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~ de uma sociedade de SQ1J§umo que lhe .Jl@!1ipulaos


desejos, ouantecâmara-rustrante e neurótrcá de um mundo emco-;;:
vulsões,
~ lugar-de - conllltos a ectivos, sentimentos recalcados, ninho
violado onde as personagens se encontram para ver .televisão ou_1l.f11i!
repousar durante a noite de um ciclo infernal quotidiano...

LÉVI-STRAUSSI

'-.
NATUREZA E CULTURA

De todos os pnncipros avançados pelos precursores da sociologia, nenhum, 111


dúvida, f i re udiado com tanta segurança como aquele ue se referiu à distinç.r c 111111
estado de natureza e estádo de sacie e. Não se pode, com efeito, referir I I 111
êontradição a uma fase da evolução da humanidade no decurso da qual 111,
ausência de toda a organização social, não tivesse desenvolvido menos Iorm
actividade que são parte integrante da cultura. ( ... )
O Homem de Ne erthal, com o seu provável conhecimento da lin u'" li!
as suas indústrias liticas e os seus ritos funerários, não pode ser consider d
vivendo no estado de natureza: o seu nível cultural opõe-no, no entanto, o I
sucessores neoliticos com um rigor comparável - posto que num sentido dif r 111/
àquele que os autores do século XVII e XVIII atribuiam à sua própria distinç
sobretudo, começa-se a compreender que a distinção entre estado de natureza
de sociedade- jia falta de uma significação histórica aceitável, apresenta um v I r 1<'1111I
que justifica plenamente a sua utilização, pela sociologia moderna, como um in t""1I111I1I
~de método. O homem é um ser biológico ao mesmo tempo que um indivídu '01 I .1
.,. Entre as respostas que dá às excitações exteriores ou interiores, algum fi I1" 1111

integralmente da sua natureza, outras da sua condição. ( ... )


Mas a distinção não é sempre tão fácil: muitas vezes o estimulo fisico hlul"UI, 11
e o estimulo psicossocial suscitam reacções do mesmo tipo; e podemos intcno ,.11 1111
como já o fazia Locke. se o medo da criança no escuro se explica como um 11111111'
tação da sua natureza animal ou como o resultado dos contos da sua am
Mais ainda: na maioria dos casos, as causas nem sequer são realm nt di 11111
\
e a resposta do sujeito constitui uma verdadeira integração das origen blUII' (11\
das origens sociais do seu comportamento. ( ... ) f ue a cultura não e t., nuru
'usta osta, ~ aQena;; soQreR.Q.S.,ta_; ll.iclil. Em certo sentido, e~stitul
noutro sentido, Elli!.. l!liliz,,-· e.nansíorma-a para ~alizar uma sintese d UI1II
n va ....
É verdade que o acaso mostrou por vezes ter êxito naquilo em QlI ti I1lI'h 111
é incapaz: a imaginação dos homens do século XVIII foi fortement 11111111
11111 "I.

, l.es Structures élémentsíres de Ia Parente, 1967, Mouton & C.·. La Hay •

144 10
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':~;i[~~;~;~0t;rji.%$~~{.i.l;1:;;/~;:~~:i

P 10 caso daquelas ianças selvagens», perdidas no campo desde a infância, e às quais


MêS mais do que através dos fracassos perante provas precisas, convencemo-nos
um excepcional concurso de acasos permitiu subsistir e desenvolver-se fora de toda
disto por uma verificação de ordem mais geral e que nos faz penetrar mais profunda-
influência do meio, mente no seio dos problemas.
Como dizia, pouco mais ou menos, Voltaire: uma abelha afastada, longe do seu
( .. ) ~ social dos macacos não se presta à formulação de nenhuma norma,
nxame é incapaz de o reencontrar, é uma abelha perdida; mas não se tõ'mõü, Na presença do macho ou da fêmea, do animal vivo ou morto, o 'I ~b
por isso, uma abelha mais se vagem, As '«crianças selvagens», quer sejam o produto mais velho, do' parente ou do estranho, o macaco comporta-se com uma surpreendente
do acaso ou da experimentação, podem ser monstruosidades culturais; mas em nenhum versatilidade. Não 56 o comportamento do mesmo sujeito não é constante, como
asa os testemunhos fiéis de um estado anterior. nenhuma regularidade pode ser deduzida do comportamento colectivo. Tanto no
Não se pode pois esperar encontrar no homem a ilustração de tipos de compor- domínio da vida sexual como no que se refere às outras formas de actividade, o esti-
tamento de carácter r~tu a .2era então possrve procurar um caminho inverso, mulo externo ou interno, e os afastamentos aproximativos sob a influência dos fracassos
e tentar encontrar, nos níveis superiores da vida animal, atitudes e manifestações em que e sucessos, parecem fornecer todos os elementos necessários à solução dos problemas
se possa reconhecer o ~oço, os sinais precursores da cultura? É, aparentemente, de interpretação, Estas incertezas aparecem no estudo das relações herárquicas no
a oposição entre o comportamento humano e o comportamento anim~que nos fornece seio do mesmo grupo de vertebrados, permitindo todavia estabelecer uma ordem de
a ilustração mais. evidente da antinomla da cultura e da natureza. A passagem - se é subord.nacão dos animais uns em relação com os outros. Esta ordem é notavelmente
que ela existe - não deveria pois ser procurada na ordem das supostas sociedades estável, uma vez que o mesmo animal conserva a posição dominante durante períodos
animais tais como se encontram em certos insectos. Porque em nenhuma parte da ordem de um ano, E todavia, a sistematização torna-se impossível por irregularidades
melhor do que em tais exemplares se encontram reunidos os atributos, impossíveis de frequemes. ( ... ) Acontece o mesmo no que se refere às relações e preferências indivi-
desconhecer, da natureza: o .instinto. o único equipamento anatómico CU!.ELp.QSle ermi- duais dos macacos antropóides, onde estas irregularidades são ainda mais marcadas. ( ... )
tir-me a actividade __ :.I.. e a tra~ssãohereditária dos comportãniêiit~ssenciais
~_._......,. à sobre- Esta ausência de regras parece determinar o critério mais seguro que permite
vivênClil"d-o individuo e da espécie. enhum lugar, nestas estruturas colectivas, nem distinqu.r um processo natural de um processo cultural. Nada de mais sugestivo, em
sequer para um ~boco ,
~~;:;-~-p;deria chamar modelo cultural universal: lin-
.-..... relação a isto do que a oposição entre a atitude da criança, mesmo muito jovem, para
guagem, instrumentos, instituições sociais e sistemas de valores estéticos, morais ou quem todos os problemas estão regulados por nitidas distinções, mais nitidas e impera-
re~ É à outra extremidade da escala animal que devemos dirigir-nos se espera- tivas, por vezes. que no adulto, e as relações entre os membros de um grupo sirnio.
'mos- descõbrir um começo destes comportamentos humanos: junto dos mamiferos totalmente abandonados ao acaso e às circunstâncias em que o comportamento de um
superiores, e mais precisamente dos macacos antropóides. sujeito não informa nada sobre o comportamento do seu congénere, em que a conduta
Ora as investigações prosseguidas há uma trintena de anos sobre os grandes do mES!õ10 individuo hoje não garante em nada a sua conduta de amanhã,
macacos são particularmente desencorajantes sobre este assunto: não que as compo- .. ) A constância e a regularidade existem, a bem dizer, tanto na natureza como
nentes fundamentais do ~9!~0_ ~ultural n·v. este'am ausentes: é possível: à custa na cultura. Mas, no seio da primeira, aparecem precisamente no dominio em que, na
de esforços imensos, levar certos sujeitos a articular alguns monossilabos ou dissílabos, segunda, se manifestam mais fragilmente, e inversamente. Num caso é o domínio
aos quais não se atribui contudo nunca sentido; ~!,ode. da hereditariedade biológica, no outro O da tradição externa. Não poderiam os exigir
utilizar Instrumentos elementares e, eventualmente, Improvlsa-Ios; relaçoes temporaTi1i's a uma ilusória continuidade entre as duas ordens que desse conta dos pontos através
de 'solidq.r:i.e.d.a~o_u __da.subordinacáo.jpcdern a tecer _e lli;J;fg~er,-se_nQ.~e um dado dos cuais elas se opõem. Nenhuma análise real permite pois captar o ponto de passagem
grupo; finalmente podemos comprazer-nos em reconhecer, em certas atitudes s'ingTilares, entre os factos de natureza e os factos de cultura, e o mecanismo da sua articulação,
oesboços de formas desinteressadas de actividade ou de contemplação. Mas a discussão precedente não nos trouxe apenas este resultado negativo; ela deu-nos,
Facto notável: são sobretudo os sentimentos que voluntariamente associamos com a presença ou ausência da regra nos comportamentos subtraidos às determinações
à parte mais nobre da nossa natureza, cuja expressão parece poder ser mais facilmente instintiloêS, o critério mais válido das atitudes sociais. Por toda a parte onde a rema se
identificada nos antropóides: assim o terror religioso e a ambiguidade do sagrado. manifes:a sabemos com certeza estar no estado de cultura. Simetricamente, ó fácil
Mas se todos estes fenómenos se impõem pela sua presença, são mais eloquentes )econbêC€r no uniyersal o critério da natureza. Porque o que é constante em todos os
ainda - e noutro sentido - pela sua pobreza. Ficamos menos espantados pelo seu hOrT:?ns escapa necessJriamente ao dominio dos costlJilleS das técnicas e das insti-
esboço elementar do que pelo facto confirmado por todos os especialistas da impossibi- tuições através das quais os grupos se diferenciam e se onãern. Na falta de análise
lidade. ao que parece radical, de levar estes esboços para além da sua expressão mais Jlt real, o duplo critério da norma e da universalidade deterrninao principio de UCDaanálise
primitiva.
ongenhosas,
ouando
sons,..da
ausência
ise,
Assim,

ling.!!agern
irremediáveJ
o fosso
na realidade
demonstra
~ mesrrlQ
que se podia
apenas

da linguagem
os
se deslocou,
...que n~~.h.um obstáculº--ª.natómico
conjuntos
e total
esperar ultrapassar
para aparecer

silábicos,
incapacidade
i
ficamos
através
mais

de atribuir
mais
de mil observações
inultrapassável
diz ao macaco
admirados
aos s
articular
ainda:

p~a
os

. idos
\ I
,
I. ~
~ \)

.,J\)
'~Y
ideal,
isolar
mais
ordem
a uma
que

ccrnplexa.
da
pode
os Elementos

natureza
norma'
permitir
naturais
Aceitemos

ertence
-

e caracteriza-se
pelo

à cultura
pois
menos
dos elementos
que
em certos

tudo
culturais

~Q.llll.tane.i~,
e ares
o que

n a _o
casos
que intervêm
e dentro

é universal,
qua.zudo
no
de certos
nas sinteses
homem,
o qua.ns:
aHibut.o.s-.dCLL€.latüw-e-dO-parti.<:.l.lLlr.
limites
de ordem
r~leva
-

da
S_ull!J1P

ou ouvias o carác er.de-sinsie A mesma veri icaçào se impõe noutros dominios. ( ... ) ~ ~~tamos então confrontados com o facto, ou antes com um conjunto de factos, que

146

cii
,~ ~ 147
não está longe, à luz das definições precedentes, de aparecer como um escândalo: que-
remos referir-nos a esse conjunto complexo de crenças, de costumes, de estipulações e O PROBLEMA DO INCESTO
de instituições que sumariamente se designa pelo nome de proibição do incesto.
Porque a proibição do incesto apresenta, sem o menor egujvoço, e ,indissoluvelmente Este problema da proibição do incesto apresenta-se à reflexão com toda a arnbi-
reunidos, os dois car~res aos quais nós reconhecemos os atributos contraditórios de guidade que, num plano diferente, se dá conta do carácter sagrado da própria proibição.
duas ordens exclusivas: ela constitui uma regra, mas uma regra que, única em todas as Esta regra. social pela sua natureza de regra. é ao mesmo tempo pré-socia! num dupl.o
regras sociais, ossui ao mesmo tempo um carácter de u . . . Que a proibição sentido: primeiro, pela sua universalidade, em seguida, pelo tipo de relaçoes às quais
do incesto constitui uma regra não tem necessidade de ser demonstrado; bastará ela impõe a sua norma. Ora, . a sexual é, ela ró ria. duplamente exterior ao .grup ?
lembrarmo-nos de que a interdição do casamento entre parentes próximos pode ter Ela exprime no mais alto grau a natureza animal do homem, e atesta, no róp seio
um campo de aplicação variável conforme a maneira como cada grupo define o que ~manidade. a sobrevivência mais característica dos instin!2s; em segundo lugar,
ele entende por parente próximo; mas que esta interdição, sancionada por penalidades ~~ s i s são de novo du lamente, transcendent~s: visam a satisfa'lão, qu~r dos
sem dúvida variáveis, que podem vir desde a execução imediata dos culpados à repro- desejos individuais dos quais se sabe suficie~ente que.~ão dos n:enos res eltosos
vação difusa, por vezes apenas à troça, está sempre presente em qualquer grupo social. ! /"0 dentre as co ven ões sociais, uer das tendências espe.clflcas ql!!LLgualmente ultra-
Não interessa aqui, com efeito, invocar as famosas excepções com que a sociologia ; CY passam, posto que noutro sentido, os fins próp~ da socleda~e. Notemos: no entanto,
tradicional se contenta muitas vezes em sublinhar o pequeno número. Porque toda a
sociedade faz excepção à proibição do incesto, quando se considera do ponto de vista
de uma outra sociedade cuja regra é mais estrita do que a sua. ( ... )
0j que se ã regulamentacão das relacões entre os sexos ccnstrtui uma mupcao da cultura
no seio da natureza, de um outro modo a vida sexual. é, no ,:;ei?, 9a nature~a: u~ co~:.!~_
da vida social: porque: ntre todos os inS:in'tos, '0 'instIi1to sexual é o único que: ~ara
e,

A questão não é pois de saber se existem grupos que permitem casamentos ~I se definir. tem necessidade da estirnulaçâo dout~em. _ Devemos retomar este ultimo
~ .f ~ ..>- por1tõ; ele não fornece uma' passagem, ela própria natural, entre, a natureza e a cultura,
que outros excluem, mas antes se há grupos nos quais nenhum tipo de casamento
.r -f> o que seria inconcebível, mas explica uma das razões pelas quais é no terreno da Vida
é proibido. A resposta deve ser, então, absolutamente negativa, e num duplo sentido:
rimeiro porque o casamento não é nunca autorizado entre tcdos os arentes róxim s, \''';-
'.9-
t \9-
O .j"
sexual, de preferência a qualquer outro. que a passagem entre. as duas orden~ pode
e deve necessariamente operar-se. Regra que constrange aquilo que, na SOCiedade,

à:;.
mas ap~s entre Ç.ertascate orias ( ... ) e.mseWiga porque estas uniõ o
têm, uer um caráct~L tetnporár!o
permanece
restrita. ,.. )
e ritual
úJ.timQ. caso, como
que um carãcter oficial e permanente, mas
privilégio de uma categoria social muitQ.
<V"

,
~
I lhe é mais estranho; mas ao mesmo tempo regra social que retém, na natureza, o, q~e
é susceptível de ultrapassá-Ia; a proibição do incesto e:tá, a~. mesmo temP2. np Ilm:~
da cultura. na cultu'ra, e, em certo sentido tentaremos mostra-Io -, é a própna cul~u.~a.
-- O caso do antigo Egipto é bastante perturbador, porque descobertas recentes ~-y;/I)c..:: Basta. de momento, notar a que dualidade de caracteristicas ela deve o seu caracter
sugerem que os casamentos consanguineos - particularmente entre irmão e irmã- ~.:P''' li ambiguo e equívoco. Menos do que dar conta desta arnbiquidade. os sOCIÓI~gos lirni-
representaram talvez um costume difundido nos pequenos funcionários e artesãos e ~. ~ ~- .• ~ taram-se quase exclusivamente. a reduzi-Ia. As suas tentativas de explicação podem
não limitado, como se pensou outrora, à casta reinante e às mais tardias dinastias. U';\I' \\}! redu~ir.se a trê_s tipos pnncrpars. (... ).. .
Mas em matéria de incesto não poderia haver ai excepção absoluta. O nosso eminente ~-J. •\- -º--.E"~~.Ê~o~e explícação - que segue alias a crença popular em vlg~r em
colega M. Ralph Linton fazia-nos notar um dia que na genealogia de uma familia nobre ' ....
~i V'" numerosas sociedades, a nossa inclusive - tenta manter a dualidade de caractertsticas
de Samoa, estudada por ele, em oito casamentos consecutivos entre irmão e irmã, , li da proibição. dissociando-a em duas fases distintas: Para Lewis H. Morgan e Slr Henry
apenas um punha em causa uma irmã mais nova, e que a opinião indigena tinha-o }...,I Maine. por exemplo, a origem da proibição do incesto é de facto, ao mesmo tempo,
condenado como imoral. O casamento entre um irmão e a sua irmã mais velha aparece "
natural e social; mas no sentido de que ela resulta de uma reflexão s~clal sobre u~
jJois como um c cessão ao direito de rimo nit ; e não exclui a roibicão do \ fenómeno nat~ral. A proibição do incesto seria uma medida de protecçao Visando por
incesto u vez_q.u~,-.alé.r:n.
da mãe e da filha, a irmã mais nova constitui um conjunto ã' êspécie ao--;brigo dos resultados nefastos dos casamentos consanguíneos. Esta
interdito, ou pelo menos desaprovado. Ora um dos raros textos que possuímos sobre teoria apresenta uma característica notável: é que' ela é obrigada a estender-se, pelo ori-
a organização social do antigo Egipto sugere uma interpretação análoga; trata-se do próprio enunciado, a todas as sociedades humanas, até às mais pnrruttvas ( ... ). o. p -
Papiro de Boulaq n.O 5 que relata a história de uma filha de rei que quer desposar o seu vilégio sensacional da revelação das pretensas consequências das unlõe~ endoqãrnicas.
irmão mais velho. E a sua mãe nota: «Se não tenho filhos depois destes dois, não existe Esta justificação da proibição do íncesto é d: origem recente; ela nao aparece em
a lei de os casar um com outro?» Aqui também parece tratar-se de uma fórmula de parte alguma, na nossa sociedade, antes do século...)<"VI. ( ... )
proibição autorizando o casamento com a irmã mais velha, mas reprovando-o com a Um segundo tipo' de explicação tende a eliminar um dos termos da antinomia
mais nova. ( ... ) dos caracteres natural e social da instituição. Para um grande grupo de SOCiólogos
A proibição do incesto possui, ao mesmo tempo, a universalidade das tendências e psicólogos, de que Westermarck e Havelock Ellis s~o os principais representant.e~,
e dos instintos. e o carácter coercitivo das leis e das instituições. Donde vem ela? - d o .me esto não é outra coisa senão a Q!Qjeccap 011 p reflexo,.. no lano socla
a prolibirçao ara,
Qual é o seu lugar e significação? ( ... ) de sentimentos ou de tendências ue a -'natureza human ' asta ~ntelramente
ex I'lcar Algumas variacões importantes podem encontrar-se entre os defensores de~ta
posição:. alguns fazem derivar
. ,
o horror do IDceSIO, .
postulado na ongem d a proibição,

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da natureza fisiológica do homem, outros antes das suas tendências psíquicas. cultura, e por consequêncía não nos devemos espantar por vê-Ia possuir da natureza
De facto, limitam-se a retomar o velho preconceito da «voz do sangue» que se encontra o seu carácter formal, quer dizer, de universalidade. Mas num sentido também, ela
aqui expresso sob uma forma maís negativa do que posítiva. ( ... ) é já a cultura agindo e impondo a sua regra no seio de fenómenos que não dependem,
As explicações de jg[ceiro_tigo\ ( ... ) pretendem também eliminar um dos termos inicialmente, em nada dela.
da antínomia. ( ... ) Mas enquanto que os partidários do segundo tipo de explicação querem Fomos levados a pôr o problema do incesto a propósito da relação entre a exis-
reduzir a proibição do incesto a um fenómeno psicológico ou fisiológico de carácter tência biológica e a existência social do homem, e logo verificámos que a proibição
instintivo, o terceiro grupo adopta uma posição simétrica, mas inversa: vê na proibição não releva exactamente, nem de uma, nem de outra. Propusemo-nos, neste trabalho,
do incesto uma regra de origem puramente social e cuja expressão em termos bioló- dar a solução desta anomalia, mostrando que a proibição do incesto constitui precisa-
gicos é um aspecto acidental e secundário. ( ... ) Considerada como instituição social, mente a ligação que as une uma à outra. Mas esta união não é estática nem arbitrária
a proibição do incesto aparecia sob dois aspectos diferentes: Ora estamos apenas em e no momento em que se estabelece, a situação total encontra-se completamente modi-
presença da interdição da uníão sexual entre próximos consanguíneos ou colaterais; ficada, Com efeito, é menos uma união do que uma transformação ou passagem:
ora esta forma de proibição, fundada num critério biológico definido, não é senão um antes dela a cultura não está ainda dada; com ela a natureza deixa de existir no homem
aspecto de um sistema mais amplo do qual toda a base biológica parece ausente: como regra soberana.
em numerosas sociedades, a regra de exogamia proibe o casamento entre categorias A incesto é o rocesso pelo qual a natureza se ultrapassa a
sociais ~clu~_r1L os parentes róximos, mas, a par deles, um número considerável si me~; ela acende a centelha sob a acção da qual uma estrutura de um novo ti o, e
de indivíduos entre os quais não é possível estabelecer nenhuma r~~o de c~n- mais complexa, se forma e se sobrepõe, integrando-as nas estruturas mais simE.!es ~ -
sanguínídade ou colateralidade. ou nalguns casos, relações muito longínquas. Neste vída sí uica, como estas últimas se sobrepõem, integrando-as, nas_ estrutu~a_s ~ais
último caso, é o capricho aparente da nomenclatura que assimila os individuos marca- simples do que elas próprias, da vida animal. Ela opera, .e por isso mesmo constitui,
dos por interdição a parentes biológicos. O problema da proibição do incesto não é o aparecimento de uma ordem nova.
bem procurar que configurações históricas, diferentes segundo os grupos, explicam as
modalidades da instituição nesta ou naquela sociedade particular. O problema consiste o UNIVERSO DAS REGRAS
em perguntar que causas profundas e omnipresentes fazem com que, em todas as socie-
da~e~~!::e~-tid~~~s ~po~_~~~_xistã regülârT::~~~~Cl...
das relações entre sexos. Se a raiz do incesto está na natureza, não é no entanto senão pela sua expressão,
quer dizer, como regra social, que podemos apreendê-Ia. De um grupo para outro ela
A análise ilusória a que acabamos de nos entregar explica pelo menos porque a testemunha uma extrema diversidade, tanto no que diz respeito à sua forma como ao
sociologia contemporânea preferiu muitas vezes confessar a sua impotência mais do seu campo de aplicação. Muito restrita na nossa sociedade, ela aperfeiçoa-se nos graus
Que obstinar-se numa tarefa cujos fracassos parecem ter sucessivamente fechado as de parentesco mais afastados em certas tribos norte-americanas, Inútil acrescentar
I ntativas. que, neste último caso, ela toca menos a consanguinidade real, muitas vezes impossível
( ... ) É verdade que, pelo seu carácter de universalidade, a proibição do incesto toca de estabelecer. que por vezes nem sequer existe, do que o fenómeno puramente social
natureza, quer dizer à biologia, ou à psicologia, ou a ambas; mas não é menos certo pelo qual dois indivíduos sem parentesco verdadeiro se encontram colocados na classe
Que, enquanto regra, ela constitui um fenómeno social e que diz respeito ao universo dos «irmãos» ou das «irmãs», dos «pais» ou das filhas.
dos regras, quer dizer da cultura, e por consequência à sociologia cujo objecto é o estudo A roibição confunde-se então com a re ra da exogamia. Por vezes também
U cultura. ( ... ) subsistem conjuntamente.
Nós mostrá mos como os antigos teóricos que se aproximaram do problema da ( ... ) Analisada do ponto de vista mais geral, a proibição do incesto exprime a
proibição do incesto se colocaram num dos três pontos de vista seguintes: alguns passagem do facto natural da consa!lQuinidade ao facto cultural da alianca. A natureza
Invocaram o duplo carácter, natural e cultural, da regra, mas limitaram-se a estabelecer opera já, por si mesma, segundo o duplo ritmo de receber e de dar, que se traduz na
I ntr um e outro uma conexão extrínseca, constituída por uma actividade racional do oposição do casamento e da filiação. Mas se este ritmo, igualmente presente na
p n amento. Os outros, ou quiseram' explicar a proibição do incesto exclusivamente, natureza e na cultura, Ihes confere de certo modo uma forma comum, não aparece, nos
u de maneira predominante, por causas naturais, ou viram nela exclusivamente, ou de dois casos, sob o mesmo aspecto. O dominio da natureza carac1eriza-se pelo facto de
/I11n ir predominante, um fenómeno de cultura. ( ... ) Cada uma destas posições que não se dá não a uilo ue se recebe. O fenómeno da hereditariedade expríme
.onduz a impossibilidades e contradições. Uma via fica aberta por consequência: esta permanência e esta continuidade. No domínio da cultura, pelo contrário, o indiví-
I que fará passar da análise estática à síntese dinâmica. duo recebe sempre mais do que dá, e ao mesmo tempo dá mais do que o que recebe.
A proibição do incesto não é, nem puramente de origem cultural, nem puramente Este duplo desequilíbrio exprime-se respectivamente nos processos, inversos entre si
111 onçern natural; e ela não é também uma dosa~ de elementos comoósitos tirados e igualmente opostos ao precedente, da educação e da invenção. Não está certa-
11 Irei Imente à- natureza e parcialmente à cultura. Ela c nstitui a entativa fundamental mente nas nossas intencões referir aqui que os fenómenos vitais devem ser considerados
IrjlÇl à ual e pela qual, mas sobretudo na qual, se realiza a passªgem da natureza como fenómenos de ~quilibrio; o contrário é manifestamente verdadeiro. Mas os
cultur Num certo sentido, ela pertence à natureza, porque é uma condição geral da desequilíbrios biológicos não aparecem como tais senão na sua relação com o mundo

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físico. Comparados com os fenómenos culturais, mostram-se, pelo contrário, sob as (.--) Na imensa maioria das sociedades humanas os dois problemas são coloc dll
espécies de estabilidade, enquanto que o privilégio da sintese dinâmica passa aos no mesmo plano porque, num e noutro dominio, a natureza deixa o homem m !:Ir,
fenómenos de uma nova ordem. Analisado deste ponto de vista, o roblema da sença do mesmo risco: a sorte do homem saciado tem o mesmo valor emotivo, pu 111
passa em da natureza à cultura retoma pois o problema da 'n ãs:uie....p ocessos servir de pretexto à mesma expressão lirica que a do homem amado ( ... ) Para drnhh
de acumulação no seio de processos de repetiç~o. a assimilação das mulheres às comodidades, por um lado raras e por outro lado
( ... ) Como acabamos de sublinhar, a natureza, como a cultura, opera segundo ciais à vida do grupo, basta-nos evocar o vocabulário matrimonial da Grand -R~,
o duplo ritmo de receber e de dar. Mas os dois momentos deste ritmo, tal como o repro- em que o noivo é chamado «mercador» e a noiva «mercadoria».
duz a natureza, não são indiferentes aos olhos da cultura: perante o primeiro período,
o de receber, que se exprime através do parentesco biológico, a cultura é impotente:
a hereditariedade de uma criança está integralmente inscrita no seio dos genes veiculados ENDOGAMIA E EXOGAMIA
pelos pais; tais eles são, tal ele próprio será. A acção momentânea do meio pode
acrescentar a sua marca; ela não poderia fixá-Ia independentemente das transformações Estabelecendo uma regra de obediência geral - (. .. ) - o grupo afirm O u
deste meio. Mas consideremos presentemente a aliança: ela é tão imperiosamente direito sobre o que considera legitimamente como um valor essencial. ~cu m,
exigida pela natureza como a íiliaçâo. mas não da mesma maneira. nem na mesma sancionar °a desigualdade n ui ão dos sexos no seio das fnmll I •
medida. (.:.) A natureza dá a cada indivíduo determinações veiculadas pelos e estabelece. sobre o único fundamento posSível, a liberdade de acesso às mulh,,,
seus pais efectivos. Mas não decide em nada quais serão estes pais. A hereditariedade do grupo, reconhecida a todos os indivíduos. Este fundamento, em suma, é o S li 11I"
é pois, entendida do ponto de vista da natureza, duplamente necessária: primeiro como que nem o estado de fraternidade nem o de paternidade podem ser invocado 11mI
lei - não há geração espontânea - em seguida como especificação da lei; porque reivindicar uma esposa, mas que esta reivindicação vale apenas na qualidad d 111111
a natureza não diz só que é necessário ter pais, mas também que sereis semelhantes todos os homens se considerem iguais na sua competição perante todas as rnulhr "
a eles. Ao contrário. no que se refere à aliança. a natureza contenta-se em afirmar a lei, o das suas relações respectivas definidas em termos de grupo e não de familia. I fi JI I
mas ela é indiferente ao seu conteúdo. Se á relacão entre pais e filhos é rigorosamente revela-se ao mesmo tempo vantajosa para os indivíduos, porque obrigando-os a r ""11
det inada ela natureza dos rimeiros a relacão entre macho e fêmea só o é R.!ili> ciar a um lote de mulheres imediatamente disponíveis, mas limitado ou mesm 111111111
acaso e pela probabilidade. ( ... ) A. cultura deve inclinar-se perante a fatalidade da restrito, abre a todos o direito de reivindicação de um número de mulheres cuja di pllll
hereditariedade bjolÓgka; ( ... ) Mas a cultura, impotente perante a filiação, tODla~- bilidade é de facto adiada pelas exigências do costume, mas que é teoricam nt I \I
ciência dos seus diréitos ao mesmo tempo que de si mesma, perante o fenó_rne,1lo elevada Quanto possível e a mesma para todos. C .. )
diferente da aliança. o único sobre o qual a natureza não disse ainda tudo. Aí apenas, O casamento não aparece apenas nas comédias musicais como uma insutult •. 11
mas também lá finalmente. a cultura pode e deve, sob pena de não existir, afirmar a três: ele é sempre e em toda a parte e por definiçâo. Porque as mulheres con ru1111 111
«eu primeiro» e dizer à natureza: «tu não irás mais longe». um valor essencial à vida do ru o, em to casamentos in ervêm necessorr 11111 1\11
(._.) É precisamente _a alianca ue or ece a dobradica ou, mais exactamente, o grupo e sob uma forma d Ql.i' da «riyal» que.-.at v' edi 'rio d IIIIJlII
~talhe_em que a dobEdiça se pode fixar: a natureza impõe a alianca sem a determinar; afirma que possui um_direito de acesso igual ao-do-cõcjuqe, direito cujas conlfl~1
e -a ara logo definiras suas modalidades. (.--) nas quais se fez a união devem estabelecer ue este foi ill eitado; e a do grUpO '11111111\1
Analisado o facto da regra de maneira inteiramente independente das suas moda- - ru o ue afirma que a re!acão u o asamento ossível deve ser 50 rnl 1 I1I
lidades. constitui, com efeito, a própria essência da proibição do incesto. Porque se é, definida em termos do grupo - e não natural - ( ... ) Analisada no s u '111 I I••
a natureza abandona a aliança ao acaso e ao arbitrário, é impossível à cultura não puramente formal. a proibição do incesto não é pois senão a afirmação, por p 111
introduzir uma ordem. qualquer que seja a sua natureza, ai onde ela não existe. grupo, que em matéria de relações entre sexos nem tudo se pode fazer. I I'" I••
O papel primordial da cultura é o de assegurar a existêncja do gnrpo corno grupo; positivo da interdição é iniciar um princípio de organização. Objectar-se-ó 11\ III1Vhl.

e pois substituir, neste domínio como em todos os outros, a organizacão ao acaso. (",) que a proibição do incesto não desempenha em nada uma função do or /.1111.' I
É impossivel abordar o estudo das proibições do casamento se não penetrarmos, Não se transforma, em certas regiões da Austrália e da Melanésia, num VI ,li ItI. 11••
desde o início. no sentimento concreto de que os factos deste tipo não têm nenhum monopólio das mulheres instaurado em beneficio dos anciães. e, moi 1,.,1,," 111
carácter excepcional, mas representam uma aplicação particular, num dominio dado, na poligamia. C .. )
de principios e métodos que se encontram de cada vez que a existência física ou Mas estas «vantaqens», se pretendemos considerá-Ias como tais, n
espiritual do grupo está em jogo. Não são apenas as mulheres cuja ~epartição o grupo terais; a análise mostra, pelo contrário, que elas comportam sempre um 011111111111101
~l.a as todo um con-unto de valores de que a alimenta ão é o mais facilmente positiva. C--) Analisemos o caso de um chefe Nambi~uara que cornprorn I< 11/111111111.
~ável ... entre as mulheres e a alimentação existe todo um sistema de relações demográfico da sua pequena horda monopolizando várias mulheres, qUI t ri 11 111 I,h
reais e simbólicas cuja natureza só pode esclarecer-se progressivamente, mas cuja normalmente outras tantas esposas monogâmicas à disposição dos hom n rI,1 11 I'
apreensão, mesmo superficial, basta para fundar esta aproximação: «A mulher alimenta seguinte. Seria arbitrário isolar a instituição do seu contexto: o cheIo d IlIlItI I I
~_Rorco~ os pai trocam-nos e aa..aídei, s to m-n selas mul eres» W pesadas responsabilidades, (o •. ) sem as suas mulheres polígamas, cornp 1111111"

152

." o
I
do que esposas, e libertas pelo seu estatuto especial da servidão do sexo, sempre Assim, os Australianos são exogâmicos QUiHU.o.....ao lã mas e âmicos no ue se I
rontas a acompanhá-Io e assisti-Io nas suas expedições de reconhecimento e nos refere à tribo; ou a sociedade americana moderna, que combina uma exo amia familiar
s us trabalhos agrícolas ou artesanais, o chefe não poderia fazer face a todas as suas .rigida para o primeiro grau, fi xível a partir ~ segundo' ~rceiro com uma ~dogami~
obrigações. A pluralidade das mulheres é pois, ao mesmo tempo, a recompensa do _de raça, rigida ou flexivel conforme os Estados. ( ... ) Pelo contrário, a outra f~de
poder e o seu instrumento. ( ... ) endogamia ( ... ) que se poderia chamar «endogamia funcional», uma vez que ela é apenas
A poligamia não contradiz pois a exigência de uma repartição equitativa das mulheres; uma função da exogamia. fornece a contra partida de uma regra negativa. No casa-
ela sobrepõe apenas uma regra de repartição a outra. De facto, monogamia e poligamia mento entre rimos cruzados, por exemplo, a classe dos ossiveis côn'u es não se
correspondem a dois tipos de relações complementares: de um lado, o sistema de apresenta nunca como uma categoria endogãmica. Os primos cruzados não são tanto
pr stações e de contraprestações que liga entre si os membros individuais do grupo; os parentes que devem casar-se entre si, mas ~rimeiros dos parentes entre os auaís
doutro lado, o sistema de prestações e de contra prestações que liga entre si o conjunto o casamento é ossivel, visto que os primos paralelos são assimilados a irmãos e irmãs.
do grupo e o seu chefe ( ... ) além disso, nós apenas destacamos na proibição do incesto Este carácter essencial foi desprezado frequentemente, sendo o casamento entre primos
o aspecto mais sumário: o da regra enquanto regra. Considerada sob este ãngulo, cruzados, em certos casos. não apenas autorizado, mas obrigatório. É obrigatório desde
ela não fornece ainda uma solução ao problema; instaura apenas uma medida preliminar, ue é ossivel, porque fornece o sistema concebivel mais sim les de reci roeidade. ...
o por si mesma desprovida de fecundidade, mas que é a condição das tentativas ulteriores. Com efeito ( ... ) o casamento entre primos cruzados é essencialmente um sistlW1i!
Em suma, ela afirma que não é com base na sua repartição natural que as mulheres ~as. Mas enquanto que, neste caso, são necessários apenas dois casamentos para
devem receber o seu uso social (... ) a proibição do incesto tem de inicio, logica- manter o equilíbrio. torna-se necessário um ciclo mais complexo e por conseguinte
mente, por fim «congelam as mulheres no seio da familia, a fim de que a repartição das mais frágil, cuja finalização feliz é mais incerta, quando a relacão de parentesco entre
mulheres, ou a competição pelas mulheres, se faça no grupo e sob o controle do grupo, cônjuges se torna mais longinqua. O casamento entre estrangeiros é um progresso
e não sob um regime privado. Foi este o único aspecto que até agora examimímos, social (porque integra grupos mais vastos); e também uma aventura.
mas vimos também que é este o aspecto primordial, o único que é co-extensivo à (... ) A proibição do incesto não é apenas ( ... ) uma interdição: ao rnesrno tempo
proibição toda. Vamos mostrar agora ( ... ) como se faz a passagem, de uma regra com que proíbe. ordena. A proibição do incesto, tal como a exogamia que é a sua expressão

~ conteúdo originalmente negativo a um conjunto de estipulações de outra ordem.


Considerada como interdição, a proibição do incesto limita-se a afirmar, num
social extensa, é uma regra de reciprocidade. A mulher que recusamos, que nos
recusam, é por isso mesmo oferecida. A quem é ela oferecida? Quer a um grupo

? dominio essencial à sobrevivência do grupo, a roeminência do social sobre o natural,


do colectivo. sobre o indiVidual, d~ or9..anlzaçáo s~bre o arbitrário. Mas me_sononeste
definido pelas instituições, quer a uma colectividade indeterminada e sempre aberta,
limitada apenas pela exclusão dos próximos, como é o caso da nossa sociedade ( ... )
plano de analise, a regra, na aparencia negativa, Ja engendrou a sua conversao: porque quer nos encontremos no caso técnico do casamento chamado «de troca» ou em
toda a interdição é, ao mesmo tempo e numa outra relação. uma prescrição. Ora a presença de qualquer outro sistema matrimonial, o fenómeno fundamental que resulta
proibição do incesto, desde que a analisemos deste novo ponto de vista, aparece de da proibição do incesto é o mesmo: é que a partir do momento em que me proibo
tal modo carregada de modalidades positivas que esta sobredeterminação põe imediata- o uso de uma mulher, que se torna assim disponível para outro homem, há. em qualquer
mente um problema. parte, um homem que renuncia a uma mulher, que se torna. por este facto, disponivel
Com efeito, as regras do casamento não se limitam sempre a interdizer um círculo para mim. O conteúdo da proibição do incesto não se esgota na proibição: ela não é
de parentesco; por vezes, também determinam um, no interior do qual o casamento instaurada senão para garantir e fundar. directamente ou indirectamente. imediata ou
necessariamente deve realizar-se, sob pena de provocar um escândalo do mesmo tipo imediatamente, uma troca.
que o que resultaria da violação da própria proibição. Devemos aqui distinguir dois
casos: por um lado a endogamia, por outro lado a união preferencial, quer dizer a obri-
gação de se casar no interior de um grupo definido objectivamente, no primeiro caso,
e, no segundo, a obrigação de escolher para cõnjuge um individuo que mantenha com O PRINCiPIO DA RECIPROCIDADE
o sujeito uma relação de parentesco determinada. Esta distinção é dificil de fazer
nos casos dos sistemas classificatórios de parentesco, onde todos os individuos apre-
sentam entre si ou com um sujeito dado uma relação de parentesco definida, formando As conclusões do admirável «Essai sur le dom) S20 bem conhecidos. Neste
uma classe, e poder-se-ia passar assim, sem transição Inarcada, da união preferencial estudo, hoje clássico, Mauss propõe-se mostrar, primeiro, que a troca se apresenta,
Lendo amia ro riamente dita. nas sociedades primitivas, m~nos sob a forma de trapsaccão do que d'i dons reciprocos;
Distinguiremos portanto dois tipos de endogamia: uma que não é senão o reverso em seguida, que estes dons reciprocas ocupam um lugar muito majs importante ne~s
de uma regra de exogamia e que não se explica senão em função desta. e a endoga- .~ociedades que na nossa; finalmente. que esta forma primitiva das trocas nã~
mia verdadeira. que não é um aspecto da exogamia, mas se encontra sempre ao mesmo apenas nem essencialmente um carácter económico mas põe-nos em presença do que
tempo que ela, não sob a mesma relação, mas simplesmente em conexão. Qualquer ele chama com êxito .«um facto social total», quer dizer, Qotado de uma s.\g[Üticação
sociedade encarada sob este ponto de vista é simultaneamente exogâmica e endogâmica. ao mesmo tJm1D.Q3! cial e r,lligiosa, máica e econQ a utilitária_ e sentimental. juridic3!.-.

154

~.. ~.
( ... ) Em que consistem pois as estruturas mentais a que recorremos e de qu
e moral. Sabe-se que em muitas sociedades primitivas ( ... ) tQ.ÇjEsas cerimónias celebradas
acreditamos poder estabelecer a universalidade? Elas são, segundo parece, trO :
~sião de acontecimentos importantes são acompanhadas por uma distribuição
a exigência da regra como regra; a noção de reciprocidade considerada como a form I
de riquezas. ( ... ) A mais característica destas instituições é o potlatch dos índios do
mais imediata sob a qual possa ser integrada a oposição do eu e do outro; finalmenl ,
Atasca e de Vancõver. ( ... ) Os bens não são apenas comodidades económicas, mas o carácter sintético do Dom, quer dizer, o facto de a transferência consentida de um valor
veiculos e instrumentos de realidades doutra ordem: poder, simpatia, estatuto, emoção; de um individuo para outro os transformar em comparsas, e acrescentar uma qualidad
e o sábio jogo de trocas (onde frequentemente não há transferência real, do mesmo nova ao valor transferido. A questão da origem destas estruturas será retomada adiant .
modo que os jogadores de xadrez não dão as peças que avançam alternadamente no
tabuleiro mas procuram apenas provocar uma resposta) consiste num conjunto complexo
de manobras, conscientes ou inconscientes, para ganhar garantias e precaver-se contra
riscos no duplo terreno das alianças e das rivalidades. ( ... )
E não é apenas na sociedade primitiva que parece reinar a ideia de que uma vanta- A RECIPROCIDADE EXPLlCADA
..-: .
gem misteriosa se liga à obtenção de comodidades - ou pelo menos de algumas entre
elas - por via dos dons reciprocos. mais do que pela de produção ou aquisição indi-
viduais. ( ... ) Tudo se passa na nossa sociedade como se certos bens com valor de Assim, é sempre um sistema de troca que encontramos na origem das regras d
consumo não essencial. mas aos quais atribuimos um elevado preço psicológico, casamento, mesmo daqueles cuja singularidade aparente parece poder justificar por i
estético ou sensual, pois como as flores, os bombons e os «artigos de luxo» fossem só uma interpretação especial e arbitrária ( ... ) quer seja sob uma forma directa ou
considerados como devendo adquirir-se sob a forma de dons recíprocos. mais do que indirecta, global ou especial. imediata ou diferida, explicita ou implícita. fechada ou
sob a forma de compra e do consumo individuais, ~estas e cerimónias na nossa aberta, concreta ou simbólica, é a troca. sempre a troca que ressalta como base fund I
sociedade regulam o regresso periódico e o estilo tradicional de vastas operações de troca. mental e comum de todas as modalidades da instituição matrimonial. Se estas mod I
A troca de presentes de Natal, à qual, durante um mês em cada ano, todas ãS classes lidades podem ser subsumidas pelo termo geral exogamia (porque ( ... ) a endog 011 I
sociais se aplicam com uma espécie de ardor sagrado, não é mais do que um gigantesco não se opõe à exogamia mas supõe-na). é com a condição de nós a perceb rm
potlatch implicando milhões de individuos, no termo do qual muitos orçamentos fami- por trás da expressão superficialmente negativa da regra da exogamia, a finalido 11
liares ficam desequilibrados por longo tempo. que tende a assegurar, pela interdição do casamento nos graus proibidos. a circula I,
( ... ) A troca, fenómeoo to-ta. . antes de tudo uma troca total com reendendo total e continua. destes bens do grupo por excelência que são as suas mulherc I ,
a alimentação, os objectos fabricados, e essa categoria de bens, os mais preciosos de suas filhas. ( ... )
todos, as mulheres. O valor da exogamia é inicialmente negativo. A exogamia fornece o úruco nu 111
Como a exogamia, a proibição do incesto é uma regra de reciprocidade; porque de manter o grupo como grupo. de evitar o fraccionamento e fechamento ind fil1ld,
só renuncio à minha filha ou à minha irmã com a condição de que o meu vizinho a que o levaria a prática de casamentos consanguineos: se se recorresse a el c 0111
também renuncie às suas; a violenta reacção da comunidade perante o incesto é a persistência, ou apenas de maneira muito frequente, estes não tardariam flll I
reaccão de uma comunidade lesada; a troca pode não ser-ao contrário da exogamia- «explodir» o grupo social numa multidão de familias que formariam tantos
nem' explícita nem imediata: mas o facto de eu poder obter uma mulher é, em fechados, mónadas sem portas nem janelas, e de que nenhuma harrnom
última análise, a consequência do facto de um irmão ou um pai terem renunciado a belecida poderia prever a proliferação e os antagonismos. (... )
ela. ( ... ) Com efeito. ,a troca não vale apenas o que valem as coisas trocad S'
O papel da troca na sociedade primitiva é essencial, porque engloba ao mesmo - e por consequência a regra da exogamia que a exprime - tem por si m
tempo certos objectos materiais, valores sociais e as mulheres; mas enquanto que em valor social: ela f rnece o mei li ar os homens entre si, e de sobrepor,
relacão às mercadorias este papel diminui progressivamente de importância em pro- naturais do parentesco, ligações dorôvante artificiais, porquanto subtrai ao
verto doutros modos de aquisição, pelo contrário, no que diz respeito às mulheres, encontros ou à promiscuidade da eXistênCia familiar a aliança regida cora ( r
conservaram a sua função fundamental: por um lado, porque as mulheres constituem A proibição do incesto é menos uma regra que interdiz de desposar m, • 111111
o bem por excelência ( ... ) mas sobretudo porque as mulheres não são inicialmente ou filha. do que unlareg'ia 'que"obriqa il dar-mãe, irmã ou filha a outrem. r 1" li••
um sinal de valor social, mas um estimulante natural; e estimulante do único instinto d~~ po; 'excelência:--É de facto e~te aspecto. muitas vezeS-desconhecido. u p' 11111'1
cuja satisfação pode ser adiada: o único pelo qual, por consequência, no acto de troca compreender o seu carácter: todos os erros de interpretação da proibiç O do 1111' "I
e pela percepção da reciprocidade, a transformação se pode operar do estimulante provem de uma tendência para ver no casamento um processo descontlnu ,<lU I 11 1
para o sinal e, definindo por esta tentativa fundamental a passagem da Natureza para de si próprio. em cada caso individual, os seus próprios limites e po Ibilld j
a cultura, desenvolver-se a instituição. Não há pois solução possivel para o problema do incesto no interior da f mill., hl I, /11 I
A inclusão das mulheres no número das prestações recíprocas de grupo a grupo, mesmo que se suponha esta já colocada num contexto cultural que Ih impol1l1
e de tribo a tribo, é um costume tão geral, que um volume não bastaria para enumerar gências específicas. O contexto cultural não consiste num conjunto d 111"\ I
os exemplos.

I
156

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t 5: ele resulta de um facto muito simples, e que o exprime totalmente, a saber, pois que é a negação dos termos adversos; é ainda o roubo. Entre a propriedade e a
família biológíca já não está só, e que ela deve fazer apelo à aliança com outras comunidade, eu construiria um mundo». 1 Ora, que é este mundo senão aquele do qual
f Imlll S para se perpetuar. ( ... ) toda a vida social se aplica a construir e reconstruir sem cessar uma ímagem aproximada,
Todo o casamento é pois um encontro dramático entre a natureza e a cultura; e jamais integralmente conseguida, o mundo da reciprocidade que as leis do parentesco
Itançã e-o pa-;:ent-escó-.
-«"ouem deu a noiva ?» canta um hino hindu do casamento. e do casamento fazem, por sua conta, laboriosamente sair de relações, condenadas,
ccA quem a-deu' pois? Foi o amor que a deu; foi ao amor que ela foi dada. O amor deu, sem isso. a permanecer quer estéreis quer abusivas?
amor recebeu. O amor encheu o oceano. Com amor a aceito. Amor I que esta te Mas os progressos da etnologia contemporânea seriam bem pouca coisa
p nença». Assim o casamento é uma arbitragem entre dois amores: o amor parental se nos devêssemos contentar com um acto de fé - fecundo, sem dúvida e, em
o amor conjugal; mas ambos são amor e, no momento do casamento, se se considera seu tempo legítimo - no processo dialéctico que deve inelutavelmente fazer nascer
ste momento ísolado de todos os demais, ambos se encontram e se confundem, o mundo da reciprocidade como a síntese de dois caracteres contraditórios ine-
«o amor encheu o oceano». Sem dúvida eles só se encontram para se substituir um rentes à ordem natural. O estudo experimental dos factos pode atingir o pressen-
00 outro e realizarem uma espécie de contradança. Mas o que, para todo o pensamento timento dos filósofos, não só para atestar que as coisas se passaram realmente assim,
social, faz do casamento um mistério sagrado, é que, para se cruzar, é necessário, pelo mas cara descrever ou começar a descrever como elas se passaram.
menos por um instante, que eles se juntem. Neste momento todo o casamento roça A este respeito a obra de Freud oferece um exemplo e uma lição. A partir do
o incesto; melhor, é incesto, pelo menos incesto social: se é verdade que o incesto, momento em que se pretendia explicar certos traços actuais do espírito humano por
no sentido mais amplo, consiste em obter por si mesmo, e para si mesmo, em vez de um acontecimento, ao mesmo tempo historicamente certo e logicamente necessário,
obter por outro e para outro. Mas, visto que é necessário ceder à natureza para que era permitido e mesmo prescrito tentar reconstruir escrupulosamente a sua sequência.
a espécie se perpetue, e com ela a aliança social, é necessário pelo menos que a O fracasso de totem e tabu. longe de ser inerente ao projecto do seu autor, deve-se
contradigamos ao mesmo tempo que lhe cedemos, e que o gesto que se realiza em direcção antes à hesitação que o impediu de tirar partido até ao fim das consequências implicadas
a ela se acompanhe sempre de um gesto que a restrinja. Este compromisso entre nas SUéS premissas. Era necessário ver que os fenómenos que punham em causa a estrutura
natureza e cultura estabelece-se de duas maneiras, uma vez que dois casos se apre- mais profunda do espírito humano não puderam aparecer de uma vez por todas: eles
sentam, um em que a natureza deve ser introduzida, uma vez que a sociedade pode repetem-se fatalmente no seio de cada consciência; e a explicação da qual eles relevam
tudo, o outro em que a natureza deve ser excluída, uma vez que é ela desta vez que reina: pertence a uma ordem que transcende, ao mesmo tempo, as sucessões históricas e as
perante a filiação, pela afirmação do principio uni linear, perante a aliança pela instauração correlacões do presente. A ontogénese não reproduz a filogénese ou vice-versa.
de graus proibidos. ( ... ) Ambas as hipóteses levam às mesmas contradições. Só se pode falar de explicação
a partir do momento em que o passado da espécie volta à cena, a cada instante,
no drama indefinidamente multiplicado de cada pensamento individual, porque, sem
dúvida, ele próprio não é senão a projecção retrospectiva de uma passagem que se
produz.u porque continuamente se produz.
A EXPLICAÇÃO «ESTRUTURAL» OU «NATURAL» Do ponto de vista da obra de Freud, esta timidez conduz a um estranho e duplo
paradoxo. Freud __ deu conta. com sucesso.. não do início da civilização mas do seu
presen,e. e pa-rtind~- ã-'procura da origem de uma proibição, conseguiu explicar, não,
A múltiplas regras que proibem ou prescrevem certos tipos de conjuntos e a certamente. porque o incesto é conscientemente condenado. mas porque acontece
proibição do incesto que as resume a todas tornam-se claros a partir do mcmento em _que ele S2!ainconscientemente desejado. Disse-se e redisse-se o que torna totem e tabu
que se admite que a sociedade existe. Mas a sociedade podia não existir. Teríamos inconcebivel como interpretação da proibição do incesto e das suas origens: gratui-
nós acreditado resolver um problema, acabando por lançar todo o seu peso sobre tidade da hipótese da horda dos machos e do assassínio primitivo, círculo vicioso que
outro problema cuja solução aparece mais hipotética ainda que aquela a que nos faz nasú~'o estado-sõ~ial d~~tentativas que o supõem. Mas. como todos os mitos,
consagramos exclusivamente? De facto, notemo-Io. não estarnos em presença de aquele que totem e tabu apresenta com tão grande força dramática comporta duas
dois problemas, mas de um só. Se a interpretação que propusemos é exacta. as regras interpretações. O desejo da mãe ou da irmã. o assassínio do pai e o arrependimento
do parentesco e do casamento não se tornaram necessárias pelo estado de sociedade. dos filhcs. não correspondem. sem dúvida. a nenhum facto, ou conjunto de factos que
Elas são o próprio estado de sociedade. refazendo as relações biológicas e os sistemas ocupem na história um lugar dado. Mas traduzem talvez, sob uma forma simbólica,
naturais. impondo-Ihes que tomem posição nas estruturas que as implicam ao mesmo tempo um son'io ao mesmo tempo durável e--;;m;g;. E o prestigio deste sonho. seu' poder o
que outras. e obrigando-as a ultrapassar os seus primeiros caracteres. O estado de natureza de rnoce lar, sem saber. os pensamentos dos homens. provêm precisamente do facto de
não conhece senão a indivisão e a apropriação e a sua acidental mistura. Mas como já
notara Proudhon a propósito de um outro problema, não podemos uitrapassar estas
noções senão colocando-nos num novo plano: «A propriedade é a não reciprocidade,
e a não reciorocidade é o roubo. ( ... ) Mas a comunidade é também a não reciprocidade, t ~:,cudhon. Solution ao Problérne Social. Oeuvres, vaI. VI.

158 159
",_1.-

que os actos que ele evoca nunca foram cometidos, porque a cultura sempre e em que linguistas e sociólogos não s6 aplicam os mesmos métodos, mas se dedicam ao
toda a parte se Ihes opõs, As satisfações simbólicas nas quais se expande, segundo estudo do mesmo objecto. De~~eJ.<J.nto..de _vista, com efei!o,~'!.~~_ogamia.e-.aJin_
Freud, o remorso do incesto, não constituem a comemoração de um acontecimento. g~~.Cl'l_!êm a mesma funç~o !undamental: a comunicação com outrem e a integração
Elas são outra coisa e mais do que isso: a expressão permanente de um desejo de desor- ao grupo ...
dem, ou antes. de contra-ordem. As festas põem a vida social às avessas. não porque -- ( ... ) A proibição do incesto é universal como a linguagem; e se é verdade que
ela fosse assim outrora, mas porque nunca foi e nunca poderá ser doutro modo. estamos mais bem informados sobre a natureza da segunda do que sobre a origem da
Os caracteres do passado não têm valor explicativo senão na medida em que coinci- primeira, é apenas seguindo a comparação até ao fim que podemos esperar penetrar
dem com os do futuro e os do presente. ( ... ) o sentido da instituição. ( ... ) Que as relações entre os sexos pudessem ser concebidas
Estas audácias relativamente à base de totem e tabu e as hesitações que as acom- como uma das modalidades de uma grande «função de comunicação» que compreende
panham são reveladoras: elas mostram uma ciência social como a psicanálise ( ... ) ainda também a linguagem, certos factos extraídos da psicopatologia tendem já a sugeri-Io:
flutuante entre a tradição de uma sociologia histórica procurando ( ... ) no passado longin- a conversação barulhenta parece ter, para certos obcecados, o mesmo signiíicado que
quo a razão de ser de uma situação actual, e uma atitude mais moderna e cientifica- uma actividade sexual desenfreada. ( ... )
mente mais sólida, que espera, da análise do presente, o conhecimento do seu futuro Assim, a linguagem e a exogamia representariam duas soluções para uma mesma
e do seu passado. Acontece aliás o mesmo do ponto de vista do psicanalista; mas não situação fundamental. A primeira atingiu um alto grau de perfeição; a segunda per-
seria demasiado sublinhar que ao aprofundar a estrutura dos conflitos de que o doente maneceu aproximativa e precária. Mas esta desigualdade não o é sem contrapartida.
é a cena para. a partir daí. refazer a sua história ( ... ) ele segue um caminho oposto ao Era da natureza do sinal linguistico não poder permanecer muito tempo no estado a
da teoria, tal como totem e tabu a apresenta. Num caso, passa-se da experiência aos que Babei pôs fim, quando as palavras eram ainda bens essenciais de cada grupo
mitos e dos mitos à estrutura; no outro, inventa-se um mito para explicar es factes: particular: valores tanto como sinais; preciosamente conservados. pronunciados com
melhor dizendo. procede-se como o doente, em vez de o interpretar. conhecimento de causa, trocados com outras palavras cujo sentido revelado ligaria
o estranho, como ligava o próprio iniciando-o: pois que, compreendendo e fazendo-se
compreender entrega-se qualquer coisa de si e toma-se poder sobre outro. A atitude
respectiva de dois indivíduos adquire um sentido de que, de outra forma, seria despro-
o MODELO lINGUrSTICO vido; perde-se a liberdade de se enganar. Mas, na medida em que as palavras puderam
tornar-se coisa de todos e em que a sua função de sinais suplantou o seu carácter
de valor, a linguagem contribuiu com a civilização científica para empobrecer a per-
Apesar destes pressentimentos. uma só, entre todas as ciências sociais, atingiu cepção, para despi-Ia das suas implicações afectivas. estéticas e mágícas e para esque-
o ponto em que a explicação sincrónica e a explícação díacrónica se confundem, matizar o pensamento. Quando se passa do discurso à aliança, isto é, ao outro domínio
porque a primeira permite reconstituir a génese dos sistemas e operar a sua síntese, da comunicação, a sítuação inverte-se. A emergência do pensamento simbólico devia
enquanto que a segunda põe em evidência a sua lógica interna e capta a evolução exigir que as mulheres, como as palavras, fossem coisas que se trocam. Era com
que os dirige para um fim. Esta ciência social é a linguística. concebida como um efeito, neste novo caso, o único meio de ultrapassar a contradíção que fazia compreender
estudo fonológico. ( ... ) a mulher sob doís aspectos incompatíveis: dum lado, objecto de desejo próprio, e por-
As regras do parentesco e do casamento não nos surgiram como esqotando. na tanto excitante dos desejos sexuais e de apropriação. e, ao mesmo tempo, sujeito,
diversidade das suas modalidades históricas e geográficas, todos os métodos possíveis entendido como tal, do desejo de outrem, quer dizer, meio de o ligar aliando-se a ele.
para assegurar a integração das famílias biológicas no seio do grupo social. Verifi- Mas a mulher nunca podia tornar-se apenas sinal. pois que. num mundo de homens.
camos assim que as regras. na aparência complicadas e arbitrárias, podíam ser reduzidas ela é mesmo assim uma pessoa. e que, na medida em que é definida como sinal,
a um pequeno número: não há senão três estruturas elementares de parentesco possiveis; forçoso é reconhecê-Ia como produtor de sinais. No diálogo matrimonial dos homens.
estas três estruturas constroem-se com a ajuda de duas formas de troca; e estas duas a mulher nunca é, puramente, aquilo que se fala; porque se as mulheres, em geral
formas de troca dependem elas próprias de um só carácter diferencial. que é o carácter representam uma certa categoria de sinais. destinados a um certo típo de comunicação,
harmónico ou desarmónico do sistema considerado. Todo o aparelho que impõe pres- cada mulher conserva um valor particular, cabendo ao seu talento manter o seu lugar
crições e proibições podería ser. em último análise, reconstituido a priori em função de uma no duo, antes e depois do casamento. Ao contrário da palavra, a mulher permaneceu
questão e de uma só: qual é, na sociedade em causa, a relação entre a regra de residência pois, ao mesmo tempo que sinal, valor. Assim se explica que as relações entre os sexos
e a regra de fiiiação? Pois todo o regime desarm6nico conduz à troca restrita. como tenham preservado esta riqueza afectiva, este fervor e este mistério que ímpregnaram
todo o regime harmónico anuncia a troca generalizada. A direcção da nossa análise sem dúvida. na origem, todo o universo das comunicações humanas.
é pois idêntica à do linguista fonóloço. Mas há mais: se a proibição do incesto e a Mas o clima ardente e patético em que eclodiram o pensamento simbólico e a
exogamia têm uma função essencialmente positiva, se a sua razão de ser é estabelecer vida social que constitui a sua forma colectiva aquece ainda os nossos sonhos com a
entre os homens uma relação sem a qual eles nãopoderiam elevar-se acima de uma sua miragem. Até aos nossos dias. a humanidade sonhou apanhar e fixar o instante
organízação biológica para atingir uma organização social, então é necessário reconhecer fugidio em que foi permitido acreditar que se podia troçar da lei da troca, ganhar sem

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rd r, usufruir sem partilha. Nos dois fins do mundo, nas duas extremidades do tempo,
mito sumério da idade do ouro e o mito andamanês da vida futura correspondem-se:
um c.olocando o fim da felicidade primitiva no momento em que a confusão das línguas
I z das palavras coisa de todos; o outro descrevendo a beatitude do Além como um céu
m que as mulheres não serão mais trocadas; isto é, atirando para um futuro ou para um
passado igualmente inatingíveis a doçura eternamente negada ao homem social,
dum mundo onde se poderia viver entre si.

LUC DE HEUSCH 1

o ANIMAL CERIMONIAL E O RITUAL

Para a antropologia religiosa, a palavra ritual tem um sentido relativamente preciso,


a despeito das querelas entre escolas: designa todo o sistema de comunicação com
o mundo imaginário, o mundo fantasmático do mítico, sistema semiológico autônomo.
utilizando essencialmente gestos, mas também a linguagem. O termo ritualização
tem sido iníelízmente transplantado, sem precaução, da etnologia para a etologia, por
forma tal que os zoólogos parecem hoje fascinados por uma analogia superficial,
a qual será o objecto dos meus propósitos.

RITO E CERIMÓNIA

(... ) Cerimonial e ritual designam, na tradição antropológica de língua francesa,


zonas semânticas vizinhas. de fronteiras flexíveis. Assiste-se mesmo a invasões recí-
procas, de forma que por vezes os dois termos se apresentam como sinónimos. Desde
o século XIII a palavra cerimónia aplica-se à «solenidade com que se celebra o culto
religioso» (Robert); a extensão deste sentido primeiro é acompanhada de uma
laicização: «Qualquer forma exterior de selenidade dada a um acontecimento, a um
acto importante da vida social». Esta derivacão vem muito felizmente colmatar um
vazio semântico correspondente a essa região em que a etnoloqia situa as «organiza-
ções complexas da actividade humana que não são especificamente técnicas ou
recreativas, e que implicam comportamentos que são a expressão simbólica de relações
sociais», de acordo com a feliz fórmula de Max Gluckman. Entretanto, não defen-
derei a teoria do mestre inglês, dominada por cuidados funcionalistas. Para Gluckman,
cerin.onv é a categoria geral de que relevam hierarquicamente dois subconjuntos
distintos: as actividades rituais por um lado (ritual) e as actividades cerimoniosas
(cerimonious), por outro lado; as primeiras referem-se a noções místicas, as segundas não.
Esta complicação (praticamente intraduzivel em francês) parece-me inútil; não tem
sentido se se admitir. com a escola antropológica inglesa, que uma cerimónia religiosa

! Luc de Heusch, in Pcur ur;e snttiropolcç.e tondomentete, Ed. du Seuil. 1974 (vol. 3).
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