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• C O O R DENAÇ ÃO •
JULIO CESAR DE SÁ DA ROCHA
• ORGANIZAÇÃO •
CAMILA GARCEZ LEAL
ÉRIKA COSTA DA SILVA
JOÃO PABLO TRABUCO
LÁZARO ALVES BORGES
OQ U EDIREITO
STÕES RACIAIS NO BRASIL
O livro Enegrecendo o Direito: questões raciais no Brasil
representa, de forma competente, as investigações em-
preendidas por pesquisadoras(es) negras(os) do Programa
de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal da
Bahia (PPGD/UFBA). Mais do que isso, significa construção
teórico-conceitual que rompe epistemologicamente com a
“neutralidade racial” e assume a construção de uma her-
menêutica negra, o que torna a obra necessária e urgente,
em tempos de recrudescimento do racismo em suas dife-
rentes vertentes.
Assim, esta obra é excelente contribuição acadêmica com-
prometida com o combate ao racismo e ao epistemicídio
do pensamento negro.
ISBN 978-65-86483-09-3
9 786586 483093
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Silvana Santos Conceição
OQ U EDIREITO
STÕES RACIAIS NO BRASIL
Editora Mente Aberta
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E-mail: contato@editoramenteaberta.com.br
Coordenação Editorial
Pedro Camilo de Figueirêdo Neto
Conselho Editorial
DOUTORES: MESTRES:
Heliete Rosa Bento Angelo Boreggio
Jessica Hind Ribeiro Costa Bruno Barbosa Heim
José Rômulo de Magalhães Filho Fábio S. Santos
Luciano Sérgio Ventim Bomfim Geraldo Calasans Silva Júnior
Maria João Guia Isan Almeida Lima
Mariana Balen Fernandes Laerte de Paula Borges Santos
Nadialice Francischini de Souza Marcelo Politano de Freitas
Régia Mabel da S. Freitas Misael Neto Bispo da França
Ricardo Maurício Freire Soares Pedro Camilo de Figueirêdo Neto
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(Lei nº 9.610 de 19.02.1998)
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174 p.
ISBN: 978-65-86483-09-3
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8 | Apresentação - Julio Cesar de Sá da Rocha
na Tulane University Law School. Foi na cidade mais negra dos Estados
Unidos que várias questões me fizeram perceber e analisar a realidade
sob perspectiva distinta da lógica da supremacia branca norte-ameri-
cana com as discussões pioneiras sobre racismo ambiental no Câncer
Valley em meio à influência yoruba na santeria, do red bens and rice (feijão
e arroz) toda segunda-feira, do jazz negro da Bourbon Street, do okra co-
zido (bom registrar sua origem africana, precisamente na Etiópia, tam-
bém conhecido como quiabo, quingombô, gombô, quibombô, quigombó,
quibombó, quimbombô, quingobó) ou do carnaval do Mardi Gras. Ao
mesmo tempo, somente observava a presença de negros/as quando eram
atletas na Tulane University. A todo momento, reflexões sobre Salvador, a
Bahia e o Brasil vistos de fora. Enfim, a desigualdade racial é manifesta,
com implicações na reduzida presença negra nas universidades, inclusive
nos Estados Unidos (lá, os black comunnity colleges cumprem relevante
papel) e no Brasil. De fato, após toda a fase de formação e passagem como
docente pela Universidade do Estado da Bahia (com a feliz experiência
no Mestrado de Ecologia Humana e Gestão Socioambiental, em Pau-
lo Afonso), ingressei por concurso na Faculdade de Direito da UFBA.
Aqui nem planejava, mas fui eleito vice-diretor e, atualmente, diretor da
Faculdade de Direito, com seus 129 anos de criada. Aliás, os registros
históricos nas fichas de matrícula dos primeiros discentes (1891) não
indicavam a identificação étnico-racial, apesar de registro de ingresso da
primeira mulher em 1908 e conclusão em 1911.1
Por sua vez, a preocupação com o convite implica na grande res-
ponsabilidade diante da proposta, mas não podia recusar o projeto como
iniciativa e esforço do protagonismo das/os próprios discentes em aqui-
lombar pesquisadoras negras e pesquisadores negros, tendo em vista a
presença, quase escassa, destes(as) nas instituições de ensino superior
(IES), especialmente no nível do mestrado e doutorado. Com razão, Ab-
dias Nascimento (2020) indica, em seu livro O genocídio do negro brasi-
leiro, que uma das estratégias de extermínio foi omitir e mascarar dados
censitários e impossibilitar o acesso a direitos, como a educação. Assim,
em 1950, após um período de apagamento de dados de censo, o percen-
tual da população negra no ensino superior era de cerca de 0,5% (meio
por cento), já os dados atuais giram em torno de 15% (quinze por cento)
da população negra, muito por conta da política de cotas de acesso im-
plementada pelas universidades públicas, nas quais o percentual é su-
perior. 2
Com efeito, no universo em que a maioria da população é negra
(56%), o déficit de presença negra em espaços públicos e implementação
de cidadania ainda é abissal. Nesse sentido, é fundamental ressaltar a
noção do protagonismo e da fala das pesquisadoras e dos pesquisadores
aqui neste livro. No dizer de Grada Kilomba (2020, p. 50), em Memórias
da Plantação, “O centro acadêmico, não é um local neutro. Ele é um espa-
ço branco onde o privilégio de fala tem sido negado para pessoas negras”.
A elaboração dos capítulos a deste livro respondem a uma reflexão
teórica, mas, além disso, uma reflexão sobre “raça, gênero e o próprio
conhecimento jurídico”. A seguir, como indica Adilson José Moreira,
no campo jurídico existe um discurso não explicitado da “celebração da
neutralidade racial” como parâmetro de interpretação da norma jurídica
e, porque não afirmar do conteúdo do ensino e investigação no direito.
Assim, a presente coletânea de capítulos, redigidos por pesquisadoras
negras e pesquisadores negros do PPGD/UFBA, aponta uma postura
decolonial e antiracista em detrimento do saber formal apresentado nos
cursos jurídicos com seus manuais e influência do paradigma da bran-
quitude, adotado como universal e pretensa via única do conhecimento.
Como exemplo, cito a representação encaminhada ao Ministério Público
Federal e o questionamento, por ofício, sobre o porquê de, em concurso
público de História do Direito na Faculdade de Direito da UFBA, três
dos dez pontos abordados girarem em torno das seguintes temáticas:
“Colonialidade Jurídica e Constitucionalismo nas Américas: EUA, Haiti
e Brasil”, “Cultura jurídica e diáspora africana. História e Racismo no
Brasil: Direito e Relações Raciais” e “História das ideias jurídicas e intro-
dução dos discursos racialistas na Bahia”. Portanto, o que seria louvável
e incentivado como exigência para o certame de docente em História do
Direito, passou ser questionado, pois são temas que “fogem” à normalida-
de dos referenciais teóricos conhecidos universalmente na matriz histo-
riográfica eurocentrada.
2 50,3% em 2018. Apesar dessa parcela da população representar 55,8% dos brasileiros,
é a primeira vez que os pretos e pardos ultrapassam a metade das matrículas em
universidades e faculdades públicas. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/
geral/noticia/2019-11/pela-primeira-vez-negros-sao-maioria-no-ensino-superior-
publico. Acesso em: 20 jun. 2020.
10 | Apresentação - Julio Cesar de Sá da Rocha
3 “Racismo no Brasil: todo mundo sabe que existe, mas ninguém acha que é racista”, diz
Djamila Ribeiro. Entrevista BBC Brasil 07 de junho 2020. Disponível em: https://www.
bbc.com/portuguese/brasil-52922015. Acesso em: 22 jun. 2020.
12 | Apresentação - Julio Cesar de Sá da Rocha
Samuel Vida4
REFERÊNCIAS
Daí que, para romper estruturas cognitivas que tais, faz-se relevante
estudar a questão racial sob o prisma de outras esferas do saber jurídico,
para além das ciências criminais. Há, por exemplo, que se explorar a racia-
lização das relações trabalhistas, para montar uma estatística do racismo
no ambiente laboral. Há que se analisar a presença de negros e negras no
Poder Judiciário e no Ministério Público, para testar a idoneidade da polí-
tica de cotas, bem como para verificar o reflexo de tal presença na atuação
dos respectivos órgãos. Também, faz-se necessário estudar o superendivi-
damento da negritude no contexto das relações de consumo, dentre tan-
tos outros enfoques que a racialização, ínsita à formação do país, permite.
A proposta do presente trabalho passa pela questão fundiária, verti-
calizada para abordar os direitos e vicissitudes por que passam os rema-
nescentes quilombolas no Brasil dos últimos anos, demonstrando como a
referida comunidade assume perfil ambivalente, que ora expressa vulne-
rabilidade, ora resistência.
Trata-se de um povo que combateu, por décadas, as investidas de in-
vasores europeus, rompendo os grilhões da escravidão e elevando o espíri-
to identitário que, ainda hoje, serve-lhe de guia. Sucede que a necessidade
de resistência foi e é, para as comunidades quilombolas, necessidade de
reclusão, de ocupação de espaços que oscilam entre o sagrado e o clandes-
tino, suscetíveis à violência da disputa por terras agrícolas e do racismo
ambiental.
Nesse panorama, põe-se o problema: o julgamento da ADI n. 3.239
pode ser considerado um divisor de águas em benefício da questão qui-
lombola?
Tal como a ambivalência que marca o perfil do povo em tela, esse
julgamento pode, de fato, ser considerado um marco na defesa do seu pa-
trimônio e, por via de consequência, um tributo à sua memória, costumes
e origens. Sob outro ângulo, considerados os entraves políticos e admi-
nistrativos que dificultam a efetivação da justiça fundiária no Brasil, o
julgamento da ADI n. 3.239 pode consistir em mais uma demonstração do
caráter simbólico que ostenta a Constituição de 1988 e os diplomas legais
devotos à sua axiologia.
A presente abordagem é robustecida com dados coletados do con-
texto sociopolítico nacional, bem como pela breve análise do processo de
regularização fundiária das comunidades de Salinas da Margarida, São
Tiago do Iguape e Rio dos Macacos, todas situadas no Estado da Bahia,
visando a conferir ao tema um recorte mais nítido.
Enegrecendo o Direito | 31
Essa força, herança dos líderes aquilombados, corre nas veias dos
seus remanescentes e lhes permite persistir na luta pelo reconhecimento
do seu território e pela preservação dos seus costumes e de sua ancestrali-
dade. É o que lhes permite reivindicar, do Direito pátrio, a tutela dos seus
direitos, alcançando alguma vitória, a partir de previsões constitucionais,
como explanado no tópico seguinte.
Enegrecendo o Direito | 33
[...] suas manifestações culturais, seu cotidiano e seu modo de ser revelam
suas origens. Origens mais bem expressas não apenas na cor da pele de sua
gente, mas sobretudo na memória, nas lembranças dos velhos, de histórias
contadas por seus avós, que nos remetem sempre a um outro passado: o
dos mocambos. (FUNES, 1997, p. 140).
17 “A ‘raça’, como o gênero, é um modo bivalente de coletividade. Por um lado, ela se
assemelha à classe, sendo um princípio estrutural da economia política. [...] Ela estrutura
a divisão dentro do trabalho remunerado, entre as ocupações de baixa remuneração, baixo
status, enfadonhas, sujas e domésticas, mantidas desproporcionalmente pelas pessoas de
cor, e as ocupações de remuneração mais elevada, de maior status, de ‘colarinho branco’,
profissionais, técnicas e gerenciais, mantidas desproporcionalmente pelos ‘brancos’. [...]
Atualmente, além disso, a ‘raça’ também estrutura o acesso ao mercado de trabalho
formal, constituindo vastos segmentos da população de cor como subproletariado ou
subclasse, degradado e ‘supérfluo’ que não vale a pena ser explorado e é totalmente
excluído do sistema produtivo. O resultado é uma estrutura econômico-política que
engendra modos de exploração, marginalização e privação especificamente marcados
pela ‘raça’. [...]” (FRASER, 2006, p. 231-9).
Enegrecendo o Direito | 39
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
19 Observa-se que o termo “relações sociais” não exprime a verdadeira finalidade do
tema, como bem demonstra Ângela Figueiredo (2017, p. 84) ao afirmar que julga ser
mais adequado falar de “’hierarquias raciais’, já que enfatizaríamos a verticalidade das
relações sobre a suposta horizontalidade expressa na definição ‘Estudos das Relações
Raciais’”.
20 Entender o positivismo aqui destacado de acordo com a concepção do Direito
como ordem estabelecida, ou seja, da forma como assentada na sociedade capitalista
contemporânea, através de normas redigidas e impostas pela classe dominante (LYRA
FILHO, 1982, p. 18).
21 Termo utilizado para se referir à Constituição da República Federativa do Brasil
(1988).
22 Sobre o papel da colonização na construção da ideia de raça vigente no Brasil,
tem-se por centro do debate a escravização de pessoas negras e sua coisificação pelos
colonizadores, impondo uma cultura hegemônica de caráter ocidental, violando as
demais realidades e subjugando-as ao padrão europeu. (SANTOS, A. B., 2019, p. 47-48)
23 O autor aponta ainda que há, no Brasil, manipulação do biológico pelo ideológico.
Enegrecendo o Direito | 47
Resta, desse modo, a discussão acerca de como essas raças, que não
respondem ao conceito amplamente refutado da biologia,24 enfrentam-se
dentro de uma sociedade capitalista colonizada e estruturalmente racista.
Este texto, assim, busca: apontar, inicialmente, como o racismo cons-
trói, de forma estrutural, uma sociedade dividida entre pessoas brancas
privilegiadas e pessoas negras historicamente vilipendiadas; ulteriormen-
te, compreender a conexão que se faz entre o estudo dos direitos humanos
e a questão racial; apontar a inércia da doutrina ao ignorar a questão de
gênero; por fim, analisar quais as dimensões da dignidade da pessoa hu-
mana desenvolvidas na doutrina, com enfoque na produção brasileira, e
como a confluência desses sentidos interfere nas teorias raciais que culmi-
naram em leis com teor reparatório e protetivo para pessoas negras.
24 Para grandes autores e autoras críticas (os) do Direito posto, a definição de raça
humana como a única existente é tratada como leviandade, o que subverteria o papel
da discussão racial para desvirtuar e neutralizar o discurso negro. Assim dispõe, por
exemplo, Ana Flauzina (2006, p. 02).
48 | João Pablo Trabuco
25 Tal afirmativa se encontra disposta no Atlas da Violência de 2018, produzido pelo
Ipea, e que elucida a partir de dados alarmantes a evidente desigualdade racial enraizada
no Brasil. Nesta seara, por exemplo, aponta-se a discrepância entre a porcentagem da
morte de mulheres negras, que é 71% maior que a de mulheres brancas, confirmando,
assim, que a violência neste país tem um grupo étnico-racial como alvo e se alimenta
da inércia das instituições para se firmar. Também os dados gerais de 2006 até 2016
Enegrecendo o Direito | 49
limite quando se depara com a personificação daquilo que não está codi-
ficado.
Partir de um pressuposto no qual as mulheres negras eram tidas
como anomalias (DAVIS, 2016, p. 24), seguindo da vivência da escraviza-
ção, em que seus corpos recebiam a alcunha e o valor de uma propriedade,
certamente demonstrará que o momento atual dever ser analisado com as
devidas reticências.
Negado o título de “humano” ao sujeito negro, restava à mulher ne-
gra os resquícios daquilo de que podia desfrutar o homem. Muitas eram,
e ainda são, as formas de combater essa desumanização.
A começar pelas fugas e abortos das gravidezes frutos de estrupo
dos senhores de engenho (DAVIS, 2016, p. 199), contando hodiernamente
com a criação de uma epistemologia feminista negra que atribui à mulher
de cor a autonomia de se autodefinir, formando de si a imagem que quer,
e não a que lhe foi historicamente imposta por “outros” (COLLINS, 2016,
p. 105).
Mary Castro (1992, p. 57) pontua que “a cultura política das mulheres
deve ser construída no reconhecimento, e não na negação, das hetero-
geneidades”, razão pela qual, dentro do próprio movimento feminista, é
possível encontrar diversas vertentes.
O feminismo no Brasil, nesse sentido, não possui um sentido con-
fluente, isto é, não é hegemônico. Subdivide-se em feminismo da igual-
dade (cuja subordinação feminina é universal e decorre de fatores socio-
culturais) e da diferença (pautada na distinção entre mulheres e homens).
Dentro daquele, encaixam-se os feminismos liberal, socialista e o radical
(CARDOSO, 2012, p. 79-80).29
Assim, o feminismo negro é definido como um pensamento consisten-
te em “ideias produzidas por mulheres negras que elucidam um ponto de
vista de e para mulheres negras”, podendo ser registrado por outras pes-
soas, devendo, contudo, ser “produzido por mulheres negras” (COLLINS,
2016, p. 101). Inserir a palavra “negro” no feminismo é também uma for-
ma de desafiar a branquitude presumida do movimento (COLLINS, 2017,
p. 13), bem como pontuar, de forma sistemática, o protagonismo epis-
29 O feminismo liberal prega uma igualdade jurídica, levando em conta a meritocracia.
O feminismo socialista/marxista põe a opressão como fruto do patriarcado mesclado ao
capitalismo. Já o feminismo radical coloca a subordinação feminina como fruto do papel
de reprodução, sendo as mulheres prisioneiras da sua própria biologia (CARDOSO,
2012).
Enegrecendo o Direito | 53
intrínseca e plural, visto que, quando não pesa como contradição, pesa
como fortalecimento de um discurso colonialista e verticalizado.
Assim, deve-se indagar: como não considerar idílica uma teoria que
entende a dignidade da pessoa humana a partir do reconhecimento de ter-
ceiros (SARLET, 2007, p. 373), quando se vive numa sociedade que não
consegue reconhecer sequer a dívida histórica que tem com as pessoas e,
muito especificamente, com as mulheres negras?
O tom adotado por Ingo Wolfgang Sarlet (2007) se torna mais bran-
do ao tratar da esfera histórico-cultural da dignidade, compreendendo de
forma simplista que a dimensão ontológica não deve ser observada isola-
damente, mas em conjunto com o aspecto cultural, formado pelo trabalho
de gerações e da humanidade como um todo, complementando-se.
Ignora, portanto, a existência de fatores de sobreposição e invalida-
ções históricas de culturas, a exemplo da violência sociocultural e do trá-
fico humano praticado pelos europeus no Continente Africano (MATTO-
SO, 1990, 31).
Pode-se afirmar, ainda, que “o estado-nação brasileiro moderno é in-
compatível com a presença negra plena” e que “a presença negra é de
fato marcada por uma não presença” (VARGAS, 2016, p. 14), tornando
impossível tomar, como objeto de estudo, a possível cultura de algo que
não existe – ou melhor, que não se quer que exista. A imposição de algo
abstrato como o supracitado “trabalho da humanidade como um todo” não
pode ser adotado nessa discussão, senão num sentido pejorativo.
Ao dialogar com o conceito de multiculturalidade proposto por Boa-
ventura de Souza Santos (1997), a definição da dimensão em comento se
torna dúbia. Inicialmente, o termo cunhado como “multiculturalidade”
não é um conceito novo, sendo ainda alvo de críticas por parte de autores
como Stuart Hall (2003, p. 53-54), que aponta as incongruências de uma
“ideia profundamente questionada” e “longe de ser uma doutrina estabe-
lecida”.32
32 As críticas realizadas pelo autor ao termo “multiculturalismo” podem ser transferidas
para a temática do artigo, ou seja, a abordagem abstrata do conceito se assemelha com o
entendimento de dignidade da pessoa humana, especialmente quando Stuart Hall (2003,
p. 53-54) cita que os conservadores tratam o multiculturalismo como direitos de grupo,
desfazendo a ideia de nação.
Enegrecendo o Direito | 57
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
Estes, que nos ameaçam vir da América, se acham modelados por uma
civilização superior, falando uma língua própria e tendo um sentimento de
altivez e agressividade, natural no meio em que vivem e que não possuíam
os africanos que para cá vieram, em outros tempos da costa da África.
Esses, pela inferioridade de sua civilização, fundiram-se com os brancos
superiores; quem nos dirá que farão o mesmo os negros americanos? Mas
Enegrecendo o Direito | 67
se se conservarem infusíveis, neste caso teremos mais um perigo político
a nos ensombrar os destinos. Se se fundirem, neste caso teremos aumen-
tado a massa informe de mestiçagem inferior que tanto retarda o nosso
progresso.
Por se tratar de uma questão assaz complexa, neste tópico são men-
cionados os pontos principais que corroboram com a conclusão de que
existe uma ação jurídico-legislativa para que os tributos não se confor-
mem aos objetivos fundamentais da República brasileira.
Com fundamento na Constituição Federal, o sistema tributário se
mostra como um meio idôneo de reduzir a concentração de rendimentos
existentes no Brasil, sendo esse o efeito direto das medidas políticas in-
clusivas. Vale pontuar ainda os efeitos indiretos, tais como a diminuição
da criminalidade, a melhoria no bem-estar social e o aumento da produti-
vidade do país, mas acerca dessas decorrências indiretas não haverá, aqui,
maiores aprofundamentos.
O ponto central é que a incidência tributária sem distorções incons-
titucionais perfaria um caminho apto a resolver um gritante problema
social, que já passou do tempo de encontrar solução, mas que só se agrava,
Enegrecendo o Direito | 69
por força de uma conjuntura estatal de poder que trabalha em prol da per-
petuação dos privilégios de uma parcela ínfima da sociedade.
Na perspectiva jurídica, observa-se uma omissão advinda de um Di-
reito Tributário majoritariamente branco e que se resguarda sob a égi-
de de um fazer acadêmico eminentemente técnico, a serviço das finanças
públicas e da legalidade tributária, quase não havendo, por consequência,
pressão doutrinária no sentido de fazer coro e impulsionar as autoridades
tributárias a tomarem medidas em prol das ações afirmativas redistribu-
tivas.
A progressividade fiscal, ferramenta fundamental na prossecução dos
referidos objetivos, é uma técnica tributária que consegue fazer com que
os maiores rendimentos e patrimônios contribuam mais para o erário, ao
estabelecer maiores taxas sobre montantes que refletem uma elevada dis-
ponibilidade financeira. O seu oposto é a incidência regressiva, na qual
todos os contribuintes, independentemente de suas respectivas capacida-
des contributivas, pagam a mesma taxa. É o que ocorre com os impostos
indiretos.
Se há uma taxa de 30% de imposto indireto sobre um produto, todos
os contribuintes, dos mais pobres aos mais abastados, em regra, pagarão
a mesma taxa de 30% ao consumi-lo. Essa forma de tributar é um me-
canismo de aumento das desigualdades e da concentração de riquezas,
além de ser uma afronta direta ao princípio da capacidade contributiva.
Não por acaso, o maior montante de impostos arrecadados no Brasil vem
da tributação indireta, conforme expõe o economista Fabrício Oliveira
(FAGNANI, 2018, p. 88):
Até a Primeira Guerra Mundial, não existia na maior parte dos países ne-
nhum imposto sobre as rendas do capital ou sobre os lucros das empresas;
nos raros casos em que eles existiam, seus coeficientes eram baixíssimos.
Tratava-se, assim, de condições ideais para o acúmulo e a transmissão de
fortunas consideráveis, e para se viver da renda produzida por essas ri-
quezas. Ao longo do século XX, surgiram inúmeras formas de tributação
de dividendos, juros, lucros e aluguéis, o que mudou radicalmente a dis-
tribuição.
34 Esses números são parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)
realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgada no início
de 2018.
72 | Aline Santana Alves
A imagem prévia do negro seria o seu destino, por força dos efeitos
do racismo sobre a existência dessas pessoas; e o destino, forjado pelo
racismo, sustentava a imagem atribuída. E sendo, a contrapartida da ma-
nutenção desse ciclo, a perpetuação dos privilégios dos brancos, não havia,
por parte do Estado, a menor pretensão de romper o ciclo. Na verdade,
Enegrecendo o Direito | 75
Dado que este fenômeno não é exclusivo do Brasil, o estudo do Direito nas
sociedades ocidentais capitalistas enseja a constatação de que o racismo e
todas as agressões e violentações aos direitos dos povos coexistem com os
mais puros e rígidos critérios de direito justo, igualdade jurídica, princí-
pios de humanidade, legalidade, legitimidade, etc.[...]
6 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
37 Segundo a Constituição Federal, art. 5 XLII: “a prática do racismo constitui crime
inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. Para dar
cumprimento a essa previsão constitucional, foi promulgada a Lei n. 7716/89, que, em
seu artigo 1º, prescreve: “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de
discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação
dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)”.
92 | Lázaro Alves Borges
41 Ou que pensa como brancos ou que pensa como negros (MOREIRA, 2019. p. 120 e
ss).
42 Há aqueles que atribuem o racismo apenas às práticas escravagistas até a abolição
de 1888 ou a questões como o apartheid na África do Sul ou a doutrina do “equal but
separeted” do caso Plessy versus Ferguson (1896) até o Movimento de Direitos Civis a
partir da década de 60 nos Estados Unidos. Esses pertencem ao grupo liberal porque
tendem a acreditar possíveis práticas racistas realizadas por indivíduos.
Enegrecendo o Direito | 99
5 CONCLUSÃO
43 A prevenção geral é aquela que cria desestímulos à sociedade na prática de infrações
penais, enquanto que a especial dirige-se ao indivíduo, para que ele não volte a delinquir
(ARAÚJO, 2018. p. 777).
100 | Lázaro Alves Borges
REFERÊNCIAS
Daiane Ribeiro44
pelo Estado, que não é episódica, mas uma regra, a exemplo do que ocorre nas favelas
do Rio de Janeiro.
Enegrecendo o Direito | 107
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
coronavi%CC%81rus-na-ac%CC%A7a%CC%83o-policial-1.pdf.
Acesso em 22 de maio de 2020.
REDE DE OBSERVATÓRIOS DA SEGURANÇA. Operações policiais
no RJ durante a pandemia: frequentes e ainda mais letais. 2020.
Disponível em: http://observatorioseguranca.com.br/wp-content/
uploads/2020/05/Operac%CC%A7o%CC%83es-policiais-no-RJ-
durante-a-pandemia.pdf. Acesso em: 02 jun. 2020.
VALOR ONLINE. Coronavírus é mais letal entre negros no Brasil,
apontam dados do Ministério da Saúde. 11 abr. 2020. Portal G1.
Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/
noticia/2020/04/11/coronavirus-e-mais-letal-entre-negros-no-
brasil-apontam-dados-do-ministerio-da-saude.ghtml. Acesso em: 01
maio 2020.
VARGAS, Joao H. Costa. A Diáspora Negra Como Genocídio: Brasil,
Estados Unidos Ou Uma Geografia Supranacional Da Morte E Suas
Alternativas. Revista da ABPN, v. 1, n. 2 – jul.-out. de 2010.
6
“NOSSOS PASSOS VÊM DE LONGE”:48 OS DESAFIOS
DE UMA ADVOGADA NEGRA CANDOMBLECISTA NO
EXERCÍCIO DA PROFISSÃO
Inicio este texto pedindo agô, palavra em yorubá que significa licen-
ça, permissão. Peço licença para falar em primeira pessoa com a força da
ancestralidade que carrego no orí (cabeça). Utilizando-me dos ensinamen-
tos ancestrais das ialodês e com o poder de Carla Akotirene, “proponho
cantiga decolonial por razões psíquicas, intelectuais, espirituais, em nome
d’águas atlânticas” (AKOTIRENE, 2019, p. 21).
Peço permissão a essa mesma ancestralidade para falar o pretuguês
ensinado por Lélia González (1982, p. 69-82), “marca de africanização
do português falado no Brasil”, e trazer à baila um conceito de advocacia
feito por uma mulher negra advogada que luta pelos seus objetivos e pelos
objetivos da sua comunidade.
Esta escrita não fala só sobre a minha dor. Na verdade, as dores da ne-
gritude são compartilhadas. As vivências são entrelaçadas, pois, uma vez
que “o racismo é a neurose cultural brasileira”, precisamos nos irmanar
(GONZÁLEZ, 1983, p. 224). Escrevo sobre o que nos interessa e procuro
trazer as pessoas à reflexão.
48 WERNECK, 2009.
49 Candomblecista. Advogada. Mestranda em Direito Público pelo Programa de Pós-
graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia. Membra da Comissão de
Combate à Intolerância Religiosa e da Comissão de Direito Criminal da OAB-BA.
111
112 | Camila Garcez Leal
50 Yàwó é a/o filha/filho de santo que já passou pela iniciação religiosa.
51 De acordo com Silvio Almeida (2019, p. 32), o preconceito é o juízo baseado em
estereótipos acerca de indivíduos que pertençam a um determinado grupo racializado, e
que pode ou não resultar em práticas discriminatórias.
Enegrecendo o Direito | 113
52 Educadora, líder religiosa brasileira, militante da liberdade religiosa, porta-voz das
religiões de matriz africana, bem como dos direitos das mulheres e da população negra.
Faleceu em 19 de março de 2019.
53 “Art. 33. É vedado ao Estado e ao Município: 3 - Estabelecer, subvencionar ou
embargar o exercício de cultos religiosos” (BRASIL. 1939).
54 “O GOVERNADOR DO ESTADO DA BAHIA no uso de suas atribuições e
CONSIDERANDO que na expressão “sociedades afro-brasileiras para atos folclóricos”,
a que se refere a Tabela I, anexa à Lei nº 3.097, de 29 de Dezembro de 1972, se tem
identificado para fins de registro e controle nela previstos as entidades que exercitam o
culto afro-brasileiro, como forma exterior da religião que professam; CONSIDERANDO
que semelhante entendimento se não ajusta no sentido e alcance da lei, sendo antes
antagônico aos princípios constitucional que assegura a liberdade do exercício do culto;
114 | Camila Garcez Leal
59 Define os crimes resultantes de preconceito de raça e de cor. “Art. 1º: Serão punidos,
na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor,
etnia, religião ou procedência nacional”.
60 Segue reportagem que aponta provável subnotificação nos casos de intolerância
religiosa: CANÔNICO, Marco Aurélio; CAPETTI, Pedro. Denúncias de ataques a
religiões de matriz africana sobem 47% no país. O Globo, 26 jan. 2019. Disponível
em: https://oglobo.globo.com/sociedade/denuncias-de-ataques-religioes-de-matriz-
africana-sobem-47-no-pais-23400711. Acesso em: 05 jan. 2020.
Enegrecendo o Direito | 117
61 Exú é o orixá mensageiro entre o orun (mundo espiritual) e o aiyê (terra), é o guardião
dos caminhos.
118 | Camila Garcez Leal
REFERÊNCIAS
62 Frase da Yalorixá Mãe Stella de Oxóssi do Terreiro Ilê Asé Opô Afonjá, falecida em
27 de dezembro de 2018 e que dá título ao seu livro mais famoso – Meu tempo é agora,
1993.
Enegrecendo o Direito | 119
Uma simples pergunta que nos ajuda a refletir é: quantas autoras e autores
negros o leitor e a leitora, que cursaram a faculdade, leram ou tiveram
acesso durante o período de graduação? Quantas professoras e professores
negros tiveram? Quantos jornalistas negros, de ambos os sexos, existem
nas principais redações do país ou mesmo nas mídias ditas alternativas?
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
mpsp.mp.br/portal/pls/portal/!PORTAL.wwpob_page.show?_
docname=2577596.PDF. Acesso em: 4 jun. 2020.
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racismo e direito no centro da roda. Cadernos do CEAS, Salvador,
n. 238, p. 488-499, 2016. Disponível em: https://periodicos.ucsal.br/
index.php/cadernosdoceas/article/view/252/218. Acesso em: 5 jun.
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conflicto y la fortaleza de la ley. Centro de Estudios de Justicia de las
Américas - CEJA - Chile/Santiago, 2018.
MOREIRA. Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de
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MUNIZ, Veyzon Campos. Em políticas públicas “não basta não ser
racista, é necessário ser antirracista”. Justificando. São Paulo,
2019. Disponível em: http://www.justificando.com/2019/05/24/
em-politicas-publicas-nao-basta-nao-ser-racista-e-necessario-ser-
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RIBEIRO. Djamila. Lugar de fala. Coleção Feminismos Plurais. São
Paulo: Pólen, 2019.
SOARES, Evelyn. Revista Forum: a face da magistratura brasileira.
AMAERJ, 8 nov. 2018. Disponível em: https://amaerj.org.br/
noticias/revista-forum-a-face-da-magistratura-brasileira/. Acesso
em: 4 jun. 2020.
8
A (DES)ASSISTÊNCIA DAS GARANTIAS PREVISTAS NA
LEI DE EXECUÇÃO PENAL ENQUANTO VERTENTE DO
GENOCÍDIO ANTINEGRO
1 O LEGAL E O REAL
65 Sobre o tema, Lélia Gonzales afirma que “as condições de existência material da
comunidade negra remetem a condicionamentos psicológicos que têm que ser atacados
e desmascarados. Os diferentes índices de dominação das diferentes formas de produção
econômica existentes no Brasil parecem coincidir num mesmo ponto: a reinterpretação
da teoria do “lugar natural” de Aristóteles. Desde a época colonial aos dias de hoje,
percebe-se uma evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores
e dominados. O lugar natural do grupo branco dominante são moradias saudáveis,
situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por
diferentes formas de policiamento que vão desde os feitores, capitães de mato, capangas,
etc., até a polícia formalmente constituída. Desde a casa grande ao sobrado até aos
belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido o mesmo. Já o lugar natural do
negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, invasões, alagados e
conjuntos “habitacionais” [...] dos dias de hoje, o critério tem sido simetricamente o
mesmo: a divisão racial do espaço. [...] No caso do grupo dominado o que se constata são
famílias inteiras amontoadas em cubículos cujas condições de higiene e saúde são as mais
precárias. Além disso, aqui também se tem a presença policial; só que não é para proteger,
mas para reprimir, violentar e amedrontar”. (GONZALES, 1984, p. 232).
66 Frantz Fanon ensina que “a zona habitada pelos colonizados não é complementar
da zona habitada pelos colonos. Estas duas zonas se opõem, mas não em função de uma
unidade superior. Regidas por uma lógica puramente aristotélica, obedecem ao princípio
da exclusão recíproca: não há conciliação possível, um dos termos é demais. [...] este
mundo cindido em dois, é habitado por espécies diferentes. A originalidade do contexto
colonial reside em que as realidades econômicas, as desigualdades, a enorme diferença
dos modos de vida não logram nunca mascar as realidades humanas. Quando se observa
em sua imediatidade o contexto colonial, verifica-se que o que retalha o mundo é antes de
mais nado o fato de pertencer ou não a tal espécie, a tal raça”. (FANON, 1968, p. 28-29).
67 Sobre o sistema educacional como um dos ângulos do genocídio, Ana Flauzina
ensina que, “dos efeitos mais visíveis das dificuldades de acesso, segurança e condições
financeiras para a aquisição do material escolar, também estão colocadas as questões
epistemológicas que fazem do ensino um local de reprodução e reconhecimento dos
acontecimentos relacionados ao segmento branco e de estigmatização dos eventos e das
contribuições referentes à população negra e indígena. [...] O viés eurocêntrico que
permeia a produção intelectual no Brasil acaba por produzir uma educação silente no
136 | Érika Costa da Silva
Esse ajustamento social vai ser refletido, também, nos deveres e nas
supostas garantias da instituição prisão, que é composta predominante-
mente por pretos e pardos, que representam um pouco mais de 65% de
toda a população carcerária do país (INFOPEN, 2019).
De modo que, destaco no presente trabalho as garantias previstas na
Lei de Execução Penal, dispostas essencialmente nos artigos 10 e 11, que
preveem que a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, cujo
principal objetivo é prevenir o crime e orientar o retorno desses condena-
dos à convivência social, sendo certo que essas assistências devem ser ao
menos material, de saúde, jurídica, educacional, social e religiosa.
O rol previsto no artigo 11 da LEP é meramente exemplificativo, de
modo que o Estado deve oferecer todo o tipo de assistência ao condenado,
a fim de melhor atender as suas necessidades.
O advento da LEP e do seu rol de garantias gerou uma expectativa de
que o condenado não seria mais “considerado mero objeto”, mas passaria
a ser o “titular de posições jurídicas de vantagem como sujeito proces-
sual [...] Não mais simples detentor de obrigações, deveres e ônus, o réu
torna-se titular de direitos, faculdades e poderes” (GRINOVER, 1987, p.
5-14). Ocorre que essa legislação não foi capaz de resolver o problema
das violações perpetradas pelo Estado contra a população prisional, pois,
de fato, o conteúdo da LEP se mostrou ineficaz em relação ao controle da
legalidade do cotidiano carcerário.
Nesse sentido, Ela Castilho sinaliza, por exemplo, que a criação da
LEP não foi capaz de diminuir as denúncias de maus-tratos contra a po-
pulação carcerária, sendo sintomática, ainda, “a inexistência de litígios
versando diretamente sobre direitos e deveres dos presos, bem como so-
bre questões decorrentes da imposição de sanções disciplinares” (CASTI-
LHO, 1988, p. 108).
Assim, o advento da LEP não superou o encarceramento em massa,
a política criminal punitivista, a superlotação das unidades prisionais com
a ausência de estrutura e de vagas, a morosidade do Poder Judiciário no
processamento das ações penais e na apreciação das prisões preventivas,
bem como a manutenção de uma política de segurança pública genocida.
Todos esses mecanismos potencializam as violações aos direitos hu-
manos da pessoa encarcerada e a LEP, mesmo com todas as garantias e
direitos, não conseguiu dar conta das violações perpetradas pelo Estado
contra essa população.
A título de exemplo, uma das maiores tragédias do sistema prisional
brasileiro, o massacre do Carandiru, que ocorreu em 02 de outubro de
1992, deixando 111 (cento e onze) pessoas mortas pela Polícia Militar
após a entrada, autorizada pelo governo do Estado de São Paulo, para
conter uma rebelião na Casa de Detenção, ocorreu sob “o olhar” da LEP,
que já estava em vigor no país há oito anos.
Em julho de 2019, ocorreu também o massacre no Pará, em que 58
(cinquenta e oito) pessoas morreram em um conflito de facções, no super-
lotado Centro de Recuperação Regional de Altamira, Pará.
Dados de estudos do país apontam que 61% dos acusados de crimes
de tortura são agentes públicos, sendo que 42% da violência contra a po-
pulação carcerária é praticada pela polícia penal (PASTORAL CARCE-
RÁRIA, 2015).
Neste ponto, importante registrar que esses servidores públicos pos-
suem, como função, exatamente o oposto, considerando que deveriam
zelar pela vigilância, custódia, guarda e orientação das pessoas encarce-
radas. Estes deveres funcionais guardam relação direta com o poder disci-
plinar exercido pelo Estado e que, nestes casos, é realizado através desses
agentes públicos.
Desse modo, segundo afirma Luís Carlos Valois (2020), toda prisão
no Brasil é ilegal. Isto porque, para o autor, a prisão deve ser sempre
considerada como “instituição do Estado que deve cumprir a lei, coisa
evidente, mas que a prisão não faz”, pois apesar de existir a LEP desde o
ano de 1984, “em cada uma de suas páginas há pelo menos um artigo que
não é cumprido. Ou seja, a lei que prevê a própria prisão é violada cons-
tantemente”.
Com efeito, há um verdadeiro desinteresse, por parte do Estado e
da sociedade civil, na promoção de políticas públicas e na execução das
garantias e direitos da população carcerária, muitas vezes travestido do
frágil argumento da ausência de recursos materiais, o que acaba por trans-
formar o sistema prisional, em resumo e, nas palavras de Rochester Oli-
veira Araújo (2014, p. 135), em um “ambiente mais representativo de que
os objetivos constitucionais da construção de uma sociedade justa estão
mais longe de serem alcançados do que se imagina”, e a não aplicação das
assistências legais garantidas aos condenados apenas “demonstram como
a Execução Penal retrata bem uma zona escura de injustiça social”.
138 | Érika Costa da Silva
2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
69 Sojouner Truth, em discurso na Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados
Unidos, em 1851.
70 Texto extraído e adaptado do artigo de mesmo título apresentado em junho de 2020
como Trabalho de Conclusão de Curso da faculdade de Direito do Centro Universitário
UniRuy.
71 Bacharelanda do curso de Direito do Centro Universitário UniRuy. Membro do
Núcleo Multidisciplinar de Pesquisa e Extensão em Relações Raciais (NUMPERR/
UniRuy). Lattes: http://lattes.cnpq.br/1105943646679098. E-mail: lspereira.direito@
gmail.com.
72 Especialista em Ciências Penais (PUCRS). Mestranda em Direitos Fundamentais
e Justiça (UFBA). Integrante do Núcleo de Estudos sobre Sanção Penal (CNPq/
UFBA). Professora no Centro Universitário UniRuy nas disciplinas Direito Penal e
Processo Penal. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5564775889838065. E-mail:
teixeiranazario@gmail.com.
145
146 | Lethycia Pereira & Ana Nazário
1 O DESEMBARQUE
Na verdade, aos olhos de seus proprietários, elas não eram realmente mães,
eram apenas instrumentos que garantiam a ampliação da força de trabalho
escravo. Elas eram “reprodutoras” – animais cujo valor monetário podia
ser calculado com precisão a partir de sua capacidade de se multipicar.
73 Condutas já tipificadas no Código Criminal do Império, nos artigos 295 e 296, e
mantidas no Código Penal de 1890 nos capítulos “Dos mendigos e ébrios” e “Dos vadios
e capoeiras”.
150 | Lethycia Pereira & Ana Nazário
74 Nessa linha, vale lembrar a menção de Alexander (2017, p. 44), que refere: “os
governos usam em primeiro lugar a punição como ferramenta de controle social e que
por isso a extensão ou o rigor das punições com frequência não guardam relação com os
padrões de criminalidade”.
Enegrecendo o Direito | 151
75 A situação torna-se ainda mais difícil se vivenciada por mulheres trans, idosas,
portadoras de doenças crônicas, grávidas ou lactantes que demandam ainda mais cuidado,
principalmente quando, por exemplo, necessitam de atendimento médico especializado e
não são assistidas pelo Estado.
152 | Lethycia Pereira & Ana Nazário
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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BORGES, Juliana. Necropolítica na metrópole: extermínio de corpos,
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Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.
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https://www.cnj.jus.br/juiz-brasileiro-e-homem-branco-casado-
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DAVIS, Angela Y. A democracia da abolição: para além do império
das prisões e da tortura. Tradução de Artur Neves Teixeira. Rio de
Janeiro: Difel, 2009.
160 | Lethycia Pereira & Ana Nazário
3 O LUGAR RESTAURATIVO
nais de reação ao crime, sob pena de ser integrada à estrutura penal tradi-
cional ou promover uma dupla penalização do indivíduo.
Nesse mesmo sentido, afirma-se que a justiça restaurativa emerge
com a pretensão de construir um novo paradigma criminal. Essa perspec-
tiva é conduzida a partir da mensagem desvinculada dos preceitos legais,
abraçando uma perspectiva de aproximação comunitária – de formação de
empatia e, muitas vezes, de sensibilização, distante da oficialidade tradi-
cional.
Assim, observa-se que a justiça restaurativa pode promover seus fins,
com o objetivo de atuar de forma autônoma, sob a supervisão cautelosa
das instituições estatais de reação à violência, viabilizando a mitigação
crescente dos valores retributivos, incluindo os processos de etiquetamen-
to.
Parece necessário pugnar por um modelo que confira precisão cirúr-
gica na implementação dos dois sistemas (penal e restaurativo) e suas im-
plicações jurídicas, criando pontes entre eles, observando, primordialmen-
te, o risco de ampliação da interferência estatal nas vidas das pessoas, bem
como a aproximação aos direitos humanos, minorando o encarceramento.
Afere-se, ainda, que a justiça restaurativa surge com a pretensão de
construir uma nova hermenêutica para a justiça criminal, ao instituir uma
interpretação axiológica desvinculada do revanchismo com suporte legal.
Isso tudo, no vislumbre da construção de outra ótica das relações cole-
tivas que priorize as necessidades das pessoas afetadas pelo ilícito, bem
como fomente meios não punitivos para a eficiente reintegração social.
No entanto, a justiça restaurativa parece não ser capaz de eliminar ou
mitigar os processos de seleção do sistema penal, pois a justiça restaurati-
va, em regra, destila seus efeitos depois que os processos de criminaliza-
ção primária e secundária já promoveram seus efeitos.
De acordo com a Labeling Approach (BARATTA, 1997), a criminaliza-
ção primária ocorre com a definição de standarts penais pelas tipificações;
a criminalização secundária se qualifica quando as instituições de controle
estabelecem a etiqueta daqueles considerados desviantes; e a criminaliza-
ção terciária se firma quando a sociedade mantém o rótulo de desviante,
incluindo a situação em que o próprio indivíduo absorve e assume o es-
tigma.
Em regra, as potencialidades da justiça restaurativa, no âmbito da se-
letividade, não elidem a criminalização primária e secundária, a partir dos
principais modelos institucionalizados, dentro de um paradigma punitivo,
172 | Caio Vinícius de Jesus Ferreira dos Santos
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS