pode promover seus fins,
com o objetivo de atuar de forma autônoma, sob a supervisão cautelosa
das instituições estatais de reação à violência, viabilizando a mitigação
crescente dos valores retributivos, incluindo os processos de etiquetamen-
to.
Parece necessário pugnar por um modelo que confira precisão cirúr-
gica na implementação dos dois sistemas (penal e restaurativo) e suas im-
plicações jurídicas, criando pontes entre eles, observando, primordialmen-
te, o risco de ampliação da interferência estatal nas vidas das pessoas, bem
como a aproximação aos direitos humanos, minorando o encarceramento.
Afere-se, ainda, que a justiça restaurativa surge com a pretensão de
construir uma nova hermenêutica para a justiça criminal, ao instituir uma
interpretação axiológica desvinculada do revanchismo com suporte legal.
Isso tudo, no vislumbre da construção de outra ótica das relações cole-
tivas que priorize as necessidades das pessoas afetadas pelo ilícito, bem
como fomente meios não punitivos para a eficiente reintegração social.
No entanto, a justiça restaurativa parece não ser capaz de eliminar ou
mitigar os processos de seleção do sistema penal, pois a justiça restaurati-
va, em regra, destila seus efeitos depois que os processos de criminaliza-
ção primária e secundária já promoveram seus efeitos.
De acordo com a Labeling Approach (BARATTA, 1997), a criminaliza-
ção primária ocorre com a definição de standarts penais pelas tipificações;
a criminalização secundária se qualifica quando as instituições de controle
estabelecem a etiqueta daqueles considerados desviantes; e a criminaliza-
ção terciária se firma quando a sociedade mantém o rótulo de desviante,
incluindo a situação em que o próprio indivíduo absorve e assume o es-
tigma.
Em regra, as potencialidades da justiça restaurativa, no âmbito da se-
letividade, não elidem a criminalização primária e secundária, a partir dos
principais modelos institucionalizados, dentro de um paradigma punitivo,
172 | Caio Vinícius de Jesus Ferreira dos Santos

como o hybrid model e o dual track. Isto porque, comumente, as técnicas


restaurativas são assimiladas posteriormente ao filtro de seleção penal.
Assim, pode-se intuir que a simples complementariedade ou instituição
simultânea de técnicas restaurativas e práticas penais triviais, sem o es-
tremecer da estrutura penal moderna, não suprime a seletividade penal,
apesar de fomentar a minimização da estigmatização social.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Posta a questão da seletividade e da estigmatização, pode-se afiançar


que a justiça transformativa e a mera aplicação de técnicas restaurativas
não se confundem, representando a simples institucionalização de instru-
mentos diversificados de solução de conflito que não afastam o paradigma
punitivo, dando evidência a um possível utilitarista para a finalização de
processos, sem se preocupar com os fundamentos e alicerces da reflexão
restaurativa. Sem dúvida, as práticas restaurativas implementadas nos
programas judiciais devem estar atentas a esse risco.
Nesse ínterim, o paradigma restaurativo requer mais. Pretende a for-
mação de um espaço que privilegie ações comunitárias, visando a corrigir
e elucidar as consequências e as motivações experimentadas por ocorrên-
cia do ilícito, viabilizando a resolução não estigmatizante e não encarce-
radora do conflito, assumindo como função determinante a emancipação,
através da evidência das relações de poder postas na estrutura penal do
caso concreto.
As múltiplas potencialidades da justiça restaurativa auxiliam a for-
mação de uma resposta penal mais humanitária. Contudo, no âmbito da
seletividade, ela pode ser insuficiente na eliminação da criminalização pri-
mária e secundária, haja vista que a porta de entrada para o arquétipo
restaurativo é o próprio sistema penal. Além disso, a justiça restaurativa
não pode representar uma ampliação da interferência estatal na vida das
pessoas.
Ademais, os processos restaurativos, penais ou não penais, não po-
dem ser uma estrutura para constranger o condenado ou acusado a uma
modificação moral, cultural, tencionando o abandono dos valores mais
íntimos e pessoais, em nome da vítima ou da coletividade. Neste ínterim,
o paradigma restaurativo deve pautar sua atuação, como se viu, na volun-
tariedade (elucidando os procedimentos e finalidades), no respeito às dife-
renças (sociais, culturais, econômicas e outras), bem como na formação de
Enegrecendo o Direito | 173

um projeto narrativo e integrativo, matizado pelo diálogo, eliminando ou


minimizando o processo de estigmatização social.

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