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a encenação no coletivo:
desterritorializações da função do diretor
no processo colaborativo
São Paulo
2008
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
A encenação no coletivo:
desterritorializações da função do diretor no processo colaborativo
Aprovado em:
Banca Examinadora
Instituição:_______________________ Assinatura:_______________________
À minha mãe
AGRADECIMENTOS
Aos parceiros do Teatro da Vertigem, por toda a arte e por toda a vida;
A Elena Vássina, Gita Guinsburg e Peter Pál Pelbart pelo apoio estratégico em campos
cifrados;
A Beatriz Vilas Bôas e Paola Lopes pelo auxílio na pesquisa, e a Luciana Facchini pelo
auxílio gráfico;
A Eliana Monteiro, Heloísa Prado, José Eduardo Vendramini, Lucienne Guedes, Luís
Alberto de Abreu, Luís Fernando Ramos, Maria Tendlau e Rubens Rewald, pelas dicas
e discussões “colaborativas”;
Ao grupo de orientandos do Prof. Jacó: Abílio Tavares, Alice K, Carlos Rahal, Cibele
Forjaz e Lúcia Romano, pelos “diálogos de sexta-feira”;
A tese investiga o campo de ação e o papel do diretor teatral no âmbito da criação co-
letiva e do processo colaborativo, modos de criação compartilhada surgidos nas décadas
de 60 e 90, respectivamente. Numa perspectiva coletivizada de construção da obra
cênica, em que a autoria passa a ser comungada por todos, o encenador deixaria de
ser uma figura imprescindível, limitando-se às tradicionais funções de organização e
gerenciamento, ou seu papel criativo autônomo estaria sofrendo uma readequação
ou redefinição? A autonomia da encenação estaria em crise ou o papel do diretor
estaria se desterritorializando? Visando responder a tais questões o trabalho realiza
um estudo histórico, teórico e metodológico de distintas experiências coletivas de
criação, com ênfase especial no processo colaborativo e na função do diretor. Além
disso, examina os processos de ensaio de O Livro de Jó; Apocalipse 1,11 e BR-3, do Teatro
da Vertigem, a fim de descrever e refletir sobre os seus respectivos procedimentos e
práticas coletivas de criação. Por fim, à luz das discussões teóricas e das experiências
teatrais aqui tratadas, realiza-se uma análise da função do encenador no processo co-
laborativo, bem como uma reflexão sobre aspectos da encenação contemporânea.
This thesis investigates the theatre director’s role and field of action in two theatre
movements whose creative processes are shared by all participants, namely the
collective creation and the collaborative process, which emerged in the 60s and 90s,
respectively. In a theatre work that is built collectively, whose authorship is an act
of communion in which everyone participates and shares, one may wonder whether
the director will be no longer needed, his role being restricted to organizing and
managing the staging, or that his autonomous creative role in the production of
a play is being rearranged or redefined. Is the autonomy of theatre directing and
of the mise en scène going through a crisis? Is the role of the director becoming
deterritorialized? In order to address these issues, a historical, theoretical and
methodological study of different creative experiments involving theatre work that
is created collectively is carried out, with a special emphasis on the collaborative
process and the director’s role in such process. In addition, the rehearsal processes
in O Livro de Jó (The Book of Job); Apocalipse 1,11 (Apocalypse 1,11) and BR-3, three plays by
Teatro da Vertigem, were analysed, with a view to describing and reflecting upon its
collective procedures and practices of creation. Finally, in the light of the theoretical
issues and theatre experiences discussed in this thesis, an analysis of the director’s
role in the collaborative process is made, as well as a reflection on some aspects of
contemporary theatre directing.
1 Introdução 01
Anexos 217
ANEXO A – Diretivas para o Coletivo Teatral do Teatro Piscator 218
ANEXO B – Fichas Técnicas Resumidas dos Espetáculos 220
1 Introdução
ção cênica continuam sendo atribuições suas, será que, nesse processo de divisão de
autorias, o encenador não passaria a ter um caráter mais catalisador, “enzimático” e
provocador de uma polifonia criativa, ao invés do seu conhecido papel unificador?
Tal atitude ou perspectiva por parte do encenador parece exigir dele a crença na
capacidade que o outro tem de criar, o conhecimento profundo das características
e habilidades dos seus parceiros de trabalho, bem como das limitações e inseguran-
ças que os impedem de desenvolver suas potencialidades criativas. Ao instigar uma
postura ativa – e não apenas reativa –, ele compromete-se com um processo de cria-
ção que envolve mais riscos e coloca em xeque a sua própria função centralizadora
e de condução.
Em outras palavras, a contaminação ou o compartilhamento das autorias colo-
caria em perigo a autonomia de sua criação, ou, pelo contrário, a redimensionaria?
Como se estabelece a sua criação diante das inevitáveis polarizações e das vontades
individuais divergentes, presentes em processos dessa natureza? E, se não podemos
falar na “morte do diretor” ou no “fim da encenação”, seria apropriado pensarmos
em um “diretor em crise” ou em uma “encenação fraturada”?
Ou ainda, valendo-se de alguns conceitos deleuzianos, seria apropriado falar em
uma reterritorialização da encenação? Ou talvez, quiçá, melhor seria investigarmos a
sua desterritorialização? A noção de “território paradoxal” como um território sempre
por vir e sempre por ser construído, um território pensado por Deleuze não como
“lugar geográfico”, mas como “zona de experiência”, parece vir se delineando como
uma boa tradução para o habitat deste encenador-em-processo.
Tais percepções nos levam ainda a outros questionamentos: nessa dinâmica de
compartilhamento das autorias, o encenador não estaria abdicando do seu conheci-
do papel de construtor de uma unidade? A noção de ensemble, fundamental na prática
de encenadores como Meiningen, Antoine e Stanislavski, não estaria sendo revisitada
por outro ângulo, que não o da unidade harmoniosa do todo, mas pelo viés da ação
criadora do conjunto, do coletivo, do grupo?
E, por fim, se vivemos na época do teatro “performativo” ou “pós-dramático”, não
estaríamos diante de uma encenação, também ela, performativa? Ou ainda, no limite,
seria possível pensar em termos de uma “anarqui-encenação”, liberta dos princípios
tradicionais de autoridade e liderança?
Esta tese pretende, justamente, abordar tais questões, verificando possíveis modi-
ficações na função do encenador a partir da experiência do processo colaborativo. Procu-
ra, nesse sentido, identificar as eventuais readequações ou redefinições do papel do
diretor numa dinâmica compartilhada de criação, e checar se, ao ampliar seu campo
de possibilidades, tal papel estaria encontrando outras formas de atuação.
É inegável a relação do objeto desta pesquisa com o meu próprio ofício de dire-
tor. Venho trabalhando numa perspectiva coletivizada, desde a criação do Teatro da
Vertigem, em 1992, grupo no qual exerço a função de encenador. Daí o interesse em
O teatro, por sua natureza, constitui-se numa prática coletiva, envolvendo artistas
e técnicos na sua criação e execução e, além destes, o público, no momento de sua
recepção – e, também, produção, como no caso dos ensaios abertos. Porém, o termo
“coletivo” aqui diz respeito à quantidade numérica de pessoas envolvidas no fenôme-
no teatral – que pressupõe, no mínimo, um actante e um espectante – ou à quantida-
de e variedade de funções nele presentes.
Em nosso trabalho, contudo, utilizamos o conceito de “coletivo” associado a um
modo de fazer, à maneira como as diferentes funções ou atribuições se articulam rumo
à criação da obra cênica. Nessa perspectiva é que utilizamos a noção de “dinâmicas
coletivas de criação”, cujo acento e foco se encontram num processo compartilhado,
cooperativado e democrático do fazer artístico. Ou seja, não há um criador epicêntrico
para onde tudo convirja, mas um conjunto de criadores que vão definindo, coletiva-
mente, os rumos, os conceitos, as práticas e as materializações de sua obra/processo.
Caberia a pergunta, quanto à noção de “dinâmicas coletivas de criação”, acerca da
pertinência de sua utilização no plural. Pois seria correto pressupor distintas formas de
ocorrência desse compartilhamento de autorias, ou, ao contrário, o mais apropriado seria
afirmar a sua singularidade, relegando as diferenças entre um processo e outro, a idios-
sincrasias sem maior relevância? Seriam, por exemplo, os termos criação coletiva e processo
colaborativo nomes distintos para uma mesma prática? Ou, ao contrário, traduziriam dinâ-
micas e processos, que apesar de aparentados, consubstanciam fenômenos diferentes?
É a partir dessa contraposição que o presente trabalho orientará as suas reflexões
iniciais, procurando, em seguida, tratar detidamente do processo colaborativo. Porém,
antes de analisarmos tal confrontação, julgamos pertinente trazer à tona alguns ante-
cedentes históricos exemplares das práticas coletivas de criação.
rudnitsky, k. Russian & Soviet Theatre: tradition & the avant-garde. London: Thames and
Hudson, 1988, p. 10.
ritual de toda uma sociedade, em uma ação comum coletiva, freqüentemente dotada
de um caráter de celebração religiosa”. Para o filósofo-poeta simbolista, a crise do
teatro decorria, justamente, dessa perda de seu aspecto comunitário, participativo e
coletivo. Pois, “o essencial na arte teatral é seu caráter sobórni. [...] a arte teatral é em
primeiro lugar uma manifestação coletiva, coral, social, sobórni”.
O Teatro de Arte de Moscou (tam), por sua vez, também será palco de alguns pro-
jetos e experimentos comunitários. O primeiro deles surge, embrionariamente, por
meio de um fecundo diálogo entre Górki e Stanislávski. Tal discussão tinha como foco
a participação ativa do dramaturgo em sala de ensaio, o qual escreveria o texto a partir
das improvisações dos atores. A idéia proposta por Górki, em 1910 – ou 1911, segundo
Sérgio Jimenez –, tinha por objetivo a criação de um estúdio, com jovens atores, para
desenvolver uma colaboração baseada em improvisos, os quais teriam como norte a
idéia do canovaccio da commedia dell’arte. Isto é, a partir de um argumento fornecido pre-
viamente pelo dramaturgo aos intérpretes, estes se empenhariam em desenvolvê-lo por
meio de improvisações. Segundo a descrição do projeto, realizada por Jacó Guinsburg,
De acordo com Guinsburg, os atores teriam total liberdade para a elaboração das
personagens, cabendo ao diretor
amiard-chevrel, C. Les Symbolistes Russes et le Théâtre. Lausanne: L’Âge d’Homme, 1994, p. 28.
� stepanova, g. A. Idéia “sobórnogo teatra” v poetítcheskoi filossófii Viatcheslava Ivanova (A idéia
de “teatro ‘sobórni’” na filosofia poética de Viacheslav Ivanov). Moscou: Ed. GITIS, 2005, p. 56
(citação traduzida por Elena Vássina).
jimenez, s. El Evangelio de Stanislavski segun sus apostoles, los apócrifos, la reforma, los falsos
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profetas y Judas Iscariote. México: Grupo Editorial Gaceta, 1990, p. 243.
� guinsburg, j. Stanislávski, Meierhold & Cia. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001, p. 110.
Ibid., p. 110.
� jimenez, s., El Evangelio de Stanislavski segun sus apostoles, los apócrifos, la reforma, los falsos
profetas y Judas Iscariote, p. 243.
10
[...] nós ceifávamos tanto quanto serrávamos madeiras. Era duro no início, depois
isso nos agradou. Nós o chamávamos assim: “o trabalho forçado e pesado dos cri-
minosos”. Você se dá conta, o dia inteiro trabalhando duro! Lá, nas maravilhosas
margens do Dniepr. Nós tínhamos vindo para tirar férias, e desde o primeiro dia,
nos despacharam para o trabalho. Estranho, não é? E não é estranho, também,
que nós tenhamos retornado à Moscou em plena forma e com toda a força, todos
negros, felizes, orgulhosos de nossos bíceps, de nossas palmas calejadas e de nos-
sos bronzeados?12
De acordo com Poliakova, num dos estudos mais completos já publicados sobre
Sulerjítzki,
[...] foi nesse local que Vakhtângov, secundado pelo entusiasmo do ‘coletivo, onde
todos, comediantes ou não, eram iguais em direitos – o que subsistiu durante mui-
tos anos, embora a igualdade de salários deixasse de vigorar na companhia – e onde
reinava uma estrita autodisciplina e ninguém violava ou transgredia as normas’,
lançou-se a uma criação ex nihilo.17
O referido diretor russo fará nesse teatro uma de suas encenações mais importan-
tes, a da peça O Díbuk, de Sch. Aa-Ski, em 1921. Nela, durante os ensaios, ele lançará
mão da improvisação de forma mais acentuada que Stanislávski, utizando-a como
uma ferramenta para a construção da encenação. Além disso, Vakhtângov contribuiu
significativamente para a transformação do Habima em um verdadeiro ensemble, nos
moldes do Teatro de Arte de Moscou, ao sobrepor a formatação artística coletiva
às personalidades individuais dos atores. É importante ressaltar que essa noção de
ensemble – isto é, a idéia de um “conjunto” teatral – tem como pressuposto uma afina-
ção coletiva da companhia do ponto de vista do resultado apresentado – não denotan-
do relação, necessariamente, com um processo democrático de feitura.
O estudioso Ouriel Zohar, responsável por uma curiosa associação entre a cria-
ção coletiva e a ideologia do kibutz, lamentará o afastamento do teatro Habima de
seus princípios e práticas cooperativistas, característicos de sua fase vakhtangoviana.
Segundo ele, o Habima “iniciou-se sob uma forma coletiva, mas com o tempo ele se
distanciou de seus objetivos iniciais para tornar-se um pesado estabelecimento de
produções”18, próximo a um teatro do tipo “empresa comercial”.
Outra experiência coletivista de enorme importância foi o teatro de agitprop sovi-
ético. Ocorrido entre 1917 e 1932, ele se configura como o antecessor mais signifi-
cativo – ou, até mesmo, o inventor – da criação coletiva. Fruto da Revolução Russa,
16 rudnitsky, k., Russian & Soviet Theatre: tradition & the avant-garde, p. 194.
17 guinsburg, j., Stanislávski, Meierhold & Cia, p. 206.
18 zohar, o. Un Living Theatre collectif, inspiré par l’idéologie du kibboutz. Théâtre(s)
Engagé(s), fasc. 7, 1997, p. 202.
13
[...] a mobilidade dos papéis [representados por um ator] e dos contratos, a abertura
permanente da trupe aos voluntários; a elaboração coletiva do roteiro e do espetáculo,
auxiliada pelo apelo, limitado e controlado, a especialistas; a participação a mais
ampla possível da coletividade nos projetos do teatro, [...] pela sua presença, suas
opiniões e sua ajuda concreta nos ensaios e na preparação material (cenários, figu-
rinos), e também por meio de um papel ativo (a “co-interpretação” dos espectado-
res) na representação; por fim, o abandono do espaço teatral fixo, graças a espetá-
culos adaptados ou concebidos para serem apresentados ao ar livre (teatro de rua)
ou em locais não-habituais (fábricas, escolas, hospitais, quartéis), e graças ao papel
assumido pelos atores nas tarefas utilitárias, das quais a comunidade se beneficiará
(preparação de festas, ajuda na alfabetização e na escolarização).20
Não convém de forma alguma confundir a criação coletiva com todas as outras
atividades artísticas de massa: por exemplo, a declamação a várias vozes, a inter-
venção dos coros na ópera, as cenas de massa nos espetáculos dramáticos. A cria-
ção coletiva no teatro se caracteriza pelo: a) esforço dos participantes para encar-
nar em formas cênicas os interesses mais elevados do coletivo (isto é, o ideal
collectif, Le Théâtre d’agit –prop de 1917 à 1932, tome II, pp. 31-32.
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Ibid., tome I, p. 50.
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26 Na verdade, este texto irá conhecer cinco edições diferentes, de 1918 a 1923. O docu-
mento citado é o da 5ª edição, revista e aumentada, datada de 1923.
16
Sobre as paredes do foyer e dos corredores [do teatro] serão afixados todos os estu-
dos de figurinos e de cenários, desenhados para a peça, e todo o volumoso trabalho
preparatório será exposto para aqueles que desejarem tomar conhecimento dele.
O teatro proletário não deve esconder nenhum de seus segredos de fabricação. Do
primeiro ao último passo, o seu trabalho deve estar acessível a qualquer pessoa.30
29 rudnitsky, K., Russian & Soviet Theatre: tradition & the avant-garde, p. 44.
30 collectif, Le Théâtre d’agit –prop de 1917 à 1932, tome II, p. 32.
31 brecht, b. Écrits sur le Théâtre. Paris:
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L’Arche, 1972, tome 1, p. 234.
18
cena – e não apenas o seu próprio –, haveria uma melhora significativa na representa-
ção e todas as cenas ganhariam com isso. Para o dramaturgo e encenador alemão, “a
arte não é alguma coisa de individual. Tanto na sua gestação quanto nos seus efeitos, ela
é alguma coisa de coletivo”32. Por isso, ele não trata os atores como meros instrumentos
seus, ao contrário, convoca-os como parceiros de criação, experimentando as propostas
surgidas em ensaio. Defendendo uma perspectiva cooperativa de elaboração da obra
– o que envolvia também o próprio público do Berliner Ensemble, por meio de debates,
durante o período de ensaios anteriores à estréia -, Brecht afirma que a “divisão moder-
na do trabalho transformou, em vários domínios importantes, a atividade criadora. O
ato de criação tornou-se um processo coletivo de criação, um continuum de caráter dialé-
tico, de tal modo que a invenção original isolada perdeu a sua significação”33.
No caso de Piscator, resolvemos realizar um estudo, à parte, da singular experiência
coletiva de criação que ele levou a cabo no Estúdio de seu teatro. Além dessa signifi-
cativa contribuição, tal encenador foi professor de Judith Malina, uma das fundadoras
do Living Theatre. Piscator exerceu uma influência transformadora nas concepções
teatrais dela e de seu parceiro, Julian Beck, sendo responsável, indiretamente, pela
inspiração dos princípios da criação coletiva nesses dois diretores americanos. Apenas
tal filiação ou herança já justificaria uma análise mais detalhada desse – injustamente
esquecido – diretor alemão, especialmente no que diz respeito ao Estúdio do Teatro
Piscator (Piscator-Bühne), fundado em Berlim, em 1927.
Erwin Piscator (1893-1966), diretor cujo conceito e prática de teatro político consti-
tuíram uma das mais significativas forças criativas no teatro alemão da década de 20,
foi também revolucionário ao realizar uma série de impactantes espetáculos multi-
mídia, que se valiam da montagem simultânea de discursos reais, trechos de notícias,
fotografias e seqüências fílmicas. Tais concepções estéticas e procedimentos tecnoló-
gicos vão influenciar, por exemplo, a formulação do teatro épico de Brecht. Ele vai,
ainda, desenvolver e teorizar sobre o teatro-documentário, uma contribuição artísti-
ca importante, embora um pouco negligenciada na avaliação geral de sua obra.
No plano ideológico, Piscator foi uma das vozes artísticas mais aguerridas e defen-
soras do Comunismo, o que não se limitava apenas a uma filiação partidária, mas
compreendia um projeto artístico de fundação de um teatro proletário. Nesse senti-
do, é impossível pensar a sua obra sem perceber a relação intrínseca que este encena-
dor estabelecia entre programa político e experimentação estética.
Alguns dos aspectos cooperativistas e coletivizados de sua prática artística estão
profundamente enraizados no projeto comunista de igualdade entre os homens e de
uma sociedade sem classes – pilares fundamentais do pensamento daquela doutrina.
Na verdade, tal desejo igualitário encontra-se no cerne do socialismo utópico e cien-
tífico, em sua defesa do trabalho coletivo, da propriedade comum da terra e na força
transformadora – e revolucionária – da associação e do cooperativismo.
No nosso caso, é sobre a experiência do Estúdio – uma espécie de “espaço alterna-
tivo”, ou “campo de experimentação” ou, ainda, um “lugar de treinamento”, acoplado
ao palco principal do Teatro Piscator – que interessará refletir. Foi nele que Piscator
radicalizou uma original prática coletiva de criação teatral. Sob o aspecto institucional,
o Estúdio apresentava uma independência total em relação ao Teatro do qual fazia par-
te, devendo apenas compartilhar com o mesmo a sua orientação ideológica.
É importante lembrar que a perspectiva do trabalho coletivo sempre lhe fora cara,
mesmo antes da fundação deste “espaço alternativo”, como pode ser depreendido de
sua obra teórica mais importante, o Teatro Político:
Ainda que o termo “comunidade homogênea” possa suscitar uma discussão sobre
o grau de homogeneidade possível – ou sequer existente – em grupos e coletivos, é
importante não perdermos de vista o contexto histórico em que ele está inserido, no
34 piscator, e. Le Théâtre Politique. Paris: L’Arche, 1972, p.136. Sugerimos a leitura da tra-
dução francesa (realizada por Arthur Adamov com a colaboração de Claude Sebisch)
ou espanhola (feita por Salvador Vila) ao invés da tradução brasileira (Teatro Político, Ed.
Civilização Brasileira, trad. de Aldo Della Nina, 1968). Tal tradução – a única disponível
em português – contém inúmeros erros, omissões e falhas de edição, o que pode com-
prometer o entendimento das proposições teóricas de Piscator. Todas as citações desta
obra, presentes neste capítulo, foram por nós traduzidas da referida edição francesa.
20
[...] os atores não estão mais unidos somente pelo elo sempre frouxo de uma rela-
ção de contrato; eles formam um coletivo, ao qual, com iguais direitos e deveres,
pertencem também o autor, o músico, o diretor de cena e o cineasta; e é este cole-
tivo que decide a escolha das peças a serem representadas, que chega, por meio de
discussões amigáveis, à concepção geral da encenação, que elege o respectivo ence-
nador e a distribuição dos papéis e que, em resumo, empreende e encaminha todo
o trabalho cuja última etapa – o espetáculo acabado – não será mais importante do
que as semanas de preparação durante as quais se pode formar uma vontade sólida
e unitária, nascida em discussões teóricas, e fundamentada na experimentação do
material que constitui a peça, envolvendo os atores e o aparato técnico.39
Tal descrição, se assim o quiséssemos, bem poderia ser transposta a alguns procedi-
mentos de trabalho do Living Theatre, Open Theater ou mesmo do Théâtre du Soleil. Percebe-
mos nela, por exemplo, a inegável importância do trabalho do ator, dando subsídios à cria-
ção cênica ou ainda experimentando na prática um material dramatúrgico previamente
escrito. Em outras palavras, estabelece-se uma aproximação estreita entre a cena e o texto,
entre a sala de ensaio e o gabinete do dramaturgo, com ganhos para ambos os lados.
Além disso, outro fato que chama a atenção é a ênfase dada ao aspecto processual,
considerado tão importante quanto o resultado final. É surpreendente – e avant la lettre
– a sua defesa do processo de criação, das “semanas de preparação” apresentarem a mes-
37 piscator, m. e palmier, j.-m. Piscator et le Théâtre Politique. Paris: Payot, 1983, p. 160.
38 Ibid., p. 160 (grifo nosso).
39 piscator, e., Le Théâtre Politique, p. 139.
22
ma importância do “espetáculo acabado”. Claro que o que está em jogo é o “grau de ela-
boração” do espetáculo e não a negação do seu compartilhamento com o público. O pres-
suposto de “tornar pública” a obra era fundamental ao projeto de um teatro político.
O aspecto processual vai ser reforçado por Piscator em um capítulo posterior (“Um
Ano de Estúdio”), dedicado às montagens realizadas no Estúdio. Encontramos aí, por
exemplo, a importância dada ao caráter pedagógico de sua empreitada: “Como dis-
se anteriormente, o Estúdio não cumpria a sua tarefa apenas com as apresentações
públicas dos espetáculos. O essencial de seu trabalho residia nas suas atividades de
ensino”40. Ou seja, o Estúdio funcionava tanto como um campo de experimentação
artística e ideológica de ponta, como um centro de formação para jovens artistas ou
recém-ingressos no Teatro Piscator. Esta perspectiva educacional e de reciclagem de
conhecimentos revela outra face de seus objetivos programáticos.
Em relação a este último aspecto, as atividades eram assim encaminhadas:
[...] são oferecidos aos membros do Estúdio cursos e conferências nos quais são tra-
tados todos os grandes problemas filosóficos e políticos de nossa época. Aí também
se ensina, além do estudo sobre as personagens, o aprendizado de línguas estran-
geiras e os métodos de educação do corpo. O programa de estudos era estabelecido
em função da peça a ser representada.41
A análise de Maria Piscator também não apresenta maiores elucidações. O seu tex-
to vai pouco além de um resumo ou balanço geral das propostas do marido, mesclan-
do, aqui e ali, algumas considerações pessoais. Dentre elas, todavia, destacaríamos
uma em especial, relativa ao trabalho do dramaturgo dentro do Estúdio: “A noção
de obra, de autor se transforma completamente. Nada é definitivo”45. Essa discussão
sobre “autoria” é um dos problemas centrais associados aos modos cooperativados
de criação e exigirá, de nossa parte, uma atenção específica.
Outra ponderação reincidente – e como tal, relevante – pode ser encontrada na
conclusão do trecho dedicado ao trabalho coletivo do Estúdio (“A noção de Coletivo”).
Apesar de se tratar – como já vimos antes – de um instigante insight, tal percepção não
é por ela desenvolvida: “A exigência de um trabalho em comunidade não é somente
prática. É dela que depende o estilo”46. Em outras palavras, Maria Piscator advoga que
este modo de fazer coletivo incorre necessariamente numa conformação estética.
De qualquer maneira, o ideal comunitário praticado no Estúdio, aponta e antece-
de elementos do trabalho realizado pelo Living Theatre. É evidente que a relação pro-
fessor-aluno vivida entre Erwin Piscator e Judith Malina, quando o primeiro se encon-
trava exilado nos Estados Unidos, foi extremamente profícua e rendeu frutos47. Pois
aquilo que no Estúdio se limitara a um experimento radical, de curta duração e com
pequena repercussão internacional, irá se consubstanciar de forma potente no modo
de criação do Living Theatre, alçando-o ao posto de um dos principais representantes
da chamada criação coletiva. Tal hipótese pode, de certa forma, ser confirmada na
avaliação de Judith Malina sobre seu mestre:
[...] eu sou aluna de Piscator, não somente por ter seguido seu ensinamento e seu tra-
balho em Nova Iorque, mas sobretudo porque eu tenho a intenção de continuar a via
que ele abriu. [...] praticamente nos esquecemos de Piscator, apesar de sua influência
sobre o teatro ter sido considerável. [...] todo o teatro sofreu a influência de Piscator,
de sua reflexão sobre a inclusão do espectador na ação e no espaço teatral. Eu acredi-
to que Brecht e Piscator inventaram junto o teatro político moderno. Quando eu saí
da escola [The Dramatic Workshop], a situação do teatro em Nova Iorque era desas-
trosa. [...] No momento em que Julian Beck e eu decidimos fundar um teatro, nós o
chamamos de Living Theatre porque nós desejávamos criar alguma coisa que fosse
capaz de mudar com o tempo, de seguir o fluxo, o movimento da história, de respon-
der às metamorfoses do indivíduo e da sociedade. E este teatro existe ainda hoje, nós
48 collectif. Avec Brecht. Arles: Actes Sud/Académie expérimentale des théâtres, 1999,
pp. 51-53.
26
• Investigação coletiva das personagens, por meio da qual cada um dos ato-
res experimenta todos os papéis;
• Direção ou encenação coletiva, levada a cabo por um grupo de diretores
ou pelo próprio conjunto de integrantes do coletivo;
• Acúmulo de várias – ou de todas – funções artísticas por um único e mes-
mo integrante, ou, pelo menos, o incitamento ao trânsito entre as diferen-
tes funções;
• A autoria da obra é coletiva e deve conjugar a contribuição artística de
todos. Tal perspectiva parece produzir uma resultante estética marcada
por esse modo compartilhado de criação;
• Organização e produção cooperativada; autogestão coletiva e democrática;
• Controle dos meios de produção por parte do coletivo;
• Divisão igualitária de salários ou lucros;
• Estímulo ao exercício da crítica e autocrítica, por parte de todos os inte-
grantes, produzindo uma espécie de “crítica coletiva” permanente, tam-
bém praticada no diálogo aberto com o público;
• Convocação do espectador para participar do processo de construção da
obra, seja por meio de debates realizados em ensaios abertos, seja por sua
contribuição concreta nos variados aspectos criativos da montagem, ou
ainda, por sua participação em “cenas de massa”;
• Rompimento da separação atores/observadores, estimulando a participa-
ção dos espectadores durante a apresentação e promovendo um apelo à
“produtividade” do público;
• Realização de espetáculos ao ar livre e em espaços não-convencionais, de for-
ma a se integrar e a comungar mais diretamente com a vida dos cidadãos;
• Caráter não-ilusionista e processual acentuado, por meio da revelação dos
procedimentos de fabricação e do percurso de construção da obra;
• Projeto de reciclagem e de formação de novos artistas e coletivos, com o
objetivo de se produzir um efeito multiplicador;
• Participação dos artistas na vida cotidiana da comunidade, por meio de
atividades pedagógicas ou assistenciais.
fala menos pode ser quem vai inspirar aquela que fala mais. Ao final, ninguém sabe
quem foi realmente responsável por aquilo, o ego individual é carregado para a escu-
ridão, todo mundo está satisfeito, todos têm uma satisfação pessoal maior do que a
satisfação do “eu” solitário. E uma vez que você experimentou isto – o processo de
criação artística em coletividade – o retorno à velha ordem parece um retrocesso.51
Existem ainda, segundo Eduardo Vazquéz Pérez – crítico cubano e estudioso da cria-
ção coletiva na América Latina – duas formas correntes de se pensar tal fenômeno, uma
de caráter mais abrangente e outra bastante restritiva. A primeira considera que haja
criação coletiva sempre que ocorrer uma significativa participação do ator no processo
de criação do espetáculo. Já a segunda perspectiva identifica o fenômeno da criação cole-
tiva apenas onde não esteja presente a função do diretor cênico53. É importante perceber
como a figura do encenador, nesta segunda abordagem, é compreendida como um entra-
ve ou como um antípoda em experiências de compartilhamento criativo.
Muitas são as razões levantadas para o surgimento da criação coletiva. Tanto os
elementos conjunturais da época – marcada pela contracultura, pelo movimento hip-
pie e seu projeto comunitário, pelo ativismo político e libertário acentuado – quanto
as necessidades especificamente teatrais – falta de uma dramaturgia que se moldasse
perfeitamente às inquietudes sociais, temáticas e estéticas dos grupos de teatro de
então, ou ainda, a busca de uma relação mais participativa com o público – tudo isso
é invocado para justificar o aparecimento deste novo modo de criação.
51 beck, j. The Life of the Theater: the relation of the artist to the struggle of the people. New York:
Limelight Editions, 1986, pp 84-85.
52 silva, a. c. a. A Gênese da Vertigem: o Processo de Criação de ‘O Paraíso Perdido’. 2002. 192 f.
Dissertação (Mestrado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de
São Paulo, p. 101.
53 céspedes, f. g. (org.). El Teatro Latinoamericano de Creación Colectiva. Ciudad de La Habana:
Casa de las Américas, 1978, p. 133.
29
54 martin, r. Socialist Ensembles: theater and state in Cuba and Nicaragua. Minneapolis:
��������������������
Univer-
sity of Minnesota Press, 1994, p. 43.
55 domínguez, Carlos Espinosa. “Entrevista con Manuel Galich. Creación Colectiva: un te-
atro necesario y urgente”. In: CÉSPEDES, F. G. (org.). El Teatro Latinoamericano de Creación
Colectiva, p. 34.
30
[...] alguns grupos trabalham com times de pesquisa especializada (tais como estu-
dantes de ciências sociais ou assistentes sociais) ou desenvolvem as suas próprias
habilidades nestas áreas. Muitos grupos são observadores integrados nas comuni-
dades, nas quais eles passam a maior parte de seu tempo e freqüentemente moram
ali; desta forma a condução de entrevistas se torna mais informal e estimula uma
contribuição mais espontânea para dentro da montagem [...].56
Um aspecto importante frisado por Pérez é que essas formas de criação por ele
56 weiss, j. a. (with Damasceno, L.; Frischmann, D.; Kaiser-Lenoir, C.; Pianca, M.; Rizk, B.
J.) Latin American Popular Theater: the first five centuries. Albuquerque: University of New
Mexico Press, 1993, p. 168.
57 Ibid., p. 169.
58 céspedes, f. g. (org.), El Teatro Latinoamericano de Creación Colectiva, p. 141.
31
mapeadas não têm um uso excludente. Isto é, o mesmo grupo, dependendo dos seus
interesses e necessidades naquele momento, pode trabalhar com uma ou outra des-
sas três maneiras, em espetáculos diferentes.
É importante observar ainda que o terceiro item de sua análise abre uma possibi-
lidade de aproximação com o processo colaborativo, na medida em que a síntese dra-
matúrgica final possa ser realizada por “um dos integrantes do coletivo”. Porém, não
fica claro que esse “integrante” seja, de fato, um dramaturgo, convocado pelo grupo,
desde o início, a assumir esta função. Além disso, nada é mencionado em relação à
manutenção da função do encenador.
Caberia então verificarmos como se coloca tal função dentro da criação coletiva. Se
tomarmos como base as análises de Pavis e Fernandes, o papel do encenador – como de
resto das outras áreas artísticas – está repartido dentro do grupo. Todos os integrantes
são encenadores em potencial, tendo direito ao exercício desta função. O diretor, nesse
sentido, desaparece como um criador individual e a sua obra-encenação, a sua autoria
pessoal, encontra-se distribuída e compartilhada pelo coletivo. Portanto, ele não pro-
duz uma criação autônoma particular. Na verdade, no limite, nem se poderia reivindi-
car a ação específica de um diretor, já que todas as funções teriam sido abolidas.
É claro que, com isso, não se possa afirmar a inexistência de uma proposta de
encenação. Se pensarmos em alguns espetáculos-ícones da criação coletiva, tais como
Paradise Now (Living Theater, 1968), 1789 (Théâtre du Soleil, 1970), ou Trate-me Leão
(Asdrúbal Trouxe o Trombone, 1977), é evidente a presença de um conceito de ence-
nação, de uma escritura cênica bem definida, de uma poética espacial e interpretati-
va formalizada e perceptível à leitura do espectador. Ou seja, podemos falar sim em
uma encenação, porém numa encenação coletiva, desenhada a várias mãos.
Por exemplo, quando Julian Beck vai descrever o processo de criação de outra
importante obra do Living, ele afirma categoricamente que “Mysteries [Mysteries and
Smaller Pieces, 1964] não tinha um diretor. Nós todos criamos [essa peça] em menos de
quatro meses, fazendo mudanças de vez em quando durante os meses que se segui-
ram. Alguns membros da companhia contribuíram mais do que outros. Que impor-
tância tem isso?”59.
Se analisarmos apenas o final desta última citação, já podemos entrever que nem
tudo é assim tão pacífico na seara da encenação coletiva. Primeiramente – como vere-
mos adiante – porque a figura do encenador continuou existindo dentro de alguns
grupos, ainda que de forma velada e não-assumida. Em segundo lugar, porque houve
algumas companhias de criação coletiva – por exemplo, La Candelaria – que não
abdicaram da função do diretor. O que estava em jogo, ali, não era a existência ou
não deste papel, mas sim o momento do processo onde ele entraria e, além disso, a
revisão da sua forma de atuação.
59 beck, j., The Life of the Theater: the relation of the artist to the struggle of the people, p. 47.
32
[...] continua existindo uma divisão estrita de trabalho na qual o diretor – ou direto-
res designados – continua dirigindo. O que acontece é que já não trabalha de uma
maneira ditatorial, mas sim com a colaboração dos atores. Agora, o que de fato a cria-
ção coletiva aboliu foi a hierarquização das tradicionais companhias de teatro, quase
sempre funcionando através do produtor, que era o dono da empresa, e girando em
torno de um sistema de “estrelas”, que, sem dúvida, era a atração da bilheteria.61
[...] esta metodologia não é, em nenhum momento, uma negação do trabalho indi-
vidual. A criação coletiva implica em um trabalho pessoal, em um desenvolvimen-
to pessoal árduo e comprometido, porém nunca solitário. E caso estabeleça uma
hierarquia dentro do trabalho, não é a hierarquia vertical superior-inferior, mas
sim a hierarquia taxonômica e teleológica em função daquilo que, em sua relação
com o público, interessa fundamentalmente ao grupo.64
[...] não reside somente na criação de um novo texto ou mesmo de uma nova mon-
tagem, mas no seu complexo processo, que (1) serve como uma experiência educa-
cional para os membros do grupo, tanto em relação às questões históricas e sociais
quanto à sua relação com a comunidade ou com o público; (2) constrói ligações
com instituições de pesquisa ou intelectuais, por um lado, e organizações comuni-
tárias, por outro; (3) equipara a divisão de tarefas dentro da organização [grupal] e
habilita todos os membros com instrumental crítico; (4) contribui para o desenvol-
vimento do repertório e de estilos de montagem e interpretação, o que contribui
para a força cultural de um setor específico da sociedade e para o desenvolvimento
de um teatro nacional.67
Contudo, a criação coletiva não está imune a problemas. Também em nossa dis-
sertação apontamos algumas das contradições nela presentes:
Nós precisávamos controlar um projeto cujas necessidades nós não podíamos mesurar.
Ele comandava o seu próprio destino. Os diretores, J & J [Julian Beck e Judith Malina],
contudo, estavam construindo um espetáculo para os talentos de uma companhia de
atores da qual eles conheciam cada um deles intimamente. Os atores dirigiam a eles
mesmos através do medium [“meio”, “veículo”, mas também “médium”] do diretor.71
Ainda que essa noção do encenador como um “veículo” ou “cavalo” não deixe
de ser bastante sugestiva e provocadora, o contexto em que ela aparece traz a pers-
pectiva do desaparecimento ou enfraquecimento de tal função. Porém, o principal
problema é essa “crise de identidade” ou “culpa do ofício” que parece atravessar os
processos mencionados. Pois, na verdade, trata-se de diretores que não assumem – ou
que não querem assumir – a própria direção que, de fato, exercem.
[...] o problema da hierarquia e de papéis definidores parece ser paradoxal; [...] nós
só podemos concluir que apesar da rejeição geral do princípio da “estrela”, o cole-
tivo não-hierárquico é mais bem sucedido quando o grupo é mais estreitamente
identificado com um diretor ou fundador forte. [...] Contudo, todos esses grupos
conseguiram desenvolver um exitoso processo interno e uma divisão de responsa-
bilidades, o que indicaria que o papel do diretor é também aquele de um coordena-
dor habilidoso e de um facilitador.73
Apesar da presença do “diretor ou fundador forte” provocar uma crise quase per-
manente na dinâmica interna das relações intra-grupais, Weiss recoloca tal presença
por outro ângulo e afirma a sua importância. Ela desmonta a aparente contradição
associada à existência de um líder dentro do grupo, desde que garantida a divisão de
trabalho e de criação entre todos os integrantes, e sob a condição de que esse diretor-
coordenador ou facilitador atue em consonância com o coletivo. Contudo, trata-se
de uma análise a posteriori de um fenômeno e, pelo que já foi descrito, vivenciado de
forma bem distinta por quem lidava com o problema de dentro.
Ainda que tenha havido grupos de criação coletiva com dinâmicas internas dis-
tintas, essa questão da liderança parece ser menos problemática no processo colabo-
rativo. Em primeiro lugar porque, desde o início, o papel do diretor já se encontra
assumido pelo grupo. Depois, as opções e os caminhos dentro do grupo são sem-
pre discutidos por todos – com várias das escolhas sendo feitas através de votação.
Além disso, ocorre também o surgimento de outras lideranças em áreas diferentes do
trabalho. Por exemplo, se o diretor incita ou coordena os debates artísticos, outros
72 weiss, j. a. (with Damasceno, L.; Frischmann, D.; Kaiser-Lenoir, C.; Pianca, M.; Rizk, B.
J.), Latin American Popular Theater: the first five centuries, p. 156.
73 Ibid., p. 156.
37
[...] eu gostaria de saber mais sobre interpretação do que eu tive acesso [...] atra-
vés do Living Theater. Naquela época, o Living Theater não estava realmente nada
interessado em interpretação, e raramente explorava as próprias potencialidades
do ator ou da experiência do grupo. O constante estado de emergência no Living
Theater impedia isso.74
Os teóricos Fernando Duque Mesa e Jorge P. Prada apresentam ainda outra crítica,
no que diz respeito à relação forma-conteúdo do espetáculo: “o abandono do plano
estético-formal ao se privilegiar o plano conteudístico”75. Trata-se de uma observação
importante, pois a concretização do plano estético é vital para a potência da obra ofe-
recida ao espectador. Contudo, tal avaliação negativa não pode ser generalizada – ain-
da, é claro, que ela diga respeito especialmente ao panorama teatral colombiano.
Se considerarmos verdadeiro que alguns grupos de cunho mais engajado e ativista
privilegiavam a mensagem direta, a doutrinação política, a crítica social explícita em
74 chaikin, j. The Presence of the Actor. New York: Theatre Communications Group, 1991 (re-
print), p.52.
75 mesa, f. d; ortiz, f. p.; prada, j. p. Investigación y Praxis Teatral en Colombia. Santafé de Bo-
gotá: Colcultura, 1994, p.74.
38
detrimento de uma experimentação formal, por outro lado, houve também aqueles
que trouxeram inovações estéticas radicais. Alguns grupos, inclusive, conseguiram aliar
preocupações temáticas – em geral de ordem política, social ou de costumes – com
inquietações formais de ponta, como no caso do próprio Living, do Soleil ou do Asdrúbal.
Não pretendemos, ao trazer essas observações críticas, desqualificar ou desmere-
cer a experiência da criação coletiva. É inegável que obras fundamentais na história
do teatro no século xx foram criadas dentro desse modelo. O que está em foco é a
análise e a comparação dessa experiência com outra dinâmica coletiva de criação,
surgida nos anos 90, e que vem sendo denominada processo colaborativo.
Porém, antes de a abordarmos, parece-nos importante analisar a experiência da
criação coletiva na Colômbia, na medida em que ela antecipa ou apresenta certas
semelhanças com o processo colaborativo. Poderíamos, é claro, realizar outros estu-
dos de caso, tanto brasileiros quanto internacionais. Contudo, tal abertura do pano-
rama de amostragem nos faria incorrer em grave risco de superficialidade, além de
desfocar a trajetória pretendida, qual seja, a de traçar as conexões e diferenças entre
a criação coletiva e o processo colaborativo.
[...] o teatro como projeto coletivo é uma criação de todos, no qual não se eliminam
as especialidades, mas, pelo contrário, elas são fomentadas e convivem. Por isso, é
freqüente encontrar no interior de um grupo um dramaturgo que, de acordo com
estas premissas, recolhe as propostas dos atores, cenógrafos e demais membros
em suas áreas específicas, até conseguir configurar o produto teatral, resultante
de uma série de inter-relações que se gestam e cristalizam no processo de trabalho
como expressão globalizadora do grupo.76
77 Existe uma tradução em português desta peça (À Direita de Deus Pai), realizada por Hugo
Villavicenzio, e lançada numa coletânea de textos teatrais latino-americanos contemporâ-
neos, intitulada Teatro da América Latina, pelo Teatro-Escola Célia Helena, em 2004.
78 buenaventura, e. “Teatro o ‘taetro’: Diálogo entre dos maneras de ver (I)”, artigo pu-
blicado no jornal El Pueblo, Cali, em 16 de fevereiro de 1975 (xérox redatilografado do
referido artigo).
79 pianca, m. El Teatro de Nuestra America: un proyecto continental 1959-1989, p. 89.
41
1. A investigação;
2. A elaboração do texto (com a sua respectiva análise crítica);
3. A improvisação (“coluna vertebral do processo”);
4. A montagem;
5. A apresentação diante do público (o que inclui a síntese dialética do espetáculo)
O primeiro elemento que chama a atenção – pois para o senso comum, tal pers-
pectiva se apresenta quase como um paradoxo – é a sistematização e a defesa de um
método para a criação coletiva. Muitas vezes associada a espontaneísmos irracionalis-
tas ou a processos criativos caóticos, desorganizados e descontrolados, Buenaventura
vem postular o contrário: “O método é a condição necessária do trabalho coletivo [...].
Só se o método for conhecido e dominado por todos os integrantes do grupo e aplica-
do de modo coletivo é que se garante uma verdadeira criação coletiva”82.
Em outras palavras, o método, aqui, não é visto apenas como uma ferramenta
desejável ou útil, mas sim, uma condição necessária e exigida pelo próprio pro-
cesso. A criação coletiva, como querem alguns de seus críticos mais ferinos ou
detratores, não é sinônimo de bagunça ou de um delirante “anarco-misticismo”83.
Ela demanda, pelo contrário, uma estruturação metodológica.
Outro ponto a destacar é a estreita relação deste método com o sistema stanis-
lavskiano. O próprio Buenaventura relaciona a “etapa da investigação e elaboração
do texto” com o chamado “trabalho de mesa”, desenvolvido por Stanislavski e Dan-
tchenko. Segundo ele, o método da criação coletiva iniciaria por uma análise de texto
– “texto” aqui, entendido de forma abrangente, como sinônimo de “esquema de con-
flito”, compreendendo desde as pantomimas romanas até uma dramaturgia de for-
mato convencional. Ainda que Stanislavski tenha abandonado o “trabalho de mesa”
na última etapa de suas investigações, tal prática – sempre realizada no início de um
processo de montagem – ficou a ele associada.
Outra vinculação com o diretor russo aparece no uso que Buenaventura faz do con-
ceito de “analogia”. Stanislavski preconizava a utilização de “situações análogas” como
motor ou gatilho para a vivência do papel. Segundo ele, tal procedimento aproximaria
o ator do conflito vivido pela personagem, por um viés indireto, ligado à própria expe-
riência e subjetividade do intérprete, sem que o mesmo tivesse que se esforçar – ou
forçar – emocionalmente para concretizar uma dada situação-limite do papel.
Para o criador do TEC, a “analogia” é um instrumento de trabalho para o ator,
definindo-a em termos muito semelhantes aos stanislavskianos: “O que entende-
mos por analogia? Entendemos um conflito semelhante ao sugerido na obra ou na
parte da obra que queremos improvisar”84. Contudo, pode-se perceber um desdo-
bramento na utilização desta ferramenta. Se, para Stanislavski, a “situação análoga”
está fundamentalmente associada à construção da personagem, em Buenaventura,
a analogia é utilizada também como um meio de análise e investigação do texto,
das situações e dos conflitos nele contidos. Além disso, ela é uma forma de tornar
a improvisação mais crítica e criadora, possibilitando a revelação dos mecanismos
ideológicos em jogo.
E por que a sua opção por Stanislavski, ao invés de algum outro criador talvez
mais facilmente associável ao universo da criação coletiva? Parece-nos que a gramá-
tica do sistema stanislavskiano, ao se contrapor às idéias-clichês de inspiração divina
ou de arroubos interpretativos inconscientes e descontrolados, funcionava melhor
como referência modelar – e espécie de antídoto – contra as armadilhas de um subje-
tivismo caótico ou de um espontaneísmo sem técnica, inimigos prováveis de proces-
sos grupais de criação.
A crítica que poderia ser feita, talvez, seja a de um excessivo espelhamento deste
método de criação coletiva no sistema stanislavskiano. Contudo, ele não se reduz a
uma cópia ou mera adaptação deste último, até porque Buenaventura irá amalgamar
uma perspectiva brechtiana – relativa aos princípios do teatro épico e dialético – à
sua metodologia.
84 buenaventura, e.; vidal, j., “Notas para um método de criação coletiva”, Revista Cama-
rim, nº. 37, p. 31.
43
85 mesa, f. d; ortiz, f. p.; prada, j. p., Investigación y Praxis Teatral en Colombia, p.73.
44
• Improvisação por analogia (ou metafórica): a mais utilizada pelo TEC, por
ser aquela “que se aproxima do texto por meio [da improvisação] de expe-
riências análogas vividas ou criadas pelo ator”. Podem também inventar
alguma “história paralela a que está sendo narrada”. E “em algumas ins-
tâncias, pede-se aos outros atores que não participaram da improvisação,
que contem, sem nenhum juízo, o que viram, e destas novas interpreta-
ções se seleciona material para novas propostas”;
• Improvisação por dissociação: “uma variação da anterior que tem mais a ver
com a organização do trabalho do que com a improvisação em si. Depois
de proposto o conflito, se fazem as improvisações análogas nas quais se vão
dissociando as imagens que foram encontradas. Então se estabelece uma
ordem das imagens obtidas mediante um processo de eliminação até se che-
gar à imagem final”. (Apesar de nossos esforços de pesquisa, faltou-nos um
maior número de elementos ou referências práticas para a compreensão
exata desse tipo de improvisação);
• Improvisação por oposição: “aproxima-se do texto através de uma imagem
de sentido oposto”. Também “deixa-se livre a lógica da imaginação e dos
sentidos, e bloqueia- se a lógica analítica”. E ainda permite “aos atores se
aproximar do texto seguindo o procedimento da oposição binária; os con-
trários imediatos como um meio para produzir sentido. Assim, por exemplo,
a fome se representa por seu oposto, a gula; ou a pobreza pela riqueza”;
92 mesa, f. d; ortiz, f. p.; prada, j. p., Investigación y Praxis Teatral en Colombia, p.73.
93 rizk, b., Buenaventura: La Dramaturgia de la Creación Colectiva, p. 117.
47
98 Esta obra encontra-se traduzida para o português pela editora Hucitec, porém a tradu-
ção realizada é a da primeira edição da obra, lançada em 1983. Santiago García produ-
zirá duas novas edições, ampliadas e revistas, a primeira em 1989, e a segunda – que
utilizamos como base dessa pesquisa – em 1994. Sugerimos aos interessados que adqui-
ram esta terceira edição da obra, disponível apenas em espanhol. Mais recentemente,
em 2002, Santiago Garcia lançou o Teoria y Práctica del Teatro II. As indicações técnicas
dessas obras encontram-se descritas nas Referências, ao final do presente trabalho.
50
cesso encontra-se vago e genérico, para então, a partir das futuras improvisações e
elaborações formais, ir ganhando contornos mais definidos.
Definição do argumento – para o grupo, o argumento constitui o conjunto de
razões e explicações do tema. É a maneira como ele é desenvolvido e fundamentado,
ou seja, é a justificação do tema. Em outras palavras, “o argumento é a forma como
se apresenta o tema. Equivaleria à forma do conteúdo, enquanto que o tema é a subs-
tância do conteúdo”99.
Encontro da motivação – etapa que define o caráter coletivo do trabalho, na
medida em que a proposição do projeto não vem do diretor ou de algum membro
específico da companhia, mas nasce de uma vontade coletiva do grupo, aliada ao
contexto histórico e à realidade em que o mesmo se encontra inserido. Os elementos
subjetivos e intuitivos têm um peso preponderante nesta fase.
Realização da investigação – etapa mais científica e objetiva, caracterizada
pelo estudo, levantamento e análise do material pesquisado. É comum aqui o gru-
po se dividir em equipes específicas a fim de contemplar diferentes áreas relativas
ao processo de investigação (equipe responsável pelo levantamento de material em
jornais e revistas; equipe destinada à coleta de obras literárias relativas ao tema;
equipe dedicada à pesquisa do material musical, etc.). Vários estudiosos e especia-
listas acadêmicos também são convidados pelo grupo para auxiliar no aprofunda-
mento do material.
Etapa das improvisações – momento no qual o grupo começa a experimentar e
a teatralizar elementos escolhidos de todo o material pesquisado até então. Segundo
García, “o grupo está saturado de informações e, neste momento, começa a traduzi-las,
a elaborá-las através de improvisações”100. Também aqui, a companhia pode se dividir
em diferentes equipes de improvisação, responsáveis, cada uma, por problemas ou
assuntos distintos. Ao final desta etapa, o grupo chega à elaboração de um novo mate-
rial, só que agora, teatralizado.101 García chama atenção também para a importância
do caráter sempre renovado de condução das improvisações. Segundo ele, “cada obra
exige uma técnica ou uma forma diferente de fazer as improvisações. Não podemos
nos contentar com fórmulas de improvisação resultantes de trabalhos anteriores, ou
com esquemas de trabalho produzidos por outros grupos”102. É curioso como tal afir-
mação parece denotar discordância ou crítica ao método buenaventuriano.
Hipótese de estrutura – fase de conformação do argumento e de delimitação do
99 garcía, s. Teoria y Practica del Teatro, 3ª ed. Santafé de Bogotá: Ediciones Teatro La Cande-
laria, 1994, p. 34.
100 Ibid., p. 39.
101 É importante ressaltar que o grupo experimentou também, em outros processos de
criação, mesclar as etapas de busca do tema, investigação e improvisação, fazendo-as
ocorrer simultaneamente.
102 garcía, s., op.cit., p. 41.
51
Ele chega, inclusive, na conclusão de seu livro, a afirmar que “[...] resolvemos nos
arriscar a criar (inventar) nós mesmos nossas próprias obras, não como resultado de
uma pose esteticista, mas sim movidos pelas exigências do momento. Assim nasceu
a ‘criação coletiva’ em nosso país”107.
Ou ainda, ao final da descrição do processo de trabalho de seu grupo, García rei-
tera que “as possibilidades criativas do grupo dependem da capacidade criativa dos
indivíduos que o conformam e, por sua vez, eles estão determinados pela capacidade
do grupo em apreender a realidade”108.
Dentre os princípios norteadores do percurso da criação dentro de La Candelaria,
vale a pena destacar
delaria – ainda que tenha havido momentos onde outros membros do grupo experi-
mentaram o ofício da direção.
É claro que o diretor aqui não se coloca – e nem é considerado – como o principal
criador. O simples fato da existência de um período do processo em que todos criam
tudo, já relativiza todo o espaço das autorias e enfraquece a existência de hierarquias.
Pois, “a posição do autor [dramaturgo] como executor do texto (autor-texto) sofreria a
transformação ator-texto e, em segundo lugar, a relação diretor-montagem teria que
submeter-se a semelhante reconsideração”111.
Em suma, tanto o texto como a montagem seriam criados em parceria pelo drama-
turgo, diretor e atores, cabendo a estes artistas, num momento posterior do processo,
a finalização e o acabamento em suas áreas específicas. Ainda assim – o que difere um
pouco do processo colaborativo – cada uma dessas funções, cada um destes especialis-
tas, continua tendo que se submeter ao trabalho coletivo da subcomissão ou do grupo.
Daí a posição de García em defender a não-autonomia dessas funções. Além
– como acabamos de ver – da submissão da criação individual à deliberação do cole-
tivo, ele argumenta sobre a inegável existência de complexas ligações e de mútuas
dependências entre ator, diretor e dramaturgo. Portanto, não faria sentido advogar
qualquer autonomia criadora das diferentes áreas teatrais.
Ele aponta, porém, com lucidez, a preponderância de uma função sobre outra, de
acordo com o momento do processo. Por exemplo, o dramaturgo teria uma atuação
mais acentuada no momento final da etapa das hipóteses de estrutura e logo depois,
na consolidação da primeira versão da peça. Ou ainda, certo privilégio do ator em rela-
ção ao dramaturgo e ao diretor, como provocador das transformações textuais, a partir
do momento em que o espetáculo é apresentado e discutido pelos espectadores. Mes-
mo que o diretor continue trabalhando sobre a montagem e que o dramaturgo possa
recolher e modificar o material surgido nos debates com o público, é o ator quem, de
fato, lidera tal confrontação, sendo ele o responsável para se chegar ao segundo texto
da montagem – o que equivaleria ao texto final e definitivo, ou algo próximo disso.
Beatriz Rizk, ao estudar os processos de criação do grupo apresenta distintas meto-
dologias de trabalho, que variam de acordo com o momento e os objetivos ora em
questão. Por exemplo, na elaboração da peça Diálogo Del Rebusque (1981), foi a partir
de um texto escrito na íntegra pelo diretor do grupo, Santiago García, que os atores
foram convocados a criar – neste caso, não mais o texto, mas a montagem em si.
Já em Golpe de Suerte, a partir de uma investigação inicial conjunta, realizada por
todos os integrantes, houve uma divisão do grupo em três equipes de trabalho, para
tratar dos diferentes aspectos da montagem (música; dramaturgia e cenografia e figu-
rinos) com a ajuda de especialistas. Estas equipes recebiam uma coordenação geral
por parte de Santiago García.
[...] a criação coletiva foi gerando novas dinâmicas durante os últimos anos da
década de oitenta, de onde se pode avaliar uma notável qualificação através do
desenvolvimento das especializações em alguns campos específicos, como no
caso do dramaturgo e do encenador. E tudo graças ao permanente fluir dessa
55
112 mesa, f. d; ortiz, f. p.; prada, j. p., Investigación y Praxis Teatral en Colombia, p.74.
56
Num dos primeiros textos escritos sobre o processo colaborativo, Luís Alberto de
Abreu observa que ele, enquanto fenômeno, “provém em linhagem direta da chama-
da criação coletiva”, mas, por outro lado, “é necessário que se preserve as funções de
cada artista”. Advoga que “de um lado existe total liberdade de criação e interferên-
cia, mas de outro é vedado a um criador assumir as funções do outro. Ou seja, um
ator pode discutir, sugerir mudanças, propor diálogos ou até mesmo escrever uma
cena, no entanto é o dramaturgo que deverá fazer a organização desse material”. Ao
final de sua reflexão, Abreu chega mesmo a postular que “sem hierarquias desne-
cessárias, preservando a individualidade artística dos participantes, aprofundando a
experiência de cada um, o processo colaborativo tem sido uma resposta consistente
para as questões propostas pela criação coletiva dos anos 1970”.
Se a reflexão de Luís Alberto de Abreu nos fornece algumas pistas para a compre-
ensão do referido fenômeno, gostaríamos de acrescentar a elas algumas considera-
ções advindas da nossa própria experiência de criação no Teatro da Vertigem, cuja
prática também é denominada pelo grupo processo colaborativo.
Conforme expresso em nossa dissertação de mestrado, “tal dinâmica [...] se consti-
tui numa metodologia de criação em que todos os integrantes, a partir de suas funções
artísticas específicas, têm igual espaço propositivo, sem qualquer espécie de hierar-
quias, produzindo uma obra cuja autoria é compartilhada por todos”. Hoje, contudo,
acreditamos que melhor do que “ausência” de hierarquias, seja mais apropriado pen-
sarmos em hierarquias momentâneas ou flutuantes, localizadas, por algum momen-
to, em um determinado pólo de criação (dramaturgia, encenação, interpretação, etc.)
para então, no momento seguinte, se mover rumo a outro vértice artístico.
Antes de prosseguirmos, contudo, é importante ressalvar que tanto pela ausên-
cia de distanciamento histórico quanto pelo fato de nossas criações artísticas se
������� ��� � “Processo Colaborativo: relato e reflexões sobre uma experiência de criação”.
� abreu, l. a.
In: Cadernos da ELT, Ano I, Número 0, Março de 2003, Santo André, p. 34.
Ibid., p. 40.
Ibid., p. 41.
silva, a. c. a., A Gênese da Vertigem: o Processo de Criação de ‘O Paraíso Perdido’, p. 101.
57
O pesquisador Luís Fernando Ramos, em conversa com o autor deste trabalho, levanta
a hipótese desse importante grupo paulista da década de 80 – do qual fizeram parte,
entre outros, Luiz Roberto Galizia, Paulo Yutaka, e Alice K. – ter realizado a “passagem”
ou mesmo se constituir em espécie de “antecessor” do processo colaborativo. Segundo
ele, o Ponkã apresentava “uma sofisticação que repropunha o trabalho coletivo do fim
dos anos sessenta aliando ao rigor já praticado, por exemplo, pelo Oficina, a disposição
de metodicamente canalizar as energias criativas do grupo no sentido de voltar a fazer
proposições estéticas e de linguagem, projeto que o histórico grupo dos anos sessenta
abandonaria definitivamente depois de Gracias Señor, em favor de uma atuação mais
política e existencial que já ocorria fora do teatro. O Ponkã aliava essa proposta coletiva
à necessidade de um encenador forte, mas sem personalismo, que tinha a idéia de cons-
truir com a energia do grupo todo, tanto o material dramatúrgico quanto cênico”.
58
Por exemplo, dentro do Teatro da Vertigem, existia uma recusa da idéia do “todo-
mundo-faz-tudo”, do “obaobísmo”, dos “espetáculos de expressão corporal” associa-
dos àquele modo de criação das décadas de 60 e 70. Ainda que tal recusa fosse fruto
de uma visão reducionista ou preconceituosa – compartilhada por vários outros gru-
pos de então –, havia uma clara motivação de restabelecimento do discurso coletivo
em contraponto ao teatro de diretor.
Se, por um lado, parecia haver um projeto de retomada de princípios e valores
da criação coletiva – porém, praticados de maneira distinta –, por outro, havia uma
recusa da “década dos encenadores”, sem, com isso, pretender abolir a função ou
a figura do diretor. Quase como se o processo colaborativo pudesse realizar uma
síntese do discurso e da ideologia coletiva com a permanência da função artística
individual.
Uma consideração importante a ser feita é que os termos teatro de grupo e processo
colaborativo não são necessariamente sinônimos. Ainda que, desde meados da década
de 90, presenciemos uma retomada e um fortalecimento do movimento de teatro
de grupo – que vem marcando a cena contemporânea brasileira até agora –, existem
vários coletivos teatrais que não trabalham – ou que não denominam seu processo de
criação – dentro de parâmetros do processo colaborativo.
Tal distinção também poderia ser feita em relação à criação coletiva. Só para ficar-
mos no âmbito brasileiro, se grupos como o Pod Minoga, o Asdrúbal Trouxe o Trom-
bone, o Sonda, o Teatro União e Olho Vivo ou o Núcleo Independente podem ser facil-
mente associados à criação coletiva, outras companhias importantes como o Arena
e o Oficina apresentavam processos de trabalho distintos – ainda que, vez ou outra,
tenham flertado com a criação coletiva, como foi o caso do Oficina na montagem do
espetáculo Gracias Señor.
Poderíamos realizar, antes de qualquer coisa, e como primeira abordagem teórica,
um exercício de pensar o processo colaborativo por diferentes aspectos ou ângulos. Visua
lizamos quatro possíveis recortes, a saber: como modo de criação, como metodologia de
trabalho, como modo de produção e como resultante estética.
também a partir do seu modo de fazer? Ou melhor, estudá-lo à luz desse binômio
método e modo?
Tal perspectiva pode nos ajudar a entender o porquê algumas pessoas advogam,
de maneira ferrenha, que processo colaborativo e criação coletiva são denominações dis-
tintas para uma prática que seria a mesma. Talvez a defesa da equivalência desses
dois termos esteja baseada em um tipo de visão que os pensa enquanto método. E, de
fato, por seu fazer coletivizado, por sua diretriz dialógica, pode-se, sem incorrer em
erro, pensá-los geminadamente.
Contudo, se olharmos para essas duas dinâmicas pelo viés do modo, perceberemos
que o como se opera a inter-relação entre os diferentes elementos de criação produz,
aqui, processos distintos. Por exemplo, o diálogo ocorre entre funções já definidas e
assumidas desde o início. O trabalho de criação só se inaugura, de fato, a partir desse
pacto previamente estabelecido. Ou seja, o grupo, por meio de um consenso – ou
endosso – define a ocupação de cada área artística, segundo o interesse e a habilidade
dos integrantes ou convidados. É claro que, em muitas das funções, tal decisão nem
se faz necessária, na medida em que é comum a permanência e a continuidade dos
colaboradores, de um projeto para o outro.
Se, em relação às personagens, não é rara a existência de uma etapa, dentro dos
ensaios, em que todos os atores exploram todos os papéis, o mesmo não ocorre em
relação às funções. Ou seja, não há um período em que todos os integrantes expe-
rimentam todas as funções – ou em que elas são deixadas em aberto por um tem-
po – para, só então, haver a definição de quem fará a cenografia ou a dramaturgia.
Sabemos, por exemplo, que em algumas práticas de criação coletiva, quando ocorria
algum tipo de definição de atribuição, ela só se estabelecia muito tempo depois de
iniciados os ensaios.
Além disso, da forma como praticada pelo Vertigem até agora, a criação não tem
se caracterizado pela mobilidade de funções. Porém nada impede que isso aconteça.
Pois, se essa mobilidade ocorrer de um projeto para outro – e não dentro de um mes-
mo espetáculo – não há a descaracterização do processo colaborativo. Por exemplo,
não haveria nenhum problema de um ator do grupo numa determinada peça, vir a
se tornar o dramaturgo ou o diretor na montagem seguinte.
Nem mesmo a simultaneidade ou conjugação de funções dentro de um mesmo
projeto, apesar de se constituir numa situação mais complexa, inviabilizaria a prática
do processo colaborativo. Tudo iria depender de quais funções seriam assumidas pela
mesma pessoa e da capacidade do grupo em gerenciar uma situação assim.
Se a horizontalidade das funções é uma regra básica de funcionamento desse
modo de criação, é inegável a revalorização do ator como um criador em pé de igual-
dade com o dramaturgo e o diretor. A sua função autoral, muitas vezes encoberta ou
restrita à execução técnica de determinada personagem, fica potencializada no pro-
cesso. Na prática, no instável equilíbrio de forças da sala de ensaio, a dramaturgia e
a direção parecem “perder” seu caráter de onipotência e onisciência, abrindo espaço
para uma interferência autoral forte por parte dos intérpretes.
Outro aspecto importante diz respeito à síntese final. Se, na criação coletiva, a
autoria individual – quando ela ocorre – deve estar submetida à vontade grupal, aqui
ocorre um tensionamento ao limite entre estes dois pólos. Isto porque o artista res-
ponsável por uma área tem a palavra final sobre ela. Parte-se do pressuposto, é claro,
que ele irá discutir, incorporar elementos, negociar com o coletivo – durante o tempo
que for necessário –, porém, no caso de algum impasse insolúvel, a síntese artística
final estará a cargo dele.
Aliás, toda essa dinâmica de negociações é causa principal da dilatação do tempo
de ensaio. Gasta-se – e não “perde-se” – muito tempo em debates e na busca de solu-
ções em que todos se reconheçam. A criação se torna mais lenta e distendida, o que
pode se tornar um elemento de desgaste nas relações, a longo prazo. Por outro lado,
é muito difícil o amadurecimento de um discurso coletivo, de forma orgânica e cons-
ciente, sem ser por essa via.
A existência de uma forte autoria individual cria um importante pólo tensiona-
dor em um processo marcado por inúmeras interferências e contribuições. Ele tanto
favorece a filtragem e seleção do vasto material produzido quanto funciona como
um eixo aglutinador das proposições grupais. Se, por um lado, ele age como uma
barreira, um limite, uma fronteira, por outro, ele facilita e estimula a interlocução e
a expansão das zonas de colaboração.
Esse pólo criador individual – por paradoxal que pareça – acaba também acirran-
do o posicionamento grupal. Ele provoca uma tensão produtiva, ou até mesmo um
antagonismo, que fortalece o próprio grupo e o conceito-geral que o mesmo tem do
trabalho – ainda que por via da crise e do conflito. Por outro lado, as individualidades
também saem fortalecidas por essa dinâmica de confrontos, diálogos e negociações,
presentes dentro do processo.
Aliás, poder-se-ia pensar a “crise” não apenas como uma conseqüência à qual o
grupo está necessariamente fadado, mas como um mecanismo implícito e impul-
sionador em processos desta natureza. Ou seja, a sua deflagração pode ser vista não
como uma reação espontânea e indesejada, mas como uma ação transformadora,
produzida pelo próprio processo.
É possível ainda analisar o processo colaborativo à luz dos elementos de subordi-
nação e coordenação. Em um teatro mais tradicional, com hierarquias rígidas e bem
definidas – muitas vezes, inclusive, demarcadas por cláusula contratual –, as relações
internas de trabalho estão submetidas a uma pirâmide de subordinações. Por exem-
plo, o ator se submete às indicações do diretor, que por sua vez se submete às indica-
61
benjamin, w. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993, p. 131.
65
rializada em sínteses imagéticas. Ainda que seja pedida aos atores a criação de textos
escritos, a parte mais significativa das improvisações e workshops está assentada na pro-
dução de imagens, o que justifica a presença determinante delas no resultado final.
Poderia ser apontada ainda a existência de um elemento fragmentário, de justa-
posição de cenas sem forte ligação causal, produzindo uma estrutura dramática mais
aberta e ramificada. Tal configuração, marcada por elementos de colagem, intertex-
tualidade e cadeias de leitmotiv, é resultado direto do conjunto diversificado de vozes
artísticas presentes no processo, e poderia incorrer em flacidez estrutural e em peças
“colcha-de-retalho”. Porém a presença de um dramaturgo individual contribui para o
fortalecimento do texto, evitando uma perigosa generosidade benevolente – a qual,
de brincadeira, denominamos “síndrome de Madre Teresa de Calcutá” –, que se vê
obrigada a incorporar as contribuições de todos os integrantes o tempo inteiro.
A não-hierarquização das funções também acaba refletindo numa obra em que
os aspectos textual, espetacular ou interpretativo não têm caráter epicêntrico. Em
outras palavras, num processo constituído a partir de hierarquias móveis, os dife-
rentes elementos da cena vão também apresentar uma flutuação de dominâncias ao
longo do espetáculo. Às vezes é o texto que terá predominância, enquanto em outros
momentos, é o trabalho do ator ou a experiência sinestésica proposta pela encenação
que capturará a atenção do espectador.
Em relação a esse último aspecto, é possível observar como muitos dos espetá-
culos realizados em processo colaborativo apresentam uma forte experimentação
espacial e/ou de relação com a cidade e seus espaços públicos. Parece existir uma
conexão entre estes coletivos autorais e um projeto de exploração do espaço cênico e
de interferência em locais específicos da cidade.
Apesar de não haver uma relação direta entre a dinâmica interna deste tipo de
processo com um projeto de ocupação urbana, alguns elementos podem ser identifi-
cados. O fato de os integrantes do grupo trazerem seus problemas e interesses para
os ensaios, como material de criação, parece contaminar o trabalho com questões
ligadas à vida na cidade. Além disso, muitos desses grupos têm suas sedes em bairros
específicos (Bixiga, Vila Maria Zélia, Barra Funda, Luz, etc.), o que provoca uma inte-
ração cotidiana com o entorno destes locais. Aliada a esta conjuntura, as constantes
atividades pedagógicas realizadas pelos artistas com a população local trazem para o
âmago da companhia, depoimentos, histórias e questões a ela concernentes.
No que diz respeito à interpretação, a perspectiva testemunhal e propositiva solici-
tada aos atores induz a um registro mais experiencial, com fortes traços performáticos.
Isso é acentuado pelo fato da não existência de um texto prévio, de personagens prontas,
de marcações desenhadas previamente pelo diretor, o que amplia a zona de insegurança
na qual o ator deverá trabalhar. Este elemento de desorientação, de perigo e de risco acom
panha todo o processo, deixando marcas na qualidade de presença e no registro físico e
vocal dos intérpretes, o que os aproxima bastante àqueles do performer.
68
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barthes, r.�� O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 58.
� Ibid., p. 59.
10 Ibid., p. 61.
11 Ibid., p. 64.
69
dois termos que parecem fecundos à nossa discussão: “escritura coletiva” e “escri-
tura múltipla”.
Ainda que ele não faça uma comparação entre esses conceitos, associando o pri-
meiro a um procedimento de dessacralização do autor realizado pelo surrealismo,
e o segundo, a um tipo de escritura que dispensa qualquer decifração, tomamos a
liberdade de estabelecer um paralelismo entre os dois.
Se pensarmos a “escritura coletiva” como aquela realizada por várias mãos, todas
juntas escrevendo, ao mesmo tempo, um mesmo “texto”, poderíamos associá-la a
uma prática comum na criação coletiva. Ao contrário, a “escritura múltipla” definida
como “um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras
variadas, das quais nenhuma é original”, onde “o espaço da escritura deve ser percor-
rido, e não penetrado”, remete-nos ao território do processo colaborativo.
Nele, os vários autores – ou autorias – não se somam, mas coabitam dentro da
obra. As diferentes escrituras individuais estão ali mantidas, identificáveis, e o con-
junto se forma não pela síntese entre elas, mas pelo diálogo e atrito, pelo choque de
pólos artísticos particularizados, que se justapõem ou se contaminam, mas não se
diluem um no outro.
Um ensaio também importante, que nos aponta alguns elementos em relação ao
problema da autoria, é o de Michel Foucault, denominado “O que é um autor?”. Nele,
são discutidas as noções de autor, de obra, de autenticidade, de escrita, da “função
autor” e da “função sujeito”. Em sintonia com Barthes, ele não reivindicará propria-
mente a “morte” do autor, mas sim o seu desaparecimento ou apagamento, como
uma estratégia “que permite descobrir o jogo da função autor”12.
O fato de pensar o “autor” como uma função em si amplia o campo deste concei-
to, pois ultrapassa a associação e a dependência entre a “autoria” e a pré-existência
de funções artísticas definidas. É como se ela não fosse mais um dado imanente da
função ou a ela condicionada. Foucault, ao abolir a subordinação entre esses dois
termos, nos faz pensar a função-autor como um aspecto anterior e comum a todas as
funções artísticas individualizadas.
Aliás, ele problematiza a questão da individualidade na autoria, ao afirmar que
“a palavra ‘obra’ e a unidade que ela designa são provavelmente tão problemáticas
como a individualidade do autor”13. Por exemplo, em que medida ela não comporta-
ria em si, uma pluralidade de “eus”?
Além disso, ele afirma que o “nome de autor serve para caracterizar um certo
modo de ser do discurso”14 e apresenta alguns critérios que agrupam obras distintas
sob a mesma autoria individual: “homogeneidade”; “filiação”; “mútua autenticação”,
“explicação recíproca”; e “utilização concomitante”. Se nos utilizássemos de tais cri-
ficha técnica”. Tais irrupções agressivas, no entanto, nunca passaram de reações pas-
sageiras a momentos de agudas crises.
Se se tratasse de um formato empresarial tradicional, talvez as conseqüências e os
desdobramentos fossem outros. Porém, no processo colaborativo, o fato de a autoria
individual estar sempre sendo estimulada pelo diálogo com as proposições e interfe-
rências do grupo todo, a demarcação rígida dos direitos de criador fica relativizada16.
Aliás, como já vimos, não se trata apenas de uma dinâmica de estímulos e retro-ali-
mentações. Há, de fato, a incorporação de sugestões e formalizações oriundas dos
outros membros da companhia, no corpus da criação individual.
Essa autoria, que se dá, – ainda que não exclusivamente –, por mecanismos de
apropriação, torna altamente problemática uma atitude de proibição ou veto à exi-
bição da obra individual. Na verdade, uma explicação para isso se encontra no fato
de se tratar de uma obra individual sim, porém impregnada de impressões digitais
alheias, criada em diálogo e em interdependência com uma obra grupal.
No caso da encenação, por exemplo, seria um contra-senso advogar tais direitos,
tamanhas são as contribuições sugeridas por toda a equipe. E mesmo no caso do
ator, cujo resultado artístico se dá no corpo – o que o torna mais palpável, às vezes,
do que um conceito de direção – também não parece fazer sentido uma eventual
briga por direitos de autoria. Pois a criação dele está atravessada pela dos outros
atores – seja quando experimentaram a sua personagem ou quando trouxeram
material cênico para ela –, pelo diálogo com a direção – as marcações e os gestos
foram criados em parceria – e pelas interferências dos outros criadores – por exem-
plo, uma proposta de figurino que consegue formalizar uma personagem ou figura
ainda embrionária.
Prova disso é que – por relatos e experiência própria – sempre que houve a neces-
sidade de realizar substituições, mesmo em saídas mais conflituosas, nunca houve
recusa, proibição ou mesmo solicitação de porcentagem financeira pela criação, por
parte dos atores que deixaram o grupo.
Examinando o problema da autoria com nosso orientador, Jacó Guinsburg, ele
defende que não há a exclusão de autorias no processo de trabalho da criação cole-
tiva. Elas continuariam ali, presentes, ainda que menos assumidas. Segundo ele, o
diferencial que ocorre em relação ao processo colaborativo é que nele a autoria se
coloca de forma mais objetivada.
16 Na opinião de Abreu, por exemplo, “num processo de criação compartilhada não há mui-
to espaço para ‘minha cena’, ‘meu texto’, ‘minha idéia’. Tudo é jogado numa arena co-
mum e examinado, confrontado e debatido até o estabelecimento de um ‘acordo’ entre
os criadores. É claro que esse acordo não significa reduzir a criação ao senso comum, nem
transformar o vigor da criação artística num acordo de cavalheiros. É um acordo tenso,
precário, sujeito, muitas vezes, a constantes reavaliações durante o percurso” (In: abreu,
l. a., “Processo Colaborativo: relato e reflexões sobre uma experiência de criação”, p. 36).
72
[...] a estabilidade das noções de autor e de propriedade intelectual foi [...] submetida
a outra investida com a aparição das grandes bases de ‘dados textuais’ e das experi-
ências da ‘biblioteca eletrônica’. Em pouco tempo será possível dispor de um inter-
texto ilimitado, com o qual o usuário poderá jogar, entrelaçando empréstimos e
comentários, praticando colagem e plagiato, inventando caminhos não-lineares.17
17 zular, r. (org.). Criação em Processo: ensaios de crítica genética. São Paulo: Iluminuras, 2002,
p. 117.
18 davis, m. d. Game Theory: a nontechnical introduction. Mineola:
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Dover Publications, 1997,
pp. xvii-xviii.
73
escolha vs. acaso, a teoria dos jogos ajuda a pensar sobre decisões que precisam ser
tomadas conjuntamente, acordos que precisam ser estabelecidos a partir de dife-
rentes interesses, e dilemas ou situações paradoxais que necessitam ser superados.
Portanto, nada mais apropriado para o cotidiano da sala de ensaio, onde dramaturgo,
diretor e atores “negociam” uma criação compartilhada, e que a partir de preferên-
cias individuais chega-se a escolhas coletivas.
Por outro lado, é importante estarmos atentos às limitações da teoria dos jogos
em relação ao campo artístico. Por se tratar de modelo matemático – do qual não
trataremos aqui – com aplicações específicas no campo da ciência política ou da
administração, entre outros, em que se buscam “soluções”, “estratégias” ou até mes-
mo “formas de se ganhar uma disputa”, as correspondências com o universo teatral
devem ser realizadas com cuidado. O aspecto evolucionista e comportamental dessa
teoria, marcadamente behaviorista, também inspira cautela. Além disso, algumas
correntes da administração se utilizam desses princípios como forma de “exploração
da cooperação”. Portanto, o que vai nos interessar não é a aplicação teatral da teoria
dos jogos, mas, simplesmente, algumas possíveis aproximações a seu universo19.
No processo de ensaio, é comum o conflito entre desejos artísticos individuais
contrastantes e mesmo desses em relação a aspirações coletivas de ordem mais geral.
Às vezes, sem perceber, as pessoas estão lutando entre si movidas por impulsos nar-
cisistas, demarcações de territórios ou crises de insegurança. Ao mesmo tempo, tam-
bém, subsiste a vontade e a necessidade de cooperarem umas com as outras.
Enquanto diretor, como perceber as motivações e as forças que se encontram em
jogo? Como não transformar, por exemplo, o período de livre-experimentação dos
papéis por parte dos atores em uma estratégia de competição? Como levar em conta
as aspirações individuais sem, com isso, se tornar refém delas, sem prejudicar o pro-
jeto que é, na origem e no fim, coletivo?
Morton D. Davis vê a tomada de decisões como um jogo de estratégia, e aponta
que “em um jogo, cada jogador deve avaliar a extensão na qual os seus objetivos com-
binam ou colidem com os objetivos dos outros e decidir se vai cooperar ou competir
com todos ou alguns deles”20
Se concordarmos quanto à natureza de “jogo” que atravessaria essa dinâmica
das escolhas grupais, que regras as norteariam? Antes de qualquer coisa, Davis
coloca a questão numérica como fator determinante. Uma decisão entre dois – por
19 Outro fator importante na compreensão da teria dos jogos foram as duas palestras
realizadas pela física Gita Guinsburg ao grupo de orientandos do Prof. Jacó Guinsburg,
no 1º semestre de 2007. Nesses encontros, ela realizou uma “tradução” da linguagem
matemática envolvida nesta teoria e ajudou-nos com exemplos práticos, retirados do
cotidiano, a transpor fórmulas e equações para casos concretos. Tal contribuição mos-
trou-se bastante útil no desenvolvimento dessa parte do trabalho.
20 davis, m. d., Game Theory: a nontechnical introduction, p. xiv.
74
ator mais combativo, por exemplo, conseguir colocar suas reivindicações de forma
rápida e explícita, o ator mais reservado tem, por sua vez, o espaço da cena para se
manifestar – o que, via de regra, produz convencimento bem mais efetivo
Nos jogos cooperativos, também, a noção de “poder” é mais sutil e mais difícil de
avaliar. Neles, o conceito de poder é mais impalpável e esquivo, já que é imperativa a
cooperação com o outro, tenha-se ou não empatia por ele. Daí decorre que o “poder”
é sempre potencial, pois necessita da cooperação dos outros para se materializar.
Além disso, muitas vezes a “dominância” de um posicionamento ocorre pela capa-
cidade de implementar propostas mais adequadas – o que significa que todos vão
“ganhar” mais do que ganhariam se mantivessem a proposta anterior.
Sem esquecermos as ressalvas feitas à teoria dos jogos no possível diálogo com a
prática teatral, acreditamos que a discussão sobre o “poder” e a forma como ele se
materializa é das mais oportunas ao pensarmos o processo colaborativo. Nele, apesar
das funções estarem estabelecidas, não ocorre a subserviência pacífica dos integran-
tes do grupo a alguma deliberação artística individual. Tais resoluções são continua-
mente confrontadas e exigem uma dinâmica de convencimento. Ou seja, é como se
o “poder” estivesse sempre colocado em xeque, relativizado, e fosse contestável em
suas decisões. Nesse sentido é que ele pode ser visto como mais esquivo e permeável
do que em processos mais tradicionais.
Além disso, sem a cooperação de todos os membros da companhia, este “poder”
não tem força de instauração. Ele depende da anuência e da participação do outro
para se concretizar enquanto ato. Não adianta, por exemplo, o diretor querer impor
à força determinada marcação ou gesto. Caso o ator não aprove tal sugestão ou não
seja convencido pelos argumentos do diretor, não há como obrigá-lo. Via de regra,
a força de uma idéia ou proposição que impacte todo o grupo exerce muito mais
“poder” do que qualquer atitude autoritária.
Davis chama a atenção também para os mecanismos de conversão das vontades
individuais em decisões grupais, num contexto em que a opinião de cada pessoa é
igualmente importante. O procedimento mais simples – e bastante freqüente nos
grupos teatrais que criam coletivamente – é o da votação. Contudo, como estabelecer
mecanismos de votação que, de fato, traduzam as preferências gerais? Muitas vezes,
por exemplo, a votação por simples maioria pode incorrer em erros ou distorções.
Daí, em casos como estes, ser preferível uma estratégia de votação por maioria abso-
luta ou, melhor ainda, por turnos ou etapas – em que o que está em jogo é o descarte
das opções que causem maior rejeição dentro do coletivo.
Por fim, tomando como base nossas experiências teatrais, podemos acrescentar
que a recorrência das parcerias ou a continuidade de membros do grupo de um tra-
balho a outro, facilitam e acentuam o espírito de cooperação. A repetição dos encon-
tros, ainda que possa incorrer na armadilha da acomodação, contribui, sem dúvida,
para o amadurecimento da tomada de decisões em processos de co-criação.
79
A idéia de polifonia, tal como definida por Bakhtin, é bastante útil para se pensar
o processo colaborativo. Apesar de se tratar de uma reflexão sobre a obra de um úni-
co autor – no caso, Dostoievski – é possível expandir esse conceito para um modo de
criação onde estão envolvidos vários autores.
O pensamento artístico de tipo polifônico se caracteriza pela presença simultânea
de vozes autônomas, mutuamente contraditórias. Segundo Bakhtin, trata-se da “multi-
plicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis” formando uma “autêntica
polifonia de vozes plenivalentes”24. Este aspecto da imiscibilidade pode ser remetido ao
caráter autônomo – ou de relativa autonomia – das diferentes contribuições artísticas
dentro do processo colaborativo. Como já dissemos, não ocorre a soma ou fusão das dife-
rentes áreas. Elas são consonantes, mas sem se dissolverem ou se desintegrarem uma na
outra; são contíguas, porém, às vezes, contrárias e até mesmo contraditórias entre si.
Por outro lado, essa independência pressupõe diálogo e interconexão entre as
diferentes funções. O próprio pensador russo dirá mais à frente que “o principal na
polifonia [...] é justamente o fato de ela realizar-se entre diferentes consciências, ou
seja, de ser interação e a interdependência entre estas”25. Ou seja, trata-se de uma
autonomia relativa, que não tem a obrigação de amalgamar os diferentes campos
artísticos, mas depende do diálogo entre eles para se potencializar.
O processo colaborativo busca, na verdade, sínteses parciais, relativas a cada fun-
ção. Tanto é assim que podemos identificar um conceito de som, de luz, de interpre-
tação, etc., que se justapõem uns aos outros. É claro que nesse deslizamento de dis-
tintas concepções, ocorrem infiltrações, contaminações, penetrações entre dobras e
sulcos, já que não se trata aqui, de superfícies lisas, mas sim, precárias e acidentadas.
Porém, insistimos, sem que haja dissolução ou desfiguração de campo. Por sua vez,
essas sínteses parciais comporão uma síntese geral, não condicionada pelo imperati-
vo da unidade de estilo ou pela padronização homofônica.
O próprio Bakhtin vai falar em “interação de várias consciências imiscíveis”26, o
que pressupõe um elemento dialógico e conectivo na autonomia por ele assinala-
da. Tal dialogismo, contudo, não implica homogeneidade, nem afinidade entre os
diferentes elementos constitutivos da obra. A criação se dá, ao contrário, a partir de
“materiais heterogêneos, heterovalentes e profundamente estranhos”, resultando um
trabalho “poliestilístico ou sem estilo”, “polienfático e contraditório”27.
[...] a essência da polifonia consiste justamente no fato de que as vozes, aqui, per-
manecem independentes e, como tais, combinam-se numa unidade de ordem supe-
rior à da homofonia. [...] é precisamente na polifonia que ocorre a combinação de
várias vontades individuais, realiza-se a saída de princípio para além dos limites de
uma vontade. Poder-se-ia dizer assim: a vontade artística da polifonia é a vontade de
combinação de muitas vontades, a vontade do acontecimento.32
partitura. Ele não dá voz a ninguém – atitude paternalista indesejada – porque todos já
têm voz, são donos dela. E a sua própria voz, a voz do encenador, não é a de solista nem
de prima-dona, e nem também se encontra dissolvida num coral indistinto. Ela é um
canto singular, contraponto e contracanto e, às vezes, só afonia e silêncio.
Mas e a unidade, tão cara à atividade da direção? Bem, talvez possamos respon-
der como Bakhtin quando ele afirma que “a unidade do romance polifônico, que
transcende a palavra, a voz e a ênfase, permanece oculta”33. No caso do processo ou
da cena polifônica, a sua unidade é produzida pela diversidade, ou, como sugere o
teórico russo, encontra-se encoberta.
O termo processo colaborativo tem origem incerta. A palavra “colaborativo”, por vol-
ta de meados da década de 90, ganhou maior emprego e ampliou as suas conotações
no meio artístico e cultural. Como já apontamos, o diretor inglês Max Sttaford-Clark
refere-se ao trabalho da sua companhia Out-of-Joint como sendo collaborative work
(“trabalho colaborativo”). Em livros de dramaturgia e direção publicados naquela
década, lançava-se mão deste vocábulo para a referência a qualquer processo de cria-
ção envolvendo o elemento coletivo ou compartilhado. Anne Bogart, nos workshops
com a SITI Company – da qual é diretora artística – e durante os ensaios de American
Silents34, também utilizava freqüentemente a palavra collaboration (“colaboração”).
Baseados em lembranças pessoais, recordamos que durante os ensaios de O Livro
de Jó, do Teatro da Vertigem, o termo “colaborativo” foi usado aqui e ali, de maneira
informal, sempre como forma de caracterizar uma dinâmica de criação compartilha-
da e grupal. Porém não temos claro o momento no qual o grupo começa a empregar
conscientemente a expressão processo colaborativo. Talvez com o desejo de caracterizar
o que fazíamos, aliado ao desgaste do termo criação coletiva, fomos denominando nos-
so trabalho por meio daquela expressão.
Além disso, esse espetáculo marcou também a parceria artística com Luís Alberto
de Abreu, dramaturgo que veio de significativa experiência coletiva no Grupo Mam-
bembe. Ao nos reencontrarmos alguns anos depois, como professores da Escola Livre
de Teatro de Santo André – onde coordenamos vários cursos juntos, reunindo alunos
de dramaturgia e direção – Abreu também adotava a expressão processo colaborativo.
Fora dali, em outras companhias e coletivos, ouvíamos o mesmo conceito ou simila-
res: dramaturgia colaborativa; processo compartilhado; dramaturgia em processo; teatro
coletivo; criação grupal, etc. Todos eles querendo traduzir um tipo de fenômeno que não
ocorria apenas no campo do teatro. Se pensarmos nos coletivos de artes plásticas (Bijari; A
Revolução Não Será Televisionada; etc.), de cinema, de música, entre outros, todos apon-
tavam para projetos de compartilhamento de autorias. Mesmo fora do universo das artes,
experiências como a da Wikipedia ou do jornalismo colaborativo são exemplos disso.
Portanto, menos importante do que determinar a autoria ou a origem exata da
expressão processo colaborativo é flagrar a tendência de época, o contexto histórico
particular, a inquietação relativa ao modo de fazer teatro, que colocava em sintonia
diversos artistas e companhias, dentro e fora do país.
No caso do Teatro da Vertigem, adotamos e continuamos a usar essa expressão
pelo significado e força que a reunião destes dois vocábulos suscita: o elemento “pro-
cessual” aliado ao “trabalho em conjunto”. Essa ênfase colocada na idéia de processo,
em que o “colaborativo” funciona como uma qualidade ou característica intrínseca,
é bastante relevante. Além, é claro, do parentesco com outra noção valiosa, a de work
in process, que, segundo Renato Cohen “conceitualmente [...] carrega a noção de tra-
balho e de processo”35. Nesse sentido, parece-nos fundamental o exame em separado
dos dois vocábulos-conceitos que compõem a expressão processo colaborativo.
35 cohen, r. ‘Work in Progress’ na Cena Contemporânea: criação, encenação e recepção. São Paulo:
Perspectiva, 1998, p. 20.
84
período de ensaio como um “texto móvel”36, escrito e apagado a várias mãos, por
todos os artistas envolvidos e pelo próprio público – quando este é convidado a inter-
ferir nos rumos da criação. Período sísmico, turbulento e instável que produz uma
“escritura” de igual natureza. Nesse sentido, talvez seja fecundo pensar o processo de
trabalho como um “texto”, como uma “obra” também, com elementos estruturais,
operadores e dispositivos, e até mesmo com precipitações estéticas. É claro que sem-
pre perpassado pelo provisório e pelo transformativo.
Um processo tem natureza tateante, composta pelo movimento contínuo de se
fazer, desfazer e refazer. Ele é regido pelo princípio da incerteza. No desenrolar de
sua trajetória, os poucos marcos de orientação sinalizam, às vezes, apenas aquilo que
não se quer. O descarte, o “não”, a recusa tem força de germinação. A forma vai sur-
gindo de uma dinâmica de exclusões. Por esse ângulo, o processo não é democrático,
ele não acolhe tudo, ele expele e regurgita, põe para fora, elimina.
Por outro lado, na medida em que permite que os elementos, as propostas, as
idéias venham à tona e sejam discutidas e/ou experimentadas, ele assume um caráter
profundamente democratizante. É esse lugar paradoxal o habitat do processo colabo-
rativo. Ele admite e estimula que o ator traga uma cena-depoimento baseada em suas
memórias mais preciosas, para, em seguida, descartá-la, redirecioná-la para outro
ator ou ainda, transformá-la inteiramente.
Cecília Almeida Salles, pesquisadora das diferentes linguagens artísticas dentro
do campo da crítica de processos, vai pensar o ato criativo a partir da noção de “ten-
dência”, ou seja, como movimento dialético entre rumo e incerteza. Essa perspecti-
va abre espaço para o acolhimento do acaso, tornando-o um operador importante
na construção da obra. Segundo ela, “aceitar a intervenção do imprevisto na conti-
nuidade do processo com tendência, implica compreender que o artista poderia ter
feito aquela obra de modo diferente daquele que fez. Admite-se que outras obras
teriam sido possíveis”37. Em outras palavras, a obra acabada é, ao fim e ao cabo,
apenas uma possibilidade de precipitação dentre inúmeras outras, experimentadas
durante o processo. Ela é a possibilidade que se fixou.
Salles acrescenta ainda outro aspecto importante, o da “falha” – ou, se quiser-
mos ampliá-lo, poderíamos nomeá-lo como “fracasso”. Para ela, “o movimento cria-
tivo mostra-se, também, como um percurso falível. As rasuras dão a conhecer as
diversas nuances de erros e das diferentes maneiras de enfrentamento dessa possi-
36 Philippe Willemart afirma, entre algumas definições possíveis de “texto móvel”, que
“carregado de sentidos ‘desconhecidos’ do escritor, o ‘texto móvel’ insiste até estar
completamente esvaziado e tornando-se um espaço oco sem mais poder sobre o escri-
tor, a ponto de liberá-lo e deixando-o entregar o texto ao editor” (In: ZULAR, R. (org.),
Criação em Processo: ensaios de crítica genética, p. 78).
37 zular, r. (org.), Criação em Processo: ensaios de crítica genética, p. 186.
86
mas a mantêm dentro de uma dinâmica relacional, que permite construir, ao mesmo
tempo, a si mesmas e ao todo”45. Parece-nos surpreendente como essa conceituação
poderia ser utilizada, quase sem nenhuma adaptação para definir o modo de criação
compartilhado que estamos tratando aqui.
Porém, como se organiza esse comum? Para o sociólogo italiano, o problema “não
é juntar indivíduos isolados, mas construir de maneira cooperativa formas e instru-
mentos comunitários e conduzir ao reconhecimento (ontológico) do comum”46. Essa
afirmação do “singular”, do “subjetivo” – e não do “individual” – dentro do “múlti-
plo”, proporciona-nos uma chave bastante útil para pensar o processo colaborativo.
Isto porque nele, quanto mais radicalizada estiver cada singularidade artística, mais
potente e eficiente ocorrerá o processo de criação.
Tal percepção fica reforçada quando, mais à frente, Negri acrescenta que o trabalho da
multidão é um produto das relações entre singularidades, e especialmente, em sua defi-
nição de multidão: “comunidade de diferenças [...] onde as singularidades são concebidas
como produção de diferença. O comum (na multidão) nunca é o idêntico, não é ‘comuni-
dade’”47. Ou seja, uma noção já bem distante daquela enunciada por Piscator, ao propor
uma “comunidade homogênea”. Pois a homogeneidade ali revelava um projeto de aparar
ou pacificar as diferenças, em nome da consolidação de uma ideologia e de um projeto
artístico único. Aqui, ao contrário, quer-se acirrar as diferenças, colocá-las em choque, em
litígio, fazendo com que as singularidades produzam cada vez mais diferença, mais hete-
rogeneidade. A singularidade, por sua vez, “é feita do conjunto e faz o conjunto”48.
Baseados nessa abordagem poderíamos definir o processo colaborativo como um
conjunto multifuncional de subjetividades que constroem simultaneamente, a si
mesmas e ao todo, produzindo uma obra de natureza heterogênea, não-hierarquiza-
da e multidisciplinar.
Daí pensarmos que a criação coletiva poderia ser vista como a associação de artis-
tas polivalentes, sem função definida, em contraposição ao processo colaborativo,
de caráter multifuncional. Pois, para este último, é fundamental a manutenção das
funções artísticas e o diálogo objetivado entre elas.
O sociólogo italiano vai ainda mais longe, concluindo que “o trabalho, hoje, para
ser criativo, deve ser ‘comum’, ou seja, produzido por redes de cooperação”49. Essa
idéia de rede, de processos determinados por redes relacionais, vem também sendo
utilizada por vários outros pensadores, como eixo paradigmático para refletir sobre
a cultura e a arte contemporânea.
Cecília Almeida Salles, em sua obra mais recente, estuda os processos de criação
45 negri, a. Cinco Lições sobre o Império. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2003, pp. 142.
46 Ibid., pp. 45-46.
47 Ibid., p.148.
48 Ibid., p. 159.
49 Ibid., p. 153.
89
justamente a partir dessa visão reticular. O seu interesse central é “pensar a criação
como rede de conexões, cuja densidade está estreitamente ligada à multiplicidade
das relações que a mantém. No caso do processo de construção de uma obra, pode-
mos falar que, ao longo desse percurso, a rede ganha complexidade à medida que
novas relações vão sendo estabelecidas”50
Baseada nas análises de André Parente – que vê na noção de rede a instauração
de um “pensamento das relações” em contraposição a um “pensamento de essências”
– Salles vai apresentar as características fundamentais dos processos contemporâne-
os de criação: “simultaneidade de ações, ausência de hierarquia, não linearidade e
intenso estabelecimento de nexos”51.
Aliás, a defesa da eliminação de hierarquias – e também da simultaneidade de
ações – como característica da cena atual, aparece na definição de Hans-Thies Leh-
mann do teatro pós-dramático. Segundo ele,
50 salles, c. A. Redes da Criação: construção da obra de arte. Vinhedo: Editora Horizonte, 2006,
p. 17.
51 Ibid., p.17
52 lehmann, h.-t. Teatro Pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 143.
53 salles, c. a., op. cit., p. 34.
90
Ela invoca ainda Edgar Morin, nos seus estudos sobre complexidade, o qual defi-
ne as interações como “ações recíprocas que modificam o comportamento ou a
natureza dos elementos envolvidos; supõem condições de encontro, agitação, tur-
bulência e tornam-se, em certas condições, inter-relações, associações, combina-
ções, comunicações, etc., ou seja, dão origem a fenômenos de organização” 54. Um
pouco mais à frente, Morin conclui que “a realidade, no entanto, é feita de laços e
interações, e nosso conhecimento é incapaz de perceber o complexus – aquilo que é
tecido em conjunto”55.
Aliás, refletir sobre o processo colaborativo à luz das teorias da complexidade
não deixa de ser estimulante. Pois, é da natureza desse modo de criação se constituir
como processo complexo e multicomposto, repleto de ambivalências e plurivalên-
cias. Por exemplo, ao pensarmos em fenômenos e formas de organização, o processo
colaborativo se assemelha ao dos sistemas dinâmicos, “situados em algum ponto
entre a ordem na qual nada muda como pode ser o caso das estruturas cristalinas, e
o estado de total desordem ou caos como é o caso da dispersão da fumaça”56.
Essa forma de organização, que não tem a rigidez do teatro tradicional nem a
falta de norte de experiências totalmente à deriva, nos auxilia a entrever um tipo de
organização mais móvel, permeável, aberta ao imprevisto, baseada numa estrutura
com fundações mais maleáveis. Um processo que é capaz de instaurar o caos e se
nutrir dele, mas sem, com isso, tornar-se seu refém.
Nesse sentido, a questão das funções volta a desempenhar papel importante.
Recordamo-nos da palestra do físico teórico Nelson Fiedler-Ferrara aos alunos do
curso de Direção Teatral da ECA-USP, no 2º semestre de 2004, em que ele defendia
a complexidade como um fenômeno distinto de entropia. Segundo ele, dada a difi-
culdade crescente em se conhecer a fundo qualquer assunto – por suas inúmeras
camadas, desdobramentos, vasta bibliografia disponível, grande quantidade de pes-
quisadores, centros de referência no mundo todo, etc. – a saída não se encontraria
mais na multi-especialização – idéia, vale lembrar, defendida pela criação coletiva.
Ao contrário, o exercício da complexidade consistiria em trocar, dialogar, compar-
tilhar o conhecimento aprofundado de sua área com a de outros especialistas em
áreas distintas. Tais imbricamentos e retro-polinizações seriam capazes de produzir
novos conhecimentos e criações, evitando o risco da superficialidade.
Após a discussão de caráter teórico realizada nos capítulos anteriores, julgamos im-
portante realizar um diálogo com casos concretos da prática teatral, no sentido de veri-
ficar procedimentos e dinâmicas relativas à pesquisa por nós empreendida. Escolhemos,
então, analisar três processos realizados pelo Teatro da Vertigem, que resultaram nos
espetáculos O Livro de Jó, Apocalipse 1,11- que compõem a Trilogia Bíblica – e BR-3.
Diferentemente de nossa dissertação de mestrado, na qual realizamos minuciosa
descrição de todo o percurso dos ensaios e analisamos os vários aspectos e etapas da
construção de O Paraíso Perdido, pretendemos agora enfatizar o âmbito da direção.
Apresentaremos, é claro, numa espécie de sobrevôo, os mapas de percurso, a fim de
que se possa ter um panorama da trajetória de feitura dos espetáculos. Porém, o alvo
de nossa reflexão será os diferentes aspectos da criação do encenador, no âmbito do
processo colaborativo.
Justamente pela natureza coletiva dos trabalhos aqui descritos, os problemas de
encenação vinculam-se orgânica e necessariamente às outras áreas de criação. Por-
tanto, se abordamos questões dramatúrgicas ou interpretativas, por exemplo, é por-
que elas dizem respeito, de uma forma ou de outra, a questões de direção, seja na
condução do processo, seja no desenvolvimento da escritura cênica da montagem.
Tomando como base os cadernos de direção e anotações pessoais, além do ape-
lo à memória nas inevitáveis lacunas de registro, procuraremos, quando necessário,
recorrer a depoimentos de outros criadores que fizeram parte dos trabalhos aqui
tratados. Recorreremos ainda a textos escritos por participantes dos processos, que
aparecem na forma de programas das peças, livros sobre a companhia e trabalhos de
pesquisa de cunho acadêmico e não-acadêmico. Além disso, em razão de nossa parti-
cipação concreta nesses processos de criação, realizaremos esta reflexão alternando
a redação do texto entre a primeira e a terceira pessoa do singular e, pelo aspecto
coletivo dos processos, também na primeira pessoa do plural.
92
O percurso de construção do segundo espetáculo da Trilogia Bíblica do Teatro da
Vertigem vai sedimentar alguns dos princípios e procedimentos presentes no traba-
lho anterior, ao mesmo tempo em que, decididamente, recusará outros. Ninguém
saiu ileso do Paraíso e foram necessários vários meses para o entendimento e absor-
ção daquela experiência. A sua longa temporada, com cerca de nove meses de apre-
sentações ininterruptas, permitiu-nos reavaliar nossa dinâmica de trabalho antes que
tivéssemos que projetar os próximos passos da companhia.
Porém, antes de tratarmos das novas configurações que o processo de O Livro de Jó
vai assumir, gostaríamos de apresentar, grosso modo, a sua estrutura geral e as dife-
rentes etapas de seu percurso:
Este processo de criação contou com a participação de Luís Alberto de Abreu, na drama-
turgia e dos atores Daniella Nefussi, Matheus Nachtergaele, Miriam Rinaldi, Sergio Sivie-
ro, Siomara Schröder e Vanderlei Bernardino. A assistência de direção foi feita por Marcos
Lobo, que havia trabalhado como ator em O Paraíso Perdido. A ficha técnica completa, com
a descrição de todos os criadores e colaboradores, tanto deste processo como dos dois
outros que serão analisados a seguir, pode ser consultada nos anexos desta tese.
Luís Alberto de Abreu desejava, desde o início, que o seu trabalho em O Livro de Jó não
fosse uma “adaptação”, mas sim uma “recriação” do texto bíblico. Por outro lado, a
direção não pretendia uma recriação transfigurada da matriz original, como em Ha-
mlet-máquina ou Medeamaterial, de Heiner Müller. O resultado final parece ter ocupado
um lugar intermediário entre esses dois pólos.
93
In: andrade, w. w. O Livro de Jó, de Luís Alberto de Abreu: mito e invenção dramática. 2000.
199 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, p. 164 (grifo nosso). É sintomático que,
um pouco mais à frente nessa mesma entrevista, Abreu reconheça que O Livro de Jó “foi
um texto que construí de forma autônoma, embora participativa” (p. 166).
95
� silva,
����������
a. m. r. r. Poética Cênica na Dramaturgia Brasileira Contemporânea. 2001. 155 f. Dissertação
��������
(Mestrado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, p. 117.
96
Rubens Brito denominará como “máscara tripla” ou “terceira máscara” esse procedimento
dramatúrgico desenvolvido por Abreu em O Livro de Jó, em que coexistem elementos
épicos e dramáticos. Segundo ele, citando o próprio dramaturgo numa entrevista, tal
máscara pretendia “essa coisa de juntar o personagem dramático com o narrador que
narra a si próprio e sofre a ação da narração” (p.42). Para Brito, a máscara tripla “resul-
ta do duplo investimento de máscaras sobre o personagem que é. Ambas as aplicações
têm o tom épico por se tratar de ações narrativas. Mas a resultante é dramática, pois
não existe o distanciamento proposto por Brecht e sim uma aproximação do ator com
o personagem e deste com a platéia. Em outras palavras, pode-se dizer que Abreu apli-
ca recursos épicos para obter a identificação da platéia com os personagens que sua
cena apresenta, objetivando, com isso, gerar a emoção” (p.148). In brito, s. j. r. Dos Peões
ao Rei: O Teatro Épico-Dramático de Luís Alberto de Abreu. 1999. 226 f. Tese (Doutorado em
Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.
98
Na verdade, não exatamente a primeira versão, pois o texto foi reescrito cerca de três
vezes antes de ser apresentado aos atores. Até esse momento, o diálogo relativo à escri-
tura da peça ocorreu apenas entre a dramaturgia e a direção.
99
terferência do grupo, seja pelo suporte da matriz mítica, seja pela estrutura e registro
textual fornecidos pela dramaturgia logo de início, foi, proporcionalmente, menor.
No âmbito da encenação, a escolha de um hospital para a apresentação do espetácu-
lo era uma idéia norteadora. Diferentemente da peça anterior, em que o espaço da igre-
ja surgiu como possibilidade cênica somente após vários meses de ensaio, em Jó essa
escolha ocorreu poucos dias depois da definição do projeto. Tanto é que, na primeira
discussão com o grupo sobre a idéia da futura montagem, ambos os elementos – o tex-
to bíblico sapiencial e o espaço hospitalar – foram apresentados concomitantemente.
Em nossa concepção, a utilização de objetos hospitalares reais – macas, carros de ex-
purgo, suporte para soro, etc. –, imantados com a história pregressa de sua utilização, se
associava ao cheiro forte de formol que impregnava o ambiente, acentuando – pela via
contrária, do cuidado e da assepsia – a relação com a enfermidade e os seus sintomas.
Além disso, durante a apresentação do espetáculo, existia o fator da proximidade.
Os atores, ao longo das cenas, encontravam-se sempre muito perto da platéia, às vezes
estabelecendo contato físico direto com ela – por exemplo, em eventuais toques ou
esbarrões. O corpo do ator se tornava algo concreto, literalmente palpável, o que inten-
sificava o caráter da presença, do aqui e do agora. Por outro lado, essa exígua distância
ator-espectador acentuava uma sensação incômoda, desconfortável, e até mesmo de
risco. Por exemplo, o público muitas vezes se sujava do “sangue” da personagem Jó.
Essa relação direta e sem mediações, tanto com os atores quanto com o lugar e
os objetos de cena, provocou, por exemplo, uma longa negociação entre diretor e
iluminador (Guilherme Bonfanti) para que este último não se utilizasse do recurso
de fumaça no espetáculo. Por mais que tal recurso, além de “esculpir” a luz, ajudasse
na criação de uma atmosfera mais concentrada, ele acabaria por esconder, maquiar e
poetizar a crueza hospitalar.
Contudo, equivocadamente, não conseguimos abrir mão do elemento-fumaça no
final da peça, pois os refletores teatrais ficariam escancaradamente expostos. Tal ex-
posição viria contra o conceito de luz desenhado até então, que deixava à mostra
apenas as fontes luminosas hospitalares – olhos cirúrgicos, negatoscópios, focos au-
xiliares, luminárias de fototerapia, etc. As outras fontes de luz, compostas por al-
guns poucos refletores teatrais, encontravam-se escondidas no lado externo do pré-
dio, atrás de janelas revestidas, e só eram utilizadas em momentos muito específicos
– por exemplo, em monólogos de Jó com Deus.
Por outro lado, a fumaça no final do espetáculo sugeria – inadvertidamente – uma
resolução milagrosa para o percurso de sofrimento de Jó. Ou seja, o contrário do que
pretendíamos. Ao invés da tomada de consciência pelo próprio protagonista e da
compreensão individual do significado de sua trajetória – que se dava sem a aparição
ex machina da divindade, indicada pelo texto bíblico original – o efeito cênico da fu-
maça abria brecha para uma solução redentora e exógena.
Somente três anos depois, na temporada do espetáculo na Dinamarca, descobri-
100
dos procedimentos de ensaio de O Paraíso Perdido e O Livro de Jó. Talvez, por isso, a
unânime percepção grupal de que ele tenha sido o mais equilibrado de todos os pro-
cessos vividos até então.
De início, houve a divisão dos ensaios em duas grandes fases. A primeira dedica-
da exclusivamente à escritura do texto, e a segunda, ao levantamento das cenas, ao
trabalho de interpretação e à construção do espetáculo. Estabelecemos também um
pacto coletivo que, caso a dramaturgia resultante daquela primeira etapa não fosse
satisfatória, não nos obrigaríamos a passar à etapa seguinte e nem produziríamos
um espetáculo nela baseado.
De determinada maneira, retomávamos o espírito existente em O Paraíso Perdido,
cujo elemento mais importante era a pesquisa a ser realizada. Porém, desta vez, não
negávamos a possibilidade da montagem de uma peça, caso o processo a ela nos en-
caminhasse. Era claro e consciente que ambicionávamos uma formalização cênica
ao fim do período de ensaios, mas não desejávamos ser pressionados por ela, nem
por ela constrangidos. Portanto, ao contrário do primeiro processo do grupo, em que
o “desejo de espetáculo” era um tabu, aqui ele se encontrava explicitado e assumido
desde o início. Por outro lado, porém, não gostaríamos de repetir a coação da estréia
de O Paraíso Perdido, que tanta turbulência trouxe ao final dos ensaios.
Além disso, diferentemente do que ocorreu em O Livro de Jó, desejávamos a pre-
sença mais freqüente do dramaturgo em sala de ensaio, especialmente durante as
improvisações temáticas, recolhendo e dialogando diretamente com o material bruto
produzido pelos atores. É claro que sabíamos da inviabilidade da freqüência diária,
por parte do escritor, num processo de longa duração. Por outro lado, por paradoxal
que parecesse, também havia sido importantes os largos períodos de ausência e afas-
tamento de Luís Alberto de Abreu durante a construção de Jó.
Daí, as perguntas-desafios que o grupo então se colocava: como trabalhar com o
dramaturgo, trazê-lo para o embate corpo-a-corpo da sala de ensaio, sem provocar o
constrangimento das dinâmicas individuais de criação, e sem a pressão decorrente
da estréia do espetáculo? Como encontrar uma estrutura que favorecesse o diálogo
entre as diferentes funções durante a escritura do texto? Como conjugar a alternân-
cia de presença e ausência do dramaturgo durante o processo?
A resposta que vislumbramos foi a criação de um momento específico no trabalho,
com duração previamente estipulada, em que o dramaturgo pudesse acompanhar in-
tegralmente o ensaio. Além disso, incorporando a experiência positiva ocorrida em O
Livro de Jó, também deveria haver períodos em que diretor e dramaturgo pudessem
trabalhar conjuntamente sem a presença dos outros integrantes. Por fim, deveriam
ainda ser resguardados os momentos em que o dramaturgo trabalhasse solitariamen-
te no desenvolvimento do texto.
Para tanto, foi idealizado o seguinte esquema de trabalho:
106
11 Tanto essa fase quanto a seguinte ocorreu nas dependências da Oficina Cultural Oswald
de Andrade, como parte do Projeto de Residência Artística do Teatro da Vertigem na-
quela oficina. O espetáculo foi todo ali criado, desde o Primeiro Workshop até o início
dos ensaios no Presídio do Hipódromo.
107
13 rinaldi, m. O Ator do Teatro da Vertigem: o processo de criação de Apocalipse 1,11. 2005. Dis-
sertação (Mestrado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São
Paulo, p. 103.
110
para várias capitais brasileiras, amealhou prêmios e foi alçado ao circuito de festivais
internacionais. O lado perigoso de todas essas conquistas, contudo, para um grupo re-
lativamente jovem e no seu segundo espetáculo, era o da acomodação precoce e o do
inebriamento pelo sucesso. Daí que, em um dos primeiros encontros preparatórios,
foi reiterada, enfaticamente, a necessidade de esquecermos todas aquelas vitórias e
louros para que conseguíssemos nos aventurar de novo. Era preciso que matássemos
O Livro de Jó a fim de que não nos domesticássemos.
Esse espírito de investigação de outras possibilidades temáticas e estéticas, e de recu-
sa da repetição do modelo anterior, estimulou um estado de entrega e de abertura nos
atores, que foi extremamente fértil. Os workshops foram marcados por um registro de
alta intensidade criativa, e por um ininterrupto brainstorm de cenas e proposições14, em
que o elemento da censura – e da autocensura – parecia não existir. Além disso, por mais
que não se tratasse de uma estratégia pensada previamente, o fato de os três workshops
terem como foco a construção da dramaturgia, liberava os atores e o encenador para
experimentações mais descompromissadas. Era como se quem estivesse na berlinda,
naquele momento, fosse o dramaturgo, desresponsabilizando os demais criadores da
tarefa de produzir bons resultados teatrais ou de formalizações cênicas acabadas.
É importante ressalvar que o dramaturgo em Apocalipse 1,11 – como de resto, no
processo colaborativo em geral – não funcionou apenas como organizador ou selecio-
nador do material cênico produzido pelos atores. Fernando Bonassi, além de propor
– em parceria com a direção – estímulos verbais e imagéticos para os intérpretes,
ou de escolher e descartar elementos propostos pelo grupo, irá também rearticular,
transformar ou reescrever tal material, bem como produzir cenas e textos de autoria
própria – ainda que inspirado ou mobilizado pelo que ocorria em sala de ensaio15.
Uma característica inerente à dramaturgia é o seu caráter pouco dialógico. Mesmo
quando as personagens estão interagindo, o que sobressai nessa suposta troca, é o
elemento monológico. Ou seja, a aparência de dialogismo esconde, na verdade, uma
justaposição de solilóquios que se entrecortam. Se tal construção textual vincula-se,
sem dúvida, a procedimentos da dramaturgia contemporânea, aqui, ela revela tam-
bém rastros processuais. Como vimos, o depoimento pessoal – que é, muito freqüen-
temente, materializado por meio de workshops – induz à formalização de cenas indi-
viduais, com caráter monológico. O texto de Apocalipse 1,11 flagra, indubitavelmente,
tal dinâmica, espelhando sem distorções o processo no qual ele foi gerado.
14 Miriam Rinaldi, em sua referida dissertação, chega a computar um total de mais de 540
cenas, apenas no período dos três workshops.
15 A dramaturgia e a direção tiveram várias discussões divergentes a esse respeito, pois
Fernando Bonassi tendia a considerar a sua atitude de apropriação ou de reelaboração
do material proposto pelo grupo como não-autoral, algo próximo da atividade de co-
pidesque ou de mera organização. A discordância dessa avaliação, enquanto diretor,
baseia-se no fato de ser possível identificar, no resultado final do texto, cenas inteiras
e monólogos que foram produzidos inteiramente por iniciativa do dramaturgo.
111
maneiras possíveis para que uma melhor integração ocorresse. No caso da oficina de
direção, os estagiários não apenas participavam dos ensaios, mas compartilhavam
do planejamento do cronograma da semana, discutiam problemas referentes à inter-
pretação, sugeriam encaminhamentos em reuniões de produção, e assim por diante.
Além disso, cada um deles fazia o acompanhamento individual de um ator, ajudan-
do-o e interferindo na construção de sua personagem. Desta forma, depois de algum
tempo, eles passaram a construir a peça com o grupo e, de certa maneira, expuseram-
se aos mesmos riscos que nós.
Além do assistente de direção oficial (Marcos Bulhões), passei a contar com sete
assistentes-estágiários18 com os quais dividia o trabalho diariamente. Enquanto en-
saiava na sala principal uma determinada cena, acompanhado do estagiário que
havia ficado responsável por ela, o assistente e os outros estagiários se encontra-
vam, ao mesmo tempo, em salas contíguas, fazendo a análise, o levantamento ou
o primeiro esboço de marcação das cenas subseqüentes – que, por sua vez, mais
tarde, passariam necessariamente por mim. Portanto, a cada segunda-feira, quando
nos reuníamos para estruturar o cronograma da semana, fazíamos o agendamento
de trabalho para cada um dos diretores envolvidos, de forma a contemplar essa di-
nâmica rotativa de ensaio das cenas.
Foi gratificante perceber que o processo colaborativo ficou muito mais “colabo-
rativo” com esse sistema artístico-pedagógico. As interferências na criação se multi-
plicaram, o que aumentou a complexidade do trabalho, deixando-o, apesar das difi-
culdades, mais polifônico e provocativo. O mito do artista isolado e misantropo, que
mantinha seu processo de criação trancado a sete chaves, encontrava-se relativizado.
A abertura dos ensaios, desde que realizada com critério, não comprometia o desen-
volvimento da obra. Por outro lado, enquanto professor de teatro, tal dinâmica se
comprovou como uma das experiências pedagógicas mais intensas e bem-sucedidas
que tive a oportunidade de coordenar.
Contudo, apesar dos acertos acima descritos, essa segunda etapa do processo tam-
bém comportou algumas contradições. Primeiramente, a rígida divisão entre “fase de
criação do texto” e “fase de criação do espetáculo” mostrou-se inócua e inoperante.
Ambos os períodos se influenciaram e se contaminaram todo o tempo. As fronteiras
entre as diferentes etapas de construção da obra revelaram-se tênues, quando não
19 rinaldi, m., O Ator do Teatro da Vertigem: o processo de criação de Apocalipse 1,11, p. 159.
117
IV) é marcado por forte teatralismo – a descida do Juiz, a Noiva na escada, a crucifica-
ção da Besta, a procissão do Anjo Poderoso e de seus asseclas, o enforcamento do Juiz,
entre outros. Ou seja, há a emergência e a coabitação de diferentes vetores estéticos.
Não é de se estranhar que uma peça ancorada – temática e processualmente – na
cidade de São Paulo, cujos bairros e lugares serviram como fonte de referência para
a construção da dramaturgia e da cena, não sofresse a influência dessa urbanidade
multifacetada. Como imaginar que uma cidade marcada pela pluralidade e mistura
de traços arquitetônicos díspares não induzisse a uma equivalente justaposição de
estilos e linguagens, num espetáculo nela inspirado?
Além disso, a encenação deixou vir à tona, de forma mais integral e intensa do
que nos espetáculos anteriores, o hibridismo e a polifonia das diferentes vozes e vi-
sões artísticas do grupo. Apocalipse 1,11 conseguiu materializar, a contento, a natureza
impura e colaborativa do processo de origem. E nos fez perceber que a “unidade” da
encenação não se encontra, apenas, no resultado estético da obra, mas também, na
conformação e na linguagem do processo.
esforço de identificação das futuras metas artísticas e das vontades pessoais e coletivas.
Entre os tópicos levantados, apareceu fortemente o desejo de abandono ou suspensão
da temática religiosa. Ainda que se percebesse o quanto tal assunto não se encontrava
esgotado em nossas criações, havia uma recusa ou cansaço em relação a ele.
Em função disso, cada integrante trouxe textos, peças ou idéias que gostaria de tratar
no próximo espetáculo. Após vários encontros de compartilhamento deste material –
boa parte dele, curiosamente, composta por monólogos –, não se conseguiu chegar a ne-
nhum denominador comum. Finalmente, por não vislumbrar perspectivas de consenso
a curto prazo, apresentei ao grupo o embrião de um projeto, ainda confuso e nebuloso.
Em decorrência da exposição fotográfica de Thomas Farkas, no Instituto Moreira Sal-
les (2002), em que eram apresentadas imagens de Brasília em construção – com seus tra-
ços arquitetônicos ainda pela metade, sujos de terra e desfigurados – ocorreu-me o desejo
de lançar mão deste material para a realização de um espetáculo. Acrescentou-se a isso
a lembrança de um projeto irrealizado, proposto pela Secretaria Municipal de Cultura,
para que o grupo montasse uma peça na periferia da Zona Norte. Um bairro em especial,
naquele momento, chamou a atenção da companhia: Brasilândia. Desnecessário dizer
que, pela semelhança vocabular, a associação Brasília-Brasilândia foi imediata.
Se o Vertigem saía de Apocalipse 1,11 exaurido da temática religiosa, por outro lado,
tal espetáculo descortinou um universo de provocantes questões relativas à socieda-
de brasileira. Foi inegável a mobilização do grupo em relação aos problemas nacio-
nais ali tratados. Talvez caiba reconhecer que, se Apocalipse, por um lado, marcou a
última etapa de uma trilogia bíblica, por outro, ele se configurou como a primeira for-
malização de uma futura trilogia brasileira. De alguma forma, BR-3 já se encontrava,
embrionariamente, dentro dele.
O passo seguinte na elaboração do novo projeto se deu de forma eminentemente
lúdica. Movido pelo radical “brasil”, o grupo perscrutou um atlas geográfico e des-
cobriu, na extremidade do Acre, uma pequena cidade chamada Brasiléia. O círculo
havia se fechado. Na verdade, não um círculo, mas uma parábola. Esta era a figura
geométrica que unia, no traçado do mapa, aqueles três Brasis, cuja única associação
residia na mera coincidência vocabular.
Por outro lado, tal escolha cartográfica apontava para uma discussão de país, não
pelo viés geral e abstrato, mas ancorada em três lugares muito específicos e concre-
tos. Chamava a atenção, ainda, o fato de aquela parábola imaginária perfazer um
sentido centrípeto, do litoral rumo ao interior. Estava, enfim, esboçado o desenho do
projeto: o grupo faria uma viagem para o interior do país, até o limite de suas últi-
mas fronteiras, e criaria uma peça a partir desta expedição-experiência.
Partiu-se, então, para a escolha da equipe de criação. Diferentemente dos proces-
sos anteriores, o primeiro passo foi a busca do dramaturgista, a fim de que ele pudes-
se auxiliar, desde logo, na escolha do escritor e nas primeiras abordagens teóricas do
projeto. Foram convidados a professora e pesquisadora Sílvia Fernandes e o diretor e
121
• Márcio Souza: conversa sobre seu livro Galvez, O Imperador do Acre (15 de
dezembro de 2003);
• Bernardo Carvalho: conversa sobre o processo de criação dos romances
Nove Noites e Mongólia (20 de dezembro de 2003);
• Milton Hatoum: conversa sobre sua visão de Manaus e da região Norte,
além de discussão sobre seus dois romances, Relato de um Certo Oriente e
Dois Irmãos (13 de janeiro de 2004);
• João das Neves: conversa sobre sua experiência com tribos indígenas no
Acre (15 de janeiro de 2004);
• Bernardo Carvalho: segundo encontro com o escritor, destinado a apro-
fundar e esclarecer algumas questões de ordem artística, e a auxiliar o
grupo na tomada de decisão em relação à escolha do dramaturgo (18 de
janeiro de 2004);
• Ferréz: conversa sobre seu trabalho sócio-cultural no Capão Redondo, bair-
ro da periferia de São Paulo (24 de janeiro de 2004).
23 Estes encontros ocorriam, via de regra, às segundas-feiras, das 20h00 às 23h00, na Casa
Nº 1, envolvendo todos os criadores e colaboradores do trabalho. Eles não eram abertos
ao público.
125
• "A forma difícil: artes plásticas no Brasil", com o crítico de arte Rodrigo
Naves (30 de abril);
• "Trem-fantasma: a modernidade na selva", com o pesquisador e crítico lite-
rário Francisco Foot Hardman (7 de maio);
• "Sociologia das religiões no Brasil", com o sociólogo Antônio Flávio Pieruc-
ci (14 de maio);
• "Tráfico e crime organizado no Brasil", com o juiz e ex-secretário nacional
antidrogas Walter Maierovich (11 de junho).
24 Foi publicado um diário de viagem, na Folha Online, escrito pelo dramaturgista Ivan
Delmanto, no qual ele relata impressões pessoais e tece análises sobre sua experiên-
cia durante o percurso. O endereço do site é:http://www1.folha.uol.com.br/folha/espe-
cial/2004/teatrodavertigem/diario_de_viagem.shtml
126
Chico Mendes. Visita ao “museu” do Sr. Antônio: dois galpões com todos os
tipos de vestígios, jornais, garrafas, rótulos e sucatas, colecionados há vários
anos por ele. Encontro com o irmão de Chico Mendes, no Sindicato dos Tra-
balhadores Rurais (21-22 de julho);
• Brasiléia: Visita à Rua da Goiaba e conversa com vários moradores antigos
da cidade, como Dona Oceana, Seu Dadá e Seu Sebastião. Noite no Forró
da Cacilda. Visita ao Seringal Bom Sucesso. Encontro com o historiador
Marcos Fernando. Encontro com o Dr. Tufic, representante da comunidade
libanesa local. Encontro com Iamar Pinheiro, filha de Wilson Pinheiro, e
com o líder seringueiro Osmarino Amâncio. Visita a Epitaciolândia, cidade
fronteiriça “rival” de Brasiléia e encontro com Gislene Salvatierra. Acom-
panhamento da eleição para presidente do sindicato dos seringueiros de
Brasiléia e entrevista com integrantes das duas chapas. Visita ao Centro
Cultural de Brasiléia. Livre-investigação da cidade e encontro com diversos
moradores (entre os quais, parteiras, benzedeiras, seringalistas, delegado
de polícia, radialista, prefeito, etc.), realizados individualmente ou em du-
plas (22 de julho a 01 de agosto);
• Assis Brasil: Visita à tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Bolívia. Parti-
cipação na Festa de Congraçamento dos Povos. Estadia por dois dias, de
parte do grupo, na aldeia indígena dos Jaminawa (24 de julho);
• Cobija: Visita à cidade boliviana que faz fronteira com Brasiléia. Visita ao
Cristo Seringueiro, na Igreja Nuestra Señora Del Pilar. Encontro com a “Rai-
nha Mariana”, uma louca de rua, na praça central da cidade (27 de julho);
• Rio Branco: Encontro com Gregório Filho, presidente da Fundação Elias
Mansour. Primeira avaliação da viagem. Volta a São Paulo. (02-03 de agosto).
Nós estamos na fase das improvisações [...]. Eu não agüento mais [...]. Para minha
estupefação, a minha trama inicial se modifica pouco a pouco, e, freqüentemente,
para pior – sobretudo quando as improvisações são confiadas a algum dos trinta
jovens atores estagiários [...]. Eles me dizem que isto faz parte do processo. E que
sou eu quem deve se adaptar. [...] É difícil controlar a minha expressão de frustra-
ção e de ódio, para não falar do meu desespero [...]29.
carvalho, b. “Je hais les acteurs”. In: Libération, 5 e 6 de março de 2005, p. 45.
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133
fetos ao longo dos ensaios. Talvez por sua pequena prática em dinâmicas de criação
grupal, Carvalho demonstrou maior dificuldade tanto para lidar com os humores e
instabilidades dos outros criadores, quanto para assimilar o ininterrupto jorro propo
sitivo do processo. Diversas vezes, inclusive, em razão da ênfase com que defendia
seus pontos de vista, a sua convicção era interpretada como rigidez ou intransigência.
Esse conjunto de aspectos acarretou, infelizmente, o crescente distanciamento entre
atores e escritor.
As rusgas e polêmicas advindas do embate desses dois pólos atravessaram todo
o processo, já desde a apresentação inicial do argumento. Nos momentos de maior
acirramento do conflito, a encenação ocupava um papel de mediação e de gerencia-
mento da crise. Contudo, tal função apaziguadora teve um custo artístico – e pessoal
– alto. Muito do tempo destinado à criação foi subtraído para discussões do relacio-
namento grupal, esfriamento dos ânimos ou intermináveis convencimentos sobre a
qualidade das proposições. Nunca antes essa figura de “diretor-bombeiro” havia sido
tão requisitada nos processos de trabalho do Vertigem.
Este teor polêmico, interno ao grupo, também ocorreu durante a recepção. A dra-
maturgia de BR-3 foi muitas vezes atacada como o “problema” do espetáculo. Curio-
samente, essa avaliação negativa – a nosso ver, injusta – também recaiu sobre o texto
de Apocalipse 1,11. Tal reincidência crítica suscita um questionamento: em que medida,
no diálogo entre dramaturgia e encenação, determinadas opções cênicas acabam por
dificultar a leitura da dimensão textual? Se, por um lado, na dinâmica colaborativa, é
absurdo dissociar essas duas instâncias, por outro, a encenação pode criar “obstáculos”
à compreensão, como por exemplo, ao optar por um espaço não-convencional.
No caso de BR-3, a dramaturgia colocava um enorme desafio para a encenação, con-
cernente à comunicação – ou à explicitação – de sua complexa narrativa. Como fazer
com que a platéia pudesse acompanhar o entrecho e as reviravoltas daquela saga bra-
sileira? Como encenar uma peça-romance ou uma peça-filme? Talvez, uma possível
solução fosse a da concentração do foco ou a da limpeza na linguagem cênica. Contudo,
ao contrário, a encenação também ela se caracterizou por uma dimensão épica. O re-
sultado, então, nesse caso, foi marcado pela justaposição de transbordamentos cênicos
e narrativos. O que, de novo, nos faz questionar: tal conjugação – por seu caráter dupla-
mente excessivo – não provocaria ruídos de leitura para ambas as instâncias?
Por outro lado, a experiência cênico-fluvial do espetáculo não espelharia – e, portanto,
intensificaria – a viagem das personagens, no plano ficcional? Ou ainda, o périplo pelo Tietê
não agregaria um fator de vivência ou de “realidade” para os espectadores, potencializando
– e materializando – o caráter de epopéia da narrativa? Esses questionamentos suscitam
considerações controversas, pois as mesmas opções de direção podem, simultaneamente,
– e às vezes, dentro da mesma cena –, dificultar e contribuir para o fortalecimento de aspec-
tos da dramaturgia. Nesse sentido, sem pretender estabelecer um juízo definitivo sobre a
questão, cabe-nos, ao menos, apontar a existência de tal tensão no espetáculo BR-3.
134
Outro ponto passível de discussão refere-se à pesquisa teórica. Como ocorrera em O Paraí-
so Perdido, o grupo parece ter novamente se estendido em demasia na quantidade de leituras,
encontros e seminários. O problema, talvez, não resida no excesso de material teórico estu-
dado – diferentes e múltiplas informações podem provocar os criadores de forma imprevi-
sível –, mas, sim, na duração ou estruturação desta etapa dentro do processo. Por exemplo,
se ao invés de seis meses ininterruptos de um módulo de palestras e debates, houvesse a
alternância com momentos práticos de criação, o aproveitamento das informações em sala
de ensaio e a sua incorporação à própria feitura da obra poderiam ter sido maximizados.
As oficinas em Brasilândia significaram outro grande aprendizado nas intervenções
pedagógicas do grupo. Nunca antes tínhamos realizado, com tanto cuidado, o plane-
jamento e a aproximação a uma comunidade específica. Desde a escolha do que seria
desenvolvido até a orientação por parte de uma profissional especializada na área (Ma-
ria Lúcia Pupo), a tentativa do grupo foi a de buscar um diálogo consistente e maduro
com os moradores locais. Procurou-se fugir da lógica “oficineira” – em geral associada
à obrigatoriedade de contrapartida social –, que substitui a qualidade da experiência
pelo mero cumprimento de tarefa assistencial.
Além disso, o dia-a-dia das oficinas trouxe desafios enormes. Por exemplo, como
conduzir uma experiência de criação literária com alunos mal-alfabetizados, pouco
interessados na escrita e cujo principal meio de expressão se dava pela oralidade?
Ou ainda, como estimular a invenção de figurinos em alunos que pretendiam apenas
aprender a costurar? As faltas constantes, os abandonos temporários ou definitivos
e a entrada de novos alunos durante todo o tempo de duração das oficinas, fizeram
parte dos percalços com os quais o grupo teve que aprender a lidar. A realidade, ali,
era bastante distinta das experiências pedagógicas em escolas formais, e mesmo dos
workshops e cursos livres já ministrados pela companhia.
Houve também a preocupação com a continuidade ou permanência das atividades
iniciadas pelo grupo. Procurou-se, por exemplo, identificar lideranças dentro das classes
e fornecer-lhes um apoio suplementar de formação, a fim de que os trabalhos pudessem
ter prosseguimento sem a presença do Vertigem. A oficina de cenografia realizou, inclu-
sive, uma intervenção no próprio local do curso, com o objetivo de melhorar, visual e
espacialmente, as condições físicas do ambiente30. Houve ainda a organização de uma
série de atividades extraclasse como visitas a museus, teatros, empresas de som ou luz,
no sentido de ampliar a visão dos alunos em relação à arte e ao teatro.
30 � Segundo o relato de Márcio Medina, coordenador desta oficina, houve “um trabalho, em
mutirão, com a comunidade local, de limpeza do terreno em torno da Casa de Cultura.
Cada aluno ‘adotou’ uma pedra, que pintou de branco, desenhou com carvão e depois fez a
sua pintura. Nessa última fase, pintamos externamente a unidade e, com a participação de
grafiteiros locais, os alunos desenharam e pintaram imagens e mensagens sobre diversos
temas levantados por eles, tais como cidadania, preservação da natureza, diferenças”, in
fernandes, s.; audio, r. Teatro da Vertigem – BR-3, São Paulo: Perspectiva/edusp, 2006, p. 98.
135
Para além das “armadilhas” presentes em empreitadas desta natureza – como a mera
contemplação turística ou o extrativismo predador de informações – um aspecto cen-
tral de nossa experiência foi a realização de uma viagem coletiva. Dezoito pessoas viajan-
do juntas, durante cerca de trinta e cinco dias, rumo ao Brasil profundo. Esta vivência
comunitária, este cruzamento cotidiano de impressões, este compartilhamento de inti-
midades – acordávamos juntos, tomávamos as refeições em horários semelhantes, divi-
díamos os banheiros, viajávamos durante horas a fio, um ao lado do outro–, foi tecendo
uma base comum para o processo e a criação que se descortinavam à nossa frente.
Além disso, o foco inicial da pesquisa foi adquirindo novos contornos. Além de
Brasilândia, Brasília e Brasiléia, outras cidades ou pontos de parada no percurso, fo-
ram ganhando importância. A experiência das distâncias e dos trajetos de ligação
cardoso, �s. “O olhar viajante (do etnólogo)”. In: novaes, a. (org.), O Olhar. São Paulo: Cia.
31 ����������
das Letras, 1988, p. 347-360.
136
também se afirmou como tema nuclear, quase equivalente à das três localidades
escolhidas. BR-3, portanto, falaria de uma jornada e de um grupo de artistas-viajantes,
à luz da contaminação provocada pela vivência de determinados lugares, e dos deslo-
camentos geográficos entre eles. O prefixo “brasil” não apenas unificava o percurso,
mas também flagrava tudo o que nele é separado, distinto e mal integrado.
Essa viagem coletiva foi tão marcante no processo que, de certa forma, ela vai de-
terminar o próprio suporte do espetáculo. O que é proposto aos espectadores, ao en-
trarem num barco e cruzarem 14 km de trecho urbano do rio Tietê, é justamente uma
experiência de deslocamento geográfico, de expedição pela cidade. BR-3 é uma “peça
de viagem” que espelha o deslocamento país adentro realizado pela companhia.
Quanto ao tratamento idealizado pela encenação para o tema da identidade nacio-
nal, pretendia-se passar ao largo de discursos patrióticos oficiais. O que interessava
ao grupo era a noção de identidades dinâmicas e móveis – ainda que essa mutabilida-
de ocorresse dentro de limites, sem se abrir indefinidamente. Refutava-se a idéia de
uma identidade nacional rígida, por se tratar de um conceito, via de regra, utilizado
como mecanismo de manutenção do poder, de controle sobre um grupo social, ou
ainda, como estratégia de manipulação política.
Além disso, discutir “identidade brasileira” a partir dos três locais escolhidos já
era, por si só, problemático. Brasilândia – ao contrário da Mooca, ou do Bixiga – não é
um bairro com características identitárias especialmente marcantes. Compõe, junto
com outras regiões periféricas da cidade, zonas urbanas com perfis assemelhados
de pobreza e exclusão. Brasília, ao contrário, apresenta traços arquitetônicos ímpa-
res, símbolos não só locais, mas nacionais. Porém, trata-se de uma cidade construída
artificialmente, “de cima para baixo”, refém de uma identidade forjada de antemão.
Brasiléia, por sua vez, é cidade de fronteira, de passagem, de trânsito entre brasilei-
ros e bolivianos. Uma cidade em que se fala português e espanhol, e onde essas duas
nacionalidades convivem e se estranham ao mesmo tempo.
Portanto, o projeto BR-3 tratava de três regiões onde a questão da identidade era
complexa e difícil de ser apreendida, pois ela se relativizava a todo tempo. Contudo,
essa zona do contraditório ou paradoxal, em que a identidade é problema, crise ou
quase impossibilidade, pareceu constituir um lugar privilegiado e estimulante para
discutir a “brasilidade”.
Foi-se encaminhando, então, para noções de identidade vinculadas a uma pers-
pectiva mais temporal do que geográfica, como se se tratasse de um “vir-a-ser” ou de
“instantâneos de identidade”, que se precipitam e evaporam a todo o momento. Nes-
se sentido, buscou-se materializar, no texto e na cena, identidades flutuantes, fluidas
e turvas, como o próprio rio onde a peça se passaria.
Daí porque tal abordagem ficava potencializada pelo espaço cênico proposto pelo
encenador. Os espectadores, colocados longe da terra firme, balançando de um lado para
outro dentro da embarcação, vivenciariam uma instabilidade física real, reflexo de iden-
137
32 Para o desenvolvimento deste treino, o grupo contou com assessoria de Cuca Bolaffi
(máscara neutra) e de Daniela Biancardi e Luciana Viacava (máscara expressiva; análise
do movimento e jogo da máscara).
139
35 �����������������������������������������������������������������������������������
O grupo contou com a assessoria vocal de Mônica Montenegro, que já havia trabalha-
do com a companhia em Apocalipse 1,11.
141
36 � Os estagiários de Direção que acompanharam o processo até a sua última etapa foram:
André Queiroz, Carol Pinzan, Marília Risi e Suzana Aragão.
142
37 Luciana Schwinden retornará a BR-3 dois meses antes da estréia, substituindo a atriz Tel-
ma Vieira, impossibilitada de continuar no trabalho em razão de uma gravidez de risco.
143
prerrogativa moral, como, por exemplo, as atrizes não poderem conversar com os ma-
rinheiros ou operários.
Após a construção do barco dos espectadores, denominado Almirante do Lago, a
situação melhorou um pouco. Foi possível instalar um sistema provisório de som
– com o qual, por meio de microfone, o diretor conseguia se comunicar diretamente
com os atores –, além de se tornar factível a marcação das cenas no espaço de acordo
com o ângulo de visão que os espectadores teriam durante o espetáculo. Graças à
presença do Almirante do Lago, o grupo passou a contar com dois barcos de apoio, o
que auxiliava na realização dos ensaios simultâneos.
Porém, uma situação traumática estava na iminência de irromper. Segundo a em-
presa proprietária38 da embarcação principal, a navegação durante a peça poderia ser
realizada em qualquer sentido, tanto no fluxo quanto no contrafluxo do rio. De acor-
do com sua avaliação, o “potente” motor do Almirante do Lago seria capaz de parar o
barco em ré ou de fazer qualquer manobra complexa necessária. Esta informação, é
importante ressaltar, foi confirmada e reconfirmada várias vezes.
Tomando como baliza a diminuição do tempo de duração do espetáculo, o grupo
optou pela navegação no sentido do fluxo do rio, pois ela pouparia vários minutos
de deslocamento, além de proporcionar uma passagem mais rápida de uma cena a
outra. De posse de todos esses dados, passamos várias semanas explorando e implan-
tando as cenas da peça de acordo com essa orientação fluvial. Chegamos, inclusive, a
correr a peça inteira seguindo o sentido do fluxo do rio, isto é, partindo da Ponte da
Anhangüera e desembarcando no Cebolão.
Contudo, quando o Almirante do Lago começou finalmente a navegar no Tietê, a
situação revelou-se completamente outra. Além da pouca velocidade e do motor que
fundia e quebrava freqüentemente, o barco não conseguia ficar parado no fluxo do
rio. A empresa passou dias tentando, infrutiferamente, resolver a questão. Ao final,
reconhecendo a irreversibilidade do problema, comunicou ao grupo a necessidade de
inversão do sentido da peça no espaço.
O impacto de tal notícia causou um trauma no elenco. Vários atores – justificada-
mente – caíram aos prantos, pois viram todo o trabalho árduo de semanas ir, literal-
mente, por água abaixo. A realidade, nua e crua, era que teríamos que começar do
zero novamente. Porém, não havia outra saída. Fomos obrigados a remarcar a peça
inteira, agora no contrafluxo, isto é, partindo do Cebolão e desembarcando na Pon-
te da Anhangüera. Sem dúvida, este foi o pior momento no processo de ocupação
espacial do Tietê.
Contudo, passado o trauma e a crise dele decorrente, descobrimos que, em ter-
mos de possibilidades cênicas, o sentido do contrafluxo era muito mais fecundo. Uma
vez mais, os limites à liberdade de criação mostraram-se inspiradores. Tal percepção
trouxe novo alento aos criadores, o que determinou que a remarcação espacial fosse
realizada em um tempo de ensaio proporcionalmente menor.
A encenação, por sua vez, logrou definir um conceito de utilização do espaço. As
cenas do texto situadas em Brasília seriam encenadas ao redor dos viadutos, onde o
aspecto de monumentalidade ficava evidenciado. Utilizamos, para tanto, o Cebolão, a
ponte da CPTM e o viaduto da Anhangüera. Já as cenas em Brasilândia ocorreriam em-
baixo de pontes, no sentido de acentuar o elemento de precariedade. Em função disso,
as encenamos sob a Ponte dos Remédios e sob a ponte Atílio Fontana. Por fim, aquelas
que se situavam em Brasiléia seriam apresentadas ao ar livre, nas margens e leito do rio,
reforçando o aspecto de “natureza” – salvo a cena do Seringal Egito, que demandava um
local fechado.
Um grande desafio para a encenação concernia à criação de focos de atenção num
ambiente marcado pela dispersividade39. Além dos recursos de luz – via recorte do espaço
– e de som – via uso de microfones, que auxiliavam na compreensão do que era dito – a po-
sição do barco principal e a sua distância das margens era muito importante. Um posicio-
namento errado poderia comprometer a percepção visual, prejudicando a fruição da cena.
Além disso, o excesso de afastamento do barco alargava em demasia o campo de visão do
espectador, o que desviava a atenção e “esfriava” a experiência. Daí os vários ensaios com
os marinheiros e capitães das embarcações, a fim de que eles compreendessem o rigor
exigido e dominassem tecnicamente as manobras. Fundamental também, nesse sentido,
foi o papel desempenhado por Eliana Monteiro, na coordenação da logística de cena.
Por fim, o feedback do público esteve mais organizado em BR-3 do que nos proces-
sos anteriores. A dramaturgista Sílvia Fernandes elaborou um questionário que era
entregue ao público no final da peça. O fato de os espectadores retornarem juntos,
no mesmo ônibus, em direção ao Memorial da América Latina – ponto de partida e
chegada do espetáculo –, “obrigava-os” a despender um tempo “livre”, antes da volta
às atividades cotidianas. Talvez, por essa razão, quase todos os questionários eram
preenchidos cuidadosamente.
As perguntas destinadas ao público eram as seguintes:
1) Quais são as suas impressões sobre o espetáculo? 2) Qual é sua opinião sobre o
texto? Foi possível compreender a narrativa? Quais foram as passagens em que
ela não ficou clara? 3) Qual é a sua opinião sobre a encenação? O que você achou
interessante e quais as cenas de que não gostou? 4) Qual é a sua opinião sobre a
interpretação? Como foi a experiência da voz microfonada dos atores? 5) Você acha
a peça muito longa? 6) Você teve uma boa visibilidade do espetáculo?
39 Por exemplo, em Jó, a dramaturgia tentava resolver tal problema por meio da utilização
do verso – que apresenta uma estrutura sonora sintética – e do elemento épico, materia-
lizado pela narração da história, que era constantemente retomada ao longo da peça.
146
ao vivo – o grupo discute e elege aquele com quem pretende trabalhar. Viemos in-
sistindo no termo “escritor”, pois não há a obrigatoriedade de que o convidado seja
necessariamente um dramaturgo profissional.
Após essa definição, caso seja necessário, parte-se para o convite aos outros co-
laboradores. Por mais que se busquem parcerias de longo prazo nas áreas visuais e
musicais do espetáculo, ocorre de um antigo colaborador não poder integrar o pro-
jeto naquele momento ou também do grupo querer estabelecer novos vínculos – em
geral decorrente de desgastes ou insatisfações ligados ao processo anterior.
Os procedimentos de escolha são semelhantes aos da dramaturgia. A partir de
um leque de indicações apresentado pelos integrantes do grupo, entra-se em contato
com o material produzido por esses artistas e, em alguns casos, recorre-se ainda a
encontros pessoais com os possíveis parceiros. Esse período de perscrutação e sonda-
gem é seguido da busca de um consenso relativo à escolha dos nomes.
Apesar da participação de todos nessa dinâmica de indicações e seleção, é comum
um maior engajamento dos atores na eleição do dramaturgo, e da direção na escolha
dos outros colaboradores. As razões disso, provavelmente, estão ligadas ao papel da dra-
maturgia no desenvolvimento das personagens e das falas – foco de especial interesse
dos atores – e, por outro lado, da importância do cenógrafo, figurinista, criador musical,
etc. para o âmbito da linguagem espetacular – foco de preocupação do encenador.
Pouco comum nesse momento, na medida em que o projeto apenas começa a
se esboçar, podem ser feitas também indicações para possíveis atores convidados.
Na prática do Vertigem, por haver um núcleo fixo de atores, é mais freqüente tais
escolhas ocorrerem numa etapa posterior dos ensaios, em função de necessidades
específicas do projeto.
De qualquer maneira, esta fase de definição dos colaboradores é extremamente
importante para o êxito do projeto, pois, quem colabora, colabora com alguém. Em
outras palavras, em um processo baseado na instância do compartilhamento, a de-
finição das parcerias e a formação do grupo de trabalho podem determinar tanto os
resultados quanto a própria sustentação e sobrevivência de uma prática coletiva.
tes. Além disso, eles devem adotar uma postura de observadores ativos, interferindo,
questionando, duvidando, buscando inter-relações – mesmo sem se manifestar expli-
citamente durante o ato da pesquisa.
É necessário estar atento a algumas armadilhas – ainda que seja necessário cair
nelas para poder, então, desarmá-las. A primeira refere-se ao aspecto turístico. Tal
aspecto acaba por restringir a pesquisa de campo ao simples registro do inusitado
ou à observação superficial de paisagens humanas e geográficas. A troca e o diálogo
tornam-se epidérmicos e a experiência se dilui no entretenimento.
O segundo problema é o risco do voyeurismo. Por se tratar, em alguns casos, de
situações ou locais significativamente distanciados do universo do grupo, instaura-se
um frisson ou uma curiosidade mórbida, às vezes com forte conotação sexual. Essa
possibilidade que se abre à pesquisa de campo, de penetrar em universos fechados
ou de compartilhar segredos inauditos cria um fascínio magnético e erotiza o olhar.
É claro que essa energia libidinosa pode ser útil em determinadas “aproximações”,
gerando encontros de alta voltagem e estimulando interesses mútuos e comuns. A
questão é quando tais encontros reduzem-se apenas a jogos de sedução camuflados,
a mecanismos de conquista, em que cada um quer mostrar unicamente o melhor de
si ou aparentar mais do que é. Daí, sob tais circunstâncias, a pesquisa adquire um
caráter artificial e mentiroso.
Mais pernicioso ainda é quando esse voyeurismo vem marcado por diferenças de
classe social, nível de educação ou poder aquisitivo. O “outro”, nesse caso, transfor-
ma-se em “bicho de zoológico”, ao qual se oferece uma ternura complacente e carido-
sa. A interação com o “menos favorecido” passa a ser instrumento de alívio da culpa
social ou elemento de marketing de pretensas preocupações sociais. Na perspectiva
contrária – ou seja, do ponto de vista do “objeto de estudo” – o pesquisador se reduz
a manancial de recursos, a fonte de investimento e, até mesmo, a bóia de salvação. O
grupo, então, se torna uma espécie de ONG, com o dever de alimentar, vestir, educar
ou fornecer oportunidades de trabalho.
Uma terceira armadilha diz respeito ao perigo da exploração e do extrativismo. Isto
é, a companhia coleta histórias, informações, elementos de toda ordem, apropria-se
desse material bruto recolhido, transforma-o em peça teatral – ou apenas enverniza ou
enfeita a sua obra com ele – e não disponibiliza nada em troca (é claro que o espetáculo
resultante dessa interação representa a principal “troca”; porém, muitas vezes, a comu-
nidade não é sequer convidada para assisti-lo). Quando muito, são oferecidas oficinas
O processo colaborativo, por sua própria natureza, tem um caráter aberto, agrega-
dor e inclusivo. Esta dimensão que ocorre entre os criadores, no âmbito intra-grupal,
ganha sentido e amplitude maior ao incorporar alunos, estagiários e outros observa-
dores externos durante o período de ensaios.
Mais do que apenas oferecer oficinas teatrais a possíveis interessados, procura-se
integrar os aprendizes e estagiários ao processo da criação. A idéia é que eles atuem
ativamente da feitura da obra, seja discutindo ou experimentando elementos que ve-
154
nham sendo trabalhados pela companhia, seja “colocando a mão na massa” – através
da apresentação de cenas, da proposição de workshops, da sugestão de idéias de luz,
som, figurinos, etc. – seja, ainda, participando presencialmente no espetáculo final
– como atores, operadores de som ou luz, músicos, etc.
Ao invés da idéia de “aprender para depois fazer”, procura-se incorporar o apren-
dizado ao movimento turbulento e dinâmico do próprio criar. Nesse sentido, não
existem “professores” e “alunos”, mas criadores – com maior, menor ou nenhuma
experiência – colocados juntos em situação de criação. Evidentemente que os artis-
tas do grupo funcionam como coordenadores ou orientadores de percurso, contudo,
sem a preocupação didática de um curso formal.
Por exemplo, nas oficinas ou estágios de direção que coordenamos, nunca houve
encontros sobre técnicas de direção ou teoria da encenação. Ao contrário, sentáva-
mos juntos e planejávamos o cronograma de trabalho da semana, discutíamos os
problemas internos ou as crises de processo e fazíamos um brainstorm de exercícios,
jogos e temas de improvisação para serem aplicados nos ensaios. À medida que ocor-
ria o aumento da cumplicidade entre nós, tratávamos de temas delicados ou espinho-
sos concernentes às outras áreas de criação e, inúmeras vezes, pedíamos auxílio ou
socorro aos estagiários para problemas difíceis de resolver.
Este papel do “professor em crise”, hesitante, angustiado, do mestre frágil ou
fragilizado, é um papel difícil de aceitar e de assumir – por ambos os lados. Como a
pessoa que coordena o processo pode ficar sem rumo? Como se deixar orientar por
alguém transpassado pela dúvida? Esse exercício da fragilidade, esse enfrentamento
do saber falho e incompleto exigem uma maturidade tanto do “mestre” quanto do
“aprendiz” difícil – e dolorida – de se atingir.
Contudo, se superado esse mito do “professor-sabe-tudo”, ao invés da falência da
didática, ocorre a sua revitalização. Todos aprendem e ensinam, sabem e erram, expe-
rimentam o prazer da descoberta conjunta e o terror da paralisia e da impotência. É
preciso perceber as limitações – suas e do outro – para que novos conhecimentos se pro-
duzam. Mais do que o fracasso da pedagogia temos uma pedagogia do – e no – fracasso.
No nosso caso, o que ocorre, ao longo dos ensaios, é a imbricação do artístico no
pedagógico, e vice-versa. Um alimenta e é alimentado pelo outro. O que é diferente
de desaparecerem um no outro, de se tornarem a mesma coisa. De novo, insistimos no
diálogo entre os campos, e não nas suas dissoluções. Portanto, as oficinas e os está-
gios não são simplesmente tarefas a serem cumpridas nem se reduzem a contraparti-
das obrigatórias. Elas são outra forma de exercício do colaborativo e de ampliação da
sua prática. Expõem os “oficineiros” a um processo de criação em que as fraturas es-
tão expostas. Lançam os “aprendizes” na concretude do fazer artístico, não enquanto
observadores passivos, mas como agentes de criação.
Além disso, conforme já mencionado, as oficinas também cumprem um papel de re-
torno ou devolução do grupo em relação a determinada comunidade. É importante, con-
155
tudo, a fim de evitar problemas, que os conteúdos, a freqüência e os horários sejam acor-
dados através do diálogo entre as necessidades locais e os interesses ou possibilidades da
companhia. As aulas e os estágios funcionam como um espaço de aprofundamento das
relações entre os artistas e os residentes/freqüentadores do local, estimulando o surgi-
mento de material para a criação. Se, por um lado, através de tais atividades pedagógicas,
os artistas se inserem na comunidade e passam a exercer uma função dentro dela, por
outro, aquela paisagem geográfica e humana impregna a obra em gestação.
silva, a. c. a., A Gênese da Vertigem: o Processo de Criação de ‘O Paraíso Perdido’, pp. 84-86.
157
• exercita a reflexão crítica e conceitual com respeito aos temas, por meio
de uma tomada de posição (aspecto crítico).
Além disso, o depoimento pessoal cumpre uma dupla função no processo. É, por
um lado, instrumento de investigação da pesquisa temática e, por outro, gerador de
material cênico bruto para a dramaturgia e o espetáculo. Na verdade, sob esse último
aspecto, o depoimento pessoal se torna o próprio fragmento cênico passível de reelabo-
ração. Ou seja, ele tanto é procedimento metodológico quanto resultado expressivo.
O depoimento pessoal é a base sobre a qual se constrói a criação. É em razão
dele que se consolida, por exemplo, o ator-autor. Ao invés de ser apenas tradutor,
intérprete ou repetidor de falas alheias, o ator vai produzir o seu próprio discurso,
enunciar a sua visão de mundo, ou seja, posicionar-se. Esse posicionamento é tanto
estético quanto ideológico, pertence tanto ao indivíduo-ator quanto ao cidadão-ator,
enraíza-se na vivência pessoal, mas também no contexto histórico-social em que ela
está inscrita, em suma, constrói uma formulação que imbrica arte e vida.
No processo colaborativo, portanto, o ator não apenas representa personagens, mas,
sobretudo, efetua um depoimento artístico autoral. Sob este ângulo, ele se aproxima
da idéia de performer, que cria a partir da sua visão de mundo particular, trazendo para
a cena uma presentificação – ou reelaboração – de sua própria história de vida.
Do ponto de vista estritamente interpretativo, a prática do depoimento pessoal,
por seu caráter confessional, vai estimular no ator um estado de abertura e despren-
dimento, provocando o que poderíamos chamar de desvelamento. Nesse sentido, o
depoimento pessoal se constitui em ferramenta capaz de interferir nos mecanismos
de bloqueio do ator, estimulando a sinceridade e a entrega. Ele contribui também no
processo de autoconhecimento do ator, imbricando prática artística e experiência de
vida, consciência da obra e consciência de si.
Segundo Mário Santana, em sua análise sobre o depoimento pessoal, a sua função é
[...] fornecer aos atores estímulos de superação das próprias limitações, é buscar que
se deixem em condições de dar vazão ao interdito e ao indizível; àquelas possibilida-
des de fala pessoal onde o insólito, o inusitado ou o insuportável brotam de impulsos
pessoais profundos e livres de compromissos com estruturas expressivas prévias.
santana, m. a. A Cena e a Atuação como depoimento estético do ator criador nos espetáculos ‘A
Cruzada das Crianças’ e ‘Apocalipse 1,11’. 2003. 197 f. Tese (Doutorado em Artes) – Escola
de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, p. 154.
158
e críticas, os outros atores também se contaminam por tal atitude, e um espírito co-
letivo de respeito mútuo, de parceria e de cumplicidade vai se consolidando.
Contudo, é importante ressaltar que, apesar do caráter de auto-exposição ineren-
te a essa abordagem, é o ator quem decide que material ou que memória de seu “baú
pessoal” ele pretende compartilhar com o grupo. Estabelece-se um pacto, inclusive,
de que ninguém deverá expor algo com que não se sinta apto a lidar ou que ainda não
esteja suficientemente “trabalhado” no plano subjetivo. O limite entre desvelamento
e terapia de grupo é tênue, com o agravante de que não possuímos capacitação pro-
fissional na área psicológica para coordenar – ou socorrer – tais desvios. E, sobretudo,
porque o nosso objetivo é, na origem e no final, a realização de uma obra artística.
Quanto ao diretor, ele cumpre um papel importante no sentido de estimular e
acirrar os pontos de vista de cada integrante em relação ao projeto e de incitar os
atores a investigarem a si mesmos e a extensão dos seus limites. Ele deve evitar a cen-
sura e o menosprezo a posicionamentos mais frágeis ou confusos, a fim de não criar
uma atmosfera de intimidação.
Como já dissemos, será da intensificação deste olhar individual que emergirá a
visão panorâmica do conjunto. A radicalização das singularidades abre espaço para
que os diferentes dialoguem, contraponham-se e, na seqüência, o conjunto se afirme.
O ator submisso, que não se posiciona – o que é diferente do ator neutro, já que a
neutralidade pode implicar num posicionamento –, é um entrave à polifonia grupal.
Pois é justamente do embate de múltiplos depoimentos pessoais que se construirá o
depoimento coletivo.
dos clichês que, se reelaborados, poderiam ser úteis à discussão. Por exem-
plo, em Apocalipse 111, como contraponto ao exercício de vivência acima
descrito, foi proposto aos atores que trouxessem todas as suas imagens de
fim de mundo e de destruição, da Bíblia às histórias em quadrinhos, sem
medo de caírem na obviedade. A idéia era que “colocassem para fora”, que
“gastassem” tudo aquilo que parece ter se impregnado e cristalizado no
seu imaginário;
• Improvisações temáticas: realizadas com o propósito de mapear os temas
e subtemas do projeto e, num segundo momento, aprofundar a discussão
dos recortes estabelecidos;
• Improvisações de personagens: importantes tanto no levantamento geral
de possíveis personagens para a dramaturgia quanto, depois, para o me-
lhor delineamento delas e de suas relações.
5.10 Pergunta/resposta
5.12 Workshop
decida por sua montagem oficial. O workshop, portanto, assume o caráter de teste, de
livre-exploração artística sem as pressões de produção, isto é, torna-se um espaço de
“segurança e intimidade”, como definido por Schechner. Segundo o diretor e teórico
americano, o “workshop é um tempo/espaço protegido onde as relações intra-grupais
podem se desenvolver sem serem ameaçadas por agressões extra ou inter-grupais”.
Talvez, em decorrência dessa idéia de “livre-experimentação”, o termo workshop vai
ganhar ainda uma terceira conotação. Entramos em contato com ela pela prática de
trabalho do grupo Boi Voador, dirigido por Ulisses Cruz. Nesse importante grupo pau-
lista da década de 80, o workshop traduzia a idéia já mencionada de uma “quase-cena”,
que era apresentada pelos atores durante o processo de montagem do espetáculo.
Uma pequena diferença entre esta prática e aquela realizada pelo Teatro da Verti-
gem repousa no fato de o Boi Voador – e de outros grupos da época – usar o workshop
principalmente em peças prontas ou em adaptações. Ele era um instrumento desti-
nado, com maior ênfase, à encenação e ao levantamento do espetáculo. No caso do
Vertigem, além de cumprir esse papel, o workshop tem importância fundamental na
criação e construção da dramaturgia.
É justamente no período de elaboração do texto que ocorre o maior número de
workshops. Evidentemente, eles servirão também à criação do espetáculo, porém, o
seu foco, nesse momento, está colocado no levantamento de material para o roteiro
e na investigação de possíveis personagens. Na última fase dos ensaios, pouco após a
entrada no espaço, a dinâmica de workshops deixa de existir.
Quanto à sua mecânica de funcionamento, trabalhamos sob determinados parâ-
metros, pactuados pelo grupo inteiro. Todos os dias, ao final do ensaio, o dramaturgo
e o diretor – ou apenas este último – propõem um estímulo para ser trazido na forma
de workshop no dia seguinte – ou no máximo dois dias depois, se assim determinado.
Esse estímulo pode ser uma palavra, uma frase, uma imagem ou um fragmento de
texto. No dia seguinte, todos os atores devem apresentar o seu workshop, o qual tradu-
zirá a visão pessoal daquele ator em relação à proposição dada.
À medida que os ensaios vão se desenrolando, é comum algum dos atores não
querer apresentar o seu workshop. Porém, em função do pacto firmado, tal possibili-
dade não existe. Ou seja, ele deve elaborar alguma cena, seja no intervalo do café ou
mesmo minutos antes de se apresentar. Este cotidiano de intensa profusão de cenas,
de incessante brainstorm gera um material heterogêneo e desigual. Por outro lado, po-
rém, esse caos criativo contínuo vai esgotando as idéias-prontas e abrindo o processo
para textos, imagens e soluções inesperadas.
Assim, a exaustão física grotowskiana parece, no processo colaborativo, ganhar
uma dimensão ligada à exaustão de propostas – idéias, textos, imagens ou cenas – as
quais os atores devem produzir no calor da hora do ensaio ou nos workshops trazidos
de casa. Contudo, essa exaustão não é aquela do cansaço, mas sim, do esgotamento
– no sentido deleuziano do termo. Isto é, não ocorre a extenuação, a desertificação
artística, mas sim, um esgotar total de possibilidades que acaba provocando o apare-
cimento inesperado de novas idéias ou conformações.
Poder-se-ia perguntar aonde desemboca tanto material cênico e textual produzido
nos workshops e improvisações. Conforme apontamos em nossa dissertação, uma par-
te dessa produção, de fato, se perde; outra parte se materializa no corpo dos atores
– ainda que de forma não explícita, como, por exemplo, numa qualidade de presença
– e uma última parte, enfim, se concretiza em cena. Ou seja, nem tudo se perde, mas
também nem tudo se transforma.
É fundamental que os atores se sintam livres para trazer de casa, naquelas 24
horas de preparação, o que quer que seja. Não deve haver censura, nem recusa de
nenhum impulso ou desejo que lhes ocorrer. Eles apresentam, então, um esboço de
cena ou uma improvisação estruturada, em que criaram e/ou selecionaram o texto
– se houver – as imagens, a música, os objetos, o espaço, a luz e os figurinos. Em
outras palavras, eles se exercitam enquanto atores-dramaturgos, atores-encenadores,
atores-cenógrafos e assim por diante – o que é diferente de se tornar ou assumir o
lugar do dramaturgo, do encenador ou do cenógrafo.
Além disso, a qualidade plástica ou técnica relativa a essas áreas não é o que
vem em primeiro lugar. O que importa é a materialização de um conceito ou de um
ponto de vista. Apesar disso, na prática, alguns workshops revelam alto grau de ela-
boração estética.
Após as apresentações do dia, o grupo todo realiza uma discussão sobre o que foi
visto e, a partir desse feedback, o diretor ou o dramaturgo pode solicitar a reelabo-
ração do material. O intuito é desenvolver melhor alguma idéia ou imagem cênica,
permitindo o aprofundamento do ator em relação às suas próprias visões. Não é inco-
mum, portanto, os atores apresentarem duas ou três versões de um mesmo workshop
– às vezes até com acréscimos de texto propostos pela dramaturgia.
Apesar de o depoimento pessoal ser inerente a tudo o que ocorre em sala de ensaio,
ele fica maximizado nos workshops. Isto, provavelmente, em decorrência da formaliza-
ção cênica por eles exigida. Em outros tipos de improvisação, por exemplo, é comum a
alternância de momentos de acirramento e de diluição deste depoimento. O workshop,
ao contrário, exige uma síntese artística que estimula o ponto de vista individual.
Não devemos nos esquecer, porém, que apesar de planejado solitariamente por
um ator, ele acaba congregando o grupo inteiro em sua execução. Na maior parte
das vezes, esse ator-encenador convida os outros intérpretes a participarem de sua
proposta. Não há ensaio, tudo é combinado na hora e improvisado ali mesmo. No
entanto, seguindo as indicações de uma estrutura dramatúrgica e cênica elaborada
previamente pelo ator-proponente.
Essa dinâmica propositiva individual acaba fomentando, como já vimos, um tipo
de dramaturgia monológica. Contudo, tal tendência pode ser revertida por meio da
firme interferência do dramaturgo durante a elaboração do texto. Ela também pode
ser atenuada pelo estímulo do encenador à realização de exercícios dialogados e de
um maior número de improvisações coletivas.
Porém, a natureza pessoal e particular do workshop não é a responsável pela trans-
formação da peça numa descosida colcha de retalhos. Não nos esqueçamos de que es-
sas “quase-cenas” aparecem com maior força na primeira etapa do trabalho. Ou seja,
ainda que tenhamos uma constelação de discursos individualizados, não conectados
entre si, eles só explicitam os diferentes pontos de vista presentes no grupo. O passo
seguinte do processo, como veremos, consiste na busca dos mínimos denominadores
comuns e na conseqüente construção de um discurso coletivo.
Por fim, gostaríamos de apontar que, na seqüência das atividades de um dia de
ensaio, o workshop aparece como a última dinâmica, sendo seguido apenas pela ava-
liação grupal do que foi desenvolvido naquele encontro. A idéia é de um encaminha-
mento que vá “aquecendo” criativamente os atores. Parte-se do treinamento direcio-
nado, de caráter mais físico, para uma instância mais subjetiva, materializada pelas
vivências. A seguir, vêm as improvisações – grupais, em duplas ou em trios; temáti-
cas; de personagens; escrita automática; pergunta/resposta, etc. – e somente então,
são apresentados os workshops, culminado o dia de trabalho. Portanto, resumindo, a
seqüência que geralmente é empregada nos ensaios é a seguinte:
Quais são os critérios que orientam a escolha do material, tendo em vista a enor-
me quantidade de exercícios, improvisações e workshops realizados durante a fase
inicial dos ensaios? É neste momento que a existência de funções artísticas definidas
cumpre um papel fundamental.
166
É claro que tudo o que é produzido ao longo do processo vai sendo debatido, dia-
riamente, por todos os integrantes. Essa dinâmica cotidiana de discussão estimula
o reconhecimento de zonas de interesse comum e, também, é lógico, das áreas de
conflito. Daí que, uma parte das escolhas ocorre organicamente, por meio do diálogo
e da negociação, cabendo ao dramaturgo ou ao diretor apenas o papel de facilitar,
mapear ou organizar as distintas sugestões e opiniões. Ambos podem contribuir tam-
bém para deixar explícito e assumido aquilo que o grupo deseja excluir da obra, ou
seja, funcionariam como uma espécie de consciência da via negativa do trabalho.
Contudo, outra parte da seleção – seja pelo seu caráter mais polêmico, duvidoso ou
delicado – é difícil de ser feita. Por exemplo, em razão do apego aos próprios depoimen-
tos pessoais – atitude compreensível e justificável – os atores tendem a lutar pela perma-
nência de um volume de material maior do que o desejável. Daí se tornar premente a
interferência incisiva, do dramaturgo e do diretor, em relação às escolhas a serem feitas.
Nessa etapa do processo, por exemplo, é necessária a transformação das idéias e
proposições em um canovaccio. Portanto, o dramaturgo precisa chamar a responsabili-
dade para si em relação a essa estruturação. Tarefa difícil, pois se parte de um momen-
to em que tudo pode, marcado por vigorosa ebulição criativa, para a primeira tentativa
de roteirização, na qual deve imperar uma rigorosa e cuidadosa seleção. Desnecessário
dizer que, em geral, esse é o primeiro grande momento de crise no processo.
A tarefa da dramaturgia não se restringe apenas a apontar o que fica e o que sai,
mas também a identificar o material que carece ainda de maior desenvolvimento – o
que significa a necessidade de mais improvisações e workshops. Porém, o fator mais
determinante dessas escolhas é justamente a própria cena. Isto é, aquilo que funciona
ou não, teatralmente. Deve-se evitar transformar essa etapa de seleção numa arena
argumentativa, na qual a esgrima verbal e a retórica discursiva tornam-se as principais
fontes de convencimento. Ao contrário, é a cena que deve nos dizer – e convencer – do
que, de todo o material levantado, deve permanecer ou ser eliminado. Como afirma
Luís Alberto de Abreu, a cena “é o fiel da balança e, como algo concreto e objetivo, é
hierarquicamente superior à idéia, à imagem, ao projeto, às visões subjetivas”10.
Alonso Alegría, dramaturgo e diretor teatral peruano, identifica nessa etapa do tra-
balho um dos pontos mais problemáticos da criação coletiva. Segundo ele, “é uma
miscelânea de coisas, tem muitas mãos nesse prato, (...) quem quiser trazer o seu, pode
trazer o seu, e como não é aceitável que um indivíduo diga em relação aos dez temas
ou dez cenas apresentadas pelos dez integrantes do grupo, que diga para examinarmos
uma e abandonarmos as outras nove, isso é impossível, porque isso não é muito cole-
tivo. Como não há um diretor autoritário, não existe quem possa dizer isso e, então,
o que acontece? Opta-se por apresentar as cenas de todo mundo ou aquelas em que
tenha havido um consenso, ao invés de – desnecessário dizer – colocarmo-nos todos
de acordo para escolher um único incidente, para examiná-lo com profundidade” [In:
céspedes, f. g. (org.). El Teatro Latinoamericano de Creación Colectiva., pp. 64-65].
10 abreu, l. a., “Processo Colaborativo: relato e reflexões sobre uma experiência de cria-
ção”. In: Cadernos da ELT, p. 38.
167
Abreu define cena “não como a unidade acabada, mas qualquer organização de
ações proposta por atores, diretores ou dramaturgos”11. Portanto, a idéia é observar
atentamente o conjunto do material cênico produzido até ali – o qual, evidentemen-
te, apresenta uma qualidade precária e inacabada – e “perguntar” a ele ou encontrar
nele, as balizas do roteiro.
É importante ter em mente que, além dos critérios gerais até aqui levantados,
cada obra vai demandar ou criar os seus próprios critérios de seleção. Ou seja, o pro-
cesso de elaboração do texto – e da cena – gera os seus parâmetros específicos de es-
colha. Daí a necessidade de se estar atento ao fluxo da criação e de desenvolver uma
capacidade de escuta que permita identificar tais parâmetros no seu nascedouro – ao
invés, simplesmente, de impor uma visão exógena e desconectada do processo.
5.14 Canovaccio
11 abreu, l. a., “Processo Colaborativo: relato e reflexões sobre uma experiência de cria-
ção”. In: Cadernos da ELT, p. 38.
12 Ibid., p.38.
13 Ibid., p. 38.
168
sendo criado em ensaio. É essa tensão entre voz individual e voz coletiva, marca – e
cicatriz – do processo colaborativo, que deverá moldar o corpo do canovaccio.
Na prática do Vertigem, costumamos também denominar esse primeiro roteiro-
geral como “esqueleto” ou “varal de cenas”. Além disso, já experimentamos esboçar
inicialmente um argumento – espécie de sinopse do trabalho, na qual, em um ou dois
parágrafos, são descritas as circunstâncias centrais e as trajetórias das personagens
– para só então haver a construção do canovaccio.
5.16 Feedback
5.17 Roteiro
É freqüente o acirramento dos ânimos nessa etapa, já que de todas aquelas pos-
sibilidades infinitas de obras, esboça-se a materialização de apenas uma. O ator, por
exemplo, não improvisa mais longos monólogos, devendo, ao contrário, memorizar
um conjunto reduzido de frases. Tudo começa a ser sintetizado e o grupo é obrigado
a encarar as resultantes de seu esforço. Além disso, esse é o momento em que ainda
cabe alguma grande modificação estrutural. Daí a presença de um maior fôlego nos
embates e discussões.
Se, por todas as razões expostas, a dramaturgia encontra-se na berlinda, sofren-
do pressões de toda ordem, a encenação, por sua vez, está mais livre para realizar
experimentações. É o momento em que são testadas possibilidades de estilos, de
linguagens, de espacializações e de atmosferas. Por não estar no foco das atenções,
o diretor adquire um espaço privilegiado para testar as suas idéias e encaminhar os
seus decorrentes desdobramentos. O mesmo ocorre com os outros criadores. A cada
semana, nessa fase, figurinista, cenógrafo, iluminador e diretor musical utilizam o
“corrido” para experimentar as suas propostas. Isto cria uma ebulição artística, uma
efervescência teatral, que torna cada “corrido” um espetáculo à parte.
Apesar da imbricação e da simultaneidade de todos os aspectos da montagem, se-
ria oportuno relembrar o trajeto percorrido pela escritura dramatúrgica:
trumento para a descoberta das ações – instrumento este que se encontra ancorado
no esqueleto da peça – possibilitando aos intérpretes, a partir daí, a memorização
do texto.
Segundo Bella Merlin, o objetivo central da Análise Ativa, além de retirar o ator
da passividade inerente às “leituras de mesa”, é fazê-lo encontrar a partitura das
ações físicas. Para tanto, realiza-se a seguinte seqüência:
15 merlin, b. The Complete Stanislavsky Toolkit. London: Nick Hern Books, 2007, p. 197.
174
houaiss, a.; villar, m. s. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,
2001, p. 1402.
� ferreira,
�������������
a. b. h. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa 3. ed. Rio de Janeiro:
�����
Nova Fronteira, 1999, pp. 951-952.
in brugger, W. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Editora Herder, 1962, p.256.
180
� dort, b. “Condição Sociológica da Encenação Teatral”, in: O Teatro e sua Realidade, São
������ ��
Paulo: Editora Perspectiva, 1977, pp. 83-99 (grifo nosso).
� Ibid., pp. 97-99 (grifo nosso).
181
guinsburg, Jacó. Da Cena em Cena. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001, p. 26.
dort, b. “Condição Sociológica da Encenação Teatral”, pp. 97-98.
� pavis, �� La Mise en Scène Contemporaine: origines, tendances, perspectives. Paris: Armand Co-
������� p.
lin, 2007, p. 11.
182
� pavis, �� O Teatro no Cruzamento de Culturas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2008, pp. 23-27.
������� p.
183
10 lehmann, h.-t. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 223.
11 féral, j. “Performance et théâtralité: le sujet démystifié”. In: féral, j.; savona, j. l.; walker,
e. a. (dir.). Théâtralité, écriture et mise en scène. Quebéc:
��������������������������������
Éditions Hurtubise HMH, 1985, p. 135.
12 glusberg, j. A Arte da Performance. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987, p. 73.
13 féral, op. cit., p. 131 (grifo do autor).
184
Apesar da ênfase para a atuação a performance não é um teatro de ator, pois, [...] o
discurso da performance é o discurso da mise en scène, tornando o performer uma parte
e nunca o todo do espetáculo (mesmo que ele esteja sozinho em cena, a iluminação,
o som etc. serão tão importantes quanto ele – ele poderá ser todo enquanto criador
mas não enquanto atuante) [...] O performer, à medida que verticaliza todo o proces-
so de criação teatral, concebendo e atuando, se aproxima da pessoa descrita por
Appia em A Obra de Arte Viva, que acumularia as funções de autor e encenador.15
obra em que nem o texto, o ator ou a encenação têm caráter epicêntrico. Ou seja, a
resultante do espetáculo – como no caso da performance - reflete uma alternância de
dominâncias textuais, cênicas, interpretativas, etc. ao longo de sua apresentação.
Contudo, uma diferença pode ser encontrada na análise distintiva que Renato
Cohen faz entre happening – de caráter mais grupal – e performance – de natureza
preponderantemente pessoal. Nesta última,
[...] o trabalho passa a ser muito mais individual. É a expressão de um artista que verti-
caliza todo seu processo, dando sua leitura de mundo, e a partir daí criando seu texto
(no sentido sígnico), seu roteiro e sua forma de atuação. O performer vai se assemelhar
ao artista plástico, que cria sozinho sua obra de arte; [...] Por esse motivo vai ser mui-
to mais reduzido o trabalho de criação coletiva. Mesmo quando o artista (no caso,
um encenador) trabalha em grupo [...] esse processo se dá por ‘colaboração’ ou por
‘direção’. Essa relação [...] vai ser uma relação horizontal, de colaboração.18
6.3 Encenação-em-Processo
29 cohen, r. ‘Work in progress’ na Cena Contemporânea: criação, encenação e recepção. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1998, p. 17. Cohen utiliza tanto o termo work in progress – já conso-
lidado na literatura crítica - quanto work in process, visando, segundo ele, incorporar “as
noções de progresso temporal e processualidade” (Ibid., p. xxviii)
30 Ibid., p. 45.
31 “Erro”, como bem define Cohen, “enquanto espaço do vivo, do novo, do não previa-
mente conhecido. [...] A inserção do elemento ‘erro’ corrobora, no universo artístico,
o princípio da incerteza/indeterminação de Heisenberg, que rompe com o paradig-
ma do determinismo” (Ibid., p. 97).
32 zular, r. (org.), Criação em Processo: ensaios de crítica genética, p. 19.
190
ções, enfim, aos campos de força dos outros colaboradores, evitando cristalizações
prematuras, e duvidando sempre da forma acabada.
A encenação processual, é importante reiterar, não busca a fusão ou a união de
todas as contribuições artísticas. Ao contrário, ela estimula e garante a independên-
cia das partes, justapõe e fricciona diferentes sentidos ou percepções e coloca as múl-
tiplas e divergentes intensidades, em combate. Poderíamos pensar tal processo de
forma assemelhada àquela com que Dort analisa a representação contemporânea
não-unificada, na qual
Evidentemente que esse discurso cênico virá atravessado pelos discursos singula-
res de cada um dos criadores. O diretor, então, teria justamente a função de agrupar
tais discursos, ou melhor, de colocá-los em movimento, lado a lado, conectando as
subjetividades criadoras. A escritura da obra, nesse contexto, se dá em regime de co-
criação, pelo confronto concomitante de distintas autorias. Cabe, pois, ao encenador,
estimular a enunciação do discurso por parte de cada um dos integrantes do grupo.
Contudo, o fomento a esse ponto de vista individual, a essa criação particular, não
deve colocar em risco a coesão grupal e o depoimento artístico coletivo. O diretor
precisa equilibrar – ou melhor, manter em tensão contínua - o “singular” e o “coleti-
vo”, estimulando e dialogando ao máximo com o que cada criador oferece e, ao mes-
mo tempo, socializando e colocando em embate essas contribuições particulares.
A encenação no coletivo, portanto, é uma encenação híbrida, apoiada em multi-
vocalidades e em pluriperspectivismos, na qual as hierarquias são precárias ou mó-
veis, e vão se revezando ao longo do processo e na própria resultante da obra, cuja
natureza da construção é complexa. Essa hibridização, segundo Cohen, “resulta da
35 cohen, r., ‘Work in progress’ na Cena Contemporânea: criação, encenação e recepção, p. 44.
36 Ibid., p.27.
37 Observação realizada pela referida pesquisadora no contexto do Exame de Qualifica-
ção deste trabalho.
195
a criação das imagens cênicas, dividindo com eles a autoria do texto espetacular.
Nessa abordagem criativa, portanto, o ator se posiciona também como encenador.
Não no sentido de disputar esta função com o diretor que foi oficialmente designa-
do para esse papel. No entanto, é inegável o seu exercício enquanto tal – ainda que
temporária ou provisoriamente. O workshop, por exemplo, é o território privilegia-
do deste ator-encenador.
O diretor, por mais que estimule o ator a trazer todo e qualquer tipo de proposição,
sem nada lhe censurar, funciona também como um pólo crítico a posteriori daquilo que
é levantado em sala de ensaio. Ao mesmo tempo em que necessita ser cúmplice do
“despudor” criativo do atuante, cabe-lhe analisar e selecionar o que é trazido nos en-
saios com uma reserva de distanciamento. Ele precisa, ainda, por um lado, identificar
as dificuldades ou travas de cada um dos atores em relação à temática do projeto, au-
xiliando-os na dissolução desses bloqueios, e simultaneamente, por outro lado, servir
como barreira ou “bloqueio” para grande parte do material produzido.
No processo de montagem, essa ação do diretor sobre os atores, e destes sobre
aquele, criam fricções e dobras, cujas eventuais contradições só vêm a fortalecer a
dinâmica dos ensaios. Ambos os pólos se motivam todo o tempo, não cabendo ao
encenador o papel - comumente a ele associado - de estimulador-mor.
Por fim, parafraseando Dort, talvez pudéssemos afirmar que a vocação da encenação,
hoje, não seja a de “figurar um texto ou de organizar um espetáculo, mas de ser uma
crítica em ato da significação. [...] Tanto quanto construção, a teatralidade é interroga-
ção do sentido”38. A encenação, portanto, apresentaria tanto um caráter sinestésico e de
instauração de experiência, quanto de ativação do viés crítico e de autoquestionamento.
Encenar é também, nessa perspectiva, colocar em questão o próprio ato de encenar.
Seria possível ainda, examinar o âmbito da encenação colaborativa à luz de ou-
tro instrumental teórico, no caso, de algumas referências extra-teatrais oriundas dos
estudos de complexidade e da filosofia. Por exemplo, parecem-nos iluminadoras as
pistas sugeridas por Steven Johnson ao estudar os “sistemas de auto-organização”.
Tais sistemas colocariam em questão a necessidade de um líder, afirmando a pos-
sibilidade das comunidades se organizarem por si próprias. Os estudos realizados por
Johnson sobre os “fenômenos coletivos emergentes” – criando uma analogia entre
mundo biológico e cultural - levam-no a defini-los como
40 johnson, s., Emergência: a dinâmica de rede em formigas, cérebros, cidades e softwares, p. 15.
41 Ibid., p. 101.
42 Segundo Johnson, “local é o termo ideal para compreendermos o poder da lógica do
enxame. Vemos comportamentos emergentes em sistemas como os de colônias de for-
migas, onde os agentes individuais do sistema prestam atenção a seus vizinhos mais
próximos em vez de ficarem esperando por ordens superiores. Eles pensam localmen-
te e agem localmente, mas sua ação coletiva produz comportamento global” (In: Ibid.,
p. 54, grifo do autor).
197
Não chegar ao ponto em que não se diz mais EU, mas ao ponto em que já não tem
qualquer importância dizer ou não dizer EU. Não somos mais nós mesmos. Cada
um reconhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados, multiplicados.43
43 deleuze, g.; guattari, f. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995,
vol. 1, p. 11 (grifo dos autores).
44 Ibid., p. 8.
45 Ibid., p. 8.
46 Ibid., p. 15.
47 cohen, r. ‘Work in progress’ na Cena Contemporânea: criação, encenação e recepção, p. 23.
198
50 deleuze, g.; guattari, f. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago Editora,
1977, p. 121.
51 deleuze, g. Diferença e Repetição. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Graal, 2006, p. 260.
52 Ibid., p. 261.
200
53 deleuze, g. Lógica do Sentido. 4 ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006, p. 105.
54 zular, r. (org.), Criação em Processo: ensaios de crítica genética, p. 83 (grifo do autor).
201
7 Considerações Finais
que ele atuasse, como foi o caso de Evrêinov, Vakhtângov ou Piscator. Além disso,
o desejo de configuração do ensemble – objetivo perseguido pelo menos desde Mei-
ningen – também perpassará ambos os modelos, quer sejam compartilhados ou
hierarquizados.
Como nosso intuito não foi realizar um mapeamento de cunho historiográfico,
defrontamo-nos, algumas décadas depois, nos anos 1960 e 1970, com outra expe-
riência utópico-comunitária exemplar: a criação coletiva. Tal modo de construção
teatral trará dificuldades no estudo e na avaliação do papel do diretor, em razão do
fato de terem existido diferentes formas de criação coletiva nesse período, tanto
no Brasil quanto no exterior e, conseqüentemente, distintas maneiras de atuação
do encenador dentro delas. O modo de funcionamento criativo em grupos como
Théâtre du Soleil, Living Theatre, La Candelaria ou Pod Minoga espelham bem tal
diversidade.
Contudo, de certa forma a criação coletiva retomará as matrizes tolstoianas,
simbolistas e de agitprop do início do século xx, acirrando-as ou mesclando-as de
acordo com o projeto artístico e ideológico dos grupos. Por exemplo, o viés comu-
nitário, de retorno à natureza e a uma vida menos artificial – de inspiração tols-
toiana – se associará ao elemento do “viver em comunidade”, do vegetarianismo,
do culto ao natural, da ruptura das amarras do corpo e da sexualidade, presentes
em vários grupos teatrais de tendência telúrico-estética. Neles, buscava-se a reto-
mada da expressão do corpo, da interpretação mais “natural”, do desnudamento
– metafórico e concreto – dos atuantes, remetendo à não-interpretação ou ao im-
bricamento arte-vida da performance. É interessante notar como esses traços de
inspiração tolstoiana retornam com o movimento contracultural característico da
época, muito bem representado por coletivos teatrais como o Living Theatre ou
o grupo tuca.
A matriz simbolista e seu forte componente estético, de pesquisa de linguagem
e de reunião das artes, reaparecerão nos coletivos teatrais caracterizados pela pri-
mazia da plasticidade e pela ênfase no aspecto visual – e sua decorrente mistura ou
trânsito de linguagens artísticas. Exemplos dessa tendência são o Pod Minoga ou
o grupo Sonda. Não nos esqueçamos ainda que o campo da polivalência artística e
dos vetores sinestésicos, tão caros a uma parcela significativa da criação coletiva,
também foram marca da corrente simbolista.
Por fim, o caráter político, de conscientização e agitação, eixo da matriz do agit-
prop, encontrará reverberações no engajamento, na contestação social, no discurso
revolucionário e na militância comunista de grupos como o San Francisco Mime
Troupe, o União e Olho Vivo ou o Núcleo Independente.
É claro que se trata, aqui, de tendências ou ênfases, e não de categorias rígidas
e fechadas. Prova disso é que alguns grupos transitarão ou amalgamarão essas
matrizes, em combinações diferenciadas, nas suas práticas artísticas. É o caso do
204
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CATÁLOGO
2. O coletivo decide, com total independência, a sua composição, sem outra preocupação que
aquela de manter o nível ideológico do teatro e a sua eficácia política. O número de colabo-
radores do coletivo não é limitado. Os colaboradores podem ser recrutados por designação
da assembléia, no caso de ser necessária uma colaboração específica e ocasional. Como regra
geral, só se pode pôr fim a uma colaboração sob a base de um acordo amigável, tendo como
resultado uma declaração comum e pública das partes envolvidas. Esta declaração não apre-
sentará jamais um caráter difamatório. As exclusões decididas contra a vontade do colabora-
dor excluído só podem ser promulgadas por meio de uma reunião do coletivo convocada para
esse fim, à qual devem estar presentes pelo menos dez membros do coletivo, sendo que uma
maioria mínima de 70% é necessária.
este ser conciliável com o conceito de uma coletividade fundada sobre a camaradagem e sobre
uma ideologia comum específica. O peso do trabalho repousa fundamentalmente sobre os
ombros dos membros da comissão. O coletivo se reúne ao menos uma vez por mês para ouvir
e discutir o relatório de trabalho das diferentes seções e, outra vez ainda, para ser informada
pela direção do Teatro Piscator sobre as atividades e os projetos do teatro.
O Livro de Jó
Apocalipse 1,11
BR-3