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Coleção Debate s

Dirigida por J. Guinsburg

denis guénoun
,.
O TEATRO
,. E
NECESSARIO?

Equipe de Realização - Tradução : Fdtima Saadi ; Revisão t écnica: Celina


Moreira de Mello (francês), Henriqu e Cairus (grego), Cecília Araúj o (latim); ~\l/l
Revisão: Saulo Alencas tro c Lilian Miyoko Kurnai; Produçã o: Ricard o W. Ne-
~ ~ PERSPECTIVA
~I\\~
ves c Raquel Fernandes Abranches
'I'íllllll. 11l origillal C Il1 francês:
I ,' tI,,:,1"'" rst -il n éccssai re?

{. ) 11177. hy 1~lili on s Circé

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SI', Brasil)

Gu éuoun, Denis, 1946· .


O teatro é necessário? 1 Denis Guénoun ; [tradução
Fálima Saadi]. - São Paulo: Perspectiva, 2004. -
(Debates; 298 1 dirigida por J. Guinsburg)

Título original: Le th éâtre est-il n écessaire?


Bibliografia.
IS BN 85-273-0700-6

I. AI1edramática 2. Teat ro - Filosofia I. Guin sburg, J.


11. T ítulo. 111. Série.
Para Paola
04 -5606 CDD-79 2 .01
índices para catálogo sistem ático:
I. Teatro : Filosofia 792 .0 I

Ilireilos reserva dos e m língua portuguesa 11


HllI T( lRA PERSPECT IVAS.A.
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SUMÁRIO

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Fora do Quadro 2
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95
129

153
Não haveria crise do teatro se o teatro fosse para nós,
simplesmente. "co isa do passado " I: se ele se afastasse ou
se eclipsasse irremediavelmente.
, É verdade que. num certo sentido, ele enco lhe e pare-
. r:,,,.'• . ce destin ado a se extinguir. Seu públi co diminui . dizem as
!: pesqu isas. Ele não fu nciona mais como centro: os poderes
dominant es n ão usam mais seu brilho para exibir-se. os-
tentar os signos de sua dom inação simbó lica e de sua he-
gemonia' , Ele ficou árfão das revolu ções. Sua funç ão se
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~
• .•
.,..

.~ embara lho. Sobretudo, segundo a opinião corrente , os de-
r~
safios mais arr iscados da represen tação coletiva se esta-
belecem neste momento em atos narra tivos ou f igurativos

I. Hegel. Cours d 'esthétique l, tradução de J.-P. Lefebrcc V.Von Schenck ,


Aubicr, 1995. p, 18. (Em português: Curso de Est ética , trad ução de Marco
Aurél io Werl c, São Paulo. Edusp, 1999),
2. J.-M. Apostolides. Le roi-machine. Specta cle et politiqu e au temp s de
Louis X/V. Minuit , 1981. (Em portu guês: O Rei -Máquin a: Espet úcuto e PIlIí-
tica 110 Tempo de Lu ís XIV , trad ução de Cláudi o César Santoro, Rio de Janei-
ro! Brasíli a. José O lympiolEd . UnB . 1993 ).

11
que CUI /JII I TWU o teatro pa ra as margens: cinema, televisã o. uma crise declarada', Porqu e o teatro, em suas fo rmas es -
Tudo deveria nos levar a conside rá-lo uni artesanato supe - tab elecidas, não encontra nenhum recurso para resp onder
rado, um a p eça de museu, vestígio de 1111/ mundo ultra- à necess idade de teat ro que a vida coletiva produz de f orma
pas sado. t ão intensa. O teatro conve nc ional bus ca heroicam ent e es-
Ora , o tempo de sta retração é tamb ém o tempo em qu e pectadores qu e escasse iam e, ao mesm o tempo, está atra-
o teatro se amp lia, prolifera, ga nha espaço em toda parte. van cado por hordas de candidatos qu e batem às suas portas.
Na Fran ça , os teatros públicos, cujo n úmero aumentou É ev ide nte qu e estas duas tend ência s praticament e nã o se
ba stante e cuj a geog raf ia se ampliou a ponto d e co b rir cruzam : o crescime nto vertiginoso do número de atores po-
quase todo o território, es tão tomados , sitiado s, por "com - ten ciais não produz uma amplia ç ão conco mitante do p úbli-
panhias " qll e se multipl icam de fo rma explos iva: elas exis- co, ass im como a rarefa ção do público não aca rreta a qu eda
tem aos milha res, hoj e em dia. Pa rti cipcnn destes g rupos, na [ reqiiência aos cursos e ofi cinas. Qualquer análise da
maiores ou me nores, legiões de aspi rant es à vida teatra l. crise do teatro que só leve em conta um destes dois elemen -
Nada indica, apesar dos so nhos das au torida des , qu e es ta tos pe rde de vista se u obje to e se conde na à cegueira e à
proliferaçã o vá estancar. Pelo co ntrá rio : a cada an o, acres- imp otên cia: quer se busque um diagn óstico em term os sim-
centam -se a es tas companhias multidões de j ov en s qu e se pl esm ente art ísticos ou culturais (disposiç ão dos espectado-
ins cre vem em curso s de a rte dramática, aulas d e teatro res, crítica ao repertório, crise das institui ções] o u em termos
ofere cidas em toda pa rte 1/0 âmbito do ensino secund ário soc iológicos (ne cessidades deformação, redes edu caciona is).
e fac uldades de teatro qu e tnob ilizant 11m n úme ro cresce n- A crise do teatro tem qu e ser compreendida a partir do elo
te de profi ssionais. A sin gul a ridade do que poderia pa ssar qu e estas duas sé ries de faro s heterogên eos estabe lece m en-
po r um I /O VO a ma dorismo é ev ide nte; no pól o oposto, a tre si. A confusão das "institui ções " nada seria sem o surgi-
aspiração in tratável destes j o vens entusiasma dos à qu ali- mento de contra- legi timidades prolife rant es qu e as ce rcam
ficação "profissiona l", qu e de no ta simples me nte seu des e- e as perseguem. Enquanto este outro teatro, d ifuso e l âbil,
jo ardente de vive r o teatro, de vive r de tea tro: de f azer do se ref ere, por mimetism o ou rejeição , ao modo de produ ção
teatro o ce ntro de suas vidas e inscreve r es te entus ias mo dominante na vida teatral instituida. So bretudo - sim, sobre-
no princípio de sua exi stência socia l. Mas em volta dest es tudo, porqu e é aí qlle a f erida supura - o conge lamento esté-
exércitos d e voluntá rios é preciso ainda localizar as múlti- tico e moral 110 qual o teatro está ence rrado, sua impotência
plas extensões da atividade dramática nos lugares mais f ormal, a esterilidade de seus conte údos, a letargia que o en-
divers os: prisões, hospitais, escolas , claro, e, hoje, os bair- torpece, pondo em risco todos os que o servem , não podem
ros dito s "e m si tuaç ão de risco soc ial " ou conf lag rados. se r pensados, nem, por conseg uinte, afa stados, sem qu e se
São luga res qu e, há algu m an os, teriam atraído a ate nção apreendam em conjunto os dois lados do prob lema, 0 .1' dois
da milit ân cia pol ítica e que hoj e são tom ados p ela no va componentes da crise e o sis tema de cr ise qu e os ma ntém
mo da . A eles é preciso a inda acrescenta r, last bu t not least , un idos.
o tea tro amador, per sist ent e ou niutante, em suas fo rmas
tradi cion ais ou modernizadas. 3. Em junho de 1966. aconteceu em Saim-Eticnne c no Loire um primeiro
A crise do teatro proced e, exa tame nte, do encontro en- Fórum do Teatro Europeu, organizado por iniciativa do Centre Drnmariquc
tre est as du as din âmicas contrárias. Por si só , o enf raque- National. Quase todas as comunicações mencionaram uma situação de crise
c ime nto d o te atro não ex p lic a ria a c rise: o re cuo, o institucional ou est ética. Nas apresentações de J. De Decker (Bélgica), J. Gie-
dris (Lituânia), T. Kubinowski (Polônia), M. Pcrcz Coteri llo (Espanha), O. Ponte
ab atulon o 1/(/0 chegam a cons tituir uma crise . É preciso a
di Pino (Inilia), T. Proskourn ikovu (Rússia), L. Ring (Suécia), R. Zahnd (Suíça
viol ênc ia da tensã o entre mo vimentos co ntrá rios. Ora , há romanda ) lorum rratudos fen ômenos relacionados aos que aqui mencionamos.

12 13
A imperiosa obrigação de pensar conjuntamente os doi s butos permanentes se ofereceriam ao olhar do especialista
termos desta questão resulta, para dizer a verdade, de uma em Grécia antiga tanto quanto ao especialista em Japão
observação muito simples. O conflito ou a discordância en- medieval, Ela remete a uma espécie de invariante, "o tea-
tre eles se enraíza no âmago. do faro teatral, naquilo que ele tro" , que se transforma em personagem e, logo depois, em
tem de mais elementar: o teatro não é uma atividade, mas herói de uma intriga de longa duração, no curso da qual ele
duas. Atividade de fa zer e atividade de Vel: Pode- se objetar combate valorosamente reduções e inimigos. Assim, pode-
que isto é verdadeiro para todas as artes e tamb ém para 1110.1' vê-lo, nestes últimos tempos, investido da virtude da

outras coisas. Claro . Mas a especificidade do teatro diz res- "resistên cia ". A presente análise gostaria de se pre caver
peito ao fato de que , nele, as duas atividades são indissociá- contra esta identificação e contra seus efeitos.
veis e "o teatro " só existe com a condição de que ambas se Mas pode-se argumentar que a es colha da palavra "ne-
dêem simultaneamente. É possível dedicar- se ao exercício cessá rio " também acarreta um certo risc o. O tema da ne-
da fotografia, da escultura ou da poesia e se indagar depois cessidade se liga , efetivamente, a dois grupos de significações
(ou , ao menos, separadamente) a respeito da "difusão ", da distintas. É necessário, po r um lado , aquilo que não pode
apresentação daquilo quefoi realizado. O teatro impõe, num deixar de acontecer. Empregado neste sentido, o termo su-
espa ço e num tempo compartilhados, a articulação do ato põe uma det erminação plena, uma causalidade sem fissuras
de produzir e do aro de olhar : E ele só se mantém de pé se e incitaria a pensar o teatro como resultante da vigência de
estas duas ações se orquestrarem. Ora , o momento que vive- UI/f(( espécie de lei natural, Ou de um fatum. Não é este o

mos está marcado pelo divórcio entre ambas: aprofundo-se esquema ao qual recorreremos, Porque a existência do tea-
a separação entre o teatro que se faz (ou que se querfa zer) tro não é inelutável, Ela não está submetida a nenhuma fa-
e o teatro que se vê (ou que não se quer mais ver) . Atores e talidade do destino. Há sociedades que prescindem do teatro,
espectadores caminham sobre trilhos cujo trajeto é diver- que praticam sim ulações, quadros vi vos, jogos de papéis,
gente: o teatro está abalado, o edifício não se sustenta mais. mas desconhecem o teatro, entendido no sentido que atribuí-
É preciso rearticular em uma outra síntese as condutas mos à palavra aplicada a algumas produções ocidentais,
que o desejo de ver e o impulso de agir engendram. Ela s indianas, chinesas, japonesas. Não se conhecem sociedades
ordenam hoje duas legitimidades teatrais sepa radas, sem sem mú sica ou sem poesia. Mas algumas vivem sem teatro:
ligação. Urge trabalhar para sua recomposição. A tarefa civilizações imp onentes, que marcaram época. Nenhuma cer-
requel; no meu entendei; que seja colocada a cada um des- teza, nenhum direito de essência afasta , a priori, a possibili-
tes dois teatros, da forma menos negligente possível, a ques- dade de 1lI11 .IÚlIlIV em qu e o teatro teria desaparecido ou só
tão de sua (e ventual) necessidade. sobreviveria COIIIO memória, dado de arquivo, como aconte-
Seria preferível, claro, interrogar a necessidade do tea- ceu COIII certas habilidades muito antigas.
tro, mais que sua essência. A questão da essência remete à Mas "ne cessário " qualifica também aquilo que é exig i-
possibilidade" de um núcleo estável do ato teatral, cuj os atri- do por uma necessidade. E este s dois sentidos não são equi-
valentes, embora fosse possível pensar: não posso prescindir
daquilo de que verdadeiramente tenho necessidade; isto pa -
4. " A filoso fia chama est a qüididudc de cssentio (essên cia ). Esta torna rece, portanto, ter que , necessariamente, me acontecei: Con-
possível o cnte naquilo que ele é. Daí ela ser designada co rno possibilitas (pos- tudo, esta acepção se distingue da outra como aquilo que é
sihilida de intr ínseca) da co isa como 1'1 1(realitas) [ ...]. Todo ente "possui" as- vivo se distingue do que é mecânico. A necessidade mecãni-
xiiu ]...1 csscntiu e existcntia , possibilidade e realidade." M. Hcidcgger, KOI/I
ca é compacta : ela causa irreversiveiniente o que sucede.
1' / /1' l,mIJlhl/(' de lo métupliysiquc , tradução de A. de Walhcn s e W. Bicmcl,
Gullinum l, I<) .~ ~, reedição TeI, 1981, pp. 279 -280. Pode acontecei; em compensação, que um viv ente tenha

14 15
nrccssiik«!« de água e não tenha ace sso a ela. Entre os dois
regimes. infiltram-se duas diferenças: primeiro , diferenças
til' tempo - o se r vivo pode esperar um pouco, o me cânico
ignor« o adiamento, a não ser pelo encontro de uma mecâ-
nico concorrente. E, sobretudo, diferença de efeito: se a pri-
va ç ão de água persiste. a morte sobrevirá. Ora, só o ser
vivo sob e morrer: Neste sentido, necessário é aquilo que quer
um ser vivo qu e qu er viver, e se ele o obtém, usufrui de um
novo chamado . Necessidade é, então, o nome da brutalida-
de do chamado. E a necessidade não designa nada além da

w~~ I Af21STo1E~;
prevalência manifestada do vivente sobre a morte. É a este
seg undo valor do modelo qu e eu gostaria de me at er.
Esta será nossa preocupação, nossa busca: a que ne-
cess idades responde (ev entualmente) o teatro ? Necessida-
des de qu e e de quem ? 011 ainda, como diz Niet zsche: de qu e
em quem ? Abordagem mais dinâmica que a da essência,
porque rem ete o teatro a outras existência s que não a sua,
'V ciTi1tA
amarra-o a instâncias fora dele e que o con vocam e o pu-
xam. O teatro se pensa na condição de uma alteridade, en-
quanto qu e a qu estão da essência o recondu: a seu interi or
mais íntimo, e o dedu z de seu conce ito. De repente, ei-lo
subme tido a uma questão de tempo. Quanto tempo se pode Voltem os a algumas linhas da Poética de Arist óteles. Não
espe rar pelo teatro quando ele falta ? Qu estão imp ortante na esperança de ler ali de forma direta o sentido de nossa atuali -
hoje em dia : pode ser qu e se tenha necessidade de teatro e dade : nosso teatro pode ser mais bem co mpreendido ju stamente
qu e ele n ão estej a à di sposição . Ou, pelo menos, não o tea- pela distância que o separa do vener ável tratado . Mas o filóso-
tro de que se necessita . O teatro disponív el não é necess ária- fo parece colo car, de saída, uma questão próxima da nossa : o
mente aqu el e que a vida pede - certas necessidades que é que provoca a existência das tragédias, das comédias?
permanecem insatisfeita s. lnquietude de vida e de morte. Aristóteles inscreve primeiro a reflexão num quadro mais
Em caso d e necessidade, se o teatro falta, nos falta , e se a ampl o: por que existem "representações" ? Ele observou , em
carência persist e, algo co rre o risco de morres: " Nós " nã o prim eir o lugar, que "a ep opéia e a poesia trágica, com o tam -
morreremos, claro qu e não. Encont ram- se subs titutos . Mas bém a co méd ia, a arte do ditirambo e, em sua maior parte, a
algo em nós pode morrer: O qu ê ? da flaut a e a da c ítara têm em comum o fato de se rem repre-
A ex igência qu e sustenta a reflexão aq ui apresentada sentações'". A interrogação inici al incide, portant o, so bre
1/(/0 é, portanto, a de preservai; conse rva r " 0 teatro " a qual- um co nj unto de aspe cto heteróclito, qu e inclui os gêneros
qu er preço: é po ssível conse rvar m úmias, cadá veres. Per-
g u n tamo -n o s se uma vida , e qu e tipo d e vida , qu er
I. li Po ética, tradu ção e co mentários de R. Dupont-R oc e J. Lallot, Se uil,
(rvcntualnutnte) o teatro . E conto , se ele lhe fa z. falta , esta 1980. Salv o mençã o e m contrário, utilizare i esta edição. (Em português: Poé-
[alta pod« ser satisfeita. tica , tradução de Eud oro de Souza, em Arist áteles, co l. Os Pensadores, São
Paulo, Abril Cultura l, 1973 , pp. 439-47 1).

I (I 17
teatrai s (tragéd ia, co mé d ia, ditirarnbo ), uma outra forma também traduzido por " im itar" . As representações respon-
poéti ca (a ep opéia) , ce rtas produçõ es musi cais (ligad as à dem a uma necessidade, na med ida em que su a ocorrê nc ia
ce na) . Ora , a Poética nos parece , globalmente, dedicada à est á ins crita na natureza do s homens. Mas esta necessidade,
an álise do teatro . Podemos estranh ar o fato de Ari st óteles de sa ída, se di vid e: em uma tendênci a a produzir representa-
não o des ign ar mais pre cisament e co mo se u o bje to . ções e um a tend ên cia a se co mprazer co m ist o. Ora, es te pra-
Ist o de ve ser rel aci on ad o a um a co nstatação tão só lida zer é um prazer da visão : Aris tóteles o re pe te à e xa us tão".
qu e parec e escapar a muita ge nte: os gregos, para nossa sur- Assim , a necessid ade das representações se d ivide, de sd e a
presa, não tinh am nome, nem , se m dúvida, co nce ito, para o o rige m, e m du as necessid ades sepa radas : a que lev a a repre-
qu e nós chamam os "teatro'" . A pala vra teatro nos vem dos se nta r ("o hom em se diferenci a d os o utros anima is porque é
gregos, claro, mas ele s não a aplic avam como nós à atividade espe cialmente propenso a representar?"), e a que lev a a se
te atr al : el a de si gnava um a parte do ed ifíc io provi sóri o da s comprazer com a visão das representações (" tem os pr azer
represent ações, aqu ela e m que ficava o públ ico . E, para nosso em o lhar as imagen s mais apurada s das co isas c uja visão nos
" tea tro", nenhum term o apro priado : nem Platã0 3 nem Aris- é pen osa na real idad e?"). Est a du alidad e recort a, no ge ra l,
t ótel es' d ispõem de uma noção co mum para a tragédi a e a nossa di stin ção e ntre " faze r teat ro" c " ir ao teatro" , e ntre o
co méd ia, co mpree ndi das com o gê ne ros de esc rita o u mani- teatro qu e se pratic a e aque le que se vê . Examinemos mais
festações públi cas. O tratado de Ar istóteles se intitula Poética , de pert o c ada um a dest as du as tend ên cias e se us efeitos .
ma s pouc o se interessa pela poe sia lírica e só pensa a epo péi a
co mo a ntec essora ou o rige m (até, de forma es pa ntos a, como
esp écie") da trag édi a. Prec isam os nos con form ar : os antigos A tendên cia a rep resentar é, e m pr ime iro lug ar, ativa .
gregos não tinham um a palavra para o teatro. O qu e nos dei - Isto porque o elo entre a representação e a ação é, ao mesm o
xaria indiferen tes se eles tivessem ign orado a co isa . Mas nós tempo, múltipl o, ín tim o e essen ci al. "Aque les que represen -
atribuímos a e les o fato de terem pratic am ente in ventado e tam representam agent es (mimoúme no i pr áttontas'['í", É a
tran smitido a nós o teatr o. Isto é qu e é intrigante . tes e central da Poética. A representaçã o diz respeito a atos e
Aristóteles pergunta: por que e xistem " repres e ntaçõ es"? es se el o se rve para carac te riza r (co mo representação) e par a
E resp ond e: " Desde a infância os homens têm , inscrita e m definir a tra gédi a (mimêsis praxe õsi I I , o que confirma qu e o
sua natureza, ao mesm o tempo, um a tendên cia a representar "tea tro" não é aq ui um gê nero represent ati vo e ntre outros".
[00 .] e um a tendên ci a a se ntir prazer co m as represe nta ções' " . Mas a relação se co mplica c se es treita a inda mais pe lo fato de
" Re prese ntar" traduz aqui o verbo mimeisthai , muitas vezes a representação se r também produzida por "age ntes " ip r át-
tontas) , " na medida e m qu e eles efetivamente agem" (ka i
energoiuuasy" . O elo não é mais ent ão simpl esmente figura-
2 . Com o outros povos, ao qu e parece : por e xe m plo, os japoneses da é poca tiv o : a representação não e leg e apenas a ação comoseu obj e-
áurea do Nô.
3. Por exemp lo, República, 111 . 394 c, 394d. Por dcfaul t: I V, 475 d, 476a .
(E m portugu ês: fi República, tradução de Leo nel Vallandro. Rio de Jan eiro , 7. 1448 b9 - 19.
Edições de Ouro. s .d.) li. 1448 b 6- 7.
4 . Por exe mp lo, Poét ica .Y v, 144 9 a 2- 14. O que freq üen te me nte tra d u-
é 9. 1448 b 10- 11.
zido por " no teatro" é a ex pressão prostatheutru; d iante das assembléias, das 10 . 14411 a I. T radução mod ificada.
arq uiba nca das . 11. 1449 b 24.
5 . C f. () coment ári o de Dupo nt-Roc c l. allon , p. 182 : " uma tese ca pita l da 12. C f. a a n álise dos tradut ores Dupont-R oc e Lall ot , pp, 17-18 relati va 11
I 'II/:Ii('(/ é a da inclusão da epo p éia na tragédi a" . "orige m teatral do co nce ito de miniêsis".
6 . I44 11h 4 -9 . 13. 1448 a 24 .

18 19
<" am bigüi da de seja um a flutuação fortuita: co m certeza o autor
/ to pri vilegi ado - a niimêsis é ao mesmo temp o represent ação
L.d e ação e a ç ão de representar. d a Po ética te ve a pre ocupação de co ns tr u ir um conceito
Isto ch oca de form a brutal nosso sentimento moderno. c o e re n t~, orga nizado, uní voco, da mint ê sis - ainda ma is que

Colocam os co mo evide nte a diferença , cl aramente estabele- ele baseia so bre es te ponto a tentati va de inv alid ar a doutri-
c ida e ntre o que é represe ntado (co isa, ação, se r natur al ou na de se u mestre Platão . É preciso , port anto, co nsi de ra r a
imagi nário) e o ato de representar (fig uração pintada, jogo am bigü ida de co mo estrutural e ad mitir qu e a ntimêsis aris-
do ator o u músic a ao vivo) . Com o imaginar qu e seja possí vel totélica é relativamente indiferente à oposição entre a fi -
unir num a noção comum o figurante e o figurado, a co isa e gura e seu refe ren te, e até mesm o q ue e la é co ns truída,
seu signo? Como admitir que no teatro se possa suspender a precisam ent e, so bre a co locação desta ind iferença . "No ca-
diferença tão nítida a nossos olh os, entre a ação mostrada e pítul o um , nas pou cas oco rrê nc ias de mimeisthai com um
a ação d e mostrar? acu sati vo neutro plural , o valor se mântico do ac usa tivo é
É bem poss íve l qu e, nest a reti cên ci a, sejamos vítima s ind ec idí vel ; e [o] co meço do ca pítulo dois parece sustenta r
da trad ução tradi c io nal de tuiniêsis por imitação, É bem a indecisão" 17 . Mimeist ltai sig ni fica, po rt anto , ta lvez:
possível qu e a mintêsis, cujo co nce ito Aris tóte les e labo ra, (re) prese nta r, no se ntido de dar a ve r, aprese ntar di ant e do
não sej a es trita me nte imitativa, no sentido que nós atribuí- 01har, most rar, fab ric a r, ex ibi r para os 01hos. A mimêsis
mos a este term o: não deve ria ent ão ser compreend ida co mo "mirnética", se-
gundo a acepção co rre nte: imitativa , figurativa de um refe-
o siruagma mimcisthai + ac usativo pode co mpreende r duas relações be m rente colocado fora de su a operação. Nã o que a e xistê nc ia
d iferc mes seg undo a na tureza do obje to: o co mple me nto pode design a r o obje- de um re fe re nte es teja ex cl uída : mas é possí vel qu e , e m
to-m odelo; o objeto natural que é imuado!' [...], mas ele desi gn a co m mais
vista do procedi me nto (re)prese ntativo co mo tal , sua exis-
freq üên cia , na Poética, o objeto-cop ia, o artefato q ue é criado: [...0 que] nos
le vo u a tra d uzi r mimeisthui por um ter mo fran cês ig ualmente pol iva lente : re-
tê ncia ou s ua não-e xistên ci a não tenha um va lor definit ivo.
present ar " . Esta determin ação da ntimêsis opõe-se fronta lme nte à
que Platã o arti cu la, em es pec ial nos livros 111 e X de A Repú-
Há , port anto , no texto, ambi güidade entre representa r bli ca , aos qu ais a Poéti ca pare ce com freqü ên cia responder.
(algo de exterior) e representar (mos trar uma figur a, dá-Ia a Para Platão , a ntintêsis se pa ra e opõe a imitação e o qu e e la
ver: aprese ntá-Ia, de alg um modo)". Não se ac red ita que es ta most ra (o u pretend e mostrar), o íco ne e o eidos, a " imagem"
e a idé ia IX. Para e le, a imitação é heterogên ea àquilo a q ue
e la incessan tem ente rem ete e s ua ment ira se es tabelece na
14 . Os trad uto res indicam q ue a constr ução é ates tada no capít ulo q uinze,
pretensão de ignorar esta se paração !". É Platão , se m dúvid a,
1454 b 9.
15. Oncit., comentário dos tradutores, p. 156 . quem co nst rói e orga niza a es trutura do rnirnéti co tal com o a
16 . Si nto -me propenso a seg uir os tradutores e m sua análise do termo g rego manipul am os hoj e e m di a. E podem os pensar que a operação
(mi meisthai) : não po r competência. mas por interesse pel as co nseq üê nc ias teó- aristotélica na Poética est á ligada à vo ntade de juntar o que
ricas dc seu purti-pris. Preciso , no e ntan to, observar, honestamen te. q ue a pa la-
vra francesa que esco lhe ram (representar) não me parece tão " po livalente" como
eles afirmam . Se compree ndi bem, e les querem d izer que, po r exemplo, a ex-
ti vo" , ma is do que " rep resen tativo" do ges to, - e apesar do peso d o procedi -
pressão "d ese nhar um círculo" pod e re mete r a dois sent idos d istintos . Ist o é:
mcnto - utili zarei, 11s vezes, a form a " (rcj prescntar", par a faze r es q uece r um
rep rodu zir , neste papel , aquele cír culo q ue se pod e ver lá (acepção imitativa).
pouc o a imitação e aco mpa nhar os tra dut ores de Arist óteles e m suas hip óteses.
0 11 ainda: desenh ar es te círc ulo aq ui, sem refere nte particulur, Ha ver ia ass im
17. Ibid. G rifo meu .
a mbivalência do lerm o. Mas, no tocan te 11 palavra " re prese nta r", a q ues tão é
IS. Por exemplo, Rep , X, 596 d-59 7a.
bem menos clara: a palav ra não se desl iga Iac ilmcn te de uma conotação imi ta-
19. Ibid., 598e-599a.
tiva , no mí nimo por causa de seu prefixo "re" . Para acentuar o va lor "presen te-

20 21
Plat ão desmembr á e de co locar lado a lado, ind istintamente, t~al : havi a atores em Atena s. Por qu e o texto qu e estuda pra-
o qu e Pl atão se e mpe nha e m separar. ticam ente tod os os aspec tos da tragédi a não aprese nta nenhu-
É provave lmente para este desaco rdo qu e apo nta a defi- ma análise de sua atividade? Por que ela não es tá especificada
nição aris toté lica, tão insistent e, da mimêsis co mo represen- co mo instância singular no modelo ge ral do tr ágico? Até Pla-
tação da ação, ou melh or di zendo, representaç ão (ativa) da tã~ , ~ue ao long o da República fala t~o pouco disto, parece
ação, ação de representação de ação, miniêsis práxeõs : se, re ferJ!'-se a ela, sob um ce rto viés , no /on 25 .
co mo d isse brilhant em ente J. Tamini au x, a ação é aq uilo E que não se pode co nceber idéias sob re o ator (pe nsar o
me sm o qu e não pod e se r co mpree ndido no (e pelo) dispos iti- ator, tratá-l o co mo objeto de pen sam ent o) se não se es tabele-
vo platôn ico, se a práxis é exatame nte o que o dispos itivo cer uma diferença e ntre a ação represent ada e a ação de repr e-
platônico qu er inva lidar, des leg itimar?". A Poética não cessa se ntar. O ator se instala neste afas tame nto : ele é aquele qu e
de re pe tir qu e a tragéd ia não aprese nta funda m e ntalme nte assu me a ação de representar, na med ida em qu e ela se distin-
est ados, mas atos. Ela nã o pod e prescind ir da ação, mas gue. da aç ão represent ada. Ora, a mimêsis práxens. acre d ito,
pode d is pe nsar um a série de o utras co isas , e m es pec ia l, os des igna as d uas ações no es paço de um a posição com um , co mo
caracteres". t por isto qu e "a hist ó ria" é co locada como q.ue indiferenciada. Por isto se torna imposs ível qu alqu er te 0 -
"alma?" da tragédi a: part e da tragédia (s is te ma , co m-posi - r~a do ator: o dis pos itivo não deixa hiato algum o nde esta ação
ção das ações) c uja de fin ição redupli ca exata me nte a da sin gular possa ope rar. Se u lugar de exe rcício só pode ser o da
tragé d ia e m se u co nj unto - mintêsis práxeõs n . Tal vez es te diferença representativa. no se ntido cláss ico, imit ati vo, do ter-
sej a o traço q ue dá forma e esp eci ficid ad e à mimêsis com o mo. Para usar nosso vocabulário co rrente, uma teori a do ator
tal , e m s ua co ns tituição aristo té lic a : es te mo vim ento de re- exi ge que se possa di stingui-l o do qu e c ha ma mos de " pe r-
ve rsão de um a fina lidade "m im ética" par a um a práxis re - so nage m" . Ora, "o grego , e m époc a rem ot a, não possu ind o
prese ntativa". A miniêsis (e, portanto, o tea tro , o teat ro qu e te rm o para de s ign ar o qu e nós c ha ma mos person agem , con -
se faz) se torn a então esta aç ão de (re) pres e nta r a ação, na tenta-se co m o particípi o do verbo agir , del egando ao co n-
qu a l fig ura e objeto se co nfunde m e para a qu al a qu est ão te xto a tarefa de prec isar a natu reza do o bje to mim ético e m
de sua ade q uação não se co loca . suas d iversas modalidades?" . O qu e s ig n ifica di ze r qu e ,
par a um a aç ão produ zida e m ce na, a a ntiga lín gu a gre ga _
e, P~I: co nse qüê nc ia, a Poética , - não es tabe lece nest e pon -
Esta hipótese de uma ntimêsis de algum mod o não imita- to di fe ren ça pe rtine nte, pen sá vel , e nt re a ação fict ícia e a
tiva, relativam ente ind iferente , no regime da aç ão, ao elo de ação de fig urar. Es ta ação não pod e , portanto, se r d istin-
co nve niência ou de adeq uação e ntre o imitante e o imit ad o, g uida co mo fic tíci a - pel o men os não e m nosso se ntido co r-
ajuda a co mpreender por q ue a Poética não co nté m nenhum a ren te. A ação trági ca não é imaginária. O qu e não s ig nif ica
teori a do ator. S ilênc io qu e nos parece ev ide nte, de tal modo qu e e la sej a rea l, mas s imp les me nte qu e a o pos ição , tal co mo
estam os aco stumados a es te livro e a seu co nteúdo . M as afi- fun cion a para nós, entre real idad e e figu ração im agin ária é
ex ter ior ao ca mpo e m q ue a exec ução da tragéd ia aco ntece.
20 . Em Le th éâtre de" philosophes, J. Millon, 1995. pp. 17-33. O imaginário é mais tardio: ele pert e nce ao mund o da irna-
2 1. 1450 a 22-26.
22 . 1450 a 38 (cf. todo o trecho 1450 a 15-38).
23 . 1450 a 3 e o comentário dos tradutores, OI'. cit, p, 197. 25 . Cf. por exemplo, 532d e a nota de M. Canto em /ol/. Gf-Flammarion
24 . Cf. P. Ricoeur, Temps et réci t l , Seuil . 1983. pp. 59-60 . (Em português : 1989. p. 143. (Em português : Íon, trad ução de Victor Jabou illc, Lisboa, Inquéri-
Tempo e Narrativa, v. I. tradução de Constança Marcondes Césa r. Cam pinas. to. 1988).
Papirus, J 994) . 26. Poétic a, 0I'. cit., comc nt ãrio dos tradutores, p. 156.

22 23
gern , que é posteri or. Ficção , imagem são termos roman os ,
çã o atributiva é incerta d o ponto de vist a da unidade intrín-
que não têm eq uiva le nte estrito na lín gua da Poética: su a
se ca, hom ogên ea e primordi al da ação. A ação , tal como Ari s-
fo rtuna se rá pós- imperi al, " ro mâ ntica" segund o a co ns tru-
tótel es a es trutura, não é ma is imita nte do qu e im itada . El a é
ção he geli an a do conce ito". E, além di st o , a civi lização ro-
o pe ração de agi r, ato q ue só resp on de a o utros atos e não à
man a co nce de rá um es tatuto muito mais v isíve l ao ato r, tant o
partitura " mi rn ética" no se ntido plat ôn ico . A mim êsis é de
nos fatos qu ant o no pensamento" . O s práttontes são os agen-
iní ci o a fim práxis, ação, práxis ag e nte. Deste lad o de se u
tes , simplesm ente: ao me sm o tempo atores e "acta ntes" d a
te r-lu gar, o teat ro é exc lus ivame nte pr ãtico'",
narrati va . Come nta ndo , a resp e ito del es , um segmento da
Passemos à segunda tendênc ia, qu e o rig ina as represen-
frase for m ulado na tradu ção audac iosame nte como " todos
taçõc s, e q ue os tradut ores ca rac ter iza m co mo "receptiva?".
pod em , na medida e m qu e , efetiva me nte, age m, ser os auto-
E la é um a qu estã o de o lha r. Ari stóteles ins iste nist o:
res d a repre senta ção'?", os tradutores esc revem : "O ve rbo
prátt ein é aqui dupli cado por ene rgeln , "ag ir efetivamente" . Te mos uma pro va nos falos : temos prazer em o lhar (til eõrotifl te.\·) as
A ozor a se trat a da colocação em ato d o texto , d a _ação dram á- . imagens ma is apura das das coisas cuja visão nos é pen osa na re alidade , por
tica. Di to de outro mod o: os personagem em açao, aos qUaIS exemplo, as formas de animais perfeitamente ignó be is o u de cadáveres : a
razão é que apre nder é um prazer [... 1: efeti vamente, se gostamos de ver ima -
o autor del ega a pal avra , e qu e dizem eu sã o os mesmos qu e,
ge ns (t ileõrOlil//{/s), é porque o lhan do -as a prende-se a co nhecer?",
em cena, efetuarão a representação": atores ou autores-ato-
res na o rige m, a d istinção não é pertinente neste c as o, o es- Na orige m da atividade dos espectadores , es tá, portanto, esta
se ncial é qu e e les são vá rios para repartir o eu, par a ass um ir es péc ie de co ntem plação, es ta atitude de observação qu e inci-
o co nju nto do d isc urso , para co locá-lo em ato"" . E aind a: de so bre o qu e os tradutores, med iant e um anacro nismo mu ito
"Aq ue les qu e nós c ha ma mos ' personage ns ', ist o é, os seres ban al , cha ma m de im agens (o te xto di z: eikãnas), as qu ai s
de ficção qu e sã o os actantes de um drama ou de uma nar-
rat iva , não recebem de s ignaçã o específica na Poética : o par- 34 . Farem os aq ui um a aproximaçã o ines pera da. Na outra ex tremidade de
ticípi o práttontes ( lite ra lme n te : ' seres em a ção ' ) pode nossa história, no âmbito da teoria mais imitativa do ator (apa renteme nte), Sta-
re fe r ir-se, às vezes indi st intamen te , tanto ao s 'ac ta ntes' nislávski, ao envel hecer, parece procurar alguma coisa estranha men te próxi ma
dis to. com seu chamado método das ações físicas . Gror óvski, qu e prolon ga e
qu anto aos ' ato res ' " :". A d ifer en ça e ntre atores e person a-
radi cal iza. se m dúv ida, a teo ria stanis lavskiana , usa o lerm o "atuan tes" para
ge ns nã o é pertinente na Poética . O s age ntes sã o tanto aque- design ar o qu e podemos co mpree nder co mo uma instância indi feren ciada do
les qu e rep rcscntarrr ' ? qu anto aque les que são re pres e ntados , pont o de vist a da di feren ça rep resentativa, pesqui sa que não dei xa de ev ocar o
se oc undo o va lor mod ern o deste s term os: qualquer dissoci a- que tent amos analisar acim a. É verda de que Grotóvski elab o ra, aparenteme nte,
um teatro q ue só é representado para aqueles que o praticam, qu ase se m espec-
tado res . Cf. Thornas Riehards, Travuillcr {/I'ec Grotowski SUl' les ac tions phy-
27 . Quer dizer, moderna , em alguma medida . Ten tei desenvo lve r es ta aná-
siques, e o en sa io de Grot óvski no mesmo volume : "De la co rnpag nie th éâtrale
lise e m T rans fens d 'un C0I1WS enlevé. Hyp oth éses sur l 'Europ e , tese de dou -
à l' art eom me v éhicule", Ac res-S ud, 1995 . Grot óvski es creve, por exe mplo
toram en to em filoso fia, Strasbo urg , 1994, pp. 37-40 e 342-352.
(p. 185): " No es petác ulo [forma da qual e le se afasta, D . Gu énoun ] o lugar da
28 . C f. FI. Dup on t. L'acteur-roi, le thé ãtre duns I{/ Rosne antique , Les
mont agem é a percepção do es pec tado r: na arte como veíc ulo, o lugar da mon-
Bel les Lett res, 1985.
ragem es tá 110S atuantes, nos artistas q ue age m" . Num o utro co ntex to, ele tam -
29 . 1 44 8 ~ 24.
bém afirma : " Não se está , en tão, nem 110 personagem nem no não -perso nagem"
30 . Gri fo meu para os dois últim os me mbros da frase .
(citado por Thomas Ric hards, op. cit., p. 130) .
31. 0I'. cit.. p. 16 1.
35. 0I'. cit., p. 164.
32 . lbid.. p. 179. As referências indic adas para co rroborar es ta observação
36. 1448 b 9- 12(tradução ligeiramente modificada: assi m como M. Mag nicn,
são : 144 8 a 23 c tam bém 27, 1449 b 3 1 e também 37.
em Po ética, Lc livre de Pochc, 1990, p. 105, cu prefi ro " os fatos" a "a cxperiên-
33 . Aq uele q ue representa, qua ndo se tra ta de especi ficá -lo, é antes pensa-
cia prárica" para 1"1/ ér~õl/, co m o obje tivo de evitar uma co nfusão co m a
do com o poet a. O ala r não desf ruta de nenhum espaço próprio.
que stã o da práxis aqui abordada) .

24 25

r
lhes permitem que conh eçam algo a resp eito do que é olhado . ma is apuradas das coisas cuja visão nos é penosa na realidad e".
Ati vidade intuiti va ou espec ulativ a, que se pode des ignar, para Há, port ant o , um pr azer da visão que es tá ligado à esp eci-
manter a ressonância grega, co mo teórica: o olha r dos es pec- ficid ade do mim ético: um prazer visual tirado da representação
tadores é, por três vezes, designad o por theõria 37, e o adjetiv o como represent ação . Qu al é a natureza deste prazer ? Aqui
apresenta a vantagem de uma proximidade co m o teatr o, visto Aristóteles fornece uma indicação notável. Recordem os: "se gos-
que teatro e teoria partilham esta referência ao ver - o teatro é tamos de ver imagens, é porque olhando-as aprende-se a conhe-
o lugar de onde se vê. Lembremos que a indenização paga aos cer" . O prazer é, portant o, proporcionado pelo conhecimento,
espectad ores despossuíd os para que fossem assistir ao teatro pela representação COI I IO conhecimento. Prazer trazido pela au-
era chamada theõtik án . Aristóteles diz co m precisão: esta vi- tonomia do conhecer: não pela coisa que se daria a ver, mas precisa-
são faz co nhecer. Vamos olh á-la de mais perto. ment e pelo fato de se (re) presentar e de es ta representação
O o lhar traz a apre nd izagem. M as lem os , além di sto, produzir co nhecimento. A que se deve então esta gratificação
que a re ferida apre ndizage m prop orcion a prazer. E, nest e do co nhece r, proporcionada pela representação? Aristóteles res-
ponto, um a diferença parece se instaur ar em rel ação à outra ponde: "se gostamos de ver imagens, é porque, olhando-as , apren-
apre nd izagem, a que se d á na própri a ação de representar" . de-se a co nhecer e se conclui a respeito do que cada coisa é,
O pra zer (hedolle] é evocado em mu itas ocas iões na Poética , como quando se diz: este aqui é ele'?'. Observação es pantosa.
mas sempre no tocante aos espectadores. Tr ata-se de propor- O que é que ela nos faz pen sar? Em primeiro lugar, que
cionar pra zer a eles , o pra zer mais viv o e mais apropriado estamos num dispositivo claramente antiplatônico: não so-
po ssível. Não está excluído, mas não é men cionado, que tam- mente a mimêsis é produtora de conhecimento (virtude que
bém se sinta prazer em proporcionar prazer aos esp ect ado- Platão lhe nega com tod as as força s), mas também (o que dá
res . Pod e-se tamb ém obse rva r que, na frase que citamos no no mesm o, ce rtame nte, mas a í está dit o de um mod o extre-
co meço, o pra zer é a marc a dist inti va qu e per mit e prop or a mament e a brupto), a represent açã o permite a quem olha co n-
exi stê nc ia da seg unda " te ndê ncia", na med ida em que a pri- cluir a respeito do se r daquil o que ele vê. Ela dá acesso ao se r
meira é a q ue leva os hom en s, desde a infância, a represen- do que é visto, e não apenas à aparência enganosa. A mintêsis
tar, enquant o que a segunda é definida, em prim eiro lugar, inform a a respeito da essê ncia. Sua visada, cognitiva, causa pra-
apenas d o seg uinte modo: é e la que leva a "sentir prazer nas zer. Ora, este conhecimento é quase deduti vo: concluir é syllo-
representações " . O prazer não parece , portanto, ao men os gir esthai, é quase articular um s ilog ismo. Aquele que vê
numa primeira leitura , ser um corol ário obrigatório da apren- raciocina. Como dizíamos: teoriza. E seu prazer provém disto .
dizagem. É um atributo do ver. "Temos uma prova nos fatos: Mas o alcance de sta observação talvez seja mais profun-
temos pra zer em olhar as imagens ". do . Efetivamente , uma tent ação (int erp retati va) se aprese nta
O que é, então, que, na visão, causa prazer ? É a represe n- aqui. Se ria poss ível , realm ent e , ao ler es tas linhas na tradu-
taçã o co mo tal. Não as ca racterísticas obje tivas do que é visto ção qu e es tamos ci tando", ca ir na tentação de pensar que
porqu e, neste caso, dever íam os sentir prazer so mente em ver
coisas be las, no entanto se ntimos prazer em olhar "as imagens 39. 1448 b 15-17 . Grifo meu .
40 . Mas tamb ém em outras. Cf. jradução de J. Hardy, Les Belles Lcttres,
37. 1450 b 38 - 145 1 a 2, onde os própri os es pec tado res são design ados 1990 , p. 33, reedição Gallimard-Tel, 1996 , p. 82 ("es ta figura é fulano" ) ou a
por theôroü sin, Cf. o co ment ário dos tradut ores, op. cit.• pp. 214-21 5. tradução de M . Magn ien , flJI. cit, p. 106 ("es te reIrato é fulano" ). (N a tradu ção
38. Lemb remos que a tendência ativa ocasiona uma aprendi zagem: "o ho- de Eud oro de Souza. flJI. cit., p, 44 5, o trecho é tradu zido do seg uinte modo:
mem se diferencia dos outros anim ais porque é particul arment e propenso a re- "Efeti vament e, tal é o motivo por que se deleit am perante as imagens: olhan-
presentar (lII illle l ikfÍ lll lfla) e porque recorre 11 representação tmim éseõs) em do-as. aprendem c discorrem sobre o quc seja cad a uma delas. [e dirã o] , por
suas prime iras aprendizage ns (nuithêsis';" 1448 b 6-8 . exe mplo, 'este tal ..•. N. da T.).
é

26 27
este raciocínio do olhar conduz a um resultado comparável ma do reconhecimento . Devemos admitir que o reconheci-
ao que nos faz dizer, ao ver alguém: este aqui é ele . O efeito da mento seja mesmo o indutor do conhecimento produzido pela
representação seria análogo ao que acontece quando atribuí- representação, como parece à primeira leitura? A operação
mos a um dado indivíduo sua identidade, quando nós o reco- própria a este ato de ver é uma identificação? A resposta tem
nhecemos. Em matéria de representação, o conhecimento importância. Porque, supondo-a positiva, é nesta identifica-
seria lUU reconhecimento", E este reconhecimento procede- ção que se localizará a fonte do prazer: A identificação dis-
ria por identificação : como diante de um cadáver ou de uma tinguirá desde então entre a representação e a visão direta:
silhueta. A representação, assim compreendida, nos permitiria nesta última não tenho que identificar o que se oferece a
atribuir à coisa vista, ou melhor, re-atribuir-lhe por re-co- mim em sua identidade manifesta. A representação mostra-
nhecimento, o que nós conhecíamos (de um outro modo) como ria ao mesmo tempo este afastamento entre a coisa e a ima-
sendo sua identidade. gem (porque a imagem não é a coisa) e o preenchimento
Estaremos então muito próximos daquilo que Louis AI- deste afastamento ("este aqui é ele"). A identificação realiza-
thusser considerava como uma das funções específicas da ria este duplo movimento de colocação e redução da dife-
ideologia. Descrevendo a "função de reconhecimento ideoló- rença representativa. E este movimento seria o fornecedor
gico", ele escrevia: de prazer. Ao menos nesta hipótese .
Ora , se tentamos fazer funcionar este esquema sobre o
Paracitar um exemplo bem "concreto": todos nós ternos amigos que, ao ba- que chamamos " teatro" , as coisas se complicam muito. O
terem ü nossapOJ1a C, aindacom esta fechada,ao perguntarmos"quem é?", respon-
dcm (porque "é evidente"): "sou eu!". De fato,nós reconhecemos que "é ela" ou "é que, na verdade, os espectadores teriam para reconhecer? A
ele", Abrimos a pOJ1a c "é verdadeque é mesmoela quem estava batendo". que tipo de identificação eles se entregariam? Se se fala de
pintura, não há mistério algum . Vejo uma fruta pintada (ou
Ele acreditava caracterizar assim um dos "rituais de reco- um animal , ou um rosto) , e o reconheço: estabeleço, por as-
nhecimento ideol ógico"? e considerava, no fundo , o reco- sim dizer, um elo de identificação entre esta figura feita de
nhecimento como uma das operações instituidoras da linhas e de cores e um ser real , existente fora da tela . Mas e
ideologia. Se cedêssemos à nossa tentação interpretativa, o no palco? Para os espectadores dos quais Aristóteles fala ,
olhar (que chamamos "teórico") lançado sobre a representa- que reconhecimento poderia ser produzido? Que elos eles
ção se veria investido de uma natureza "ideológica", no sen- seriam convidados a estabelecer entre o que acontece diante
tido althusseriano do termo . Certamente, é sempre uma de seus olhos e - justamente, o quê?
questão de visão: a idéa, também ela, remete à visão. Ainda Pode-se responder que os espectadores reconhecem deu-
assim : esta assim ilação não pode deixar de nos pôr em alerta. ses, heróis, seqüências de história ouvidas em outros lugares
Em Althusser, como sabemos, ideologia e teoria se opõem por (ao menos no caso da tragédia, sobre a qual os argumentos
múltiplos Iitígios e rixas. E a questão que se coloca então é da Poética estão disponíveis, faltando as partes relativas à
saber se nosso modelo "teórico" aceita a inclusão do esque- comédia). Lembramos que Ar istóteles refuta vigorosamente
esta hipótese: "não se deve querer a qualquer preço ater-se às
histórias tradicionais que formam o tema de nossas tragédias;
41. Tentação part ilhada pelos tradutores: " O prazer que a representação
é uma exigência até ridícula porque mesmo o que é conhecido
enquanto tal proporciona é um prazer de reconhecimento", op, cit., p, 165.
só o é por uma minoria, o que não impede que isto agrade a
42 . " ld éo logie et apparcils idéologiques d'Etat", retomado em SUl' /0 re-
production, PUF, 1995, p. 304. Sobre esta questão, cf. todo o desenvolvimento , todo mundo?": Não é, portanto, necessário que haja conhe-
pp. 302- 307 . (Em português: Sobre o Reprodução, Tradução de Guilherme
João de Freitas Teixeira, Petrópolis, Vozes, 1999, p. 285). 43. 145 1 b 25-26. Grifo meu.

28 29
zer é O qu e dis ting ue a tend ência ao olha r da tend ência ao
c ime nto prévio nem , neste p ont o, reconh ecim ento para que
a represen tação produza se u efeito. Que outro obje to, pree- fazer (" os homen s têm , inscritas em sua nat ureza , si multa-
xistente à narrativa, os es pec tado res podem se r co nvidados a neament e, uma tend ênc ia a represent ar [...] e uma tend ência
reconh ec er ? A Poética não pára de martelar que a tragédia é a enco ntra r praze r nas representa ções"). À nossa interroga-
feita de ações. O que é o "reconhec imento" de uma ação? ção so bre a natureza desse prazer, Ari stóteles resp ond ia: "a
Não so mos levados a co nside rar que se identifique um ato - razã o d isto é que aprende r é um prazer " - o conteúdo do
em geral é uma coisa ou alguém. O text o de Aristóteles suge- prazer (de ver) está, portanto. 1/0 própr io ap rendizado . E e le
re, entret anto, uma sa ída. O que pod e funcionar com o reco- acrescentava : "E fetiva me nte. se gos tamos de ver imagens é
nhec iment o para uma ação é sua insc rição no ca mpo de um a porqu e, olha ndo-as, aprende mos a co nhecer". Um elo muito
verossimi lha nça . Ou , seg undo a fórmula mais freqü en te: de es trei to associa, portanto, o prazer de conhecimento e o apren-
uma veross imi lha nça ou de uma necessidade. O ra, verossi - d izado - o prazer é prazer da aquisição de um co nheci me nto
qu e nós não poss uímos . É o prazer proporcion ado pe lo ad-
milh ança e necessid ade não são cr itéri os ex teriores ao poe-
vento de um co nhec ime nto, sua vinda, sua form ação. É pre-
ma. Não são ope rações de ligação entre a ação represent ad a
e o qu e ela representa. Verossimilhança e nece ssidade de- c iso tal vez e ntão afirma r, co ntra a opi nião dos própri os
pend em de rel ações de co nstrução intern a, de ci os que se tradut ores'" , que o reconh ecim ento não co nvé m a es te mode-
estabelecem entre as ações most rad as e outras que lhes são lo, porque não é ad ve nto ou produ ção de co nhecimento, ma s
anteri ores (o u post eri ores). Vero ssim ilhança e necessidade reencont ro de um conhecimento anter ior, j á ali. Som os aqui
result am do que se poder ia cha ma r um a lógi ca das ações, co nv ida dos a nos afas tar do model o platôni co de co nhec i-
qu e permite aos es pec tado res raciocinar, co ncl uir - e se ntir ment o por rememo ra ção, recogni ção, anamnese, para fazer
praze r nest a dedu ção!' . E esta lógica pode ag ir co ntra o se n- j ustiç a à possibilid ade de um a novidade do conhecimento ,
de uma inovação cog nitiva . E co nceber, port anto, co m AI-
timent o estabe lecido da verossi mi lha nça" . Ela pode até le-
va r a mostrar o impossíve l: " É melhor pre fe rir o qu e é thusser, uma dife rença marcante entre co nhece r e reco nhecer:
impossível mas veross ímil ao que é possível mas não persua- co nhece r sendo a operação propr iamente teórica, e reco nhece r
si vo":". Os espectadores têm ass im que " reco nhece r" o elo , a atividade distintiva do que ele chama ideologia" . Haveria
intern o à tragédi a, entre as açõ es apre sentadas e m ce na. O port anto algum a co isa de propri amente teóric o na atividade
desvclamenro é um poderoso detonador de prazer. M as es te do olhar teatral lançado sobre as represent ações : vinda, for-
modelo a fasta qualquer hipótese de reconhe cimento e ntre um a mação, co nstituição de um conhecimento nov o. E é esta ativi-
cois a imit ada e uma outra, real , qu e valeri a co mo s ua re fe- dade teór ica que se produ ziria com o seqüê nc ia conclusiva,
rência . E le torn a inopera nte o esq uema que se tinh a aprese n-
47 . Q ue, corno disse mos. recorrem e m seu co mentário ao ter mo " reco nheci-
tado a nós co mo hipótese interpretativa para ler o texto da
mento" . O". ri t., p. 165. Eles não são os únicos: Cf., a respe ito desta mesma
Poética. Ao fim, e is-nos levados a nos pergunt ar se é real- passage m. H. G. Gada mcr, Vérit« et tuéthode , Seui l, 1976, p. 40 . (E m português:
mente de reconh ecimento q ue se trata . Verdade e M étodo . Tra duçã o de Flávi o Paulo Meurer, Petrópo lis: Vozes, 1997).
Volt em os, e fetivame nte, ao lrech o qu e tinh a despert ad o 4 H. "Com efe ito, o cará ter próprio da ideo logia é impo r (sem que se dê po r
nossa tent ação identi ficadora. Ali ficam os sa bendo qu e o pra- isso , uma vez q ue se trata de 'e vidê ncias ' ) as evi dên cia s co mo ev idências, qu e
não pode mos de ixa r de reconhecere dian te das q uai s tem os a inevitável e na-
tural reação de ex cla ma r (em voz alta, ou no ' silêncio d a co nsc iênc ia '): 'é
e vide nte! é isto mesm o' é mesm o ve rda de!'. Nessa reação , se exerce a função
44 . 1451 a 1:1 , 145 I b :1 5, 1452 a 20, 1454 a :14-:16.
de recnnheci tnento ideo lógico qu e é um a das du as funções da ideol ogia co mo
45 . "É ve rossí mil qu e muitas co isas oco rra m tam bém co ntra o verossími l" ,
ral (o re verso é a função de itrcco nhecinicnto)", OJ!. cit., pp. :103-:104. (E m
1456 a 24 .Etam bém1461 b 15.
po rtuguês : 0/'. cit., p. 284) .
46 . 1460 a 26 .

30 31
raci ocinante, syl logizestlta i. Poderíamos dizer então que o reconh ecem o qu e eles já co nhece m, não op eram su a identi-
que distingue es ta aprendizagem (visual) da o utra (prática ) é ficação (" ideo lóg ica", co mo diz Althusser), mas fruem da
o prazer de aprender. E este prazer é um prazer de conhecer. descoberta, inovadora pa ra eles, da forma daquilo que eles
Um prazer de acesso ao se r do que é visto. Ou: um prazer de vêe m. É esta abs traç ão da forma qu e é co ncl usiva quanto ao
aprendizagem teóri ca . . se r. Co ncl uir qu ant o ao se r não é reco nhece r o qu e se vê. É
Os tradutores ass inalam, efetivame nte , ainda a respeito pro duzi r o de sprendimento de um a forma qu e é a ún ica qu e
detém o recu rso cognitivo . Esta atividade é um a int elec ção.
deste trech o:
O prazer qu e c1a faz nascer é exatame nte de natureza teórica.
A pe rspe cti va de Aristótel es não é es t étic a (no se ntido moderno do ter -
mo). mas antes intele ctual, cog nitiva. Qualquer obra num érica [00 .) é um a trans - Isto signifi ca que não há nenhum lugar, no " teatro" do
posiçã o qu e des prende uma forma (lII or,,!uís) [ ...) diss.oeiand o-a ~a ~Ilatéri a à
qu al fala Aristóteles, para o reconh ecimento co mo identifica-
qu al ela es tá associada na nature za. O artista, que põe ass un em eVlde~c~a a caus~
formal do objeto , ofe rece à inteli gênci a a oport unidade de um a atividade SUl ção? Este teatro ignoraria o proced iment o recognitiv o ou ideo-
generis, de um raciocínio sobre a causa lidade que é aco mpa nhado pelo prazer" . lógico? Não, claro q ue não. Es te reconh ecim en to fig ura co mo
tal na Poética so b o nome de anagn árisisê', M as ai nda aqui
O prazer deve, portanto, ser aqui claramente co mpree nd ido trata-se de um reconhe cim ento interno ao poema: a anagnârisis
com o prazer teórico, pra zer da form ação, da gênese (ativida- é o alo pelo qu al um dos age ntes da narrativa desvel a, e atribui
de sui generis) de um co nhecimento não anteriormente cons- uma identidade j á conhecida mas até então oc ulta. É o qu e
tituído. Este co nhec ime nto pro cede pel o de sprendimento de aco ntece qu and o Ifigênia reconhece Or est es, se u irmã o, no
um a form a. Isto porque e la é irredutível à visão s imples : a recém- ch egado. Este reconh eciment o não co nce rne ao elo e n-
visão apree nde o conjunto co nstituído pel a forma e por sua tre a " platé ia" e o " palco" . Ele se insc reve na histór ia, no sis-
matéria, a form a não pode ser ali imediatamente isolada. Cabe tem a de fatos , na co mpos ição da s ações. Ele co ncerne à vertente
ao co nhecimento extraí-Ia. O prazer do conhecimento é o pra- ati va do teat ro e não à sua verte nte " rece ptiva" . " De tod os os
zer desta abstração. Os comentadores observam logo adiante: reconhecim ent os, o melh or é o que resulta dos próprios fatos
"o qu adro, que abstrai do modelo «forma própria, solicita as Ipragmátml.l"52. O reconh ecimento é um a categoria da ação,
faculdades de raciocíni o (syllogízesthai) e proporci on a [00 '] o não do co nhec ime nto. Ela afeta a prática, não a teoria.
praze r da de scoberta, qu e é s imultanea me nte prazer de es- Isto co ncc rnc, de todo mod o, claramente, ao reco nhec i-
pant o (thaumázein) e prazer de aprende r (man thánein): ' vej a, me nto do outro, ao fato, para um dado age nte, de reatribuir a
é ele ' e 'é es ta, então, sua forma par ticular " '511. O prazer teó- um daqu el es qu e o ce rca m uma identidade a ntes o bsc ura,
rico ass im ativo no olha r sobre a representação é o pra zer da pro cedimento que compreendemos bastante bem qu e perm a-
descoberta, isto é, um prazer ligado à produ ção da novida- neça co nfinado no interi or da narrativa . Ari stóteles ev oca,
de, que se determ ina então com o gê nese do conhecimen~o ~a no e ntanto , um a seg unda esp écie de anagn árisis. É o reco-
forma. Conh ecimento qu e a coisa não dá quando el a propria nhecim ento de si, qu e so brevé m, por exemplo, (mas o exe mplo
se apresenta, e que resid e na revelação, na abs tração de um a é importante" ) quand o Éd ipo se recon hece co mo o culpado que
mo rph é. Assi m co ns ide rados , os es pectado res de teatr o não

51. 1459 a 19 s .
49. O". cit., p. 164 .
50. O". cit., p. 165. Co rte i, na citação ac ima, a re ferência, conservada p~­ 51 . 1455 a 16 . C f. ta mbém 145 0 a 34 , 145 2 a 16-1 1, 1451 a 31 -38,
los autores , ao term o "r eco nheci mento", co m o obje tivo de torn ar elara a hipó- 1455 b 34 .
tese que le vant ei e que se apóia sobre a leitura deles , mas ultr apassa os termos 53 . Sa be-se q ue a anagn árisis ed ipia na é referi da por Aristóte les co mo "a
mais bela" (1451 a 33) . Este privilég io não está relacionado ao rcco nhcc imc n-
da interpretação que e les fazem .

32 33
procu ra. Louis Althusser - novamente - considerava este últi- mento d o o utro , reservando a anagn árisis aos qu e agem , no
mo proced imen to constituti vo da interpelaç ão como sujeito: âmbito da própri a narrativa. Mas e le ign ora também qu al -
qu e r pos sibilid ad e de re conhecimento de s i por parte do
Então, sugerimos que a ideologia "atua" ou "funciona" de tal modo que
espec tado r, co m um a ind iferenç a so berana , que nos dei xa
"recruta" sujeitos entre os indivíduos (recruta-os a todos) , ou "transforma" os
indivíduos em sujeitos (transforma-os a todos) por essa ope ração muito precisa tranqüil os, nós qu e nos ag ita mos tão ru idosam ente e m tor-
que designam os por interpelação, que pode ser represe ntada a partir do próprio no dest a questão' ", Em nenhum caso o a uto r da Poética
tipo da mais banal interpelação policial (ou não) de todos os dias: "psiu, você aí!" parece ave ntar a hip ót ese de qu e um es pec tado r, di ante dos
Sup ondo que a cena teórica imagi nada se passa na rua, o indivíduo inte r- infort ún ios de Éd ipo , possa d ize r a s i mesmo : aq ue le ali
pelad o vo lta-se. Por esse si mples movime nto físico de 180 graus , torna-se um
so u eu" . É aq ui qu e A lthusse r nos pod e se r útil. Porque , na
sujeito. Por que motivo? Porque recon heceu que a interpe lação se dirigia "rea l-
ment e" a ele e que "e ra realmente ele q ue es lava se ndo inter pelado" (e não seq üê nc ia qu e acaba mos de ler, el e co loca o reco nhec ime n-
outra pessoa):". to de s i sob interpela ç ão como a própria o pe ração qu e ins -
titui o indi víduo co mo suj eito. Se guind o es te raci ocínio ,
E Althusser pro ssegue : poderíam os formul a r a hip ótese de um a esp écie de so lida-
riedade fund am ental e ntre a subjeti vid ad e o u a subjetiva-
Natura lmente, para maior co modidade e clareza da exp osição de I IO .UO
ção e a presunç ão de culpa, que a seqüência cdipi an a nã o
I'eque/lo teatro te árico , so mos levados a ap rese ntar as coisas sob a for ma de
uma seq üência, co m um ante s e um depois [...l - Mas, na realid ade, as coisas poderi a desm entir. O rec onhecimento de s i, a identificação
passam -se se m qua lquer sucessão . A exis tência da ideolog ia e a interpelação (term o co m c ujas resson âncias polici ais Althusser j oga de
dos indivídu os co mo sujeitos são uma só e mesm a coisa'" . prop ósi to) pod eria , port anto , ser entendida co mo formad o-
ra da co ns tituição (e d ip ia na , portant o, c ulpa da) do sujeito,
Por qu e rec orrer aqu i a es ta descri ção , que pa rece mui- da identidade (pres um ive lme nte c ulpada) do suje ito ed ipia-
to a fas tada de nossa s pre ocupações a ris to té licas - e m ai s no . A cons tituição (cdi piana) de s i co mo s uje ito es ta ria nes-
ge ra lme nte te atra is? É para encontrar nel a, por default , um a ta inculpaçã o idc ntificado ra: o u nos pro tes tos de inocên ci a
int erpre taç ão possível rel ati va à ausê nc ia, e m Ari st ót e les , qu e se in scre vem ce rta me nte na mesm a es trutura . Éd ipo se
de qu alquer reconh ecimento de si por par te do espectador. reco nhece - CO/ II 0 culpado : é esta c ulpa q ue fund a s ua auto -
1,1 foi d ito qu e A ris tóteles co ns idera ins ig nifica nte o rec o- ide ntificação e a co n fig uração qu e un e es tas d uas c itações
nh ec im en to imi tativo dos her ói s o u dos " pe rso nage ns" , ao (so u eu , so u c ulpad o) é a mesm a q ue o co ns titui c o mo s ujei-
q ual pode ria m pro ced er os es pec tado res e m re ferên ci a a um a to . Pod em os então pr opor urna interpretação rel at iva à au-
hi st ó ria j á co nhec ida . Al ém d ist o, e le es tr utura a mimêsi s sê ncia ra dica l de qu alquer re c onh e cim ento de si pel o
co mo a tiva representação de ação, e não co mo imitaç ão de "espectado r" no es pe tácu lo da tragéd ia . O es pectado r não
es tado o u de ca r áte r. Neste se ntido , co m pree nde -se qu e e le pod e ass im se reconhecer (co mo Édipo, co mo aq ue le qu e é
não possa aplica r aos qu e o lha m o es q ue ma d o reco nhec i-

56 . Platâo aborda uma questão muito próxima (por que nós nos permiti -
to de si, mas 11associa ção do reconheci mento ao "golpe de teatro", ou peripécia mos chora r pela infeli cidade de um outro?) mas se m a coloca r. ele tampouco,
_ ainda q ue a hip ótese de um elo entre estes dois aspec tos não seja indefcns ávcl. em term os de reconhecimento, vendo nela antes algo co mo uma transferê ncia
A este re spe ito, cf. Philippe Lacouc-L abarthc, L 'imitution des nioderues, Ga li- de prazer. um co nuígio do pra zer das lágrimas, o que é bem dife rente. ReI'.. X,
l ée , 1986, pp. 48-49. (E m portu guês: ;\ {II/;I a('l;o dos M odemos: E/lSl/;OS So- 606b. C f. em especial a tradução de P. Pachet, Gallim ard -Folio, 1993, p. 512.
bre Arte e Filosofia, organização de Virginiad e Araujo Figueiredo e João Cnmillo 57 . C f. J. Sturobinski, "H am let et Freud" , e m E. Jones, Hamlet et Oedipe ,
Penn a, S ão Paulo, Paz e Terr a, 2(00). Gallimard, 1967, re edição Tel 1994, p. IX. (Em português: ef'. E. Jones, Hamlet
54. OI'. cit.. p. 305. (Em português: 01'. cit., p. 286). e o Complexo de É'd;{J/I , tradu ção de Álvaro Cab ral, Rio de Jane iro, Za har,
55 . lde nt, p. 306 . Gri fo meu. (E m português: 01'. cit., p. 286). 1970 ).

34 35
conhece as formas , sabiamen te el aboradas pelo poeta, que defi nem a essência
c ulpa do) po rq ue não há nenhum lug ar, no te at ro do qu al
do l.uncnuivcl e do aterrorizant e, o espectador experimenta a compaixão e o
A ris tóteles dá tes te m unho , para o espectador iden tifi cado terror, ma s sob uma forma quintessencial e a emoção depurada que o assal ta
como sujeito. N ad a , na tragédi a qu e o dis posi ti vo ar istoté- I...] é acompan hada ele prazer" .
lic o nos descreve, in ter pe la o es pectado r co mo sujeito, nad a
lhe at ribu i a posiç ão pres untiva, j uríd ica , da su bje tividade . Assi m interpretada, a k átharsis, longe de desper tar nos espec-
O suje ito será apa nhado , posteriorme nte, numa o utra his- tad ores aqu e las e moções em sua pato logia imediata, sub mete
tó ria - nu m o utro Direi to . A Poética co nhece agentes, q ue os transportes e motivos a uma purificação que é a da própria
agem , e aq ue les que olham , que c on s ider am. M as não há abs tração. A k âtharsis opera como efeito da cognição. Pied ade
sujei to- espe ct ad o r. e terro r não escapam à teorização q ue marca a mimêsis. Ao
menos enquanto são considerados co mo fatos de tea tro, e não
como puras ope rações de assalto ao espectado r pelos terrores do
Res umi ndo: o tea tro a respe ito do qua l a Poética dá tes- visívcl' ". Porqu e Aristóte les estabelece sobre este fundame nto
te mu nh o a proxi ma do is campos het er ogên eos . O campo da uma distinção, mui to rigo rosa , en tre o espetác ulo e o teatro .
miniêsis ativa : prod ução, dese nho, (re)p resen tação de ações .
Es te ca mpo se ap resen ta, dia nte de nosso olhar mode rno, Aqueles qu e, pelos me ios d o e spetácul o [ÔpSe!IS], prod uzem não o
aterrorizan te mas ap enas o mon st ruo so , nada têm a ve r com a trag éd ia, po is
co mo curiosame nte uni tário: estran ho à divi são im itati va e ,
não se deve pedir il tra gédia qua lq uer tipo de pra zer, mas apenas aque le q ue
no fun d o , não pa rece ndo co nhecer nosso afas tame nto en tre a lhe é próprio . Ora , como o prazer que o poet a deve produzir ve m da piedade
image m e o rea l. Os agentes pa recem move r-se aí tan to no e do te rro r desp ertados />e/II atividade represe uuuiva Idiá lIIillléselis], é
plano que nós consideraríamos fic tício, co mo pe rso nage ns, e vide nte qu e é nosfatos Ip r lÍ gl/lII si l/"o] 'lI/ e e/e deve inscrever isto 1/0 COIII-
quanto naq ue le qu e c hamaríamos de cê nico, como atores. por lelll/}() i eréo/l!ÚI.

Campo que permanece estran ho ao reg im e do reco nheci me nto


Assim o espetácu lo é aqui c laramente relac io nado a um regi -
ide ntificad or, visto que a ide nt ificação tra ba lha pa ra reduz ir
me da visão di re ta, imed iata mente provedora de a fetos . E n-
a d iferença representativa, q ue deve , portanto, se r previa-
q ua nto que o teatro é pensado a partir da prod ução da h istóri a ,
men te estabe lec ida .
oferec ida a um o lha r cognosce nte . Teatro teó rico , por ta nto -
E , dian te d a mintêsis, o campo de uma v isão qu e se pode
pelo mérito de sua visão ded ut iva , lóg ica - e nq uanto o espe-
c ham ar de teórica: cam po on de opera um o lha r cognitivo,
tác ulo se ate ria à mo stração de mo ns tros , à eficác ia patogê-
qu e abstra i for mas e se co rnpraz com sua e me rgência . Pode-
nica , d ireta do vis ível. Aqueles qu e hoj e se e m pen ha m em
ríamos objetar q ue es ta co ncepção teórica do o lha r dos es -
reabil itar o espetáculo, descob rindo nel e as vi rtudes da me -
pecta dor es desco nhece tudo o q ue a Poética diz d a emergência
d iação e da distância (e anexa ndo a e le o teatro, como se este
das pa ixões , do te rro r e da piedade , e , por ta nto , da k âtharsis.
fosse um a de suas subes pécies) , poderiam ta lvez med itar co m
N ão podemos ter ce rleza .É po ss ível pe nsa r que mesmo o
provei to so bre esta oposição'".
passion al o u o e mociona l só entram neste ca mpo de purados ,
purificados por sua insc rição no reg ist ro de um a atividade de
con hecime nto . E que isto seja o que ca rac teriza a operação 5X. Duponr -Roc e Lallot , op, cit. , p. 190.
catá rtica . 59 . 1 45 ~ b 1-6 .
60. Quer dize r, nas açõ es rea lizadas.
Da simples visão (llIíml/) da s coisas mesmas [... 1 pas sa- se, diante do pro - 6 1. 145~ b 8- 14 . Gri fo meu.
duto da mimêsis, a um olhar ( /ilelireil/ ) qu e se faz acompanhar de intel ecção 62 . Cf. R. Deb ray: "L 'hommc a beso in d u s pcctacle pour acc éder i\ la v éri-
(man th áncin ) e, po rtanto, de prazer. A kátharsis trági ca é o resu ltado de um r é", Le MOI/de des Livres, 19-07-96 , p. VIII. E também: "P ourquoi lc specra-
processo .uuilogo : pos to em presença de uma história (11I)'/ /10.1') na qual ele re- ele?" em Les Cahiers de mcdiologic, I , "La Qucrcllc du spcctacle", pp. 5-1~.

36 37
A necessid ade do teatro , pensado seg undo o mod o ar is- hoje, irremediavelme nte, destruído. Este teatro não pode , de
totélico , se revela então co mo fund ament alm ente dupl a: ne- mod o a lgum, se r mais o nosso. E a necess idade, even tua l, de
cess ida de d e um a pr átic a (cê nica) e d e uma te ori a nosso teatr o não pode abso lutame nte result ar de suas dispo-
(es pec tado ra) . Agarradas às du as verte ntes da niintêsis, es tas sições . É preciso tent ar co mpree nder o moviment o que nos
duas ope rações parecem respond er a dua s es péc ies de neces- lançou para fora de sua pa isage m.
sidades, amb as naturais, mas que nada de ess enc ial liga: ne-
cess ida de de representar, necessidade de o lha r o qu e se
repr esenta. Como co mpree nde r então qu e possa se co nsti-
tuir , em sua unidad e, algo com o "o teat ro", para empregar
nossa designação modern a? Qual pode se r a necessid ade desta
aprox imação? Aq ui é preciso co nje turar : o te xto da Poética
não resp onde nada de ex plícito . Mas podemos nos ave ntu rar
a ded uz ir o que e le não d iz. Pode mos pe nsa r qu e es ta un ião
proced e , logicamen te, do fato de que es ta prátic a c es ta teo-
ria se impli cam recip rocamente. A prática não se basta co m
sua aut o-efetiv ação , é-lhe necessári o se apresentar a um o lhar
que distin ga e des cubra suas formas inteli gíveis . O teatro
atestaria portanto que não há prática pura , mas qu e a prática
(ao men os a prática que desperta os humanos desde a infância,
dand o-lh es a possibilidad e de apr end er por [rejprcsent ação)
qu er se r co nside rada, teo rizada , co nhec ida . Por se u lado, a
visão (teo ria) não pode se bas tar co mo co nte mp lação pura
das co isas em sua feno me na lidade, se u apa rec er imedi ato,
sua presença, mas qu er co nhece r represent ações, atos mimé-
ticos, práticas: fatos co mpos tos co mo histór ias. O teatro di-
ria então que são nec essári as à teori a não co isas que se
mostram, mas hist óri as ativas. Ou : que as coisas jamais se
mostr am , co ntrariame nte aos ideologema s da moda, mas qu e
o conheci mento as apreend e co mo reali zações práticas. E o
teatro , co mo unidade qu e en glob a, respond er ia a (o u: por)
es ta necessid ade: necessid ade, vital ou viva - natur al - , de
um a visão cog noscc nte de histór ias em ato.

A Poética co mprova, co ntra nossos olhos reti cent es, a


exist ênci a deste teatr o de práticos c teóricos associados. Qu e
e le tenha ou não existido é uma outr a questão: não tem os que
decidir aqui se o livro é um documento fiel ou uma fic ção
especul at iva. Uma coisa é certa: o sis tema qu e e le expõe est á

38 39
k &yyyJ!,.r~ íl

1)~ f){ ICiv.iP

II

La p ratique du th éâtre , de Fra nçois Héd e lin , ab ade


d ' Aubignac , dat a de 1657 1• Seria se m dú vida apaixonante
conh ecer em detalhes a históri a da gênese dessa obra' : texto
engajad o, qu e desejava agir no se ntido de soerguer, de recu-
perar o teatro' qu e d ' Aubignac cons ide ra va, j unta me nte co m
muitos de se us contempor âneos , co mo tend o de saparecido
na noit e medi e val para só renascer no século XVI, sob formas
men or es , bufas, ignorantes da s normas da Arte", Te atro qu e,

I. L' Abbé d' Aubignac , La Pratique du théãtre, ed ição es ta beleci da e pre-


faciad a por P. Manino. Publica tions de la Facultédes Lellres d ' A lgc r, I' sé rie , l.
11 , J. Ca rbo nel ed ., Algc r, 192 7. Co mo es ta ed ição não é a mais c itada habitual-
ment e, farei refe rên cia aos capírulos, além do núm er o das páginas.
2. Cf. o pre fácio de P. Martino, pp, I-XX IX.
3. C f. " Projeto para a Recuperaçã o do Teatro Fran cês" , lbid., p. 38 7 sq .
4 . " A un e de co mpo r os poemas dram át icos, e de represent á-los. parece
ler lido o mesm o destin o qu e os so be rbos ed ifícios , onde os antigos os havi am
tantas vezes admirado . Ela seg uiu a derro cada destes prédios e por m uito tempo
este ve co mo que sote rrada sob as ruí nas de A renas e de Rom a . E qu and o Foi

41
a part ir de me ad os do século XVII, se procurou rest aurar e m tros aspec tos da " prá tica" , é, no e ntanto, a feitura dos poe-
se us fund am entos , e levando -o à a lt ura de sua d ign id ad e . mas q ue co nce ntra s ua ate nção .
D' Aubig nac (co nse lhe iro de um Richelieu c ujo e ngajame nto M as d' Au big nac nos pare ce pr ó xim o da Poética tam-
nesta lu ta foi da ma ior import ância") tom ou parte ativa neste bém po r um a o utra razão . É que , seg uindo o uso c láss ico, se u
co mbate - co m mai s a lg umas pessoas , cl aro. E a hi st ó ria texto de no ta uma es pécie de indec isão no e mprego das pala-
de sta lut a co letiva é ai nda mais fasc ina nte na me dida e m qu e vras " ator " e " pe rsona gem" . "Ator" é e ntendido às vezes em
produziu aquilo que pretendia : e m 1680 , o teatro tinh a mu- nosso se ntido moderno: evocando o teatro po uco de po is de
dado de face , um a outra " prática do teat ro" tinha vindo à luz se u "soc rguirne nto" q uan do, ai nda co nvalescente , e le não ti-
e tomado a di anteira. nh a se recuperado seg undo os pr incíp ios da ar te , d ' A ubig nac
Ora, lend o o texto do tratad o pod em os, num prim e iro escreve: "Os atores não tinh am co mpreensão a lg uma do ofí-
mom ento, ac red itar qu e es tamos num uni verso mu ito pr ó xi- c io qu e cxcrcia rn' ". Neste ca so trata-se dos atores . Mas e le
mo ao da Poética . D' A ubig nac não pára de citar Ar istóte les , not a em outra passagem que "os ant igos poetas rara me nte
c ujos princípi os ele pretende exp licitar para q ue sejam nova- faze m os atores morrerem em cena?", o q ue , com ce rteza, se
me nte respe itados. Além dis to, a "prática do teat ro" na q ua l refere aos pe rso nage ns - uso corrente e m Cornei lle e e m to-
e le se e mpe nha é, na verdade, bastante poética. A resso nâ n- dos os escritores da quela época . De um te rm o a o utro , o se n-
cia mod ern a do títul o não nos deve enga nar : a o bra não visa tido pod e perm anece r indeterminado, o qu e poderia lev ar a
qu estões cê nicas , trabalh o de ato res o u dir eção de trup cs. acred itar num a es péc ie de indi stin ção a ná loga à d os prátton-
S ua " prática" é a do d ram aturgo . "Ao lon go dest a obra não tes da Poética: afina l, "ato res " pod e va le r co mo trad ução
tive outro prop ósito senão o de instruir o poe ta de várias parti- adeq uada do te rm o grego e desig nar, na mesm a ambigüida -
cu larida des que ju lgue i muito important es para q ue se for me a de , aq ue les que agem no pa lco!", Ass im d' A ubig nac , lendo
con tento uma peça de teat ro'". O u, mais precisam e nte ainda: Ar istóte les , opõe o coro "aos outros ato res q ue são, em geral,
be m mais atua ntes " ! I , o qu e, para nós , pode ser co mpreend i-
No tocante às observações q ue era necessário fazer so bre [...] a habilida- do tant o como re ferênc ia aos outros pe rso nage ns , mais e nga-
de para prepara r os incid entes, para reunir os temp os e os lugares, a co ntinu ida -
jados na históri a, qu ant o aos outros intér pretes, mai s ativos
de da ação, a ligação das ce nas , os inte rva los dos atos , e ce m ou tro s det alhes,
não nos restou nenhum relato da Antig üidade e os modern os falara m tão pouco na re present ação. Uma Ilu tuação co mpa ráve l ati nge a pala-
sobre o assunto que é possível di zer que ele s nada esc reve ra m a res pei to. É a vra " perso nage m". Ela vale, co mo hoje, para o ser de ficção :
isto que ch am o Prát ica do teatro", d ' Aubig nac cita Dem ósten es q ue, para falar mal de És q uino,
qu e r " reve lar que e le tinh a sido histri ão, m as muito ruim e
Para e le , co mo para Aristó teles, todo o fa zer do te at ro (o q ue representava apenas o terceiro pe rsonagem''P; aqu i, " pe r-
nós cha ma ría mos o "fazer te atro" ) est á reunido na escrita, a so nage m" é empregad o numa acepção mais próx ima do uso
fábr ica da s o bras desti nada s ao pa lco . E se e nco ntra mo s na mod ern o . Enq ua nto qu e, qu and o e le nos rec ord a "q ue no tem-
o bra , co mo em Aris tóte les, alg umas o bservações so bre o u-

8. iu«, livro I, ca poI, p. 15.


recupe rada nos últimos te mpos para ser revivida neste Reino , surgiu com o um 9 . lbid., livro 111 , ca p. Iv, p. 208 .
co rpo ex um ado, horrend o, disforme, se m vigor c qua se sem mov imen to." Idem, 10. Um séc ulo mais ta rde, R émond de Sai nte-A lbinc citará ainda " a desig-
livro I ca poI, p. 15. Mode rnizei a grafia . nação de ato res, qu e só é atribuída aos personagens de uma obra dramát ica
5. tbid., livro I, cap oI, pp. 16-1 7. porq ue es tes devem ser se mpre age ntes" . Cf. Lc Comédie n, em Didenn e/ te
6. tu«, livro 111 , cap . l lI, p. 185. thé âtre ll.L 'Acte ut; apresentação A. Mesnil, Agora-P ockct, 1995, p. 203 .
7 . Ibid. , livro I, cap o 111, "Sobre o que se deve e nte nder por Prática do 11 . tu«, livro 111, ca poIV, p. 198.
Teatro" , p. 22 . 12. lbid., livro 111 , cap o111 , p. 192. Gr ifo meu .

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po de T ésp is havia [...] coros antigos e atore s que fazi am este insinua, não desprovid o de utilidade. O aut or não va i se de-
I/ O VO Personagem ou Histriã o" , o termo , tom ado co mo si nô- di car a ele . " Prete ndo fala r dos es pec tado res por ca usa do
nim o de histri ão , de sign a a apa rição do ator corno tal!'. Nu- poeta , e apenas em rel ação a el e, para lhe dar a conhecer
an ces refin ada s : mas c ujo refin am ento ates ta qu e as palavras com o ele os de ve ter em mente qu and o trab alh a para o tea-
deslizam com facilid ade de um sentido a o utro . Pod e ríam os, tro" !". A prática é, port ant o, neste caso, ex cl us iva me nte, um
po rta nto , sup or qu e d ' A ubignac , co mo Aristó te les , es tava fa zer: fi cará faltando a outra aná lise. O pen sam ento do olha r
pou co preocupado e m dis ting uir aq ue les que age m na histó- só ex istirá co mo ausência.
ria daqu eles qu e age m no pal co. Ma s obse rve mos , a lém disto, qu e, lon ge da unid ade co n-
Ora, não é nad a di sto. O equívoc o é de língu a, todo o cedi da por Ari stóteles à práxis cê nica como ação, a prática
es forço de d ' Aubignac, ao contrári o, pretende reduzi-l o. Sua de d ' Aubignuc abre so bre dois esp aços profundamente hete-
inici ati va, mesm o tribut ária da Poética e ac red ita ndo se r- lhe rogên eos , cuja un idad e con tradit ó ria o teatro terá co mo tare-
fiel , de fato, de la se di stancia, ass ume se ntido por es ta d is- fa assu mir. O abade de d ica o essenc ial de se u esforço teóri co
tâ ncia e se e mpe nha e m aprofundá -la. a insc rever, acusa r, aprofunda r a d istinção e ntre e les . Qu ais
são es tas du as instân ci as? Por um lad o, o qu e ele c ha ma de
espet ácul o, o u represent ação, dom ínio daquil o que e fetiva-
A prim eira diferen ça, po r onde a distância se instaura, mente acontece em cen a: "S ão prínc ipes desenhados, pal ácios
di z resp eit o à atitude e m rela çã o aos espe ct ad or es. A Poéti - e m tel ões co lorido s, mort os de mentira ." Há aí a tores , ce ná-
ca , co mo vimos , é (pa ra expressá-lo em termos mod ern os) rio , maquinari a. "Faz-se falar os per sonagen s e m língu a vul-
poéti ca , ao mesm o tempo, da ação e do olhar. Os dois domí- ga ri!" e a li todas as co isas de vem ser se nsíveis" !' . A es ta
nios, d ist intos , proced em de du as necessidades di stintas, mas verte nte se o põe o qu e d ' Aubig nac c ha ma "a hist óri a ve rda-
o fat o do teatro os reún e e os torn a so lidá rios . C om La Prati- de ira, ou qu e se s upõe ve rdadeira" . Regi st ro do qu e aconte-
que du th éãtre , embora não pareça, não é bem isto o qu e ce u fora da representação e, portanto "de ve rda de" - es ta
ocorre . D' Aubignac intitula um capítul o " Dos espect ad ore s verdad e rea l ou supos ta, qu e parti c ipa e xat amente do que
e d o m od o c omo o poeta os d eve c on siderar " . N el e , nós c ha ma mos ficçã o: a co isa representada, o significad o do
d ' Aubignac men ci on a, mas para dela se dem arcar, a possibi- s igno te atral (histó ria, per son agen s, di scurso e ações), e m
Iidade de um a es pécie de teor ia da pos ição es pectadora . sua hete rogen e idad e e m re lação à própria representação, à
concretude cê nica da que les qu e rep rese ntam . Neste campo,
Meu objetivo não é aqui ensinar àqueles que vêem representar uma tragé- "as pessoas [... 1são co ns ide radas pelas ca rac terís ticas de s ua
dia o silêncio que eles devem respeitar, a atenção que devem prestar, o
co nd ição, idad e , sexo, se us discursos são co ns ide rados co mo
comedimento que devem ter quando a julgarem, com que espírito devem
cxnminti-la, o que devem fazer para evitar erros [...] e mil outras coisas que tend o sido pronun ciados , suas ações co mo tend o sid o execu-
talvez pudessem com muua propriedade ser explicadas", tada s" . É ve rda de que d ' Aub igna c acrescenta: "se i que o poeta
é sobera no, qu e ele dispõe da orde m e da econo mia de sua
Es te ens ina me nto seria muito norm at ivo : mas tod a a inici a- peça como lhe ag rada , [...] e q ue ele in vent a as int rigas".
tiva de d ' Aubig nac é, ao mesmo tempo , c rítica e prescritiva . Mas isto não afeta a distinção de que se está tratando, porqu e
O exa me se ria, port ant o, ca bíve l e, co nfo rme D ' A ub ignac "é, co ntudo , verdade qu e tod as es tas co isas de vem se r tão

13. lsto é, e d' Aubignae insiste nisto: aquele que representa sem cantar. I ) . lbid..
lbid. , livro 111. eap. IV, p, IX9. 16 . Quer dizer, em Iranc ês, mesmo se, suposuuncnrc, eles são gregos.
14 . OI' . cit, livro I, cap. VI, p. 34. Grifo meu. 17. lbid.. pp. 34-3) .

44 45
existê ncia dos es pec tado res e a se u prazer, e uma referência
bem orde nadas que pareçam ter acont ecido por si mesm as
sup osta, q ue nós chamaría mos de imag inária, da qu al tod o o
[...] E, apesa r de ele ser o autor, ele deve manej á-la s co m tal
públi co es tá, por ass im d izer, ausent e. A prática ex p ulsa para
habilidade que simplesmente não pareça qu e ele as esc re-
além de si própri a a lógica das ações. Ela a escorraço", sub-
veu"I X. Trat a-se portanto de uma verdade suposta, mas cuja
metend o-se, a partir disto, a algo co m qu e Aristóte les não se
hipótese sustenta a existênci a do teatro. h ~1Vi a p~'e ocup ado : a ação imaginári a, o sis tema de sta s es pé-
Ora , estes dois regi str os diferem radi calmente quanto cie s de idealidades teatr ais, dotadas de vida própria, que trans-
ao olhar. No espetácul o ou na representação , "h á espe ctado- cendem a repr esent ação porque ficti ciamente sem plat éia e,
res'' !", A presença deles ali é muit o ativa. "O poeta, levando
port ant o, e m alguma medid a, pr ivadas (de qu alquer públi co
em co ns ide ração em sua tragédi a o es petác ulo ou a represen- qu e exija q ue lhe proporcionem prazer). A qu arta pared e não
tação, [...] faz tudo o que sua arte e se u es pírito lhe podem vai de mo rar a cair.
suge rir para torn á-Ia ad miráve l para os es pec tado res: po rque
O gesto es pec ífico (e a co ntribuição singular) de La Pra-
ele trabalh a pa ra agrada r a eles". Este primeiro registro é, tique d u tli éãt re co nsiste no fato de traçar, mu ito me tod ica-
portanto , regido pelo imperativo do prazer, porqu e os es pec ta-
ment e, e, é preciso reconh ecer, talent osament e, es ta c livagem
dores con stituem o horizonte da represent ação . Na represen-
no ce rne de todos os element os que compõem o teat ro (luga r,
tação o poeta "procurará todos os meios de co nquistar a estima
temp o, açã o) a fim de tirar as con seqü ênci as propícias à re-
dos espectadores que , naquele mom ento, estão presentes ape- generação da arte. Pedim os licen ça para citar aqui, de forma
nas em seu espírito"?", Na representa ção, os espectadores são um pou co long a, a belíssim a página do capítulo "So bre a
reis , o prazer deles é a regra. No seg undo domínio, onde o mistu ra da repr esent ação co m a verdade da ação teatral", na
poeta "considera em sua tragédia a história verdadeira ou que qu al d ' Aubignac resum e e reitera o trab alho desta dissocia-
ele supõe verdade ira" , ocorre o co ntrário e esta preocup ação
ção qu e e le quer instau rar :
deve passar a um seg undo plano. Aqu i o critério de legitim i-
dade é de natureza compl etamente distinta, é a verossimilhan - Cha mo, pois , de verdade da ação teatral a história do poema dramático,
ça, co nce ito-c have que d' Aubignac esc reve segundo a grafia na medida e m q ue el a é co nsiderada verdadeira, c todas as coisas que aí se
antiga "v ray-sembtance'"; co m um traço de uni ão para nós passa m são e ncara das co mo ten do ve rdadei ramente ou possi velmen te aco nte-
mu ito sugestivo. Desejando ser-lhe fiel, o poeta " faz tudo com o c ido: Mas cha mo de representa ção a reuni ão de tod as as co isas qu e podem
se rvir para representar um poe ma dramáti co c qu e ali dev em estar, co nsi de -
se não houvesse espectadores" e os personagens devem agir
rand o-as em si mesm as c de aco rdo co m sua natureza, com o os atores os
"c omo se ninguém os visse nem ouv isse, fora aqueles que es- cen ógr a fos, os telões pint ad os, os vio linos , os es pec tado res c ou tras co isas
tão em cena atuantes'?' . seme lhantes .
A di st inçã o entre o regime da rep resent ação e o da his- Q ue o Cinna' que aparece no palc o fale co mo um roman o, qu e ele ame
tória se apóia, em fim de co ntas, na presen ça (e fetiva) ou na uma Emília, que ele aco nse lhe a um Augusto que co nse rve o Império; q ue
co nsp ire co ntra e le c que receba seu perdão, isto pertence à verdade da ação
ausê ncia supos ta dos es pec tadores. Ali a prát ica do teatro se
teatral. Que esta Emília pareça tomada de ódio co ntra Augusto e de amor por
ci nde: unificada em Aristóteles, como ntintêsis práxeõs, e la Ci nna , que ela deseje ser vingado e q ue te ma a rea lizaç ão de um tão grande
vai se div idir entre uma prática e fetiva, cê nica , subme tida à
22. CF. L. Althusscr, "S ur le ContrasSocial (Les d écalngcs)", Cahiers pOLIr
18. tu«, pp. 35-36 . Gri Fo meu . l 'unalyse 8, Seu il, 1969, pp, 29 -30 . (Em português : Sobre o Con tra to Soc ial:
19. l bid. , p. 35. 0.1' EFeilos Tctiricos e as lnterp retações Pos síveis do Problema, Lisboa, Inicia-
20. tu«, p. 38. GriFo meu. tivas Ed itoriais, 1976).
" Numa trad ução literal: verdadeira-semelhança ou verdadcira -pa rcce n- *. Cinna, peça de Core ne ille à qual perten cem os persona gen s citados .
ça. (N . da T.) (N . da T. )
21. Ibit/. Gri Fo meu .

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desej o, isto é ainda do âmbito da verdade desta ação . Que Augusto co muniq ue que este texto é um dos que trabalham com empenho par a
a dois p érfidos a idéia que lhe ocorre de abandonar o trono: que um o aconselhe produ zi-Ia . O tratado vo ltará a ela escrupulosame nte, cad a
a co nsc rv ã-la e o outro lhe aco nselhe o co ntrário: isto pertence à verdade da
vez que e xaminar um novo componente do poem a dramáti-
ação. Enfim, tudo o que nesta peça pode se r co nsiderado como uma parte, e
uma part e necess ári a de toda esta ave ntura, deve pertencer à verdade da ação, e co, num a incansável obstina ção" .
é por aí que se examina a ve rossimilhança [ITa)'-selllblallce] de tudo o que se Compreende-se então que d ' Aubignac se ocupe co m tanto
faz num poem a, a conveni ência das palavras, a ligação e ntre as intrigas, e a e mpenho em es truturar a distin ção entre o ator e seu pers o-
adequação dos acontecimentos. Aprova-se tudo o que se acredita ter se passado nage m. Logo em seguida à página que aca ba mos de ler, ele
na verdade. ainda que suposta, e se condena tudo o que se acredita contrário ou
escreve:
pouco adequ ado às ações humanas.
Mas que Floridor ou Heau-Chastcau' façam o personagem de Cinna, que
Assi m Floridor c Bcau-Chastea u.uo qu e sã o em si lII eSIl/OS. não de vem
sejam bons ou maus atores. que estejam be m ou mal vestidos, que baja um
se r co nsiderados senão representantes; e este Hor áci o" e este Cinna que eles
tablado para colocá- los aci ma e separados do p úblico; que ele seja e nfeitado
rep resentam devem ser considerados e m relação ao poema como verdadeiros
co m telões pintados, e com ilusões agradáveis, q ue fazem as vezes de palácios
personagens: porque são eles que se supõe que agem e falam e não aqueles q ue
e muralhas ; que os intervalos entre os atos seja m marcados por dois péssim os
os representam, co rno se Florido r e Beau-Chastcau deixassem de se r p essoas
violões ou por uma excelente m úsica: que um ator suma por trás de uma tape-
reais , e se vissem transform ados nestes homens cuj os nomes e interesses eles
çaria quand o afi rma que vai aos aposentos do rei; que fale co m a própria mu-
carregam"
lher, quand o finge falar a uma rainha, que haj a espec tadores presentes; que
eles perte nçam à COl1e ou il cidade; sejam numerosos ou não; que se conservem
em silêncio ou façam barulho: esteja m em camarotes ou na platéia; que os Todos os elementos invocados são aqui discriminantes :-
gatunos provoquem desordens, ou que sejam reprimidos: todas estas coisas fa- a op osiçã o marcada e ntre personagens e representantes
zcm parte, e, no meu entender, dependem da rcprcscnração-' . (d ' Aubi gnac não se co nte nta de c ha m á- los " ato res " , se m
dúvida de vido ao caráter equívoco do term o qu e record ava-
Este trecho demonstra fartamente a articulaçã o da q~I ,.tl mos ac ima); a inserção dos persona gen s no registr o do "ver-
falamos acima. Ele assinala em particul ar, com grande mu- dadeiro", sob o qu al d ' Aubignac pen sa e des igna o qu e nós
dez, a inscrição dos espectadores apenas no regime da repre- ch amamos de ficçã o; a s upos ição das ações e pala vras dele s;
\ sentação e sua exclu são do ca mpo da " verdade" . Mas o que e, sobret udo, o fato de que os atores, ca racteri zados por "aquilo
nos importa é apontar que devia, portanto, ha ver utilidade em que eles sã o em si mesm os" , devem exa tame nte se despren-
estabelece r esta distinç ão: se d ' Aubig nac teve necessidade de der de seu ser pa ra e ntra r na verdade do rep resent ad o: "como
precisá-Ia com tanto zelo e método, co m exemplos tão claros e se [eles] deix assem de se r pessoas reais e fossem transforma-
tão desen vol vidos, é porque a separação entre a representa- dos nestes homens cujos nomes eles carregam " . Aqui j á se
ção e a fá bula n ão era algo estabelecido nem evidente. Não encontram posic ionadas toda s as peças de um d ispositivo que,
imaginam os que este autor, tão inform ado a respeit o do teat ro, por muit o temp o ainda, dar á o que falar: o da " trans forma-
tão erudi to, se empenhasse tanto em afi rmar est a du alidad e ção" do ator em se u person agem , metam or fose, eclipse s u-
caso ela fosse (co mo hoje nos parece) ev idente e aceita por post o destes se res que tem os bem diante dos o lhos, e qu e nos
todos. É prec iso admitir que a instituição da diferença repre - dá a ver outro s se res, co ns iderados ausent es e, entretanto ,
sentati va é aqu i uma no vidade, ao men os para o teatro" , e oferecid os ao nosso olhar.
Eis-n os bem longe da Poética e de seu s atuantes, igual-
" Atores conte mporâneos de d' Aubignac. (N. da T.) mente atores e ativos : um mundo nasceu , a práti ca passou
23. lbid., livro I, capo VII, pp. 43-44. Grifo meu.
24. Visto que d' Aubignac se apóia no exemplo da pintura,em que a dissocia- 25. Por ex.: livro li , capo111 , p. 83 sq ., capoVI, p. 99 sq., capoVII, p. 11 3 sq.
çãoj á lhe parece legível: "Recorro aqui à comparação com um quadro , do qual " Horácio, peça de Cornei lle. (N. da T.)
resolvi me servir com freqüência neste tratado [...]". Livro I, capoVI, p. 34. 26. lbid. , livro I, capoVII, p. 44. Grifo meu.

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para o re gim e da c isão qu e institui as imagen s. D' Aubign ac ros, e suavizar -lhes os cost umes pelos mais belos e honestos conheci mentos (...]
se refere a ist o ut ilizando e xa tamente os term os da quest ão estes grande s políticos têm o hábito de coroar se u ministério com os prazeres
qu e nos oc upa: " É ce rto qu e o teatro não é nada além de uma p éblicos" .
imagern' ?". E mais: "o teatro não é nada alé m de uma repre-
se ntação, não se deve abs olutamente acreditar que ali não há A gu erra , o co mé rc io, o sabe r não bastam a este s mini stros :
nada do qu e vemos , ma s as próprias coisa s cujas imagens os espetácul os parti cipam de um coroamento da açã o de go-
encontram os' r" . vern o pela outorga de prazeres coletivos. Festas, j og os, espe-
tácul os se vêe m ap resentados com o as " marcas mai s se ns íve is
e mais ge ra is [...] da gra nde za de um Est ado"33. O qu e está1
Ac ontece qu e d ' Aubignac, pre ven ido, abre se u trat ad o em j ogo, nestes "d ive rtime ntos ilustres" , é o Est ad o e s ua :\
com um capítul o "e m qu e se trata da necessid ad e dos es pe - gr and e za . Oferecend o prazeres ao po vo, é o es pe tác ulo de 1
t áculos'?". É co mpree nsíve l qu e dediquem os alg uns mom en- sua gra ndeza qu e o Estado lhe oferece, e não só a ele, mas a :
tos de nossa atenção a e le. si mesm o. Os argument os são múlti plos: em tempo de pa z,
A tese defendida neste ca pítulo se basei a numa resp osta em pr imei ro lugar, os es pe tác ulos ates tam que o Es tado d is-
muito abrupta à qu est ão : para quem os espetáculos são ne- põe de inumeráveis ben s, de lu xo, qu e e le está apto a bancar
cessários? O abade responde : para os Príncipes, para os go- a despesa improdutiva, para a qual ele sa be encontrar " mui- •
" vcmantcs, para "todos este s incomparáv eis e famosos gêni os tos artífi ce s hábeis", mostrando com ist o que nada lhe falta e ~ .... '

que o céu escolh e de tempos em tempos para o estabeleci- qu e e le pode arcar generosamente com a os tentação . Em tem- .
mento d o Estado ou a co nd ução dos povos'?". A nec essid ade po de gue rra, é um mod o de pro var aos inimi go s que exi stem
dos es pe tác ulos é, port ant o, co locada, de sa ída, c om o neces- " teso uro s inesg ot áveis e homens so bra ndo", qu e a tranqüili-
sidade pol ítica, ao men os se co mpree ndemos por es tas pal a- dad e pública não é perturbad a pelas ca mpa nhas passad as o u
vras (o qu e é d iscutível ): necessidade de Est ad o. O qu e nos futur as, qu e se sabe rir, j ogar e "q ue a a leg ria públ ica não é
a fas ta m ais um pouco da Poética: em Aristóteles , se a dim en- minimam ent e a lterada ">' pe las hostil idad es em c urso . M as
são pol ítica do teatro não é ignorada" , co ntudo el a tampou co os es pe tác ulos não se j us tifica m ape nas pela exi bição "de um
se mani festa no tex to de forma direta . Su a nece ssidade, com o espl endor vaz io e inútil " . Eles também têm utilidade, direta
vimos, se inscreve na natureza dos homens, em s ua co nstitui- - par a o Estado, claro. Com o espet ácul os da guerra, e m es -
ção físi ca, mais que explicitamente e m sua organização co- pe cial, qu e sã o muito co muns. D' Aubign ac observ a que o
munitári a. Em d ' Aubi gnac a situação é totalmente diferente. med o é freqüentem ente rac ional e que a corag em ped e d-gr
O raciocíni o va i se torn and o progressiv amente mai s comple- espírito humano "o que talvez a razão nã o pud esse conse~l
xo . Primei ro e le a firma que os go ve rna ntes (ao men os os ma is guir" . Al gun s med rosos pod eriam ter o mau go st o de perce-
poderosos) não se co nte nta m co m torn ar se us po vos ber racionalmente qu e na g ue rra e les têm tudo a pe rde r. Ora,
os espetác ulos "acostuma m pou co a pou co os hom en s a ma-
vitoriosos sobre os inimigo s pela força das armas, enri quecê -los com todas as nej ar as a rmas, tornam -lh es fam iliares os instrumen tos da
ma ravilhas da nature za e da arte por meio do com ércio co m os países estrangei- mo rte e lhes inspiram insen s ivelm ent e a firm eza de coração
contra tod os os tip os de per igos" . Com e les o medroso pode
27. lbid., livro 11 , cap, 111 , p, 83 . adquirir " um desejo qualquer de vence r que o anima, entu sias-
28. tu«, livro 11, capo VI, p. 100 . Grifo meu .
29. lbid., livro I, cap . I, p. 5 sq,
32. OI' . cit., ihid.
30 . lb id., p, 5.
33. lbid. , p. 6.
3 1. Cf. J. Taminiaux, 0I' . cit., pp , 33-59.
34. lbid.. ido

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51
ma e tran sp ort a pa ra a lém de suas fraq uez as na tur ai s" , e le voca re pu gn ân ci a: "são parad oxos par a e les, qu e tornam a
pod e e nco ntra r no es pe tácu lo um a es pécie de exc itaç ão co m- fil osofi a s us pei ta a se us o lhos e mesm o ridícul a" . Para se
bativa, que lhe faz fa lta, por me io da "narrativa brilhante das precaver contra es te e fei to , é prec iso utilizar me ios mai s bem
vi rtudes her ó icas" q ue lhe most ra rão a lg uns g uerreiros len- adap tados a es tes es píritos s im plórios. " Pa ra e les é necessá-
d ários e por meio d o q ue lhe apa rece rá a partir da í eomo ria um a instru ção bem ma is grosse ira" . É aqui qu e o teat ro
" nobre desejo de os imitar" :". Note mos aq ui a irr upção notá- vai most ra r sua ca pacidade pr inc ipa l, po rq ue "a razão não os
vel de um a rel ação qu e tính am os procurad o em vão na Poé- pod e ve nce r a não se r pe los me ios qu e incidem sobre os seu-
tica , a rel ação qu e torn a possí vel um a imitação d o her ói por tidos" . Es ta é a v i rt~de do t.e at ro :. ap resen tar a moral não nã/
um espectador e propi c ia os dese nvo lvimen tos pos te riores rou page m cs pcc ulativa da filosofia, mas sob uma for ma qu~
da rel ação mim ética, não mais no interi o r da narrati va , mas incide sobre os sentidos. O teat ro es tá invest ido de sta ap ti-
e ntre a platéia e o palco. dão par a torn ar se ns íve is ve rda des abs tra tas o u ide ai s. E le se
Aproxima mo -nos po is, aq ui , mais es peeificame nte, d as apossa ag ora da aprese ntação se nsíve l das idéias - a ntec i-
obras de teatr o. Porq ue e las, a lém d as d iversas util idad es fes- pa nd o rigorosa me nte a defini ção pós- kanti an a da a rte. "Ta is
tivas qu e co mpartil ham com outros espetác ulos "são não ape - co mo são as bel as representações de teat ro pod em o s cham á-
nas úteis mas abso lu ta mente necessárias" pa ra a ins tr ução las com justiça de Escola do Povo" J(,.
do pov o : e las podem dar a e le, inculto e desprovido de ed u- De no vo a Esco la. No vam ente a a pre ndizage m . M as a
~ação mo ral , "alg um ve rniz das vir tudes". Es te ponto é pre- aq uis ição do saber es tá , co mo ve mos , inscrita num di sp o si -
cioso pa ra nós . D ' A ubignac observa , efetiva me nte, q ue tivo comp letame nte difere nte d aqu el e qu e Ar is tó te les pro-
"aq ue les qu e perten cem às últimas posições e às mai s ba ixas p u n ha . A a p rend izage m é aq u i um s u bs ti tu to e ficaz d a
co ndições de um Est ad o tê m tão po uco co nta to com os be los ina ptidão teó ric a. Lon ge de co locar o es pec tado r como teó ri-
co nhecime ntos q ue as máximas mais ge rais da moral lhes co , e le o ca racteriza daí po r dia nte co mo incapaz de teo ria, I
I
são absol~tamente inúteis." Inú tei s porque o ace sso ~s máxfl e só co nseg ui ndo re ceb er as idéi as po r mei o dos se ntidos . !
ma s gerais da mora l requ er contato com os eo nhec llllen tos -j Es ta mos mu ito próxi mos da estética : o se nsíve l ex ige se u
As máx im as da moral são des providas de efic ácia dire ta , q uinh ão e a be leza o sa tisfaz ("as be las re prese ntações de
autôn oma, sua ação é co nd icio nada pel a c ultura den tro da teatr o" ), M as é para remed iar a inca pac idade de pen sar. A
qu al e las são recebi das. Não basta s ubmeter o po vo a prescr i- necessid ade de q ue o te at ro se re veste é , e m bo ra es tét ica ,
ções ge rais , ele não poder á faze r nada co m elas, po rqu e não um a necessida de de gove rno : o po vo necessit a da moral e ,
sab e o q ue fazer. A mora l ex ige um ou tro veíc ulo. D ' Aubi gn ac co mo não a pode adq uir ir por me io do pe nsa me nto rac ion al ,
invoca a filosofia : e la é abstra ta de mais para se r com pree n- é a es tét ica q ue deve se e ncarregar de lhe da r a en te nder
d ida pel o povo. S uas "sublimes especulações" são incapazes e stas ve rdades às qua is ele é s urdo. Porque ela os fa z sentir
de pen et rar as virtudes s im ples da renúnci a , do d espre zo d as estas verdades: "e a mem óri a lhes d á I içõcs co ntí nuas, qu e
rec om pe nsas, do desdé m pelo inte resse mat e ria l. É no tório se imprimem ai nda ma is forteme nte no es p íri to de les por-
qu e os poderosos co mpree ndem tud o isto se m esforço. O po vo q ue se ligam a objetos sc nsfve is":".
não: "todas es tas ve rdades da sabedo ria têm cores vivas de- Em s uma : D ' A ubig nac põe e m fu nc io na me nto, co mo
l- ma is pa ra a sabedoria dos o lhos deles" . E ainda pior : a for- pode mos ve r, uma de termi nação estética, ou pré-estética, do
ma abs trata e es pec ulativa pel a q ual a filoso fia e nunc ia se us te atro , carac terizada, a van t la lettre , como ap rese ntação sen-
pen sam ent os vigor osos pod e ter um efe ito de refugo , qu e pro-
36. Tudo isto. ibid.• p. 8.
35 . tu«, p. 7. 37. tu«, p. 9.

52 53
Y s ível da idéia". E esta determinação funciona sob a autorida- A história que o teatro representa é feita do mesmo tecido
de de um a prescrição política , de um imperativo de governo. abstrato, especulativo, da moral ou da filosofia que ele deve
É tentador perguntar-se que elo une esta nova característica, tornar visíveis : a história de um para-além da cena, de uma
relativamente surpreendente e a cisão representativa, a sepa- ideal idade cuja prática é a manifestação figurada.
ração entre representante e representado, que vimos em fun- Mas, em compensação, esta racionalidade estruturante,
cionamento no resto da obra . Sem esperar do abade UI~ e a ideal idade que a fundamenta, estão contaminadas pela
absoluto rigor metafísico, e interrogando-o apenas como tes- fábula . Poderíamos dizer que, em alguma medida, aqui a
temunha de uma mudança de época, podemos suspeitar que idealidade se torna lima história . Porque se as máximas da
uma certa articulação - mais latente que formulada - liga moral são tornadas sensíveis pelo teatro é unicamente na
estes dois planos de reflexão. Realmente, a representação medida em que elas estão engajadas na " histó ria verdadei-
remete a uma verdade da história que assume o papel do que ra", em sua estruturação narrativa. É esta narratividade do
nós chamaríamos de ficção . Ora, esta verdade se vê escorra- representado que funda a "sensibilidade" do representante.
çada para além do âmbito da prática efetiva da cena . A "his- Nenhuma especulação terá um correspondente em cena, se
tória verdadeira" é representada, significada por operações não estiver articulada como função narrativa . D ' Aubignac é
concretas, que lhe são heterogêneas e que fazem do teatro categórico a este respeito : no teatro, a palavra não tem valor
lima imagem , índice visível de coisas que não se vêem . As- a não ser como ato". Não cabe fazer nenhuma pregação. É
sim , a verdade da história, a coisa contada, apresenta este fácil compreender: se o teatro se contentasse com enunciar
parentesco de natureza com "as máximas da moral ": ela tarn- as verdades em sua intelectual idade específica, discursiva,
bém não incide sobre os sentidos . História e moral especu a- ele não as apresentaria de forma mais sensível do que um
iVa estão ligadas por esta comunidade de remissão : nem uma sermão feito de um púlpito. O sensível do teatro é a exposi-
nem outra podem ser vistas por si mesmas, sem uma media- ção da ação!". Moral e filosofia estão assim apanhadas na
\; - imag ética. A partitura representativa, que cinde a antiga "tcssitura":" de uma história, que as tece e desenha sua visi-
unidade do teatro nestas duas instâncias dissociadas de for- bi Iidade. As verdades do teatro (ou teatrais) são narrati vas.É
ma rígida (a cena e a fábula), é a condição de seu estatuto claro que não vamos tornar d' Aubignac mais moderno do
propriamente estético e, portanto, das virtudes políticas que que ele na verdade é : no fundo , sua concepção continua mar-
dele dependem . Duas conseqüências resultam desta relação. cada por um racionalismo muito realista. Mas a determina-
Em primeiro lugar, compreende-se por aí que a "história ção estética e a cisão representativa que a ele estão ligadas,
verdadeira" é uma idealidade : seu sistema é comandado por engajam estruturalmente sua verdade na aventura de uma
normas racionais, ao mesmo tempo inteligíveis e mora is, se- contaminação pela narrativa . A verdade ser á, então , condi-
gundo o modelo cláss ico. Ela é da mesma natureza que a es- cion ada a uma imagem. Não est amos mais no momento em
peculação abstrata . O ator, por exemplo , é, doravantc, o que uma intelectual idade espectadora operava sobre uma prá-
representante concreto de um personagem que participa de
uma coerência narrativa ideal e regida pela razão. A verossi-
39. OI'. cit. , livro IV, capo 11 c seguintes, p. 282 ..1''1.
milhança é o nome desta racionalidade ordenadora. É veros- 40. " É na imaginação do espectador que estão as ações que o poeta, com
símil o que se inscreve na estrutura ideal-racional da narrativa. habil idade, os faz conceber como visívei s, enquanto que não há nada de sensí-
vel além do discurso", ibid., p. 283. Devo 11 dissertação de F. Prodrornides,
~. 38. Já que esta é a fórmul a pela qual se costuma resumir a definição hegc- cilada em seguida, a observação desta frase.
liana de arte. Cf. Cours d 'Esthétique. IIt" cit., pp. 47-60. (Em português : 111'. 41. Cf. F. Prodromidcs.l?é.flexilll/ et representation: La Pratique du th éâtre
cit., p. 86: "Já foi dito que o conteúdo da arte é a Idéia e que sua Forma é a de d 'Aubign:«:et les enjeux de la mimésis, dissertação de D.E .A., sob a orien-
configuração sensível imag ética") . ração de Ch. Biet, Paris X-Nantene , 1996, p. 19 sq.

54 55
·1 ... -
I tica para depreend er form as cognitivas e usufruir teatralment e É O séc ulo XVIII que, inaugurando a era da estét ica, rece-
desta e mergê ncia: agora é a inca paci dade de co nhecer que berá de seus precursores esta nova dualidade e nela projetará
faz a teat ralidade do teatro - e a es t ética vem rem edi ar es ta seu dinami smo. Tomemos como testemunhas três ob ras curtas,
Iinaptidão. Mas, por um a e loqüe nte reviravolt a das co isas, que, juntas, formam uma espécie de concerto: Le Com édien, deJO ..
{ ela fa~ o v~ríd ic~ ~e~;iz~r pm:a ~.es,tatuto da ficç ão . Em bre- TR6mond de Sainte -Albin e", L'art du th éãtre, de François Ric-
1 ve as idealid ades sei ao unagmai raso I cobonr", e Le Paradoxe du coni édie n, de Dideror" . Textos
"'true, co m alguns anos de interval o, têm co mo tem a o ator e
*** tentam pen sá-lo em si mesmo, separado dos personagens ao s
quai s ele dá vida, o que é novo: Sainte-Albine e Riccoboni
Não afi rmo, ev ide nteme nte, que d ' Aubignac seja o in- insistem nesta extrema novidade" . A este respeit o, o mais s ig-
ventor desta co nfiguração . Exce lente teórico do teatr o (da nificativo é, ev ide ntemente o livro de Riccoboni : te xto de ator
prática do teatro), e le trab alha para dar forma co ncei tua l ao que reivindica o ponto de vista do ator - entramos, claramen-
qu e atravessa o se u tempo. Com o, por exe mplo , a d issocia- te, em outra época . O livro é dirigido, em forma de carta, a
ção entre o ator e o papel: Haml et não está longe. uma Senh ora ***, que meteu na cabeça a idéia de represent ar:
"O gosto que a senh ora tem pela comédia tornou -se uma pai-
Não é mon stru oso qu e es te ato r aq ui,
xão, visto que , não se contentando com o pra zer de a ver
Somente por urna ficç ão, num so nho de paixão
Possa for ça r inteiramente sua alma com sua id éia
repre sentar nos Teatro s públicos, sua maior sati sfa ção é re-;
A pont o de ralhar pa ra si um rosto pálid o resefltâ.la a senhora mesma. A moda parece autori zar a su;'f'
Olhos cho rosos, um as pec to desorie ntado
Um a voz a lquebrada e um o rga nismo intei ro adaptado
Às fo rmas de sua idé ia ? E tud o po r nada?
Por Hécuba ?
d inclina ção. Paris está coalhada de teatros particul ares e todoj
mundo qu er ser a tor': " , A obra se apresenta assim co mo um
manu al, pr ático e c ircunstanciado para a aprend izage m da
atuação. Este ponto de vista inovador não deixa de ter co nse-
O qu e é H écu ba para e le e o que é e le para H écu ba
Para chorar po r e ln?,l qüênc ias. Porque o texto se intitul a L'Ar/ du th éãtre - e o
título vale com o reivindi cação. Por ca usa dele o autor se rá
42 . HOlllle/,II, 2. Tradu zo qu ase qu e literal ment e, se m me impo rtar co m os censurado pelo I ournal de Tr évoux: a expressão "arte do tea-
fals os a m igos . É preciso, no e nta nto , observar qu e, no trech o cit ad o, o mor não tro" era usada para se refer ir à atividade de escrita e co mposi-
pronuncia pal avra s atribuídas a H écub a (po rtanto . não desempenha, a rigo r, o
ção de peças , segundo o uso atestado por d' Aubignac, Corneille
papel da rainh a, no sentid o modern o do termo ), mas sim ples men te co nta, na
terc e ira pessoa, a infelicid ade qu e se abate so bre el a. (No or igina l e m ing lês : ls
e todos os autores da época. Ora , Riccoboni reage : "Gos to de
i / //o l//IOIIJII"I/OUS that this pluyer he re. / 8uI in afiction. in ti dream ofpassi- me servir dos term os apropriados. Se eu tivesse apresentado,
0//, / Couldforcc his .H! u/.H! to his wltole concei t / T/III/ ./ i"Ol// her worklng ali em uma obra , as regras da co mpos ição teatral, eu a teria inti-
his visage \1'0//// 'd, / Tears in his eyes. distraction in 's aspect, / A brok en tulado Poética do Teat ro" , responde ele. A arte do teat ro deve,
voice, uud his whnle jun ction suiting / Wi/h.fill"llls /(I his conce it? And allfor portanto, ser distingu ida de sua poética. A partir daí, se rá pre·
IIO/h i // }; ! / FI/r Hecuba ! / WI/(I/ :~ Hecuba lo him OI' he /(I Hecuba! In Tlte
ciso d izer: em d ' Aubignac os do is objetos se co n fu n.9jE..~n :
COI/Il'Iele I ViI/ "ks 11 ' wiltiam Shak espeare . Londo n: Abbey Li br ary, 197 8, p.
860. E m português, cf. a tradução de Anna A mé lia Carneiro de Mend onça. Em
Haml et: Macb eth, Rio de Jane iro : Nova Front ei ra, 1995 , p. 84 : " Não é mon s- 43 . Em Didero t et le th éâtre li, L'Acteur. op. cit., pp . 173- 30 8.
tru os o qu e esse ator cons iga, ! E m fantasia , e m so nho de paixão.' Fo rça r su 'alma 44 . Pa ris , 1750 , Slat kine Rc prints, Ge n êvc , 1971 .
assim a obedecê- lo ! A po nto de se u rosto ficar p álido. ? Ter lágrimas nos olhos, 4 5. Q ue c itarei na edição d' Ala in M énil, c f. aci ma, n. 43.
o ar de sfeit o ! A voz cortada e tod o o dcscmpcnh o / E as ex pressões de acordo 46 . Sa inte-A lbine, OI'. ci t., pp. 175- 176 . Riccobo ni, op. cit., p . 2-3 e a nexo
com o pa pel ? ! E tud o isso por nada ! Só por Hécu ba ! ! Q ue lhe inter essa Hécu- (" Le tlre de M . Ricco bo ni fils 11 M: " au s uje t de L' ArI du thé âtre") , p. 20 .
ba ? E e le a el a ! Pa ra qu e c ho re ass im?" N. da T.) 47 . 0 /,. cit ., pp , 1-2 . Grifo me u,

56 57
M utação pro fund a, irre vers ível , não ape nas da determinação dien, qu e tam bém exam ina o ator em sua s ing ula rida de (e
da arte mas do próp rio se ntido da palavra teatro: "T rate i da ta lve z sej a o primei ro na França a fazê-lo, porque preced e
arte de rep resen tar no palco. É a arte especí fic a do teatro":", O e m três a nos L'Art du th éãt rev" , mas é um livro inte iram ente
tea tro não é mais a arte de escrever co m vistas à represen ta- esc rito de 11m ponto de vista do espectado r. Isto se e videncia
ção, mas a arte de represe ntar o que foi escrito. Deslocamen to o tempo todo. Por exemplo, Sa inte- Al bine gos ta de usar o
de capita l imp ortânc ia, que traz e m si, co m a a utonom ia do " nós" não a pe nas co mo plu ral de mod ést ia do a utor mas para
pe nsa men to sob re o jogo do ator, toda a eme rgê ncia futur a da apo ntar, no plural , a co letividade dos espectadores , "Nós ve-
e nce nação. A noção se tran sport a de um a escri ta o rientada mos es tas peças [italia nas] co m praz er, porq ue a ve rda de da
para a ce na, mas qu e excl ui a ce na do do m ínio próprio de sua represent aç ão nos compensa pelo qu e nós pe rde mos no to-
artc' ", a té o espaço s ing ular de um a ar te situada entre a escrita ca nte à e legâ ncia do di álogo. [...mas] nós es tamos co nde na-
e a cena, por sua capacidade de exibir no palco o qlle fo i dos a so me nte usu fruir no Th éâtre Fr anç a is' de um prazer
antes escrito. Esta ca pac idade es pecífica é, des de então , colo- imp erfeito, por c ulpa de a lguns atores" etc." O qu e lev a lo-
cada (por nossos três autores) co mo c riativa, artís tica , e la co n- g ica me nte o a utor a se diri gir aos ato res por mei o de um
fere ao ator o direito ao títul o de artista. Riccob oni , desde as pron ome de tratam ento igu alm ente co letivo ": " A atu ação dos
pri meiras p áginas, proclama es te novo pont o de vista; e le co n- senhores é totalment e ve rda de ira? É natural ? É elegant e e
traria a tradi çã o ao com ~çar se u tratado pelo gesto: " ist o tal- var iada? Nós os ad m iramo s; mas aind a lhes falta a lgo pa ra
vez pareça estranho~as se atentare m par a o fato de q ue, ' nos agradarem ">'. Usos inimagin ãvcis, evi de nte me nte, so b a
,ub indo à ce na , o ator se apr esent a a ntes de fala r, os se nho - pena de Ric cob oni . A partir deste posto de o bservação, Sain-

il
res co nv irão que a postura é a primeira co isa a respeito da te-Albino in vectiva o palc o, adm oesta-o :
qu al é preciso instrui r-se'?", Mas es ta co ns tatação é ino vadO:'
N ôs achariumos ridículo q ue para atua r [...1a pessoa se aprese ntasse no
ra: es pe ramos muito tempo para fazê-Ia. El a vale co mo s ina l palc o se m preenc he r as co nd içõe s básicas [...] N ôs esperamos da tragédi a aba-
de um a mudança de pe nsa me nto. A arte do teat ro, a arte da los vio lentos [...] Espera -se [... q ue o ator ] seja s incero, [...] esp era-se que ele
aprese ntação cê nica , e ng loba, do rava nte, o tex to co mo um (e °
seja h ábil [...1. qu« nós esperariamos de Burrhus" lIIíx esperamos do ala r.
Nos exigimos que ele reci te os seis primei ros versos co m modesta co nte nção
um so me nte) de seu s co mpo ne ntes inte rnos, e não o dei xa
[...] Nós desejamos sobretudo que e le di mi nua, pela sua vidade de sua voz , a
mais co ma ndar sozinho todo o ca m po de se u exercíc io. O
aspereza de suas fa las. [...] EII declaro aos atores q ue não bas ta que saibam
q ue será enfa tizado também pela va lo rização dos "jogos de
teatro" e da pantom ima" , q ue e nco ntraremos e m Didero t.
Livro de ator qu e trata do ator, L'A rt du th éãtre di fere
seus papéis [etc .]5; .
-
c larame nte do te xto de Rém ond de Sa nte-Alb ine , Le Com é-
52 . O que lhe vale este crédi to um pou co se m nuan ce de F. Rcg nau lt: "É
um fato, 110 cn tanro, que a a rte do ato r co nce bida como arte au tô no ma só co me-
ça na França co m o tratado Le Com édien" e m, Petite éthique pourle comédien,
48 . OI'. cit., a nexo , pp, 4-5 .
Les Co nférenccs du Perroqu et , n" 34 , março 1992. p. 16 .
49 . É, co mo vimos, o ges to da Poética. q ue afi rma ao mesm o tem po que
*. Era usu al refer ir-se à Com édie Françaisc co mo Th éâtre Frauçais o u Le
"para compo r hist órias [...] é preciso ter a ce na integ ralm en te diante dos o lhos -
França is, (N . da T)
po is, assi m , aq uele qu e vê co mo se assistisse às pr ópri as ações co nseguirá com
53. OI'. cit., pp. 229 e 230. G rifo meu .
eficácia to tal descobrir o q ue é adeq uado (OI'. cit ., 14 55 a 22- 26 ), e q ue o
**. No original foi utili zado o pron om e vous , pron ome de seg un da pessoa
"espe táculo [lÍl'xix] q ue exe rce a maior sed ução, é totalm ent e estranh o à arte
do plu ral que correspo ndc a um a forma corr e nte de trata me nto. (N. da T )
[ateklulOtiÍtou ] e nad a tem a ve r com a po ética, porqu e a tragédi a rea liza sua
54 . tu«, p, 295 . G rifo meu.
fina lida de mesm o se m concursos e se m alares" . (Ibid., 1450 b 16-1 8).
*** Burrh us: personage m da tragédi a Britannicus, de Racin e . (N. da T )
50 . OI'. cit., p. 4.
55. lbid. , pp. 220, 248 -249 , 250. Grifo meu .
51 . OI'. cit., pp . 82-83 .

58 59
o tom imp eri oso, sobe rano, é o de um mestre qu e co mpree n- edição posterior e e m resp osta à crítica por ter ignorad o a obra
de , co m a ltivez, qu e se c ultive o praze r. Ricc ob oni se preo- de seu precursor imedi ato.
cupa também co m o praze r do esp ect ad or , mas , qu ando e le Aí es tão, port ant o, ator e es pec tado r, prep arando o te r-
diz nós , é e m posição e xat amente inv er sa: "Se o tempo qu~ - . ren o, frent e a frent e, ca da um negando ao o utro a ca pac ida de
lev~m os é curto .de ma is, el e não .cau sa impre ~são alguma . de pen sar a rela ção teatral e de elab or ar a teoria co rres po n-
Se e lon go demais, ral enta o se ntime nto que tínhamos des- dente . Desap areceram a co mple mentarida de, a união de pon -
peitad o no espectad or e que devemos con servar com o uma tos de vist a que compunham o teatro . Dua s leg itimid ades
preci osid ad e":". É, portanto, incontestável qu e se trata de dois dife rent es vão, daí por di ante , se afront ar. O qu e as leva a
pont os de vista simé tricos , ligad os às du as posiçõe s qu e se que se preocupem co m a verdade. Saint-Albine a define co m
vêe m frente a frente no teatro. Sainte-Albin e e Riccob oni se um rigor qu e surpree nde o leitor modern o: " A perfeição qu e
inscre vem , tant o um q uanto o outro, no espaço da cisão daí ma is desej amos ve r na represe ntação é aq uilo qu e no teatro é
por dian te irre versi velm ente abe rta entre a represe ntação e a c ha mado de verdade. C ompreendem os por esta pal a vr a o
co isa represent ada. Ambos co mentam, lon gam ent e, a disti n- conjunto das aparências que podem servir para enganar os
ção e ntre o ator e o qu e ele representa. Mas um o faz a pa rt i~ espectadores ?", Evitem os sauda r aqui , apressada me nte, um a
da platéia e o outro a partir do palc o. Ricc oboni escre ve : "É l tirada es p irituosa: o di agn óstico ser ia, se m dúvid a, a nac rô-
preciso co nceber a cada instante a rela ção que pode e xis ti. rJ nico, e Sainte-Albine não é nenhum me stre do hum or. Ma s a
entre o qu e nós dizemos e o ca ráter de nosso papel ":", enquanto fórmul a é extremamente bem con struíd a: a verd ad e se torna
que Sainte- Albine decl a~'a : " a prin cip al preocupaçã o do ator( o result ad o das di ver sas ap arên cias e m jogo, age nc iadas co m
[...] dev e ser de nos deix ar perceb er ape nas o seu pers o ~ vistas à ilusão - a for ça do ve rídico pod e ser reconh ec.!B
gern '?", Sa inte-A lbine deseja aufer ir uma espéc ie de legitimida- pela pe rfeiçã o da mentira. Riccob oni afi rma a mesm a co isa,
de de su a posição de espec tado r: " Não é d ifícil pro var qu e só qu e vê o qu e ocorre a par tir do palco:
[est as] c ríticas tê m no mínim o tant a autorida de qu ant o as
das pessoas qu e professam es tas artes . As decisões destas Quando um ator expressa os sentimentos de seu papel com a força ncccs-
últimas podem ser suspeitas porque podem se r interessa- s ária, o espectador vê nele a niais perf eita imagem da verdade. (...] para atuar
bem, deve -se levara ilus ão al é est e ponto. Espantados por uma imitação tão
das "?', Isto é: ao querer pen sar a açã o, os atores se torn ariam
perfeita do verdadeiro. alguns a tomaram pela própria verdade e acreditaram
suspeitos. Não cabe a e les conhecer isto . Ri cc ob oni d iag- que o atorera tomado pelo sentimento que representava. [...] Nunca me rendi a
nosti ca, so b es te ponto de vista , um a incapacidad e pr inci- esta opinião, corre nteme nte ace ita , porque me parece provado que, se lemos a
pai: " Sa be-se tud o isto na pl atéia , e é tud o o que é prec iso infelicidade de sentir real mente o que devem os expressar, ficamos sem possibi-
saber par a ve r o es petác ulo [...] ; mas os mei os de a tingi r lidade de rcprcscnni-lo'".
es tas di fe rentes pe rfe ições não es tão de forma alguma ex -
Aq ui, pode-se perceb er, a diferen ça representati va se apro-
pli cados e m Le Coni édien . Não se pod e apre ndê- los a não
funda . Re presen tan te e rep resen tad o ad q uirem d uas natlll:e-1
se r no pa lco "!" , É prec iso faze r- lhe j us tiça: o ataq ue não
zas qu e se afas tam um a da outra. Q uere r reduzir a distânci ~
ve m no cor po de se u te xto , mas ape nas e m apê ndice a um a
torn a a re present ação im poss ível. É nesta di s tân cia qu e se
ins ta la o j ogo do a tor, é dela qu e ele tira sua for ça. Já e m
56. 0 " . ci t., pp. 90-9 1. Ar ist ótel es e , mai s a inda, e m d ' Aub ign ac, a verd ad e nua
57. o". cit., p. 3 1. Grifo meu, perm an eci a acanton ad a às port as do teatr o: nele só ope ra va
5S. 0" . cit., p, 250. Grifo meu,
59. 0 " . cit., p. 176. Grifo meu. 6 1. 0". cit .• p. 230. Grifo meu.
60 . 0" . cit., apêndice, pp, 19-20. 6'2. ° 11. cit.• pp. 36-37. Grifo meu.

60 61
a vero ssimilhança [a vrai-semblance i, a seme lhança do ver- posição. É uma aned ota que eu não conhecia e que acabei de
dadeiro . Mas aqui o jogo muda: a verdade não es tá mai s de ouvir't'" . Assim explicado, o co nfronto que anima o Parado-
fora . O teatro não pode mais ign orá-Ia , deix á-Ia para além xo não pode mais se r interpretado apen as como a op osição
de se us limites. A verda de vo lta à tona: mas é com o ilusão, entre du as teses a propósito do jogo do ator, mas com o duas
miragem necessária, mentira obri gatóri a. Para atuar bem, legitimidades teatrais que não chegam a um aco rdo : a da
deve-se levar a ilusão a este ponto - e, aliás , a opinião , ilu- ce na, defend ida enca rniçadame nte por "o prim ei ro" , e a do
dida por es te verdade iro fact ício, é correntemente aceita. É o olhar sobre a cena, o lhar do espec tador enganado, apanha-
verdadeiro, o verdadeiro representativo, que muda de regi- do na ilusão da verdade, que "o seg undo" defende. Sensibili-
me e se inscreve necessariamente no ato teatral co mo efeito dad e e razão lutam co mo lutarão, da í por dian te, a ce na e a
de fi cç ão. Sainte -Albine resum e isto de forma bastante crua: platéia: esta platéia onde prev ale ce "a opini ão correntemen-
na língua sing ular da co isa represent ada, a verda de vale com o te aceita", qu e R iccob oni descrevi a e des de nha va. Ra zão co n-
nome própri o da mentira. Su a fórmula vigorosa , em fim de tra opinião : um vestí gio, entre outros, de um certo platonismo
co ntas , é apenas a expr essão ten sa, ingênu a, de uma regra - no mínimo, de um ce rto soc ratismo - de Diderot.
que, de sde então, se impõe a tod os: a verdade re-t orn a ao Mas avancem os. É ev ide nte que o Paradoxo (o parado xo)
teat ro, COII/O necessidade da ilus ão. joga co m a di visão entre o representante e o repr esentado, que
ele endurece e rad ica liza . Porque aq ui a se paração (entre o
ator eo personagem ) releva de uma diferença de ser. "S e ele é
Q ue es ta es trutura disp onha, a partir de en tão , do pró- ele quando represe nta, co mo deixará de se r ele?" '"' O ator nã~
pr io es paço em que o teatro vai se pôr em j ogo é o que nós pode ser o qu e ele repre senta : ele só repre senta o que represen-
pod em os aval iar graças a um testemunho do mai s alto va lor, ta na medid a em que ele não é aquilo que represent a. A rigor,
porqu e Diderot va i recolh er, na perturbadora dr amaturgia de poderíam os falar de desdobramento: "Nesse momento, [ela] é
seu Paradoxo, as co ntribuições de se us dois pred ecessor es e dupl a, a pequ en a Cl airon e a grande Agripin a"?" , mas ist o
s ua opos ição termo a termo'", Os argumentos deles alime n-
tarã o, de um lado e de outro, a competição que sustenta o nom es qu e Did e rot atribui aos dois prota go nistas). (Em portug uês ut iliza rem os
di ál ogo , manifestand o aí a co nco rrê nc ia es tabelec ida entre a tradu ção de J . Guinsburg , publ icada e m Didero t Ob ras 11: Est ética, Po ética
os pont os de vista do olhar e do j ogo do ator. Lembramo-n os e COI/IIIX. São Paul o: Pe rspec tiva , 2000. Pa ra o trech o citado , c f. p. 71 ).
65. OI'. cit., p. 120. "O segun do" , para não ficar atrás , traça , e m pouc as pala-
qu e "o hom em do par ad oxo" men cion a es ta herança, co m
VI"aS , um retrato ainda mais feroz de Sa intc-Albine : " Ho menzinho arro gante, de-
um ar indi ferente: " De resto, a questã o que apro funde i foi cidido, seco e duro , e m quem seria preciso reconhecer uma honesta dose de mérito,
out rora enc etada entre um literato med íocre, Rém ond de Sain- se ele tivesse em mérito um q uarto do que a generosa natu reza lhe concedeu e m
te-Alb ine , e um gra nde co med iante, Riccob oni . O liter ato arrog ância" (Ibid em ). Pobre Sainte-Albine, que tam bém não en controu clemên -
ad vogava a causa da se nsibilidade?' , o ato r defendia a minh a cia e m Less ing : " Mas o que e ncon tra mos de tudo isso na obra de nosso a utor?
Nada , ou , no m áximo, reflexões muito gera is e muito vagas , q ue só oferecem
palavras vaz ias de se ntido e m lugar de idéias, e um ce rto nilo sei quê no luga rde
63 . Sobre a relação e nlre estes três textos, cf. P.Tort. L'Origine du Pa rado- de finições." Ci t. por J. J. Engel. ldées sur le geste et l 'uction théãtrale, ( 1785),
xe S Ul' le co m éd icn. La pa nition intérieure. 197 6, ree d ição Vrin 19 80. P. Tort a prese ntação de Manine de Rougemoru, Slatk ine Rcprint s, Geneve, 1979, p. 8.
utili za u lermo " pa rt itura" no se ntido musical. Cf, ta mbé m P. Frantz, " Du spcc- A crítica ret oma a de Riccoboni, op. cit., apê ndice , pp. 19-21 .
iatcur au com édicn" e m Rem e d 'Histoi re Liu érairc de la Fr unce, scpt-oct. 66 . Op. cit., p. 72. (Em português : Ofl. cit., p. D ).
19 9 3.
67 . tbid., p. 73. (E m portugu ês : op, cit., p. 34) .
*. M lIe. C lairon ( 1723-1 8(3 ) roi um a das mais famosas atrizes fran cesas
64 . lsto é, a ca usa de ren did a po r "o seg undo": a o posição das leses (e , por -
do séc ulo XV111. Agripina, mãe de Nero , é a he ro ína da tragédi a Britunnicus,
tanto , a o posição palco-plat éia) se co nfu nde co m a divi são do te xto do Parado-
de Racin e. (N . da T. )
.H/ , e m form a de diálogo . (Lem bra mos q ue " o prim ei ro" e "o segundo " são os

62 63
par a m arcar , por opos ição, o qu ant o a gr and eza de Agripina Acho necess ário que haja nesse homem [no grande ator] um cspcctadO]
frio e tranq üilo. [...] E por que difer iria o ator do poeta? [...] Os gra ndes poetas
es ta dis tante da pequ en ez de C lairo n, e o q ua nto a C lairon só
dr.ll.ll:íticos, sobretudo, são espeelad ~res assíduos.do q ue se passa em torno de-
é Ag ripina na med ida e m qu e ela n ão é Clairon. Com muito les [...] O atorescutou-se durante muno tempo a SI mesmo; [...] ele se escuta no
mais freqüên ci a, Diderot insis te no não-ser da per sonagem o ,~ momento em que vos perturba". '
não-ser-a-person agem qu e co nst itui o ator : "e le não é a per so-
nagem , e le a represe nta", e o fato de e le a rep rese ntar im ped e
qu e ele seja a pe rsonagem. " E le a representa e a represen ta tão Se , por tanto , a partir da í, está es ta be lec ida a dissociação
bem que vós a tom ais como tal; a ilusão só ex iste para vós; ele entre o ato r e se u pap el, qual é a nature za do pap el ? Ou , dito
sa be muit o bem qu e ele não a é"r,s. A rigor, po rta nto, a Cl air on d e ou tra forma , o qu e é, exatamen te, 1II11 person agem '! O
não é de forma alguma Agripi na: são "os se nhores" q ue crêe m arg umen to de D ide rot po de se r decom post o ass im: o ator se
nisso, é uma m iragem . "Somos nós mes mos por natur eza; so- e ntrega a uma imitação. Diderot o aprova, e logi a-o por se r
mos um outro por imitação''?". um imit ad or" . O qu e é, e ntão, qu e e le imita? .D ide ro t rep ete
Es ta alt eridad e produ z um a in ver sã o no di sp ositi vo d a sem de sc ans o: e le imit a mod elos. Acompanhem os a Clairon :
Poética: po rq ue o ato r, ex te rio r ao q ue mostra, está e m pos i- "Se m dú vtd a , e la fez par a s i um mod el o ao qu al procu rou de
' ç ã o de o conhecer. Did e rot faz di sto um ponto ce ntra l: o ator
iníc io co n formar-se; se m dúvi da , co nce be u esse m ode lo da
sa be o qu e es tá fazendo , o qu e mostra, sa be com um sa be r maneira m ais e lev ada, ma is g ra nd iosa e a mais perfe ita qu e
o bse rva nte, anal ítico e - de ac o rdo co m a epi stem ologia lhe fo i poss ível"?", C om o se form am es tes model os ? Num
o oze -
ra l do Pa radoxo'" - mi méti co d iante de se u o bjeto . Seu tra- d ad o mom ento , Diderot parece ad mi tir qu e se possa enco n-
bal ho te m va lo r cognitivo : el e é " im itado r a te nto e discípulo trá-Ios nas coisas . Mas à medi da q ue a aná lise ava nça (por-
ponderado da natureza " , ele representa "co m refl ex ão , com qu e a m arch a d e Did e rot pr o s s e gu e se m pre d e m od o
estud o da nature za hum an a, com imi taç ão c on st ante" , e le proces sual , e la co loca por um mom ento , num es tág io provi-
es tá oc upa do "e m o lhar, e m re conhecer e e m im itar", e le sório , a lgo q ue se rá e labo rado e det ermin ad o e m seguida ,
"o bse rva, es tuda". Ele te m "o o lho do sá bio" . "O grande co - mesm o q ue isto inval ide a hipótese qu e lhe servi u na etapa
medi ante obse rva os fenômenos, [...ele] medita e e nco ntra, por ante rio r), a co nce pção se torn a mais prec isa: os mod el os não
I'efle
. xsa- o " 7 1. Des t e mo d o, nao
- co m pe te mai.s ape nas aos es pec - es tão di sp on ívei s no reaL Cl ar o, é necessári o o bse rva r a vid a
tad ores teorizar o que vêem : a liás, co mo será referido , os es - e o mundo par a ex traí -los o u lhes dar forma. Mas os mod el os
pectadores , por seu lad o, não estão mais em pos ição de fazê- lo. não se e nco ntra m já co ns tit uídos na vida . E les se d epre~.
Ao co ntrár io do teat ro de Ar istóte les , e m qu e a pr ática da ce na
o ferec ia objetos de co nhec ime nto à platéi a, ago ra é a cena qu e
vê e conhece (o mundo , a natureza) e , ao fazê-l o, se vê e se 72. lbid.. pp. 7 1, 74 . 76. (Em português: Of' . cit., pp. 32, 34, 35) . Sobre
este pont o, Diderot tangencia uma idéia de Saintc-Albine, mas comum objeti-
co nhece; espectadora do mun do e de si mesm a, e la oc upa a
vo rigo rosa men te OpOSIO ao dele, que escreve : "Só representando para si mcs-
posição cogn itiva de o nde os es pec tado res ser ão desal oj ad os: I~ que se pode chegara representar 12C1J1" . Aqui, rcprc sentnr quer dizcr eugunar,
fazer acreditar: "?Salores tnígicos gucrem nos provocar ilusão? Então, devçn1
68. tu«, p. 77 . (Em português: p. 37) . produzi-Ia primeiro para si mesmQs" (op. cit., pp. 209 e 212) . O atoré, port an-
69. lbid. , p. 114. (Em português: op. cit., p. 66) . to. seu próprio espectador, no sentido de se deixar levar por seujogo, enganan-
70 . Cf, Philip pe Lucouc-Luburthe, "Lc Paradoxo ct la mim ésis" , e m do a si mesmo. Oytorde Diderot, ao conlr:íno, se vê (ou se ouve) à medida que
L'imitat ion des niodcrnes, Galil ée, 1986, p. 15.1''1 . (Em ponu gu ês: "O Parado- se conhcce , c êOnheee, p 0l1 aUlU..wa.Jilldlli ~ "a ilusão só cxisle para os scnho-
. xo e a Mimcse", tradução de Fátima Saadi, em 1\ hnitaçâo dos Mode rnos , op. res, ele sabe IIll1il Obem que ele não é o pcrsonãgenl.... Uf' . cit., p. 77 .
cit., p. 159 e .1''1.) 73. Op. cit, pp. 72, 73, 75, ele. Cf. Philippc Laco uc-Labarthc, artigo citado.
7 1. Ibid., pp. 72. 75, 95 . (Em portugu ês: op. cit., pp. 32 , 33, 35 e 52 ). 74. Op. cit, p. 73 . (Em port uguês: op. cit.. p. 33.)

64 65
.de m de la até "a tin(J ir uma fi(Jura u não ma is existia na
lli!lureza"75. Eles adq uire m um a ge ne ra lidade, um a ex te n ~ im agin á rias. A imag in ação lhes d á fo rma, e las lh e devem
ause ntes do mun do dos se res co nc re tos . "O Ava ro e o Tar tufo for ça e si ng ularida de. Nest a mo ldage m, o poeta e o a to r riva-
foram fe itos segundo todos os Toin ard s e todos os Grize ls do lizam. Su as idea lida des fantasmá ticas se o mb re ia m ou se
m undo ; sã o seus traços ma is ge ra is e mais marcantes , mas e ntrelaça m . "Será q ue M lle . C la iro n a co nhece mai s qu e Vol-
taire? Naque le mom en to, pelo men os, seu model o ideal , ao
não o ret rat o exato de ncnhurn '" . Os modelos convocadoJs '

~
)~~~ a to.r..são ~I~termi nados exa ta me nte co mo ideais . Mode- de c lamar, es ta va m uito a lém do model o ide al que o poeta
los Ide ai s . o pai de termos ob ceca o Paradoxo . O ator cop ia, imagi nara ao escrever, ma s esse model o idea l não era e la" .
c laro, mas copia ideal ida des . D isposi tivo de v iés plat ô nico , Estes modelos rece bem do imagin ário sua idea lidade; por isto
" po der ía mos di zer , a não se r pe la enve rgad ura , por qu e , em o j ogo do ator não é inapto à sua prcsentação: e le lhes (re)prod uz
Platão, o imitado r est á co nfinad o a um a d istâ nc ia ex trema as image ns. "Q ua l e ra, po is, seu talent o? O de im aginar UIUl
~ (~ mode lo (e le est á tr ês gr au s afastado dele, o q ue é demais), gra~de.~·an tasma e copiá-lo co m i nsp iraç~0"7Y: ~s. im ag~l~ s de
~ lJ~c a paz de. mani test á-l o numa apresentação, e , se pre tende
teatro suo da mes ma natureza das que o nnag ma no, poe uc o e
faze- lo, de sf igura-o e ca i na mentira. O ato r de Diderot con- dram ático, se preocupa em moldar. Elas são cópias dele, re tra-
s ide ra se u~ model os e os man ifesta adequadamen te em sua tos exagerados ou fi é~ , I~éis po rq ue cxaserados : o exagero é o
(estlÍ no) )ró prio imagi ná rioxll. O jogo do ator mostra im a-
atua ção . E s ua a rte, sua competê ncia : " Aq ue le , P Oi S ' ~ q le
ge ns, im agen s des tas im age ns, cóp ias dest es es q ue mas qu e
m ell~ or .co nh.ece . e tl:adu z ma is pel:fei tam e l~te es tes sig nos
ex te rnos, de aco:do com o m odel o Ide al mais be m concebi- são os model os idea is model ad os pe la im agin ação.
do , é o mai or co median te"?",
Porque os mét od os de Diderot se mo ve m num espaço do
" Assi m a ve rdade do teat ro pode, a partir da í, ex ibir-se
como regime de adequação a estas ideal idades ficcionadas .
" O que é , po is, o ve rdadeiro do palco ? É a co nformidade das

I
qua l Plat ão não pode se aproximar: eles sã o imagin ários. " A
Cleópatra, a M érop e, a Agripi na , o Ci nna do te atro são mes- ações, dos dis cursos, da fig ura , da voz, d o movimento, do
mo person agen s h istór icos? Não. São osfantasmas imagin á- ge~ to: c ~m U.~ll mod el o i de al . im a~~ ~ ad o pel o pO~ la , e m uitas
rios da poesia"? " . Os mode los do teatro pa rtici pa m de um vezes cxagciado pel o co me dia nte XI . A verdad e Igno ra qu al-
mund o q ue é o do imagi ná rio, se us fa ntas mas nascem da qu er co nfo rmidade co m as coisas, e la é fie l aos fan tasm as.
i lllagi n~ção . Este m undo pro cede de uma visão a mpliada e
As criança s, de no ite , ass usta m u mas às o utras sacudi ndo
ge neralizad a daquil o que as co isas são. A imaginação o mo l- acima delas um len çol pa ra apavorar sem ma ldade se us a mi-
guin ho s'" . " Es te rapazote é o verdadeiro símbo lo do ator;
da._
O• at or didcrotiano deve "co m a ajuda d e u ma imazi C>
na-
çao fo rte, saber c riar, e, de u ma me mór ia ten az, m an ter a seus a migu inhos são os sí mbo los do espec tador'?" . As ve rda -
ate nção fixada e m fan tasmas q ue lhe servem d e modelos?" . des do teat ro são peq ue nos espectros .
l.. O mod el o idea l é imag inad o. As idea lidades (de teat ro ) são
Por q ue es ta le itura? A qu e ten dem es tes es forços, re-
compensa dos ape nas pel a co nsta tação m uito ba na l da d ife-
75. fbid.. p. 9S. (Em portug uês: 111'. cit.• p. 54.)
re nça entre ator e pe rso nagem , e do estatu to imaginá rio de ste
* GJi 7~1 cru um abade beato c Toinard um financista avaro. Em português:
111'. cit., p. 53. (N. da T. )
76. l bid.. p, 114. (Em português: 111'. cit ., p. 66).
77 . lbid., p, 79. Grifo meu. (Em portu gu ês: 111'. cit., p. 38) . 79. lbid.. p. 101. Grifo meu (Em português: 111'. cit., p. 57).
"" , Cleópatra é personagem de Corncillc; M érope é perso nagem de Volrairc, 80. lbid.. p. 114. (Em português: IIp. cit.• p. 66).
(N. da T.) 8 1. lbid. . p. 80. (Em português: 111'- cit., p, 39) .
78. lbid. , p. 11 8. (Em portugu ês: li!'. cit.. p. 69). 82. lbid., pp. 74 e 130-131. (Em portug uês: 111'. cit., p. 34 c. pp. 78-79 ).
83. Cf. ibid. p. 13 1. (Em português: 111'. cit., p. 79) .

66
67
último? Trata-se, simplesmente, de pensar esta banalidade razão, identi ficou-se nesta passagem um dos testemunhos que
como produzida. Real e imaginário não nos são dados, cara antecipam o nascimento do encenador": Este dramaturgo-
a cara, desde sempre. Séculos inventivos , que produziram não concebe mais sua "prática do teatro" como equivalente à
obras capitais, encontros e acontecimentos admirados, pude- arte de compor seus poemas, mas consagra uma parte de seu
ram manejar um teatro muito erudito e popular sem lançar esforço (a principal, como nos dizem) a transpor seus escritos
mão, para pratic á-lo ou pensá-lo, destas categorias que nos para o palco por meio de um trabalho longo e escrupuloso.
parecem empíricas. Real e imaginário são termos latinos. A Sem dúvida ele não é o único a fazê-lo, embora, para Diderot,
Poética os ignora. E constatar isto não significa invocar a pu- sua singularidade provenha, sem dúvida, da aplicação , da
reza de uma experiência grega suposta, que não podemos re- intensidade e da duração deste cuidado. Este texto é, no en-
constituir (e, menos ainda, restaurar) : é ver com um outro olhar tanto, um dos primeiros nos quais a atividade de "ensaiar" é
a nossa experiência. É perceber que a diferença entre o ator e concebida em sua autonomia como parte do trabalho poéti-
o personagem, formulada nestes termos e inscrita na partitura co , parte da arte . Mas não é isto o que queremos ressaltar.
do jogo do ator e da imagem, nos chegou no bojo de uma certa Acontece que Diderot acrescenta: "E quando imaginais vós
história, que, numa certa fase , organiza nossa percepção do que a companhia começa a representar, a entender-se, a en-
fenômeno teatral, mesmo se ela se mostra a nossos olhos como caminhar-se para o ponto de perfeição que ele exige? Quan-
constatação. Nós vemos no teatro atores efetivos dando vida a do os atores ficam extenuados de cansaço dos ensaios
personagens imaginários, que se instituem, uns c outros, na multiplicados, o que chamamos de blasés", Na estratégia do
economia da separação entre eles. Outras pessoas poderiam Paradoxo , a função deste exemplo é clara: ele confirma que
descrever o fato teatral como uma práxis posta em ação diante os atores se tornam tanto melhores quanto mais se afastam
de uma thenna. A prática teatral é des-unida, cindida entre da primeira descoberta do papel e do texto, e, portanto, das
representante e representado, entre o que o ator faz e o que ele primeiras efusões do entusiasmo ; tanto melhores quanto mais
figura, entre a ação de imitar e a ação imitada. Uma tal sepa- a rotina, o cansaço e a repetição das falas os livram de qual-
ração não pode ser deduzida da simples existência do teatro, quer comunicação por fusão com seus personagens, de qual-
em qualquer tempo e em qualquer lugar, pelo simples fato de quer apropriação dos papéis apenas por meio da sensibilidade.
sua articulação essencial. Isto ocorreu conosco . A sensibilidade extenuada deixa aflorar o talento. A separa-
Ora, uma conseqüência não negligenciável deste novo ção se amplia entre o ator e o que ele representa. É então
dado pode ser lida , de modo explícito e, no fim das contas , que, na verdade, a trupe começa a representar, o que está de
surpreendente, no texto de Diderot. Por querer descrever esta acordo com a tese: representa-se na distância em relação àqui-
clivagcm, que ele aprova , o autor do Paradoxo acaba por lo que se representa. Mas eis que acontece algo digno de
contar um fato, inopinado, que foi levado ao seu conheci- nota: "A partir desse instante os progressos são surpreen-
mento . O fato lhe foi relatado por duas testemunhas "vera- dentes, cada qual se identifica com sua personagern"xó .É,
zes", ambas "de um feitio de espírito original e fino". É o que eu saiba, uma das primeiríssimas aparições do termo ,
seguinte: "é que em Nápoles, pátria de ambos , há um poeta em sua aplicação às questões do trabalho do ator. Seja qual
dramático cujo principal cuidado não é compor a peça" . Mais for sua acepção precisa neste contexto, a economia de seu
que escrever, o referido poeta se preocupa em reunir os ato- aparecimento não deixa margem a dúvidas: é quando se
res que convêm à sua obra, depois do que "ele exercita os assinala a maior distância entre o ator e o personagem que
atores durante seis meses, juntos e separadamenre'v". Com
85. Cf. B . Dorr , in Couty, Rcy et al. Le Théâtre. Bordas , 1989, p. 140.
84. lbid., pp. 118- 119. (Em português: op, cit. p. 70). 86. lbid.. p. 120. Grifo meu. (Em po rtugu ês: op. cit. , p. 7 1).

68 69
o prim eiro pod e se identif ica r co m o segundo. Só é poss ível última obse rvação preliminar aind a nos det ém . O ant igo par
se identi ficar co m aq uilo qu e es tá di st ant e - di stinto e lon - da práxi s cê nica e da theõ ria obse rvadora se tran sform a, mas
ge de s i mesm o. Ca so co ntrá rio, não há identi fica ção possí- também se compl iea e se plurali za . Em ce na a prá tica unit á-
ve l; a pes soa é a mesma, s upo ndo-se que se pud esse imagin ar ria cede luga r ao duplo regime do j ogo (efetivo) dos atores e
isto . A ident ificação é es te movi me nto : o de red ução de um a das imagens (produzi das) - do ator e do person agem . O que
d ist ânci a qu e deve, port ant o, ser, antes , criada . O ato r não diz er da p latéia? A determin ação da asse m bléia fica ou não
desl iza até e la a não se r a pa rtir da dife re nça representati- afetada po r es ta dup licação da ce na? A um prim eiro rel ance,
va, da ampliação da fi ssu ra en tre a ação e a imagem, entre.J!-, não: os es pec tado res são sem pre espect adores e po nto fi nal,
imitação e o imitado. Ele só pode (even tualme nte) se iden tifi- Mesm o se e les não têm mais exatame nte a mesm a co isa para
cal' co m se u papel no caso de es te se ter torn ado autônomo , ve r. E, ai nda assim , na platé ia se esg ue ira discret am ent e um a
for a ou ac ima dele, co mo espectro" . figura , cuja entrada deve se r ass ina lada , visto qu e e la está
Didcrot ac resce nta que "é depois deste peno so exe rcício destin ada a um belíssimo futuro . Entidade radi calm ent e nov a
[os longos ensa ios, ex tenuantes] que as represent ações co me- que se insinu a entre as arq uibancadas se m qu e nin guém se
ça m e se prolongam por se is outros meses seg uidos, e que o ape rceba: () es pec tado r. Nã o os es pec tado res, evi de nteme nte,
so bera no e se us súd itos usufruem do maior prazer que se pos - que es tão lá h á muit o tempo, sob nom es diversos. Nem mes-
sa auferir da ilusão teatral"xx. Para que o prazer ocorra , com o mo um es pec tado r, um dado espectad or qu e, timidamente,
() maior prazer da ilusão , são necess ári as du as co ndições : que aparece aq ui e ali nos text os . Mas o espectado r. Qu er diz er : a
o ator, ex tenuado , se veja levad o por este cansaço à distância coleti vidad e do públi co condensada e redetermin ad a na ge-
máxim a em relação a se u papel, e que, por isto, possa se idcn- neralidade monofisi sta do indi vídu o típi co , testemunha do
tifica r com ele. A ilusão dos es pec tado res, o pra zer deles, de- particular ge ral, co nsidera do a partir de então com o uma es-
terminado co mo praze r da ilusão (es tamos aqui nos anupodas sê ncia unit ária , da qu al todos os es pec tado res singulares são
do prazer aristotélico do co nhec ime nto), são produ zidos pelo manifestações ac ide ntais - co mo o círculo ou o triângulo ou,
ap rofund ament o da diferença mim ética em ce na, pela distân- claro, o hom em, a mulher; o francês subsumem todos os indi-
cia amp liada entre o ator e fetivo e suas fi gu rações imagin á- víduos co ncretos a que nos referimos co m o mesm o substanti-
rias, e pela iden tificação, daí por diante tornada possível pela vo. Salvo e nga no, a Poética , que fala bastante dos espec tadores ,
exte nsão desta distância. A ilusão dos espec tado res é suste nta- ignora esta essência. No limi ar de sua é poca, Corn e ille ou
[d; pela identificaç ão (subjetiva ou objetiva) dos atores: Brech t d ' Aubignac utiliza m a expressão", mas ainda não faze m dela
I~.:itá vindo. E es ta eco nomia se sustenta pela cisão efetivada um tema : C orneille o emprega em alternância e se m distinção
~tre o age nte na ce na e os fantas mas que ele agita. percept ível , co m o term o "ouvinte"?", Sainte-Al binc co nhece
Vamos, portanto, ter qu e tratar do tem a. A qu estão da o ator e o poeta, co mo se us predecessores, mas d iante do ator
eventua l necessidade do teatro vai es trutura r-se , e ntão , co mo vê antes um grande número de espectadores". Com Riccobo-
a qu estã o da necessidade da identifi cação, qu and o se repre-
se nta, e a necessidade da ilusão, quando se o lha . Mas um a 89. Freqüentemente num contexto digno de menção: "É preciso que um
personagem venha falar sobre o palco, porque é preciso que o espectador co-
87. F. Regnault encontra aí argumento para uma outra espécie de parado- nheça seus propósitos e suas paixões", La Pratiqu e duthéâtre. ofl. cit., p. 39.
xo: "identificação e distanciamento são uma única e mesma operação." Op. 90. Por exe mplo: "Discours de I' utilit é er des parties du poemc dramati-
cit., p. 22. Acho que é ir longe demais: que os dois movimentos participem de que" em Oe uvres COIIII, lê le,l' 111 , Gallimard-La Pl éiade, p. 117c scg ,
um sistema (representativo) comum não basta para estabelecer que Diderot, 91. O que confirmaria, na minha opinião, a observação de Alain Ménil,
Brccht e alguns outros tenham pensado fi toa esta dissociação. segundo a qual este autor se move ainda no espaço do pensamento clássico. Cf.
88. lb id. Grifo meu. (Em português: op. cit., p, 7 1). 01'. cit., introdução, p.165, notas pp. 432, 433, 439.

70 71
ni, o espectador faz uma entrada de peso. Torna-se uma cate- qu e esquece de si mesmo, em que está em Argos, em Micenas,
goria central", mesmo se, evidentemente, L'Art du th éâtre não em que é o próprio personagem que interpreta; ele chora ... " ~5
ignora os espectadores; os dois usos correspondem a funções "O primeiro" - este mesmo que ao longo do diálogo se deixa
diferenciadas . O espectador está fortemente associado à ilu- chamar uma vez de :'Senhor Diderot" - não cede um milí-
são . "Chama-se expressão a habilidade com a qual se faz o metro de terreno . Mas não é isto o que nos detém : observe-
Espectador sentir todos os movimentos pelos quais se quer mos antes que a concessão solicitada por "o segundo" associa
parecer tomado." Ou ainda: "Deixe mos o Espectador ser to- com a presença do espectador a identificação do ator, o mo-
mado por aquilo que nós [o ator] acabamos de dizer, o sufici- mento em que a diferença será abolida entre ele e seu perso-
ente para que ele seja levado pelo que seguir á; mas não nagem (diferença não ignorada, mas colocada pelo jogo do
permitamos que ele tenha tempo de perder a ilusão"?' , É pre- ator que, neste instante , se verá reduzida, reabsorvida pela
ciso tentar compreender este elo . identificação), momento de fulguração identificadora'" . Es-
Diderot utiliza também a fórmula, porém ma is comedi- trutura muito coerente: o espectador surge como testemunha
damente, o que torna cada ocorrência muito significativa. da identi ficação , ele é como que convocado por sua fulgu-
Pinço três delas . Uma primeira vez, falando da liberdade de rância, um elo secreto e seguro o une a sua operação. Ora,
espírito que o ator conserva em seu trabalho, ele enfatiza: este espectador único, parceiro preferencial do êxtase da fu-
"felizmente para o poeta, para o espectador e para ele'?". J'1 o são, se torna invis ivel no momento exato em que aparece : ele
espectador, discreta mas firmemente, se alça ao nível de ca- está ali, subitamente emergente, mas o ator que perde a ca-
tegoria estética, ao mesmo nível que o ator ou o poeta. De- beç a não o vê mais . É o oxímoro do fantasma, que se mostra
pois , ao longo do texto, Diderot se refere de forma recorrente em seu eclipse. Nós não nos surpreendemos, evidentemente,
aos espectadores de modo coletivo. Mas eis que, lá para o nós, que conservamos a cabeça fria : o espectador não é nun-
fim do di ál ogo, sobrevém um a ocorrência digna de nota. Efe- ca visto por ninguém . O ator nunca põe os olhos nele : o que
tivamente, o segundo interlocutor está a ponto de ceder à ele , às vezes , percebe são espectadores reun idos , inúme ros.
pressão argumentativa do primeiro, não por adesão, mas an- O espe ctador, estritamente falando, é aquele que o ator ima-
tes por estar desarmado. "Vós j á me confundistes fortemen- gina . Só é possível imaginar o espectador lia medida em que
te, e não duvido que poss ais me confundir mais ainda." Ele
proporá logo em seguida que interrompam o diálogo. De fato,
95 . 01" cit., pp. 125 e 123 . Grifo meu. (Em po rtuguês : OI'. cit, pp . 73, 74) .
ele já está desligado, não escuta mais nada. "O primeiro"
96 . Não se pode deix ar de pensar, qu ando se evoca esta deflagração identifi-
observa: "M as estais distraído ; no que pensais?" Como res- catória, no Saint Genest, de Rotrou, no qual o ator parece, nu m dado momento,
posta, "o segundo" proporá uma esp écie de concili ação, dei- rea lmente , levad o por se u papel , a pont o de se confundi r com ele. Ora , Diderot
xando à tese do ator insensível o essencial do campo da teria tod as as condições de res ponder que, segundo o pr óprio te xto , est e excesso
{IIU"I/ o j ogo do ator: " Não é mais Adriano, é Gen est qu e se exprime I Este j ogo
disputa, mas reservando à sensibilidade uma exceção emi-
não é mais umj ogo, mas uma verdade I Na qual por minh a ação eu sou represen-
nente. "Pe nso em propor-vos um acomodamento: o de reser-
tado , I Na q ua l e u [sou] objeto e ato r de mim mesmo [...]". Aqui, para fa lar a
var à sensib ilidade natural do ato r os momentos raros em verdade, o ator não representa mai s, ele não é mai s o papel, mas e le mesmo, não
que perde a cabeça, em que esquece que está num teatro, em mais Adri ano mas Gcnest . A identificação destrói o jogo do atare não pode , por-
tant o, servir para defini-lo. Notem os, no que nos di z respeito, que, no mesmo
instan te e m que a coi sa se o pe ra, os espectadores desaparecem e é o espectad or
92 . Por ex empl o , 0I'. cit. , pp . 16,2 8, 36,53,78 , 79 ,91 ,93, apê nd ice p.1 8. qu e aparece: " Po r muito tempo meu desejo foi se r aceit o por vossos olho s I Hoje
93. lbid., p. 36 e 61. Grifo meu. A maiú scula é do o rigina l, oc orrência , quero agradar ao Imperador dos Céu s." Ao vossos, no plural (o verso seguinte
aliás, freqüent e. d iz: e u vos diverti) . suc ede o Único . Rotrou . Le véritoblc Saint Genest, IV, 7, v.
94. OI'. cit .. pp. 76-77. (Em português: 0I'. cit., p. 37). 1324 - 1327 e 1365 -1366, Sand-Corn édic Française, 1988. G rifo meu.

72 73
ele 1/(/0 é visto. O espectador partilha, portanto, com o per- pequeno acidente do qual ninguém está totalmente livre. Uma
sonagem esta natureza espectral. E Diderot, pela boca do atriz estreante quer ouvir a opinião de algumas pessoas so-
"segundo", levando mais longe a hipótese, complica c acen- bre seu talento. Convoca um pequeno grupo para julgar suas
tua ainda mais o caráter absolutamente desrealizante deste chances. A audição acontece na casa dela. Ela faz um en-
jogo do olhar: eis que o ator chega "a ponto de me arrastar, saio , os amigos ficam bem impressionados , encorajam-na,
de eu ignorar a mim mesmo, de não ser mais nem Brizard, elogiam-na e em seguida ela se arrisca num palco de verda-
nem Le Kain , mas Agamenon que eu vejo, mas Nero que eu de, onde é vaiada. Ora, prossegue "o primeiro", vós mesmo
ouço"?". O ator, portanto, no momento em que se espera que que a havíeis apreciado e elogiado "confessais que as vaias
tenha se esquecido de quem é, tornando-se o outro imaginá- têm razão de ser". Que má sorte falseou o olhar? A explica-
rio, "arrasta" este espectador para a roda . Este espectador se ção é imediata: "em seu rés do chão, estáveis terra a terra
ignora, desaparece de sua própria percepção, assim como "o com ela [...1; ela estava frente a frente convosco [...], tudo
espectador" tinha se tornado invisível para o ator. Ele 1/(/0 vê estava em proporção com o auditório e o espaço". Em resu-
L,w is o ator que representa efeli~al1lel~e d!al/le dele, mas os mo : não se estava no teatro. A coisa aconteci a "em um teatro
k rsonage ns que, na verdade, nao estao la. O espectador se particular, em um sa lão onde o espectador se encontra quase
inscreve, portanto, se ele existe (visto que "o primeiro" refu- ao nível do ator":" . Est á aí o espectador que vai entrando de
tara o roteiro desta exceção) , no mesmo instante de reabsor- mansinho. No teatro, os espectadores vaiam. Mas aqui , no
ção imaginária, extática, da diferença representativa. O que salão , inopinadamente, é o espectador que se instala. O es-
nos leva talvez a colocar as coisas como se segue. Uma vez pectador, em sua solidão essencial, é, portanto, indissociável
demarcada a divisão entre a prática cênica e seus efeitos de ' do dispositivo de ocasião no qual o teatro se ausenta de seu
imagem, duas maneiras de a encarar se confrontarão: aquela espaço público, de assemblé ia, para recolher-se a domicílio,
que considera a diferença a partir do jogo do ator - e então no lugar-rei da vida privada , doméstica, familiar: em um
a diferença torna-se visível e marcada. E aquela que a exa- salão. Os salões, na obra de Diderot, não são desprovidos de
mina a pa rtir do imagin ário - e a diferença é abolida. Todo conseqüências.
esmagamento da diferença representativa supõe que possa-
mos nos abrigar no imaginário e pensar a partir deste lugar:
a própria identificação, sem dúvida . Ela exige a abolição dos
espectadores como entidade efet iva, assembléia concreta de
indivíduos singulares, substituída pelo espectador, essência
fantasmática , espectro da assembléia que desapareceu . Entre
o ator e os espectadores , que, afinal , estão ali , se erguem dois
duplos fictícios : o personagem e o espectador, sombras cúm-
plices.
Quanto à terceira aparição do espectador no Paradoxo,
vamos mencion á-lu provisoriamente, porque ela aparecerá
novamente . É no momento em que "o primeiro" evoca um

97 . lbid., p. 124. (Em portu guês: op. cit., p. 73).


*. Lc Kain (1729-1778), grande alar francês, comparado a Garr ick. Bri-
za rd (172 1- 1791), ala r da Com édie Française. (N. da T.) 98. lbid. , p. 119. (Em português: op. cit., p, 70.)

74 75
III

Mais uma eta pa neste cam inho: trata-se do te xto, mu ito


curto e hoje cé lebre de Freud: "Perso nage ns Psico p áticos na
Cen a'" . No início deste texto, que os edito res data m de 1905
ou 1906, pode-se ler o seg uinte:

o espectador uma pessoa c uja particip ação é muit o peq ue na, qu e se nte
é

ser um " pob re miscnivc l a qu em nada de import ância pode aco ntecer", qu e de
há m uito rem s ido ob rigado a sufocar, ou antes , a deslocar sua ambição de te r
sua própri a pessoa no cent ro dos ass untos mundi ais ; ele anse ia po r se ntir, agir e
d isp or as co isas de acord o co m se us desej os - em suma , por se r um heró i. E o
teatrólogo e o ato r pe rmit e m- lhe q ue ele proceda dessa forma fazend o-o identi-

I. T rad ução de J. Al toun iun, A. Bo urgui gnon , P. Cotc r, A . Rau zy, em R é-


sultats, id ées , prob lémes. I, pur, 1984, pp. 123- 129. A res pe ito deste texto , cf.
cspcciah ncn tc Phi lippe Luco ue-Labarthc, " L~ scc nc cs t prim itivo", e m Lc sujet
de la philosoptue, Au bic r-Flam mari o n, 1979, pp , 185 sq. (EI11 portu guês : cf.
'T ipos Psicop át icos no Palco't.Irad ução de Chrisriano Mo nteiro O iticica, co m
rev isão técnica de Juco b D. Azu lay, e m Edição Sra nda rd Bra sile ira das Ob ras
Psicol ôgicas Completas de Sig mund Freud, vol. 7 , o rga niza ção de Jayme
Salomão, Rio de Ja neiro, lma go , 1972 ).

77
O qu e Fi cam os sabendo a se u respe ito? Que , no teatro,
[icur-se co m um he rói. Eles tamb ém lhe poupam algo, pois o cs~~tndor s~bc
muilO bem quc uma verdade ira co nduta her óicn co mo essa sc na I ~npossl vel ele se identifi ca co m o herói e qu e esta identificaçã o só é
pnrn e le se m dores, sofr imentos c temores ag udos que q uase an ulariam o pra - possível graças à ilusão em que ela se integra. O par ide ntifi-
zer. Sabe , al ém disso, que só temlll//lI vida e que talvez viesse a perecer nu ma cação-i lusão está so lida mente articulado , o mesm o par sob re
única lula contra a adve rsidade. Em co nseqüê ncia se u delei te funda menta-se o qua l B recht, pou co adia nte, nos fará rell etir tão ativa me n-
numa ilusão , valc dizer, se u so frime nto é mitigado pela certeza de que, e m
te. A ilusão, co mo dissem os, é uma noção utilizad a co m fre-
primeiro lugar, é outro que não ele o que está atuando e sofrendo ~1 0 palco, e c m
seg undo. q ue afinal de co ntas tudo não passa de UIllJOgO, que nao pode ca usar qü ên cia no pe nsa me nto sob re teatro, e desde há muito :
nenhum perigo 11 sua seg urança pessoa l. Nessas circunstâncias, ele pode da r-se encon tramos este term o mu itas vezes nos textos anterior me nte
no luxo de ser um "grande homem'" . citados e sua relação co m o teatro foi amplame nte ternatiza-
da desde os c lássicos - até mesmo em ce na - co mo I//l SÜO
Es ta passagem retom a alguns dos tem as que vimos pro- C ômica ". A iden tificação vem mais tarde. O verb o idenl~
gress iva mente se instalarem e, ao mes mo tempo, intr odu.z co r-se aparece no texto de Didcrot, mas a prop ósito do ator.
eleme ntos de uma evide nte novidade. Observem os, em PrI- O ra, co mo sa bemos, o conceito va i ass um ir, ao lon go do sé-
meiro lugar, que e le é todo escri to do ponto de vista do es- culo xx , um lugar ce ntra l na aná lise do teatro, va lor izado ou
pectado r, seg u ndo um m od o qu e a inda não . tí nha mos co nde nado, pou co impo rta, e a teoria fre ud iana, ev ide nte-
enco ntrado. Porque Sai nte-A lbi ne escreveu um livro de es- mente, co ntribuiu para tanto. Tentem os co mpree nde r co mo
pectador , mas de modo não decl arado, visto qu e o qu e ele o co nceito de identifi cação inter vém aq ui.
pretend ia, apoia ndo -se so bre exigênc ias aprese ntadas co mo Para abordar uma identi ficação, pode-se começa r por duas
gerais e racion ais, era Formul ar princípi os da arte teat ral e questões ingênuas: quem se identifica? e com quê? Vamos nos
prescriç ões e nde reça das aos atores . Suas análises era m as de aprox imar delas, mas na ordem inversa, porque a primeira é a
um es pec tador, mas o objeto do texto, co mo indi cava clara- mais intrincada - e não apenas nestas poucas linhas. Podemos
ment e seu títul o , era a arte do ator. Com Freucl, a co isa é responder, à primeira vista, ao menos, muito simplesmente à
co mpletame nte diferente: e le se situ a do lado do es pec tado r, questão: CO /1/ quê? O texto é claro a este respeito: a pessoa se
mas para revelar algo a respeit o do própr io espectado r, pa ra identifica com () herói . O espectador expe rimenta (fora do tea-
ana lisa r se u co mportame nto, produ zir sua psicologia. Não tro), uma série de insatisfações: vive pouqu íssimas co isas, nada
es tamos d iante de um tratado do ator, escrito por um espec- de importante acontece co m ele, teve que renunci ar à sua ambi-
tador, mas de um curto tratado so bre o próprio espectad or, ção de es tar no centro do universo. Como reação, e le quer sen-
basead o na experiênc ia própri a ao espectado r (ele " vive", tir, agir, e m resum o, ser /1/11 herói. E o teat ro coloca isto ao seu
"e le se se nte", "ele quer se ntir", ele "sabe muit o bem", "ele alcance, por meio da identificação : pela identi ficação. Se ler-
tam bé m sabe" , e assi m por dia nte). Posição que, aliás, não se mos atentamente, o efeito do processo é, portanto, que o espec-
limit a às po ucas linhas citadas ac ima: ela domin a tod o o te x- tado r sente, age, em resum o, que e le é. A identifi cação lhe
to. E é o espectador que é levado em co nta: e le é co nstante- permite experiment ar sensações, cometer açõe s, assumir um ser.
mente desi ban ado co mo o suje ito desta exper iênc ia. Aoo lon go Co mo isto é possível? Por meio da ilusão, evidentemente. Na
do trech o todo, o pronome ele se re fere ao espectado r . verdade, o espec tador não faz nem é nada disto tudo: e ele só
sente o que sente sob o modo quimérico - esta coragem, este
2. OI'. cit., pp. 123-124. (E m port ugu ês: 1/1'. cit., pp. :n 1-322. À tradu ção medo, esta compaixão e até mesmo este amor (por Ximena" )
brasileira : "o teatrólogo e o ator" , correspondc em francês a tradução "os ato-
res-poera s" ). (N. da T.) * llusiio C ômica é o t üul o de uma peça de Co rnei lle. (N. da T.)
*. E m francês : "il, c 'cs t lui", literalmente, "ele é elc",jogo e ntre o prono -
** Ximcna: heroí na de O Cid, de Cornei lle. (N. da T.)
me reto ele e o prono me oblíquo lhe, que só o francês permi te. (N . da T.)

79
78
são feit os de ilusão. É, po is , a ilusão qu e sus te nta a iden ti- mas pe la co m plex idade intrínse ca de st e debat e na te o ria
fica ção , torn a-a possível , atribui-lhe se us poderes. A identifi- freu d ian a , "Não há, em tod a a teori a psic an alíti ca, d omín io
cação só ag e enquanto m ira gem . mai s co nfuso , mai s cxasp erante par a o leitor do qu e o d a
Como a ilu são fun ci on a para sus te ntar e ste edifíci o ? teor ia da ide ntificação. Ao ler a incrível prolifer ação de te r-
Fre ud explicitá. A ilusão re po usa sobre du as "gara ntias" : pri- mos supos ta me nte téc nicos qu e apa rece m nas publicações,
me iramente , d iz e le, a gara ntia de que é um outro qu e age e tem -se a impressão de q ue a lista da s identificaçõe s e nco n-
qu e sofre, ali na ce na . A ilusão se apóia, portanto, sobre es ta tradas não se dete rá nun ca":'. E o desejo de ap licar este co n-
segurança: aq ue le qu e age e sofre - o her ó i - é um o utro : ce ito ao tea tro não d iminu i em nada a co nfusão, ao c ont rário:
po rta nto , e le não é eu ' . Se posso me identi fica r co m o her ó i, pel o sim ples fato de o conceito de identificação ter sido in-
é, portanto , par ad o xalmente, na medida e m qu e me ga ra n- troduzido por Freud em estreita ligação com o recurso a uni
tem qu e el e não é e u. É nisto qu e co nsis te a ilu são . A ilusão modelo tem ral.
(identif ica do ra) não proced e , porta nto, como se pod er ia es-
pe rar , da crença q ue es tabeleceria q ue sou e u, lá, na cena, As mc uiforas cê nicas aco mpanhara m o desenvol viment o da noçã o de identifi-
c ação de sd e o iní ci o [... 1; a s e xpressões de "ce na psíqui ca" , de ce ná rio
mas, ao co ntr ár io, d a segura nça qu e me propo rciona o fato
fantasm ático, de tcarralismo (hist érico), de te atro onírieo, de dr ama ne uró tico ,
de qu e não so u cu' , Em segundo lugar, a ilusão se funda me n- de máscaras, traves tis, figurantes sã o mu ito num e rosas. A lingu age m da ce na
ta na ce rte za de q ue, no fim das co ntas, tud o não passa de um parece , pois, ine vitá ve l qu ando se trata de e xp licar o trab alh o de idc ruificação' . .
j ogo d o qu al não pod e decorrer mal algum , ist o é , se co m-
preendem os be m, a ilusão se escora na certez a de qu e isto Ev ide nte me nte, não pret en demos deslindar aq ui es ta com-
não acon teceu ve rdadeirame nte, que as ações não são rea is, ' plex idade red obrad a.
que aquele que re presen ta ape nas rep rese nta e q ue, portan to , No máximo, podemos te ntar situar a curta c itação de Fre ud
o he rói também não é e le. O qu e equ iva le a di zer, claramen- numa das articulações possíve is da tem ática. Um co me ntador
te , qu e tud o o qu e aco ntece e m ce na ca rece de real id ad e : muit o be m info rmado resume: " Do is gra ndes mod el os se de-
im agin ár io , co m ce rteza . N ão nos identificam os co m nad a preen dc m ele nosso itiner ári o freud ian o par a co nce itua r a ide n-
qu e aco n teça e fetiva me nte . A ide ntificação se liga ao imagi- tifi ca ção'". Estes mod el os são : a identifi cação hist éri ca e a
nári o . O u, par a resp onder à pergunta (com quê ?): nós só I IO S identifi cação narcí sica. Ora, a identificação histérica não pa-
identificamos com uma imagem . É o qu e nos garan te a ilu- rece o mod elo ade quado pa ra ten tar pensar a ide ntificação do
são. Não é e le, não so u eu . Posso goza r se m e ntraves . espectad or como Fre ud a ev oca neste tex to. E la nos rem e te
Re s ta a qu est ão : quem ? O pr o blem a é um pou co ma is antes à identificação do ator. Fre ud es creve rea lme nte : " A iden : /
com p lica do . Porque so mos ten tad os , para pod er re sp onde r, tifi cação é um fator altame nte im po rta nte no mecanism o dos
a no s perguntarm os co mo e sta id enti fic aç ã o (d e te at ro ) se sintomas histéric os. Ela perm ite aos pacientes (...] desen tpe-
inse re no s iste ma freu di an o. Ora , a co isa não é ev ide nte -
nã o por um a incerteza qu e decorreria d e no s sa q ues tão,
4. G. Ta illandie r, introdução a M. David-M énard, J. Flore ncc , J . Kristcva,
G . Mich aud , J. Oury, J. Schottc. C. Stcin , Les ide ntif ications. Confro ntatio n
*.Temos aqui o mes mo j ogo en tre pron omes retos e ob líq uos : " il n 'est de la cliniq ue et de la tli éori e de Freud ti Laca», Den oêl , 1987, p. 11. (E m
pas imp ossí vel e m português. (N. da T. )
11111''' . port ugu ês: As k lent íficaçõ es lia Clinico e lia Teo ria Psicanalitico, o rga niza-
3. Esta contradição foi ana lisa da de forma muit o pe rspicaz po r O. Man- ção e tradução de A ri Roi trn an, Rio de Janei ro , Rel ume -Dumani, 1994 , p. 17).
noni , em Cle]s 1)0111' llmog lnai re, 011 lAu tre scêne, Scui l, 1969 , ree di ç ão 5. J. Flore nce , em L' identifica tion dun s la th éori e [re udienne. Pub lic.
Points-Seuil. Em espec ia l " L' illus io n comiquc ou le th éâtrc du po int de vuc de des Facultes Univcrsiraries Saint-Louis, Bruxclles, 1978 , p. 50.
l'unagin airc " , pp. 161- 183. (Em portugu ês: Chaves pura o hnagin ário. Tra- 6 . J. Flo rcn cc , "Lcs idcntifi cations" , em Les identificati ons. oI'. cit.. p.
du çã o de Lígia Maria Pond é Vassa lo . Petróp o lis: Voze s, 1973). 169. (E m português: As lde ntij icaç ôcs..., op. cit., pp, 115·1 4 7).

80 81
nhar soz inhos todos os papéis de uma peça" . Esta é "a bem tamente produti va. Porqu e Freud indic a, de sa ída, qu e o es-
co nhec ida imitação histérica, a aptidão que os histér icos têm pect ad or so fre devido à insignifi cânc ia de sua vida , qu e e le
de imitar'". Ele indica tamb ém , em 1909: "Trata-se de uma se vê malt ratado em sua asp iraç ão a es tar no ce ntro do uni-
apresentaç ão plástica e figurativa do gozo sex ua l, de fant a- verso , qu er tudo modela r a part ir de se u desejo e qu e aí se
sias atualizadas e figuradas sob a forma de pantomima'" . A articula se u desejo de se r um her ói, que o teatro va i satisfa-
pa lavra Darstellung ; cujo significado (entre outros) é: apre- zer dando-lh e a possibilidade de gozar de si mesm o co mo
sentação cê nica, ence nação , é traduzida aqui por "apresenta- " gra nde hom em ". O ra, es te desej o de grandeza é daq ue le~
ção plást ica e figura tiva" . Em suma: a iden tificação histérica qu e Freu d localiza e interpreta no âmb ito do narc isism o . E
rem ete antes "a ações (no se ntido dramático do term o)?": iden- por isto qu e, em " Para lnt rodu zir o Narcisism o" , e le vê um
tificação at iva, mim ét ica, represe ntativa ou figurativa, que para "estigma nar císico" num a ce rta atitude parental d iante de
nossa questão evoca as pr áticas de ator mais que as do es pec- um a cria nça :
tador. É por isto que "o histrionism o é um aspect o de cer tas
co ndutas histéricas". E o autor desta última obse rvaç ão acres- A criança tcrá mais di vertimentos que seus pais, nãoficará sujeita às

ce nta: "Às vezes foi evocado, rap idam ente, o paradoxo de ,~.i - I necessidades que eles reconheceram CO lIJO supremas lia vida , A doença, Do

morte, a renúncia ao prazer. restrições 11 sua vontade própria não a atingirão


dcrot a propósito desta insensibilidade que rec obre a co m~
[...], ela será mais Ul//II vez realmente IJ centro e IJ iÍlllalilJ da criação [...]. A
dos hist éricos" !", Não se pretend e dizer que os atores são his- criança concretizará os sonhos dourados que os pais j amais realizaram - o
téricos; apenas que , se nos apoiarmos na dic otomia proposta menino se tornará um grande homem e um herói " .
aci ma, a primeira categoria não aj uda a pensar o processo des-
crito por Frcud a respeito do es pec tado r. Com certeza, é possí- Compen sação em rela ção às miséri as da vida, rev anch e con-
vel que exis ta algum móvel deste tipo também no espec tador, tra a insigni fic ância, as der rotas , e, em fim de co ntas, so bre a
mas é no sentid o de que e le gostaria de representar, subir ao própri a co ndição hum ana: o parentesco deste trech o co m o
palco e , por tanto, isto se encai xa mais na hipótese de um a nosso sa lta aos olhos . A se qüênc ia do ensaio não de ixará de
identificação COII/ o ator. Ainda vamos vo ltar a isto, mas é co nfirma r isto: a reivindicação de gra ndeza é um traço nar-
interessante notar que aqui Freud nunca evoca es te as pec to cís ico imp ort ant e.
das co isas . A ide ntificação do espectador é co locada co mo iden- Esta ap rox imação procede do elo , estabelec ido por Fre ud ,
tificação COII/ o herói, co m o personagem represen tado. A ou- entre o desejo de gra ndeza e a categoria do ideal do eu, in-
tra vertente não é ex plorada - nas linhas citadas. trod uzida neste texto ' . Ten tem os seg uir seu raciocín io. Q uan-
Resta-n os, por tant o , exa minar a seg unda possibilidade : do os pais atrib uem ao filh o todas as perfe ições, es ta atitude
a da iden tifi cação narcísica. Esta hip ótese se re vela imedi a- é " uma revivescência e reprodução de se u próp rio narc isis-
mo , que há mui to aba ndo naram" !' . Este co mportame nto pa-

7. S. Freud , L'int erp rétat ion des rêves, tradução de I. Meycrson . revista
por D. Bcrgcr, PUF, 1967, p. 136. Grifo meu. (Em português: vol. lV da edição 11. "Pour introd uirc le na rcis ismo " ( 1914), tradução de J. Lap lan che, in La
Stundard , tradução de Waldcrcdo Ismael de Oliveira, p. 159) . vie sexuelle , PUF. 1969. p. 96. Grifo meu. (Em portugu ês: vol. XIV, da edição
8. "Considérations généra les SU l' I' au aque hysi érique" , ciladas por M. Sta ndard das obras de Frc ud, IJ(I . cit., tradução de Them ira de Oliveira Brito,
David-Ménard: " ldentifi cation ct hyst érie", em Les idauifications.... IJ(I. cit., Paulo Hcnriqucs Britto e Christiano Monteiro Oiticica, p, 1( 8).
1'. 84. Grifo meu. (Em português: IJ(I . cit.. p. 71.) *. A exp ressão "idéa/ du ntoi" esui traduzida na edição standard das obras
9 . J. Schottc, em Les identificotinns.... IJ(I . cit.. p. 192 . Grifo meu. (Em de Frcud por "ideal de ego" . Entretanto, em textos e traduções mais recentes,
português: IJ(I . cit.. p, 148) . aparece co mo "ideal do eu". Optaremos por esta última forma se mpre que a
10 . O. Mannoni, "Le th éâtre ct la folie", em Clefs pou r linraginaire , IJ(I . expressão aparecer no texto de Den is Gu énoun. (N. da T.)
cit.• pp. 302-303. (Em portugu ês: IJ(I. cit.• 1'1'. 3 16-3 17). 12. 0(1. cit.. p, 96. (Em português: IJ(I . cit ., p. 1(7 ).

82 83
rental permite, portanto, remontar, " por um raciocín io re- líder ou o herói de um a multidão, mas , neste caso , fora do
corren te" , ao narcisismo primário de sua própria infân c ia, teatro 17. Podemos, portanto, con cordar com O . M annoni qu an-
estrutu ra que nun ca é observad a d iret amente. A hipótese deste do ele escreve, lendo precisamente o texto de Freud de que esta-
narcisi smo primári o nas ceu da an álise da demência pre coce , mos tratando: "O teatro perm ite ao espe ctador identificar-se com
ou esqui zo freni a. "Este tipo de paciente [...1 e xibe duas ca- um herói (quer dizer [...1que se trataria de uma identificação no
racterísti cas fundamentais : megaloman ia e des vios de seu nível do ideal do EU)"'X. A identific ação com o herói investe-o,
interesse do mundo exteri or"!' , O delíri o de grandeza é, por- port anto , como figura do ideal do eu. I~ nisto que se trata de
tanto , uma das marc as distintivas do narc isismo primário, uma identifi cação : o herói aparece para o espectador como um
que produ z uma espécie de auto-suficiênci a: " o encanto de ideal do eu, precisamente co mo um eu idealizado.
uma criança res ide em grande medida em seu narcisismo, O que permite talvez resp onder enfim, à questão: quem se
seu aut oc ont entamento e inacess ibil idade '" :'. Ora , esta auto- identifi ca? O espectador ? Dize r isto não basta - nossa que stão é
sufici ên ci a e o sentimento de grandeza que pode est ar lig ado antes desdobrada por esta atribuição , tendemos a perguntar: quem
a ela sã o maltratad os pela vida e pela cultura . As aqui siç õe s é aquele al i, "o espectador" ? Porque, na economia do que os
c ulturai s dev em ser "extorquidas" ao narc isismo, elas supõem psicanalistas chama m co m freqüência "o sujeito" , o que (aqu ele
o aba ndo no de tod os os tipos de privilégio infantil, dos qua is ou aquil o que) se identifica ao ideal do eu é, sem dúv ida, algu-
o nar c isismo se alimentava ". O abandono das prerrogativas, ma coisa co mo o próprio eu . É o eu que se d ividiu em eu e ideal
a violê nc ia sofrida encontram um a forma de compensação do eu , e a identifi caçã o é a elimina ção imaginária dest a diferen-
na form aç ão do ideal do eu, ça; a identificação é a identificação do eu com o seu ideal . A
iden tific ação pode ser compreendida com o es ta reabsorção ou
Esse ego ideal é agora o alvo do amorde si mesmo desfrutado na infância esta assun ção do eu e m sua idealizaçãa , no êx-stasc' destafra-
pelo ego real. O narcisismo do indivíduo surge deslocado e m direção a esse ção de eu que se desprende (do eu , de mi m) para se produ zir
novo ego ideal, o qual, como ego infantil, se acha possuído de toda per feição de
valor. [... O homem] não está disposto a renun ciar a uma satisfação de que
co mo idealid ade . É o eu que se fig ura co mo seu idea l: aqui, o
outrora desf rutou [...] ele procura recuperá-Ia sob a nova forma do ideal de ego . herói de teatro. A resposta à que stão quem? Seria, portanto: o .
O que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo eu. M as e ent ão? Quem é o eu? Não se pode eludir o fato de qUj'
perdido de sua infância!". o eu seja co nsiderado, ao men os desd e Lacan, como esta co nfi-
gura ção essencialmente imaginária , const ituída desde o fam o-
Portant o, a vontad e de reva nche , de comp ensação diant e das
so "estád io do es pelho" , como imagem (especular) do eu'", Seria
mutilaçõ es imp ostas ao narc isismo pela vida e pela cultura es-
possív el , e ntão , di zer : o espec tado r (o u: aq ue le qu e se identi-
tão na raiz da formação do idea l de eu. O ra, em um a fase ma is fica) é ex ata me nte esta fo rmação imagin ári a que se co nstitui
primária , são estes mesm os processos que, como vimos, produ-
zem, se gundo Freud, a identi ficação co m o herói de teatro. Po- 17. Frcud, Psych oiogic desfoules et ana lyse du 1II0 i , cap. 7 e 8, em Essais
dem os , ent ão, supor que o herói de teatro aparece aqui para dar de psichunalys« , Payot, 1981 , pp. 167- 18 I. (Em português: vol, X VIII da cdi-
IIIn rosto a este ideal e que aquilo com que o espectado r se ção Standurd, 0/' . cit., pp. 133-147.)
18. O/I . cit ., p. 170. A continuação da an álise de Mannon i diverge clara-
identifi ca quand o se ide ntifica com o herói é um a de suas atua-
mente da que estou propondo aqu i. Volta rei a ela mais adiante .
lizações possíveis - como, em outras circunstâncias, o ch efe , o *. O prefixo ex- indica movimento para fora c stase rem ete a estagnação,

pm~lda .l?x-s ti/.I'e seria, port anto, uma arra ncada para fora da estagnação. (N. da T')
13. lbid. , p. 82. (Em português: 0I'. cit., p. 90). 19. Lucan, "Lc stade du miroir co mmc Iormarcur de la fonction du Je"
14. lbi d., p. 94. (Em português: 0/'. cit., p. 1( 6). ( 1949), em Ecrits, Scuil 1966, p. 93 sq. (Em port uguês: "O Estádio do Espelho
15 . lbid., p. 96. como Formador da Função do Eu", em J. Lacan, Escri tos, tradução de Vc ra
16 . IN d., p. 98. (Em português: 0I'. cit., p. 111 ). Ribeiro. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 1998, pp. 96- 103).

84 85
acima ou diante do s esp ectadores co mo o eu daquele qu e imagens. Ist o não é co ex tens ivo a todo teatro, Isto é o produto
o lha o teatro' . O espectador é o eu . O que permite, sem dúvi- de um a hist óri a e acont eceu conosco.
d a, qu e cada espectador e fetiv o afirme , doravante: " o espec- Ainda falta explicitar nossa últim a afi rmação: o espect a-
tad or "-- so u eu . dor é (o) eu. Falta compreender como se produz esta o pe ração,
Por qu e dora vant e'l Porque este mod elo não de screv e um a qu e é tamb ém lI/11a identifica ção: identificação dos espectado-
es trutura d a ex periênc ia teatral adq uirida para se m pre, nem res com () espectador, produçã o desta identidade essenc ia l,
mesm o coexte nsiva a tod o fat o de teatro. Es ta estrutura rep ou- gera l e s ing ular, qu e su-põe ' e ntão () espectado r na platé ia,
sa inte irame nte, como di ssem os , so bre a ilusão, e uma da s .~ll vez dos espect ad ores que es tão efeti vam ent e ali. Produ çã o

du as garantias qu e a ilusão requ er é que IIIdo aquilo IIÜO pa s- ima gin ária , mais um a vez: porque o espectado r não es tá em
sa de 11111 j ogo , qu e tud o o que aco ntece em ce na não aco ntece part e a lguma a não se r no imagin ári o teat ral , o qual , e m bre -
ve rdad e irame nte, que o ator não é aquilo que ele representa e ve, produzi rei e feitos de realidade : a invenção do e nce nadoj "
que, portanto, o herói não é ele. Nã o foi estabelecido simu lta- sem dú vida, nad.a mais é do que a vontade de col ocar um es-
neamente à em erg ên cia d a mimêsis qu e o ator e o her ói sej am pectador determinado no lugar do espectador e dotá- lo de to-
dois e leme ntos separados, heterogêne os, da ação teatral?". N ão elos os poeleres. Esta identificação, muito mais profunda, secreta
há identificação possível (do espectad or) que não seja imagi- e difícil de ex ibir, visto que está escondida nas profundezas
nária. Foi necessário, antes que o esquema da identificação d o (daí em diante) sombrias da platéia, pode ser interpretada à
espectador tom asse forma, antes que pudesse advir no palc o luz de um o utro texto de Freud, no qual ele escreve:
a lgo como o imaginário, que a cena se tornasse portadora de
Após as discussões ante riores!' , estam os, no entanto, e m perfeit a posiçã o
de fornecer a fórm ula para a co nstituição libid.inal dos gr upos, ou, pelo meno s,
*. No o riginal. regardant : olhante, (N . da T. )
de grupos como os qu e até aq ui co nside ra mos . ou sej a, aq ueles grupos qu e t êm
20 . End osso aqui . no essen cial . a a nálise que Robert Abirached faz do es ta - lIIil líder (... ] Um g rupo pr imário desse tipo é um ce rto núme ro de indi vídu os
tut o do persona gem e m La crise du personnage dali.' te th éãtre moderne, qu e co locaram um só e mesm o objeto no lugar de se u ideal do ego e, canse -
Grnssct 197 8, reed . Gallimard -TeI 1994 . Mas co m a segu inte nuan ce : o q ueelc qiie nte ntent e. se identi fica ram uns comos outros em seu eJ.:(}22.
des igna co mo "o proto colo da mim cse", se aí ve mos a se pa raçã o e ntre ato r e
personagem, caracte riza. no meu e ntende r, precisamente "o pe rso nagem" e m Tr ata-se , par a Freud , do líder , o u de uma idéia, e nós
sua determinação moderna. e não me parece, apesar das apa rê ncias e m co ntrá-
acrescentarem os qu e , no caso d o teatro , trat a-se de uma fig u-
rio c dos efi cazes argumentos a prese ntados por ele , ter adq uirido esta es trutura
desd e Aris t óteles. Ta mbé m não atr ibuo isto a Dide rol q ue d iz: "é um a fónnul a ra , o her ó i (imag iná rio) ; e , por outro lad o, da identificação
dad a pelo ve lho Ésq uilo : é um protocolo qu e da ta de três mil a nos" (ofl . cit., p. dos indiv íd uos entre si, "e m se u ego" !' . Se co locamos estas
79. Em po rtuguês: OI'. cit ., p, 39). Na mesma medi da e m qu e a a nálise de
Ab irac hcd é lotaiment e convince nte no qu e d iz respe ito à imi taç õo dos moder -
II OS (para reto mara be la fórmula de Lacoue-La bnrthe ), parece-me qu e so me nte
*. Co loc a por baixo. Ao pre fixo sub-, qu e sig nifica debaixo , j unta-se o
po r um a ilusão re trospectiva a fórmula de Dide rot se rv iria para caracter izar a verbo 1'(lJ1O , p onho, coloco ; co m o en surd ecim ent o do b de sub. tern os suppo -
110. (N. da T. )
mimêsis da qu al nos fala a Poética . Tal ve z a que stão tenh a sido susci tada pel a
tradução de mimêsis por imitação. "Sa be-se hoje , de forma, ao qu e par ece, 21 . Traia-se precisa ment e de co nside raçõe s so bre a identificaçã o.
definiti va , que o se ntido pr imeiro de mhuêsis não tem nada a ve r co m a imita-
22. Psycttologie desfoules.... op. cit ., p. 181. Grifo meu . (E m portu gu ês :
ção de uma figura quc j á estar ia dad a em algum lugar e qu e nos int roduz num a OI'. cit., p. 147 ).
23. Para sermos ho nestos, obser vare mos qu e, nest as linhas. Freud só rala
es péci e dc pe rspectiva de represen tação e rep resentativa. O se ntido prim eiro de
de idcruificação neste seg undo nível. É que se trata de um text o no qual ele
mí,lleS;.\· provém do universo da danç a. Ele traduz o aspecto ' dançante' da re-
presentação. no se ntido teatral. no se ntido da dramati zação" (Declaraçõe s de J.
mant ém ainda, pro visoriamente. a distinção entre identificação e es co lha de
obje to que , entret ant o, j ri est á aí posta e m questão e qu e se rá, ao que pa rece ,
Sch oue, rep rodu zidas em Les identificati ons .... op. cit., p, 107). A co isa nã o
pare ce. no e ntanto. tão "definitiva" qu ant o ass eg ura este int érprete. Cf. Du- ma is ou men os aband on ada nos text os posteriores, nos qua is toda identificação
pont -Roe c Lall ot em La Poétique , OI'. cit.• pp . 17· I8. se rá col ocada co mo objetai .

86 87
linhas e m re lação com o texto que forneceu nosso fio até ***
aqui , fica claro que o primeiro elo (escolha de objeto: o líder,
a idéia, o herói), opera também como identificação. Nós nos A esta abordagem de Freud , teoria do espectador enun -
permitimos , portanto, propor, finalmente , o esquema de um a ciada de um ponto de vista de espectador, respondem , segun-
identificação (teatra l) dupla : com o herói , por um lado , o do uma c lara simetria , as an.álises de Stanislávsk.i : teor.ia.~dO
qual "toma o lugar" do ideal do eu, e, por outro lado, no ator pensada a partir da posição do ator. Na mesma medida
nível do eu , o qual assume a identificação dos espectadores e;ll que Freud, por seu lado, e não apenas neste texto, claro
entre s i. É por isto que há, necessariamente, no teatro, Plur~'l' tenta analisar o que vê o olhar d irigido para a representação
lidade de indivíduos no público; para que o espe ctador pos Stanisl ávski tenta evidenciar o que mostra aquele que repre
sa teatralmente considerar um personagem, nela pode haver senta. Chama a atenção sua conternporaneidade'", mesmo
um espectador solitário. Apesar da aparência , a relação tea- que os principais textos do encenador russo sejam um pouco
tral nunca é dual : porque a identificação teatral é dupla, por- mais tard ios do que o breve ensaio do fund ador da psican áli-
que a identiticação com o herói é sempre sustentada pela se . Nem um nem outro se satisfaz com as abordagens consc--. i-
identi ficação mais profunda dos espectadores entre si e por- entes, embora Stanislávski, a julgar pelas versões francesas I
que é preciso que haja vários para que se identifiquem uns disponíveis , fale ma is em sub (do que em in- ) conscienieç]

~
aos outros. De modo que a cond ição de possibilidade (que m todo c aso, como Freud e muitos outros, ele considera
poderíamos chamar ele pa radoxal) da posição do espectador indiscutível a distância entre o ator e o que ele representa.
é a existênc ia dos espectadores enquanto coletivo. São ne- e acordo com seu ponto de vista (de ator) , ele se coloca
cessários espectadores para que algo como o espectador possa realmente, melhor dizendo, exatamente, no vazio desta dis-
~ c o r re r
e se produzir como assunção imaginári a. tância, no intervalo entre os dois dentes de um forcado . E o
. O dispositivo teatral mudou . A rel ação frontal entre cen a objetivo de seu trabalho é determinar procedimentos c apazes
e platé ia se co mplica , se desdobra. Agora, entre o ator e o de aproximar o ma is possível, de fazer com que se encon-
público (efetivos) , instaura-se o face a face (imaginário) do trem estes do is ramos que tudo separa, fundam entalmente
personagem e do espectador. A relação teatral é clivada, ima- distantes um do outro. Tr ata-se de chegar ao ponto onde será
ginariamente replicada em sua constituição interna. O que "estabe lec ido este co ntato entre a su a vida e o seu papel" .
podemos representar por um esquema, no qual cada seta re- "Representar verdadeiramente significa [...] pensar, lutar,
presenta uma identificação - un ívoca para o ator, em dois sentir e agir em uníssono com seu personagem'v". A distân-
níve is para o público : cia entre o ator e o que ele deve representar estrutura o lance
inici al , é preciso fazer todo o possível para reduzi-Ia. É o
próprio movimento da identificação.
EFETIVO IMAGINÁRIO Par a designar o ponto de conjunção que é prec iso alcan-
çar, Stanislávski não emprega este termo, mas diz : viver seu
Ator papel ou viver seu personag em . " E m noss a arte, é preciso
Personagem viver o papel a cada instante que o representamos e em todas
I
I
T
O espect ador
PÚbliCO~ 24. Freud: 1856- 1939, Stanislávski: 1863-1938.
25 . Stanislávski, l.afonuation de l 'ucteur, traduçã o de E. Jnnvicr, Payot ,
1963, pp. 55 e 21. (Em portugu ês'. fi Preporação do Ator, tradu ção de Pontes
ele Paula Lima, Rio de Janeiro, Civilização Brusilcira, 1968, p. 76 e 43) .

88 89
as vezes. [...]. Estude os fundamen tos da nossa esco la de atua- diato ou em bloco: o que dá ao "sistema" es ta e laboração
ção , qu e são os fundam entos de co mo viver se u papel?": O co mplexa q ue o caracteriza . O elo é ati vo llOS dois sentidos:
que sig nifica: viver seu papel ? Norm al mente o que se vive é "Antes de mais nada, é prec iso assimilar o seu model o" . Aqu i
a próp ria vida . Vive r se u papel é empen har sua própria vida os dados do pape l são integrados, incorp orados. A relação é
na vida supos ta do papel repr esentado. E mesm o se enten - orientada do perso nage m pa ra o ator. "Todo esse trab alho
der mos a exp ressão com o sentido de "experime nta r inte nsa- [...] permitir -lhe- á impregná- lo com os seus sentime ntos pes-
me nte " , como qu a ndo se d iz "v iver uma situação, um soai s"!". Aí, em con trapartida , o trabalh o se tran sfere da vida
aco ntec ime nto" , o res ultado se rá o mesmo, em fim de con - do ato r pa ra o se u pape l: a flecha iden tificadora avança na
tas : porqu e, neste se ntido, viver seu pape l é ex pe rime ntar direção inver sa. É uma das riquezas do mé todo, que é, al iás,
intensame nte os se ntime ntos que susten tam a vida do papel. bas tante rico ; o trabalho se apó ia sobre os do is pó los; ele não
"Se não se 'vive' seu pe rsonagem, não pode haver ar te ver- prescreve ape nas uma ingestão dos dados supostos do perso -
~~deir~; e isto só com~ça quando '" sentimentos inte r~êm"27 . nagem; e le proje ta tam bém neste os móve is próprios do ator.
L~,1ver e, antes de ma is nada, sen tir. As ações se artic ulam Ele associa igua lme nte, de modo elaborado, o sentir e o agir,
com os sentime ntos . Não se trat a de rep resentá- los o u de artic ulados pela suposição, a técnica do se: "Os se nt ime ntos
imit á-los mas de vivê-los : Sta nislávs ki se opõe, po r este viés, despertados manifesta r-se -ão nos atos dessa pessoa imagi-
ao que ele chama de "a escola da represen tação" cujos seg u i- nária, caso ela fosse colocada nas ci rcuns tâncias de te rmi-
do res reprod uzem "fo rmas ". Eles "acham, de fato, freq üe n- nadas pela pe ça'?' . E sab e-se que, so bre este pon to, a reflexão
temente, q ue não é aco nse lháve l sentir depois q ue j á se de Sta nislávski não deixará de se apro fundar, até o "métOd~
dec idira m so bre o padrão a ado tar." O utros, que pra ticam o u" ,çõ" 1[,;,",", que tardiamente R"e"," q"a,~Tnve"'"
que ele chama de uma "a tuação mecânica" , " não procuram ãfticulacão mirn ética: vis to qu e , aó co ntrá rio do esq uema
experimentar os se ntimentos do personagem" . A um aluno, co rre nte, ele se funda rá sob re o real do cOfllllOf amen to cêni-
e le censura: "E co m que [você abo rdo u se u pape l]? Com se n- co para dele 'çleduzir as co rre lacões narrat iva.§;
timen tos verdadeiros, equiva len tes aos do person agem q ue .- O que nos importa aqui é que, em todos os casos, a realidade
você encarnava? Não, você não ex pe rime ntava nenhum ?" . do personagem é incansavelme nte co locada como imag in ária.
O objetivo é , portanto, en trar em re lação est reita com os
se ntime ntos su pos tos do papel. Stanis lávski decompõe mi- Vocês ago ra sabe m q ue o nosso trabalho numa peça principia com o uso
do se, como alavanca para nos erguer da vida quotidiana ao plano da imagina-
nuciosa men te o processo des ta suposição?". A análise é suti l,
ção . A peça, os seus papéis, são inven ções da imaginação do autor, uma série
a identi ficaç ão da qua l se trata aq ui não ope ra de mo do irne- intei ra de ses e de circuns tâncias dadas , cogi tadas por ele. A rea lidade fatual é
co isa que não existe em ce na. A arte é produto da imag il;ação, assim como a
26. Ib id., pp. 25 e 36. (Em portu guês : 0I'. cit. , pp , 47 e 56) . 'o bra do dramaturgo . O ato rlJeve ter por obje tivo aplicar sua técn iea para fazer
27. lbid.. p. 30 . Gr ifo meu. (Em português : "Não pode haver arte verdadei - da peça uma rea lidade teat ral. Neste pro cesso o maior papel cabe, sem d úvi-
ra se m vida. Ela começa onde o sentimento assume se us direitos", 0I'. cit.; p. 53 =
da , à il/lagil1a('ao·'-. =
(Apesar de as traduções francesa e brasileira partirem do original em inglês Ali
Actor Prepa res, há peq uenas discrep âncias entre elas. nos trechos citados por A paisagem esta rá, então, satu rada de imaginário. Tan to o
D. Guén oun. Sempre que isto oco rrer, trad uziremos lir eral rn entc no corpo do
person agem como a peç a são entidades fictícias , cujo tornar-
texto a citação do autor e reproduziremos no pé de p áginaa trad ução e m POl1U-
guês.). (N . da T.)
se-at ivo é desencadeado po r su posições, os ses. Dia nte des-
28. lbid. , pp . 27 -29 , 31-35. (Em po rtuguês : OI'. cit ., pp. 49 e p. 55: "E com
que [você abordou seu papel]? Com sentimentos orgânicos, verdadeiros , cor- 30 . lbid ., p. 28. Grifo meu. (Em port uguês: op. cit., pp . 49 -50) .
respo ndentes ao da pessoa retratad a? Você não tinha nenhum") . 31 . lbid., p. 55. G rifo meu. (Em port uguês : OI'. cit., p. 76).
29 . lbid., p. 52 sq. (E m português: 0I'. cit., p, 73 e ss .). 32. lbid. , p. 6 1. Grifo meu . (Em português : OI'. cit., p, 8 1).

90 91
sas entidades , a açã o do ator con siste em duas operações es- Você pode dizer a si mesmo: " Vou ficar como simples espect ador, obser-
tra nha me nte inversas: pr imeiro, ab ordar a peça com a ajuda var o que minha imaginação me sugere, sem tornar parte de forma algu ma
nesta vida". Ou então, se você decidir se entregar às ativida des desta vida ima-
de suas pró pr ias su posiçõs;s para passar da vida de rodos os
ginária, você vai representar mentalmente em meio a seus companheiro s e ain-
5!!as pa ra (] dom ínio da ima'jif,lação. Trata-se então, co m o da assim permanecer á um espectador passivo . Ao final, vocêficará cansado
veremos nas pág inas seguintes, de pre en cher ima gina ria me n- de se r sempre espectador; e terá vontade de agir. Ent ão, enquant o purticipan-
te os vaz ios de ixad os pel o im ag inário do texto. O texto não te ativo desta vida imaginári a , você não verá mais a si mesmo, 1l1aS apenas o
satura o im aginá rio, ele aprese nta ape nas um traçado lacu- que o cerca e vivendo realm ent e neste ambiente reag irá interionne nte'",
nar, interm itent e: as falas, as ind icaç õe s cên icas são sempre
muito pobres" . Cabe ao ator compensar essas lacunas pOI: ------.-.
Freud , co mo vim os, ca rac te rizava, de alguma mod o, o es-
pec tad or co mo aq ue le qu e se e ntcdi a" . Ented iá-se co m s ua
seus própri os recu rsos ima gin at ivos. Em segu ida, ele de ve rá
vida, c ujos vaz ios desej a preen ch er. S~n i s l á y s k i co m ple ta
ut ilizar sua técnic a Jara o er . uma e é ' de mo vimen to
o di sp ositivo . Par a e le , " o ve rdad e iro ator é aqu el e que de-
.-2 reviravo lta e tran s{orrnar a peça ( imagi ná ria) em uma
seja cr iar em si mesm o um a ou tra vid a ma is pro fu nda, mais
rec . lát ica , uer dizer, nesta espé cie de real idade
inte ress a n te do que aq ue la q ue o ce rca na real idade" )".
de te rm inada que se produz e m cena: nao a real idade exter-
jiã, que está au sen te ah, mas a realidade propriamente cên i-. 'A mbos se nut rem, pois, inic ia lme nte, na fonte de uma pro~'
funda insati s fação di ante da vida com o el a é . O at or passa
ca, dr am át ica , a realidade da atuaç ão e da representação . E ,
ao ato. Mas es ta aç ão dram ática , co mpe nsaç ão da vida in-
.nesta segunda fase , a ima ginaçã o é ainda cons ide rada ~mo
suf iciente, lacunar, va zia , é ainda uma ação do imagi.!.J.illiQ.
o ag ente de cisi vo . É por isto que , se o ator quer se torn ar apto
~,"
A ssim o im agin á rio se torna prát ico, ag e nte . O teatr o é es te
a real izar o conjunto de ss a o pe raç ão , sua ima ginação de vei
ca mpo que permitirá , e ntão, viver (] ima gin ári o, praticá-lo .
ser a tivada, desenvolvida, e nriq uecida, posta a trab alha r.ÉI
I O ol ha r já é aí remeti do par a as imag e ns . E e ntão a pr ática
ela qu e deve torn á-l o apto a fazer funcio nar, duplamente, ~
do teatro se satura de imag ina ção , torna-se um imag iná rio
inter-relaç ão e ntre o real (da atuação) e o imag inário (d~
ati vad o. A vid a do tea tro será, a part ir deste mo me nto uma
papel) . A imaginação é este operad or por meio do qual o ato r
vid a imagin ária" , e la é es te domíni o sin gul ar q ue se mos-
se tran sp orta para a imag em e afeta, na apresentação da ima-
gem , a at ividade de seu corpo, de sua vida. Movim ento inin-
terrupto de ida e volt a: de transferênci a (imagin ária) par a o 34. lbid., p. 70. Grifo meu. (Em português: "[Você] pode dizer a si mesmo :
papel e de reco nversão da ima ge m ass im inve stida de efeti- 'serei um simples espectador, observando o que a minha imaginação pinta para
mi m, enquanto não tom o a menor parte nessa vi da imaguuiria?' O u, se resolve r
vidade dr am ática , cê nica .
parti cipard as .uividadcs dessa vida imaginária, visualizur ámentalmente os seus
Ass im, o ima g inár io está e m tod a parte: em tod as as associados, e com eles você, e, mais uma vez, será um es pectado r passivo. Fi-
al av an cas de coma ndo, em toda s as engrenagen s, e le sus- nalmcnrc, .fic(mí cansado de bancar o obse rvado r e quererá agir. E nt ão,
tenta todos os rebites e corre ias de sta máqu ina. Ele é , de- como particip an te dessa vida imagin ária, não mais se enxergará a si próprio,
mas apenas vcni aquilo que o cerca e reagirá interiormente a isso, pois você é
cididamente , o mes tre do )ogo .É ele que e ngre na e rec olhe
uma parte real deste lodo". OI'. cit. , p. 89) .
a ide nti ficaç ão do a to r, assim co mo, em Freud , el e man ti- 35. Observado por O. Mannoni, op. cit ., p. 171.
nha a do espectad or sob se u domíni o. E es ta identificação é 36. 0 /1. cit. , p. 50. (Em português: "Todo aquele q ue é de veras um artista
ativa. El a permite ao at or não ser mais espectad o r de se u deseja criarem seu íntimo uma outra vida, mais profunda, mais interessante, do
pap el. que aquela que realmente o cerca.", op. cit., p. 71).
37. Cf. Snnre , " La vie imag inaire", e m L' íntaginai rc. Gallimard, 1940,
reedição Folio, 1986, p. 237 sq. (Em português: ° lnutgi núrio: Psico logia
Fcnonicnolágic« da lniaginação. Tradução de Duda Machado. São Paulo:
:13 . Ibid ., pp. 62-63. (Em port uguês: 0/1. cit., pp. 82-83). Ática, 1996).

92 93
tra capaz de dar vida ao imaginário, de fazer dele um ima-
ginário vivo .
Talvez seja Sartre quem forneça o desenho mais rigoro-
so para este esquema. O ator, escreve ele : "vive inteiramente
num mundo irreal. E pouco importa se chora realmente, ar-
rebatado por seu papel. [...]. Aqui ocorre uma transformação
semelhante àquela que indic ávamos no sonho: o ator é engo-
lido , tragado pelo irreal. Não é o personagem que se realiza
no ator, é o ator que se irrealiza em seu personagem.':" Mas
o espectador não é poupado por esse movimento. "O irreal só
pode ser visto, tocado, cheirado, irrealmente. De maneira
recíproca, só pode agir sobre um ser irreal'?". Ator efetivo e
espectadores concretos se eclipsaram do novo lance. A irrea-
-
e:,
lidade do teatro se tornou sua potência, o regime determina-
do de sua constituição.

IV

Ora , este sistema que acabamos de descrever - no qual a


identificação articula as diferentes instâncias, do ator com
seu papel , do público com o espectador e deste com o herói-
também não é o sistema de nossa experiência. Nós não po-
demos mais formular nestes termos o que nos acontece, o
que fazemos ou vemos no teatro. Esta fase de nossa história
se distanciou de nós - ou nós nos distanciamos dela - isto é
tão certo quanto o fato de nos termos tornado estranhos à
fase que a Poética descreve. Ela nos parece mais próxima, e
é mesmo , sob o aspecto cronológico. A ponto de tornar obscura
nossa experiência, que tentamos interpretar com a ajuda de
suas categorias. Mas se observarmos o que acontece, com olhos
atentos, a constatação é irrefutavel: saímos desta economia,
irremediavelmente. Faz pouco, é certo , pelo menos segundo a
escala da história de longa duração . Mas saímos.
I No tocante ao ator, isto parece discutível. A identifica-
ção ainda tem muito prestígio. A consciência das mutações
38. 01'. cit., pp. 367-368. (Em português: OI'. cit., p. 249).
39. lbid., p. 262. (Em port uguês: 0/' . cit., p. 180). é, como sabemos, tardia - ela ocorre a posteriori. Descul-

94 95
peru-me se recorro a um ex emplo prático. Nunca fui um ator ou melhor, eu me vi tomado por algo que não me era absoluta-
notável, mas , mesmo assim, atuei durante mu itos anos e m mente indi ferente. No entanto, o termo identificação me pare-
di ver sos palc os ' . Nunca me pareceu que eu me identificasse ce infiel àquilo que, nessas circunstânci as, eu vivi.
a nenhum dos pa péis que desempenhei. Qu ando , com qua- De maneira mai s significativa, sem dú v ida, tiv e , num
torze a nos (a ida de em que as identi fica ções se realizam com trabalho co mo encenador as s íduo e polimorfo , que d ir ig ir a
mu ita faci lid ade), representei Trissotin", e u não me "tom ava apresentaçã o de obras mais tip icamente "dr amáticas" . Ten-
por" Tr issotin . É verdade que se tratava de comédi a , na q ual tei respe itar a estru tura del as , com pers onagens e si tuações:
a ide n tificação se retrai , co mo se d iz. Brccht o bserva va : " O pen so não ter nunca buscado obter dos at ores qu alquer tipo
e fe ito de distanci am ento é um procedimento artístico a ntigo ; de identific ação. Tive a sorte de trabalhar, d ia a d ia e por
pode-se enco ntrá-lo na co méd ia") . Porém mai s tarde - para an os a fio com alguns atores inspirados", entre os quais Pa-
me a te r às experi ên cias mai s marc antes - eu também não me trick Le Mauff, ator ab solutamente ex cepcion al , cujo trab a-
ide ntifiq ue i nem co m B rutus , nem , g raças a D eus , co m o lho , IOdos os dias , me dava um a liçã o de tea tro , Ac onteceu de
C rist o". É verd ad e que prati c ávamos um teatro antipsicoló- produzirmos juntos, dep ois de meses de tensão compartilha-
g ic o, de sconstrutor das identidades e d os papé is, teatro de da, e le em su a prá tica co mo ator, eu como aquele que observa ,
montagem , de poesia mutante , de col et ivos proteiforrnes , cria ções de pap éis cuja força me parec e hoj e ainda justificar o
polêmico e de intervenção , profundamente p ós-bre chtiano valor metafísico da vida'. Não me recordo de o ter ouv ido ,
e m bo ra sem perceber isto com cl areza. Mas justam ente : nós nem vis/o, identificar-se a algum pers onagem ou herói.
não pr aticávamos este tipo de teatro po r acaso nem por c a- Ma s se pod e sempre supor que se trata de uma idios-
pr icho . E numa de m inhas (ra ras ) e xpe riê nc ias de viés ma is sincrasia da equ ipe". Vam os, en tão, recorre r a uma práti-
trad ic ion al , não acredito " ter pensad o q ue e ra" um com iss á- ca comum: a de espectad or. Quem afirm ará que nos so mod o
rio pol ítico stalini st a quando me coube defender o pap el num de experiênc ia do teatro cons iste em se id e ntificar aos per-
teatro dos Bulevares ' , Em todos esses caso s, eu me tomei por, sonag ens figurado s di ante de nós ? N ós não nos reco n he-
ce mos mais e m Rodrig o", nó s nã o " s o m o s" m ais, em
I. So bre es te itine rário, c f. Deni s G ué noun , Rclation, Les Cahiers de nenhuma instâ ncia , Fe dra, Lor enzac ci o nem Prouh êze" .
I' Ég a ré, 1997. Ist o nã o s ig ni fic a qu e as questões del es não no s "toc am "
2. Lcsfenunes savantes [As Sab iciumus, de Mol ie re] , Associat io n ora - mais , nem que nó s não podem os aplicar a lg o das hi stórias
nnise de th éâtrc amarcur.j ard im da escol a l3ert hel ot e m Orã . Cf. Oran rép ubl i-
deles a qu e stões , o u seq üê nc ias que sejam nossas , Ao ver
caiu, 25 -26 sct., 1960.
J . "P re mic r uppc nd ice à la th éorie de L'AcI/lI1 du cu ivre", em Ecrits sur
le th éâtre /, I' A rche, 1972, p. 620, e Journ al de travail, I' Arche 1976, p. 108.
Esta re serva e xigir ia um desen vo lvim ent o mai s a profundado: o c ômic o, com aven idas de Par is, a prese nta va m-se, a pa rt ir do s éculo XIX , peças de ent rete-
ce rteza, não atravesso u a época da iden ti fi cação se m se comp ro mete r co m ela . niment o, e ntre as qu ais destaca va-se o gênero q ue ficou con hecido corn o "teatro
Es pero poder vo ltar com ma is ca lma a esta que stã o. (E m portuguê s: A Comp ra de boulevard", co médias lige iras que faze m até hoje a del ícia do gra nde públ ico).
do Latüo, tradu çã o de Urs Zub er com a co laboração de Pegg y Bc rndt, Lisboa, (N .daT. )
Vej a, 1999 e Diár io d e T rabulho, vol. I, 19J 8- 194 1, trad ução de Rei nald o 6. Michcl e Go ddet , Phi lippe Vincen ot , en tre outros .
Gu a rany e José Lau ren io de Mel o, Rio de Jan ei ro , Rocco , 2( 02). 7 . Pa ra ci ta r o ine squecível : Mic he lâ ngelo em Le Printenips (C ha tca u-
4 . Resp ec tiva me nte e m .ILÍ~o César , de S ha kcs pca re, com a co mpa nhia vallon, 1985), Fa usto e m Fal/.I'I (C DN de Re im s, 1987).
L' A ttro upcmcnt, Avign on 1976, 'i X ou /e petit tuyst ére de la passi on, C DN de 8 . A resp eit o do co nj unto de sta ex pe riê nci a, ci. Relati on, "1'. cit., ca ps . 11
Re ims, 1990. \ e 111.
5. Em Zulinen IIU tajo lic de Dieu, de E lie Wiescl , e ncen aç ão D. Em il- " Rodri g o: he rói da tragé d ia de Cornei lle, O Cid. (N. da 1'.)
fo rk, Th éât re de la No uve llc Corn édie (La Potinierc) , Par is 1974 . C f. J . J . G au- "* Prot ag onistas de Rac ine , Alfred de M uss ete Paul C la ude l, res pe cti va-
tier em Le F iga 1'0 , J 1. 10.74. (Na área dos grandes Boul c vard s, ou gra ndes me nte , em Fe d ra, Loren racci o e Le so ulier de satin. (N. da 1'.)

96 97
Beren ice ' (e ma is ainda ao ouvi-I a), ou Leal', ou A Gaivota, lar" que "qu ase não convivem entre si; é como uma reunião
alguma cois a que é da ordem do meu amor, da m inha loucu- em que todos dormissem profundamente e fossem , simulta-
ra, da m inha vida fracassada me agita. Mais exatamente: o neamente, vítimas de sonhos agitados" . Ele s, acrescentava
modo pelo qu al se opera est e toque, este co ntato , esta conta- Brecht, "têm os olhos, ev identemente abertos, mas não vêem
minação
,
poét ica não pode mais ser pensado como identifica- ---, [...1. Olham como que fascinados a cen a, cuja forma de ex-
ção. Não vamos mais ao teatro para experimentar esta espéc ie pres são embebe suas raízes na Idade Média, a época das fei-
de abandono, de esquecimento ou de proj eção de si meslíw...... tice iras" . Brecht observava neles o "estado de enlevo em que
no personagem. Não que não experimentemos nada da or- se encontram e em qu e parecem entregues a sen sações inde-
dem do abandono, do esquecimento ou da proj eção. Mas não finidas mas intensas" e concluía que
i o personagem como tal que os fixa . J te.lgo de ma is ~ o m ~
plexo, em gue está em jogo o todo da rep resentação..c..que nós o es pectador de seja usufruir de se nsações bem deter min adas, tal C0 ll10 uma
V'iimos ter ue com reender. Não há mais, no teatro , heróis, cri anç a, pore xemplo [...]: a sensação de orgulho por saber andar a cavalo e por
ter um cavalo, [...] o so nho eheio da ventura de estar sen do se guida ou de estar
nem mesm o tragé d ia, no sentido estrito. Enquanto que a co-
ela pró pria a seguir o utros, etc. [....1 . Por sua vez, ao freqüentador de teat ro o
méd ia va i muito bem obrigada: ela não requ er identificação q ue lhe interess a é poder subs tituir UI1l mundo eo ntrad itór io po r UI1l mundo
heróic a nenhuma. A comédia pare cia solid ária em relação à harm oni oso, um mundo que co nhece mal por um mu ndo onírico !" .
tragéd ia, a ponto de funcion ar como seu reverso, seu ave sso
paródico: ela sobreviveu ao abandono do gênero trág ico que Nós não faríamos mais es ta "observ ação". Este mund o não é
teri a podido arrast á-I a con sig o. Sobra o drama, e alg o de mais o nosso mundo . Os espectadores de teatro não são mais
ainda mais incert o e ainda não pen sado que ch amamos: es- esses hom ens medievais enfeitiçad os. Longe de nós, no en-
petáculo. Nós não vam os ma is ao teatro ver personagens , tanto, pen sar que esta co nstatação invalida toda a descrição
nem mesm o um dr ama : nós vamos ver um espetáculo . As- (e, portanto, toda a críti ca) brechtiana da identi fica ção: ele
sim se org ani za nossa experiência teat ral. Aind a se pr odu- nos d ispensa, ao co ntr ário, de acreditar que ela só d iz respei-
zem , claro , efe itos de identificaçã o, pass ageiros, fugidi os, to a est e teatro , vetu sto e fora de moda. Sem dú vida , est e
como uma espéc ie de espuma da representação . Formam- modelo de ex periênc ia não se apagou de uma só vez. É pro-
se identificações menores", por fragmentos : fios, franjas , vável que Bre cht tenha lidado com ele quando , ainda jovem,
vestígios de uma experiência antiga que retoma aqui e ali . (er a a ép oca de Freud , de Stanisl ávski) deu forma a seu pro-
E também , ma ciçamente e em outros pontos, outras identi- jeto. Mas duvid amos que em 1948, dat a das linhas acima
fica ções , mais nod ais , qu e atravess am o teatro e todo o res- citadas , ele se referisse a uma observação contemporâne a,
to. Ma s o teatro não pod e mais se pens ar tendo a cate goria Entre um momento e outro, a cr ítica brecht iana viu seu obje-
da ident ificação CO I1/ o personagem co mo ponto determ i- to se desl ocar, sem o assin alar: a partir de então, alerta e
nante d a an ál ise. salutar, ela critica talve z, de fato , algo dif erente do que de-
Tomem os um exemplo. Podemos, com um olhar despro- c lara, e acredita criticar.
vido de precon ceito, desc rever atualmente uma platéia de O . M annoni , observador refinad o, assinala essa muta-
teatr o como Brecht em seu Pequeno Organon'l Ele via ali: ção em 1957, quand o, ao comentar precis amente o trec ho de
"figuras inan imadas , que se en contram num estado singu- Freud que lem os, escreveu: "P ara falar a verd ade , tornou-se

10. Ecrit s sur te th éâtre 2, I' Arche, 1979, p. 20-22. Ob ser ve-s e que a des-
*. Be renice : heroín a de Raein e, na peça do mesmo no me. (N. da T. ) cr ição coinc ide , em certos pon tos, COIl1 a de Freud. (Em portu gu ês : Estudo s
9. Torno de em préstimo o uso de " me nor " a Dcleuze e Guauari, claro, e so bre Teat ro, trad ução de Fiama Pais Brandão, Rio de Ja neiro , Nova Fronteira ,
tamb ém a Da niel Payot, Deste último. cf. L'Obj ct -fíbnlc , L'Harmattan , 1977. 197 8, pp. 11 0-111).

98 99
cada vez mais claro, desde a época em qu e Freud esc reve u, não per mi te mais explicar o que aco nteceu c que devemos
que não é essencia l, para haver teatro, que haj a um herói. O nos desp re nder de le. E desprender-nos, em conseqüência,
ideal do Eu es tá cada vez men os em jogo". E, mai s adia nte : das condutas que este modo de pensamento organiza: para
ag ir ou re forma r o teatro, de ixa ndo de nos refer ir ao qu e e le
É di fíci l dizer porque, hoje, isto j ã não funcio na ma is só qu and o se tra ta não é mais.
da identi ficação co m um her ói. Há urna alteração his tó rica , urna modifi caçã o
da per son alid ade típica da é poca, da per sona lidad e "de base". Parece qu e es ta
modifi cação se produ zi u nas rela ções do Eu com o ideal , j us ta men te . Seria
prec iso es tudar a psicol ogi a da hon ra ". O qu e foi que acont eceu , afinal? O qu e foi que nos aco n-
teceu para qu e a es trutura de nossa ex pe riê nc ia m ud asse?
Não é poss ível disc utir aq ui o alca nce ge ral dest a co nstata- Retom an do. A experiênc ia tea tral most rou-se co mo q ue
ção . No enta nto, haveri a muito que dizer: sobre este recuo amarrada em torno de uma dupl a ident ificação: ide ntifi ca -
histór ico da iden tificação c também sob re as identificações ção do ator, c também do espectador. E o espectador, co mo
arrebatadas que tal recuo provoca co mo resposta , do mesm o d izíam os, é resultado de uma iden tificação. Vale not ar que
mod o qu e o refluxo geral das reli giões enge ndra fund am en- es pec tad or c ator , neste sistema, identi fica m-se, tanto um
talism os e sec tarismos dos mais rígid os - os dois ter mos da quanto o outro , a uma figur a única : o perso nagem. Vam os
comparação não dei xam de ter relaçã o um co m o outro . fazer du as o bse rvaçõe s. A primeira é qu e o prim ado da ação
Ma s dei xem os de lado es ta que stão. Da obse rva ção de (so bre os ca racte res) proposto por Ari stóteles parece ter se
Mannoni res ulta uma co nseqüê ncia: supo ndo que o teatr o se invertid o. Neste teatro comandado pela ide ntificação, o per-
funda sobre a ide nti ficação, co mo pensava Freud , o es tio la- so nage m é qu e é a c have do edifício. M as a seg unda o bse rva-
mento das ident ificações deve ria acarreta r a caducidade do ção é a mais impor tan te . É, na verdade, uma questão. Nós
teatro . Se o pal co devia nos forn ecer sobretudo ocasiões pa ra dissemos , seguindo nossos auto res (Diderot, Fre ud) , que a
nos ide ntificarmos co m heróis, a obsolescê ncia des te proces- real idade do perso nage m era imaginária . Mas o qu e é que
so de veria arras tar o teatro para a ext inção . O ra, apesar do isto sig nifica exa tame nte? Onde es tá s ituado, de fato, este
cansaço, o teatro co ntinua c se amplia.' Com o d izía mos no bizarr o ente? Qu al é se u modo de ex istê nc ia, seu plano de
co meço: ele não deixa de pro voca r uma cresce nte a fluê ncia rea lidade? Porque o co rpo do personagem , em cena, não tem
de vocações, de projet os. É preciso ac red itar que este movi- nada de imagin ário: corp o real, de ator. Su as palavras são
mento ex prime um fund am en tali sm o reativo ? A hipót ese e fetiva mente pronunci adas. Na rela çã o teatr al, onde es tá o
poderia sed uzir, co nsidera ndo-se alguns tipos de comport a- person agem ? O mai s simples é resp ond er que o person agem
ment o . Mas não, o teat ro não é um a grande rel ig ião c se a ex iste como imaginário na ativ idade men tal "do" esp ect a-
recu sa do dec línio pode ex plicar o fanatis mo de a lguns ade p- dor, e do ator. É no es pírito do ator que ele ex iste imaginaria-
tos, ela d ificilmen te ex plica esta ex tensão do desejo pelo tea- mente, c também no espírito "daq ue le" q ue o lha . O ator
tr o , qu e se propaga para m ui to a lém do círc u lo dos já imagina o pape l c dá a ver substitutos dele bem reais, atos,
co nve rtidos. Para co mp ree nde r a necessidade do tea tro , tal palav ras, mo vimentos do co rpo , que provocam no pen sam en to
co mo e la se apodera de nós atua lme nte, é melh or mud ar de "do" espectado r um a r é-figura ção imagi ná ria, aná loga ou,
model o. Admitir sua obsolescência, inter rogar de o utro modo ao men os, co mpatíve l, co m a qu e habit ava o ato r. É o qu e o
o surgime nto da necessid ade que nos leva par a os palc os ou modelo su-põe: seg undo esse esquema , a rel ação teatr al se
para d iant e dele s. E admi tir qu e o esqu em a da identifi cação co nstró i com o conjunção mental desses dois imagin ários. O
teatro est á na ca beça. S ua ex istência é imater ial. Materialm ente
11 . 0 J'. cit.. pp. 17 1- 172. (Em portug u ês : op. cit., pp. 177-17 8). só há atores no palco, Floridor ou Beau- Ch asteau , co m figuri-

/ 00 / 0/
nos , acessórios, mo viment os e palavras qu e são con cret udes. sentido d a palavra 12 acarreta duas co nseq üê nc ias . Prime iro ,
Diante da ce na, espectadores, tamb ém ele s con cretos. O teatro indu z a qu e qu alque r co isa passe, diretamente, do co rpo para
se form a neles, ment alm ent e, pelo supos to e nco ntro de suas a imagem " . Claro, a marca exi ge um operado r, um manipula-
fantasias. É se mpre, e m fim de co ntas , um teatro interior. dor, arm ad o de uma técn ica inte rmedi ár ia e ntre aq uilo c uja
Fo i nes te ponto qu e nos aco ntece u, tal vez, alguma co isa form a se q uer guardar e a imagem obtida . Mas es te ope rado r
q ue nos transform ou . Fo rmulo aq ui um a hip ótese qu e va mos não intervém por meio de nenhuma subjetividade forma do ra,
te ntar desen vol ver. O qu e nos aco ntece u, nesse mom ent o de ele não é co nstr utor, orga nizador de pont o de vista. O co rpo
nossa história , se c ha ma o cinema. O ci ne ma dá ao imag iná- dep osit a s ua forma na imagem , de mod o d ireto, imedi ato. A
rio um a ex istê nc ia efetiva, a ex istê nc ia das imagens. Tud o imagem é o pro?uto do co ntato da coisa co m a maté ria da q ual
aco ntece co mo se o ci ne ma tivesse tido co nd ições de captar ela se rá feita. E nisto que ela d ifere da pintu ra de um ros to
o imagin ário e nge nd rado pe lo teatro o u, ao men os, fo rmad o num afresco , de sua figuração em um vaso. A figuração rep re-
na rela ção teat ral numa fase de sua história, e tives se pod ido se ntativa supõe a ex terioridade con stituinte de algué m qu e vê,
co nferir ao produto desta apreen são uma exi stênci a e fetiva, cuj o olha r vai es truturar a form a re-presentati va. A ima gem
mat erial , real , a ex istênc ia da s imagen s. O c ine ma realiza o result a de uma transferência de medidas, de linh as o u de volu-
ima gin ári o em imagens. Im agen s fund amentalmente dife- mes , por co ntato, por co ntigüidade do co rpo com a form a de-
rent es, por se u estatuto, da s que o teatro produzia: porque , posit ad a. É por isto que a imagem só servirá (metafori cam ente)
no teatr o, o que se' most ra é a co nc retude cê nica - são ho- de nome para as outras figura s (pinturas, desenh os im itativos,
men s, madeira, pano , gestos e palav ras reais , colocados co mo form as sen síveis c tc.) q uando este uso for co mandado , de modo
" imagens" unalog ica me ntc, por met áfora. Dizer sobre o ator ma is o u menos decl arado , por urna co nce pção da r ep resenta-
que ele é lima imagem só é exato conto metáfora . E nq ua nto ção com o impressã o, marca da coisa so bre um recep tácul o -
q ue as imagen s do ci ne ma são, e fetiva me nte, im agen s. Não eve ntualm ente passand o pel os se ntidos, pen sad os co mo re-
basta a prese ntar o a nálogo de um o bjeto para qu e es te subs ti- ce pto res de impressões sensíveis.
tut o tenha di reito, e m se ntido pró prio , à den ominação de A segunda co nse q üê ncia da ca rga e timo lóg ica do te rmo
imagem . Isto não basta mais: alguma co isa mu dou no esta- decorre de sua determin ação co mo imagem do morto" , Neste
tut o da image m. As image ns do cinerna tógra fo torn am -se, se ntido , a imagem , e m primei ro luga r, ates ta o passad o. For-
e ntão, imagens e fetivas , imagen s de d ire ito, qu e prop orcio- ma mold ada so bre o de funt o, traço de um a prese nça a use nte,
nam ao imag inár io sua ex -sis tência' apro pr iada, a ex teriori - marca no prese nte do q ue foi e não é mais. Uma im age m é,
zação qu e lhe co nvé m, relegand o todas as o utras es pécies de antes de tu do, co nservado ra, dep ósit o da mem óri a, c ujo va-
imagem à sit uação de " image ns" po r met áfor a. Vamos tent ar lor de memor ial co nd iciona rá, em co ntra partida, um a sé rie
nos ex plica r a este resp eit o. de co nce pções da mem ór ia como estoque de imagens. A irna-
Um a imagem não é um a ficção. lniago não éfictio. Nem
um a alegoria, nem um s ímbo lo, nem um s igno, nem um subs- 12. Certa mente a etimolog ia a parece aqu i de forma um pou co enrijeci da : o
titut o figurad o da co isa . A imago é, antes de tud o, a marca obje tivo é simplesmente ressalrar a di feren ça en tre o esq uema da IIIl1rCll , co ns-
feit a a partir da cabeç a de um mort o. Esta es trutura inicial do tin uivo da im agem , e o do andlog« , que rege mu itas outras fig urações .
13. Co mo, crimolog icnmcmc, para o dese nho - for ma dccalc ada, traç ad a
d iretam ent e sobre um co rpo o u um objeto, C f. ad iante, nota 15.
". O prefi xo ex ressalt a o ca r áter de ex ter ioridade em rela ção a sistere, 14. C f. R. Dcb ray, Vie et II /(In des iniages , Ga llima rd 1992, ree d ição Fo -
que significa parar , imp ed ir de avanç ar. Exsistere significa: ser, co nsistir, a pa- Iio, 1994, p. 27 .1'1/. (Em português: vida e Morte das Imagens: Uma Hisuiria
rece r, surgir, mostr ar-s e, eleva r-se ac ima de, sa ir de . (Cf. Dicion ário Latino- do 01"111' no Ocidente, tradu ção de G uilhe rme João de Freitas Tei xei ra, Petr ó-
português de Fran cisco Torrinha. Porto : Marãnus, 1945 , 3a ed.). (N. da T.) po lis. Vozes , 1994).

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gem serve de testemunho de (e para ) tudo o qu e passou , de qu e es te adv ento marca uma ces ura na históri a das práticas
tud o o qu e é passad o. Esta é a sua sing ularida de entre as figu rativas - c , po r ist o mesm o, na histór ia . Tal vez nun ca
fi guras. Todas as fi gu ras mostram o a use nte, o que falt a, mas antes nos tenham os defront ado com um tal mov iment o de
a imagem dá tes temunho dele precisamente na medida em báscu la da represen tação em direção à pura aprese ntação -
qu e o ause nte, que falta, esteve ali, es tev e present e no lugar q ua ndo não em direção à iniago, às máscar as rnortu árias, ,
atual e determinado de sua ausê ncia. A imagem est á no es pa- aos cmba lsa mamc ntos 17. Or a, es ta característ ica é so lidária "

ço deix ad o vazio pel o referent e : não dis tante dele , co mo a do fato de qu e a fotografi a atesta sem re futação possível a
presença do que esteve ali e se ause ntou. A fotogra fia d ã a
'I
evocação ana lógica de algo long ínqu o, mas no lug ar tipifi - ,
"
cado, marcado por sua ausê nc ia, no lugar de sua presença ver a prese nça - po r defau lt - do qu e esta mo rto, o u, ao me-
que se torn ou passado . nos, do inst ante qu e se fo i irrem edi avelm ent e. Barthes ain-
Ora , a invenção da fot ografia produ ziu, em nossa histó- da : " na Fotografi a, jama is posso negar que a co isa es teve lá.
ria, uma reativação, ex tremamente forte, deste esquema . A força Há dupla posição co nj unta: de real idade e de passado. I...] o
procede evi de nteme nte da capacid ade de reprodução, qu ase que vejo [...] é o real no es tado passado: a um só te mpo o
infinit a, do result ado. Qu anto ao esquema, ele resulta do fato passado e o real"!", O qu e ilustra sua obse rvaç ão a bissal a
de que uma fotografi a se forma por impressão so bre um su- resp e ito da foto, mais qu e centenár ia, de um conde nado à
porte de radia ções lumin osas proven ientes do própri o objeto. morte antes da exec ução: ele es tá morto, c ele vai morrer!".
Para tanto, são necessários uma máqu ina e um operador: mas Ao mesm o tempo imago do morto c quase imago do instante
o ope rado r só mani pula o dispositiv o que permite que a luz ante rior à morte, o que nenhuma m ãscara mortu ári a jama is
proveni ente do objeto atinja a matéria do suporte e aí dei xe ofe recerá . Estes do is traços (de marca e de vest ígio do passa-
sua ma rca. O opera do r tenta prever, e co ntrola, o processo: do) co nfere m a todas as fotos, de modo eminente e radical , o
mas o processo presc inde dele - o instante da tom ada é o da car áter de imagens. Por eles, as fotog rafias se sing ulariza m
obturação do visa r, co mo se fosse necessário, para que o apa- entre todos os outros tipos de figur as: pinturas , entalhes, pan-
relh o gra ve sua marca, que o operado r pare de ver e, portant o, to mimas. As fotog rafias são, em ce rto sen tido , as prime iras
de receber a sua marca". A fotogra fia rece be diretamente a imagens verd adeiras. Mesm o se o lerm o image m é mu ito an-
ma rca da lumin osidade do obje to. Nenhuma reco nstrução den- terior a elas . E, atin ai, não é impossível que o term o tenh a
tro do próprio processo, embora ela ocorra ev ide ntemente nos precedido a coisa: tal vez já exis tisse a idéia de imagem antes
disposit ivos de age ncia me nto. O opera do r não es tá entre a coisa de se dispor de imagem efetivas. A image m fotográ fica se ria
e a fotografia; e le age so bre, em torno, ao lado de se u elo. É o a culminação de um processo cuja marcha foi aco m panhada
que co nfere à fotografia este valor irredutível , novo, o de ates- pe lo co nce ito de imagem : aqui com o tal vez em outros dom í-
tar uma presença. Banh es diz: "C hamo de ' re ferente fotog rá- nios, u invenção t écn ica responderia ao program a expresso na
fico ' I...] a coisa necessariamente real que foi co locada diante noção que a precedeu".
da objetiva, se m a qual não haveri a fotog rafia. [...] A fo to é
17 . É preci so compree nder a rad ica lidade de s ta inovação, de po is de W.
literalm ente uma ema nação do referente. I...] Toda fotografia Benjamin e ape sar de alguns espíri tos reati vos . como conju nção de ste val o r de
é um cer tificado de presença?" . Pode -se pen sar, co m Barthes, prese nça e de s ua capacidade de reprod ução . C f. A. Hen nion e B. Latour , "L ' art,
l'au ru ct la tcc hiquc se lon Benjamin", Cahiers de médiologi e, Gal limar d, 1996 ,
15. Devo esta observação a Pie rre -Da m ien Hu yghe . p, 235 .H/.
16 . R . Barthe s, La Chambre claire, no te sur la photographie, Ca hiers d u 18. Ibid., pp . 120 e 130 . (E m portug uês : op. cit. pp. 115 e 124 ).
Cin éma-Gallimard-Seuil 19 80 , pp . 120, 126 , 135 . (Em portu gu ês : A Câmara 19. tbid., pp . 148- 150. Trata -se da foto de Lcwis Payne por Alcxandcr Gard -
Claro, NO/a sobre a Fotog rufia . Traduç ão de J úlio Ca sta üon Guimarães. Rio ner ( 1865) . ( Em portu gu ês : op , cit., p. 14 3).
de Jane iro : Nova Fron tei ra , 19 84 , p. 114- / 15, 121 , 129 ). 20 . Cf. 13 . Ba lasz, L'esflril du cinénut, Payor, 1977. p. 136 .

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Mas as image ns não bastam para constitui r o imagin á- tingu e e que, portant o, não é diret amente red utível aos senti-
rio. Aqui so brevém o c inema. O imag inário é o campo da dos. Aqui as doutrinas var iam: algun s vêem aí uma intelec-
imagin ação: ca mpo que ela produz e onde ela se move. Ob- ção pura, outros um estágio do sensível" . Mas, sem pretend er
serve mos que o term o ("o imaginári o" , utiliz ado com o sub s- decidir, pode- se muit o bem propor , para as necessidades do
tant ivo) é de uso recente . No emprego corrente, e le tem a nosso deb ate , que , se os elementos sensíveis procedem da
idade do c inema" . Com o co mpreender esta contemporanei- sens ação, a capacidade de os combinar mai s ou meno s livre-
dade co mpartilhada? Lembremos que a teoria elássica sobre ment e provém, por se u lado, de uma capacidade de se dis-
a imagin ação via nela uma faculdade de apresentação ou de tanciar da sensaçã o: e, logo, de algum a form a, do intelecto
combinaçã o de element os fornecidos pela sensa ção-". Ora , o co mo ta1 25• A imagin ação une então um material se nsíve l (os
modelo da se nsação é a impressão sensível: co nsidera -se que elem ent os, as partes , que são impre ssões) e uma faculd ade
a se nsação proce de de um e feito direto, de todo modo se mpre combinató ria, associativa , q ue orga niza sua sintaxe e que
táctil , do objeto so bre o órgão dos sentid os. Todos os se ntidos result a do pensam en to abstrato. A imagin açã o co m põe e le-
são, segund o es ta co nce pção, modalid ades do tato: o gosto e mentos sensíveis segundo uma combinatória inteligível, ideal
olfato são tato de em anações das co isas, com o a aud ição é - se e ntende rmos por isto, simplesme nte: que não deve ao
um tato pelo som e-mesmo a visão, o tato mais distante , mas, se nsível o princípio de sua formação. Ela é feita de um léxic o
ainda assim, tato, d6 olh o pela luz. A sensação é um cont ato (sensível) e de uma sintaxe (ideal). Ela age no lugar exato da
- a psic ol ogia clássica se adaptará do melh or modo pos sível articul açã o entre amb os.
à conce pção dos percept os como imagen s (ainda que "im a- Ora, o cinema rep rodu z exatame nte esta estrutura. As
gens acús ticas" com o p ara Sau ssure). A imagin açã o dispõe menores unidad es que o co mpõem são os fotogram as: quer
desses d iferentes traços perc ept ivos, e não pode j amais pres- dizer, impressões, marcas de obje tos sobre uma matéria sensí-
cind ir de seu mater ial. Se us produt os mais fantá sticos são a vel, apta a co nservá-Ias e a ex ibir seus traços. O cinema recebe
co mbinação entre e les: a neve negr a, o cavalo verme lho, o da fotografia, que comp õe o tecido de sua matéria, a relação
unicórni o associ am de modo pouc o hab itual elem ent os pos- absolutame nte singular entre ela e o referente, o rea l. Aí está
tos à disp osição pela percepção do real : neve, neg ror, cav alo, IUII dos dois e/ementas de seu alcance imaginário: que ele não
co rnos e tc". Em seu uso da fanta sia, a imagin açã o é, portan- partilha co m o desenh o animado, por exemplo. O desenho
to, a com binat ória não realista de elementos reais . Ela reúne anim ado, co mo muitos outros modo s de Figuração, não é des-
assim dois fatores : sen sações provenientes do mund o, por provid o de eficácia imaginária. Mas não partilha com o cine-
impress ão, e uma capacidade combinatória que delas se dis- ma esta "co -naturalidade com o referente'v '' da qu al fala
Banhes. Ele não pode se pre valecer dest a função eminente
2 1. O dicion ário Robert histór ico data o uso a part ir de Main e de Biran
que o cinema, pela fotografia, recebe de sua impressão pelo
( 1820). Mus naquela época o substantivo ainda é ignorado pelo dicion ári o U I/ré.
Ele só se d ifunde, no uso corrente, no início do séc ulo XX.
real. E não foi o desenho animado, mas o c inema, que se im-
22 . cr. Sa nre , L'unaginution , PUF 1936, reedição 1994 , pp. 7- 19. (Em pôs durante o séc ulo XX como grande Fi gurador e condensador
português : li lmaginação, tradução de Luiz Roberto Sa linas Fortes, Rio de das produções imagin árias de seu tempo. (Embora não aprecie-
Janeir o. Bcrt rand Brasil, 8' cd., 1989).
23. C f. por exempl o, Hobbes, De ta nature humaine , Vrin, 1991, cap. 111, 24 . Sob re tudo isso, cf, a discussão de Sart re, OI'. cit., pas sim, por exe mplo,
~ 4 , pp. 21- 22. (E m portu guês: Le viutii foi publi cado na cole ção Os Pensado-
pp. 122-125.
res, em uuduçã o de João Paulo Monte iro e M ~JÍ ~ Beatr iz Niz za da Si lva. São 25. Este modelo é evide nte mente discutível. Para nós, ele aprese nta, entre
Paulo, Abril Cultural, 2' ed ., 1979. N~ primeira parte , " Do Homem", enco n- outr as viIludes, a de ser exata mente an álogo ao qu e Eisen stein co nstrói para
tram- se os capüulos 2 e 3 que tratam " D~ Imaginação" e " D ~ Conseqü ência ou caracterizar o que chama de 1II 01/1a~ elll intelectual. C f. adiante, nota 28.
Cadeia de Imaginações" , pp, 11-19). 26. Op cit., p. 11 9. (E m portu guês: OI'. cit.. p. 11 4 ).

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mos nem um pouc o os ce rtificados de garantia qu e se compro- pois, diante de um fen ôm en o s ingular: tud o se passa com o se
me tem co m o futu ro, podemos obse rvar que as ima gen s de o ci ne ma tives se libertado o imaginário do espaç o mental
sí ntese não par ticipa m deste pare ntesco profundo da imagem OI/de ele supostamente estava confinado, para lhe dar o es ta-
fotográfic a co m o model o da percepção. As ima gen s de sí ntese tuto de um ent e obje tivo. O c ine ma é o imaginári o realizado .
são figurações que se distin guem por um a fort e inov ação téc- O c ine ma co nde nsa, na mater ialidade de se u texto, a ideali -
nica. No entanto, não é proib id.o pen sar que elas não estão em dade e a se nsi tivida de cuja co njunção era pri vilégi o da im a-
co ndições, co mo o desenh o anima do também não es tá, de su- g ina ção . E ele ap resenta o produto dest a con creção so b a
plant ar a função do c ine ma tógra fo no ima gin ár io co letivo : fun- forma efeti va de imagens. Não mais im agen s por metá for as,
ção de ves tígio do q ue esteve lá, de testemunho prestad o sobre co mo são as " ima ge ns" menta is. M as imagen s co nc retas ,
as co isas pelo efe ito dir eto do obje to sob re a maté ria se nsível. e xistentes sob o mod o da ex te rio rida de . O cinema é o tor-
Nenhum playboy s intét ico, ou desenh ado, é d otad o da mesm a nar-se-intagens do imag inário. Ele é a sua Iiterali zaç ão, sua
fo rça fantasmática daq ue le cuja beleza imp ress iono u a objeti- efetuação: s ua real ização". É po r isto, pro vavelm ente, q ue o
va e nqua nto e nte qu e realmente passou diant e dela). Mas os term o imagin á rio, co mo subs tantivo, é se u co nte mpo râ neo:
fot ogr am as são (e são ape nas) os e leme ntos últimos do c ine- E é por isto qu e o c ine ma ca ptou, confi scou e m alguma
ma. O ci nema os associa, os faz sucederem-se e se co mbi na- medida, o imagin ário do teat ro . Fez a mesm a co isa co m as
rem por meio de uma si ntaxe , de um e lo combinatóri o qu e o utras artes? O cin em a, co mo anunc iava m se us fund ad ore s,
nad a deve à impressão se ns ível enqua nto tal e vale co mo pur a ope ra a su bstituição de todas as produ ções a rtísticas? Substi-
ideal idade : estabeleci me nto e variações de en quad rame nto , mo- tuição a resp e ito da qu a l é preci so d ize r q ue e la fo i pr opria-
vimentos do pont o de vista, montagem" . Tr ata-se aí do que mente imag in ária, cm to dos os casos, su bs titu ição pel a
Eise nste in designa va (no tocant e à mon tagem ) co mo "i ntelec- image m c na imagem . Pod e-se pe nsa r qu e o c ine ma também
tualid adc" da operação" e qu e se pode es tender aqui a todos os seja o tornar-se -imageni da mús ica , ou da pintura , o tomar-
efeitos de sintaxe . O c inema tom a os e leme ntos fotog rá ficos se-image m rea lizado da pintura, aq uilo a que talv e z a pintu-
qu e de ixaram sua impressão e os e nvo lve num mo vim ent o ra não se redu za, aq ui lo a qu e e la tal vez resis ta? N ão é essa a
qu e é o ,do pensam ent o, da intelecção e nquanto taFY. nossa qu est ão aq ui. Colocá-Ia su po ria o utros percursos: pel o
É olrnes mo que d izer que o cin em a partilha co m a im a- víde o (pe la mú sica , ao me nos , já qu e é no víde o qu e a músi ca
gi nação!a total idad e de se u sis tema: a nature za de se us ele- ope ra se u dcve nir-imagem), o u pela qu estão da " imagicida -
mentos e a for ma dos laç os q ue e le lhes imp õe. Est am os, de" ou " image idade" da pintura, co m a qu al Ei sen stein se
preoc upava bast ante" . M as , para o teatro, pel o menos, a qu es-
27 . Cl', G. Dclcuzc, L 'itnag e-ninnve ment , Minuir. 1983, cap oI a 111. (Em tão é c lara : seg ura me nte o ci nema, na e labo ração de sua "g ra-
po rtuguês: A lnu tgem-movimento, tradução de Src lla Scnra , São Paulo. Brasi-
má tica" , tir ou uma parte de se us recursos da estru tura d o
liense, 1985).
28 . Por exemp lo, em S. M. Eiscnstein. Ali-de/à des étoi les, UGE 10-18
espet acul o teatr al. Ele integ ro u a ma ior part e dos proced i-
1974, p. 197 e Le }i/III• •WI [arme, SOIl sens, Bourgois 1976, p. 7 1. men tos, e ng lobando-os no age ncia me nto, mais am plo, de se u
29. Cf, G. Deleuze, " La pens écct le cin éma" em L'inutge-temps , Minuit disp os itivo: dr am atic idad e, uso dos ato res, d os ce ná rios, apro-
1985, p. 203 sq., que discute precisamente Eisenstein a este respeito. Mas tam- pr iaçã o de um a boa part e do repertório. Os " pio ne iros" (Ei -
bém, sobre as relações entre o cinema e o pensamento. B. Balasz, 0(1. cit., pp.
160. 163, 170 e 171. e E. Morin, Le cinéma e/ l' lunume imaginaire , Minuit, 30. Cf. E. Morin, Ofl . cit ., p. 207 c também Christian Metz, Le sig nificam
1956, reedição 1985, pp, IX-XI e 3 1-42. (Em português, respectivamente, 1\ inuig inui re, Bourgois, 1993, pp. 62-65, 86, 92. (Em português, "O Significan-
hnagctn-tentpo , tradução de Eloísa Ara újo Ribeiro, São Paulo. Brasilicnsc. te lmagin ário" roi publicado na coletânea Psican álise e Cinema, tradução de
1990; c O Cinema ou o Hom em lmaginário, tradução de Antônio Pedro de Pierre André Ruprccht, São Paulo, Global, 1980, pp. 15-92).
Vasconcelos, Lisboa, Relógio d' Agua, 1997). 3 1. Cf. Eisenstein, Cin énuuisme, Peintu re e/ ciuéma, Complcxe, 1980.

l OS 109 ·
sc nste in, G ance, Griffith ) não ca nsavam de dizer e de co lo- que elas nos apa reçam de modo vivo". A pa rtir d aí , o pr -
ca r isto e m pr ática". A referên cia ao teat ro é um dos e leme n- cesso é desc rito da seguinte manei ra: " Desta se q üê nc ia de
tos de co nsti tuição do qu e nós c ha ma mos "o c ine ma " : não o mom entos va i surg ir um a linha cont ínua de im agen s, co mo
único , m as um ele me nto certame nte axial. num filme . Enq ua nto atua rmos de forma c riadora, esse film e
. O ci nema captou (por realização) o imagin ário do tea tro. se desen rol ará e se projetará na tela da nossa visão inter ior,
A ce na de teatro se tinha, por assi m dizer, cind ido em do is torn and o v ivas as circuns tâ ncias" . "Vamos fazer um fi lme
espaços: o dos ex istentes práticos (os atores , a at uação e se u imag inário" , rep ete o d iretor. O objetivo é tirar a imagina-
~parel ho efe tivo) e o dos exis tentes imaginários (os person a- ção de sua letargia, do lim bo : dar-lh e vida . "S ua im aginação.
ge ns e s uas histór ias). Nossa hipótese é qu e o ci nema, le vand o se redu zia a idéias ge ra is, tão imprec isas qu anto um filme
esta d ivisão a seu te rmo, e se oc upa ndo co m um único dos dois mal re velado?" . Simples co mparação? Sem dú vida , M as ter-
term os, realizou as produ ções imagin ár ias da ce na, deu -lh es rivelment e eficaz: porqu e ela pen sa a imagin aç ão (interior)
uma ex istência de imagens e fetivas, co ncretas, materi ais'" . Com co mo essencia lme nte c i ne ma to g rá fi c a . ~m a g i n a çi'íQ qu e é
Isto, ele assegu rou a independência delas, sua libert ação em preciso faze r vive r no teatro é um momento de cin em a não
relação à ce na e a seu s prot ocolos. Em alguma medid a, ele as real iza1!l. Desd e e ntão, o rea lizado var valer se m pre mais:
emanci po u, devolveu-lhes a liberdade , co mo se diz a respeito mais co nc l'Cto, mais e fetivo , mais visível. O cine ma capto u
de um prisioneiro . O imaginário (do teatro) pôs-se ao largo, -tão bem o ima ginãi'io do teat ro que est e atu alm ente só pode
fugiu do espa ço cênico onde estava encerrado . O imaginár io representar su a forç a plasm adora a partir do model o do fil-
(tea tral) desert ou o teat ro, por ter ass umido sua real indepen- me. E é esta es péci e de cine matogra fia latente que co nd icio-
dên cia. O que deixa a cen a como que mutilada , despossuíd a na a vida do teat ro. Stani sláv ski reto ma obs tinada me nte es ta
de um de se us dois co mpo nentes. Voltarem os a isto. co mparação. Não " trata do uma qu est ão men or: "Só qua~
A resp eito di sto (de o cine ma ter co nfiscado o imag iná- do nosso se ntime nto dr am át ico lança suas raízes na co rre nte
rio teatral ), não invoca rei mais do qu e um a ún ica ilustr ação. oc ulta do s ub tcx to, o ' movime nto ', a ' linha de ação' de um a
Lem brem os qu e St an islá vski põe no ce ntro de se u método a peça, ganham vida. O mo vi mento se torn a man ifesto não
imagi nação ativa do ator" . Es te de ve produ zi r imag ina ria- apenas pelas ações fís icas , mas também pela palavr a" . É para
ment e o papel , apo iando-se na exi stênc ia (imagi ná ria ) qu e o prod uzir este "s ubtexto" , gerador de mo vimento e de linha .
tex to e as ind icações do a utor lhe dão, m as co m pleta ndo-os, de açã o q ue o ato r deve se to rnar cineasta e m se u íntim o:
preenc he ndo-os, e nriquece ndo-os , porqu e eles não poderiam
sozinh os rea lizar ( imagi naria me nte) a exis tê ncia cê n ica. Vocês de vem inventar um verdadeiro filme de image ns me ntais , de ima-
ge ns inte riores: um subtc xto co ntfnuo [...] semelhante a um filme cinc matográfi-
Co mo proceder? O a tor dispõe de um "e nca dea me nto de c ir-
co co nstante me nte projetado sobre a leia de nossa visão interior e dest inado a nos
c uns tâncias" : é a suposição, aq uilo qu e põe e m mo vimento a guia r e nqua nto falamos e agimos no palco. [E insisre.] É necess ário que este
imagin ação at iva . A par tir dela, é necessári a " um a linh a co n- filme inte rior se desen role mu itas vezes diante do olho do esp írito. [...l-É passan-
tínua de visões interi or es, ligad as a es tas circ uns tânc ias para do e m revista este filme interi or que vocês consegu imo estar lodo o tem po conscien-
tes do que deve m d izere fazer. [...]. A imaginação faz o resto. Ela ac re scenta corui-
nuamente nOV:LS pinceladas , de talhes que preen chem e animam o filme interior' ",
32 . Entre mil exe mplos : "O cinema actapa atual do teatro. A fase imediata-
é

ment e consec utiva." S. M. Eisens tein, Au-del àdes étoiles, OI'. cit., p. 170 ( 1926) .
33 . C f. C hr istian Met z, OI'. ci t., pp. 92 -9 5 . 35 . Op. cit., pp . 7 1-76 . Gr ifo meu . (Na ed ição brasileira : iten s 4 a 6 do
34 . Co mo outros , e m sua es teira. C f, M . C he kho v, L'im ag inuti tm créatri - ea pítulo q uat ro, " Imaginação" , pp . 90 -95) .
ce de l 'oc teur, Pygmali on , 1995, e Etre acteur, Pyg ma lio n, 1984. (Do a uto r, 36. Stunis lávsk i, La cunst ruct ion du personnage, tra du ção C h. Aruon eni ,
exi ste e m port uguês 1'01'(/ ° Ato r, tradução de Ál varo Ca bral, S ão Paul o , Mar- Perrin, 1966. pp, 118- 13 1. (E m português: A Construção do Personage m.
rins Fon tes , 1986). Tradução de Pontes de Paula Lim a. Rio de Janeiro: C iviliza ção Brasileira, 1976).

1/ 0 111
Etc . Poderíamos encadear uma inFinidade de citações - de de seu pap el , no c ine ma, e m compens ação, ator e papel e n-
Stanisl áv ski e o utros . Vem os aq ui e m qu e con siste a aptidão contraram um a pod e rosa unid ade. A diferen ça entre eles é
do c ine ma para su btra ir o imagin ári o do teatro, m ais qu e incerta: c hegamos a es q uece r o nom e do pe rso nage m (co mo
qu alqu e r o utra Figuração - melh or do que a pintura, por exe m- se chama m Gabi n em A Grande Ilusão ; Jo uvet em Quai des
plo, que teria podid o se r chamad a para efe tuar es te rapto: ele otfêvres, A lain Del on em O Sol por Testemunh a?' ). Referin-
subtraiu a ação que define a essência do drama, porque ele é do-n os ao papel , di zem os: Gabin, A rlc ny , Schw arzenegger,
ma is ca pacitado para a figu ração do movimento, é mais cin éti- Ator e papel formam no vam ente uma unid ade prã xica, es tão
co . E e le captou a palavra, co isa que nenhuma figuração plásti- de vo lta os práttont es. M as es ta un idade se refaz como uni -
ca tinha cons egu ido fazer an tes de le. O imag inário teatral se dade imaginária. Ide ntifi ca mos o u d ife ren ci am os de modo
põe ass im sob a autoridade do modelo cinematog ráfico . De cert o imp rec iso o personage m (007) e o ator (C o nnery) mas o ator
modo, e le se rende ao e inema . O teatro se gaba de dar vida a se u também é imaginário: e le ex iste co mo sta r", vedete, nos periódi-
imagin ário por saber projetar para s i mesm o um filme". Mas cos, nas revi sta s , nas imagens. O ato r é uma imag em anima -
isto, ev ide nteme nte, o cinema fa z melhor que ele. Ele o faz de da, qu e freq üe nta nossos so nhos diurnos e noturn os. Se o
form a m ais efe tiva, mais mate rial. Torn and o o imag iná rio o ci nema r é-constitui a unidade pe rd ida do imi tante e do imi-
mestre do jogo, o teatro se torn ou provisoriam ente d ispo níve l tado, da atuação e da image m, do ato r e do represe ntado, ele a
para es ta capt ação do cinema , que cozinh a mais eFicazmente o fa z renascer na imagem, co mo e feito de image m. E é com es ta
imag inário porqu e o transforma e fetiva mente em imagens e faz , unidade indivi sa, es tranhame nte s ituada num a zon a indiferen-
portanto, rea lme nte, o que a imag inação achava que fazia : e le c iada e ntre a fi cção e o real (e esta in-diferença é imaginária),
faz passar a imagi nação, fáb rica de image ns, do âmbito da me- que nós nos identificam os at ualme nte - em massa.
táfo ra prov isória ao âmbito de uma e fetivação.
Ningu ém se es pa ntará, portanto, co m o fat o de qu e a
identificação se reali ze melh or no cin em a do que no teatro. Não pret end em os aqui des en vo lver a a ná lise das mod a-
Se a ident ificação desapa receu do teatro, co mo mod o dominan- lidades dest a identificaç ão: ela di z respe ito à teori a do c ine-
te da e xpe riê nc ia, e la impera na rel ação c ine ma tog r áfica " . ma, co nsiderada e m si mesma. Mas tud o o q ue di ssem os até
Não nos ident ificam os mais co m nenhum her ói de te atro : aqui d iz respe ito à relação com o per son agem ou com a coisa
mas nos identi fica mos , e co mo , co m os her óis e per sonagen s represent ad a. E o espe ctad or? As d isc ussões, num e rosas, so-
de ci ne ma. Vamos reler os textos so bre a ide ntificaç ão (o de bre a identificaçã o no cin ema levaram cer tos auto res a pro-
Freud, por exe mplo), hoje ult rap assad os e m relação ao teat ro: po r o mod elo de um a dupla ident ificaç ão cinematográfica'".
pode mos con sta tar o quanto e les se ap licam à nossa experiênc ia Esta an álise reve la, e m a lg uma med ida "sob" a identi ficação
ci nema tog ráfica. Não so mos mais Rod rigos mas Rambos, Bat- mais manifesta (co m um ou co m vários dos person agens da
mans , assassi nos po r nature za" . Ou Schwarzeneggers: por -
qu e se, no teatr o , o ator est á hoje definitivamente se parado
" Em francês: La g rande illusion, e Plein so leil. (N. da T)
"" Em inglês, no original. (N da T)
37. Cf. E. Mor in, IIP. cit., p, 84,1'lf . 40 . Para uma apresentação de conjunto, cf. J. A umoru , A. Bcrgala, M. Marie,
3H. B. Balasz, 1If' . cit., pp, 128- 129. E. Morin , p. 109 sq. Voltarem os a isto M. Vern et, Esthctiquc dufilm, Nathan 1994, em es pecial o ca pitulo 5, "Le
mais adiante. ciné ma ct son spccuucur" , p. 159 sq. Para as an álises às q uais es te volume se
39 . As co nseqüê ncias vão at é os tribun ais. C f. "Oli vcr St one Perseg uido refe re, cf. Chrisiian Mctz, 1If' . cit., pp. 65-79, e J.-L. Baudry, "L c dispositif",
pela Justiça Americana por seu Filme Assassinos por Naturera", Le M III/de, e m Conununicntinns, n" 23, Psyctutnalvse et cinema, Se uil, 1975, p. 56 sq .
28 e 29.07.96, p. 19. Le ndo esta report agem fica claro que o proble ma da res- (E m portugu ês: Est ética do Fihne, tradução de Mari na Appenz elle r, Campi -
pons ab ilidade (penal) se tece cm torno do coneeito de identificação . nas, Papi rus, 1995).

11 2 113
ação, batizad a co mo identificaç ão secundária), a existência sa s uste nta r a identifi cação es pec ular. É neces sár io, portu n-
de um a identificação mai s profunda, men os im edi atam ente 10, par a qu e ocorra es ta identific ação c ine ma tog rá fica pri -
obse rvá ve l, e que será con siderada como identificação cine- m ária, qu e um a espécie de medi ação se instaure entre a sa la
matogrâfico primário", T ra ta-se de iden ti ficação , não mal e a visão, qu e possi bil ite o re torno da imagem para um o lha r
co m um a fig ura rep resentad a na te la, .m as c o po n ún ico : c es ta me diação é evi de nte me nte a câ mera e o co nj un-
vis ta a partir do qu al as coi sas sã laili~ o es pec tado to de seu s atributos . É a existênc ia da câmera, institu ída como
-ass umc , fic ticiame nte, qu e "é e le qu e vê es ta paisa gem a pa ponto de vista uni fi cad or, hom ogenei zad or - pela m orfolo-
til' dest e po nto de vista úni co [...]. É e le, neste trave lling, q u gia téc nica do aparelho mas também pe la e laboração de um a
aco mpa nha co m o o lha r, se m seq ue r ter qu e mo ver a cabeç a, gramá tica d a nar rati va fílm ica (o cód igo es truturado pelos pia-
o c ava leiro qu e ga lopa na campina; é se u o lha r qu e co ns titui nos, a montagem , o co rte, a retórica do enca deame nto das se -
o ce ntro exato dest a varred ura circular da ce na, no caso d qü ên ci as c tc .) - q ue to rn a possíve l a focali zaç ã o de um a
um a pan orâm ica":", Em resumo, co mo di zem esses auto res. ] instânc ia de visão "ce ntra l" ou " transcende ntal", co mo dize m
es ta identificação (" primária") é a qu e co nstitui o especta(~ ele forma excelente os autores que ci tamos , cuja a firmação ins-
co mo "sujei to tran scendental da visão"!'. Já se co mparou, tau ra o sujeito-espectador da visão. Então, poderá ocorrer, rea l-
eficazme nte, es ta pos ição à da cr ia nça d iante do espelho, no mente, a ide ntificação primária do es pectador de ci nema , qu e
mom ento da operação con st itut iva de sua identidade, de se u não será descrita co mo "a q uela por meio da qual o es pec tado r
narci sismo e leme ntar" . E foram observadas di versas an alo- se iden tifica co m se u própri o olha r":" mas a ntes co mo a ope-
gias e ntre essas d uas pos turas: atividade motor a redu zida (da ração pela q ua l os espectadores de c ine ma, o u um espectador,
c ria nça, qu e só se desl oca co m aj uda, e do es pec tador imóve l es te aq ui o u aq ue le a li, você e eu, vêm se insta lar im agin aria-
e m s ua poltron a), ativida de visu al s upe r- inves tida, recorte ment e no lugar do pont o de vista da câ mera, para se iden tifi-
da tel a e do espelho . M as observa-se també m um a di fere nça car da í po r diant e co m o sujei to transcend ent al da visão. A
not ável : é qu e a tel a não de vol ve, na im en sa m aio ria d os identifi caç ão c inematográfica prim ári a é exa tame nte a prod u-
ca sos, a image m do suj e ito supos to da visão" . Es ta obse rva- ção do espec tado r, produ ção artic ulada a partir de um d isp os i-
ção ex ige q ue nos det enham os um instant e. Porque se a tela, tivo pr átic o, ao mesm o tempo técn ico c narrat ivo" .
ao co ntrá rio do es pe lho, não re flete a imagem do espectado r Ora , a coisa é mu ito mai s incer ta no teat ro . De alg uma
suposto , se, portanto , a tel a, sob es te as pec to, não é um es pe- form a, Lo uis A lthusser perceb eu isto, à sua man e ira, qu ando
lho e fetivo, é, na ve rda de, por um a razão muito s imples : "o " ce nsuro u Brecht po r atribuir dem asi ad a imp ort ância ao mo-
espectador, na sala de ci ne ma, não ex iste em parte a lgu ma delo "psico lógico" da ide ntificação . Ele escreve u so bre ist o :
co mo tal. Se o es pe lho c ine ma tográfico refl eti sse a image m "qua ndo se [no caso, Brecht] in voca, para pen sar o es tat uto
daquel e qu e o lha, e le não mostrari a "o espec tado r", mas a da co nsc iê nc ia espect ad ora , o con ceito de identifi c ação (com
platéia , qu e r d ize r, espectado res múltiplos e d ive rsos. N ad a
46 . Aumo nt et ul ., op. cit.• p. 185 .
ex iste na sa la co mo "co rpo próprio" do es pectado r, qu e pos- 47 . C hri stiun Me tz está mu ito próximo desta posiçã o qua ndo escreve que
"o espec tador, c ru suma , se ide ntifica co nsigo mes mo I...) co mo puro ato de
4 1. C f. Aumont el a /.• 0I'. cit ., pp. 185-187. onde são reto madas as aná lises percepç ão" (Ot' . cit ., p. 69), ou o design a co mo "re fugiado e m si mesm o como
de J.-L. Baudry e Chri st ian Mc tz . pura inst ânc ia de pe rcepção" (p, 75 ). Mas ele parece ainda con siderar o cspcc-
42 . OI'. cit.• p. 187. tad or como uma rea lidade empírica. Sem d úvida por ca usa da "s o lidão do cs -
43 . lbid. Christian Mctz. 0I'. cit. , pp. 69 , 71 . pec tudor de ci nem a" , q ue ele opõe ao "público ve rda de iro [...) pro visó ria
44 . Lacan , "Le stade du miro ir" , an ocir., cf. ac ima, capo111, nota 19. co letiv idade" reu nida no teatro (p . 89). C laro : mas um espectado r soz inho, ou
45 . Aum ont et al., 0I' . cit., pp , 174- 176 e 186. J .-L. Baud ry, 0I'. cit ., p. 69 . °
so lidões viz inhas . não bastam para fazer espectad o r, É necessária, cxatamen -
C hr istian MC IZ, 0I'. cit., pp. 65 -66 . te, a idel/lilicl/C/;o de que esta mos aq ui falando .

114 115
o herói ) não se co rre o risco de um a ass imil aç ão du vid osa?" ex istê nc ia o teatro , desde os mod ern os, se es me ra e m supo r,
Es ta re cus a se funda va num a vontade de não redu zir a co n- é, evidenteme nte, uma prod ução imag inári a, é, e m prime iro
dut a espectad ora a um model o psi col ógic o, mas levar e m lugar, e , sobretud o, na medid a e m qu e aqu ele que se reco-
co nta, nela, o que a co nst itui com o "co nd uta soci a l e cultu- nhece nest e im agin ári o se desconhece fund am entalm en te
ral-esté tica, e , nessa co ndição, e la é também um a co nd uta co mo existente co letivo, co mo assembl é ia. O espec tador é ,
ideol ógic a":". A co nt inuação de sua pes q uisa o le vará a co m- mu ito exatame nte, um exis tente ideo lógico. Pod e-se dize r
ple xi fic ar co nsi deravelmen te essa oposição". M as, já neste qu e o es pectador só existe de pois da represe ntação : na reco r-
te xto de 1962, e le prosseg ue : dação, event ua lme nte, e, se m dú vida a lg uma, nos escritos,
nas recon stitu ições, nas an álises. O q ue existe no teat ro é, de
Antes de ser a ocasião de uma identificaç ão (e m si so b as a parê nc ias de fato, a asse m bléia dos es pec tado res e os efe itos de identifica-
Ou tro), o espetácu lo é . funda mentalmente, a ocas ião de um reconhec imen to ção são, a ntes de ma is nad a, e fe itos de massa, no se ntido e m
cul tural e ideológico. Este reco nhccimcn to de si supõe , no princípio , uma identi-
dadc cssc ncia l (que torna poss íveis, enquanto psico lógicos, os próprios proces-
qu e Fre ud e ntendia a expressão.
sos de identificaçã o psicol ógicos): o que une os espectadores c os atore s reuni- Sem dúv ida, o cinema mu da alg uma coisa nisto tudo.
dos em um mesmo lugar, durante uma mesma noite' ", Porque, se é verdade que as sa las de cinema, sobretudo em seu
surg ime nto , tinh am ant es s ido teatros, odéons ' (e mu itas lín-
Seria o caso de di scutir, ponto por ponto , os term os deste g uas ai nda testem unh am es ta re lação) , e, se o c ine ma tam-
surpree nde nte raci ocín io. Espero poder fazê - lo em o utro mo- bém é um fato de asse mbléia'", também é verd ad e qu e o
mento. Dei xand o de lad o a aná lise das noções utili zad as (re- espectado r rece be, no c ine ma, um a ex istê nc ia co nsi de ravel-
co nheci men to, identi dade e, sobretudo , a suges tão de inclui r ment e refo rçada pe lo d isposit ivo prático q ue or igi na aq uilo
atores e espectado res na refe rida identidade suposta, vou aq ui que um pouco ac ima referíamos como ide nt ificação pri má -
me contentar e m observar qu e a ide ntificação (que A lth usse r ria, O aparel ho óp tico (técnico e nar rativo) q ue co nst itui o
caracteriza como ide ntificação consigo mesmo sob as es péc ies
espectado r co mo suje ito da visão reconduz o age nc iame nto
de um Outro é e ncarada nest as linh as co mo co ndic io nada
ideológ ic o qu e supunha a ex istênc ia do es pec tado r de teatr o,
pela exis tência da reuni ão coletiva. Aquil o que um es pec ta-
mas co nfe rindo -lhe um a ex istênc ia muito mais co ns iste nte .
dor de teat ro cx pe rie nc ia, irreme diave lme nte, a ntes (o u du -
"c;rlamente, 1/0 cinema, o espectador está na imagem, e nãi i
rante) qu alquer identi ficação, é a existênc ia da asse m bléia
e m q ual q ue r outro luga r. Na sa la de cinema , só há espect~
da q ua l e le participa" . De modo q ue se o espectador, c uja
dores, até mes mo um espectador: o espectador, jamais. Mas,
prec isa ment e, e le es tá, co m e feito, na imagem: co mo a lguém
4 8. "Lc ' Picco lo", Bcrtolazzi ct Brecht (Notes SUl' un théâtrc mat érinlistc)",
q ue pe rce be, co mo "o bje tiva", co mo pont o-de- vista-da-c âme-
em POlir MIIIT, Masp éro, 1965, reed ição La D écouvcrtc 1996, p. 149. (E m
portu guês : li Favor de M III :r. tradu ção de Dirce u Lindoso, Rio de Janeiro. ra 5.' . E então enco ntramo -nos d iant e do mesm o paradox o de
Za har, 2' cd ., 19 79, p, 131). antes, ma s, aqui , rad icaliza do: o es pectado r só tem um a ex is-
49 . Cf. seus Ecritssurla ps yc hanalvse, Stock-I mcc, 1993, reedição Le livre tência imaginária, mas se trata aq ui de um imag inário e fetivo,
de poc he Hiblio-cssais , 1996, nos quais se pode ler quase que e m cada página os
realizado, porque a imagem tem uma ex istência real , material.
esforços.ja mais abandonados, para articular ideologia e inconsciente.
50. OI'. cit .. pp, 149-1 50.
5 1. Sobre este ponto, cf. Denis Gu énoun, L'exhibition des 1II00S. II l1e idée (1'0 -
litique) du théâ tre , Ed. de I' Aubc, 1992; (Em português: A Exibiçâo das 1'1I/lIl'raS , * . Odeon ou odcão: ed ifício desti nado , entre os gregos, ao en saio da músi-
ca q ue ser ia ca ntada nos teat ros (C f. Dicionário Mic hae lis). (N. da T.)
UIIIII /déill (Polnica) do Teutro. Tradução de Fátima Saadi, Rio de Janeiro: Teatro
52 . As transform ações recentes da recepç ão do cinema pelo vídeo só fazem
do Peque no Ges to. 20(3); "L'i nsurrection, toujou rs", em LII D écentralisation
ace ntua r a difere nça da qu al es tamos falando .
théãnute. 3 (orga nização de R. Abirached), Acies-Sud Papiers, 1994, e Lettre 1111
53 . Ch ris tian Mctz, OI'. cit., p. 76 .
directeur du théâtrc, Edição de Les Cahiers de l' Egaré, 1996.

116 /17
:I?rlo Nr;t;~ «r 1:v ln(j l) oh ~ ~J!
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, /, jA~ 'rr",,' ptJ./f <; o ./J71(M..,1D/~v..·Wf~ /..( ; '"d i;'/! .
Não que as imagens mentais não tenh am ex istência, mas a Y o co nde nsa m num a subjet ividade pessoal. M s qu and o o
ima gem ci ne ma tog rá fica tem um a ex istê nc ia ex te rna, a públi co invade a sa la, o lugar do ence nado r desaparece, re- .
exi stênci a de uma materialidade exteri or, isto é, ela tem uma move- se a mesa e a lâmp ada, e e le é expulso de seu lugar.
ex-sist ência, prop riam ent e. Com o c inema, o ima gi nário Porqu e, na sa la, não h á lugar para o es pectado r: só para espec-
ex-siste. Ele não está mais confinado na interioridade suposta . tado res, múltiplos e determ inados. No teatro (se teatro quer
Aqui ainda, portanto, o cinema se entreg a a uma espécie dizer : quand o o públ ico est á lá)"não há encenado ~ ik. Ou:
de captura, pela realiza ção daquil o que o teatro havia lon- rante os ensaios, sim. Che ga a estréia: tormento ga rantido . .-
ga mente elaborado como sua ideologia. O cinema cap ta o irna- O encena dor é a rea lização da ideo log ia o teatro. E não
gin ário do es pectador e lhe atribui a co nsistê ncia óptica do co nsiderare mos fortuito o fato de que o surgime nto do ence-
efeito-câ mera. Apontaremos um único indício disto, que afeta, nadar , co mo ofício independente , função estéti ca específi ca,
a partir de então (e como afeta') , a própria relação teatral: o fato seja exatame nte co ntemporâ neo da invenção do c inema. Por-
de que o imagin ário do ator de teatro era, em Stanisl ávski, re- que o encc nador tenta produzi r no teatro uma posição que
figurado com o fi lme inte rior. T ínhamos dito que o esp ecta- está se invent ando a seu lado, no cinema, ca lmamente e para
dor de teatro não tinha nenhuma ex istência efe tiva . Mas isto se mpre: a osi ,- o su'ei to transcend ent al da repr esent a-
não é mais verdade. O espectador nasceu , ex teriorizou-se-;'\ ção . É que o cinema roubou do teatro se u esp ec tador imagi -
faz pouco, alcanço u o estatut o de um ente e até mesmo de umJ n ário. Dand o-lhe seu estatuto, sua existência, sua autonomia:
na imagem . Mas na imagem realizada .
,~fí~i O:. ' o ~s ~ctad r de teat ro existe, como ellcenador O e~­
ce nado r e exatamente 11111 espec tador que se co loca e m P OSI-
ção dc ser o es pectado r. O e nce nado r é es ta co nsc iência
subjetiva, que pret ende oc upar o lugar da assembl éia teatr al, Tant o para o palco quant o para ;1 platéia, tant o para o
por condensação. Todos os tipos de ritos ligad os à função personagem quant o para o es pecta do r, o c inema veio, por-
provam isto co m crueza : basta lembrar o lugar habitu al do tan to, real izar o modelo que o teatro tinha progressivame nte
cnce nado r d urante os ensa ios, lugar do arqui-espec tado r, do e labora do para pensar sua atividade : para reconhecê-Ia e tam -
es pectado r ce ntra l, abs olut o, lugar que se confunde co m fre- bém para desconhecê-Ia. Segund o um esquema que evocava-
qüência co m aquilo que os teatros perspec tivis tas tinh am pre- lh os ac ima , o ci nema, inve nção téc nica tard ia, teria ass im
supos to co mo o lugar do Príncipe, lugar do o lho únic o que feito co nsistir, existir , um modelo es tético anterior a e le: e le
reún e e faz co nverg ir em si as linhas da perspecti va. O cnce- teri a vindo se instalar no lugar de um certo sonho do teat ro,
nada r é aque le que acred ita que o tea tro é feito de i~s . co mo se a invenção técni ca tivesse sido chamada, req uisita-
L
Nã pre end , UI passar em revista todos os c redos (nem da, desej ada antes de nascer, alojando -se no espaço prec iso
todos os esforços) dos encenador es em se u trabalho. Muitos que o desejo precurs or lhe atribuía. Compete aos historiad o- -
deles (cu inclus ive) se entregaram ou se entrega m quotidi a- res da técn ica dizer se a hipótese desta antecipação es tética
nament e a um es forço para desarm ar es ta posição: multipli- (e ideol óg ica) da invenção tem algum valor. Vou invocar aqui,
cação de pont os de vista, sa ltos perp étu os na direção do palc o, para me aco mpanhar ao men os nest a fantas ia, um últ imo
desejo de integração no co letivo dos atores. Falo simples- testemunho, que nel a se apó ia. Trat a-se do surpreendente
mente da lóg ica histór ica, inevi táve l, da função, do sis tema texto de Eise nstei n, intitulado "Diderot falou de cinema"!' .
que investe se u lugar: O cncenador é o espect ador de teatro
encarn ad o. É por isto que os ence nador es licam tão in eli~
dur ante as à rese nta ões : o lugar deles só está garantido du- 54 . "Didcr ot a parl éde ci n éma" . In Lc 1IIf1I1I 'CmCII/ de l 'urt, texto esrabele-
ran te os e nsaios , na ausência do públi co. Eles o fig ura m, eles cid o por F. Albéru e N. Klciman, Ed. du Cerf, 1986. pp. 77-96.

118 119
o qu e oc upa o cineasta nestas pág inas é o probl ema do partir da re ferên cia a um olho flutuante , qu e pod e es tar em
ator e de s ua atuaç ão. Eng ajad o numa nova fase de sua ati vi- tod os os pontos, múltipl o e móvel - o da câ me ra. Op era-se a
dad e de e ns ino e de rea lização"; Eisen stein lam enta qu e os "passage m do acont ecim ent o notad o unil ater alm ente ao aco n-
atores de c ine ma (pelo men os os sovi éti cos) estej am ainda tecimento ce rcado - ao acontec iment o exposto de tod os os
presos à retór ica e à ê nfase da rep resentação teatral , quando lad os." Por es ta e xpos ição o mnidi rec ional, é preciso co nse -
seria preci so que man ifest assem "a vida abs olutamente ve r- gui r qu e a atuação não se preocupe lIIais com sua exposição, • r7r ~'" li'
dad eira qu e é necessária diant e da objetiva?" . Ora, a ina- ma s com sua necessidade interna, produ zida ela s rel açõ es I"/
daptaçã o da atuação teatral a esta necessidade pr ocede das - - -- ~ -' .
e ntre per son agens e sua co mutllcaçao com o mei o no qua se
co ndições da represe ntaç ão : as d imen sões da s salas, a di s- ~ es tabelec e a acão".
tância do públi co e, so bretudo , o fato de que este es teja arti- Ora, Eisen stein dedi ca o essenci al de se u text o a mos-
fici almen te s ituado de um único lado da atuação (es ta últim a trar qu e o teatro, há muito, manifesta esta exi gên cia. A ne-
carac te rística le vand o a uma o rientação unil ate ral da expres- ces sid ade de uma mudança de ste tipo na atuação não nasce
são) co nd uze m inev itave lme nte os a tores de teatro a um j ogo co m o cine m a, não é trazida até os atores de teatro a partir do
fo rçado , ex agerado, que acaba por se reduzi r a um úni co de exteri or, pel os efeitos induzidos pela nova técnica. Sua ne-
seu s planos e c ujo resultad o é que ce ssid ad e é proclamada de dentro do teatro, c muito ant es da
aparição do cinema. É um requi sito interno ao teatro. Mas,
o que, do balcão, se acha que é uma ' nuance' expres siva é, na verdade, uma
no teatro, e le é abs olutamente impossível de sat isfa zer : o
careta apavo rante de tão crispada, o que se ouve 'em meio-tom' nas últimas
fileiras da plat éia é, de Fal o, o grito de um ator que se esgoc la e o que parecia teatro não pod e, por si mesmo, resp ond er a esta necessid ade
cheio de vida c de verossimilhança no palco, revela os traços caricatura is ou qu e ele manifesta . De forma que esta ve rdade da atuação,
grotescos diante da objetiva" . feit a de des- ênfase, de redu ção de sua a mplitude às dimen-
sões do model o, de re-adequação à medida e à sobriedade da
Para rem ed iar es te defeit o, Eisen stein e labo ra um a no va téc- vida , produzidas por sua des-orientação , sua ca pacida de de se
nic a de form ação dos a to res de cinema que pretende qu e , subtrair ao comando da posiçã o do públi co para se coloca r so b
durante os e nsa ios, o di sp ositi vo de trab alho seja, de alguma o olh ar de uma espé cie de espec tador universal , esta verdade,
form a desteatrali zad o : port anto, é 11111 sonho do teatro, que o cine ma vem realizar: "O
qu e está ac ima da s forças do teatro aparece como a cond ição
Os tablados Foram destruídos: a ação cênica Foi le vada para um ambiente
murado dos quatro lados. O p úblico fica sentado à roda volta. O cncenado r circu- inicial I...] d o cinema. I..,], O que é inacessível ao teatro - está
la: procurando o ponto de demonstrutividade máxima do lado preeiso e m que a totalm ente ao alca nce do cinem a". E, portant o: "O cinern at ó-
ação assume mais relevo [...]. O ntor ignora de onde a lente da objetiva pode fix á- grafo é j ustame nte o únic o domínio o nde podem ser realiza-
lo: ele não pensa em si mas em seu parceiro, com o qual está ligado pela atuação; dos os sonhos daqu eles que del iravam [,..] no teatro'?".
ele não pensa na ribalta ou nas coxias, mas na porta q ue o atrai, na janela pela
É por isto que Eisenstein se empe nha em mostrar qu e o
qual ele tem vontade de olhar, no sofá no qual ele tem vontade de se deitar.
teatro fala, em alguma medid a, do nascim ent o do c ine ma, antes
Trat a- se, port ant o, de passar a um a repr esentação sem públi - que ele ocorra. O desej o de verda de no teatro é um a "antecipa-
co: não co nstruída di ant e de um olhar situado, fixo , em rel a- ção":" do qu e o c inema fará qu and o surgir. É a Diderot que se
ção ao qu al a ação se o rga niza e se orienta, mas es truturada a deve c reditar es ta faculdade vision ár ia. Po rque Diderot , so -

55. Cf. nota dos editores, til' . cit., p. 258. 58 . lbid., pp. 88-90 .
56. l de m, p. 88. Grifo meu. 59 . lbid. , pp. 8 1,88,87. Grifo meu.
57 . Ibid., p. 86. 60. lbid.. p, 78.

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bre tudo nos textos conh ecid os so b o títul o de Entretiens surle Sabem os qu e a idéia será retom ad a mais tard e e, profunda-
Fils natu rel [Co/lversas sobre o Filho Natural], Formula um ment e pen sad a por Stanisl ávski, que Eise nstein, claro, conh e-
ce rto número de e xigê ncias que anunc iam e prefigur am aq ui- cia e a qu em c ita'", O ra, es ta idéia não é aplicáve l no âm bito
lo a que o cinema de verá, e poder á, respo nder. Estas ex igências do teat ro . St ani slá vski e se us seg uidores no Teatro de Arte
são : uma atuação natu ral, imediata, veríd ica, e m co nfo rrnida - nada co nseguiram a es te respei to e, para falar a verda de, fo-
de co m a naturalidade da vida , claro; mas de mod o mais origi- ram ob rigados a "matar no nasced ouro esta fé ilusória na qu arta
nai: o de sejo de um cen ário móvel, que mud asse de algum parede da cena teatral"?". Por quê? Porque, para Eisenstei n, o
modo a cada ce na ("Ah! se tivésse mos teat ros nos qu ais o ce- teatro é inca paz, apesar das ten tativas experi me ntais (q ue ele
nár io mud asse a cada vez que o lugar da ce na tivesse que mu- . co nhec ia be m, por ter part icipado de mu itas de las), de pôr em
dar!"?'), até mesm o e m dife rentes momentos de um a ce na (ao prát ica o aba ndo no da direçã o impos to pela presen ça do pú-
lon go de um passeio: "e a última ce na aco nteceu e m tant os blico. Eiscns tcin cita e m nota es te interessante co me ntário fei-
lugares d iferentes quantas fora m as pausas qu e fez es te hones- to por um obse rvador : "Nos últim os anos, K. S. Stan islá vski
to ancião?"): o so nho de um abando no da frontal idade ("Co n- di zia não a prec iar as e nce nações pre viam ente es tru turadas .
venha mos qu e es te quadro não poderi a real izar-se em ce na, Ele sonhava co m um a cena e m qu e as qu atro paredes fossem
qu e os dois am igos não ter iam ousado olha r-se de frente, vol- móv eis e o nde o ator não tivesse co mo se esq uivar durante o
tar as costas ao espe ctad or, se apr oximar, se separar, se rca- espetácul o... "7l1. M as só o cinema pod erá realizar esta hip óte se
proximar"?'). Em resum o, tudo o que leva Diderot a qu erer -:crc um o lhar poten ci al , capaz de surgir inopin ad amente de
"transpo rtar para o palc o o sa lão de C lairville, tal e qu al"?' , qu alquer lugar, à revelia dos atore s. Por que , afin al, a qu arta
isto é, le var a vida para o palco ou, antes , deixar a ce na pela pared e é co ndenada, no teatr o, a não passar nun ca de " um
vida (" De ixem de lad o os palcos; voltem pa ra o sa lão"?") de so nho"? Obv iamente porqu e o teatro não pode abolir o público.
form a a mudar radi calm ente de po nto de vista so bre a repre- Diderot diz, no trech o qu e precede a cé lebre citação : "[pa ra
se ntação: "EU - M as no teatro! DORVAL - Não. Lá não. É no co nseg uir isto], se ria necessár io qu e o autor e o ator es q ueces-
sa lão qu e m inha o bra deve ser j ulgada"?", De novo o sa lão . sem o es pec tado r e qu e tod o o interesse fosse relati vo aos per-
Para Eise nstein, es ta ca pac idade antec ipado ra de Dide rot so nage ns [...]. Po rtanto, qu er es teja m escrevendo, qu er es teja m
se caracteriza , so bretudo , por duas outras inve nções, q ue fo- represe ntando, façam de co nta qu e o es pec tador não exis te.
ram , po r assi m d izer , inve nçõe s ci nema tográ ficas anteci pa- Im aginem no prosc ênio um a gra nde pa rede etc' ?' . A qu arta
das. A primeira é a inven ção da qu arta parede. Eise nste in usa parede é um so nho de abolição do público - qu e o teatro não
co mo epígrafe de se u e nsaio , e a retoma no corpo do texto, a , pode de forma alguma sat isfaze r.
cé lebre c itação do Discurso sobre a Poesia Dramática: " Ima- M as co m o q ua l pod e so nha r. E eis qu e Ei senstein se
ginem no prosc ênio uma gra nde parede que os se pa ra da pla- inte ressa por um a ficção de Did e rot , qu e lhe parece pro fet i-
téi a e re prese nte m co mo se a co rtina não se lcvantassc'" ? zar o c ine ma. Sabem os que a peça, le Fils natu rel , é, po r
J) /[){YltJT li ~ ~fl-e~ ~---
61 . tbid., p. 92 . Cf. Dide rot, Oeuvres. Gal limard-La Pl éiadc ( 1992), p. 1206 . tique, em Diderot et le th éãtre, l, le Drutue, aprese ntação de A. Ménil , Agora-
62 . Eise nsle in, ov cit., p, 93. Didcroi, 0I' . cit., p. 1207 . Pocket, p. 20 I. (E m port uguês , há a tradu ção de L. F. Frunklin de Matos, Dis..
63 . Eiscnsrciu, 0I'. cit.. p. 95 . Didcro t, idem, pp. 1211 ..121 2. curso sobre li Poesia Dramática, São Paulo, Brasilicnsc, 19 86. O trech o referid o
64 . Eise nslein.o/,. cii., p. 84 . Diderot , 0/' . cit., p. 1227. está na p. 79).
65. Eiscnstcin, 0/' . cit. , p, 95 . Didcrot, 0/). cit., p. 1209. 68. 0 /,. cit., pp . 8Dc 83 .
66 . Eis cns tcino», cit., p, 85 . Didcrot, 0/' . cit.. p. 121 D. 69 . lbid .. p. 84 .
67 . Eiscns tcin, 0I' . cit., pp. 77 c 87 . Os ed itores ign ora m a refe rência da 7D. lbid. , p. 83, nota, Grifo meu .

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citação, qu e eles rctradu zcm do russo . Didcrot, Discours surla poés ie drama-

II 78 -79). J23
122
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f5 l LOVf.-41'."(I1}
'DtPE'(1fi ~
ass im dizer, emoldurada por uma es pécie de pre fácio e por personagem - aproxim ação aindr mais des-cj ad.'l-Jla-m ed ida
um posfácio co mposto pelas ci tadas Entretiens. Or a, pre fá- e~~lro..acabaya Jte.s onc l u~eRa raçªo i!rem ed i ~­
c io e pos fácio co ntam uma hist óri a que o própri o Dider ot ve l e ntre um e outro (é o próp rio Diderot quem vai esc rever o
chamará de " uma es péc ie de romance" , e qu e relata as co n- Para doxo ) - ideologia da ce na que so nha co m a supressão
dições pre vista s par a a representação da peça, seu "o bjetivo de sua se paração em relação ao mundo e , portant o, so nha
não se ndo apres entá-la no teatro "?". A histó ria se re fere a suprim ir a si mesm a enqua nto cena em bene fício de um lu-
uma família que decid e repre sentar para si mesma fatos mar- gar pur am ente vivo, onde só se tra variam relações entre per-
cantes que lhe aconteceram realmente. O filho , Dorv al , es- so nage ns (o salão) , integração deste so nho no d isp ositi vo de
creve a peça que os reco nstitui. Cad a memb ro da famíl ia um ro ma nce, declarado como perf eitam en te im aginário ,
desemp enh a se u próprio papel. A representação aco ntece no prod ução concom itan te da figura do espectador, so litário,
sa lão e co m os figurinos que viram os aco ntecimentos se da - isolado, ignora do pe los atores e red uzido a um pu ro olhar e,
rem, o u se co ncluírem. O texto deve repro duzi r as palavras enfim, last but not least , dete rminação rigorosa deste especta-
que foram d itas . Em resum o, há aí um a ficção perfeit am en te dor co mo " Eu" (Moi): não falta mais nada.
louca, de um a (co n) fusão da real idade co m a rep resent ação. E Einsenstein também. A respeito deste trecho, ele escreve:
Que es ta iniciativa, por um lado, fracasse - no qu e diz res-

,
peit o ao " romance" - não nos import a aqui. Ma s ela exprime [e m vez de ccntirios], as quatro pared es do cô mo do . Qua tro , preci sam ent e.não
um desejo de cor respo ndê nc ia, até os limites extrem os co n- três. [...1Os espe ctadores? Hii um es pectador. Mas este único es pectador n50 se
parece co m o rei Lu ís 11 da Baviera q ue gostava de se r o único es pec tador c
ce bívcis , da represent ação co m os fatos que e la representa e
mandava qu e representassem só para e le os dramas m usicais de Wagn e r [...1.
~.e se .c o. ntent '.l~'ia: ao menos assi.ntoticam ente , em re-p rodu - Ao contrário deste rei. insta lado no vaz io de um teatro , es te es pectador é hum il-

c
ZII . Ne nhum pu blico, portan to , lora os próp rios atores, q Uj . de, insignificant e ; ele se en co lhe aq ui mesmo, nesta sala, de lado , num ca nti-
são t~~11 b é m pers on agen ~ , e au tores de se us papéis. Nen hu- nho . para não perturba r o que acontece na cena , que não é mai s um tab lado,
ma difere nça representat iva, exceto a do tempo que passou mas si mples me nte um côm od o comum" .

e também a mo rte, que bloqu eará a máquina. O ra, Didcrot


Eise nstein aponta aqui, co m precisão, a co nstrução efeti-
não se co ntenta co m este roteiro de aniquilame nto desejado
va da quarta parede, a supressão do público e sua substituição
da ntintêsis. Porque Dideror, ou ao men os o per sonagem do
pelo espec tador único. Ele nota também que este es pec tador
" romance" que se rá denomin ado "E u", enco ntra, ainda as-
vem tom ar o lugar do es pectado r real, o M on arca so litário
sim, um lugar na ce rimô nia. Mas um lugar abs olutament e
d iante do es pe tác ulo, cujo desejo de prop orcionar apenas a si
esco ndido . Introduzid o furtivamente pelo person agem prin-
'mesmo a represe ntação é uma mania de louco, o so nho deli-
c ipa l (pe lo herói" desta histór ia), es te " Eu" se dissimul a no
rante de um Príncipe que quer ocupar se m part ilhá-Ia a posi-
sa lão, atr ás de um a tapeçaria e vai pode r ass istir, escondido
ção tra nsce nde nta l do Sujei to . O espectador será o s ujei to
dos atores, a tod a a rep rese ntação. É evide nte que não pode-
mode rno, neutro, supos tamente comum" . que virá substituir
mos dei xar de ver neste " romance" uma ex trao rdi nária fiou- b
o del írio real, não mais mand ando edi ficar um teatro para si,
ração da co ns ti tuição do es pectador so nhado pel o teatro.
mas se intrometendo fraudulentamente na ce na, d issimul ado
Porque tod os os elemen tos es tão a li: abo lição do pú blico efe -
no própr io lugar da ação , esco ndido num recanto do que não é
tivo , enquanto co letivida de, fantas ma da redu ção da di fe ren-
mais um tablado mas um pedaço do mund o rea l. Ora, tudo
ça rep rese ntat iva e da aproxi mação for çad a e ntre ato r e

74 . O/I. cit., pp. 14 1-142.


72 . ldem , p. 193. 75 . C l. J.-L. Na nc y, "U n suje i?" , in Homnte et suj et , organiza ção D. Weil ,
73. Cf. Entretiens sur lefils naturel, e m Oeuvres , 111'. cit.. p. 1201 . L'H an nan nn, 1992, p. 47 .1'1{.

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um modo de realidade muit o part icul ar, imág ico, não parece
isto aco ntece no regi me da supos ição, claro: apenas na e fetivi-
dade (romanesca) da suposição. Porqu e Eisenstein prossegue: preocup ar Eisenstein nem por um instante . . ,
No pe nsa mento de Eisen stein , este desconh ecim ento e
Evide nteme nte este teatro não é, ass im co mo o espectado r e sua forma de estrutural. Co mo se a imagem fosse pen sada por e le de modo
participação no espetáculo também não são, nada alé m de um jogo da imagi na- laten te, co mo o real que vem . Vej amos um últim o exemp lo.
ção . Que. por mais imaginário qu e sej a, exprime com coe rênc ia a essên cia das A passagem acima , curiosamente, não está no texto " Diderot
tendências e das aspirações às q uais scu aut or gos taria de dar corpo. falou de cine ma" - e mbora seja a ilustração mais cla ra do
título -, ma s num outro ensaio , mais ou me nos co ntem porâ-
E aí chega mos ao âmago do espantoso eq uívoco de Eisens- neo daq ue le, intitulado "Cine ma em Relevo"71 . Nes te t~xto ,
te in. Po rque o imag inário é, para ele (co mo para nós), a fic- Eise nstcin repete que o cinema substituiu o teatro, realizan-
ção qu e produz o esp ec tado r do teatro e lhe at ribui figura do tud o o que o teat ro queri a e, so bre tudo, o qu e ele qu er ia e
rom anesca. Mas para Eise nstei n es te imagin ári o é a marca não consegui a reali zar. Mas aqui o cineas ta se preocupa co m
do limit e do teatro , de sua imp otên cia para abrir lugar, e fe- o f~to de qu e, naqu ele moment o, a superação cinema tog ráfi-
tivamente, para este espec tador. O teatro sonha, imagi na, um ca do teatro ainda não tivesse con seguido "de stacar" uma
d ispos itivo que respond a a suas tend ências, a suas aspirações, dimen são do teatro: a visão em pro fundid ade, qu e e le ana li-
mas fracassa em lhe dar vida. Por este sonho, e le apen as ante- sa em det alh e com o ligada à existênc ia do ca ráter tridimen-
c ipa o c inema que dará co rpo a esta pré-fi gura ção. Foi neste siona l da platéia e , port ant o, ao volume efetiv o do es paço
sentido que Diderot falou de cinema. Mas com o c inema, o que recebe o públi co. Apesar de diver sas ap roxi mações téc-
cará ter imagin ário deste sonho vai cessar. O cinema vai inves- nica s que e le co menta (pro fund idade de campo, grandes an-
tir o es pec tado r e seu modo de participação de um a existência gul ares ctc .), o c inema co ntinua aind a prisi onei ro de ~
real, "objetiva", é o caso de d izer: "Cento e tant os anos mais forma chapada : du as d imensões. O teatro co nserva, po rtanto
tarde, graças às possibilid ades de uma obje tiva ci nematográ fi- ruiii"' privilégio e m relação ao c inema: sua aptidão pa~a a ~r~­
ca des lizante, invisível, através da ação, esta presença de um fu ndidadc, a tridim en sion alidade, e esta va ntage m e solid á-
olho est ranho ao núcleo dos aco ntecimentos mais íntim os se ria em relação ao dis positivo co nc reto da assem blé ia dos
tornará c encarnaç ão real dos propós itos so nhadores de Di- espectadore s reu nidos: efe tivamente, o vo lume da platéia e
l
de ' "7ó que nos espan ta não é tanto a an áli se que Eisens- os azcn ciamcntos que ali aco ntece m asseg ura m ao teatro a
te in faz da realizaç ão do imagi nário do espectador pe lo olho possibilidade de um percurso do olhar pelas saliências e re-
da câmera , sua concepção da câmera co mo imag in ário reali- entrânc ias, por aprox imações e afastamen tos co ncretamente
zado do teatro, advento daq uilo que o teatro tinha fantasiado múltiplos. Or a, de modo co mp letame nte estarrecedor \estar-
como posição do es pectado r, voyeur onipresente e ignorado: reced or pel a ingenu idade teóri ca e históri ca), Eisenstei n de-
tudo isto corrobora nossas hipóteses. É, em es pec ial, o fato de clara es perar, co m ce rteza, a anexação desta ap tidão pel o
que e le parece desconhece r, sobe raname nte, que esta realiza- ci ne ma , graça s ao adve nto imin en te do ci nema em relevo,
ção se produ z lia imagem e COl IIO imagem. Que se trata, por- que vir á, necessari amente, porqu e a bid imension al ida.de da
tan to, d e uma realização do imagin ár io lia image m, sob o tela dei xav a, naqu ele mom en to, o c ine ma totalm ent e Impo-
mod o d a efetiv idade determinada da imagem . E le a co nside - tent e para integrar no se u âmbito a profund idade da platéia.
ra simplesmente com o um a encarnação real: que es te rea l Ora, se o cin em a integra e ultrapassa o tod o do teatr o, ele
seja o real da imagem , e apenas del a, e que , portanto, o qu e deve integ rar tamb ém isto. O cinema em relevo é, port ant o,
se co nc retiza assim - o sonho que se reali za - o faça segund o
77. "Du c inema c n rclic f", CII1 Lc mouve tuent de /"111"/ , 111'. cit., p. 97 SI{.
76. lbid. , p. 142. Grifo me u.

127
126
inelutá vel. O pro blema, para nós, não es tá no fa to de Eisens-
tein anuncia r co m a cert eza de um oráculo a gen erali zação
imin ente de um a técni ca qu e c inqüe nta anos dep oi s de se u
texto co ntinua marginal : som os tod os ca paz es dess e tipo de
profeti sm o técnico, qu e nos faz vat icin ar, per emptori am en-
te, profundas mudanças sem futuro, e nos impede de e nxer -
gar as que se processam bem diante de nós - Ei sen stein ,
muito c urioso a resp eit o das pesqui sa s técnicas, é prati ca-
ment e indi ferente à apa rição do vídeo . A surpresa maio r é o .--r--
fato de Eise ns te in ign o rar, si mples me nte, qu e , caso ocorres-
se , a abso rção da platéi a no relevo da te la se ria, aind a assi m,
uma integr ação do vo lume lia imagem, um a rea lização pela
6 O 1 0 GO

imagem: uma absorção (imagi nár ia) da platéia pelos rec ursos
técni cos da tela. E tam bém o fato de que ele anunc ie es ta pro-
funda mud ança co mo pur a real ização prática, realização e fe-
tiva da teatr al idade, indiferente ao fato de estar predi zendo
apen as uma exte nsão do mundo da imagem.
Co mo co mpree nde r qu e est e hom em genial - e lúcid o,
ate nto, esclarecido - tenha tomado os desen vol vim entos do
c ine ma po r me ra realid ad e, se m le var e m co nta a dominação V
del es pela imagem , e tenha visto no sujeito-câme ra a reali-
zação do espectador, se m se dar co nta de qu e é sua real iza- Este é o pont o e m qu e IIÓS es ta mos . O teatro se deix ou
ção por me io da image m, "i m ágica"? Vam os le van tar aq ui desp ossuir do imagin ário qu e tinha progressivamente elabo-
um a hip ótese. Talvez tudo isto demon str e ape nas qu e , para rad o e m se u âmbito - de sua ideologia , pod emos di zer , desd e
ele , a prát ica da imagem er a, efetivame nte uma práxis, um qu e não se co nce ba so b es te term o um a nu vem de represen-
campo de ope raçõ es reais. Sua a tivida de não era a de um tações so bre voando sua pr ática, ma s antes um conjunto de
espectador co mum, mas a de um diretor. Talvez, no fund o, form açõe s imaginárias ativas, que inte rvêm , realm e nte, por
se u di scurso sej a o de um e ncenado r. Porque o encenador é o reconhec ime nto e desconh ecimento , em seu mo vim ento. Su a
único espectador cujo olhar se empenha 1I1lIIW prática - um a história tinh a visto nascer duas gra ndes figuras fundamen -
ação. Todos os o utros mergulham na imagem , no ima gin ári o tai s, a m bas imagin árias: o pe rson agem , o espe~tad or, qu e
reali zad o - é mai s um a es pécie de paixão . O espectado r, atua lme nte passaram pa ra a es fera do ci ne ma . E , e ntão, ao
vej am , é ele: mais ai nda qu e o e nce nado r de te atro, especta- ci ne ma qu e devemos nos d irigir se qui serm os ve r person a-
dor anteci pado e necessariamen te infeli z, o ci neas ta, é o único ge ns (e com es tes nos ide ntificarmos) , o u se qui serm os vi-
c uj o olhar va le efe tivame nte co mo práxis, é o ún ico mimêt ês ve nc ia r a e xpe riê nc ia de serm os s uje itos -es pec tado res da
reunifi cad o, resumindo e m si tod a a históri a da representa-
re presentação . Daí o prestígio in-finito do c ine ma, e qu e ele
ção - o ci neas ta , diretor do imag iná rio, suje ito-so be ra no das infunde, e m alguma med ida, aos diferentes modos de co m u-
imagen s do tempo . nica ção e m que aparec e: televisão, vídeos, publi cid ade e tc.
O cin em a sa tisfaz, e instiga nossa dem and a de identifi caçã o
- co m os o utros, co mo figuras, e co nosco, co mo sujeitos . E o

128 129
teatro nisto tudo? Aqui ressurge nossa questão . Se sua neces- sua necessidade. Isto que se designa como o jogo do ator
sidade repousasse apenas neste modo de representação , ele ocupa hoje em dia todo o espaço deixado livre, habita todo o
deveria desaparecer. Ou sobreviver apenas para atestar um palco. Sua necessidade intrínseca não pode ser mais deduzi- J~
da da necessidade de dar vida a personagens. Ele não precisa ~ .S
ass.ad~ já sem po.der,_eclipsa?o na contemporaneidade. E~ill'
" . aten d er a esta
cmais '. d______
eman d a. EIe estrutura SOZIn . h o o dornf-" I."
JV'nJ? rrn> ,
ele insiste , se se impoe obstinadamente como componente
ativo de nossa história, se nele algo de vivo se mantém ou se nio, responde por si: a necessidade do jogo é o jogo . O jogo
desenvolve, é porque sua necessidade se inscreve não mais do ator não é mais determinado pelo imaginário dos perso-
neste regime da representação, mas em outro lugar. É por- nagens . Ele roça neles, chama-os ou os ignora, depende : mas
que sua função profunda não é mais colocar frente a frente o não lhes obedece mais . O sistema de Stanislávski não é mais
personagem e o espectador. Ou: porque não vamos mais ao o sistema do teatro - é no cinema que ele deixa suas marcas
seu encontro para desfrutar da visão de figuras imaginárias, recentes". Não que seus livros sejam inúteis: grandes livros
nem para vivenciarmos uma subjetividade constituinte da de teatro, eles vão além do "sistema". Mas este não exprime
representação. Para tent ar circunscrever sua necessidade , tal mais, enquanto sistema, a necessidade de nosso teatro, nem
como ela nos domina hoje em dia, é preciso procurar com- a necessidade do teatro para nós. Tudo o que , nestes livros,
preender o que lhe resta depois do seqüestro desses fantas- diz respeito à nossa necessidade de teatro está ali, apesar do
mas . E, portanto: o que acontece com ele . Duplamente, porque sistema e através dele . Nossa questão não é mais fazer viver,
ele é duplo : tablado e arquibancadas . nem, portanto, viver ~ápéis. Pode ser necessário fazê-los vi-
v'er, mas.-r.ara fazer-
~v~ 0. ....0 00 .., E o jogo que sustenta o
Em primeiro lugar, examinemos o palco. Ele era o lugar p., pe l;-hao maiSõCõrít[;'ÍriQSeõ's personagens são dotados
da existência conjunta de uma prática efetiva - o jogo dos d e uma necessidade, ~ dobra diante da necessidade do
atores I - , e de seus efeitos de figuração - os personagens. Ele jogo, que a institui.
foi pouco a pouco se aclimatando à coexistência entre essas O que é, então, este jogo? Como o caracterizar? A ques-
duas instâncias, e foi partilhado para atender aos dois espaços tão é complexa e pede uma reflexão que não se limite ao
distintos: espaço prático, espaço figuraI. Espaço concreto, es- teatro - mesmo se o teatro solicita, evidentemente, todo pen-
paço fictício . Vimos d' Aubignac trabalhar, pacientemente, samento que tenta apanhar o jogo em sua rede", Assinale-
sobre essa disjunção . Esquematicamente, podemos formular mos, com prudência, algumas indicações.
essa constatação do seguinte modo : se o personagem, ou, ao O jogo que invade a cena é, em primeiro lugar, o jogo
menos , sua eficácia, sua força imagin ária (e com ele todo o que lido se apaga sob seus efeitos de figura. Aqui Brecht tem
aparato de seus lugares , tempos, ações imaginárias, ou, ao razão e sua crítica a Stanislávski leva mais longe do que o
menos , sua capacidade de enfeitiçar abandonaram o espaço brechtismo e do que o próprio Stanislávski. Brechtianos ou
da representação teatral , isto significa que no palco hoje só
resta o jogo dos ato!·es. Claro, am a encontramos ali perso- 2. Cf. Lce Strasberg , Le travai! ti l 'Actors Studio, Gallimard, 1969.
nagens e efeitos imaginários ligados aos papéis. Mas são agora 3. Cf. E. Fink , Le [eu comute symbole du monde , Minuit, 1966; H.-G .
efeitos secundários, que não sustentam mais a singularidade Gadamer, \lérilé et méthode, op, cit., pp . 27-99 ; J. Derrida, L 'Ecriture et la
différence, Scuil, 1967, pp. 409-428; G. Delcuze, Logique du sens, Minuit,
do teatro e não trazem mais em si nem com eles, a razão de
1969, pp. 74-82. (Em portugu ês, dispomos de H.-G . Gadamcr, verdade e M é-
lodo , op, cit ; J. Derrid a, li Escritura e a Diferença, tradução de Maria Beatriz
Marques Nizza da Silva, São Paulo, Perspectiva, 1971 c G . Dcleuze, li Lógica
I. Haveria muito a dizer sobre o processo que, progressivamente, determinou
essa prática como jogo, mais que como imitação ou declamação. Para isto, seria do Sentido, tradução de Luiz Roberto Salina Fones , São Paulo, Perspectiva, 4'
preciso examinar com muita atenção a história do teatro na época da estética. ed .,20oo).

130 131
não, os atores mostram , hoje, em pr imeiro lugar, qu e es tão atores c um pre m , então, no palc o, não est á ma is rel acion ad o,
rep rese nta ndo . Eles ex põem a nud e z de seu jogo, despido int imamente , co m as exigênc ias de co nfecção de ide ntidades
"dos apa ra tos e véus do papel", e neste es paço de visibili dad e narrati vas, mas co m a efeti vação de um a lógi ca do j ogo .
des-coberta, deix am nascer os efeitos figura is de sua exib i- Vam os rec ord ar algumas de suas ca ract e rís ticas .
ção. Cl a ro , nenhum j ogo de ator jama is con seguiu desap are- Tr ata- se, e m primeiro lugar, de um ce rto rigor da exis-
cer tot alment e po r trás das imagen s: mas o jogo prete ndeu tência cênica . Ex istênc ia física: o pr ime iro requ isit o do jogo
es te apagar-se , e subme te u a isto suas marcas. O ato r pô de pro vém da apresenta ção do corpo . Não da rep resentação pelo
acreditar , o u desej ar, esquecer- se, eclipsar -se por tr ás de se u co rpo de a lguma co isa da qu al o co rpo se ria a figu ração, ma s
papel , e ntra r na pele do person agem , ex tra ir a materialidade da e xibição do próprio co rpo . Or a, esta mostração pret~
de se u ges to . Est a aspiração co nd iciono u co mporta me ntos alca nçar um a ve rda de qu e não é a da adeq uação a um a ima-
c~ nicos , bem co mo inte rpretações esp ectad o ras' . U ns e ou- ge m, mas a da inte gridad e de um a presen ç a. Es te estar-a í
tros são ag or a rem etidos para fora d o jogo. Mas o que se sobre o palco nã o tem nada de ord iná rio : aqui a espontan ei-
e xibe e se desnuda ass im não é a pessoa do ato r, sua ide nti- dade se re vela falsa. Submetida ao olh ar, ao fato d a e xpos i-
dade plen a, se u se r de antes (o u de fora) da representação: é ~ a es po nta nei da de , e m ce na , se m ost ra fal sa. Tr ata-se
seu jogo. Se a lgo dele próprio (de sua pessoa, de sua identi- e ntão de el ab orar um a ve rdade fís ica. Os mé tod os va ria m:
dade, de se u se r) aí se de sp e ou se rev ela , é como jo go . pro cura da aut ocol ocaçãQ..dc um a jnter i ~e (q ue, dian te
O jogo dos atores diante de IIÓS resulta, e m segundo lu- do o lhar, deve ser conqu istad a), ou, ao contrári o, tra illbo da
ga r, de um trabalh o, de protocolos, de téc nicas o u de insp ira- eXjJosição Rela expos ição , bu scan o sua cclosª-o co mo osten-
ções qu e não o bedecem mais ao imagi nário d o pe rson agem . iaçcio /l O ÔI-;J;[to da verdade. O horizonte é se mpre o de um a
Su as questõ es ess e nc iais não dec orrem mais da exigê nc ia de p reciscio : d o de sl ocamento, ~Io ges to , do o lho, da própria imo-
te r qu e figurar um bom Tartufo ou um a Ysé convincente ' . 1i ilidade . E est a eXIgênCia não é represent ativa, mas aprese.!!:
As escritas co ntempo râ neas , em suas in vestida s mais vigo - w iva. Éfã per segue um a espécie de auto no rmativi da de d a
rosas, se empe nhara m na des-con stru ção do person agem e o ' aprese ntação. Co m preende-se o rec urso à dan ça, re fer ên ci a
es tilhaça ram", Muitas en cen ações rece ntes o maltrataram , maio r. Porque a dança aparece e m ce na co mo um a arte fina l-
mesm o e m te xtos c l áss icos . E uma boa part e da invcntivid a- mente liberta do mim eti sm o. A dança j á não se define mai s a
de cên ica recent e se dese nvo lve u fora ou à ma rgem de s ua partir dos at rib utos de papéis, su po ndo -se qu e alg um d ia e la
força", Mas o mais pro fundo não está aí: o prog ram a qu e os tenh a re almente fe ito isto . E la experime nta um a precisão
cê nica do mo vim ento. C ompreende- se também o tropi sm o
4. C f. Deni s G uéno un "Le dénudement , Une invitati on 11 la lecture de Tal- da nud ez qu e invadiu os palcos : o nu é a e xpos ição extre ma
ma" , e m Les Temps Modetnes, n. 534 , janvier 1991 , p, 44 s. ao o lhar, a ver dade últ ima do qu e é o ferec ido à visão, o nde o
5. " Es ta represe ntação de ixa para trás tudo o que é ac ide ntal e não essen - corpo não pod e se abrigar co mo gostar ia, mas tem q ue qu e-
cial, por exemplo, a mane ira de ser partic ular, própria de um dado ator. O reco -
rer e s uste ntar a so be rania c a indigê nc ia s imultâ neas de se u
nhec imcnto do que ele represent a o faz desa parece r co mpleta me nte." H. G .
Gada mc r, 0I' . cit., p, 41. (E m português: cf. 0I' . cit., pp. 192 -19 3: " Uma tal est ar-ali .
represe nta ção deixa atrá s de si tudo que sej a casual e secundário , p, cx ., o se r Este des locame nto da nor mat ivid ad e cêni ca e m direç ão
peculiar c espe cial do ator. Com rela ção ao conhecimento daqu ilo que e le re- à seca aprese ntação, à preci são de um ex istir remetido a si
prese nta, ele desaparece inteirame nte.") mesm o e, co ntudo , o ferec ido ao o lha r (o u ao o uv ido), a feta
* Ys é: protago nista feminina de Le partuge de midi, de Claudcl. (N . da T.)
tod as as ex igê ncia s da cen a: a profundidade ou leveza da voz
6. C f. R. Abirachcd , La crise da personuage ..., 0I' . cit., ca po 111 e ss .
7. Es tamo s pensa ndo, evidente me nte, em Bob Wilson , Tade usz Kant or e (mas qu e rejeita a voz e nco rpada , se mp re plen a, ca us a da
em se us inu meráv ei s efeit os. d icção "redonda" dos ca ntores; a dis po nibi lidade aos parcei -

132 133
·os de ce na; a acei tação dos imprevistos e, sobretudo : a gra- pôd e se r feita deste modo. Os atores vo ltam a se r rapso dos ".
ça, a não-afetação, o se r ju biloso, dig no, aberto, livrem ent e .o traba lho de les é de frasea do , respiração ex ibi ão d~e­
TIten so". Mas o falo co nce rne , tal vez ainda mais, à exi bição
das pala vras. Por ue o representado não é mais a verd ade do
cursos físicos de uma lín au a lU . E a impostação poétiea o
- iscurso é um modo de eleição do jogo deles, que se oc upa
text o. A verdade do text o teatr al é desde então . em es ti- co m rigores e liberd ades prosódi cas ou métri cas, si ntáticas
' vamente, poética. E isto já há mu ito tem po: mas, hoje em ou tr ópicas, onomást icas mesm o , dei xand o escapar entre as
d ia7" també m e la se oferece nua. A inve nção, a ac uidade do tra mas de um estilo os arro ubos do se ntime nto ou do ca ráter.
j ogo , não aufere sua legitim idade, no se u pont o mais a lto, de O j ogo não ma is se torn a vass alo so b as identidades fictíc ias
um a iden tidade plau sí vel de Berenice, de Tartu fo, de Loui s e o aparato de se u desvelam ent o. São ident idades qu e valem
Lainc'. Ela visa, antes de mais nad a, " fazer ouv ir" o maior co mo efei tos, ou pontos de passagem, do j ogo.
alca nce (a lca nça do do melh or mod o) poé tico das palavras Vamos para r um insta nte esta enumeração: pod e-se ob-
en cadeadas. C laro, a poesia não está livre de efei tos de per- je tar qu e os term os aqui emprega dos : precisão e, ma is a inda,
so na lização. É verdade qu e se pode ver um a Bereni ce, uma verdade , press upõe m a re ferência a um representado. E que
Fed ra. Mas e las se rão vistas antes de mais nada porque são é absurdo privar es ta prec isão das figu ras imagin árias qu e a
ouvidas . E es te ouv ir nascerá primei ro da exibição , em carne funda m. Pois bem: isto não é mais ass im. O personage~
viva, da co nsti tuição poética de sua palavra, - e de suas aber- ~ lógica imagin ári a não são mais os fiado res obriga tórillL!
tur as vis ua is. Os grand es textos, mesm o cont emporân eos , da precisão , nem da exat idão, nem mesmo da verdade. Se o
mesm o cômicos (Bec keu, Vauth ier, Bernhard ) valem primeir o, personagem se refl ete no trab alho (o que aco ntece, co m fre-
co mo poe mas e é nas dob ras desta efetividade poética qu e se qüê ncia) , ist o ocorre, agora, p r iori tariamente...c.om~ce
aninham os deveni res-pe ssoas: Hamm , o Persona gem co m- desta Rredsão, operado r provisório , instrumento de trabalho
batente, o Reformador do mund o" . Não se penetra em Be- ~de med i a - eixa n o-se atravessa r por uma legitim i-
c ke u p rocu rand o sa ber qu em é Hamm e qu erend o se ade qu e o u trapassa, que é mais forte que tudo. A prec isão
ide ntificar co m ele. Mas també m nenh um a Fedra rele vante apo nta para uma relação do jogo co nsigo mesm o, c ujo cri té-
rio varia seg undo as estéticas e os métodos, e que não co nvoca
8. Encontram os, aliás, na obra de Stan islávski, furt o material para esta o personagem a não ser co mo pont o de passagem em se u~
elab oração: e este mater ial foi anmc ntando à medida que o autor envelhecia - e minho. A figura não diz mais a verdade do j~g.9' É o jogo que, •
se tomava nosso conte mporâneo. A colet ânea , imprudentem ente batizada em
desdobra o em sua .DerClaCIe ou subme tido a suas próp rias
francê s co mo ti Construção do Personag em , trata be m pouco do personagem
e muito mais destes regi mes de legitimidade interna do j ogo do ator, das abor- limit ações, joga com as fig uras em sua auto-aprese nta..ç:...ã_o_._ _ .
dagens de um verdade iro pensamento a partir de exigê ncias freq üenteme nte Volt a-se ass im, mas segund o um modo bem d iferente
mais cênicas do que representativas. E isto talvez seja ainda mais verdadeiro a da q ue le qu e a Poética precon izava, a um a prát ic a, a um a
respeito do tardi o, e ma l conhecido, "método das ações físicas" . Mas a ideolo- definição da ce na co mo lugar de práxis. E dupl am ent e: pr i-
gia que sustenta estas nume rosas notações con tinua a ser a do personagem e o
mei ro, na medid a em qu e o personagem (o ca ráter) perdeu
text o parece, em fim de co ntas, se mpre aela se submeter. Hoje e m dia o material
de Stan islávsk i pode, com certeza, ser retomad o ignorando-se esta dependên- nov amente suas prerr ogativ as em benefício da ação , mas de
cia. É es te, num certo sentido, o alcance da continuação grotovskiana, mesm o uma ação ent endida a parti r de ent ão co mo a do própri o jogo,
se ela não se formula neste s te rmos. Cf. Th omas Richards, op, cit., passim.c...- cujo co nce ito Ar istóteles ign orava - em sua aplicação aos
~ ". Be renice : person age m-título de tragédia de Racine ; Tart ufo : perso na-
ge m de Moliere: Louis Lane: personagem do j ovem e m L' E change, de C lau-
deI. (N . da T.) 9. Este último co nceito é um dos que norteiam a pesqui sa de Jean-Pi erre
"" . Hamm, o Perso nage m comba tente e o Reformador do mundo , persona- Sarra zac.
gens respecti vamen te, de Beckett , Vauthier e Bernhard. (N. da T.) 10 . Cf. J.-CI. Milner e F. Rcgn ault, Dire le vers, Seui l, 1987.

/ 34 135
....-'
quer vida. Eles podem aspirar a se desincurnbir da ' tarefa
atores 11. O caráter é destituído da função preeminente que
segundo os códigos mais diversos: autenticidade, corporei-
tinha conquistado, dep ois de Aristótele s e contra ele , no sis-
dade, veracidade, sobriedade, vitalidade, rigor, lóg ica etc . Mas
tema de identificação, onde a ação se tinha submetido à pes -
todos procuram uma precisão do jogo referido a si mesmo,
soa qu e agi a e a seu s traço s subjetivos 12. O jogo será, portanto,
ou a pressupo sições não representativas: ética do jogo, espi-
o campo da ação teatral, o que não suprime o personagem
ritual idade do jogo, materialismo do jogo, pres suposições que
(como o privil égio da ação tamb ém não eliminava os carac-
são todas tentativas de formar um pensamento do advindo.
teres da Poética) mas o ordena segundo uma lógica diferente
O pensamento deste advento está diante de nós. Ele se indi-
da lógica identificadora , que organizav a sua dominânci a.
ca, se esboça - mas não está disponível.
Além do mais, o próprio de uma práxis é comportar sua fi-
e não se representa mais para apresentar a um público
nalidade em si mesma, não a expul sar para fora de si num
iguras imaginárias, pessoas fictícias que o autor concebeu,
produto!' . O jogo é agora uma práxis na medida em que,
se não somos mais levados, chamados, pela necessidade de
mesm o que ele produza surtos de identifica ção (e produz,
nos identificarmos com elas , pode-se deduzir a conseqüên-
com certeza), mesmo que ele coloque em movimento p erso-
cia , na medida em que a constatamos: atualmente ninguém é
nificaç ões imaginária s, não são esta s figura çõe s que o insti-
ator por desejo de ser Rodrigo, Berenice ou Fausto. Alguém
tuem e o mo vem , mas sua auto-exposição como exi stência
se torna ator, fundamentalmente, por desejo de ser ator. Não
em cena.
. -
O j og o, d iante de nós, j oga co m a ostentação concreta,
~ são mais as ficções que atraem , nem o ofício de ator enquan-
to propiciador desta aproximação. É o ofício de ator em si
prática, com jogadores concretos e práticos que aplicam a
que agora mobiliza o desejo. E as figuras dos papéis se tor-
seus movimentos, sua voz, seu co mportame nto, seu s mern-
nam formas de seu ex ercício. É possível que a atração da
bros' ,sua pele , seu olhar, a exigência de uma exibição ínte-
cena tenha sido condicionada, em tempos passados , pelo de-
gra. Integra significa: inteira (o jogo apreende tud o, ca
sejo de assumir os atributos do heroísmo, ou da nobreza, da
tudo em cena) e, ao mesmo tempo, honesta: o jogo se procu-
coragem guerreira ou do amor-paixão". É possível que se
ra como étic a e técnica juntas. s Joga ore s qu erem uma
tenha sido levado à profi ssão de ator pela pulsão de se orna-
verdade co lada à vida , uma verd de cenicamente viva que dê
mentar com estes sonhos, com estes "figurinos" e viver ima-
, testemunho do que é propriamente vivo na vida , em qu al-
ginariamente as biografias dos Grandes ou dos Tipos . Hoje,
quem quer se r ator quer viver a vida de ator, mais que tudo .
11 . Seria necessário, repelimos, analisar a e mergência do lermo e da noção. Os papéi s são os meios ou os veículos desta aspiração. É a
Se a pala vra é e mpregada desde a Idade Média para designa r uma represe nta- vida do ator, e não mai s a do herói , que nos agarra e nos
ção (por e xemplo, o jogo de Silo Nicolau) , só a partir da época clássica, ela é
aplicada, ao que parece, à atividade específica dos atores. Em todo caso, seu
arrasta, com o sub stituição (suspensão, realce) de nossa pró-
estatuto co nceitual (que tira partido de sua polissemi a progressivamente con- pria vida. O que nós queremos é o seu existir.
quistada) só é elaborado no movimento do surgime nto da estética: em Kant c - Devemos concluir então que o jogo do ator perdeu seu
~er e m es cc ial, Esta elaboração acomp anha, por sua vez, a fô~ sentido, torn ou-se pura atividade lúdica, gratuita e fechada?
'seu uso moderno, por exemplo, no teatro . Seria ignorar a singularid ade do que acontece. É verdade
12. Sobre o movimento desta reação, cf., por exem plo, J. Lenz, " Notes SUl'
le th éâtrc", e m TM IÍ/re, L'Arche 1972, pp. 27-33 e 38 sq. (Em português:
que na época da identificação , hoje ultrapassada (no teatro),
Lcnz/Goe thc, NO /lU sobre o Teatro/Regras parti Atores, tradu ção de F átirna
Saadi, Rio de Janeiro, 7Lelras, no prelo).
14. Cf. Jean Duvignaud , L'ucte ur, 1965, reedição Ecriture, 1993, pp, 71-
13. Cf. Ar ist óteles, Métuphysique, 0 , 6, 1048 b 18-35 (Em português: ver
72. (Em portugu ês: Sociologia do Comediante, tradução de Hesíodo Fac ó,
a tradução de Vineenzo Coceo para a coleçã o Pensadores, São Paulo, Abril
Rio de Janeiro, Zaha r Editores, 1972).
Cultu ral, 1973).

136 137
o personagem e sua identidade imaginári a puderam funcio- guém vai mais ao teatro na esperança de ali se deixar envolver,
nar como instância que assegurava o sentido do jogo. Pôde- enfeitiç ar, iludir pelos prestígios oníricos ou Iantasm ãticos de
se mesmo acreditar que o sentido do jogo de um ator era seu uma narrativ a ou de uma figura. Os espect adores que buscam
pap el (se u personagem). Mas isto acabou . Hoje, com a de ser- histórias entram num cinema ou ligam o vídeoca ssete . Abrem
ção do imagin ário teatral , para fora do teatro, com sua mi- livros, com ou se m ilustrações. Talvez , em outros temp os, o
gração para o universo das imag ens (sua captação pelo cin ema teatro tenh a respondid o a esta função, é difícil saber ao certo:
e seus deri vados), o se ntido do jogo se viu de volvido ao espaço destas épocas co nhecemos a ideologia mas muito mal a efe tivi-
do próprio j ogo . Hoje, o sentido do jogo é o jogo. Não nos dade. Hoje ninguém se instala mais numa poltrona para saber o
apre ssemos em décÍuzir que o jogo não tem sentido algum: sob que será leito de Agripina, nem para acompanhar, de novo, as já
o pretexto de que o sentido de um ente qualquer se desdobra conhe cidas desventuras de Édipo nem de Clov ' - por elas mes-
fora de sua mesmidade em relação a si mesmo, fora de seu mas, na autonomia de sua ficção. Vai-se ao teatro para ver 11m
fech amento identitári o, e que, portanto, a perda do exterior espe t áculo, de aco rdo com a expressão hoje em dia familiar. O
ates taria o esgotamento do sentido . A perd a do exterior imagi- que isto quer dizer? Precisamente o seguinte: que a pessoa vai
nário não é a perda de tod o o exterior, talvez seja exatamente ao teatro com a intenção de ue ali lhe a resentem uma o »era-
o contrári o, na medida em que a exterioridade imaginária é çao ( e leatralização. O que se quer é ver o tomar-se-teatro de
um exterior de ficção : irreal , não efetivo. O jogo talvez seja uma ação , e uma história , de um papel. Os espectadores de
este afastamento de qualquer conduta em relação a si mesma, teatro , a fórmula é talvez menos boba do que parece , vão ao
que a abre para sua ext erior idade íntima, para sua não-identi- teatro para ver teatro. Poderíam os mesmo dizer: para ali ver o
dade consigo. mesma, para sua GIlf/ IJrallCe' CO Ill O se111teo
' / 15. . M as teatro, a incidência, o advento do aconteciment o singul ar do
o sentido do j ogo é uni Sêiitido imanente, um se ntido da imanên- teatro, naqu ele lugar e naquela hora. Isto é: aquilo mesm o que
cia que dispensa, por default , a exterioridade transc endente do acontece em cena enquanto ce na: as prática s da ce na enquanto
imaginário para reconduzir o sentido para o âmbito da exi s- práticas. Ver como fa zem aqueles que ali se apresentam " .
tência, o estar-aí, aí-diante, do ator: em sua prática.
em ge ra l fo ra da sa la de es pet áculos c de s ua o rga niza ção ritu alizad a; rar am en-
Nem a constitui ção do olhar nem a da cena saem ilesas te faz ía mos "de ba tes " , e m geral tomávamos a lgo. con ve rsand o de maneira in-
desta transmut ação. Desde que os heróis se refugi aram nas ima- form ai , os at ores misturados ao públi co). o u co mo e nce nado r, diretor de teatro;
gens, n ão se vai mais ao teatro para desfrut ar de pers onagens em associações, c lubes, ruas ; sa las de a ula, su bú rb ios. vi larejos ; e m presas, es -
paços méd icos. pres ídios; depois co mo pro fessor diant e de jove ns distra ídos o u
0 11 de situações. O que não acarreta que a pessoa se queixe
a pa ixo nados . Não me lembro de ter enco ntrado um único es pec tado r qu e fosse
quando isto acontece: podem ser suplementos benvindos. Mas é ao teat ro na expectativa de uma hist óriae de se us benefícios ima ginári os. Tal ve z
para o cin ema , não para o teatro, que nos leva a procura de as cri a nças . ma s nem a respeit o del as se ria possível afirmar isto com certeza: as
grati ficaç ões situacionais, dramáticas, identi ficatóri as \(,. Ni n- cria nças cre scem (ca da vez mais) depressa . So bre a companhi a L' Auroupement,
cf . Deni s G u énoun, Relation , "/1. cit., ca po11.
*. C lov : pe rso nage m de Fim de .Il1gll , de Beck et t. ( N. da T. )

*. Co nceito de Derrida qu e joga co m a pa lavra différence e prop õe um a 17. Na co mpa nhia L' A u ro upcmcru. u nhnm os grande c uriosi da de a re spe i-
nua nce e m rel ação a el a. (N. da T.) to da s mot iva çõe s dos espectad ores : ficávamos se m pre um pou co espantados
15. C f. Jean-Lu c Nancy, Le sem du numde , Galil éc, 1993, pp. 25-30 e 89 -98 . co m o fato de qu e e les tive ssem es co lhido ir até lá. Na noit e da apresent ação
16 . Recorro nov am ent e a um a experi ên cia . Faz ma is de v inte an os ve nho qu e fizemos em Tomb lainc, na periferia de Nan cy, em plen o in vern o de 197 8,
lend o a opo rt unida de de manter cont ate com o público (de lodos os tip os. cs pc - com muit a nev e , no bairro o pe rário e bem lon ge das agitaç ôes culturais - ou
ciali zado ou incult o. velh o ou novo . próxim o ou distant e) , em praticamente 10- talve z tenha sido em Meylan , na regiã o de Ise re - . decidimos pe rguntar cordi al-
das as situações teatrai s imagin áveis : como ato r (na co mpanhia L' Attroupement, ment e, na e ntrada, a /m/II.\' os es pec tado res o qu e os tinh a moti vad o a vir. Não
tính am os o hábito de co nversar com o público dep ois de tod as as a prese ntações . foi muit o co mpli cado. não eram me s mo m uitos os es pec tadores. O e spetácul o

138 139
em co nta a mudança que a insta ura : ela deve ser produzida
É po r isto que a represe ntação dos clássicos faz tanto
co mo escrita do j ogo. Não mais dos papé is e sit uações . Não
sucesso. É estúpido e des de nhoso atribui r o sucesso dos clás -
se pretende (ta lvez isto já tenh a sido co mpree ndido de tan to
sicos ao con formi smo do público, à sua vo ntade de rever o já
eu bate r na mesm a tecla a cada pági na) qu e a escrita tenh a
visto. É, normal men te, o inverso: a pessoa vai ver um cláss i-
que necessariamente se pr ivar de sit uações, personagens, dra-
co para de scobrir o q ue diferencia aquela ap resentação das
maticidade. Mas não podem se r a dr am atic idade , as situa-
outras que e lajá viu. Or a, o que a d iferen cia é o mod o deter-
ções, os person agen s a validá-Ia. Há décadas isto já de ver ia
m inado de sua teatra lização. Só se vai ver o que já se co nhe-
. ser uma eVidênc ia. Porq ue, em fim de co ntas, o ma is notável
ce para desfrutar do como de sua nova apresentação - de sua
em matér ia de esc rita no último sécu lo não pode , de forma
différance. Nisto, os clássicos permitem qu e se exerça um
alguma , ser co mpreendido nem descrito ape nas a partir dos
o lha r pro pria me nte teatral, que se o exatame nte aqui lo
câ no nes do dra ma!". O que vale em Becket t, Bernhard - ou
q ue é o teat ro, a d ireção da demonstração em cena. Porqu e
outro s autores mais recentes - não pode se r analisado no
'supõe-se que conhecemos o texto, a história, os papéi s: o que
registro fec hado dos ac tantes e das peripécias. Não é co ntudo
é dado a ver é então exatame nte o ato de sua apres ent ação , a
inútil repetir, de tal modo a musiquinha da restauração, tanto
teatralidade em si - a vinda do texto à ce na, em sua tra nsfe-
aqui como em outros lugares, suss urra que, no fundo, bas ta-
rência co mo que exposta, posta a nu. Neste se ntido, ir ver tm
ria escrever boas peças , bem-feitas, para encher de sat isfa -
espetáculo é bem diferente' do que era ir ver uma peça: ver
ção o púb lico hoje perplexo. A ca ntilena é ve lha. Su a versão
um a peça era seg uir um a história, si tuações e person agen s
rece nte d urará o que du ram os mi ni-Termidors estéticos' : o
em con flito . Ver um espetácu lo é ver a teat ralidade em sua
sufic ien te para causar algu ns frisson s aos miniterrnidoria -
ope ração próp ria: a operacionalização, o verter (a versão) no

~
teatro , o ges to de levar pa ra a ce na uma real idad e não-cêni- os ~. ue rre~üentam co.quetéis. ~ esc~ita deve se ofe rece r;~:=J
escrua do Jogo, pe lo la to de hoj e o Jogo ocupa r tod o o
ca , poe ma ou narrativa. Ir ver um espetáculo é exatamente '
ão vamos proc urar aqui distinguir tal ou !lal sinal Rrecur-
ao enco ntro de uma ence nação , de uma colocação no paIc<?J.
s cada um õCiescobrirá se undo se us ró rios gos tos . Mas
de uma operação de eXI lç ão enqua nto exibi ão, autônoma e
a' escri ta do jogo sig ni fica : par titura ap ta a suspe nde r a prá-
s lngular "em re ação às_~ tl a~ Imag inárias cu 'a cxistên-
xis do j ogo, remete ndo-a à sua legitimid ade própri a e ao pra-
c ia , até entãõfes~a, e la materia liz. IX. Operação que é
zer, ao de leite que lhe pertencem desde então . Como? Seria
. um modo do que aq ui se ten ta definir co mo jogo .
necessári o, para res po nder, ex po r todo o program a de um a
Isto significa d ize r que o olhar exc lui de se u ca mpo as
re forma do dra ma, o que não é o objetivo destas pág inas.
novas escritas? A ten tativa de compreend er o q ue há de posi-
Vamo s nos co ntentar em sugerir q ue, na nossa opinião, a
tivo no gosto dos clás sicos nega à inve nção verbal qualquer
escri ta é convocada a ter uma sé rie de respeitos que são tam-
ca pac idade de levar a gozos inéd itos ? So mo s o ara uto de um
bém audác ias: respei to po r si, pr ime iro, e po r sua pr.ómia
teat ro se m poetas , sem dramaturgos su rpreende ntes ? De modo
constituição como poética. O esc rito deve ass um ir o risco,
algum. Ma s, para responder a este olhar, a escrita deve levar

19. Cf. Szondi, Th éorie du draine moderne, L' Age d ' homme, 1983, pas-
se intitulava La ChWI.WJJl de Roland . Acho que tão cedo não vou esq uecer o sim , (E m portu gu ês: Teoria do Drama Moderno ( 1880-/950) . Tradução de
rapaz, bem jovem, se não me falha a memória, que respondeu à minha pergun- Luiz Sérgio Repa, São Paulo: Cosac & Naify, 200 1).
ta: "vim para ver como 'el es' fazem para mostrar Roland que toca o olifante e *. Termidor: referê ncia à coalizão que, a 27 de ju lho de 1794, derrubou
CO III O li sangue escorre das veias do pescoço dele de tão alio que ele toca" .
Robespierrc , exec utado no <lia seguin te. Com isto, os termidorianos puseram
Vejo nesta respos ta o esque ma exa to da expect ativa <lo prazer teatral: venho
fim à fase <la Revolução Francesa que ficou conhec ida co mo o período do Ter-
para ver o jei to de fazer, o modo de tentralização - a prática .
ror. (N <la T.)
18. Cf. Dcnis Guénoun , l'Exhibition des mots. OI'. cit., capo 11.

141
140
ou a coragem da poesia" .. Coragem não é necessariamente B érâuice": as inven ões ceno ráfica s marcam menos por sua
gravidade - a poesi a sa be ser viva ou br inca i lOna. Em segu i- capacidade de f azer bonito kitsch mesm o) do que pelo rigor
ila, respeit o pelo tempo: o q ue equiva le, se m dú vid a, a incor- :Creno e confessado de se u ioz o. Basta mencionar a que po n o
rer no peri go do pen sament o. Pe nsa me nto não é discurso , é insuport ável qualquer eneharcamento de acompanhamento
nem ênfase : o pen sament o mais den so corre bem próxim o musical , de estetização so nora , que não joga co m a exis tência
das co isas , na próp ria pele da exi stên cia. •M as en sa: não cênica co ncreta, co m a proveniência material do so m: não há
ev ita o que o intima a restar co ntas de seu tem o. ResReito o ue discutir.
·pe lo jogo - o qu e supõe tal vez (mas aí es tá o risco ex tre mo) Mas isto é ai nda mais verdade iro no tocante aos atores .
alguma co isãêomo a ale ria. "Nós podem os dizer a respe ito Co m o su miço das figuras, resta o jogo. ~ o teat ro não s ed u~
e qu alqu er j ogo qu e ele é [...] uma ma ne ira alada de viver a I~ i s por seus fantasmas, ex ige- se at ores. Não ficções servi-
vida'? '. Entende qu em quer. das pelos atores, mas atóres indu zind o (se nece ssári o) fic-
É fáci l descrever o mod o deste olhar, a propó sito de to- ções. A di ferença é grande . O que o olh ar perscruta, hoje , em
dos os co mponentes da represent ação: ce nários, figur inos, cena, não é ma is a ima gem do papel : é o mod o co mo o ator
luzes, mú sica, e nce nação. Dian te de le, cada um destes ere:-r se co mpo rta. Poderíam os dizer que o olhar está desencan ta-
mentos opera co mo passagem - apa renteme nte co mo qu al- do, despossu ído de suas quimeras ou alienações figur ais, se
quer eleme nto represe ntativo, que, sem cessar, reconduz, faz
viaiar o o lho ent re o objeto material e a figura suge rida . M as
tudo se passa co mo se o se ntido dest a passagem es tivesse
) o term o desencanto não soasse, em francês pelo menos, co m
um tom desiludid o, próxim o do amargor. Or a, este apaga-
ment o é fonte de novas del íc ias: a vista se engaja e m o u t ~
invert ido: não são mais os sig nos cenogr áficos que rem etem valênc ias do prazer. Prazer de ver o ator faze r o que ele Fazu ·

"OVO precisão, um "ovo_'·'~;""."" V,'""-


a um s ig nificado de ficção e se esco nde m sob e le - é a pró- maquin ar ilusões, se necessár io, mas , so bretudo , vive r em
pria I~e 'ão ue esmaece diante do estar-lá das co isas no ~
co e diriue o o . em d ireção ao que, destas coi sas, marca o
m," segundo uma
de. A ve rdade que o es ec tado r persegue nao e mai s a verda-
"mo o pro riam en rático da dem onstraç~ Qu e os usos de do pape , mas a verda de do ·og,o. ré
es ta verâ aoe Que
recht ian os tenh am enve lheci do não muda nad a: s imples- pro voca nele simpatia, em atia , cOlJ}paJxão. Devemos então
mente não é mais possível usar em ce na um a pal idez ou um pe nsar q ue um es pectador, hoje em dia, não se identifica ma is
refle xo, um contraluz ou uma jan ela se m deixar ver algo do com o personagem , ma s com o ator? O. Mann oni escre ve a
jogo deles: a não ser que se ceda aos avatares técnicos do kitsch, es te resp eito:
do cro mo . Lição sem fim da arte moderna: a confissão do ges-
to de mostrar. E é . ue o olho olha: n~1 ais..o eh ito de Isto nos lembra q uc o ato r ja mais desap a rece atrás do pe rsonagem ; que
ilusão, mas a sobriedade lúdica e operatória d.e sua vinda . A não de ve visar a isso; [...] /11111111 pulavra: que se VIIi 110 teatro pa ra ver repre -
' ~ãÇão não ma is se confunde co m a ilusão matin al ou sentar, e q ue nos es pectado res hü identi ficaçã o co m um ator e nq uan to ator ao
mes mo tempo que COIl1 o pe rson age m, numa co mbinaçã o origi nal que é própria
crepuscular: é a ilusão que acen a para o ato, ou a arte de ilumi -
do teat ro, o q ue não se e nco ntra nos outros tipos de cs pc uículo>'.
nar a ce na - a seta representativa se inverteu. A lâmp ada de
Edison' ? (e se u entorno sutil) equiva le ao inten so rubor de Uma tal abo rdagem d iverg e da que é pro post a aqui: onde
Mannoni vê urna espé c ie de es trutura perma ne nte da teatra-
20 . C f, Philippc Lacou c-Labarthe, "L e co uragc de la poésic" , Lcs confé- lidade , de aparê nc ia um pouco intemporal, pre ferimos eles-
re nce s d u Pe rroqu ct , n. 39 , j uin 1993. (No Brasil, este texto , co m tra d uç ão de
F átima Saadi, integr a i\ lmit açã o dos Mode rnos , oI'. cit.).
21 . E. Fink. Le j eu conuue syntbo le dUII/O/u/e. op. cit., p. 79. 2 3. Cen ário de G . A illa ud para a en ce naçã o de K. M . Grüber,
22 . En cen ação de Robcrt Wilson. 24 . OI'. cit., p. 30S . G rifo meu . (E m po rtugu ês : op, cit ., p. 3 19) .

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co brir um eq uilíbrio instável entre tend ências históricas in- e não dizer o público, fórmul a na qu al se co nde nsa m o utros
versas, o recito do personagem e a emergência do ator, ten- desconh ecim ent os qu e devane iam e na qu al se es co nde um a
dências cujas evo luções opostas con tinuara m a se processar ou tra ideologia. Algum público: espectado res, ge nte . A as-
de pois qu e o texto aqui ci tado foi escrito" , desequil ibr and o se mb léia teat ral é devo lvida à sua mul tipl icidade. M as es ta
um pouco mais a co nfiguração atua l em detrimento do ima- multiplicidade não é a multi plic idade, orgânica, da assem -
gi nár io do pape l. Aprovamos certamente M ann oni quando bléia, segundo a idéia, que nos persegue da ecclesia' aten ien-
afirma qu e se vai ao teatro para ver o jogo, mas se m co nco r- se . Algum púb lico forma uma asse mb léia incerta, aleatória.
dar co m se u mod o de pen sar os efeitos deste olhar so b a pers- Mas nada fortu ita nos procedimentos , nas regras firme me n-
pecti va da iden tificação . Não é certo, efetivame nte , que uma te estabelecidas de sua convocação, qu e a insti tue m por se le-
ide ntificação possa se fixar sob re um ator de teatro co mo ção e exclusão: algum públi co não é, co m ce rteza, tod o o
so bre um person agem . A ide ntificação e lege um a imagem, mun do nem qu alqu er um" . Algum públ ico cor respo nde, em
qu e ela co nst itui co mo ide ntidade. É por isto que e la se pren - prime iro lugar, se mpre aos mesm os, escolhidos de fato po r
de aos atores de cin em a: à rela tiva in-d iferença qu e os une critérios de classe, culturais e lingüíst icos (nova me nte de clas-
ao papel e ao imagi nário de sua identidade de star', Enquan- se), e geográficos (se mpre de classe, essencialme nte) . Não os
to qu e, no teatro, não é a ide ntida de supos ta do at~ mais ricos nem os mais edu cado s, mas algun s e não outro s.
o' olho, mas sua (!fão: o co njunto de co mpo rtame..otosxáti- Cad a um sa be ou pode ver isto . Ma s esta reuni ão, que pode -
cos no \co e seu s efeito . E a pessoa não se identifi ca com mos ainda cha ma r asse mbléia, por prec aução e enquanto es-
a ação . Pode- se desejar imitá-la: é outra co isa, nem tod a peram os por um co nce ito ma is exato, não é, co m certe za,
imit ação é ident ificad ora. Desej a-se imitar o ator, fazer o ill!e co nstituída co mo se imagina que tenh am sido as reuni ões
e le faz yjye r o que ele vive; - não o papel mas o io~. Um orgâ nicas do séc ulo de Péricl es ou de Lu ís XIV - dem ocráti-
~pectador de teatro, longe do que Brecht pod ia, ou acredita- cas ou de corte . Nossas asse mbléias são fro uxas : nenhum
va, observa r ainda, não sai do teatro co m o desejo de faze r o esqu ema de identificação co letiva potente as s us tém. Elas
que o herói faz: mas pode sair da li com o vivo dese' _ são aco me tidas po r uma espécie de ince rteza qu e reme te os
o que o ator faz: es e esejo e esejo e uma vida : vida em espectado res a uma posição flutuante , sem dúvid a mais sin-
cena, e ass im que afro uxa m um pouquinho as rédeas que o gular. A platéia do teatro não é mais, abso lutame nte, um a
seg uram, pronto, vida de teatro, vida para e pelo teatro. --' mu ltidão. É antes uma ag lomeração, onde cada um vive sua
É neste se ntido que praticamente não há mais lugar, nos posição como se ndo instável, suspe nsa, se mpre na iminên-
procedi men tos do nosso teatro, para a instância do espec tador. cia de rec uo ou deserção. Um espectador de teatro , assi m qUL
Também ele se ecl ipsou, com os personagens, seus comparsas, chega , j á es tá pote ncia lme nte de partida. Ele está ali só por
que só estavam lá para ampará- lo. O sujeito transcend ental da
visão, isto já foi d ito, encontrou seu lugar adeq uado no "apare- *. Reu nião do povo intei ro para debater q uestões públ icas , a ecclesia não
lho de base'?" do cinema, constituído a partir do dispos itivo tinha uma localização fixa , mas , em Atenas, era com um q ue estes e ncon tros se
renlízassem num lugar chamado Pnix, uma gra nde ped ra que dominava uma
imag iná rio reali zad o pel o o lho da câ me ra. O qu e resta na
co lina e que era capaz de co mportar parte conside ráve l dos cida dãos . Além de
platéia do teatr o, ao men os no mo me nto em que as repr esen- de liberar a respe ito dos prob lemas da co munidade, a ecclesiaesco lhia os magis-
tações acon tece m? Algum público. Teremos que nos policiar Irados eletivos, q ue dividiam as funções exec utivas co m os magi strados so rtea-
dos, sendo que todos eles era m respons áve is por seus atos pera nte a ecclesia,
podendo serju lgados porela em caso de falta gra ve. Em latim, o termo adquiriu
25 . 196 4 . também o significado de igreja, aju ntamento dos prime iros cristãos para celebra-
" Em ing lês , no orig ina l. (N . da T ) rem o culto, além de manter o sig nificado genérico de reu nião. (N . da T)
26 . Cf. J.-L. Baudry, em Conununications, op, cit., p. 58 . 27 . Cf. Deni s Gu énou n, Lcttre (/11 directeur du thé ãtre, op. cit., pp. 52-77.

144 145
[e"sta vez, para experimentar, mesmo.qu~ a exp~riência se reP9 teatro, pensamento generalizado no qual se disfarça o des-
I ta. Ele não reconhece nenhuma essencia de num estar-;li/SI peito por ser mantido nos confins de uma notoriedade cujo
É por isto que as assinaturas anuais para o teatro, em crise, centro se desejaria ocupar. A nobre palavra "resistência" vale
nunca satisfazem às expectativas: elas só parecem ir de vento mais do que estes pequenos ressentimentos . A outra versão é
em popa aqui e ali por contraste com o desinteresse geral. O mais digna: ela pensa a necessid ade do teatro como urgência
teatro não conhece nem aficionados nem supporters'; nem da crítica às representações dominantes . O teatro encontra-
d~
amantes. como os .ópera. O es_pectador sumiu: en.. seu 1. Iugar~ ria em sua nova posição, abandonado como está pelas identi-
alguns poucos fanáticos , que sao louvados, e muitos outros, ficações mais amplas, a capacidade de desmistificar os códigos
públicos migrantes, de fidelidade ambígua e entusiasmos vo- hegern ônicos, isto é, para falar claro: o cinema e seus deriva-
lúveis . Isto não deve ser lamentado como um mal, conjurado dos . Esta segunda formulação também não nos satisfaz: va-
com a ajuda de números mágicos ou com a incitação a um mos confessar, nós amamos o teatro mais do que isto.
patriotismo de ataque. Esta é nossa situação, nosso problema: Ficaríamos tristes de só descobrirmos para o teatro, como
nosso teatro . É preciso, em primeiro lugar, olhar para ele. Como única virtude, a crítica do cinema (ou , se quisermos uma
se olha aqu ilo que se ama (se é que se ama). Para agir (se é que expressão mais enfática, a crítica das Imagens, das Telas),
se quer agir) . cachorrinho raivoso ocupado em morder ou ganir nas cane-
Esta é nossa situação , nosso momento nesta história. las do grande imaginário triunfante. A tarefa pode ser sau-
Estamos precisamente neste ponto . E agora devemos abor- dável , mas não se constitui numa necessidade, no sentido
dar a questão que nos mobilizou : porque, se subsiste ou emer- vital que desejávamos para esta palavra: desempenha, no
ge hoje em dia uma necess idade qualquer do teatro, se ele máximo, um papel secundário. Queremos muito mais e coi-
não é apenas um resquício, ruína de uma arte do passado, . sa bem melhor para o teatro: uma vocação que seja sua, que
~ta necessidade deve ser estabelecida, pensada (e aCionaª s proceda de uma legitimidade sem fissura e nos conduza a
Lgs comport,~me.ntos adeq~~dos) a partir ~isto. E não a partir este mundo que terá que ser refeito, para fundamentar a irre-
de uma ficção , invocada a força para conjurar a perda do que dutibilidade de sua inteligência e de seus prazeres.
.á desapareceu . Qual pode ser então sua necessidade? Do ponto de vista
De início gostaríamos de afastar uma hipótese que po- f : ena, ela se mostra como necessidade prática do jogo. Há
deria parecer decorrer das análises precedentes . É a que, es- teatro por necessidade dos homens de jogar. Ora, nosso mundo
corando-se no fato de que a representação se processa hoje, conhece, como outros mundos antes dele, um número quase
essencialmente, fora do teatro, com seu cortejo de figurações infinito de jogos: dignos ou vis, jogos físicos, de cartas ou de
poderosas e de identificações maciças que a ela aderem, de- signos, de piões ou de peças , de papéis ou de dinheiro. O que
duziria então que a tarefa do teatro, relegado às margens torna necessário este jogo entre outros? A singularidade de
deste sistema, seria apoiar-se em sua marginalidade para fun- s éu campo e de suas regras . O teatro, hoje , está desnudado,
damentar a necessidade de sua arte . Esta hipótese tem duas consiste no jogo da apresentação da existência em sua preci-
versões: uma , lamentável , que consiste em fazer do teatro são e em sua verdade . ~~as regras são em número finito~ mas
uma arte de resistência à dominação das imagens. Digna de uma delas prescreve todas as outra~ : aquela que exige que
pena porque é uma resistência de opereta: nestes últimos tem- esta apresentação encontre sua fonte e sua origem íntima no
pos , resiste-se nos coquetéis de estréia, uma taç a de champa- con fro nto entre ã existência e a poesia. O teatro é o jogo
nhe na mão , para se consolar da falta de central idade do -Cíeste existirque oferece ao olhar o-lançar de um poema. Só o
teatro faz isto : só ele lança o poema para diante de nossos
*. Em espanhol e em inglês no o riginal. (N. da T.) olhos, e só ele lança e entrega a integridade de uma existên-

146 147
~
i'~. Com andadas por es te lanç~r,_que ve m dos ex tre mos poéti- lugares. O teatro não é mais um instrumento de co nhec ime n-
cos da língu a, a nud ez, a preci sao e a ve rda de fazem do tea- to, se u prazer não é mais o prazer de uma aprendizagem . As
tro um a necessidad e - absoluta. pessoas também não sa tisfaz em mais no teatro as solicita-
Ora, este jogo singu lar req uer uma co munidade de pessoas ções da imagin ação qu e reconhece, qu e identifica : jogo de
que olhem . Porq ue sua s ingularidade co mo j_ogo é se r o j o~ ca ptações figurais, qu e ope ra hoje no ci ne ma ou nos lum ino-
da mostração, da ex ibição, da aprese nt~o, do faze r-ver e do sos re flexos das tel as. E ent ão ? O qu e as le va ao ol ha r? E ,
lãZer-ouv ir ' o~da vTSão éêia os tenta ção, Scha u-Spiel', cujõ mais do que isto : qu al é o mó vel de sua es tranha di sp osiçã o
mod o de efetuação reque r um olhar co mpa rtilhado , co letivo. am igável? Por qu e, diante dest a ex istênc ia entregue a se us
A exposição teatral da exis tência não é a ex ibição íntima dia nte olh os, os es pec tado res não se nte m nem manifestam a c ruel-
de um observador so litário. Porqu e seu princíp io é poético, e dad e ávi da das multidões que se rejubilam co m o sa ng ue do s
não Iigural. C laro, a poesia pode ser lida na so lidã o. Mas não gl adiador es ou o assas s inato públi co dos touros? Eis a hipó-
ser vista. As fi guras podem ser co nte mpladas no silênc io, no tese : um a e xistê nc ia e ntre gue à ex po siçã o ~ s~ ent ~
recolhim ent o. M as a aventu ra de uma existênci a brin. cada,.~ 'o­ se liberta diante de uem quer entregar e libertar ª- p.~' .!JQ
gad a, e ntreg ue ao olh ar so b a ba tuta do poem a, co mpro me te exist ência' , O olhar sobre a núaez , de algüm modo ética, o
c tor . a~1ic rpa de um existir em pot ên cia de exi biçã o. E não
um a assem bléia ou , ao men os, um co mpa rtilha r, atual , efeti-
vam ent e comum. É, se m dúvida, um pou co misterioso e a se trata de mimetismo: mas de simpatia - de co e xistê ncia, de
per sev er an ça do teatro, su a es tra nha insistên cia, faz deste contamin ação do e xistir em seu entregar-se, na necessidade
e nigma, imp eri osamente, um a tarefa para o pensam ento. A de sua lib er ação. É se u treinamento es pecífico que faz do
existência se entrega à visão COII/llm : se m dúv ida , para além e xi stir um a e mbrea ge m, um movimento, um (pro)j e tar-se
da ev idê nc ia do fato, é isto o que, por muit o tempo ainda, se rá, comuns . Tr ata-se de partilhar o jogo. Os j ogad o res, se ntado s
se m dú vid a, necessário pen sar. no c hão, pern as c ruza da s, diante dos parcei ros qu e se e x-
Mas, por este moti vo, o jogo de teatr o não pod e se ins ti- põem , oferece m se u olha r a mis toso, enquanto espe ram a sua
tuir e m co munida de ape nas a partir dos jogadores : isto o vez . É o prin cípio de sua benevolên cia e da ac uida de de sua
diferen ci a de alguns outros jogos. Uma cr iança qu e brinca visão. Nova dem ocr aci a do jog o : porque aque le qu e goza co m
de cavaleiro, qu e brin ca de g uer ra (co mo eu brincava), ou de
pa ai e mam ãe, pode bri ncar sozi nha o u só co m um parce i-
ro. Uma criança qu e br inca de teatr o (como eu t~n.lbém ; n
o espetác ulo do sa ng ue , da humilhação o u do assassinato na
are na goza o fato de qu e o so frimento lhe é poupado . ;r-
J
~
e
qu ant o qu e aq uele qu e olha o jogo de teatro qu er intimam en-
cava) brinca de a tor e nqua nto q ue o ut ras, vari as o utras, e ntregar e libert ar sua e xistência tant o qu anto aque la c uia
b 'inca m de olhar. A necessidade do tea tro que se f az e ne- integrida de se co loca a nu diante del e. A necessidade do o lhar
cessidade de j ogad ores, mas co nvoca co mpa nhe iros de jogo ' eatral é uma necessid ad e j ogad ora, qu e aco mpa nha o jogo
paraf azerem 0.1' espec tado res. Assi m, do lad o da pl atéia, tam- dOS jogado res e m posição vir tual de jogar também . Dep ois
bém são necessár ios j ogad ores qu e o fe reça m ao j ogo dos o u- do jogo, a ntes do j ogo, à es pera de o u ch am ad o a um jogo
tros a ben e volência de se u olhar. Por qu ê? De que brinc am as que tal ve z não ve nha j amais , mas que se co loca no horizonte
pessoas, um as ao lado das o utras, ruidosame nte o u e m s ilên- \
c io? Qu al é o jogo delas? Elas não e nco ntra m mais ali o pra-
ze r cog nitivo do olhar teór ico : ele se tran sferiu para outros *. Em francês: " une cx isic nce livr ée à l' cxp ositi on inregre se (dé) livre à

qui veut (dé) /il'rer li sienne" Há aqui um j ogo de palavras e ntre livrer (entre-

\r
\, L
*. Em alelllão, l0l/tlslIie/ significa esPCtáculo'l:i~lle'3?(s0e/)
~ ver, olhar . con te mplar, nmar (.~ . (N . da T. )
1 ga r) e d éli vrer (libe rtar) d ifícil de mant er em português. O pta mos por co nser -
var o se ntido e po r isto utiliza mos simultaneame nte os do is verbos nas du as
oraçõ es . (N . da T.)

148 149
--I>
há lugar para eles, mas para outros - que, aliás, não vão
da visão. A necessidade do olhar teatral é, tanto quanto a do
mais ao teatro porque encontram no cinema (e em suas mar-
fazer , necessidade de jogo, necessidade do jogo. Os outros
gens) figuras mais gratificantes. Podem até ser os mesmos,
(espectadores teóricos , espectadores narc ísicos) ~''0 0' com certeza, mas levados por outros chamados. É por isto
quícios de tempos que se distanciam . Hoje, são só os joga 0-
que os teatros se esvaziam , enquanto um imenso desejo de

~
'es que olham, eles, que desejam o jogo. O olhar sobre o
teatro, aberto, pateia, impacientemente, às suas portas.
jogo, por não ser nem olhar cognitivo nem investimento ima-
ginário nas formas exatas do objeto, se articula aos jo os
possíveis que cada um ativa para si . O olhar ativo, olhar de
nossa atualidade, é um olhar (de/des) jogador'. Jogador em
potencial, em potência de jogo, que olha o outro que joga
para trocar ficticiamente suas condutas com as dele, espe-
rando realmente cruzá-las. É a atividade deste olhar, seu sa~
o r próprio , sua minúcia experiente : olhar daqueles que

l
ivaliarn e medem , pesam e pensam , por comparação entre o
ue vêem e o que querem , desejam, projetam de sua própria
otência lúdica. De seu próprio desejo de uma existência
exposta: liberta e entregue. Quem viu crianças (ou nem tão
crianças assim), prontas para saltar para dentro da cena, ex a-
minarem o palco e suas práticas enquanto esperam a hora do
salto, vislumbra o que queremos apontar aqui . O Olhar~ .
'--espectado r mais poderoso, mais afirmativo, mais alerta é o
do jogador que se prepara para assumir o lugar daquele que
ele está vendo, para aproximar-se dele no e pelo jogo, e a
[ogar nele sua cx-sist ência. Esta é a convicção que anima es-
tas páginas ; não há em nosso tem po, em nosso mundo, espec-
~adores de teatro ue não se 'am 'ogadores em p o te n c i ~
Miríades de olhos são habitados por este olhar: milhões de
viventes em desejo de jogo, e para quem o jogo mostrado em
cena pode oferecer a paixão de um contágio prático. Milhões
de jogadores que demandam uma teatral idade íntegra, lúdica,
nua , companheira fraterna do desejo de jogo, assim como qual-
quer prática em potencial é boa companhia para o ato diante
dela exposto.

P
Ora, os que olham não vão ao teatro. Porque o teatro é
regido e pensado segundo pressupostos e ritos que são os da
época da representação . Ou então vão muito pouco: ali não

*. Em francês, regard (detjoueur, que permite urna dupla leitura: olhar

de jogador e olhar que desmancha, desarticula (regem! déjoueurr. (N. da T.)

151
150
o teatro quer ser repensado. relançado, retomado. Não
podemos lias satisfazer com sua letargia. nem aceitar sua
extinção. Cada qual pode inventar os meios desta recupera-
ção. que são incontáveis. Vamos aqui nos contentar em su-
gerir um. que exprime o exíguo campo onde se concentra a
atenç ão que presidiu as observaçõ es que vocês acabaram
de ler. Visto desta perspe ctiva, o teatro aparece como
monstruosamente ignorante do desejo vital, da necessidade
de teatro que corre à sua volta sem transpor suas portas, e
que é apenas o nome mais ou menos adequado da necessi-
dade de expor a existência - toda e qualquer existência,
toda e qualquer vida - correndo o risco da apresentação,
diante de 11I11 olhar comum, compartilhado. Frustrada. esta
necessidade pode se entregar a exibições menos digna s.
Aceita, entendida, acolhida. ela exige do teatro sua auto-
subversão.
Ora, essa abertura se choca contra dois preconceitos
simétricos. O primeiro desqualifica o desejo de jogo em nome
de sua aridez. pretensament e pré-teatral. ligada ao diverti-
menta de massa, e que merece UIII pouquinho mais de co/u i-

153
deraç ão do que as partidas de cartas que as pessoa s j ogam É preciso repensa r (refazer) o teatro arti culando todas as
em casa dep ois do jantai: A Arte é ap enas pret ext o: este
sua s for ma s, todas a.' sua s fases: deixando que a vida tea- \
desej o de jogo não pa rticipa da A rte, mas dos passatempos
~ral, p~r. m ais profissi~nal " ". sej a, se alim ente de todos os
de sa l ão. Modo de ign orar a fo rça de lima pulsão para a
impu lso s de teatro, ate os mais obsc uros.
teatralida de , l údica ou séria, que, sem dú vida , animou to-
O seg undo precon ceito invalida o olha r; a partir do
dos os supostos a rtistas em sua infância e adolescência, às mom ento em que ele se confessa como olha r inte ressa do de
vezes até mais tard e. Nega ção que permite tam bém reivind i-
qu em gostaria de represe nta i: São então desqualificadas as
car pa ra si mesm o a virtude da profissional idade' recusan-
ap resentaç ões nas quais amadores, seus amigos e suas f a-
do-a a outras pessoas. Não pretendo, evidentemente, recusar mílias só vêm ao teat ro para "se" ver ou ver os co legas, os
a profissionalidade. O teat ro precisa muitíssimo dela, ela am igos, a fam ília, mostrando-se por isto indign os do estatu-
deve ser respeitada dentro das mais estritas exigências téc- to de "ve rdadei ros espec tado res ". Como se os p rofissionais
nicas e art ísticas. Mas a profi ssionalidade sec reta sua ideo - fi zessem outra cois a, ao lon go do (1110, que não seja ir de
logia: qu e atribui uma essênc ia ao "se r at or ", (ao ser teatro em teatro para ver em cena os colegas, os antigos
encenado s: cenó g raf o, nuisi co , fig urinista, iluminador), o am ores, a grande f amília. Mas o olhar deles é conside rado
opõe ao não-ser-ator e permit e dizer: eu sou profissional.
artísti co: j á o do zé -po vinho seria despro vid o da mesma
Por conta disto, o ator que tem a so rte (ou o talento) neces-
acuidade. O verdadeiro espec tador vem por puro am or pelo
sá rio para trabalhar o ano todo se acha (naquele ano) mais
que é representado, por puro prazer de degustar a represen-
esse ncialme nte ator do qu e aqu ele qu e trabalha de forma
tação em si - por desgra ça este esp ectador é hoje um f óssil,
" intermitente, qu e espe ra, vivendo do seguro-desemprego . O
se é qu e algum dia ele ex istiu. Teatro purament e Profiss~'-
primeiro reivindica intran sigentement e sua profi ssionalida- . nal para espec tado res em estado puro : este é o modelo, a
de, desdenhando do outro, seniip rofis sio na l, que emprega ' norma ideal que preside a I:ida do s teatros. Ora, es te é um
seu temp o de não-atuação trabalhando como ga rçom num modelo de teat ro morto. A Vida do teat ro não p ára de pulsa r,
bai: E também se sente ma is ator do que aqu ele qu e se resig-
ma s em outro lugar:
nou a só viver o teat ro em seus mom entos de laze I: Assim, a Enqu ant o que é a não- pro[issionalidade, ou m elhor, o
profi ssional idade acaba por design a r o qu e se tem , ou se
colltato produtivo da pro[issionalidade com aquilo qllJLcs.tá
pretende te r; e que f alta ao intruso que aspi ra a ter a mesm a
"em volta e lhe escapa, que carre ia os IÍnicos recursos que
coisa; a profissi onalidade subsu me sob este ter o ser que a
p rognosticam unUJOssívd ela estético do teatro, porq"'(;e
pessoa co nserva para si e que o outro não é (po rque não o
só es tes co rrespo nde m à sua necessidad e. Uni pOl~r
tem). Enq uant o que a co rrente evidentemente deve se r olha -
toda pa rte surgem os lugares desta elaboração. Ela procede
da no sentido inve rso : a profl ssioualidad e deve se r pensada de um mo vimento duplo. Unia prim eira tendência, centrífu-
conto IIIU processo, sempre em mo viment o, qu e, por pat am a- ga, empurra pa ra fo ra dos circuitos institu cionais um n únie-
res sempre instá veis , conduz do desej o de teat ro ma is inf an- ro cada vez maior de profissionais - j o vens desempregados
til aos d eg raus da prof issã o. Ou o co nt rá rio: é b em ou pessoas mais velhas marginalizada s pela compe tição es-
imprudent e aqu ele que se ac ha profi ssional para a vida toda.
peta cular e come rcial, que, para não abdicarem de sua op-
*. Em francês , professionnalité, neologism o util izad o pelo autor para se ção por uma vida de teatro, são levados a expe rime nta r
referir, de for ma neutra, iI qu alidade daqu ilo que é relativo iI profi ssão, ao tra- modos de p rodução e de trabalho qu e os colocam em conta-
balho, se m inco rrer nos significados agrega dos iI palavra professionualisme, to com desejos de jogo muito difusos. Nascem assi m comp a-
profissionalismo, que remete ao que bem realizad o, com precis ão e co mpetên-
é
nhias ambulantes, qu e trabalham em cidades pe rdidas do
cia, tend o um caráter marcadamente positi vo. (N. da T.) interior; of icinas para jovens nos ba irros co nvuls ionados,

154 155

experiência s nas prisões, hospitais e, claro, em escolas. Em efetiva mente, vivos . É preciso abrir as cena s à vinda da-
fábricas que vão fe char, em cidades que vão morrer. A outra qu eles que f oram-dela s banidos: os ditos não-atores, os
tendência, contrária, é aquela que exprime a demanda poli- não-artistas. Há , sem dú vida , lugar para espetáculos de
morfa de "f ormação ", vinda dos grupos os mais heterócli- profissionais representando entre si, cla ro. Não há razão
tos, em busca de profissionais para ajudá-los ou orientá-los. »ara pedir a cabe ça deles. Mas é preciso abrir os pal cos r
Estes dois mo vimento s são objeto de um desprezo perpassa- às alt erações da vida ext erna , pela intrusão efe tiva dos
do de cobiça: cegueira ou desdém diante do que acontece vivos que estão do lado de f ora. São nece ssários ali outros
fora dos nobres caminhos da Art e; tentativas de recupera- jo gadores, que conhece m regras que ainda estão por tra-
ção con cupiscentes, por teatros que bus cam legitimidade du zit: Falta romp er barreira s e que os profissionais tra~
social; magistrados á vidos por cultura popular, gove rnan- ~m c~m ~s outr~s, para exibir, em toda a sua adequ ão,
tes-m édicos aflitos para engessar as fraturas e cauterizar as J.gj mpropn o da Vida - e dos mortos. E se as conv en ções do
eridas mais visíveis. Os homens de teatro usam tudo isto teatro não forem respeitadas, melhor ainda. É pre ciso es-
como pretexto para eternizar seu imobilismo. Mas o fato de petáculo s desajustados, tran spa ssados pela teatralidade do
que um ministro se dê conta da existência da miséria não não-t eatro . "A filosofia tem necessidade de uma não -filo-
basta para legitimar nosso desinteresse pelo problema : as SOfia qu e a Côillpreenda ", escrevem Def ellze e Guattari,
~e caridade não dispensam as re voluções. - ' -ncómo a art e precisa de nã~-arte e a ciênc ia de não -ciên-
E urgent e reordena t; em 11m outro sistema , as profis sões cia "' , Nela para se alim entar dela, ingeri -la, tran sformT •
ligadas ao teatro e o teatro que as ultrapassa. É pre ciso /lã!m tecido adiposo. Uma n ão-filosofia que a compreenda,
inve ntar uma vida teatral estruturada de outro modo, que ~ m eles: qu e a entenda e a englobe. O teatro quer o
responda à necessidade do teatro de hoje - ou reconhe cer nela-t eatro qu e o compreenda. Não para tirar d ele uma
que nos acostumamos com o seu definhar: O teatro deve se r mais- valia estética para uso dos gourmets: para qu e o tea-
?lIestionado na raiz de seu exercício, de sua "distinção ". E tro abra sua tuostraç ão aos leigos e ao tumulto. Faz alta o
Isto deve acontecer em todos os seus aspectos : como art e, longínquo , o esparso, o estreito. O estranho recon ortante
como produ ção, como apresentação pública. :! o tal/Ilhar vertiginô%o. E neJessári a tanta irrev erên cia
A arte do teatro deve se abrir aos fluxos da vida que em relação à moldura e às convenções da cena quanto a
iontinua estranha a ele. Todas as revolu ções estéticas dos que os artistas que f izeram a modernidade demonstraram
iltimos dois séc ulos se prevaleceram deste imperativo. Mas em rela ç ão à moldura. É preciso maltratar a matéria do
os hom ens de teatro , que refletem sobre a ruptura operada teatro, colar nela o real: mas o único real que, até aqui,
por Baudelaire, Duchamp ou Monk, permanecem cegos ao conseguiu escapa r às recup erações de sua Arte - o real
confinamento de sua art e em uma nova Academia. Não bas-
ta l//lIda~ as fo rmas - embo ra, com ce rteza, seja pre ciso Accumu lations (Ac úmulos) e Poubelles (Lixe iras) são assemblages, respecti-
fa zê-lo . E a cena o que é pre ciso abri I; a cena como espa ço vamcntc, de objetos do cotidiano (relóg ios, garfos, pincéis) e de lixo. Na décad a
práti co, material. Não se trata mais de acolh er ali os obje- de 1960, ele se tornou um dos iniciadores do Novo Realismo; tamb ém trnba-
tos do mundo, como na s en cenações de Antoine ou 110.1' Ihou co m objetos co mpac tados e estabeleceu uma parceria com a Renault, vi-
sa ndo a pôr e m relação arte e indústria. Nos anos 1970 fez experiênci as co m
quadros de Arnian', É preciso tra zer os hom ens para a cena.
lixo org ânico . Atualment e, Arman se di vide entre seu atel iê de Nova Iorqu e e
Não sua imag '!!1l, !!!!IS suas singularidades e seus grupos, Paris. (N. da T. )
I. G. Delcuze c F. Guau ari, Qu 'CSI-ce que ta phil osophi e'! Minuit, 1991 ,
p. 205 -206. (Em portu guês: O Que é li Filosofia" , tradu ção de Bento Prad o
. * Arman: a rt ista plástico francês da Escola de Nice, cuja ca rre ira se ini-
Júnior e Albert o Alonso Muiioz, Rio de Janeir o, Editora 34, 1992 ).
C IO U em meados dos anos 1950, influenciada pelos surrealistas. Seus trabalhos

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~ -----<.

~
dos vivos e de sua pele. Já co mpreende ram: nã o estou f a - 1e recer_se como locais de trabalho e de os tentação a todos
lam/o de tem as para as representações de art ista s, ma s de os tipos d e frátrias despossuidas, m úsicas em deveni r; lite-
efe tividades cênicas. As cenas qu erem se r abertas ao jogo ratu ras, grafisntos, intag éticas por nascer: E a atividade do
lOS outros , e a colher; no mai s extremo rigor de trabalho e teat ro deve ser med ida, e conduzida. seg undo o impe ra .
de co mposição, pro ced imentos de tra vessia do real vivo . ~ desta visibi lidade comum. Não se trata de p reconiza r qu e os
cena de ve se deixar ratu rar ?elos so ns, pelas marcas, pe- teat ros se transformem em mo téis administrados por um ge -
.os clamores e poem as do mundo que s~ engendra~ fom' rente de locações que ace ita qua lquer IIfIl qu e chegue. Tra-
, dela - ncio por citaç cio ou retom ada de les pela estética do ta-se de p ropor que equipes profi ssiona is, grupos , artistas e
. teat i·o , ta como e e un ciona, ma s por a c e:!!!_efetiv o, alá - operários concebam, organize m, programem e co nduz am a
to ruto, e/i-ação e trabalho exigente so b re sua co m/J.!lj.i: atividade de espaços que p roporcion em a outros al ém deles
°
cio. jaz: (e co m ele todas as m úsicas do século XX, qu e as mais rigorosas possibilidades de sua ex ibição . § ste com-
ele tran sform ou ) nasceu de um con vívio vagame nte obsce - partilhar dos ena os flc/o ,deve ficar limitado ao cronog ra-
no entre as partituras profissionais e os balidos de "ama- ma c e ab ertura de uma ou vária s sala s, devendo se tornar o
dores " qu e vie ram ins crever ali seus idi omas "d e f ora ". É campo de uma fricç ão entre os dizeres, de uma co lisão bus-
~- - - - - ..--- ""7- - - -,---:,.--;-
preciso jazzifica r o teat m.. Os refinados fruidores da es t é- . cada e trabalhada das est ética s,,de uma desapropria c/o dos
-fica podem reclamar; protestando a boca pequena que este -w:.~ os. Ele deve abrir para 11m trabalh o, lima pesquisa, lima
projeto es tá fia épo ca errada, qu e a era da arte moderna j á trocá - para uma elabo raç ão dial ági ca dos saberes, dos pen-
pa ssou, que j á não se está mai s nos anos 20 . Mais precisa- sarnentos e práti cas de um teatro futuro . E se disto resultar;
m ente: quando a restaura ç ão se acom oda, vem o tempo c~mo é pro vável, uma tensão entre os mod os de produ ção
dos cabeças -d u ras. Classes perigosa s, trabalhando nos (nivel dos sa lários , horári os de trab alh o, modos de vida)
subte rrâ neos'. E se o teatro escapo u, ao menos em um .I' melh or: o teat ro n ão tem fiada a ga nhar proteg endo suas
tido, à radicalidade do abalo do modernismo (v isto qu e só zonas de seg urança, ele deve se expo r a ouvir aqu eles qu e
os ecos da vida d e fora vieram perturbar sua moldura), n ão goz am de suas vantage ns.
podem os muito bem imagina r; seg undo a bem conhecida A eco no mia (a política eco nô mica} do teat ro tam b ém
lei da co nvers ão do s at rasos em av a flços , qu e caiba a ele °
n ão pode fica r fora da di scu ssão. financiame nto dos es-
deslan ch ar a próxim a dissensão. petácu los deve se r totalme nte reorgani zado: é p reciso re-
Pa ra tanto , o andamento dos teat ros deve ser ene rgica - pen sar os mo dos e os ca ntinhos da deman da socia l, os
ment e sacudido . Sc/O necessários, admitimos, espetáculos de pressupost os da subvenção p ública, as possib il idades de
atores profi ssionais em qu e só eles represe ntam , desde que interven ç ão e de apoio dos espectado res e das cidades. °
isto n ão esgo te todas as capaci da des de financ iam en to so - teat ro n ão deve viver ap ena s da lib eralidade do Estado e
cia l. Mas a responsabilidad e estética que preside o uso dos do co ns umo de a lgumas redu zidas cama das sociais semi-
teatro s n ão pod e ma is ser pensada segundo crité rios de h/en- abastadas. Se ele n ão encontra nenhuma o utra lógi ca de
tidade. É o compartilhar qu e deve orient á-la, o diálogo en - finan ciament o, é porqu e só aos olhos d eles o teatro apare-
tr e lin g uas inaudivei s. .0.1' teatro s d e vem s e violentar:., ce CO fl/O n ecessári o. Sua necessidade pode se r medida pelo
fat o d e qu e li/na popula ção se empenha em pagar para for-
*. Em fran c ês: vieilles taup es (to upe iras velhas) , e xpressão utilizad a para ne cer-lhe os meios de sua exis tênc ia : o qu e pod e assumir a
design ar a lgo que opera escondido mas que, e m algum momento, aflorar á 11
forma d e ap oio estata l, sem dúvida al guma, ma s es te apoio
supc rffcie, com o as revolu ções , os partidos cland estin os, os prol etários . Segun -
do D. Gu én ou n, a ex press ão yc u de flam/ef (Ato I, cena 5, v. 162), reromada d eve ser te-fundado, ap oiado em al guma outra co isa que
•..ll0r Hegel
'-
e. a. partir deste, por Mar x. (N. da T ) n ão ele p róprio. Porqu e o ho rizonte ev ide nte, i1,coflt está-

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vel, da apre sentação públi ca deve ser a gratuidade'. Sta - Esta é uma das condições do degelo estético do teatro.
nislávski escreve: Imperiosa , embora nela seja a única : o dege lo do teat ro só é
possível se ele se deixar penetrar pela vida que o ce rca e
Estourou a Revolução de Outubro. Os espetáculos [oram declarados que ele só conhece através de um vidro ou de uma (quarta)
gratuitos, durante um ano e me io não houve venda de en tradas, que eram
enviadas a repanições e [áb ricas e tão logo o decreto sa iu nos nos vimos
cara a cara com espe ctadores totalmente IIOVOS pura /uís, m ui/os dos quais, vclmcnte ma is densa no terri tór io francês nos últimos cin qüenta anos; poucas
tal vez a maioria, desconheci a não slÍ o IIOH O teatro , II/lH qua lque r outro cidades são hoje des providas de um equipamen to co m vocação teatral o u de
teatro. On tem [reqiientava o teatro W II público misto, entre o qua l havia uma co mpanhi a com pretensões profissionais . Pois bem : todos os teatros de -
também intelectuais, hoj e estávamos diante de unta platéia absolutamente ve m inclu ir Escol as . É preci so cria r uma rede poderosa c densa de Escolas
nova, que não sabiamos como abo rdar. E nem ela sab ia como vir a nos e teatrais capazes de aco lhe r grande número de cand idatos de todas as idades .
como viver conos co no teatro . É claro que . 110 primeiro momento, o regime e Ou , pelo menos, todos os q ue man ifestam aptidões evidentes ou um gos to mais
o clima do teatro modificaram-se imediatamente. Tivemos que começar tudo determinado pelo teat ro. Deve ser possível aprender teatro como se pode , no
de I/OVO , de ensinar /1111 espectadorprim itivo [sic ] em relação à arte a per- geral, fazer com a música : esco las de música e conservatórios de diversos ní-
manecer em silêncio, não conve r.wlI; sentar-se a tempo, II Ü O fumar; I/{/O co - veis o ferecem uma escala de formação que vai da iniciação ao pro fissionalismo
mer nozes, tirar o chapéu. n ã» tra rer sa lgadinhos nem comê-los na platéia} mais ousado. É de uma co isa assim que o teatro precisa - ao menos dis to . E, em
vez de se obstinarem opor as necessi dades da formação profissional às práticas
Eviden temente, isto foi no tempo da revolução, nela é o nos- de amadores, conceber a g radação num processo que permi tiria senão a todo
mundo ao me nos a muita ge nte fazer um aprendizado sério, adequado a um uso
so caso - e a história durou só um ano e meio. Mas a leitura
como passate mpo o u então abordar uma prática mais difíci l, qu e inclu i o arris -
destas linhas nos faz bem : os homens de teatro devem, hoje ca r-se nas experiências profissionais . Esta idéia seria irrea lista se o teatro fosse
em dia, recolocar a questão da gratuidade no cen tro de seu um gos to marginal, c se uma idé ia como essa tivess e o obje tivo de criá-lo ou
pensamento, sem pretender aplicá-la de chofre e em toda amp liá-lo. Mas trata -se de responder ao que está aí: jovens em profusão, q ue
parte, mas reconhecendo nela o verdadeiro fut uro do teatro, acorrem a cursos pontuais , desordenados, bastardos c às vezes franca mente pi-
caretas (tanto faz: cursos de iniciação ou de formação profiss ional) ou estas
sem o que sua exis tência como pequeno priv ilégio social
legiões de atores amadores q ue so licita m ajud a para tornar mais rigoroso seu
nela poderá ser abalada . É preciso aceitar tra balha r para compromet imento . Q ualquer diretor de tea tro sabe que a demanda em cu rso/
isto: em lugar de afastar a hipótese com um gesto de raiva por cursos é incessan te, indefinidamente renov ada e q ue não é poss íve l sa tis fa-
ou de desdém e com o auxílio de alg umas banalidades cul- zê -Ia. Ta mbém são numerosos os atores e pro fissionais dos dive rsos ofícios do
turais ou comerciais'. teatro capazes de partilhar o que sabem com alunos de dife rentes níveis (das
crianças aos al unos -atores ambiciosos), e q ue tê m tempo, qua ndo ma is não
seja, pela intermitência dos trabalhos , mesmo no caso dos profissionais mais
2. Esta articu lnção en tre o apoio dos espectadores e a gra tuidade parece req uis itado s. Mas a rede de escolas não deve ser instalada de forma paralela
para doxa l: eu a desenvolvi em Le ttrc au directeur d u tti éãtre. OI'. cit ., p. 70 sq. nem concorrer com a vida dos teatros , como um circuito socioeducativo dist an-
3. Ma vie dons l'urt, tradução de Nina Gourfinkel e Léon C hanc erel , Li - te da vida dos palcos . É preciso que os teatros sejam sua alma . o eixo . o motor.
brairie Théâtrale, 1950, p. 2 11. (Em português: Minh a Vida lia Ar/e . Tradução Os atores dos tearros c os outros profissionais q ue os cercam devem formar o
de Paulo Beze rra . Rio de Janei ro: Civi lização Brasi leira, 1989, pp . 499 -500). cora ção, ou o todo dest e corpo professoral cujo nascimento se que r prop iciar.
4 . Pelo prazcr da utopia, daremos aqu i um exemplo prático. Cada tea tro O que supõe uma transformação do mod elo da profissiona lidade . É prec iso
deveria comportar. no coração de se u coração. uma Escola. Não apenas a esco- ima ginar que um ator pos sa devotar rot ineiramente uma pa rte de seu te mpo à
la com que sonham todos os teatros c que alguns - muito poucos - mantêm: tran smissão de conhecimentos (um expediente por dia, ficando os outros dois -
escola profissional de alto nível , como se diz . Estas escolas, úte is, devem ser porque os atore s têm três expedientes diários - para ensaios e todo o resto) , sem
multiplicadas. visto que suas capacidades não têm relação com o ritmo do in- que isto aca rre te uma negação ou um apeq ue namento de seu estatuto de ator ,
gresso na "profissão". Mas viso aqu i a uma Escola muito aberta, pública, capaz que, ao cont rário, deve ria se solidificar a partir disto . Ning uém acha que um
de propor uma resposta ao desejo de teatro multi forme, como ele se manifesta músico seja menos profissional pelo fato de dar aulas de música. Ele prec isa é
nos jovens (e em out ras pessoas também). Ao começar, cu le mbr ava que a ma- ter a pos sibi lidade de organi zar sua relação com os lugares , sem ficar condena-
lha dos ed ifícios teatrais e das companhias profi ssionais tornou-se considera- do à incessant e migração de cidad e em cidade em turnês interm ite ntes ao longo

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1
]
parede . Rap idam ente se esquec e a cor e a textura dos dias $ç/~OnSabilid(:des cív ic:'ls ou morais. ,/It1 ,,/,:, f ', Ii"I/ ,/" /, fi" ',
COII IllIIS. do trab alh o. da ba rganha ge ral e das lib ertações mai s do qu e a fi gura ção e a sua s illltlgt'ns, inventa, 11,'I ',1\
sing ula res. quando se vive tran cado na sala de ensaios ou é:icas e trocas inéditas. Talvez o jogo valha daqu ! 110 1' tlitlll
no palco. Bastam alguns (1//0.1' e o mundo assume o asp ecto te como modo de afirmação do que vem. Não ap ena s o jogo
de uma sala de espetáculos ma is ou menos deserta. Nosso do teat ro, claro : o j ogo múltiplo e disparatado do qua l o
vrr;positivo teatral está à beira da ast enia. ap esar da inten- teat ro é uma das possibilidades e uma das fun ções. É então
..h!ade das ene rgias qu e nele se inf lama m. Precisam os mu - que o Trabalho se recolhe mal hun iorado a seu redu zido
dar d e terreno, reestruturar todo o e difíc io. recom eçar o espaço. E eis qu e a A rte, "este Cristo do s tempo s moder-
trabalh o de pensar sobre isto qu e chaniatnos "teatro " - e nos " 5, nã o Jára de o erece~ espet ácu lo, lia m elhor (,
tal vez tam bém alguma co isa diferente. que tenh a outro nom e hi 1óteses, _~uas ressurreições e, na pior, de suas relig iQsi-
- como algo heterogêneo e acolh edor em rela ção às práti- lade~. O ./ogo não tem qu e substituí-Ia como ess ênc ia sal-
cas e à vida qu e exce de m seu âmbito. Só esta retoma da do vadora. Mais prosaicamente - e poeticamente -, pro curam
trabalh o pode responder à necessidade de teatro em sua atuali- se cruza r vozes que se faze m ouvir /10 j ogo ativo e I'ivo das
dade e não ( 10 modelo. encerrado , do Personagem fi gurai ci ências, d os trabalhos e das art es, cuja textura e cuj os en -
diante do Espe ct(uku ;§ujeito. Só ela pod e I IO S f azer olha r contros in éditos assinalam , tal vez, as tarefa s éticas e políti-
sem precon ceito a ~/ade práti ca qu e nos so liciW como cas do tempo qu e se aproxima, qu e j á se pôs em mo vimento.
realidade da era do j ogo. E qu e nã o se acredite d ep reSS(J Não é proibid.o querer que o teatro tenha algum as pala vras
demais que II/n pensamento do jogo isenta o teat ro de suas para dizer e alguns COl pOS para mostrar nesta partida ab erta.

Nodica (Pisa),
do ano. Não se prete nde des tiná -lo ao sede nta rismo: viaja r é preci oso , vita l - verão de 1996.
tempo de e nco ntro e de abertura . Trat a-se da possib ilidad e de viver um aqui -
lugar de inscrição e de part ilha . O qu e req uer no va s instâncias a rt ísticas co let i-
vas , no lugar do que foram as trupc s, q ue deve m ser re inve ntad as. Esta tra ns for-
ma ção s upõe que a ino vação poéti ca é estimulada po r es te compartilhar: nas
instituições cie nt ífica s. por exemplo, se mant ém, bem ou m al . um el o ent re
en si no e pesqui sa , contra as determinações da l ógica co me rc ia l. Ma s a qucstâo
indu z, sobretudo. a um a tran sfunnnção da per sonal id ade soci a l do ator, O at or
não de ve viver sua existência soc ial apenas na perspectiva do pa lco ; s ua vida de
ator e m ce na de ve se articula r a um a ourru soc ia lidade ativa: a rel ação e nt re
atores e não atores não dev e se dar ape nas , imaginariamente, por c ima da boca
de ce na , ma s encontrar também e m o utros lugares s ua vinculação e s ua pro d u-
tivid ade . Mencionaremos, e ntretanto. o ca so de um a profis s ão pa ra a qual isto
se ria muiu ssimo sa udável : a e nce nação . É nece ssári o um e nsi no de dir eçã o
(q ue , pel o men os na Fran ça, não existe), não para transmitir eâ no nes aca dê mi -
co s - a objeção vem daq ueles q ue só concebem pedagogia como sinô nimo de
conscrvm ório - lI1as para ent rela çar inven ção e transm issão, cujos requisitos só
se opõem aos o lhos de UIl1 romantismo de boteq uim. Es te e nsino criativo se ria
mui to bem recebido pe los a lunos, visto que ningué m dir á a nin g uém , a não ser
pe lo brilho aleat ório de a lguns peq ue nos model os, co mo e por o nde ab ordar a
a rte de fabricar espet áculos. Mas será muit o útil tamb ém pa ra os professo res : 5. Ara g on, Trait édu style , Gu llima rd , 1928, recd , Tel , 1983 . p. 43 . (E m
os c ncc nador es só le riam a ganha r aband ona ndo s ua posi ção de m usas dos ba l- port ugu ês : Tratado do Estilo, tradução de Júlio Henri qu es, Lisbo a, Amigona,
cões de neg ócios, 1995 ).

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