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antônio carlos de araújo silva

a encenação no coletivo:
desterritorializações da função do diretor
no processo colaborativo

Tese apresentada ao Departamento de Artes


Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo para obtenção do
título de Doutor em Artes.

Área de Concentração: Teoria e Prática do Teatro


Orientador: Prof. Dr. Jacó Guinsburg

São Paulo

2008
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

Silva, Antonio Carlos de Araújo.


A encenação no coletivo: desterritorializações da função
do diretor no processo colaborativo/ Antônio Araújo.
São Paulo: A. C. A. Silva, 2008.
222 f.

Tese (Doutorado) – Departamento de Artes Cênicas/ Escola


de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo,
12/06/2008.
Orientador: Prof. Dr. Jacó Guinsburg.
Bibliografia

1. Processo colaborativo 2. Criação coletiva 3. Encenação �


Contemporânea 4. Metodologia de ensaio 5. Teatro
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da Vertigem
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I. Guinsburg, Jacó II. Título.

CDD 21.ed. – 792


folha de aprovação

Antônio Carlos de Araújo Silva

A encenação no coletivo:
desterritorializações da função do diretor no processo colaborativo

Tese apresentada ao Departamento de Artes


Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo para obtenção do
título de Doutor.

Área de Concentração: Teoria e Prática do Teatro

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof. Dr. Jacó Guinsburg (orientador)

Instituição ECA-USP Assinatura: _______________________

Prof. Dr. ____________________________________________________________

Instituição:________________________ Assinatura: _______________________

Prof. Dr. ____________________________________________________________

Instituição:________________________ Assinatura: _______________________

Prof. Dr. ____________________________________________________________

Instituição:________________________ Assinatura: _______________________

Prof. Dr. ____________________________________________________________

Instituição:_______________________ Assinatura:_______________________
À minha mãe
AGRADECIMENTOS

A Eduardo Fragoaz, pela parceria de vida;

A Guilherme Bonfanti, pela parceria de arte;

Aos parceiros do Teatro da Vertigem, por toda a arte e por toda a vida;

A Sílvia Fernandes, pela colaboração-em-processo, inspiração e generosidade;

A Mariângela Alves de Lima, pela cuidadosa análise no Exame de Qualificação;

A Elena Vássina, Gita Guinsburg e Peter Pál Pelbart pelo apoio estratégico em campos
cifrados;

A Leslie Damasceno, pela indicação e empréstimo de valiosa bibliografia;

Aos alunos de Direção Teatral, pelo meu aprendizado;

A Beatriz Vilas Bôas e Paola Lopes pelo auxílio na pesquisa, e a Luciana Facchini pelo
auxílio gráfico;

A Eliana Monteiro, Heloísa Prado, José Eduardo Vendramini, Lucienne Guedes, Luís
Alberto de Abreu, Luís Fernando Ramos, Maria Tendlau e Rubens Rewald, pelas dicas
e discussões “colaborativas”;

Ao grupo de orientandos do Prof. Jacó: Abílio Tavares, Alice K, Carlos Rahal, Cibele
Forjaz e Lúcia Romano, pelos “diálogos de sexta-feira”;

Ao meu orientador, Prof. Jacó Guinsburg, pelo processo pedagógico-iniciático, da


teoria do teatro à direção teatral, da graduação ao doutorado, da sala preta ao palco
da cidade.
“A obra de arte do futuro é coletiva, e só pode decorrer
de um desejo coletivo. Esse desejo, no plano prático, só é
pensável na comunidade de todos os artistas”

(Richard Wagner, A Obra de Arte do Futuro)


RESUMO

silva, a. c. a. A encenação no coletivo: desterritorializações da função do diretor


no processo colaborativo. 2008. 222 f Tese (Doutorado) – Escola de Comunicações e
Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

A tese investiga o campo de ação e o papel do diretor teatral no âmbito da criação co-
letiva e do processo colaborativo, modos de criação compartilhada surgidos nas décadas
de 60 e 90, respectivamente. Numa perspectiva coletivizada de construção da obra
cênica, em que a autoria passa a ser comungada por todos, o encenador deixaria de
ser uma figura imprescindível, limitando-se às tradicionais funções de organização e
gerenciamento, ou seu papel criativo autônomo estaria sofrendo uma readequação
ou redefinição? A autonomia da encenação estaria em crise ou o papel do diretor
estaria se desterritorializando? Visando responder a tais questões o trabalho realiza
um estudo histórico, teórico e metodológico de distintas experiências coletivas de
criação, com ênfase especial no processo colaborativo e na função do diretor. Além
disso, examina os processos de ensaio de O Livro de Jó; Apocalipse 1,11 e BR-3, do Teatro
da Vertigem, a fim de descrever e refletir sobre os seus respectivos procedimentos e
práticas coletivas de criação. Por fim, à luz das discussões teóricas e das experiências
teatrais aqui tratadas, realiza-se uma análise da função do encenador no processo co-
laborativo, bem como uma reflexão sobre aspectos da encenação contemporânea.

Palavras-chave: Processo colaborativo. Criação coletiva. Encenação contemporânea.


Metodologia de ensaio. Teatro
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da Vertigem. Grupos teatrais.
ABSTRACT

silva, a. c. a. Directing in a theatre collective: the deterritorialization of the


director’s role in the collaborative process. 2008.
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222 f Thesis (Doctorate) – Escola de
Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

This thesis investigates the theatre director’s role and field of action in two theatre
movements whose creative processes are shared by all participants, namely the
collective creation and the collaborative process, which emerged in the 60s and 90s,
respectively. In a theatre work that is built collectively, whose authorship is an act
of communion in which everyone participates and shares, one may wonder whether
the director will be no longer needed, his role being restricted to organizing and
managing the staging, or that his autonomous creative role in the production of
a play is being rearranged or redefined. Is the autonomy of theatre directing and
of the mise en scène going through a crisis? Is the role of the director becoming
deterritorialized? In order to address these issues, a historical, theoretical and
methodological study of different creative experiments involving theatre work that
is created collectively is carried out, with a special emphasis on the collaborative
process and the director’s role in such process. In addition, the rehearsal processes
in O Livro de Jó (The Book of Job); Apocalipse 1,11 (Apocalypse 1,11) and BR-3, three plays by
Teatro da Vertigem, were analysed, with a view to describing and reflecting upon its
collective procedures and practices of creation. Finally, in the light of the theoretical
issues and theatre experiences discussed in this thesis, an analysis of the director’s
role in the collaborative process is made, as well as a reflection on some aspects of
contemporary theatre directing.

Key words: Collaborative process. Collective creation. Contemporary theatre directing.


Rehearsal methodology. Teatro da Vertigem. Theatre groups.
SUMÁRIO

1 Introdução 01

2 Encenação Coletiva: o encenador


na criação coletiva 06
2.1 Experiências Precursoras 07
2.2 Estúdio do Teatro Piscator 18
2.3 Criação Coletiva 27
2.3.1 Criação Coletiva na Colômbia 38
2.3.1.1 Teatro Experimental de Cali (TEC) 39
2.3.1.2 Teatro La Candelaria 48

3 Processo Colaborativo: abordagem teórica 56


3.1 Processo Colaborativo como Modo de Criação 58
3.2 Processo Colaborativo como Metodologia de Trabalho 62
3.3 Processo Colaborativo como Modo de Produção 63
3.4 Processo Colaborativo como Resultante Estética 66
3.5 O Problema da Autoria 68
3.6 O Problema da Tomada de Decisão 72
3.7 Polifonia e Construção da Cena 79
3.8 Conceito de Processo Colaborativo 82
3.8.1 Idéia de Processo 83
3.8.2 Idéia de Colaboração 87

4 Estudo de Caso: o processo de encenação


de O Livro de Jó, Apocalipse 1,11 e BR-3 91
4.1 O Processo da Encenação em O Livro de Jó 92
4.2 O Processo da Encenação em Apocalipse 1,11 102
4.3 O Processo da Encenação em BR-3 118

5 Para uma poética do processo colaborativo


no Teatro da Vertigem 147
5.1 Definição do Projeto 148
5.2 Definição do Dramaturgo e da Equipe de Criação 148
5.3 Pesquisa Teórica 149
5.4 Pesquisa de Campo 150
5.5 Atividades Pedagógicas Correlatas 153
5.6 Treinamento Direcionado 155
5.7 Depoimento Pessoal e Depoimento Coletivo 156
5.8 Exercícios de Vivência 158
5.9 Improvisações e Jogos 159
5.10 Pergunta/Resposta 161
5.11 Escrita Automática 161
5.12 Workshop 162
5.13 Seleção do Material 165
5.14 Canovaccio 167
5.15 Improvisação do Canovaccio 168
5.16 Feedback 168
5.17 Roteiro 170
5.18 Primeira Versão do Texto 171
5.19 Análise Ativa 172
5.20 Pesquisa de Interpretação 173
5.21 Investigação e Apropriação do Espaço 174
5.22 Ensaios Abertos 177
5.23 Ensaios durante a Temporada 178

6 A Encenação no Coletivo: o encenador e


o processo colaborativo 179
6.1 Função e Campo do Encenador 179
6.2 Encenação Performativa 182
6.3 Encenação-em-Processo 188
6.4 A Encenação no Coletivo e o Encenador Colaborativo 192

7 Considerações Finais 202

Referências Bibliográficas 210

Anexos 217
ANEXO A – Diretivas para o Coletivo Teatral do Teatro Piscator 218
ANEXO B – Fichas Técnicas Resumidas dos Espetáculos 220


1 Introdução

Se em nossa dissertação de Mestrado procuramos tratar, de maneira detalhada,


das diferentes etapas do processo de criação de um espetáculo, pareceu-nos esti-
mulante, agora, na pesquisa que resultou nesta tese de Doutorado, delimitar um
aspecto específico desse processo, a fim de poder aprofundá-lo. Elegemos, então, o
campo da direção teatral como objeto de estudo. Na verdade, a opção foi por um
recorte ainda mais restrito, isto é, o papel do diretor em um processo coletivo e
compartilhado de criação. Que perfil ou que competências – habilidades, conheci-
mentos e atitudes - esse encenador, trabalhando numa perspectiva grupal, necessi-
taria desenvolver?
O eixo de nossa pesquisa será a análise da função do diretor no chamado processo
colaborativo, processo esse surgido no Brasil, nos anos 90, que pressupõe a partici-
pação criativa coletivizada de todos os envolvidos no trabalho. A referida dinâmica
- numa definição sucinta - se constitui num modo de criação em que cada um dos
integrantes, a partir de suas funções artísticas específicas, tem espaço propositivo garan-
tido. Além disso, ela não se estrutura sobre hierarquias rígidas, produzindo, ao final,
uma obra cuja autoria é dividida por todos.
Frente a tal perspectiva, não estaríamos diante de uma reconfiguração da função
do encenador? Ou estaria ele, novamente, relegado a um papel secundário de mero
organizador material ou disciplinador de uma equipe? Ainda que seja prematuro
falar em um novo paradigma para a direção teatral, a encenação colaborativa parece
se contrapor à noção do diretor tradicional, centralizador e unificador, responsável
por todas as decisões relativas ao processo de ensaio e ao espetáculo e definidor da
maneira e do momento nos quais os atores e os outros criadores poderiam atuar.
Esse papel autocrático do encenador remete à célebre divisão taylorista do mundo
do trabalho em que a alguns poucos cabe a missão de conceber, planejar e dirigir o
processo produtivo, e aos demais, apenas executá-lo, sem quase nunca ter a visão
do todo ou a possibilidade de modificar os rumos preconcebidos. Porém, por que a
concepção da obra cênica não poderia ser definida, cooperativamente, pelos atores e
demais criadores, ao invés de se restringir apenas ao diretor?
Por outro lado, o fato de, num processo colaborativo, o encenador compartilhar o
eixo conceitual e a responsabilidade pela criação artística com os outros integrantes,
significaria uma perda de especificidade em seu papel? Se, por exemplo, a coorde-
nação dos ensaios, a mediação dos conflitos, a supervisão do trabalho de todos os
envolvidos, a busca incessante pela sinergia dos diversos elementos de uma composi-


ção cênica continuam sendo atribuições suas, será que, nesse processo de divisão de
autorias, o encenador não passaria a ter um caráter mais catalisador, “enzimático” e
provocador de uma polifonia criativa, ao invés do seu conhecido papel unificador?
Tal atitude ou perspectiva por parte do encenador parece exigir dele a crença na
capacidade que o outro tem de criar, o conhecimento profundo das características
e habilidades dos seus parceiros de trabalho, bem como das limitações e inseguran-
ças que os impedem de desenvolver suas potencialidades criativas. Ao instigar uma
postura ativa – e não apenas reativa –, ele compromete-se com um processo de cria-
ção que envolve mais riscos e coloca em xeque a sua própria função centralizadora
e de condução.
Em outras palavras, a contaminação ou o compartilhamento das autorias colo-
caria em perigo a autonomia de sua criação, ou, pelo contrário, a redimensionaria?
Como se estabelece a sua criação diante das inevitáveis polarizações e das vontades
individuais divergentes, presentes em processos dessa natureza? E, se não podemos
falar na “morte do diretor” ou no “fim da encenação”, seria apropriado pensarmos
em um “diretor em crise” ou em uma “encenação fraturada”?
Ou ainda, valendo-se de alguns conceitos deleuzianos, seria apropriado falar em
uma reterritorialização da encenação? Ou talvez, quiçá, melhor seria investigarmos a
sua desterritorialização? A noção de “território paradoxal” como um território sempre
por vir e sempre por ser construído, um território pensado por Deleuze não como
“lugar geográfico”, mas como “zona de experiência”, parece vir se delineando como
uma boa tradução para o habitat deste encenador-em-processo.
Tais percepções nos levam ainda a outros questionamentos: nessa dinâmica de
compartilhamento das autorias, o encenador não estaria abdicando do seu conheci-
do papel de construtor de uma unidade? A noção de ensemble, fundamental na prática
de encenadores como Meiningen, Antoine e Stanislavski, não estaria sendo revisitada
por outro ângulo, que não o da unidade harmoniosa do todo, mas pelo viés da ação
criadora do conjunto, do coletivo, do grupo?
E, por fim, se vivemos na época do teatro “performativo” ou “pós-dramático”, não
estaríamos diante de uma encenação, também ela, performativa? Ou ainda, no limite,
seria possível pensar em termos de uma “anarqui-encenação”, liberta dos princípios
tradicionais de autoridade e liderança?
Esta tese pretende, justamente, abordar tais questões, verificando possíveis modi-
ficações na função do encenador a partir da experiência do processo colaborativo. Procu-
ra, nesse sentido, identificar as eventuais readequações ou redefinições do papel do
diretor numa dinâmica compartilhada de criação, e checar se, ao ampliar seu campo
de possibilidades, tal papel estaria encontrando outras formas de atuação.
É inegável a relação do objeto desta pesquisa com o meu próprio ofício de dire-
tor. Venho trabalhando numa perspectiva coletivizada, desde a criação do Teatro da
Vertigem, em 1992, grupo no qual exerço a função de encenador. Daí o interesse em


mapear, analisar e quiçá, sistematizar, a pesquisa que empreendi de forma prática,


no campo da direção teatral, nesses últimos quinze anos.
Ao avaliar a experiência da referida companhia nos processos de construção da
Trilogia Bíblica e em BR-3, posso afirmar que, na área da direção, procurei garantir e
estimular a participação de cada um dos integrantes do grupo, tanto na criação mate-
rial da obra, como também na reflexão crítica sobre as escolhas estéticas, os encami-
nhamentos metodológicos e os posicionamentos ideológicos e éticos. Tal perspectiva
me fez repensar e redesenhar, significativamente, a minha atuação como encenador.
Daí, por essas razões, a tese apresentar como embasamento prático central as experi-
ências realizadas no Teatro da Vertigem.
Outro aspecto importante da tese é o seu diálogo com a minha atuação pedagógi-
ca e universitária dos últimos oito anos, especificamente no que refere-se à formação
de novos diretores. Tanto na Escola Livre de Teatro de Santo André e, especialmen-
te, no Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP, projetei, coordenei e ministrei
cursos voltados exclusivamente para a formação do aluno-diretor. Em alguns deles,
por exemplo, pude desenvolver uma prática pedagógica associada concretamente ao
processo colaborativo – tema fundamental deste trabalho. Muitas das reflexões aqui
encetadas foram frutos dessa experiência e do diálogo fecundo e intenso ocorrido em
sala de aula.
Numa visão panorâmica do percurso empreendido para a elaboração da tese, par-
tiu-se de uma reflexão sobre a criação coletiva para, então, realizar-se um estudo teó-
rico e metodológico mais detalhado do processo colaborativo. Evidentemente, o eixo
agregador de toda a pesquisa foi o campo de experiência e o papel do diretor nesses
modos de criação.
No primeiro capítulo, após a realização de um breve panorama histórico de expe-
riências exemplares de coletivização da criação, faz-se uma análise um pouco mais
detida sobre o Estúdio do Teatro Piscator. A razão dessa escolha se deveu ao fato
de tal experiência se encontrar melhor descrita do que outras - contemporâneas ou
anteriores a ela -, pela disponibilidade de fontes e do material encontrado, como
também em função de Piscator ter sido professor de Judith Malina – criadora, junto
com Julian Beck, do Living Theater. Tal “filiação” nos pareceu significativa como um
“estudo de caso” anterior à discussão sobre a criação coletiva.
Além da experiência do próprio Living, fez-se um recorte sobre duas importantes
companhias latino-americanas, o Teatro Experimental de Cali e o Teatro La Candelaria.
A primeira é responsável pela sistematização do primeiro método de criação coletiva,
que percorrerá e influenciará o movimento teatral em todo o continente, e a segunda,
além de também ter estruturado teoricamente uma metodologia de trabalho coletivi-
zado, antecipa, sob certos aspectos, a dinâmica criativa do processo colaborativo.
O segundo capítulo faz uma discussão sobre o processo colaborativo, identifican-
do algumas matrizes teóricas que inspiram – ou podem inspirar - o seu modo de


funcionamento. Ainda que o eixo orientador encontre-se dentro do âmbito da teoria


teatral, buscou-se o diálogo com outros campos ou disciplinas, como a Teoria Literá-
ria, a Matemática ou a Sociologia. Valemo-nos, entre outros, dos trabalhos de análise
combinatória da Teoria dos Jogos, dos estudos sobre polifonia de Bakhtin e do concei-
to de multidão de Antonio Negri.
Evidentemente, o objetivo não foi se aprofundar nessas outras áreas, mas utilizá-
las como provocadoras e fontes de ressonâncias possíveis com o universo teatral. Ou
seja, a idéia foi convocar tais disciplinas, sempre que pareceu oportuno e iluminador
algum eventual entrecruzamento com o teatro, a fim de criar conexões entre a refle-
xão e o fazer teatral com outros saberes e práticas.
O capítulo seguinte se baseia em um estudo prático de caso, a saber, o processo de
encenação de O Livro de Jó, Apocalipse 1,11 e BR-3, espetáculos esses realizados pelo Te-
atro da Vertigem. O objetivo, além de mapear o percurso de elaboração dessas obras,
foi identificar a ação da direção nas diferentes fases do processo: definição do proje-
to; pesquisa teórica e de campo; realização de workshops e improvisações; construção
da dramaturgia; direção de atores; coordenação de estágios e oficinas e, por fim, a
materialização do espetáculo no espaço escolhido.
No quarto capítulo, procuramos esboçar os dispositivos e procedimentos práticos
do processo colaborativo, à luz da maneira como ele é realizado no Teatro da Verti-
gem. Por ser um modo de criação essencialmente experimental, não pretendemos
consolidá-lo como uma metodologia fechada nem muito menos estimular a sua utili-
zação por outros grupos ou coletivos. Trata-se, única e simplesmente, da tentativa de
sistematização de princípios e práticas mais ou menos recorrentes, na trajetória de
construção dos espetáculos do grupo até agora.
O último capítulo da tese parte de uma discussão sobre a função da direção para
refletir sobre as tendências e rumos da encenação contemporânea. A partir desse
contexto, busca-se analisar o papel do encenador que atua em coletivos teatrais,
criando de forma compartilhada. Aqui, também, foram realizadas algumas pontes
com diferentes campos do conhecimento, mais especificamente, com os estudos da
complexidade - teorias de rede, emergência e dissolução de hierarquias - e com a filo-
sofia pós-estruturalista de Deleuze e Guattari – principalmente no que se refere aos
conceitos de agenciamento e multiplicidade.
É claro que, ao tratar das teorias acima citadas, pretendemos identificar as possíveis
conexões entre as suas proposições e aquelas inerentes ao campo teatral. Porém, tal
opção não visou substituir ou anular a reflexão que vem sendo realizada por estudiosos
de teatro sobre a cena contemporânea, como é o caso, entre outros, de Sílvia Fernan-
des, Renato Cohen Josette Féral, Hans-Thies Lehmann, Patrice Pavis ou Bernard Dort.
Tais teorizações – teatrais e extra-teatrais – pareceram profícuas para se pensar
a função da encenação na contemporaneidade e, em especial, dentro do âmbito de
modos compartilhados de criação. Existe aí também, sem dúvida, um desejo de me


contaminar com referenciais teóricos distintos e de repensar o meu próprio conheci-


mento sobre a direção teatral.
Em suma, esta tese se configurou como um estimulante exercício reflexivo sobre
a área da encenação, possibilitando, ainda, a sistematização e o compartilhamento
da pesquisa que venho empreendendo há anos. Tanto numa sala de ensaio como
numa sala de aula, por mais abertos e receptivos que tais ambientes possam ser, rea-
lizam-se experiências de caráter restrito e interno, além de, no caso da direção, carac-
terizarem-se por um viés eminentemente prático. Daí, a perspectiva de um diálogo
diferenciado que esta tese proporciona.
Por fim, gostaria de ressaltar a importância dos estímulos, das provocações, e
do diálogo com o meu orientador, o Prof. Jacó Guinsburg. A sua condução rigorosa,
inteligente e sensível foi fundamental para que este trabalho tivesse vindo “à cena”.
Não fosse por ele, várias das considerações aqui levantadas teriam padecido de maior
desenvolvimento. Devo-lhe, também, a sugestão e o norte para a pesquisa histórica
sobre os antecedentes da criação coletiva. Sem suas indicações e seu auxílio jamais
teria conseguido desenvolvê-la a contento. Além disso, a sua interlocução com os pro-
cessos de criação nos quais atuei como diretor foi imprescindível para o exercício de
recuo crítico e de aguçamento do olhar sobre eles.


2 Encenação Coletiva: o encenador e a criação coletiva

“The collective creation.


Concept of a theatre company, a working group, as
Anarchist commune
Free theatre […]
The apotheotic moment at which a collective of individuals becomes itself. Where
is the director? He/she is a glowing participant, no longer alienated from the
performers, the performers from the director”
(Julian Beck, The Life of the Theater)

O teatro, por sua natureza, constitui-se numa prática coletiva, envolvendo artistas
e técnicos na sua criação e execução e, além destes, o público, no momento de sua
recepção – e, também, produção, como no caso dos ensaios abertos. Porém, o termo
“coletivo” aqui diz respeito à quantidade numérica de pessoas envolvidas no fenôme-
no teatral – que pressupõe, no mínimo, um actante e um espectante – ou à quantida-
de e variedade de funções nele presentes.
Em nosso trabalho, contudo, utilizamos o conceito de “coletivo” associado a um
modo de fazer, à maneira como as diferentes funções ou atribuições se articulam rumo
à criação da obra cênica. Nessa perspectiva é que utilizamos a noção de “dinâmicas
coletivas de criação”, cujo acento e foco se encontram num processo compartilhado,
cooperativado e democrático do fazer artístico. Ou seja, não há um criador epicêntrico
para onde tudo convirja, mas um conjunto de criadores que vão definindo, coletiva-
mente, os rumos, os conceitos, as práticas e as materializações de sua obra/processo.
Caberia a pergunta, quanto à noção de “dinâmicas coletivas de criação”, acerca da
pertinência de sua utilização no plural. Pois seria correto pressupor distintas formas de
ocorrência desse compartilhamento de autorias, ou, ao contrário, o mais apropriado seria
afirmar a sua singularidade, relegando as diferenças entre um processo e outro, a idios-
sincrasias sem maior relevância? Seriam, por exemplo, os termos criação coletiva e processo
colaborativo nomes distintos para uma mesma prática? Ou, ao contrário, traduziriam dinâ-
micas e processos, que apesar de aparentados, consubstanciam fenômenos diferentes?
É a partir dessa contraposição que o presente trabalho orientará as suas reflexões
iniciais, procurando, em seguida, tratar detidamente do processo colaborativo. Porém,
antes de analisarmos tal confrontação, julgamos pertinente trazer à tona alguns ante-
cedentes históricos exemplares das práticas coletivas de criação.

 “A criação coletiva/Conceito de uma companhia de teatro, de um grupo de trabalho,


como/Comuna anarquista/Teatro livre [...] O momento apoteótico no qual um coletivo
de indivíduos se torna ele mesmo. Onde está o diretor? Ele/ela é um participante ar-
dente, não mais alienado dos performers, os performers do diretor” (trad. nossa).


2.1 Experiências precursoras

Não pretendemos, é claro, a realização de um levantamento historiográfico exaus-


tivo e completo das experiências grupais democráticas que antecederam a criação
coletiva dos anos 60 e 70. Tal mapeamento fugiria bastante do escopo desta pesquisa,
já que seu cerne está estruturado em torno do processo colaborativo, e de uma noção
de encenador que aparece no final do século xix e se consolida ao longo do século
seguinte. O objetivo, portanto, será apenas o de assinalar alguns exemplos significa-
tivos de dinâmicas artístico-comunitárias precursoras.
Poderíamos, é claro, apontar as experiências coletivas de criação ocorridas nas
guildas do teatro medieval, nas companhias de commedia dell’arte e nas trupes de
Shakespeare ou Molière. Tais exemplos – cada qual exibindo diferentes formas de
organização e de construção da obra cênica – atestam a presença do trabalho criativo
compartilhado, não apenas na elaboração de suas respectivas obras, mas como evi-
dências de um modo de fazer “socializado” que percorre a própria história do teatro.
Contudo, é a partir do momento de afirmação do encenador enquanto um artista
autônomo que iniciaremos o nosso sobrevôo.
Na passagem do século xix para o xx, o movimento simbolista russo vai propor,
por exemplo, uma espécie de “fraternidade poética” ou “fraternidade universal”. Ela
seria composta pela associação de artistas de várias áreas, visando a uma “ação coleti-
va” – misto de “comunhão”, “espetáculo de massa”, “culto religioso” e “atitude revo-
lucionária”, de natureza anti-racionalista e antiburguesa. O inspirador desse movi-
mento, Viacheslav Ivanov, filósofo e poeta responsável pela elaboração de importante
ideário utópico teatral, vislumbra que “os atores começariam a recitar ou a cantar no
próprio palco, desceriam então para a platéia, misturando-se à multidão e, distribuin-
do figurinos e máscaras para todos que quisessem, envolveriam o público presente
em uma improvisação criativa comunitária”. Não deixa de ser curiosa a semelhança
desse projeto – jamais realizado – com as criações coletivas das décadas de 60 e 70.
De qualquer forma, esse “coletivismo altruísta”, tal como definido por Rudnitsky, vai
influenciar, entre outras iniciativas, a criação de um teatro denominado “As Tochas”,
em 1906, do qual participou Meyerhold.
Ivanov associava a crise do teatro de então à perda do que ele denominava de
princípio sobórni – termo de tradução complexa, utilizado em vários campos artísti-
cos no final do séc. xix e início do séc. xx, envolvendo a idéia de “lugar de reunião”,
“templo ou catedral” e “coletividade”. Segundo ainda a tradução de Amiard-Chevrel
“as palavras soborrnyj, sobornost’ implicam, no teatro especialmente, a comunhão espi-

 rudnitsky, k. Russian & Soviet Theatre: tradition & the avant-garde. London: Thames and
Hudson, 1988, p. 10.


ritual de toda uma sociedade, em uma ação comum coletiva, freqüentemente dotada
de um caráter de celebração religiosa”. Para o filósofo-poeta simbolista, a crise do
teatro decorria, justamente, dessa perda de seu aspecto comunitário, participativo e
coletivo. Pois, “o essencial na arte teatral é seu caráter sobórni. [...] a arte teatral é em
primeiro lugar uma manifestação coletiva, coral, social, sobórni”.
O Teatro de Arte de Moscou (tam), por sua vez, também será palco de alguns pro-
jetos e experimentos comunitários. O primeiro deles surge, embrionariamente, por
meio de um fecundo diálogo entre Górki e Stanislávski. Tal discussão tinha como foco
a participação ativa do dramaturgo em sala de ensaio, o qual escreveria o texto a partir
das improvisações dos atores. A idéia proposta por Górki, em 1910 – ou 1911, segundo
Sérgio Jimenez –, tinha por objetivo a criação de um estúdio, com jovens atores, para
desenvolver uma colaboração baseada em improvisos, os quais teriam como norte a
idéia do canovaccio da commedia dell’arte. Isto é, a partir de um argumento fornecido pre-
viamente pelo dramaturgo aos intérpretes, estes se empenhariam em desenvolvê-lo por
meio de improvisações. Segundo a descrição do projeto, realizada por Jacó Guinsburg,

Providos de um esboço de enredo e das personagens, os comediantes se poriam a


trabalhar, cada qual aprofundando a sua parte através da técnica do improviso e
podendo aferir os resultados com os companheiros de elenco, aos quais competiria,
além de contracenar, criticar e complementar as elaborações dos intérpretes.

De acordo com Guinsburg, os atores teriam total liberdade para a elaboração das
personagens, cabendo ao diretor

[...] apenas a incumbência de evitar o uso inconsciente de situações ou expressões


‘literárias’ ou o inflamento desmesurado da importância de cada papel, para fins de
exibicionismo pessoal. Mas, uma vez efetuado os ajustes necessários [...] emergiria
um texto teatral que teria todas as condições de subsistir cenicamente, sobretudo
depois de aperfeiçoado e rematado durante os ensaios, cabendo ao dramaturgo,
apenas então, o eventual trabalho de lhe dar uma última demão no acabamento.

Essa “criação coletiva por um teatro da improvisação” provocaria ainda, na aná-


lise de Guinsburg, uma renovação no repertório do Teatro de Arte de Moscou. É

 amiard-chevrel, C. Les Symbolistes Russes et le Théâtre. Lausanne: L’Âge d’Homme, 1994, p. 28.
� stepanova, g. A. Idéia “sobórnogo teatra” v poetítcheskoi filossófii Viatcheslava Ivanova (A idéia
de “teatro ‘sobórni’” na filosofia poética de Viacheslav Ivanov). Moscou: Ed. GITIS, 2005, p. 56
(citação traduzida por Elena Vássina).
 jimenez, s. El Evangelio de Stanislavski segun sus apostoles, los apócrifos, la reforma, los falsos
�����������
profetas y Judas Iscariote. México: Grupo Editorial Gaceta, 1990, p. 243.
� guinsburg, j. Stanislávski, Meierhold & Cia. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001, p. 110.
 Ibid., p. 110.


curioso perceber, também, a relação deste tipo de prática com os procedimentos


metodológicos do processo colaborativo – em especial, no desenvolvimento da dra-
maturgia por meio de um canovaccio. Contudo, baseando-se na descrição acima, iden-
tificamos uma presença artística mais atuante por parte do dramaturgo, no início e
final do processo, e não durante todo o seu desenvolvimento – que ficaria, no caso,
a cargo principalmente dos intérpretes. Esta ênfase na contribuição do ator para a
confecção da dramaturgia é apontada na análise que Jimenez empreende da propos-
ta apresentada ao tam:

Sempre interessou a Stanislávski a possibilidade de participação dos atores na


criação do texto da obra, como um meio estimulante para a iniciativa criadora
na formação da personagem cênica. Respeitando sempre o papel primordial
da dramaturgia como base da arte teatral, Stanislávski tentou integrar a este
trabalho experimental um dramaturgo com experiência, o qual dirigiria o pro-
cesso criador de formação da obra. A idéia de Stanislávski sobre a colaboração
do dramaturgo com o teatro na criação do drama foi apoiada fervorosamente
em um momento por Górki. [...] Górki entregaria a Stanislávski, para uso expe-
rimental no Estúdio, alguns roteiros com o argumento da obra em projeto e as
características das personagens participantes. Górki escreveria o texto defini-
tivo somente depois de levar em conta as anotações que os atores sugerissem
durante os ensaios.

Apesar do estímulo e empenho do dramaturgo de Ralé, tal proposta não chegou a


se efetivar. Contudo, ela serviu como fonte inspiradora na constituição do Primeiro
Estúdio do Teatro de Arte de Moscou. Será justamente aí que ocorrerá outra significa-
tiva experiência comunitária do tam.
Criado em 1912, como espaço de experimentação e desenvolvimento dos princí-
pios do “sistema” stanislavskiano, reuniu alguns membros brilhantes como Richard
Boleslávski, Mikhail Tchékhov e Evguêni Vakhtângov. Organizado e capitaneado por
Leopold Sulerjítzki – seguidor da visão comunitária de Tolstói – em parceria com Sta-
nislávski, o Primeiro Estúdio visava tanto ao aprimoramento artístico quanto ético
de seus integrantes. Segundo Hélène Henry,

De suas convicções tolstoianas, Sulerjítzki retém, sobretudo, as posições espiritu-


alistas, humanistas e pacifistas, a reivindicação de um trabalho ancorado nos valo-
res terrenos e de estruturas do tipo comunal. “Aproximar as pessoas, construir
uma obra comum, objetivos comuns, um trabalho comum, uma alegria comum,

� jimenez, s., El Evangelio de Stanislavski segun sus apostoles, los apócrifos, la reforma, los falsos
profetas y Judas Iscariote, p. 243.
10

lutar contra a vulgaridade, a violência e a injustiça, servir ao amor e à natureza,


à beleza e a Deus”, estes são os objetivos do teatro. [...] É assim que Stanislávski
definia o objetivo que Sulerjítzki destinava ao Estúdio.

Tal perspectiva comunitária ficou evidenciada nas famosas “férias de verão do


Estúdio”, organizadas por Sulerjítzki de 1913 a 1915, em que todos os seus membros
iam para uma fazenda na costa do mar Negro, na Criméia, próximo de Evpatória,
para trabalharem coletivamente a terra. De acordo com Henry, nessas experiências,
“o coletivo do primeiro Estúdio, reestruturado à maneira de uma comuna do socia-
lismo utópico, experimenta uma existência estritamente disciplinada, voltada para
a natureza e o trabalho em comum”10. Stanislávski pretendia, junto com seu compa-
nheiro “Súler”, a criação de uma “comunidade de artistas” ou ainda, de uma “ordem
espiritual de artistas”. Segundo ele, este “lado agrícola” do Estúdio precisaria ser
fomentado, pois poderia contribuir para a união das pessoas:

[...] comprei terras numa magnífica praia de areia e coloquei-as à disposição do


Estúdio. Com dinheiro arrecadado em espetáculos dados em Evpatória, construí-
mos naquelas terras prédios de natureza social, [...] depósitos para instrumentos
agrícolas, sementes, víveres alimentícios, reservas, sótãos para a conservação de
carne e leite, etc. Cada pupilo deveria construir com suas próprias mãos a casa que
se lhe concedia para morar nos dias difíceis. Durante dois ou três anos um grupo
de pupilos do Estúdio, dirigidos por Sulierjítzki ia para Evpatória durante o verão,
onde levava vida primitiva, sem teto. Os próprios integrantes do grupo carregavam
e lavravam as pedras para a construção dos edifícios de função pública, [...]. Toda a
comunidade de homens primitivos andava seminua e naturalmente bronzeada de
sol. Sulierjítzki [...] estabelecia um regime severo. Cada pupilo do Estúdio tinha a
sua obrigação social: um era o cozinheiro, o outro o cocheiro, esse se ocupava da
parte administrativa, aquele era o barqueiro, etc.11

Esta utopia comunitária, marcada pelo tolstoismo, e baseada na disciplina, na


fraternidade, no trabalho com a terra e no contato com a natureza, é descrita, “de
dentro”, por um dos integrantes mais famosos do Estúdio, Vakhtângov:

[...] nós ceifávamos tanto quanto serrávamos madeiras. Era duro no início, depois
isso nos agradou. Nós o chamávamos assim: “o trabalho forçado e pesado dos cri-

 henry, h. Le Grillon du Foyer, spectacle phare du premier Studio, in Alternatives Théâtrales


87: Stanislavski/Tchekhov, Bruxelles, nº 87, 4e trimestre 2005, p. 10.
10 Ibid., p. 10.
11 stanislavski, k. Minha Vida na Arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989, pp.
476-479.
11

minosos”. Você se dá conta, o dia inteiro trabalhando duro! Lá, nas maravilhosas
margens do Dniepr. Nós tínhamos vindo para tirar férias, e desde o primeiro dia,
nos despacharam para o trabalho. Estranho, não é? E não é estranho, também,
que nós tenhamos retornado à Moscou em plena forma e com toda a força, todos
negros, felizes, orgulhosos de nossos bíceps, de nossas palmas calejadas e de nos-
sos bronzeados?12

De acordo com Poliakova, num dos estudos mais completos já publicados sobre
Sulerjítzki,

O objetivo do Estúdio era a criação de um teatro-comuna, com uma direção cole-


tiva [...] com o ideal de um trabalho em comum, com participação nos lucros, com
organização de um lugar específico para descanso no verão, com liberdade e com
contato com a terra, que é lavrada pelas próprias mãos.13

O regimento interno do Primeiro Estúdio foi concebido numa base voluntária e


de confiança mútua, o que denotava a amizade e a forte aproximação entre os seus
integrantes. Os mandamentos e princípios de trabalho não diziam respeito apenas
aos atores, mas “abrangiam todos os seus membros, incluindo os técnicos e os operá-
rios do palco. Todos eles faziam parte da irmandade do Estúdio, na base da igualdade
[em relação àqueles princípios]”14.
O Primeiro Estúdio, vários anos depois da morte de Sulerjítzki (1916) e já tendo
reclamado a sua autonomia do TAM – o que o transformou no Segundo Teatro de
Arte de Moscou – realizará ainda algumas experiências de “direção coletiva”. Após a
montagem de A Pulga, em 1925, foi preparada uma produção de Petersburg, de Andrei
Bely, encabeçada por Mikhail Tchékhov, e coordenada por três diretores: Alexander
Cheban, Serafima Birma e Vladimir Tatarinov. Prática coletiva comum no Segundo
TAM, ela agradou ao escritor da obra, que via o processo como um “trabalho criativo
coletivo no qual o autor se tornava o diretor e o ator, o dramaturgo”15.
Contudo, como aponta Rudnitsky, essa sensação positiva por parte do autor foi
prematura. O crítico P. Markov acusava a montagem de “falta de coordenação dire-
torial” e observava que “ao colocar o espetáculo nas mãos de três diretores, o teatro
condenava-se à falta de unidade” e que “a formalização externa da montagem estava
atrasada em dez anos”. Além disso, o mérito “coletivo” da empreitada repousava

12 vakhtangov, E. Écrits sur le Théâtre. Lausanne: L’Âge d’Homme, 2000, p. 185.


13 poliakova, e. I. Leopold Antónovitch Sulerjítski. Moscou: Ed. ����������
Iskustvo, 1970, p. 381 (citação
traduzida por Elena Vássina).
14 alpers, Boris. Teatrálnie Ótcherki (Ensaios Teatrais). ����������������������
Moscou: Ed. Iskustvo, 1977, p. 31 (cita-
ção traduzida por Elena Vássina).
15 rudnitsky, k., Russian & Soviet Theatre: tradition & the avant-garde, p. 193.
12

exclusivamente na excelência “individual” da interpretação de Mikhail Tchékhov.


O próprio Bely apontava a contradição de que, na verdade, era aquele grande ator
quem dirigia a peça através dos três diretores. Em função do fracasso de Petersburg
e das oposições e dissensões internas da companhia, Tchékhov renunciou de vez “a
idéia de ‘direção coletiva’”16.
Vakhtângov, por sua vez, levará os ensinamentos cooperativistas de Sulerjítzki
e do Primeiro Estúdio para o teatro de arte judeu Habima. Criado em Moscou, em
1918, por Naum Zemach, com repertório apresentado em língua hebraica, ele teve,
por um período, a direção de Vakhtângov e a supervisão do próprio Stanislávski.
Segundo Guinsburg,

[...] foi nesse local que Vakhtângov, secundado pelo entusiasmo do ‘coletivo, onde
todos, comediantes ou não, eram iguais em direitos – o que subsistiu durante mui-
tos anos, embora a igualdade de salários deixasse de vigorar na companhia – e onde
reinava uma estrita autodisciplina e ninguém violava ou transgredia as normas’,
lançou-se a uma criação ex nihilo.17

O referido diretor russo fará nesse teatro uma de suas encenações mais importan-
tes, a da peça O Díbuk, de Sch. Aa-Ski, em 1921. Nela, durante os ensaios, ele lançará
mão da improvisação de forma mais acentuada que Stanislávski, utizando-a como
uma ferramenta para a construção da encenação. Além disso, Vakhtângov contribuiu
significativamente para a transformação do Habima em um verdadeiro ensemble, nos
moldes do Teatro de Arte de Moscou, ao sobrepor a formatação artística coletiva
às personalidades individuais dos atores. É importante ressaltar que essa noção de
ensemble – isto é, a idéia de um “conjunto” teatral – tem como pressuposto uma afina-
ção coletiva da companhia do ponto de vista do resultado apresentado – não denotan-
do relação, necessariamente, com um processo democrático de feitura.
O estudioso Ouriel Zohar, responsável por uma curiosa associação entre a cria-
ção coletiva e a ideologia do kibutz, lamentará o afastamento do teatro Habima de
seus princípios e práticas cooperativistas, característicos de sua fase vakhtangoviana.
Segundo ele, o Habima “iniciou-se sob uma forma coletiva, mas com o tempo ele se
distanciou de seus objetivos iniciais para tornar-se um pesado estabelecimento de
produções”18, próximo a um teatro do tipo “empresa comercial”.
Outra experiência coletivista de enorme importância foi o teatro de agitprop sovi-
ético. Ocorrido entre 1917 e 1932, ele se configura como o antecessor mais signifi-
cativo – ou, até mesmo, o inventor – da criação coletiva. Fruto da Revolução Russa,

16 rudnitsky, k., Russian & Soviet Theatre: tradition & the avant-garde, p. 194.
17 guinsburg, j., Stanislávski, Meierhold & Cia, p. 206.
18 zohar, o. Un Living Theatre collectif, inspiré par l’idéologie du kibboutz. Théâtre(s)
Engagé(s), fasc. 7, 1997, p. 202.
13

define-se como um forte movimento teatral de agitação e propaganda, baseado em


uma estrutura de autogestão coletiva, tendo por objetivos a instrução e o fomento à
luta revolucionária e à construção do socialismo. É desta época o surgimento dos gru-
pos auto-ativos, definidos por Silvana Garcia, como “coletivos de produção artística
que congregam diferentes ‘círculos’, abrangendo os diversos aspectos da educação
política e da vida cultural de seus membros. Desempenham também um papel de
reprodutores, formando e estimulando outros coletivos”19.
O auto-ativismo, idealizado por Pavel Kerjentsev – teórico do Proletkult –recusa o
“profissionalismo da ideologia burguesa”, valorizando, ao contrário, o “amadorismo”
e os princípios teatrais coletivistas e participativos. Entre estes últimos, por exemplo,
encontra-se a supressão da “autoridade do texto escrito ou tirania do encenador”. O
teatro auto-ativo busca, de acordo com Jean-Pierre Morel,

[...] a mobilidade dos papéis [representados por um ator] e dos contratos, a abertura
permanente da trupe aos voluntários; a elaboração coletiva do roteiro e do espetáculo,
auxiliada pelo apelo, limitado e controlado, a especialistas; a participação a mais
ampla possível da coletividade nos projetos do teatro, [...] pela sua presença, suas
opiniões e sua ajuda concreta nos ensaios e na preparação material (cenários, figu-
rinos), e também por meio de um papel ativo (a “co-interpretação” dos espectado-
res) na representação; por fim, o abandono do espaço teatral fixo, graças a espetá-
culos adaptados ou concebidos para serem apresentados ao ar livre (teatro de rua)
ou em locais não-habituais (fábricas, escolas, hospitais, quartéis), e graças ao papel
assumido pelos atores nas tarefas utilitárias, das quais a comunidade se beneficiará
(preparação de festas, ajuda na alfabetização e na escolarização).20

Apenas por tal descrição se pode perceber a mudança radical no pensamento e na


prática teatral que essas “brigadas artísticas” ou que esse “teatro operário” vai pro-
vocar. Além da renovação do repertório e das formas teatrais, da eficácia no cumpri-
mento dos objetivos políticos, do atrelamento da investigação estética à exploração
dos conteúdos tratados, se instituirá também, um sistema de cotas para a distribui-
ção dos recursos financeiros entre os integrantes do grupo. Ou seja, trata-se de uma
estrutura de produção, criação e funcionamento em moldes inteiramente coletivis-
tas. Por outro lado, haverá a preocupação em multiplicar a quantidade de coletivos
teatrais existentes, o que será auxiliado por uma política de publicações e pela manu-
tenção de atividades pedagógicas de formação.
No que diz respeito à encenação, ela resultará “de um somatório do esforço de
todos e de cada um”, além da “possibilidade de até mesmo o diretor ser substituído

19 garcia, s. Teatro da Militância. São Paulo: Editora Perspectiva, 1990, p. 6.


20 collectif de travail de l’Equipe “Théâtre Moderne” du gr 27 du cnrs. Le Théâtre d’agit –prop
de 1917 à 1932. Lausanne: La Cité – L’Âge d’Homme, 1977, tome I, p. 34 (grifo nosso).
14

por um grupo cujos membros se revezariam na condução dos ensaios”21. Ou seja, a


encenação, como a dramaturgia, passa a ser desenvolvida coletivamente. Teremos,
assim, tanto um “coletivo de dramaturgos” quanto um “coletivo de encenadores” tra-
balhando para a criação de um teatro socialista e proletário.
Esse caráter socializado do fazer teatral associado ao instrumento improvisacional
levará ainda à criação de uma assim chamada “ação coletiva”, baseada em roteiros de
agitação. A dramaturgia desses experimentos será caracterizada por composições de
forma curta, estruturada na forma de roteiros, e utilizando-se de colagens de textos
os mais variados. Aliás, as formas dramatúrgicas do agitprop se caracterizarão, justa-
mente, pela brevidade, maleabilidade e adaptabilidade, pensadas antes como instru-
mento, do que como um fim em si.
Entre as iniciativas mais importantes da cena soviética pós-revolução, poderíamos
citar, o Teatro da Sátira Revolucionária; o Teatro de Agitação de Leningrado; o Teatro
da Juventude Operária (tram) e o coletivo Blusa Azul. Este último produzirá outra
forma teatral de atuação, denominada “jornal-vivo”. Garcia analisa assim o modo de
criação coletivizado do grupo, marcado pela elaboração do material cênico por dife-
rentes e sucessivos “círculos”:

A produção dos jornais-vivos do Blusa Azul obedece à estrutura de divisão em


comissões que caracteriza a maioria dos coletivos. Cada círculo – de dramaturgia,
de música, de artes plásticas etc. – toma a seu encargo a parte que lhe compete na
construção do espetáculo: a seleção e o tratamento cênico dos assuntos, a partitura
musical do espetáculo, a confecção de cenários e figurinos e acessórios.22

O tram, criado em 1922, se tornará também uma das manifestações do agitprop


mais bem sucedidas da época. O seu método de trabalho é “inteiramente coletivista.
O tema específico da peça é escolhido após muitas discussões pelo consenso do grupo
e a partir daí o desenvolvimento dramatúrgico se dá simultaneamente à concepção
cênica. O texto da peça se constrói junto com a montagem”23.
Uma das idéias e práticas fundamentais do teatro de agitação soviético será, justamen-
te, a noção de “criação coletiva”. Ela será definida por Kerjentsev da seguinte forma:

Não convém de forma alguma confundir a criação coletiva com todas as outras
atividades artísticas de massa: por exemplo, a declamação a várias vozes, a inter-
venção dos coros na ópera, as cenas de massa nos espetáculos dramáticos. A cria-
ção coletiva no teatro se caracteriza pelo: a) esforço dos participantes para encar-
nar em formas cênicas os interesses mais elevados do coletivo (isto é, o ideal

21 garcia, s., Teatro da Militância, p. 27.


22 Ibid., p. 35.
Ibid., p. 40.
23 ����������
15

comunista em toda a sua diversidade); b) companheirismo na organização do tra-


balho, excluindo toda espécie de autoritarismo e favorecendo muito amplamente
a crítica; c) relação consciente de cada um dos participantes com os problemas
gerais que são colocados.24

Baseado nesse ideal de coletivismo teatral, os atores lançavam mão de um rotei-


ro, improvisavam o texto, e construíam, todos juntos, a dramaturgia da peça e do
espetáculo. Segundo Amiard-Chevrel, os “responsáveis políticos do Exército Ver-
melho encorajaram vivamente essas ‘criações coletivas’ como premissas de um
novo teatro”25.
No capítulo vii (“As novas vias do teatro”) do tratado denominado “O Teatro Cria-
dor”26, Kerjentsev estrutura pela primeira vez – até onde sabemos – os princípios
norteadores da criação coletiva. De acordo com ele, “a criação teatral coletiva” pode
ocorrer sob as seguintes condições:

a) Cada participante deve, na medida do possível, fazer um trabalho ativo em todos os


domínios da encenação, estudar a fundo o texto da peça e os diversos papéis, refle-
tir sobre o cenário e sobre a parte musical do espetáculo, enunciar a interpretação
que propõe para ele, elaborar um plano de encenação, etc.
b) As encenações devem conjugar de maneira criativa os esforços dos diretores, dos
atores, dos cenógrafos, dos músicos, dos escritores e dos outros participantes, pois
é somente por esse trabalho em comum que o teatro refletirá plenamente a arte
em seu conjunto.
c) O encenador único poderá ser substituído por um grupo dirigente: no curso de
seu trabalho, ele convocará uma participação ativa de todos os outros membros
do círculo, de forma a examinar e a precisar, de maneira criativa, todos os deta-
lhes da encenação durante o transcorrer dos ensaios. Naturalmente, o grupo de
encenação designa, a cada vez, uma única pessoa para conduzir efetivamente o
ensaio.
d) Freqüentemente, o texto de trabalho pode ser tomado somente como um ponto
de partida, uma espécie de assunto adequado e de material literário, para que seja,
na seqüência, segundo as indicações dos participantes, modificado em uma obra
totalmente nova.
e) É necessário dedicar uma atenção particular à complexa organização criativa, não
somente das cenas em separado, mas das partes em seu conjunto, isto é, à criação
de novas obras teatrais de acordo com o tema ou o assunto escolhido.

collectif, Le Théâtre d’agit –prop de 1917 à 1932, tome II, pp. 31-32.
24 ���������
Ibid., tome I, p. 50.
25 ������������������
26 Na verdade, este texto irá conhecer cinco edições diferentes, de 1918 a 1923. O docu-
mento citado é o da 5ª edição, revista e aumentada, datada de 1923.
16

f) Podem-se fazer tentativas a fim de atrair os espectadores para um trabalho ativo


sobre a encenação, convocando-os para escolher as peças, para dar a sua opinião
sobre as encenações e mesmo para participar, pouco a pouco, das cenas de massa.27

Kerjentsev, ao enfatizar a necessidade de compartilhamento do conhecimento e da


participação de cada um dos integrantes em todos os aspectos e setores da criação da obra,
materializa o ideário da criação coletiva, muito antes de sua formulação na segunda meta-
de do século xx. É claro que o termo criação coletiva não tem exatamente a mesma conota-
ção daquela empregada ou definida nos anos 60. Porém, a sua filiação é inequívoca.
Como pôde ser observado, o encenador não é o único responsável pelo conceito e
pelo plano de mise en scène, o qual dividirá com todo o restante do coletivo. Ele deverá
ainda “conjugar” as contribuições de todos os participantes, trabalhando numa dinâ-
mica horizontal de organização e produção. Além disso, as montagens são realizadas
por uma equipe de diretores – isto é, uma “direção coletiva” – ou, no caso de um
único encenador, ele poderá também ser substituído por um “grupo de dirigentes”.
Em outras palavras, há um pressuposto para desindividualizar o trabalho do diretor.
Porém, não deixa de chamar a atenção um procedimento proposto: a condução em si
dos ensaios deve ser realizada apenas por um único diretor, definido pelo “grupo de
encenação” para atuar naquele dia.
Quanto à função do encenador no teatro auto-ativo, ela será também a de “recru-
tar sem cessar novos talentos, de procurar artistas, de educar as pessoas inexperientes
e de não utilizar somente os serviços daqueles que já são peritos na arte do palco”28.
É evidente a atribuição de um papel pedagógico ao teatro de agitação, característica
essa que será incorporada pelo diretor – ou coletivo de diretores. Contudo, a aprendi-
zagem técnica por parte dos artistas é relegada a um segundo plano, a fim de evitar
possíveis desvios de foco.
As críticas negativas que pudemos encontrar em relação a algumas das encena-
ções do teatro proletário as consideram como “antiartísticas”, “sem idéias” e com
baixa qualidade artística. Uma das razões que poderiam justificar tais avaliações é,
justamente, a pouca experiência e a falta de um melhor preparo técnico e artístico
por parte dos diretores.
Outro aspecto relevante da criação coletiva soviética é a fabricação de uma nova dra-
maturgia a partir de um tema ou assunto – baseado ou não em material literário pree-
xistente -, tendo como procedimento-base as improvisações dos atores e as contribuições
de todo o coletivo artístico. O apelo à participação concreta dos espectadores, seja na
construção da obra, seja no momento de sua apresentação, traduz também um desejo de
recusa da passividade e de fomento à ação política e à “produtividade” da platéia.

27 collectif, Le Théâtre d’agit –prop de 1917 à 1932, tome II, p. 32.


28 Ibid., tome II, p. 25.
17

É curioso como, apesar das profundas diferenças ideológicas, essa participação


ativa dos espectadores no ato teatral, materializava o projeto utópico simbolista de
integração arte-vida. As idéias de Ivanov influenciaram, sem dúvida, as de Kerjentsev.
Na avaliação de Rudnitsky,

Centenas, algumas vezes milhares de pessoas participavam [nos “festivais de mas-


sa”], e não apenas atores, mas também trabalhadores, soldados, marinheiros, que
não somente atuavam nas montagens como ainda, simultaneamente, junto com os
outros, tornavam-se seus espectadores. Portanto, até certo grau, pela não separação
entre espectadores e atores, os “cortejos cívicos de massa” realizaram o sonho de
Vyacheslav Ivanov da “ação coletiva”. Mas o caráter desses espetáculos não se amol-
da de forma alguma na Utopia de Ivanov. Eles eram, ao contrário, militantes.29

Esses “festivais de massa”, com seus espetáculos de – e para – multidões, traduzem


antes um espírito numérico e quantitativo de “coletivismo”, do que o de uma criação
pensada e elaborada coletivamente. Nesse sentido, um espetáculo como A Tomada do
Palácio de Inverno (1920), dirigido por Nikolai Evrêinov, do qual participaram cerca de
10.000 soldados e marinheiros, não se nos configura como uma genuína criação cole-
tiva – pelo menos não no que diz respeito a um modo compartilhado e consciente
de construção. Os participantes aí funcionam mais como figurantes, “repetidores” de
movimento e massa coral, do que propriamente como criadores.
Como uma observação final dos procedimentos do agitprop e do coletivismo auto-
ativo soviéticos, podemos ainda apontar o seu caráter não-ilusionista e de revelação
do processo de feitura. De acordo com Kerjentsev,

Sobre as paredes do foyer e dos corredores [do teatro] serão afixados todos os estu-
dos de figurinos e de cenários, desenhados para a peça, e todo o volumoso trabalho
preparatório será exposto para aqueles que desejarem tomar conhecimento dele.
O teatro proletário não deve esconder nenhum de seus segredos de fabricação. Do
primeiro ao último passo, o seu trabalho deve estar acessível a qualquer pessoa.30

O teatro proletário e de agitprop russo irá influenciar significativamente a prática


de Piscator e Brecht. Este último, por exemplo, ao analisar as mudanças na dramaturgia
alemã dos anos 20, afirmará que “uma nova técnica de construção de peças foi elabo-
rada. Coletivos reduzidos de especialistas, entre os quais historiadores e sociólogos, se
colocaram a produzir peças”31. Durante o processo de construção dos espetáculos, Bre-
cht vai também advogar que, se cada ator ensaiasse os papéis de seus companheiros de

29 rudnitsky, K., Russian & Soviet Theatre: tradition & the avant-garde, p. 44.
30 collectif, Le Théâtre d’agit –prop de 1917 à 1932, tome II, p. 32.
31 brecht, b. Écrits sur le Théâtre. Paris:
����������������
L’Arche, 1972, tome 1, p. 234.
18

cena – e não apenas o seu próprio –, haveria uma melhora significativa na representa-
ção e todas as cenas ganhariam com isso. Para o dramaturgo e encenador alemão, “a
arte não é alguma coisa de individual. Tanto na sua gestação quanto nos seus efeitos, ela
é alguma coisa de coletivo”32. Por isso, ele não trata os atores como meros instrumentos
seus, ao contrário, convoca-os como parceiros de criação, experimentando as propostas
surgidas em ensaio. Defendendo uma perspectiva cooperativa de elaboração da obra
– o que envolvia também o próprio público do Berliner Ensemble, por meio de debates,
durante o período de ensaios anteriores à estréia -, Brecht afirma que a “divisão moder-
na do trabalho transformou, em vários domínios importantes, a atividade criadora. O
ato de criação tornou-se um processo coletivo de criação, um continuum de caráter dialé-
tico, de tal modo que a invenção original isolada perdeu a sua significação”33.
No caso de Piscator, resolvemos realizar um estudo, à parte, da singular experiência
coletiva de criação que ele levou a cabo no Estúdio de seu teatro. Além dessa signifi-
cativa contribuição, tal encenador foi professor de Judith Malina, uma das fundadoras
do Living Theatre. Piscator exerceu uma influência transformadora nas concepções
teatrais dela e de seu parceiro, Julian Beck, sendo responsável, indiretamente, pela
inspiração dos princípios da criação coletiva nesses dois diretores americanos. Apenas
tal filiação ou herança já justificaria uma análise mais detalhada desse – injustamente
esquecido – diretor alemão, especialmente no que diz respeito ao Estúdio do Teatro
Piscator (Piscator-Bühne), fundado em Berlim, em 1927.

2.2 Estúdio do Teatro Piscator

“Em oposição ao princípio ditatorial comum da empresa teatral, que dá ao


diretor tão pouca liberdade quanto aos seus subordinados, o princípio de
uma comunidade democrática, colocada ao serviço de uma idéia, não ces-
sa de comprovar a sua eficácia e a sua importância humana e artística.”
(Erwin Piscator, Teatro Político)

Erwin Piscator (1893-1966), diretor cujo conceito e prática de teatro político consti-
tuíram uma das mais significativas forças criativas no teatro alemão da década de 20,
foi também revolucionário ao realizar uma série de impactantes espetáculos multi-
mídia, que se valiam da montagem simultânea de discursos reais, trechos de notícias,
fotografias e seqüências fílmicas. Tais concepções estéticas e procedimentos tecnoló-

32 brecht, b. Écrits sur le Théâtre. Paris:


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L’Arche, 1972, tome 1, p. 69.
33 Ibid., tome 2, p. 523.
19

gicos vão influenciar, por exemplo, a formulação do teatro épico de Brecht. Ele vai,
ainda, desenvolver e teorizar sobre o teatro-documentário, uma contribuição artísti-
ca importante, embora um pouco negligenciada na avaliação geral de sua obra.
No plano ideológico, Piscator foi uma das vozes artísticas mais aguerridas e defen-
soras do Comunismo, o que não se limitava apenas a uma filiação partidária, mas
compreendia um projeto artístico de fundação de um teatro proletário. Nesse senti-
do, é impossível pensar a sua obra sem perceber a relação intrínseca que este encena-
dor estabelecia entre programa político e experimentação estética.
Alguns dos aspectos cooperativistas e coletivizados de sua prática artística estão
profundamente enraizados no projeto comunista de igualdade entre os homens e de
uma sociedade sem classes – pilares fundamentais do pensamento daquela doutrina.
Na verdade, tal desejo igualitário encontra-se no cerne do socialismo utópico e cien-
tífico, em sua defesa do trabalho coletivo, da propriedade comum da terra e na força
transformadora – e revolucionária – da associação e do cooperativismo.
No nosso caso, é sobre a experiência do Estúdio – uma espécie de “espaço alterna-
tivo”, ou “campo de experimentação” ou, ainda, um “lugar de treinamento”, acoplado
ao palco principal do Teatro Piscator – que interessará refletir. Foi nele que Piscator
radicalizou uma original prática coletiva de criação teatral. Sob o aspecto institucional,
o Estúdio apresentava uma independência total em relação ao Teatro do qual fazia par-
te, devendo apenas compartilhar com o mesmo a sua orientação ideológica.
É importante lembrar que a perspectiva do trabalho coletivo sempre lhe fora cara,
mesmo antes da fundação deste “espaço alternativo”, como pode ser depreendido de
sua obra teórica mais importante, o Teatro Político:

Conforme minha concepção de mundo, eu sempre me esforcei para realizar esta


simples idéia: nunca trabalhar a não ser em colaboração. O teatro, por sua pró-
pria natureza, implica num esforço coletivo. Nenhuma outra forma de arte, salvo a
arquitetura e a música orquestral, depende tanto quanto ele da existência de uma
comunidade homogênea.34

Ainda que o termo “comunidade homogênea” possa suscitar uma discussão sobre
o grau de homogeneidade possível – ou sequer existente – em grupos e coletivos, é
importante não perdermos de vista o contexto histórico em que ele está inserido, no

34 piscator, e. Le Théâtre Politique. Paris: L’Arche, 1972, p.136. Sugerimos a leitura da tra-
dução francesa (realizada por Arthur Adamov com a colaboração de Claude Sebisch)
ou espanhola (feita por Salvador Vila) ao invés da tradução brasileira (Teatro Político, Ed.
Civilização Brasileira, trad. de Aldo Della Nina, 1968). Tal tradução – a única disponível
em português – contém inúmeros erros, omissões e falhas de edição, o que pode com-
prometer o entendimento das proposições teóricas de Piscator. Todas as citações desta
obra, presentes neste capítulo, foram por nós traduzidas da referida edição francesa.
20

qual – como já dissemos – a militância política comunista é indissociável do projeto


artístico deste encenador.
À época de seu trabalho na Volksbühne – anterior à criação de seu próprio teatro
– Piscator já arriscava o desenvolvimento de “embriões de coletivos”. Em um texto
escrito para o periódico Berliner Börsen-Courier, ele afirma que: “O coletivo de teatro,
a influência de nossa concepção de mundo sobre todo o aparelho [teatral], tudo isto
cria uma comunidade que [...] faz do encenador um membro da trupe, no mesmo
nível que o diretor de cena, o ator, o autor e o dramaturgista”35.
Contudo, somente alguns anos mais tarde, enquanto Diretor Artístico do Pisca-
tor-Bühne, ele conseguirá, através da criação do Estúdio, colocar em prática proce-
dimentos coletivos que não foram levados a cabo na Volksbühne e nem mesmo no
palco principal de seu próprio teatro. Tal êxito estava relacionado ao fato de o Estú-
dio não ter que responder aos compromissos e às pressões de bilheteria e crítica. O
território de risco e experimentação associado aos estúdios – característica esta que
atravessará todo o teatro no século xx, e cuja origem remonta aos diferentes estú-
dios do Teatro de Arte de Moscou – fornecia o meio ideal para os projetos artísticos
mais arrojados.
Outra razão do sucesso encontrava-se, também, na força e no entusiasmo de ato-
res e colaboradores mais jovens, ainda não conformados pela dinâmica rotineira da
produção teatral. Tal coletivo produziu um modus operandi bastante peculiar, assim
caracterizado: atores, dramaturgos, músicos, diretores, cenógrafos e até mesmo os
técnicos, participam conjuntamente desde a escolha do projeto a ser realizado até a
discussão de todas as etapas de sua elaboração.
Segundo Piscator, este Estúdio teria a missão de “um laboratório, onde os mem-
bros do teatro e todos aqueles que participam de suas atividades podem se exercitar,
na prática, em tarefas sempre novas, e adquirir, cada um encorajando o outro e com-
pletando-se mutuamente, uma visão de conjunto do trabalho”36.
É curioso como, no final da década de vinte, num momento de franca ascensão
do reinado do encenador – que coabitava com o teatro de texto, por um lado, e com
o teatro do grande ator ou atriz, por outro – essa experiência do Estúdio também
já antecipava a criação coletiva das décadas de 60 e 70. Se, por um lado, o Estúdio
atacava os mecanismos de funcionamento da empresa teatral e de suas estruturas
hierárquicas, por outro, ele conclamava e estimulava a contribuição de todos os seus
colaboradores – artísticos e técnicos.
É claro que contradições ocorriam dentro deste projeto coletivizante. Piscator não
omitirá a existência de rivalidades, disputas, ciúmes e mal-entendidos nele presentes.
Aliás, a contradição mais aparente pode ser percebida no fato deste teatro – ideali-

35 piscator, e., Le Théâtre Politique, pp.136-137.


36 Ibid., pp. 138-139.
21

zado como um coletivo – levar o sobrenome individual de seu fundador no título da


instituição: Teatro Piscator.
Maria Piscator, ao avaliar a dimensão do projeto artístico de seu esposo, onze anos
após o seu falecimento, afirma que “ainda que o teatro não possa mais simplesmente
mostrar o indivíduo, fora de todo o seu contexto social, mas sim inserido na história,
ele [o teatro] não é mais concebível sem uma colaboração entre o autor, o encena-
dor, o cenógrafo, os maquinistas, os atores”37. É sintomático e revelador que o balan-
ço geral das contribuições deste importante diretor alemão, feito por alguém que o
acompanhava de perto, traga para o primeiro plano o modo de criação e de produção
fomentados pelo Teatro Piscator.
Um pouco mais à frente, ao discorrer sobre o projeto do Estúdio, ela reafirmará tal
posição, concluindo que “o novo estilo que Piscator tenta criar apela para uma elaboração
coletiva, que é a finalidade do trabalho do autor, dos técnicos, dos músicos, dos atores”38.
Ou seja, modo de criação e resultante estética estariam intimamente imbricados.
Ao descrever mais detalhadamente o trabalho do Estúdio, Erwin Piscator nos rela-
ta que dentro dele,

[...] os atores não estão mais unidos somente pelo elo sempre frouxo de uma rela-
ção de contrato; eles formam um coletivo, ao qual, com iguais direitos e deveres,
pertencem também o autor, o músico, o diretor de cena e o cineasta; e é este cole-
tivo que decide a escolha das peças a serem representadas, que chega, por meio de
discussões amigáveis, à concepção geral da encenação, que elege o respectivo ence-
nador e a distribuição dos papéis e que, em resumo, empreende e encaminha todo
o trabalho cuja última etapa – o espetáculo acabado – não será mais importante do
que as semanas de preparação durante as quais se pode formar uma vontade sólida
e unitária, nascida em discussões teóricas, e fundamentada na experimentação do
material que constitui a peça, envolvendo os atores e o aparato técnico.39

Tal descrição, se assim o quiséssemos, bem poderia ser transposta a alguns procedi-
mentos de trabalho do Living Theatre, Open Theater ou mesmo do Théâtre du Soleil. Percebe-
mos nela, por exemplo, a inegável importância do trabalho do ator, dando subsídios à cria-
ção cênica ou ainda experimentando na prática um material dramatúrgico previamente
escrito. Em outras palavras, estabelece-se uma aproximação estreita entre a cena e o texto,
entre a sala de ensaio e o gabinete do dramaturgo, com ganhos para ambos os lados.
Além disso, outro fato que chama a atenção é a ênfase dada ao aspecto processual,
considerado tão importante quanto o resultado final. É surpreendente – e avant la lettre
– a sua defesa do processo de criação, das “semanas de preparação” apresentarem a mes-

37 piscator, m. e palmier, j.-m. Piscator et le Théâtre Politique. Paris: Payot, 1983, p. 160.
38 Ibid., p. 160 (grifo nosso).
39 piscator, e., Le Théâtre Politique, p. 139.
22

ma importância do “espetáculo acabado”. Claro que o que está em jogo é o “grau de ela-
boração” do espetáculo e não a negação do seu compartilhamento com o público. O pres-
suposto de “tornar pública” a obra era fundamental ao projeto de um teatro político.
O aspecto processual vai ser reforçado por Piscator em um capítulo posterior (“Um
Ano de Estúdio”), dedicado às montagens realizadas no Estúdio. Encontramos aí, por
exemplo, a importância dada ao caráter pedagógico de sua empreitada: “Como dis-
se anteriormente, o Estúdio não cumpria a sua tarefa apenas com as apresentações
públicas dos espetáculos. O essencial de seu trabalho residia nas suas atividades de
ensino”40. Ou seja, o Estúdio funcionava tanto como um campo de experimentação
artística e ideológica de ponta, como um centro de formação para jovens artistas ou
recém-ingressos no Teatro Piscator. Esta perspectiva educacional e de reciclagem de
conhecimentos revela outra face de seus objetivos programáticos.
Em relação a este último aspecto, as atividades eram assim encaminhadas:

[...] são oferecidos aos membros do Estúdio cursos e conferências nos quais são tra-
tados todos os grandes problemas filosóficos e políticos de nossa época. Aí também
se ensina, além do estudo sobre as personagens, o aprendizado de línguas estran-
geiras e os métodos de educação do corpo. O programa de estudos era estabelecido
em função da peça a ser representada.41

Contudo, é importante ressaltar, a perspectiva do engajamento político jamais pode-


ria estar dissociada do eixo pedagógico, pois “como esta [nossa] concepção de mundo
é ativa, os atores do nosso teatro devem ser educados a fim de se tornarem homens de
ação”42. Portanto, uma parte significativa do embasamento teórico das atividades tinha
por objetivo fomentar a consciência crítica dos artistas e técnicos envolvidos.
No que diz respeito ao modo de funcionamento do Estúdio, Piscator – além de
mentor da idéia – ocupava o lugar de coordenador geral daquela experiência. Ou seja,
ele era o Diretor Artístico do Estúdio – o que não deve ser confundido com a figu-
ra do encenador. Isso porque o Estúdio convidou, ao longo de sua curta existência,
outros diretores para integrarem a equipe de criação dos espetáculos nele realizados,
cuja função, aí sim, era propriamente a de encenar as peças escolhidas.
Ao analisarmos especificamente a função do encenador dentro deste contexto,
chama a atenção que, algumas das atribuições normalmente a ele delegadas, passem
a ser decididas coletivamente. Como exemplo, pode ser citado a escolha do texto ou
a subseqüente divisão dos papéis nele contidos. Contudo, o que mais surpreende é o
fato de o próprio conceito da encenação tornar-se uma deliberação da equipe de tra-
balho. Entre as possíveis vantagens dessa partilha de atribuições, Piscator vai apontar

40 piscator, e., Le Théâtre Politique, p. 214.


41 Ibid., p. 140.
42 Ibid., p. 140.
23

que “este princípio de trabalho coletivo permite ao diretor de cena e ao encenador se


desincumbirem de uma parte de suas tarefas intelectuais e materiais”43.
Contudo, seria possível ainda utilizarmos o termo “encenador” numa experiência
na qual o conceito de encenação é decidido coletivamente e na qual o diretor perde
espaço no seu campo de ação? O próprio Piscator chega a uma postulação radical na
qual afirma que em “um teatro fundado sobre o princípio da coletividade nasce um
tipo de direção coletiva”44.
Ora, estaríamos nesse caso, diante da diluição da função do encenador, tal como
preconizada pela criação coletiva? Em uma primeira análise, sim. O problema é que,
ao longo da sua descrição sobre o funcionamento do Estúdio, Piscator não elucida
inteiramente a dinâmica dos papéis artísticos dentro do trabalho de criação. Não
raro, chegamos a ter percepções contraditórias sobre tal sistemática.
Por exemplo, é possível depreender em outras passagens do texto que, ainda que
o diretor tenha perdido parte da sua autoridade e autonomia, a função a ele atribuída,
permanece. Ele mantém o papel de diretor – e não apenas de um mero organizador –
atuando como membro ativo e criador, dentro da companhia. É claro que, nesse caso,
ele é mais um entre os criadores; e não o criador único ou principal. Também é impor-
tante ressaltar que, diferentemente da criação coletiva, as outras funções criativas e
técnicas – dramaturgo, ator, músico, diretor de cena, dramaturgista, cenotécnico, etc.
– mantêm-se garantidas. Por este viés, tal experiência encontra uma correspondência
inequívoca com o processo colaborativo.
Além disso, a ênfase dada à relação do dramaturgo com os outros criadores em sala
de ensaio – onde se experimentaria o texto, dando possibilidade ao autor de reconhe-
cer os defeitos e qualidades de sua peça e, conseqüentemente, reescrevê-la – é outro
aspecto dessa aproximação. A dramaturgia, nessa medida, não é coletiva, porém, ela é
testada e exercitada conjuntamente pela equipe, com o objetivo de aperfeiçoá-la.
Portanto, se por um lado, poderíamos remeter o enfraquecimento da função do
encenador a uma antecipação da criação coletiva, por outro lado, o papel do drama-
turgo no Estúdio de Piscator materializaria uma dinâmica mais próxima à do pro-
cesso colaborativo. Nesse sentido, encontramo-nos diante de uma matriz híbrida e
problemática, mas que, sem dúvida, se configura como um pólo precursor de proce-
dimentos coletivos de criação de décadas posteriores.
Contudo, faltam-nos outros relatos documentais sobre a experiência do Estúdio
para que possamos afirmar, categoricamente, tais similitudes e diferenças com o pro-
cesso colaborativo. A descrição que Piscator nos oferece padece de maiores detalha-
mentos, pois dedica apenas poucas páginas de seu livro-chave, Teatro Político, para
relatar a rica e complexa dinâmica de funcionamento do Estúdio.

43 piscator, e., Le Théâtre Politique, p. 139.


44 Ibid., p. 137 (grifo nosso).
24

A análise de Maria Piscator também não apresenta maiores elucidações. O seu tex-
to vai pouco além de um resumo ou balanço geral das propostas do marido, mesclan-
do, aqui e ali, algumas considerações pessoais. Dentre elas, todavia, destacaríamos
uma em especial, relativa ao trabalho do dramaturgo dentro do Estúdio: “A noção
de obra, de autor se transforma completamente. Nada é definitivo”45. Essa discussão
sobre “autoria” é um dos problemas centrais associados aos modos cooperativados
de criação e exigirá, de nossa parte, uma atenção específica.
Outra ponderação reincidente – e como tal, relevante – pode ser encontrada na
conclusão do trecho dedicado ao trabalho coletivo do Estúdio (“A noção de Coletivo”).
Apesar de se tratar – como já vimos antes – de um instigante insight, tal percepção não
é por ela desenvolvida: “A exigência de um trabalho em comunidade não é somente
prática. É dela que depende o estilo”46. Em outras palavras, Maria Piscator advoga que
este modo de fazer coletivo incorre necessariamente numa conformação estética.
De qualquer maneira, o ideal comunitário praticado no Estúdio, aponta e antece-
de elementos do trabalho realizado pelo Living Theatre. É evidente que a relação pro-
fessor-aluno vivida entre Erwin Piscator e Judith Malina, quando o primeiro se encon-
trava exilado nos Estados Unidos, foi extremamente profícua e rendeu frutos47. Pois
aquilo que no Estúdio se limitara a um experimento radical, de curta duração e com
pequena repercussão internacional, irá se consubstanciar de forma potente no modo
de criação do Living Theatre, alçando-o ao posto de um dos principais representantes
da chamada criação coletiva. Tal hipótese pode, de certa forma, ser confirmada na
avaliação de Judith Malina sobre seu mestre:

[...] eu sou aluna de Piscator, não somente por ter seguido seu ensinamento e seu tra-
balho em Nova Iorque, mas sobretudo porque eu tenho a intenção de continuar a via
que ele abriu. [...] praticamente nos esquecemos de Piscator, apesar de sua influência
sobre o teatro ter sido considerável. [...] todo o teatro sofreu a influência de Piscator,
de sua reflexão sobre a inclusão do espectador na ação e no espaço teatral. Eu acredi-
to que Brecht e Piscator inventaram junto o teatro político moderno. Quando eu saí
da escola [The Dramatic Workshop], a situação do teatro em Nova Iorque era desas-
trosa. [...] No momento em que Julian Beck e eu decidimos fundar um teatro, nós o
chamamos de Living Theatre porque nós desejávamos criar alguma coisa que fosse
capaz de mudar com o tempo, de seguir o fluxo, o movimento da história, de respon-
der às metamorfoses do indivíduo e da sociedade. E este teatro existe ainda hoje, nós

45 piscator, m. e palmier, j.-m. Piscator et le Théâtre Politique, p. 160.


46 Ibid., p. 161.
47 Sugerimos, a este respeito, a leitura de The Piscator Experiment, no qual a sua autora, Maria
Piscator, faz um relato pessoal de todo o período do exílio americano. No livro há um ca-
pítulo onde são descritas as atividades do The Dramatic Workshop, onde Piscator deu au-
las para Judith Malina, Marlon Brando, Ben Gazzara, Tennessee Williams, entre outros.
25

continuamos a criar espetáculos que exprimem verdadeiramente, como reivindicava


Piscator, o engajamento de cada ator e de cada pessoa que trabalha conosco.48

À guisa de conclusão do sobrevôo histórico até aqui percorrido – desde o sim-


bolismo até Piscator – podemos destacar que as experiências teatrais coletivas ana-
lisadas apresentam traços distintivos nos modos de operação, e mesmo variações
em seus formatos e objetivos quanto ao compartilhamento da criação. De manei-
ra sucinta, poderíamos descrever essas complexas motivações, características ou
materializações – muitas vezes justapostas ou imbricadas em sua diversidade – da
seguinte forma:

• Estímulo à vida comunitária, associada ao trabalho com a terra, ao retorno


à natureza e à divisão das tarefas “domésticas” e cotidianas, constituindo
uma espécie de “comunidade” ou “comuna” teatral;
• Comunhão ou “fraternidade” de artistas, de diferentes áreas, trabalhando
conjuntamente para a realização de um evento artístico integrado, num
misto de celebração religiosa e coletivismo altruísta;
• Definição coletiva, por parte do grupo, estúdio ou teatro, dos temas de
interesse ou das peças a serem montadas, e de suas respectivas concepções
cênicas. Além dos artistas, tomavam parte de tais escolhas, os técnicos, os
operários e os espectadores associados;
• Socialização do conhecimento;
• As ligações e colaborações entre os artistas não decorrem de imperativos
contratuais, mas sim de filiações ideológicas, políticas, e de desejos artísti-
cos ou de pesquisa comuns;
• Presença do dramaturgo em sala de ensaio, criando o texto em parceria com
os atores, diretor(es) e demais colaboradores, por meio de improvisações e
discussões;
• Elaboração do espetáculo por meio da divisão das áreas de criação em
diferentes comissões ou “círculos”, cada qual encarregado de um aspec-
to específico da montagem;
• Horizontalidade e igualdade nas relações de trabalho, não havendo distin-
ções hierárquicas entre artistas e técnicos, e mesmo entre os diferentes cam-
pos artísticos;
• Companheirismo na execução dos trabalhos e recusa do autoritarismo;
• Abolição da divisão estrutural do elenco entre atores protagonistas, atores
coadjuvantes e figurantes;

48 collectif. Avec Brecht. Arles: Actes Sud/Académie expérimentale des théâtres, 1999,
pp. 51-53.
26

• Investigação coletiva das personagens, por meio da qual cada um dos ato-
res experimenta todos os papéis;
• Direção ou encenação coletiva, levada a cabo por um grupo de diretores
ou pelo próprio conjunto de integrantes do coletivo;
• Acúmulo de várias – ou de todas – funções artísticas por um único e mes-
mo integrante, ou, pelo menos, o incitamento ao trânsito entre as diferen-
tes funções;
• A autoria da obra é coletiva e deve conjugar a contribuição artística de
todos. Tal perspectiva parece produzir uma resultante estética marcada
por esse modo compartilhado de criação;
• Organização e produção cooperativada; autogestão coletiva e democrática;
• Controle dos meios de produção por parte do coletivo;
• Divisão igualitária de salários ou lucros;
• Estímulo ao exercício da crítica e autocrítica, por parte de todos os inte-
grantes, produzindo uma espécie de “crítica coletiva” permanente, tam-
bém praticada no diálogo aberto com o público;
• Convocação do espectador para participar do processo de construção da
obra, seja por meio de debates realizados em ensaios abertos, seja por sua
contribuição concreta nos variados aspectos criativos da montagem, ou
ainda, por sua participação em “cenas de massa”;
• Rompimento da separação atores/observadores, estimulando a participa-
ção dos espectadores durante a apresentação e promovendo um apelo à
“produtividade” do público;
• Realização de espetáculos ao ar livre e em espaços não-convencionais, de for-
ma a se integrar e a comungar mais diretamente com a vida dos cidadãos;
• Caráter não-ilusionista e processual acentuado, por meio da revelação dos
procedimentos de fabricação e do percurso de construção da obra;
• Projeto de reciclagem e de formação de novos artistas e coletivos, com o
objetivo de se produzir um efeito multiplicador;
• Participação dos artistas na vida cotidiana da comunidade, por meio de
atividades pedagógicas ou assistenciais.

Os aspectos acima relacionados sintetizam as variadas abordagens ou perspecti-


vas do “fazer teatral coletivo”, relativas ao início do século passado. Contudo, o que
mais se evidencia é o quanto tais elementos ou visões antecipam as práticas artís-
ticas democráticas da segunda metade do século xx. Estas últimas apresentarão, é
claro, matizes ou amálgamas diferentes; porém, serão indubitavelmente devedoras,
no campo da arte, de uma matriz tolstoiana, simbolista e/ou do agitprop.
27

2.3 Criação Coletiva

Na tentativa de definição desse termo, tarefa esta bastante problemática, na medi-


da em que existiram diferentes experiências de criação coletiva nas décadas de 60 e
70, em vários países do mundo, Patrice Pavis buscará alguns denominadores comuns
a essas distintas conformações: espetáculo “não assinado por uma só pessoa, mas ela-
borado pelo grupo envolvido”, com um texto “fixado após as improvisações durante
os ensaios”, fazendo a peça “tender para uma encenação ‘coletiva’”49. Tomando o
Living Theatre e o Théâtre du Soleil como experimentos emblemáticos, Pavis aponta-
rá ainda o desejo de reação por parte dessas companhias contra a divisão do trabalho
e a especialização, bem como a busca pelo ideal de um artista de teatro polivalen-
te. Tais aspectos, a abolição da função especializada e a polivalência artística – elementos
estreitamente vinculados um ao outro – constituem um eixo fundamental para nossa
reflexão sobre a criação coletiva.
Essa perspectiva pode também ser confirmada em uma análise da trajetória dos
grupos teatrais brasileiros dos anos 70, com ênfase especial no Asdrúbal Trouxe o
Trombone, realizada pela pesquisadora Sílvia Fernandes:

[...] a cooperativa de produção favorecia o processo de criação coletiva dos espetácu-


los, levando à diluição da divisão rígida entre funções artísticas e a uma democrá-
tica repartição de tarefas práticas. Todos os participantes eram autores, cenógrafos,
figurinistas, iluminadores, sonoplastas e produtores dos espetáculos. Era evidente a
intenção de fazer dos trabalhos o fruto da colaboração de cada participante.50

Se tomarmos o depoimento artístico de Julian Beck, co-fundador do Living The-


atre, ele definirá a criação coletiva como um exemplo de “Processo de Autogestão
Anarco-comunista” e a descreverá da seguinte forma:

Um grupo de pessoas se reúne. Não há nenhum autor em quem se apoiar, o qual


arranca o impulso criativo de você. Destruição da superestrutura da mente. Então,
a realidade vem. Nós ficamos sentados durante meses conversando, absorvendo,
descartando, criando uma atmosfera na qual nós não somente inspiramos uns aos
outros, mas onde cada um se sente livre para dizer o que quer que seja [...]. Gran-
de selva pantanosa, uma paisagem de conceitos, almas, sons, movimentos, teorias,
copas de poesia, selvageria, terra erma e vasta, errância. Então, você recolhe tudo e
ordena. Durante o processo, uma forma se apresentará por si mesma. A pessoa que

49 pavis, p. Dicionário de Teatro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001, p. 79.


50 fernandes, s. Grupos Teatrais – Anos 70. Campinas: Editora da Unicamp, 2000, p. 14.
28

fala menos pode ser quem vai inspirar aquela que fala mais. Ao final, ninguém sabe
quem foi realmente responsável por aquilo, o ego individual é carregado para a escu-
ridão, todo mundo está satisfeito, todos têm uma satisfação pessoal maior do que a
satisfação do “eu” solitário. E uma vez que você experimentou isto – o processo de
criação artística em coletividade – o retorno à velha ordem parece um retrocesso.51

Portanto, de uma maneira geral, e tomando como base as referidas experiências


grupais americanas, francesas e brasileiras, podemos perceber que na criação coleti-
va existe um desejo de diluição das funções artísticas ou, no mínimo, de sua relativi-
zação. Conforme analisado em nossa dissertação de mestrado, podemos identificar

[...] um acúmulo de atributos em cada artista envolvido ou uma transitoriedade


mais fluida das funções entre eles. Portanto, no limite, não [temos] mais um único
dramaturgo, mas uma dramaturgia coletiva, nem apenas um encenador, mas uma
encenação coletiva, e nem mesmo um figurinista ou cenógrafo ou iluminador, mas
uma criação de cenário, luz e figurinos, realizada conjuntamente por todos os inte-
grantes do grupo.52

Existem ainda, segundo Eduardo Vazquéz Pérez – crítico cubano e estudioso da cria-
ção coletiva na América Latina – duas formas correntes de se pensar tal fenômeno, uma
de caráter mais abrangente e outra bastante restritiva. A primeira considera que haja
criação coletiva sempre que ocorrer uma significativa participação do ator no processo
de criação do espetáculo. Já a segunda perspectiva identifica o fenômeno da criação cole-
tiva apenas onde não esteja presente a função do diretor cênico53. É importante perceber
como a figura do encenador, nesta segunda abordagem, é compreendida como um entra-
ve ou como um antípoda em experiências de compartilhamento criativo.
Muitas são as razões levantadas para o surgimento da criação coletiva. Tanto os
elementos conjunturais da época – marcada pela contracultura, pelo movimento hip-
pie e seu projeto comunitário, pelo ativismo político e libertário acentuado – quanto
as necessidades especificamente teatrais – falta de uma dramaturgia que se moldasse
perfeitamente às inquietudes sociais, temáticas e estéticas dos grupos de teatro de
então, ou ainda, a busca de uma relação mais participativa com o público – tudo isso
é invocado para justificar o aparecimento deste novo modo de criação.

51 beck, j. The Life of the Theater: the relation of the artist to the struggle of the people. New York:
Limelight Editions, 1986, pp 84-85.
52 silva, a. c. a. A Gênese da Vertigem: o Processo de Criação de ‘O Paraíso Perdido’. 2002. 192 f.
Dissertação (Mestrado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de
São Paulo, p. 101.
53 céspedes, f. g. (org.). El Teatro Latinoamericano de Creación Colectiva. Ciudad de La Habana:
Casa de las Américas, 1978, p. 133.
29

No Brasil, alguns representantes significativos dessa vertente são, entre outros,


o Asdrúbal Trouxe o Trombone (1974); Pod Minoga (1972); União e Olho Vivo (1972);
Núcleo Independente (1970) – grupo egresso do Teatro de Arena, e que teve conta-
to com Enrique Buenaventura -; e ainda os espetáculos do grupo Sonda – como O
Rito do Amor Selvagem (1969) – e do grupo TUCA (sob a direção de Mário Piacentini)
– Comala (1969) e O Terceiro Demônio (1970). O Teatro Oficina, além do intercâmbio
com o Living Theatre e com o grupo argentino Los Lobos, realiza um marcante
espetáculo de criação coletiva, Gracias Señor (1972), elaborado a partir de uma via-
gem pelo país.
Nos outros países da América Latina, a criação coletiva também teve uma impor-
tância enorme dentro do panorama teatral, chegando mesmo a tornar-se um dos
elementos identitários de sua cena. Como bem observa Randy Martin, ela é fruto da
conjuntura das vanguardas estrangeiras associada à dinâmica local, sugerindo um
“movimento” cênico transnacional dentro do continente latino-americano. Além dis-
so, ela se encontra fortemente marcada pelo desejo de “exploração da participação
dos atores e do público no processo criativo do teatro [...]. O teatro da criação coletiva
desdobrou a suscetibilidade da arte para a participação”54.
Na busca de uma nova relação com a platéia – na perspectiva de uma “estética
participativa” – procurou-se subverter a experiência de passividade por parte dos
espectadores, de forma a que não se acomodassem enquanto convidados distantes
da cena, mas que assumissem um papel mais ativo, crítico e integrado. No limite,
almejou-se que o projeto artístico viesse a se configurar como uma criação de todos,
rompendo-se a barreira entre artistas e público.
Tal objetivo fez com que vários grupos deixassem os palcos italianos e criassem
espetáculos e intervenções em ruas e praças, na busca de um contato direto com
os transeuntes-espectadores. Procurava-se com isso, também, atingir e conscientizar
criticamente um público que jamais iria ao teatro. Neste desejo de “participação”
encontrava-se embutido um projeto utópico de transformação da realidade.
Se, por um lado, montagens com temática social e histórica, sob um forte viés de
engajamento político, foram uma das vertentes mais fortes na cena latino-america-
na, houve outras, que aliavam crítica de costumes, liberação sexual e experiências
lisérgicas a um radical aspecto de pesquisa formal. Estes últimos, inclusive, sofreram
com juízos preconceituosos, como se não passassem de “outra coisa que não evasão
ou estampido raivoso de rebeldes sem causa, ou pretexto para elevar a pornografia e
o consumo de drogas à categoria de espetáculo para uma platéia mórbida”55.

54 martin, r. Socialist Ensembles: theater and state in Cuba and Nicaragua. Minneapolis:
��������������������
Univer-
sity of Minnesota Press, 1994, p. 43.
55 domínguez, Carlos Espinosa. “Entrevista con Manuel Galich. Creación Colectiva: un te-
atro necesario y urgente”. In: CÉSPEDES, F. G. (org.). El Teatro Latinoamericano de Creación
Colectiva, p. 34.
30

No que diz respeito à metodologia de trabalho, os procedimentos foram inúme-


ros, de acordo com as características de cada grupo. Pesquisa teórica, levantamento
de documentação histórica, entrevistas e questionários, coleta de narrativas orais,
pesquisa de campo, longos processos de ensaio, feedback da platéia, são alguns dos
elementos mais recorrentes.
Por exemplo, no que diz respeito às diversas formas de encaminhamento da pesquisa,

[...] alguns grupos trabalham com times de pesquisa especializada (tais como estu-
dantes de ciências sociais ou assistentes sociais) ou desenvolvem as suas próprias
habilidades nestas áreas. Muitos grupos são observadores integrados nas comuni-
dades, nas quais eles passam a maior parte de seu tempo e freqüentemente moram
ali; desta forma a condução de entrevistas se torna mais informal e estimula uma
contribuição mais espontânea para dentro da montagem [...].56

Além disso, às vezes também é realizado um estudo minucioso da comunidade,


através “da expressão verbal e não verbal (o estudo das expressões idiomáticas, pro-
núncia, tom de fala, e os gestos e a linguagem corporal de forma geral”57.
Contudo, é a improvisação – como uma ferramenta de criação do texto e da cena
– a prática comum a todos aqueles grupos. Ela é, entre todos, o instrumento central
da criação coletiva, tornando-se praticamente impossível pensar uma sem a outra, e
vice-versa. Também assim o será no âmbito do processo colaborativo.
Segundo Pérez, é possível identificar três formas de criação coletiva no que diz
respeito à elaboração do texto:

1) A que parte de um texto já elaborado (uma obra de teatro). O processo de monta-


gem, desde o estudo do próprio texto, vai ser realizado pelos integrantes do grupo
em conjunto. [...]
2) A que na elaboração do texto só intervém uma parte dos integrantes do coletivo,
para depois prosseguir de forma similar à descrita no parágrafo anterior. [...]
3) A que tanto o texto como a encenação são elaborados por todos os membros do
grupo. Isto não exclui que a elaboração final da peça fique a cargo de um dos inte-
grantes do coletivo, porém somente depois que o grupo já tenha improvisado sobre
o material colhido da investigação.58

Um aspecto importante frisado por Pérez é que essas formas de criação por ele

56 weiss, j. a. (with Damasceno, L.; Frischmann, D.; Kaiser-Lenoir, C.; Pianca, M.; Rizk, B.
J.) Latin American Popular Theater: the first five centuries. Albuquerque: University of New
Mexico Press, 1993, p. 168.
57 Ibid., p. 169.
58 céspedes, f. g. (org.), El Teatro Latinoamericano de Creación Colectiva, p. 141.
31

mapeadas não têm um uso excludente. Isto é, o mesmo grupo, dependendo dos seus
interesses e necessidades naquele momento, pode trabalhar com uma ou outra des-
sas três maneiras, em espetáculos diferentes.
É importante observar ainda que o terceiro item de sua análise abre uma possibi-
lidade de aproximação com o processo colaborativo, na medida em que a síntese dra-
matúrgica final possa ser realizada por “um dos integrantes do coletivo”. Porém, não
fica claro que esse “integrante” seja, de fato, um dramaturgo, convocado pelo grupo,
desde o início, a assumir esta função. Além disso, nada é mencionado em relação à
manutenção da função do encenador.
Caberia então verificarmos como se coloca tal função dentro da criação coletiva. Se
tomarmos como base as análises de Pavis e Fernandes, o papel do encenador – como de
resto das outras áreas artísticas – está repartido dentro do grupo. Todos os integrantes
são encenadores em potencial, tendo direito ao exercício desta função. O diretor, nesse
sentido, desaparece como um criador individual e a sua obra-encenação, a sua autoria
pessoal, encontra-se distribuída e compartilhada pelo coletivo. Portanto, ele não pro-
duz uma criação autônoma particular. Na verdade, no limite, nem se poderia reivindi-
car a ação específica de um diretor, já que todas as funções teriam sido abolidas.
É claro que, com isso, não se possa afirmar a inexistência de uma proposta de
encenação. Se pensarmos em alguns espetáculos-ícones da criação coletiva, tais como
Paradise Now (Living Theater, 1968), 1789 (Théâtre du Soleil, 1970), ou Trate-me Leão
(Asdrúbal Trouxe o Trombone, 1977), é evidente a presença de um conceito de ence-
nação, de uma escritura cênica bem definida, de uma poética espacial e interpretati-
va formalizada e perceptível à leitura do espectador. Ou seja, podemos falar sim em
uma encenação, porém numa encenação coletiva, desenhada a várias mãos.
Por exemplo, quando Julian Beck vai descrever o processo de criação de outra
importante obra do Living, ele afirma categoricamente que “Mysteries [Mysteries and
Smaller Pieces, 1964] não tinha um diretor. Nós todos criamos [essa peça] em menos de
quatro meses, fazendo mudanças de vez em quando durante os meses que se segui-
ram. Alguns membros da companhia contribuíram mais do que outros. Que impor-
tância tem isso?”59.
Se analisarmos apenas o final desta última citação, já podemos entrever que nem
tudo é assim tão pacífico na seara da encenação coletiva. Primeiramente – como vere-
mos adiante – porque a figura do encenador continuou existindo dentro de alguns
grupos, ainda que de forma velada e não-assumida. Em segundo lugar, porque houve
algumas companhias de criação coletiva – por exemplo, La Candelaria – que não
abdicaram da função do diretor. O que estava em jogo, ali, não era a existência ou
não deste papel, mas sim o momento do processo onde ele entraria e, além disso, a
revisão da sua forma de atuação.

59 beck, j., The Life of the Theater: the relation of the artist to the struggle of the people, p. 47.
32

Beatriz Rizk, pesquisadora do teatro colombiano, em seu estudo sobre o Nuevo


Teatro Latinoamericano apresenta um modelo de criação coletiva que abre espaço para
a manutenção das funções. Segundo ela, “... a criação coletiva não eliminou defini-
tivamente o texto de autor nem excluiu o diretor, ainda que seja um lugar-comum
bastante aceito de que ali não havia campo nem para um nem para o outro”60.
No caso específico da direção, Rizk ainda afirma que o que se aboliu fora a forma
ditatorial do encenador trabalhar, e não a função em si. De acordo com sua análise,

[...] continua existindo uma divisão estrita de trabalho na qual o diretor – ou direto-
res designados – continua dirigindo. O que acontece é que já não trabalha de uma
maneira ditatorial, mas sim com a colaboração dos atores. Agora, o que de fato a cria-
ção coletiva aboliu foi a hierarquização das tradicionais companhias de teatro, quase
sempre funcionando através do produtor, que era o dono da empresa, e girando em
torno de um sistema de “estrelas”, que, sem dúvida, era a atração da bilheteria.61

Carlos José Reyes, dramaturgo e diretor colombiano, em um importante ensaio


denominado “La Creación Colectiva: una nueva organización interna del trabajo teatral”,
também defende a permanência da função do diretor dentro deste modo de criação.
Segundo ele, “... [este] método de trabalho [...] não implica na abolição do diretor,
mas sim na destruição de sua onipotência. O diretor já não marca mecanicamente
os movimentos, de acordo com seus gostos estéticos ou seus caprichos. Ele estuda as
imagens de maneira coletiva e, através de uma análise intensa, escolhe, seleciona,
organiza”62. Ou seja, a criação individual do diretor, após uma etapa de coletivização
e de discussão sobre o material levantado, mantém-se garantida.
Também Peréz afirma categoricamente que “é errôneo ver a criação coletiva como
o oposto ao teatro de autor ou ao diretor cênico”, e aponta que o que se encontra em
crise não são as funções ou especialidades, mas, sim, “as rígidas relações que se esta-
belecem entre elas”63.
Contudo, é importante lembrar que a referência principal para esses estudiosos
é justamente aquela do Nuevo Teatro colombiano, o qual – veremos a seguir – por seu
caráter metodológico peculiar, se assemelha bastante às experiências do processo
colaborativo.
Em uma direção similar a de Rizk e de Reyes, Marina Pianca – outra referência
importante para os estudos sobre o teatro latino-americano – faz uma defesa do tra-
balho individual dentro da criação coletiva. Segundo ela,

60 rizk, b. El Nuevo Teatro Latinoamericano: una lectura histórica. M�����������������������


inneapolis: The Prisma
Institute/The Institute for the Study of Ideologies and Literature, 1987, p. 69.
61 Ibid., p. 69.
62 céspedes, f. g. (org.), El Teatro Latinoamericano de Creación Colectiva, p. 92.
63 Ibid., p. 136.
33

[...] esta metodologia não é, em nenhum momento, uma negação do trabalho indi-
vidual. A criação coletiva implica em um trabalho pessoal, em um desenvolvimen-
to pessoal árduo e comprometido, porém nunca solitário. E caso estabeleça uma
hierarquia dentro do trabalho, não é a hierarquia vertical superior-inferior, mas
sim a hierarquia taxonômica e teleológica em função daquilo que, em sua relação
com o público, interessa fundamentalmente ao grupo.64

Como podemos perceber pelas análises anteriores, o problema da abolição da


função artística do diretor ou de sua autoria individual, no âmbito da criação coleti-
va, é um tema complexo e contraditório. O que se apresenta como mais consensual
é o fato de que, se não podemos pensar em autores individuais autônomos e inde-
pendentes, presenciamos, ao menos, um conjunto de indivíduos com uma postura e
atitude autoral, ao longo do processo de criação.
Se ampliarmos esse debate em relação à dramaturgia, veremos que a questão da
autoria individual também fica colocada em xeque, especialmente no caso de peças
originais escritas pelo grupo. Como aponta Weiss, “em razão do processo coletivo [...]
a autoria individual com freqüência equivale a editar ou escrever os rascunhos e o
texto final, baseados nas contribuições do grupo. E no caso de peças preexistentes, a
mão do diretor e as decisões do grupo influenciarão a forma da montagem”65.
No primeiro caso, a peça pode ter a assinatura do grupo inteiro ou apenas levar
o nome de um dos membros da equipe – o que não é visto como uma descaracte-
rização da criação coletiva, pois todo o processo de escritura foi realizado coleti-
vamente. Tal procedimento de trabalho a aproxima, sem dúvida, da estrutura do
processo colaborativo.
Já no caso de textos dramatúrgicos preexistentes, é comum a peça funcionar mais
como um ponto de partida ou como um material de inspiração a ser reelaborado
pelas interferências e proposições cênicas do grupo. Ou seja, a dramaturgia se cons-
titui apenas como um pretexto para os desejos e necessidades artísticas da equipe. E,
portanto, na medida em que o processo de criação é todo compartilhado, a autoria
preexistente do dramaturgo não põe em perigo a expressão grupal.
Outra característica importante da dramaturgia da criação coletiva é seu cará-
ter provisório, mutante, afeito a contínuas reescrituras, tanto durante o processo de
ensaio, quanto a partir da recepção dos espectadores. Cada peça apresenta muitas
versões, mesmo após vários meses da abertura oficial para o público. Os famosos
“debates após o espetáculo”, nos quais a platéia expõe as suas críticas e sugestões, vão
redesenhar tanto o texto quanto a montagem.

64 pianca, m. El Teatro de Nuestra America: un proyecto continental 1959-1989. Minneapolis: Th��


e
Institute for the Study of Ideologies and Literature, 1990, p. 89.
65 weiss, j. a. (with Damasceno, L.; Frischmann, D.; Kaiser-Lenoir, C.; Pianca, M.; Rizk, B.
J.), Latin American Popular Theater: the first five centuries, p. 167.
34

Portanto, podemos perceber nessa relação intrínseca, interdependente e simul-


tânea entre a dramaturgia e a cena, o quanto o aspecto teatral do texto fica mais
acentuado do que sua conformação literária. Aliás, ele tende a incorporar ao máximo,
citações, trechos de entrevistas, depoimentos colhidos em pesquisa de campo, etc., o
que lhe confere, em geral, um formato de mosaico.
Muitos dos seus detratores irão justamente criticar este aspecto episódico, frag-
mentário, de estrutura cumulativa e de justaposição – às vezes esquemática e super-
ficial. Chega-se até mesmo, em função de uma suposta fragilidade dramatúrgica, a
considerar a criação coletiva como “uma coisa de transição”, um “mal necessário”66.
Poder-se-ia, contudo, contra-argumentar, que um dos objetivos centrais deste “modo
de feitura” é a realização de uma ação teatral, mais do que a produção de uma obra
de grande valor literário.
Weiss, num exercício de distanciamento das questões e problemas específicos
desse fazer coletivizado, realiza uma análise de caráter global, na qual propõe
uma síntese das contribuições mais importantes da criação coletiva. Segundo ela,
o seu mérito

[...] não reside somente na criação de um novo texto ou mesmo de uma nova mon-
tagem, mas no seu complexo processo, que (1) serve como uma experiência educa-
cional para os membros do grupo, tanto em relação às questões históricas e sociais
quanto à sua relação com a comunidade ou com o público; (2) constrói ligações
com instituições de pesquisa ou intelectuais, por um lado, e organizações comuni-
tárias, por outro; (3) equipara a divisão de tarefas dentro da organização [grupal] e
habilita todos os membros com instrumental crítico; (4) contribui para o desenvol-
vimento do repertório e de estilos de montagem e interpretação, o que contribui
para a força cultural de um setor específico da sociedade e para o desenvolvimento
de um teatro nacional.67

Contudo, a criação coletiva não está imune a problemas. Também em nossa dis-
sertação apontamos algumas das contradições nela presentes:

[...] nem todos os participantes possuíam habilidades, interesse ou desejo de assumir


vários papéis dentro da criação. Esta polivalência de funções acabava acontecendo
apenas no plano do discurso – teoricamente ousado e estimulador – mas pouco
concretizado no dia-a-dia dos ensaios. [...] Muitas vezes, também, essa perspecti-
va do “todo mundo faz tudo” escondia certos traços de manipulação. Por exem-
plo, determinado dramaturgo ou diretor pregava tal discurso coletivizante visando

66 céspedes, f. g. (org.), El Teatro Latinoamericano de Creación Colectiva, p. 73.


67 weiss, j. a. (with Damasceno, L.; Frischmann, D.; Kaiser-Lenoir, C.; Pianca, M.; Rizk, B.
J.), Latin American Popular Theater: the first five centuries, p. 169.
35

camuflar um desejo de autoridade e, dessa forma, evitava confrontos e conflitos


com os outros integrantes do grupo.68

A propósito dessa afirmação, recordamo-nos de uma palestra69 de Joseph Chaikin,


criador do Open Theater – outro emblemático grupo americano de criação coleti-
va – na qual relatou, auto-ironicamente, que no início de cada ensaio ele tinha que
relembrar a toda a equipe que ele não era o diretor do trabalho e que não estava ali
para conduzir a criação, função esta que deveria ser compartilhada por todos.
Contudo, segundo Chaikin, as suas opiniões eram as que mais tinham peso nas
discussões e acabavam por orientar os rumos do espetáculo. Ou seja, ele, de fato, era
o diretor. Por mais que essa situação fosse negada ou tratada como tabu, ela acabava
ocorrendo na prática, e Chaikin, numa corajosa autocrítica, via aí uma atitude sua de
manipulação. Segundo ele também, tal situação de funções veladas e não-assumidas
se estendia a outras áreas de criação no Open Theater.
Julian Beck também discorre sobre o desconforto que ele e Judith Malina senti-
ram, durante a montagem de Frankstein, por estarem numa posição de comando. O
processo inteiro foi marcado por esse “mal-estar de função” dos dois diretores – tan-
to do grupo com eles, quanto deles com eles mesmos. Beck, por exemplo, afirma
que “Frankstein se recusou a ser coeso dentro do tempo pré-determinado, sem preci-
sar dos rígidos planejamentos do diretor”70. Um pouco mais adiante, ele descreve o
encenador apenas como um veículo para os atores – um medium, de acordo com suas
palavras, o que traz também a conotação xamânica da incorporação, do “cavalo”:

Nós precisávamos controlar um projeto cujas necessidades nós não podíamos mesurar.
Ele comandava o seu próprio destino. Os diretores, J & J [Julian Beck e Judith Malina],
contudo, estavam construindo um espetáculo para os talentos de uma companhia de
atores da qual eles conheciam cada um deles intimamente. Os atores dirigiam a eles
mesmos através do medium [“meio”, “veículo”, mas também “médium”] do diretor.71

Ainda que essa noção do encenador como um “veículo” ou “cavalo” não deixe
de ser bastante sugestiva e provocadora, o contexto em que ela aparece traz a pers-
pectiva do desaparecimento ou enfraquecimento de tal função. Porém, o principal
problema é essa “crise de identidade” ou “culpa do ofício” que parece atravessar os
processos mencionados. Pois, na verdade, trata-se de diretores que não assumem – ou
que não querem assumir – a própria direção que, de fato, exercem.

68 silva, a. c. a., A Gênese da Vertigem: o Processo de Criação de ‘O Paraíso Perdido’, p.101.


69 Palestra proferida em novembro de 1997, no PS 122, em Nova Iorque, na qual se avalia-
va a experiência do Open Theater no contexto do teatro de vanguarda americano.
70 beck, J., The Life of the Theater: the relation of the artist to the struggle of the people, p. 48.
71 Ibid., pp. 48-49.
36

O fato de esses grupos apresentarem lideranças fortes – em geral, diretores – vem


materializar uma aparente contradição com o discurso coletivizante da criação coleti-
va. Judith Weiss faz um levantamento exaustivo desses “diretores artísticos fortes”72,
entre os quais destacamos alguns: Buenaventura, no caso do TEC; Santiago García, no
La Candelaria; Atahualpa Del Cioppo, no El Galpón; María Escudero no Teatro Libre
Teatro; Sergio Corrieri, no Teatro Escambray; César Vieira, no União e Olho Vivo, etc.
Poderíamos acrescentar a essa lista os nomes já vistos de Julian Beck e Judith Malina,
no caso do Living Theatre; Joseph Chaikin, no Open Theater; Ron Davies, no San Fran-
cisco Mime Troupe; Luis Valdez, no Teatro Campesino; Peter Schumann, no Bread and
Puppet Theater, Ariane Mnouchkine, no Théâtre du Soleil, Salvador Távora, no La Cua-
dra de Sevilla, Albert Boadella, no Els Joglars, e mesmo – apesar de se tratar de um forte
grupo de atores – de Hamilton Vaz Pereira, no Asdrúbal Trouxe o Trombone.
Segundo Weiss,

[...] o problema da hierarquia e de papéis definidores parece ser paradoxal; [...] nós
só podemos concluir que apesar da rejeição geral do princípio da “estrela”, o cole-
tivo não-hierárquico é mais bem sucedido quando o grupo é mais estreitamente
identificado com um diretor ou fundador forte. [...] Contudo, todos esses grupos
conseguiram desenvolver um exitoso processo interno e uma divisão de responsa-
bilidades, o que indicaria que o papel do diretor é também aquele de um coordena-
dor habilidoso e de um facilitador.73

Apesar da presença do “diretor ou fundador forte” provocar uma crise quase per-
manente na dinâmica interna das relações intra-grupais, Weiss recoloca tal presença
por outro ângulo e afirma a sua importância. Ela desmonta a aparente contradição
associada à existência de um líder dentro do grupo, desde que garantida a divisão de
trabalho e de criação entre todos os integrantes, e sob a condição de que esse diretor-
coordenador ou facilitador atue em consonância com o coletivo. Contudo, trata-se
de uma análise a posteriori de um fenômeno e, pelo que já foi descrito, vivenciado de
forma bem distinta por quem lidava com o problema de dentro.
Ainda que tenha havido grupos de criação coletiva com dinâmicas internas dis-
tintas, essa questão da liderança parece ser menos problemática no processo colabo-
rativo. Em primeiro lugar porque, desde o início, o papel do diretor já se encontra
assumido pelo grupo. Depois, as opções e os caminhos dentro do grupo são sem-
pre discutidos por todos – com várias das escolhas sendo feitas através de votação.
Além disso, ocorre também o surgimento de outras lideranças em áreas diferentes do
trabalho. Por exemplo, se o diretor incita ou coordena os debates artísticos, outros

72 weiss, j. a. (with Damasceno, L.; Frischmann, D.; Kaiser-Lenoir, C.; Pianca, M.; Rizk, B.
J.), Latin American Popular Theater: the first five centuries, p. 156.
73 Ibid., p. 156.
37

membros do grupo encabeçam questões técnicas, pedagógicas, financeiras, adminis-


trativas ou de turnês. A idéia de múltiplas lideranças ou até mesmo de lideranças
rotativas – como no caso da Companhia São Jorge de Variedades – surge de forma
mais orgânica no âmbito do processo colaborativo.
É claro que a insistência por parte da mídia em atribuir a apenas um indivíduo o
esforço e o comprometimento que são coletivos, provoca uma grave distorção – não
raro, fonte de grande descontentamento entre os membros da equipe. Existe uma
dificuldade em se perceber que, por mais que haja uma “direção artística forte”, o
grupo não funciona atrelado a uma única vontade autoritária, as funções são com-
partilhadas, e as escolhas estéticas, ideológicas e processuais são debatidas por todo
o coletivo de artistas.
Porém, retornando aos pontos problemáticos concernentes à criação coletiva,
outro aspecto levantado diz respeito ao trabalho dos atores. Dada a perspectiva do
acúmulo de funções, o trabalho do intérprete, em geral, ficava relegado a um segun-
do plano. Não raro houve críticas à falta de um rigor técnico, à ausência de depura-
ção no trabalho vocal e corporal, à necessidade de um maior aprofundamento na
construção das personagens. Ou seja, o desejo de polivalência artística acabava por
prejudicar a área específica da interpretação – quando já não resultava deficitária por
eventuais fragilidades da própria dramaturgia.
Aliás, esta foi uma das razões que fez com que Joseph Chaikin saísse do Living
Theater e fosse montar o seu próprio grupo. Segundo ele,

[...] eu gostaria de saber mais sobre interpretação do que eu tive acesso [...] atra-
vés do Living Theater. Naquela época, o Living Theater não estava realmente nada
interessado em interpretação, e raramente explorava as próprias potencialidades
do ator ou da experiência do grupo. O constante estado de emergência no Living
Theater impedia isso.74

Os teóricos Fernando Duque Mesa e Jorge P. Prada apresentam ainda outra crítica,
no que diz respeito à relação forma-conteúdo do espetáculo: “o abandono do plano
estético-formal ao se privilegiar o plano conteudístico”75. Trata-se de uma observação
importante, pois a concretização do plano estético é vital para a potência da obra ofe-
recida ao espectador. Contudo, tal avaliação negativa não pode ser generalizada – ain-
da, é claro, que ela diga respeito especialmente ao panorama teatral colombiano.
Se considerarmos verdadeiro que alguns grupos de cunho mais engajado e ativista
privilegiavam a mensagem direta, a doutrinação política, a crítica social explícita em

74 chaikin, j. The Presence of the Actor. New York: Theatre Communications Group, 1991 (re-
print), p.52.
75 mesa, f. d; ortiz, f. p.; prada, j. p. Investigación y Praxis Teatral en Colombia. Santafé de Bo-
gotá: Colcultura, 1994, p.74.
38

detrimento de uma experimentação formal, por outro lado, houve também aqueles
que trouxeram inovações estéticas radicais. Alguns grupos, inclusive, conseguiram aliar
preocupações temáticas – em geral de ordem política, social ou de costumes – com
inquietações formais de ponta, como no caso do próprio Living, do Soleil ou do Asdrúbal.
Não pretendemos, ao trazer essas observações críticas, desqualificar ou desmere-
cer a experiência da criação coletiva. É inegável que obras fundamentais na história
do teatro no século xx foram criadas dentro desse modelo. O que está em foco é a
análise e a comparação dessa experiência com outra dinâmica coletiva de criação,
surgida nos anos 90, e que vem sendo denominada processo colaborativo.
Porém, antes de a abordarmos, parece-nos importante analisar a experiência da
criação coletiva na Colômbia, na medida em que ela antecipa ou apresenta certas
semelhanças com o processo colaborativo. Poderíamos, é claro, realizar outros estu-
dos de caso, tanto brasileiros quanto internacionais. Contudo, tal abertura do pano-
rama de amostragem nos faria incorrer em grave risco de superficialidade, além de
desfocar a trajetória pretendida, qual seja, a de traçar as conexões e diferenças entre
a criação coletiva e o processo colaborativo.

2.3.1 Criação Coletiva na Colômbia

Se é impossível pensarmos a experiência da criação coletiva sem nos referirmos a


grupos-ícones como o Living Theatre, o Open Theater, o San Francisco Mime Troupe
e o Bread and Puppet Theater nos Estados Unidos, e ao Théâtre du Soleil, na França,
em igual medida deveria ser óbvia a remissão a alguns grupos latino-americanos.
Contudo, na prática, o teatro produzido na América Latina ainda é pouco conhecido
– quando não negligenciado – por estudiosos e artistas no Brasil.
No caso específico da criação coletiva, tal desconhecimento ou omissão constitui
fato mais grave, na medida em que tal modo de criação conheceu profícuo desenvol-
vimento por todo o continente, especialmente a partir de 1963. Los Lobos e El Libre
Teatro Libre, na Argentina; El Galpón, no Uruguai; ICTUS, no Chile; Yuyachkani e
Cuatrotablas, no Peru; Ollantay, no Equador; Rajatabla na Venezuela, Teatro Escam-
bray, em Cuba, são apenas alguns poucos exemplos de um rico e complexo quadro.
Contudo, foi a Colômbia o país onde tal prática floresceu com mais repercussão,
tanto no que diz respeito à produção artística quanto à reflexão teórica e metodoló-
gica. O Teatro Popular de Bogotá, o Teatro Libre, de Ricardo Camacho, mas especial-
mente o Teatro Experimental de Cali (TEC), de Enrique Buenaventura e o Teatro La
Candelária, de Santiago Garcia e Patrícia Ariza constituíram marcos da criação cole-
tiva em nosso continente.
39

Não fosse apenas isso, a experiência colombiana – diferentemente daquelas ocor-


ridas na Europa, Estados Unidos e mesmo no Brasil – apresenta aspectos peculia-
res em seu modo de criação que a aproxima do que denominamos hoje, processo
colaborativo. Em outras palavras, o que ocorreu na Colômbia trata-se de um caso
excepcional – como em La Candelaria – não facilmente classificável, em termos de
metodologia de trabalho.
Por exemplo, ao realizarem uma análise da criação coletiva na Colômbia, Mesa e
Prada a definem de forma bastante similar aos procedimentos do processo colabora-
tivo. Segundo eles,

[...] o teatro como projeto coletivo é uma criação de todos, no qual não se eliminam
as especialidades, mas, pelo contrário, elas são fomentadas e convivem. Por isso, é
freqüente encontrar no interior de um grupo um dramaturgo que, de acordo com
estas premissas, recolhe as propostas dos atores, cenógrafos e demais membros
em suas áreas específicas, até conseguir configurar o produto teatral, resultante
de uma série de inter-relações que se gestam e cristalizam no processo de trabalho
como expressão globalizadora do grupo.76

A defesa que ambos os pesquisadores fazem da manutenção das funções especí-


ficas durante o processo de criação – que vai no sentido oposto das análises de Pavis
sobre a criação coletiva – remete diretamente à dinâmica de trabalho dentro do pro-
cesso colaborativo. Claro que tal afirmação tem um caráter genérico e abstrato, o
que torna fundamental uma observação mais detida sobre as práticas do TEC e do La
Candelaria.
Portanto, pareceu-nos pertinente e elucidativo um estudo à parte destes dois gru-
pos – lideranças fundamentais de um movimento então denominado Nuevo Teatro
Colombiano -, tanto pelas sistematizações relativas à criação coletiva, quanto pela pas-
sagem ou ponte que realizam com o teatro brasileiro contemporâneo.

2.3.1.1 Teatro Experimental de Cali (TEC)

Enrique Buenaventura (1925-2003), fundador do Teatro Experimental de Cali é, depois


de Augusto Boal, o artista-teórico latino-americano com maior reconhecimento interna-
cional. Além de dramaturgo, diretor e ator, ele foi responsável por uma das primeiras – e
mais conhecidas – sistematizações teóricas sobre a metodologia da criação coletiva.

76 mesa, f. d; ortiz, f. p.; prada, j. p. Investigación y Praxis Teatral en Colombia, p.65.


40

Em 1955, depois de viver na Argentina e no Chile, é convidado a integrar a recém


inaugurada Escuela Departamental de Teatro, em Cali, que será o berço do futuro
TEC. Antes disso, teve contato com uma importante linhagem brechtiana, via Berli-
ner Ensemble, Piccolo Teatro di Milano e T.N.P., de Jean Vilar.
No TEC serão criadas algumas das obras mais significativas do teatro colombiano,
como A la diestra de Dios Padre77 – peça-símbolo da companhia, retomada e reescrita
em cinco versões diferentes, e mantida em repertório por quase trinta anos -, La tra-
gedia del rey Christophe e Un réquiem por el padre de las Casas.
Os princípios norteadores da prática artística de Buenaventura – tanto como em
Piscator – buscavam o alargamento da participação criativa de cada um dos inte-
grantes do grupo em todas as etapas do processo de construção do espetáculo. Como
conseqüência houve um redimensionamento do papel do ator, do dramaturgo e do
diretor, pois, segundo Buenaventura,

[...] não há hierarquias, nem propriedade privada dos acontecimentos e, no aspecto


artístico, não há autoridade. O Diretor não impõe a sua concepção da obra aos ato-
res e nem estes devem ‘realizar’ a concepção do diretor. A concepção da montagem
é algo que se elabora entre todos. Todos se comprometem com os objetivos do tra-
balho, com a sua significação, com a relação que o trabalho deve estabelecer com o
público. Todos são responsáveis por cada palavra do trabalho.78

Segundo Marina Pianca, existiu, porém, uma trajetória no processo de coletiviza-


ção artística do TEC. Ela ocorreu antes no âmbito da dramaturgia, para só depois che-
gar à encenação: “para Buenaventura, o conflito criação individual/criação coletiva
se estabeleceu primeiramente a nível dramatúrgico para depois evoluir em direção a
um questionamento do critério de autoridade do próprio diretor”79.
No TEC, de forma semelhante àquela desenvolvida no Estúdio do Teatro Piscator,
a concepção do espetáculo não é atributo do – ou apenas do – diretor. Ela é “desco-
berta” ou proposta – ou ainda, negociada – por todos os integrantes do trabalho. Isto
é, novamente nos encontramos diante da idéia de uma “encenação coletiva”. Contu-
do, Buenaventura parece ter conseguido avançar ainda mais na materialização dessa
idéia. Indo além da apresentação de alguns princípios gerais ou conceitos norteado-
res do seu processo de criação – como ocorre em o Teatro Político, de Piscator – ele

77 Existe uma tradução em português desta peça (À Direita de Deus Pai), realizada por Hugo
Villavicenzio, e lançada numa coletânea de textos teatrais latino-americanos contemporâ-
neos, intitulada Teatro da América Latina, pelo Teatro-Escola Célia Helena, em 2004.
78 buenaventura, e. “Teatro o ‘taetro’: Diálogo entre dos maneras de ver (I)”, artigo pu-
blicado no jornal El Pueblo, Cali, em 16 de fevereiro de 1975 (xérox redatilografado do
referido artigo).
79 pianca, m. El Teatro de Nuestra America: un proyecto continental 1959-1989, p. 89.
41

irá sistematizar, passo a passo, os procedimentos metodológicos da criação coletiva.


Escrito em 1972, este método percorreu todo o continente, balizando, orientando e
servindo de modelo para outros grupos e coletivos.
Beatriz Rizk, em seu livro sobre Buenaventura, analisa o processo de construção deste
método. Segundo ela, tal metodologia “foi se gestando pouco a pouco, a partir do próprio
fazer. Iniciou-se, na verdade, ao questionar a autoridade do diretor, com a concordância
do mesmo, já quase convertido em ‘estrela’ do grupo, pelos atores efetivos”80. O passo
seguinte, segundo ela, foi o surgimento de um “coletivo de direção”, o qual foi se amplian-
do até envolver todo o grupo dentro do processo de criação. Por fim, como resultado dessa
prática, o método foi sendo experimentado, sistematizado e, então, publicado.
Em linhas gerais, Rizk o apresenta dividido nas seguintes etapas:81

1. A investigação;
2. A elaboração do texto (com a sua respectiva análise crítica);
3. A improvisação (“coluna vertebral do processo”);
4. A montagem;
5. A apresentação diante do público (o que inclui a síntese dialética do espetáculo)

O primeiro elemento que chama a atenção – pois para o senso comum, tal pers-
pectiva se apresenta quase como um paradoxo – é a sistematização e a defesa de um
método para a criação coletiva. Muitas vezes associada a espontaneísmos irracionalis-
tas ou a processos criativos caóticos, desorganizados e descontrolados, Buenaventura
vem postular o contrário: “O método é a condição necessária do trabalho coletivo [...].
Só se o método for conhecido e dominado por todos os integrantes do grupo e aplica-
do de modo coletivo é que se garante uma verdadeira criação coletiva”82.
Em outras palavras, o método, aqui, não é visto apenas como uma ferramenta
desejável ou útil, mas sim, uma condição necessária e exigida pelo próprio pro-
cesso. A criação coletiva, como querem alguns de seus críticos mais ferinos ou
detratores, não é sinônimo de bagunça ou de um delirante “anarco-misticismo”83.
Ela demanda, pelo contrário, uma estruturação metodológica.

80 rizk, b. Buenaventura: la dramaturgia de la creación colectiva. Cidade do México: Grupo Edi-


torial Gaceta, 1991, p. 108-109.
81 Ibid., p. 110.
82 buenaventura, e.; vidal, j. “Notas para um método de criação coletiva”, artigo publi-
cado na Revista Camarim, da Cooperativa Paulista de Teatro, nº. 37, 1º semestre de 2006
(tradução de Eduardo Fava Rubio).
83 Expressão cabível, porém utilizada pejorativamente por Anatol Rosenfeld, ao criticar
determinadas posturas e práticas irracionalistas utilizadas pelo Living Theatre. Sugerimos
a leitura dos artigos “Irracionalismo Epidêmico”, “Living Theatre e o Grupo Lobo” e “Os
demônios do TUCA”, por ele escritos, e reunidos na obra Prismas do Teatro, São Paulo:
Perspectiva, 1993, pp. 207-211; 219-230.
42

Outro ponto a destacar é a estreita relação deste método com o sistema stanis-
lavskiano. O próprio Buenaventura relaciona a “etapa da investigação e elaboração
do texto” com o chamado “trabalho de mesa”, desenvolvido por Stanislavski e Dan-
tchenko. Segundo ele, o método da criação coletiva iniciaria por uma análise de texto
– “texto” aqui, entendido de forma abrangente, como sinônimo de “esquema de con-
flito”, compreendendo desde as pantomimas romanas até uma dramaturgia de for-
mato convencional. Ainda que Stanislavski tenha abandonado o “trabalho de mesa”
na última etapa de suas investigações, tal prática – sempre realizada no início de um
processo de montagem – ficou a ele associada.
Outra vinculação com o diretor russo aparece no uso que Buenaventura faz do con-
ceito de “analogia”. Stanislavski preconizava a utilização de “situações análogas” como
motor ou gatilho para a vivência do papel. Segundo ele, tal procedimento aproximaria
o ator do conflito vivido pela personagem, por um viés indireto, ligado à própria expe-
riência e subjetividade do intérprete, sem que o mesmo tivesse que se esforçar – ou
forçar – emocionalmente para concretizar uma dada situação-limite do papel.
Para o criador do TEC, a “analogia” é um instrumento de trabalho para o ator,
definindo-a em termos muito semelhantes aos stanislavskianos: “O que entende-
mos por analogia? Entendemos um conflito semelhante ao sugerido na obra ou na
parte da obra que queremos improvisar”84. Contudo, pode-se perceber um desdo-
bramento na utilização desta ferramenta. Se, para Stanislavski, a “situação análoga”
está fundamentalmente associada à construção da personagem, em Buenaventura,
a analogia é utilizada também como um meio de análise e investigação do texto,
das situações e dos conflitos nele contidos. Além disso, ela é uma forma de tornar
a improvisação mais crítica e criadora, possibilitando a revelação dos mecanismos
ideológicos em jogo.
E por que a sua opção por Stanislavski, ao invés de algum outro criador talvez
mais facilmente associável ao universo da criação coletiva? Parece-nos que a gramá-
tica do sistema stanislavskiano, ao se contrapor às idéias-clichês de inspiração divina
ou de arroubos interpretativos inconscientes e descontrolados, funcionava melhor
como referência modelar – e espécie de antídoto – contra as armadilhas de um subje-
tivismo caótico ou de um espontaneísmo sem técnica, inimigos prováveis de proces-
sos grupais de criação.
A crítica que poderia ser feita, talvez, seja a de um excessivo espelhamento deste
método de criação coletiva no sistema stanislavskiano. Contudo, ele não se reduz a
uma cópia ou mera adaptação deste último, até porque Buenaventura irá amalgamar
uma perspectiva brechtiana – relativa aos princípios do teatro épico e dialético – à
sua metodologia.

84 buenaventura, e.; vidal, j., “Notas para um método de criação coletiva”, Revista Cama-
rim, nº. 37, p. 31.
43

Além disso, o artista-teórico colombiano vai propor – em sintonia com o projeto


coletivizante de Piscator – a prática de uma “dramaturgia coletiva”, realizada por
uma “comissão de texto”, responsável pela materialização literária das pesquisas teó-
ricas e das improvisações realizadas pelo grupo. As etapas a serem cumpridas – sem
nenhuma rigidez, é importante que se diga – seriam as seguintes: seleção de um
tema; pesquisa teórica organizada em equipes (formadas pelos membros do grupo);
improvisação dos acontecimentos principais; primeira seleção de cenas ou imagens,
e, por fim, a concretização da primeira versão do texto.
A parte literária propriamente dita ficaria a cargo da já referida “comissão de texto”
– ou, em alguns casos, se necessário, do próprio Buenaventura. Ela, então, seria subme-
tida novamente à crítica dos atores, num processo contínuo de feedback e reescritura do
texto, tantas vezes quanto fossem necessárias. Ao final dessa dinâmica de constantes
retro-alimentações, por decisão coletiva, se chegaria à apresentação para o público.
Contudo, retrocedamos um pouco, de volta à sistematização em etapas da criação
coletiva – tal como apresentada por Rizk – a fim de percorremos a proposta metodo-
lógica do TEC.
A primeira delas – a etapa da investigação – vai desde a escolha do tema e do
levantamento dos objetivos do grupo até a “formação de comissões que se ocupam
de estudar os diferentes aspectos político-econômicos e sociais, com o objetivo de
determinar o marco contextual geral do projeto artístico. Isto também ocorre quan-
do um grupo toma como ponto de partida um texto já escrito” 85. É claro que essa
etapa ganha outra conformação quando o ponto de partida é uma obra dramatúrgica
já previamente escrita.
Após esse período de estudos, parte-se para a elaboração do texto, o qual é criado
conjuntamente por toda a equipe. É importante lembrar – como já discutimos antes
– que o tratamento final da peça pode ficar a cargo de algum dos integrantes do gru-
po, que se responsabilizaria pelo acabamento literário do mesmo.
Segundo Rizk, a partir da primeira versão do texto, passa-se à análise crítica do
mesmo, através da identificação das “relações de conflito” – maiores e menores – até
se conseguir definir claramente o “conflito central” da peça. É importante, segundo
Buenaventura, que todos os atores tenham uma visão de conjunto da obra, não se
limitando apenas ao entendimento dos conflitos de suas personagens. Todos devem
ser capazes de perceber as “forças em conflito”, a “motivação geral” da obra, além
da visão global da “trama” (os acontecimentos em ordem causal e cronológica) e do
“argumento” (os mesmos acontecimentos da trama, mas dispostos na ordem tempo-
ral proposta pela peça).
Então, após isso, parte-se para a divisão do texto em “seqüências” (conjunto de
situações que “vão desenvolvendo por meio de reviravoltas as contradições internas

85 mesa, f. d; ortiz, f. p.; prada, j. p., Investigación y Praxis Teatral en Colombia, p.73.
44

das forças em conflito”); “situações” (conjunto de ações, também entendida como


“um momento da correlação de forças”, que vão se modificando quando estas se
transformam) e, por fim, “ações” (“a unidade básica do conflito e pode conter mais
de um conflito, mas está determinada pela motivação. Se esta muda, a ação muda”)86
Ou seja, parte-se de uma instância maior para uma menor: uma seqüência é formada
por situações, e estas, por ações.
Terminada a análise e a divisão da peça, passar-se-ia à etapa da improvisação,
vista como “uma primeira abordagem crítica do texto, que resulta na reescritura do
texto sobre o palco por meio de imagens. É também uma espécie de jogo”87. Será por
meio da improvisação que os atores conseguirão se colocar artisticamente de forma
mais plena. Através dela, suas visões de mundo, suas opiniões, suas proposições tex-
tuais e cênicas virão à tona, permitindo uma real escritura do espetáculo. Por meio
desta etapa também são trazidas propostas visuais, sonoras, espaciais, etc. Em seu
esquema metodológico, Buenaventura propunha vários tipos de improvisação, que
permitiam se aproximar ou se distanciar desta dramaturgia em construção:

• Improvisação por analogia (ou metafórica): a mais utilizada pelo TEC, por
ser aquela “que se aproxima do texto por meio [da improvisação] de expe-
riências análogas vividas ou criadas pelo ator”. Podem também inventar
alguma “história paralela a que está sendo narrada”. E “em algumas ins-
tâncias, pede-se aos outros atores que não participaram da improvisação,
que contem, sem nenhum juízo, o que viram, e destas novas interpreta-
ções se seleciona material para novas propostas”;
• Improvisação por dissociação: “uma variação da anterior que tem mais a ver
com a organização do trabalho do que com a improvisação em si. Depois
de proposto o conflito, se fazem as improvisações análogas nas quais se vão
dissociando as imagens que foram encontradas. Então se estabelece uma
ordem das imagens obtidas mediante um processo de eliminação até se che-
gar à imagem final”. (Apesar de nossos esforços de pesquisa, faltou-nos um
maior número de elementos ou referências práticas para a compreensão
exata desse tipo de improvisação);
• Improvisação por oposição: “aproxima-se do texto através de uma imagem
de sentido oposto”. Também “deixa-se livre a lógica da imaginação e dos
sentidos, e bloqueia- se a lógica analítica”. E ainda permite “aos atores se
aproximar do texto seguindo o procedimento da oposição binária; os con-
trários imediatos como um meio para produzir sentido. Assim, por exemplo,
a fome se representa por seu oposto, a gula; ou a pobreza pela riqueza”;

86 rizk, b., Buenaventura: la dramaturgia de la creación colectiva, pp. 112-113.


87 Ibid., p. 113.
45

• Improvisação por inversão ou contradição: ao invés de se buscar “os pólos


diretamente opostos, procura-se os contrasensos. Esta contradição do sen-
tido na formação das imagens vem realçar a diferença que existe entre
a realidade e a percepção que dela se tem [...], cheia de imagens falsas e
distorcidas. Um bom exemplo do impacto que se consegue ao utilizar este
tipo de improvisação seria colocar na boca de um mendigo a linguagem de
um grande chefe burocrata”88.

Tais formas de improvisação vão permitindo, à medida que o processo caminha,


a seleção do material para a construção da cena e do espetáculo. É comum também,
os atores se dividirem em equipes distintas de improvisação, cada qual com temas
específicos, proporcionando uma dinâmica onde cada equipe analisará e criticará as
improvisações propostas pelas outras equipes.
Segundo Buenaventura ainda, “a improvisação não deve ser usada para montar o
texto, mas sim para desmontá-lo”89, o que nos leva novamente a uma associação com
o “Método das Ações Físicas” stanislavskiano. Nele, especialmente nos procedimen-
tos da “análise ativa”, encontramos uma maneira similar de abordar a improvisação
como um meio de analisar praticamente as circunstâncias e as motivações em jogo.
Como já dissemos, a influência do mestre russo tem um peso considerável na formu-
lação metodológica buenaventuriana.
Outro ponto importante a ser destacado – e que concerne imediatamente à
direção – é que “a improvisação não pode nos dar, tampouco, a concepção da
obra. Tratar de comprovar a concepção que temos da obra através da improvi-
sação é tão inútil para uma boa aplicação do método, como chegar à montagem
reivindicando não ter concepção alguma, e esperando que tal concepção saia das
improvisações”90. Apesar de ser bastante discutível a idéia de uma concepção que
não possa emergir das improvisações, o que parece estar em jogo aqui é, por um
lado, a não utilização da improvisação como uma “muleta” ou uma panacéia em
relação à concepção do trabalho e, por outro, o perigo de sua mera instrumentali-
zação como uma forma de comprovação do já sabido – o que anularia o seu caráter
investigatório e analítico.
O próximo passo do método é aquele referente à montagem, e representa “um
retorno ao texto e o seu cotejamento com o resultado das improvisações”91. Segundo
a análise de Mesa e Prada desta etapa, nela “se dá por terminadas as improvisações,
iniciando-se um processo de seleção ou decantação das diversas linguagens contem-

88 rizk, b. El Nuevo Teatro Latinoamericano: una lectura histórica. ������������������������


Minneapolis: The Prisma
Institute/The Institute for the Study of Ideologies and Literature, 1987, p. 77-78.
89 céspedes, f. g. (org.), El Teatro Latinoamericano de Creación Colectiva, p. 102.
90 Ibid., p. 102.
91 rizk, b., Buenaventura: La Dramaturgia de la Creación Colectiva, p. 116 (grifo nosso).
46

pladas no discurso do espetáculo teatral”92. Buenaventura discorre sobre três impor-


tantes “retornos” ou movimentos de revisão do texto:

• “o retorno à seleção”, quer dizer, um cotejamento entre as novas propos-


tas surgidas nas improvisações com o texto inicial, visando à elaboração de
outra versão e à conseqüente reconstrução do discurso cênico ou “discurso
da montagem”. Tal cotejamento remete-nos àquele projeto – não-realizado
– proposto por Górki a Stanislávski;
• “o retorno às personagens em função de suas relações”, ou seja, uma rea-
valiação do papel das personagens dentro da estrutura do texto;
• O retorno à conformação/materialização dos “diferentes códigos, o sonoro,
o gestual, o visual, o proxêmico“, procedendo a sua revisão, além da realiza-
ção de “outras improvisações, de maquiagem, adereços, coreografia, etc.”. No
momento em que todos esses elementos estiverem revistos e rearticulados
– o que poderá também ser feito por meio de comissões organizadas para
esse fim -, acontecerá, então, finalmente, a abertura da peça para a platéia.

Chegamos, portanto, à última etapa da sistematização metodológica proposta por


Buenaventura: a apresentação diante do público, a qual agregará debates e discus-
sões com a platéia, após as apresentações. Segundo ele, o público deverá se colocar
frente ao que foi apresentado, discutindo o que ficou claro ou não, criticando aspectos
da montagem ou propondo alterações. Nesse sentido “o público se converte em co-cria-
dor do espetáculo, pois, por sua vez, vai orientando o grupo sobre novas mudanças que
serão acrescentadas nas versões seguintes”93. Novas versões ou, até mesmo, no limite,
novas peças. Ou seja, a idéia de um trabalho em processo, continuamente em mudança
e nunca concluído, é um aspecto fundamental deste modo de criação.
Julgamos pertinente expor, ainda que de forma sintética, a referida metodologia
de trabalho do TEC, por acreditarmos que ela materializaria a proposta de Buena-
ventura de uma encenação realizada por todos – ou no mínimo, por uma comissão
designada para tal fim. Na verdade, como já foi visto, não apenas a encenação, mas
todas as outras áreas da criação receberiam semelhante tratamento.
Ainda que seja inegável o poder aglutinador e de liderança de Buenaventura, per-
cebe-se o seu esforço para coletivizar as funções de criação. O quanto isso se deu na
prática é algo que mereceria um estudo específico e de maior fôlego.
Contudo, como no caso de Piscator, vemo-nos diante de um grave problema: a
grande dificuldade para se encontrar os ensaios teóricos produzidos por Buenaven-
tura – ou por outros integrantes do grupo. É lamentável – e, ao mesmo tempo, sinto-

92 mesa, f. d; ortiz, f. p.; prada, j. p., Investigación y Praxis Teatral en Colombia, p.73.
93 rizk, b., Buenaventura: La Dramaturgia de la Creación Colectiva, p. 117.
47

mática – a enorme lacuna bibliográfica em relação a uma experiência tão importante


como a do TEC. E não nos referimos apenas aos títulos em português. Mesmo na
Colômbia, ou em outros países latino-americanos, são escassas – quando não esgota-
das – as obras de e sobre Buenaventura.
No caso do Brasil, com exceção de um ou outro artigo, e de raríssimos trabalhos
acadêmicos94, não encontramos nenhum livro escrito unicamente sobre este grupo
ou sobre a sua metodologia de trabalho. Também não pudemos recuperar referências
a possíveis apresentações ou turnês em nosso país, anteriores à morte de Buenaven-
tura – ocorrida em 2003.
Porém, gostaríamos de fazer aqui uma pequena digressão, em decorrência da des-
coberta de uma curiosa história, de caráter anedótico, narrada por Hermilo Borba
Filho em relação ao criador do TEC. Sabe-se que Buenaventura, no início da década
de 50, após uma conferência em Manaus, viajou para o Recife. Lá permaneceu por
alguns meses, sob a generosa acolhida de Hermilo, que o convidou, ainda, a dirigir
aquele que seria seu primeiro espetáculo “profissional”. O encontro desses dois artis-
tas não foi, porém, dos mais tranqüilos. Além de uma permanência mais longa do
que a desejada e de diferenças culturais, metodológicas e estéticas, pesou o fato da
direção realizada por Buenaventura, no Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP),
ter sido um fracasso retumbante.
No capítulo 10 do segundo volume de sua tetralogia autobiográfica-ficcional –
intitulada Um Cavalheiro da Segunda Decadência – Hermilo Borba Filho descreve assim
o seu “hóspede”:

Tratava-se de um colombiano alucinado [...] desembarcando no Recife com a roupa


do corpo e uma maleta de papelão onde guardava três cachimbos, uma muda de
camisa e cuecas, alguns livros e manuscritos de peças de teatro e poesias. Desem-
barcara pela manhã, [...] suando em bicas debaixo do sol ardente, mastigando um
cachimbo cujo fumo empestava tudo num círculo de trinta metros em volta.95

Não bastasse isso, a experiência dos ensaios com Buenaventura, no Teatro do


Estudante de Pernambuco, também não resultou das mais felizes, segundo o mesmo
relato de Hermilo: “[...] atirou-se ao trabalho, gritando numa mistura de castelhano
e português, exigia horas sem fim de repetição, os atores se irritavam, as brigas sur-
giam, mas ele desconhecia melindres e caras fechadas”96. Segundo Luís Reis – jorna-
lista e pesquisador da obra de Borba Filho – a peça aí montada não foi Um Paroquiano
Inevitável – como descrito em A Porteira do Mundo – mas sim, Três Cavalheiros a Rigor,

94 Sugerimos, a propósito, a consulta a duas recentes dissertações de Mestrado, de auto-


ria de Luciana Cristina Magiolo e Marília Carbonari (ver Referências).
95 borba filho, h. A Porteira do Mundo. Porto Alegre: Mercado Aberto Editora, 1995, p. 265.
96 Ibid., p.267.
48

também de autoria de Hermilo, cuja estréia ocorreu em 18 de setembro de 1952. De


acordo com Luís Reis, quando Paroquiano foi escrita, Buenaventura já se encontrava
bem longe de Recife – ele também, provavelmente, traumatizado com sua tempora-
da pernambucana.97
De qualquer maneira, apesar da descrição jocosa, das incompatibilidades culturais
e do malogro da experiência TEP-Buenaventura – houve apenas cinco apresentações
do referido espetáculo – Hermilo Borba Filho escreveu uma das personagens de Um
Paroquiano Inevitável inspirado em Buenaventura, além de homenageá-lo, dedicando-
lhe esta peça.
Contudo, ainda continuamos à espera, aqui no Brasil, da publicação de obras que
tratem das contribuições artísticas e metodológicas do criador do Teatro Experimental
de Cali, capazes de oferecer uma apreciação mais substancial e adequada do grupo.

2.3.1.2 Teatro La Candelaria

Outro grupo modelar de criação coletiva em nosso continente, o Teatro La Can-


delaria, surgiu em 1966, em Bogotá. Criado por artistas e intelectuais colombianos,
ele tem em Santiago García e Patrícia Ariza, dois dos seus principais representantes
– ambos atuantes até hoje na manutenção do trabalho do grupo. Apesar de, como no
TEC, ter trabalhado com textos clássicos e com obras de autoria individual de drama-
turgos contemporâneos, a contribuição mais conhecida de La Candelaria diz respeito
às suas peças de criação coletiva.
Entre elas, poderíamos destacar Nosotros los comunes (1972) – que tinha o subtítulo
de Comuneros 1781, sob assumida influência do espetáculo 1793, do Théâtre du Soleil
-; La ciudad dorada (1973); Guadalupe años sin cuenta (1975) – o maior sucesso nacional e
internacional do grupo, uma das peças-ícone da criação coletiva latino-americana -;
Los Diez Días que estremecieron al Mundo (1976); Golpe de suerte (1980); El paso (1987) – obra
apresentada no Brasil, no ano 2000, apenas em Belo Horizonte – e En la Raya (1992).
A importância do grupo, para além das montagens em si – com turnês por toda
a América Latina, Estados Unidos e Europa – recai também sobre a sistematização
teórica do seu processo de trabalho. Com o mesmo intuito daquele empreendido
por Enrique Buenaventura, Santiago García procurou descrever e desenvolver um
método de criação coletiva, a partir da prática realizada dentro de La Candelaria.
Por esse impulso de metodização do trabalho de criação, tanto ele, como Buena-

97 Informações recolhidas junto ao pesquisador Luís Reis, quando de nossa participação


em um seminário no Recife (PE) – II Seminário de Crítica Teatral: o Pensamento e a
Encenação – ocorrido entre 14 e 18 de agosto de 2006, no Teatro Armazém.
49

ventura e Augusto Boal ocupam um lugar importante no diálogo teoria-prática, na


América Latina.
Procuraremos, pois, analisar tal proposta metodológica, ainda que o grupo tenha
bastante reservas em nomear como “método” os seus procedimentos de criação –
prefere, ao contrário chamá-los de “tentativas”. Nosso foco, como na parte anterior,
recairá sobre a atuação do encenador dentro de semelhante dinâmica coletiva.
A experiência de La Candelaria apresenta ainda outro diferencial em relação ao
papel da direção. Diferentemente de Piscator e Buenaventura – que defendiam con-
ceitualmente e/ou praticavam a assim chamada “encenação coletiva” – Santiago Gar-
cía raramente deixará de assumir a sua função de diretor. Ainda que a criação dos
espetáculos do grupo tenha tido a colaboração de todos os integrantes, é a dramatur-
gia – ou, como também é chamada, a autoria – que aparece como criação coletiva nas
fichas técnicas, não a direção. Esta última, via de regra, é atribuída a Santiago.
Nesse sentido, a experiência do grupo vai se aproximar – sob o aspecto da ence-
nação – do que denominamos hoje processo colaborativo. Foi por essa razão que
resolvemos tratar da experiência de La Candelaria somente agora, como uma última
etapa – ou mesmo como uma transição – antes de iniciarmos o estudo propriamente
dito sobre o modo de criação colaborativo.
Nossa investigação toma como base a análise dos procedimentos de trabalho pro-
postos por Santiago García em seu livro Teoria y Practica del Teatro98.
Para García, o ator, dentro de uma perspectiva grupal, deve ter a sua ação ampliada,
funcionando não apenas como criador, mas também como administrador e divulgador.
Este ator versátil, com múltiplas funções, dentro e fora do processo de criação, institui
outro paradigma no contexto teatral de então. Contudo, para este “novo tipo de ator”
– advoga García – não existem ainda escolas de formação habilitadas, devendo ser o
próprio grupo o espaço pedagógico adequado para este fim. Além disso, numa criação
coletiva, o ator seria responsável por um texto gestual que complementaria o texto lite-
rário. Ou seja, ele é responsável pela invenção de imagens e de soluções cênicas para o
espetáculo.
Em linhas gerais, a metodologia de criação apresentada – ainda que varie de peça
para peça – traz alguns elementos recorrentes:

Busca do tema – O tema é o assunto fundamental da obra, que no início do pro-

98 Esta obra encontra-se traduzida para o português pela editora Hucitec, porém a tradu-
ção realizada é a da primeira edição da obra, lançada em 1983. Santiago García produ-
zirá duas novas edições, ampliadas e revistas, a primeira em 1989, e a segunda – que
utilizamos como base dessa pesquisa – em 1994. Sugerimos aos interessados que adqui-
ram esta terceira edição da obra, disponível apenas em espanhol. Mais recentemente,
em 2002, Santiago Garcia lançou o Teoria y Práctica del Teatro II. As indicações técnicas
dessas obras encontram-se descritas nas Referências, ao final do presente trabalho.
50

cesso encontra-se vago e genérico, para então, a partir das futuras improvisações e
elaborações formais, ir ganhando contornos mais definidos.
Definição do argumento – para o grupo, o argumento constitui o conjunto de
razões e explicações do tema. É a maneira como ele é desenvolvido e fundamentado,
ou seja, é a justificação do tema. Em outras palavras, “o argumento é a forma como
se apresenta o tema. Equivaleria à forma do conteúdo, enquanto que o tema é a subs-
tância do conteúdo”99.
Encontro da motivação – etapa que define o caráter coletivo do trabalho, na
medida em que a proposição do projeto não vem do diretor ou de algum membro
específico da companhia, mas nasce de uma vontade coletiva do grupo, aliada ao
contexto histórico e à realidade em que o mesmo se encontra inserido. Os elementos
subjetivos e intuitivos têm um peso preponderante nesta fase.
Realização da investigação – etapa mais científica e objetiva, caracterizada
pelo estudo, levantamento e análise do material pesquisado. É comum aqui o gru-
po se dividir em equipes específicas a fim de contemplar diferentes áreas relativas
ao processo de investigação (equipe responsável pelo levantamento de material em
jornais e revistas; equipe destinada à coleta de obras literárias relativas ao tema;
equipe dedicada à pesquisa do material musical, etc.). Vários estudiosos e especia-
listas acadêmicos também são convidados pelo grupo para auxiliar no aprofunda-
mento do material.
Etapa das improvisações – momento no qual o grupo começa a experimentar e
a teatralizar elementos escolhidos de todo o material pesquisado até então. Segundo
García, “o grupo está saturado de informações e, neste momento, começa a traduzi-las,
a elaborá-las através de improvisações”100. Também aqui, a companhia pode se dividir
em diferentes equipes de improvisação, responsáveis, cada uma, por problemas ou
assuntos distintos. Ao final desta etapa, o grupo chega à elaboração de um novo mate-
rial, só que agora, teatralizado.101 García chama atenção também para a importância
do caráter sempre renovado de condução das improvisações. Segundo ele, “cada obra
exige uma técnica ou uma forma diferente de fazer as improvisações. Não podemos
nos contentar com fórmulas de improvisação resultantes de trabalhos anteriores, ou
com esquemas de trabalho produzidos por outros grupos”102. É curioso como tal afir-
mação parece denotar discordância ou crítica ao método buenaventuriano.
Hipótese de estrutura – fase de conformação do argumento e de delimitação do

99 garcía, s. Teoria y Practica del Teatro, 3ª ed. Santafé de Bogotá: Ediciones Teatro La Cande-
laria, 1994, p. 34.
100 Ibid., p. 39.
101 É importante ressaltar que o grupo experimentou também, em outros processos de
criação, mesclar as etapas de busca do tema, investigação e improvisação, fazendo-as
ocorrer simultaneamente.
102 garcía, s., op.cit., p. 41.
51

tema. Equivale ao primeiro momento de síntese e de elaboração estrutural do material.


Se a etapa anterior se caracteriza pela ênfase em improvisações analógicas – marcadas
por elementos metafóricos – esta, ao contrário, será baseada em improvisações “do
argumento”, ou seja, destinadas à construção do argumento geral. Aqui ocorre tam-
bém a determinação das linhas temáticas – os assuntos que serão tratados em todos os
quadros e cenas do argumento geral – e a definição das linhas “do argumento”, com
o seu conseqüente entrelaçamento com as linhas temáticas. Em geral, parte-se da pri-
meira hipótese de estrutura para, no final desta fase, se conseguir chegar a uma segun-
da hipótese de estrutura – mais bem definida e concatenada.
Montagem e texto definitivo – resultado direto da segunda hipótese de estrutura,
esta etapa compreende dois planos: o operativo e o textual. O primeiro diz respeito a
todos os elementos cênicos tais como música, figurinos, cenografia, etc., e o segundo
à dramaturgia e às falas propriamente ditas. De maneira semelhante ao que ocorreu
anteriormente no processo, o grupo também se divide em comissões específicas: uma
de música, outra de figurinos e cenografia, e uma terceira dedicada à dramaturgia (“...
[que] vai recolhendo os diálogos que aparecem nos ensaios e nas improvisações e, uma
vez elaborados – escritos – os apresenta ao grupo para que sejam discutidos e, o mais
importante, ensaiados.”103). Esta comissão de texto pode convidar um escritor ou poeta
para com ela colaborar, ou pode ser composta por um número reduzido de integrantes
do grupo. Um dado importante a ser mencionado é que a elaboração do plano operativo
se dá concomitantemente ao plano textual – ainda que este último seja o derradeiro
elemento a se concretizar104. Como no caso do TEC, o texto também será modificado
pelos comentários dos espectadores, após as apresentações. Ainda de acordo com García,
nesta dinâmica entre os dois planos reside a característica mais importante da criação
coletiva: “a criatividade no plano operativo, determinante do plano textual, é resultado
do fato de que o tema foi investigado em profundidade pelo coletivo”105.
É importante lembrar que, apesar de estarmos estudando alguns princípios meto-
dológicos de criação de La Candelaria, esta metodologia não está dissociada de uma
militância política – tal como vimos em Piscator. Para Santiago García, “a prática
da criação coletiva permitiu ao nosso grupo compreender com mais amplitude a
enorme importância de saber relacionar a práxis artística com a práxis política”106.

103 garcía, s., Teoria y Practica del Teatro, p. 46.


104 É claro que o plano textual poderá nunca apresentar uma cristalização definitiva, no
caso de se tratar de uma peça com estrutura aberta, onde está pressuposto uma cons-
tante improvisação dos atores. Segundo García, o texto aqui funcionaria como um
canovaccio de commedia dell’arte, ou seja, com uma escritura aberta, oral. É curioso que
Luís Alberto de Abreu, na elaboração de uma dramaturgia relacionada ao processo co-
laborativo, também utiliza o termo canovaccio, porém como uma etapa intermediária
de desenvolvimento para uma versão final do texto.
105 garcía, s., op. cit., p. 47.
106 Ibid., p. 48.
52

Ele chega, inclusive, na conclusão de seu livro, a afirmar que “[...] resolvemos nos
arriscar a criar (inventar) nós mesmos nossas próprias obras, não como resultado de
uma pose esteticista, mas sim movidos pelas exigências do momento. Assim nasceu
a ‘criação coletiva’ em nosso país”107.
Ou ainda, ao final da descrição do processo de trabalho de seu grupo, García rei-
tera que “as possibilidades criativas do grupo dependem da capacidade criativa dos
indivíduos que o conformam e, por sua vez, eles estão determinados pela capacidade
do grupo em apreender a realidade”108.
Dentre os princípios norteadores do percurso da criação dentro de La Candelaria,
vale a pena destacar

[...] o conjunto do processo como um fenômeno no qual o grupo se apropria paula-


tinamente dos terrenos de privilégio do autor e do diretor teatral como individuali-
dades criadoras do texto e do espetáculo. Queremos ressaltar novas possibilidades
de relação entre o autor (seja o grupo, ou uma comissão – como em La Candelaria
– ou um dramaturgo – como é o caso de Enrique Buenaventura e o TEC), o diretor,
o ator e o público.109

Onde, porém, as experiências processuais de La Candelaria se aproximam ou


apontam para aquelas relativas ao processo colaborativo? O ponto-chave está na pre-
sença de um especialista ou de alguém que assume a responsabilidade sobre uma
determinada área de criação, num momento específico da montagem. Ou seja, na
primeira fase do processo, o grupo desenvolve todas as áreas artísticas coletivamente,
para então, num segundo momento, convocar, eleger ou conceder uma determinada
área para um colaborador, que passa a responder por aquela função. De acordo com
García, “as etapas de investigação e criação da hipótese da montagem se realizam em
conjunto, e na etapa final se requer uma divisão de trabalho em especializações”110.
Nesse sentido, o processo de La Candelaria se estrutura de forma mista, conjugando,
num primeiro momento, um desejo – e uma prática – de polivalência artística e de apa-
gamento das funções – marcas características da criação coletiva – com um momento
posterior onde as funções são restabelecidas – tal como no processo colaborativo.
Outro ponto semelhante é uma coordenação geral do trabalho a cargo do diretor
da companhia. Ainda que o grupo pesquise coletivamente ou se divida em várias
equipes ou comissões, todas elas sofrem uma supervisão por parte do diretor. Dife-
rentemente do TEC, o qual se propunha a uma encenação coletiva, a presença de
Santiago García enquanto diretor do grupo foi uma constante na trajetória de La Can-

107 garcía, s., Teoria y Practica del Teatro, p. 265.


108 Ibid., p. 49.
109 Ibid., p. 50.
110 Ibid., p. 56 (grifo nosso).
53

delaria – ainda que tenha havido momentos onde outros membros do grupo experi-
mentaram o ofício da direção.
É claro que o diretor aqui não se coloca – e nem é considerado – como o principal
criador. O simples fato da existência de um período do processo em que todos criam
tudo, já relativiza todo o espaço das autorias e enfraquece a existência de hierarquias.
Pois, “a posição do autor [dramaturgo] como executor do texto (autor-texto) sofreria a
transformação ator-texto e, em segundo lugar, a relação diretor-montagem teria que
submeter-se a semelhante reconsideração”111.
Em suma, tanto o texto como a montagem seriam criados em parceria pelo drama-
turgo, diretor e atores, cabendo a estes artistas, num momento posterior do processo,
a finalização e o acabamento em suas áreas específicas. Ainda assim – o que difere um
pouco do processo colaborativo – cada uma dessas funções, cada um destes especialis-
tas, continua tendo que se submeter ao trabalho coletivo da subcomissão ou do grupo.
Daí a posição de García em defender a não-autonomia dessas funções. Além
– como acabamos de ver – da submissão da criação individual à deliberação do cole-
tivo, ele argumenta sobre a inegável existência de complexas ligações e de mútuas
dependências entre ator, diretor e dramaturgo. Portanto, não faria sentido advogar
qualquer autonomia criadora das diferentes áreas teatrais.
Ele aponta, porém, com lucidez, a preponderância de uma função sobre outra, de
acordo com o momento do processo. Por exemplo, o dramaturgo teria uma atuação
mais acentuada no momento final da etapa das hipóteses de estrutura e logo depois,
na consolidação da primeira versão da peça. Ou ainda, certo privilégio do ator em rela-
ção ao dramaturgo e ao diretor, como provocador das transformações textuais, a partir
do momento em que o espetáculo é apresentado e discutido pelos espectadores. Mes-
mo que o diretor continue trabalhando sobre a montagem e que o dramaturgo possa
recolher e modificar o material surgido nos debates com o público, é o ator quem, de
fato, lidera tal confrontação, sendo ele o responsável para se chegar ao segundo texto
da montagem – o que equivaleria ao texto final e definitivo, ou algo próximo disso.
Beatriz Rizk, ao estudar os processos de criação do grupo apresenta distintas meto-
dologias de trabalho, que variam de acordo com o momento e os objetivos ora em
questão. Por exemplo, na elaboração da peça Diálogo Del Rebusque (1981), foi a partir
de um texto escrito na íntegra pelo diretor do grupo, Santiago García, que os atores
foram convocados a criar – neste caso, não mais o texto, mas a montagem em si.
Já em Golpe de Suerte, a partir de uma investigação inicial conjunta, realizada por
todos os integrantes, houve uma divisão do grupo em três equipes de trabalho, para
tratar dos diferentes aspectos da montagem (música; dramaturgia e cenografia e figu-
rinos) com a ajuda de especialistas. Estas equipes recebiam uma coordenação geral
por parte de Santiago García.

111 garcía, s., Teoria y Practica del Teatro, p. 60.


54

Um terceiro método experimentado em La Candelaria trouxe ainda outra forma


de confecção da dramaturgia. Após os períodos de investigação do tema e das subse-
qüentes improvisações, cada ator foi convocado a escrever a sua própria peça. Toda a
equipe, então, escolheu aquela que melhor convinha ao coletivo.
De qualquer forma, independentemente das variações de metodologia aplicadas, já é
possível perceber o “lugar” do encenador dentro do coletivo, desde o Estúdio Piscator até
o La Candelaria. Para o diretor alemão, por exemplo, havia um projeto de coletivização
da encenação dentro do Estúdio. O diretor individual, ainda que ali existisse, abdicava de
vários de seus atributos em prol da emancipação do coletivo. Daí, ser mais apropriado
descrever tal fenômeno utilizando-se o termo “encenação coletiva”.
Os grupos de criação coletiva da década de 60 e 70 – incluindo aí o TEC, de Bue-
naventura – vão perseguir modelo semelhante, porém, ampliando-o para todas as
áreas de criação – e não apenas na direção. Nesse sentido, eles foram ainda mais
longe, radicalizando o projeto de Piscator. Porém, sofreram todo o tempo um dilema
entre o discurso coletivizante e a existência de lideranças individuais não-assumidas.
O próprio Buenaventura, por sua presença e força dentro do grupo, é um exemplo
inequívoco de tal contradição.
Já no caso de La Candelaria, através das diferentes “tentativas” do grupo, houve a
experimentação de estratégias de retorno à manutenção das funções artísticas. Isso,
contudo, sem pôr em risco a dimensão grupal. Nesse sentido, o papel do diretor – e
dos outros criadores – permanecia garantido desde que ele se mantivesse em perma-
nente negociação e consonância com o coletivo.
Partimos, pois, de um diretor “enfraquecido” ou cuja função se encontrava em
processo de diluição (Piscator e TEC) para um diretor sub judice, condicionado pelo
grupo (La Candelaria).
Apesar desta última perspectiva não ter sido a única adotada pela companhia
colombiana, transformando-a em seu modus operandi, tal abordagem abriu caminho
para uma reavaliação do “todo-mundo-faz-tudo”, e reconfigurou o lugar da função
artística individual dentro de sua prática coletiva. Ou seja, estamos a um passo do
processo colaborativo e da reinstauração do encenador individual – e dos outros indi-
víduos-criadores – como partícipe de um coletivo de criação.
Ao olharmos esta trajetória, seria incorreto pensar o processo colaborativo como
uma espécie de continuação, de desdobramento, de “reterritorialização” da criação
coletiva? Na defesa desse argumento podemos invocar a análise de Mesa e Prada
quando afirmam que

[...] a criação coletiva foi gerando novas dinâmicas durante os últimos anos da
década de oitenta, de onde se pode avaliar uma notável qualificação através do
desenvolvimento das especializações em alguns campos específicos, como no
caso do dramaturgo e do encenador. E tudo graças ao permanente fluir dessa
55

relação dialética do trabalho coletivo, aonde diretor, atores e demais integrantes


da equipe se vão treinando/preparando até conseguirem convergir para uma espe-
cialização.112

Portanto, seja como um movimento interno de desdobramento dentro de seu pró-


prio percurso, seja como exceções – ou momentos de exceção dentro de uma deter-
minada trajetória artística grupal -, é problemático definir a criação coletiva apenas
por meio da supressão das funções e do “todo-mundo-faz-tudo”. Incorremos, se assim
o fizermos, no risco de generalizações amplas demais ou na manutenção de visões
reducionistas que se consolidaram através do tempo.
Contudo, se é importante, por um lado, ressaltar que o modus operandi de algumas
companhias teatrais latino-americanas tenha se diferido de outras da mesma região e
de suas congêneres européias e americanas, por outro lado, este modo particular de
criação não foi hegemônico. Isto é, houve vários grupos, como vimos anteriormente,
onde a autoria individual era motivo de crise ou desconforto, e tratada com reservas.
É claro que, em algumas dessas experiências, parecia existir um receio ou confusão
entre “função individual” e “estrelismo”, além de grupos que viam a permanência do
autor personalizado como resquício de um teatro “burguês” e “anti-revolucionário”.
Recusava-se, na verdade, a “especialização” ou o “profissionalismo” dentro dos moldes
burgueses de distribuição dos papéis de trabalho. Sob essa ótica, a criação individuali-
zada era vista como inimiga ou como elemento inconciliável com a criação grupal.
Daí porque, via de regra, o processo e o resultado criativos eram coletivizados pelo
grupo todo ou realizados por equipes reduzidas – que funcionariam como pequenos
coletivos dentro de um grande coletivo. Tal dinâmica configurou – como já vimos – uma
prática e/ou um discurso de negação ou de enfraquecimento da autoria individualizada.
Nesse sentido, não nos parece que o processo colaborativo se configure como
uma mera cópia ou um revival da criação coletiva. Não se trata de um mesmo
fenômeno, apenas alcunhado de forma diferente. Ainda que ele se constitua como
uma decorrência, um desdobramento ou uma reconfiguração daquela experiência
da década de 60 e 70, o que está em jogo não é apenas uma mudança de nome.
Mesmo se os termos criação coletiva e processo colaborativo podem ser considerados
um tanto vagos e imprecisos, os processos aos quais eles remetem circunscrevem
um modo específico e peculiar de criação. Passemos, pois, a fim de melhor inves-
tigarmos esta hipótese, à discussão sobre o processo colaborativo e a função do
encenador dentro dele.

112 mesa, f. d; ortiz, f. p.; prada, j. p., Investigación y Praxis Teatral en Colombia, p.74.
56

3 Processo Colaborativo: abordagem teórica

“Multidão não é nem encontro da identidade, nem pura exaltação


das diferenças, mas é o reconhecimento de que, por trás de identi-
dades e diferenças, pode existir ‘algo comum’, sempre que ele seja
entendido como proliferação de atividades criativas, relações ou
formas associativas diferentes.”
(Antonio Negri, Cinco Lições sobre o Império)

Num dos primeiros textos escritos sobre o processo colaborativo, Luís Alberto de
Abreu observa que ele, enquanto fenômeno, “provém em linhagem direta da chama-
da criação coletiva”, mas, por outro lado, “é necessário que se preserve as funções de
cada artista”. Advoga que “de um lado existe total liberdade de criação e interferên-
cia, mas de outro é vedado a um criador assumir as funções do outro. Ou seja, um
ator pode discutir, sugerir mudanças, propor diálogos ou até mesmo escrever uma
cena, no entanto é o dramaturgo que deverá fazer a organização desse material”. Ao
final de sua reflexão, Abreu chega mesmo a postular que “sem hierarquias desne-
cessárias, preservando a individualidade artística dos participantes, aprofundando a
experiência de cada um, o processo colaborativo tem sido uma resposta consistente
para as questões propostas pela criação coletiva dos anos 1970”.
Se a reflexão de Luís Alberto de Abreu nos fornece algumas pistas para a compre-
ensão do referido fenômeno, gostaríamos de acrescentar a elas algumas considera-
ções advindas da nossa própria experiência de criação no Teatro da Vertigem, cuja
prática também é denominada pelo grupo processo colaborativo.
Conforme expresso em nossa dissertação de mestrado, “tal dinâmica [...] se consti-
tui numa metodologia de criação em que todos os integrantes, a partir de suas funções
artísticas específicas, têm igual espaço propositivo, sem qualquer espécie de hierar-
quias, produzindo uma obra cuja autoria é compartilhada por todos”. Hoje, contudo,
acreditamos que melhor do que “ausência” de hierarquias, seja mais apropriado pen-
sarmos em hierarquias momentâneas ou flutuantes, localizadas, por algum momen-
to, em um determinado pólo de criação (dramaturgia, encenação, interpretação, etc.)
para então, no momento seguinte, se mover rumo a outro vértice artístico.
Antes de prosseguirmos, contudo, é importante ressalvar que tanto pela ausên-
cia de distanciamento histórico quanto pelo fato de nossas criações artísticas se

������� ��� � “Processo Colaborativo: relato e reflexões sobre uma experiência de criação”.
� abreu, l. a.
In: Cadernos da ELT, Ano I, Número 0, Março de 2003, Santo André, p. 34.
 Ibid., p. 40.
 Ibid., p. 41.
 silva, a. c. a., A Gênese da Vertigem: o Processo de Criação de ‘O Paraíso Perdido’, p. 101.
57

realizarem no âmbito do processo colaborativo, a análise deste fenômeno encon-


tra-se atravessada por estes condicionantes. Se tal comprometimento, por um lado,
interfere numa análise crítica mais imparcial, por outro, ele faz emergir uma visão
de dentro, permeada por quem a pratica no seu cotidiano de criação. Ou seja, esta-
mos diante de perdas e ganhos inevitáveis, mas que necessitam ser levados em
consideração.
A expressão processo colaborativo começou a ser usada na segunda metade da déca-
da de 90 dentro de um contexto de retomada do movimento de teatro de grupo na
cena paulistana. O retorno desta perspectiva grupal, que aparece quase como um
contraponto à hegemonia do encenador no teatro brasileiro da década anterior, vai,
pouco a pouco, ganhando uma dimensão nacional. Não que os grupos tenham deixa-
do de existir após a década de 70 – entre outros coletivos importantes e atuantes nes-
se período, poderíamos destacar o Grupo Galpão, o Imbuaça, o Ponkã ou ainda o Ói
Nóis Aqui Traveiz – mas o forte da produção teatral nacional orbitava em torno dos
encenadores. São, desse período, montagens importantes de Gerald Thomas, Ulysses
Cruz, Bia Lessa, Gabriel Vilella, entre outros.
A palavra “colaborativo” era usada também por companhias estrangeiras que tra-
balhavam num regime de compartilhamento da criação, como era o caso do grupo
britânico Out of Joint, dirigido por Max Sttaford-Clark ou a novaiorquina SITI Com-
pany, dirigida por Anne Bogart. Porém, referiam-se ao seu modo de criação como
collaborative work (trabalho colaborativo).
No contexto nacional, o termo foi usado por grupos como o Vertigem, Cia dos Ato-
res, Grupo Galpão, Bendita Trupe, Argonautas, Cia. Livre, Grupo XIX, Maldita Compa-
nhia ou a Cia. Luna Lunera, entre outros. Ele foi adotado também como instrumento
pedagógico nos cursos de formação da Escola Livre de Teatro de Santo André e no
Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da USP.
No caso dos grupos, o termo foi sendo empregado de maneira informal, sem o
caráter programático de “manifesto” ou “bandeira”, como uma forma de nomear
uma retomada da perspectiva compartilhada de criação. Contudo, havia o desejo de
não associar diretamente essa retomada ao modo de realização da criação coletiva.

 O pesquisador Luís Fernando Ramos, em conversa com o autor deste trabalho, levanta
a hipótese desse importante grupo paulista da década de 80 – do qual fizeram parte,
entre outros, Luiz Roberto Galizia, Paulo Yutaka, e Alice K. – ter realizado a “passagem”
ou mesmo se constituir em espécie de “antecessor” do processo colaborativo. Segundo
ele, o Ponkã apresentava “uma sofisticação que repropunha o trabalho coletivo do fim
dos anos sessenta aliando ao rigor já praticado, por exemplo, pelo Oficina, a disposição
de metodicamente canalizar as energias criativas do grupo no sentido de voltar a fazer
proposições estéticas e de linguagem, projeto que o histórico grupo dos anos sessenta
abandonaria definitivamente depois de Gracias Señor, em favor de uma atuação mais
política e existencial que já ocorria fora do teatro. O Ponkã aliava essa proposta coletiva
à necessidade de um encenador forte, mas sem personalismo, que tinha a idéia de cons-
truir com a energia do grupo todo, tanto o material dramatúrgico quanto cênico”.
58

Por exemplo, dentro do Teatro da Vertigem, existia uma recusa da idéia do “todo-
mundo-faz-tudo”, do “obaobísmo”, dos “espetáculos de expressão corporal” associa-
dos àquele modo de criação das décadas de 60 e 70. Ainda que tal recusa fosse fruto
de uma visão reducionista ou preconceituosa – compartilhada por vários outros gru-
pos de então –, havia uma clara motivação de restabelecimento do discurso coletivo
em contraponto ao teatro de diretor.
Se, por um lado, parecia haver um projeto de retomada de princípios e valores
da criação coletiva – porém, praticados de maneira distinta –, por outro, havia uma
recusa da “década dos encenadores”, sem, com isso, pretender abolir a função ou
a figura do diretor. Quase como se o processo colaborativo pudesse realizar uma
síntese do discurso e da ideologia coletiva com a permanência da função artística
individual.
Uma consideração importante a ser feita é que os termos teatro de grupo e processo
colaborativo não são necessariamente sinônimos. Ainda que, desde meados da década
de 90, presenciemos uma retomada e um fortalecimento do movimento de teatro
de grupo – que vem marcando a cena contemporânea brasileira até agora –, existem
vários coletivos teatrais que não trabalham – ou que não denominam seu processo de
criação – dentro de parâmetros do processo colaborativo.
Tal distinção também poderia ser feita em relação à criação coletiva. Só para ficar-
mos no âmbito brasileiro, se grupos como o Pod Minoga, o Asdrúbal Trouxe o Trom-
bone, o Sonda, o Teatro União e Olho Vivo ou o Núcleo Independente podem ser facil-
mente associados à criação coletiva, outras companhias importantes como o Arena
e o Oficina apresentavam processos de trabalho distintos – ainda que, vez ou outra,
tenham flertado com a criação coletiva, como foi o caso do Oficina na montagem do
espetáculo Gracias Señor.
Poderíamos realizar, antes de qualquer coisa, e como primeira abordagem teórica,
um exercício de pensar o processo colaborativo por diferentes aspectos ou ângulos. Visua­
lizamos quatro possíveis recortes, a saber: como modo de criação, como metodologia de
trabalho, como modo de produção e como resultante estética.

3.1 Processo Colaborativo como Modo de Criação

De maneira geral, o processo colaborativo é visto como um método, tanto por


profissionais da área quanto por estudiosos de teatro. Ora, se os métodos são cami-
nhos, diretrizes operacionais, que podem ser rígidos ou abertos, enquanto os modos
são a maneira de colocar em diálogo, de inter-relacionar os diferentes elementos
na construção da obra, será que não seria revelador pensar o processo colaborativo
59

também a partir do seu modo de fazer? Ou melhor, estudá-lo à luz desse binômio
método e modo?
Tal perspectiva pode nos ajudar a entender o porquê algumas pessoas advogam,
de maneira ferrenha, que processo colaborativo e criação coletiva são denominações dis-
tintas para uma prática que seria a mesma. Talvez a defesa da equivalência desses
dois termos esteja baseada em um tipo de visão que os pensa enquanto método. E, de
fato, por seu fazer coletivizado, por sua diretriz dialógica, pode-se, sem incorrer em
erro, pensá-los geminadamente.
Contudo, se olharmos para essas duas dinâmicas pelo viés do modo, perceberemos
que o como se opera a inter-relação entre os diferentes elementos de criação produz,
aqui, processos distintos. Por exemplo, o diálogo ocorre entre funções já definidas e
assumidas desde o início. O trabalho de criação só se inaugura, de fato, a partir desse
pacto previamente estabelecido. Ou seja, o grupo, por meio de um consenso – ou
endosso – define a ocupação de cada área artística, segundo o interesse e a habilidade
dos integrantes ou convidados. É claro que, em muitas das funções, tal decisão nem
se faz necessária, na medida em que é comum a permanência e a continuidade dos
colaboradores, de um projeto para o outro.
Se, em relação às personagens, não é rara a existência de uma etapa, dentro dos
ensaios, em que todos os atores exploram todos os papéis, o mesmo não ocorre em
relação às funções. Ou seja, não há um período em que todos os integrantes expe-
rimentam todas as funções – ou em que elas são deixadas em aberto por um tem-
po – para, só então, haver a definição de quem fará a cenografia ou a dramaturgia.
Sabemos, por exemplo, que em algumas práticas de criação coletiva, quando ocorria
algum tipo de definição de atribuição, ela só se estabelecia muito tempo depois de
iniciados os ensaios.
Além disso, da forma como praticada pelo Vertigem até agora, a criação não tem
se caracterizado pela mobilidade de funções. Porém nada impede que isso aconteça.
Pois, se essa mobilidade ocorrer de um projeto para outro – e não dentro de um mes-
mo espetáculo – não há a descaracterização do processo colaborativo. Por exemplo,
não haveria nenhum problema de um ator do grupo numa determinada peça, vir a
se tornar o dramaturgo ou o diretor na montagem seguinte.
Nem mesmo a simultaneidade ou conjugação de funções dentro de um mesmo
projeto, apesar de se constituir numa situação mais complexa, inviabilizaria a prática
do processo colaborativo. Tudo iria depender de quais funções seriam assumidas pela
mesma pessoa e da capacidade do grupo em gerenciar uma situação assim.
Se a horizontalidade das funções é uma regra básica de funcionamento desse
modo de criação, é inegável a revalorização do ator como um criador em pé de igual-

 Essa definição – e discussão – de “método” e “modo” foi apresentada pela Profª.


Mônica Baptista Sampaio Tavares, na sua disciplina de Pós-Graduação denominada
“Processo Criativo e Metodologia”, por nós cursada no 1º semestre de 2005.
60

dade com o dramaturgo e o diretor. A sua função autoral, muitas vezes encoberta ou
restrita à execução técnica de determinada personagem, fica potencializada no pro-
cesso. Na prática, no instável equilíbrio de forças da sala de ensaio, a dramaturgia e
a direção parecem “perder” seu caráter de onipotência e onisciência, abrindo espaço
para uma interferência autoral forte por parte dos intérpretes.
Outro aspecto importante diz respeito à síntese final. Se, na criação coletiva, a
autoria individual – quando ela ocorre – deve estar submetida à vontade grupal, aqui
ocorre um tensionamento ao limite entre estes dois pólos. Isto porque o artista res-
ponsável por uma área tem a palavra final sobre ela. Parte-se do pressuposto, é claro,
que ele irá discutir, incorporar elementos, negociar com o coletivo – durante o tempo
que for necessário –, porém, no caso de algum impasse insolúvel, a síntese artística
final estará a cargo dele.
Aliás, toda essa dinâmica de negociações é causa principal da dilatação do tempo
de ensaio. Gasta-se – e não “perde-se” – muito tempo em debates e na busca de solu-
ções em que todos se reconheçam. A criação se torna mais lenta e distendida, o que
pode se tornar um elemento de desgaste nas relações, a longo prazo. Por outro lado,
é muito difícil o amadurecimento de um discurso coletivo, de forma orgânica e cons-
ciente, sem ser por essa via.
A existência de uma forte autoria individual cria um importante pólo tensiona-
dor em um processo marcado por inúmeras interferências e contribuições. Ele tanto
favorece a filtragem e seleção do vasto material produzido quanto funciona como
um eixo aglutinador das proposições grupais. Se, por um lado, ele age como uma
barreira, um limite, uma fronteira, por outro, ele facilita e estimula a interlocução e
a expansão das zonas de colaboração.
Esse pólo criador individual – por paradoxal que pareça – acaba também acirran-
do o posicionamento grupal. Ele provoca uma tensão produtiva, ou até mesmo um
antagonismo, que fortalece o próprio grupo e o conceito-geral que o mesmo tem do
trabalho – ainda que por via da crise e do conflito. Por outro lado, as individualidades
também saem fortalecidas por essa dinâmica de confrontos, diálogos e negociações,
presentes dentro do processo.
Aliás, poder-se-ia pensar a “crise” não apenas como uma conseqüência à qual o
grupo está necessariamente fadado, mas como um mecanismo implícito e impul-
sionador em processos desta natureza. Ou seja, a sua deflagração pode ser vista não
como uma reação espontânea e indesejada, mas como uma ação transformadora,
produzida pelo próprio processo.
É possível ainda analisar o processo colaborativo à luz dos elementos de subordi-
nação e coordenação. Em um teatro mais tradicional, com hierarquias rígidas e bem
definidas – muitas vezes, inclusive, demarcadas por cláusula contratual –, as relações
internas de trabalho estão submetidas a uma pirâmide de subordinações. Por exem-
plo, o ator se submete às indicações do diretor, que por sua vez se submete às indica-
61

ções do dramaturgo e, todos juntos, se submetem aos parâmetros do produtor. Ou, se


ao contrário, o espetáculo orbita em torno de um determinado ator, essas linhas de
dominação se invertem.
Já em um caso diametralmente oposto a esse, o da criação coletiva, o que se esta-
belece – ou se procura estabelecer – é um plano de horizontalidade máximo. Ou seja,
ninguém subjuga ou direciona ninguém. Todos estão em pé de igualdade, o tempo
inteiro, em relação a todos os aspectos da criação. Daí que, nos casos em que tal dinâ-
mica – e o projeto utópico nela embutido – tenha funcionado efetivamente, presen-
ciamos uma estrutura baseada num sistema de coordenação.
No caso do processo colaborativo, o que ocorre é uma contínua flutuação entre
subordinação e coordenação, fruto de um dinamismo associado às funções e ao
momento em que o trabalho se encontra. Por exemplo, a definição do projeto, dos
colaboradores, das técnicas a serem experimentadas (treinamento físico e vocal, tipo
de exercícios, etc.), é toda ela decidida ou endossada coletivamente – não raro através
de votação, em caso de impasse. Ou seja, essa etapa ocorre sob a égide da coordena-
ção. Em outros momentos, como a distribuição dos papéis (a cargo do diretor), a defi-
nição final do texto (a cargo do dramaturgo) ou o desenho da luz (a cargo do ilumina-
dor), por mais que ocorram debates e confrontos, o grupo acata a decisão de quem é
o responsável por aquela função. Isto é, trabalha sob um regime de subordinação.
É claro que tais definições não são ocasionais. Ao contrário, são fruto de muita expe-
rimentação, de longo amadurecimento e de constantes negociações entre os inte-
grantes. Elas são conseqüência, ainda, da complexa rede de interdependências que
marca todo o processo. É muito comum, por exemplo, haver contínuas mudanças
de opinião e de posicionamento em razão desses embates criativos. O ideal, porém,
quando se opera numa sistemática de subordinação, é que ela não ocorra no âmbito
mesquinho da luta de poder ou da mera demarcação de território.
Além disso, o exercício de acatar uma definição artística alheia parte de uma esco-
lha anterior e criteriosa realizada por todo o coletivo em relação a esse “outro” com o
qual se estabelece uma parceria. Ou seja, trata-se de uma subordinação que é decor-
rente de uma prévia dinâmica de coordenação. O grupo escolheu com quem quis
trabalhar e não simplesmente foi contratado para realizar um espetáculo com uma
equipe pré-definida.
Por outro lado, os colaboradores convidados pelo grupo também não atuam como
simples executores. Eles participam e contribuem para a definição do conceito-geral
do trabalho (vale a pena observar que há uma grande diferença entre “exercer uma
função” e “ser funcionário” – subentendendo aqui, no caso deste último, uma sub-
missão passiva e burocrática). Dessa forma, os colaboradores-convidados vão se inse-
rir também nessa dinâmica fluida de coordenação-subordinação.
E, por fim, é importante perceber que esses regimes podem ocorrer sucessivamen-
te, num jogo de ir-e-vir, dentro de um mesmo momento da montagem. Por exemplo,
62

no âmbito da direção, a materialização das marcas e das movimentações ocorre desta


maneira. Os atores propõem gestos ou deslocamentos, o diretor seleciona e produz
uma partitura, os atores, então, reconfiguram aquele primeiro desenho; o diretor,
por sua vez, determina uma segunda formalização, e assim por diante.
Em todos esses casos, pode-se identificar a existência de uma atitude artística
autoral, marcada por um intrincado jogo de dependência-independência, e que osci-
la entre liderar e cooperar, entre impermeabilidade e porosidade. O que é diferente,
em um processo desta natureza, de ser “Maria-vai-com-as-outras” ou, no pólo oposto,
de empacar e não arredar pé antes mesmo do início das discussões.
Por todos os exemplos acima referidos é possível perceber que o que está em pau-
ta não é a presença ou não do elemento dialógico ou participativo, mas o como ele se
estabelece. Nesse sentido, pelo viés do modo, processo colaborativo e criação coletiva não
são a mesma coisa, não traduzem a mesma experiência. E a referida distinção – entre
método e modo – é capaz de nos ajudar a entender a discussão, muitas vezes polêmica,
que cerca esses dois conceitos teatrais.

3.2 Processo Colaborativo como Metodologia de Trabalho

Se examinarmos o processo colaborativo sob o ponto de vista metodológico, é


possível identificarmos alguns princípios de trabalho. O perigo, como sempre, é a
transformação disto em receituário ou fórmula. Nesse sentido parece preferível apro-
ximar-se de tais princípios como pontos de reverberação ou como agentes desenca-
deadores. Funcionariam como pontos de partida ou gatilhos, a partir dos quais, cada
processo engendraria seus desdobramentos particulares, seus mecanismos e contra-
mecanismos de estruturação, seus campos de experiência, suas acomodações e turbu-
lências, suas precipitações e dispersões. Em suma, diferentes percursos e renovados
procedimentos a cada vez e a cada nova montagem.
Eles podem ser pensados também como agentes em uma estratégia de operação
dramatúrgica ou cênica, capazes de provocar o aparecimento de experimentos tex-
tuais, corporais, imagéticos, etc. Ou seja, atuariam como estímulos para a produção
das escrituras do espetáculo.
Outra possibilidade ainda é abordar tais princípios como regras de jogo, capazes de
indicar parâmetros de ação e de organizar o percurso dos ensaios. Por se tratar de um
processo sem dramaturgia prévia, sem personagens definidas, sem marcações dadas de
antemão, sem tempo de duração rígido anterior à estréia do espetáculo, entre outros
elementos abertos, essas regras serviriam como balizas de navegação.
Muitos desses princípios estão associados ao aspecto de transitividade de criações
63

compartilhadas. O processo colaborativo é um processo transitivo e baseado na cir-


culação de materiais cênicos entre os criadores. Por exemplo, no caso do ator, ele fun-
ciona tanto como propositor de textos e imagens próprias quanto experimentador de
propostas vindas dos outros atores e dos demais participantes do projeto.
Analisaremos mais à frente, de forma detalhada, os vários elementos constitutivos, os
procedimentos de trabalho e as diferentes etapas deste tipo de processo. Por ora, nos res-
tringiremos apenas a enunciar as suas linhas de força fundamentais. São elas, a saber:

• Atitude autoral e propositiva;


• Vontade e capacidade de cooperação;
• Existência e potencialização de funções artísticas específicas, definidas
antes do início dos ensaios;
• Tempo indeterminado de ensaio;
• Interesse em pesquisa e experimentação;
• Realização de pesquisa teórica e de campo;
• Prática baseada em improvisações e workshops;
• Construção cênica ancorada na tensão entre depoimento pessoal e depoi-
mento coletivo;
• Ênfase no caráter processual, incorporando o precário e o inacabado à pró-
pria constituição da linguagem;
• Criação de dramaturgia inédita;
• Encenação processual e aberta;
• Processo continuado de feedback;
• Perspectiva de compartilhamento pedagógico;
• Abertura do processo de ensaio a estagiários, convidados e público interessado;
• Interferência dos espectadores na construção da obra.

3.3 Processo Colaborativo como Modo de Produção

O processo colaborativo não se restringe apenas ao âmbito da criação. Ele pode


ser pensado como uma forma de organização de gestão coletiva, de tipo cooperativo.
Isso quer dizer que as decisões fundamentais relacionadas à estrutura organizacional,
administração, controle financeiro, direção de produção passam pelo crivo e pela deli-
beração grupal. Desde questões simples, como gastos com papelaria e gráfica para a
confecção de projetos, até o aluguel de uma sede para a companhia ou a aceitação de
um convite para turnê, tudo passa por discussões internas do coletivo. A divisão de
cachês também é acordada conjuntamente e, salvo exceções, os valores não privile-
64

giam funções. Ou seja, tanto o dramaturgo, o diretor, os atores ou os outros colabora-


dores recebem a mesma quantia. Tal divisão é sempre rediscutida e redefinida a cada
novo trabalho, não existindo um padrão imutável de distribuição a ser seguido.
Por detrás deste sistema cooperativado, encontra-se um projeto de valorização
equânime de todos os integrantes do grupo. As funções, como já dissemos, são man-
tidas, porém, nenhuma delas é tratada como mais importante do que outra. Ou, para
sermos mais precisos, ainda que haja momentos onde uma determinada função
tenha preponderância ou destaque, no cômputo final a contribuição de todos se equi-
para. E isto é o que deve ser valorizado – inclusive monetariamente.
Quando ocorrem distinções salariais, elas estão relacionadas, em geral, a razões
de histórico de permanência dentro do grupo, tempo (parcial ou integral) dedicado
à execução do projeto, acúmulo de funções artísticas com funções administrativas
ou, no caso de turnês, um diferencial para quem viaja ou não. É comum, nessas
situações, o estabelecimento de um regime de cotas a fim de criar parâmetros para
a divisão. Por exemplo, se um determinado integrante realiza apenas o trabalho de
criação, ele receberá o equivalente a duas cotas da verba de salário do projeto ou
do líquido da bilheteria. Já aquele que estiver atuando concomitantemente na área
artística e administrativa ou de produção, receberá uma cota a mais, totalizando três
cotas. Outra distinção que também ocorre é aquela entre cachês – relativos aos artis-
tas e colaboradores técnicos ligados ao grupo – e salários – relativos às contribuições
artísticas e técnicas pontuais, sendo que os primeiros são, sempre que possível, de
montante superior aos segundos.
Aliás, ainda que o fechamento do borderô ou os gastos projetados na planilha de
produção sejam executados por um administrador ou produtor, especialmente con-
tratado para esse fim, periodicamente ocorre uma prestação de contas por parte dele
para todo o grupo.
Portanto, o que ocorre em um processo desta natureza – como também ocorreu
na criação coletiva – é o controle e a socialização dos meios de produção por parte
dos integrantes do coletivo. Como defende Walter Benjamim, o trabalho do “autor
consciente das condições da produção intelectual contemporânea [...] não visa nunca
a fabricação exclusiva de produtos, mas sempre, ao mesmo tempo, a dos meios de
produção”. Nesses processos, por conseguinte, os artistas – ou uma parte significa-
tiva deles – são também produtores e administradores, tanto do projeto quanto do
espetáculo. E mesmo para aqueles que não querem assumir tais tarefas, trabalha-se
com transparência na apresentação periódica dos gastos. Portanto, o grupo adquire,
concomitantemente, a propriedade comum dos meios de produção e criação.
O conceito de modo de produção conjuga duas noções clássicas da teoria marxista:
a de forças produtivas (os meios de produção) e a de relações de produção. O primeiro

 benjamin, w. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993, p. 131.
65

remete ao estágio de desenvolvimento dos instrumentos e tecnologias de que dada


sociedade dispõe para produzir os bens materiais que lhe são necessários, tais como
matérias primas, máquinas, empresas, além do número e a qualificação dos trabalha-
dores. O segundo, às formas de propriedade por meio das quais os homens concentram
– ou distribuem – essas forças de produção, bem como os produtos do trabalho huma-
no. Modo de produção seria, portanto, grosso modo, a conjugação de forças produtivas
com relações de produção em um determinado estágio evolutivo da humanidade.
Obviamente, esses conceitos podem parecer deslocados na análise das relações de
trabalho de um grupo teatral, haja vista que a análise marxista focava preponderan-
temente a produção concreta de mercadorias e não, de bens simbólicos. No entanto,
poderíamos pensar que as forças produtivas do fazer teatral envolvem toda a gama de
elementos de que os artistas dispõem para a feitura da criação, tais como os próprios
recursos humanos – por exemplo, a voz e o corpo do ator –, bem como os aspectos
materiais envolvidos – cenários, figurinos, iluminação etc. Incluiria, também, os conhe-
cimentos e as metodologias do fazer artístico. As relações de produção, por sua vez,
envolveriam o modo como o processo e o produto do trabalho se encontram concentra-
dos (relações de exploração) ou coletivizados (relações igualitárias). Essa última forma
permite que a expressão de cada um seja valorizada de forma equânime no conjunto, e
que todos se sintam igualmente “proprietários” do resultado do trabalho coletivo.
Tal perspectiva favorece o estabelecimento de relações de trabalho bastante dife-
renciadas do modelo empresarial, além de propiciar uma nova organização interna
do trabalho teatral. O fato de o grupo produzir ou gerir a produção, tanto do processo
de ensaio quanto da montagem em si, acarreta uma reestruturação interna, na qual
os integrantes se deslocam também para distintas funções administrativas. Entre
elas, poderíamos citar direção financeira, captação de recursos, prestação de con-
tas, administração, confecção de textos para editais, programação visual, divulgação,
documentação, etc. Essas funções, além da importância em si para a continuidade e
sobrevivência do grupo e do trabalho, estimulam o aparecimento de lideranças indi-
viduais. Portanto não estamos mais sob a égide do “grande líder”, mas de múltiplas
lideranças, tanto no campo artístico quanto no da produção – diretor administrativo,
diretor financeiro, diretor técnico, diretor artístico, dramaturgo, encenador, etc.
O cruzamento e a superposição de tarefas artísticas e produtivas nem sempre é
tranqüilo. Com freqüência ocorrem interferências de uma área em outra, às vezes
com perdas para ambos os lados. Por exemplo, um desentendimento em relação a
uma questão administrativa pode ser carregado para dentro da sala de ensaio. Ou
ainda, uma reunião artística demorada ou um ensaio que avança até a madrugada
adia decisões importantes de produção que precisariam ser tomadas com presteza.
Contudo, apesar dos possíveis curto-circuitos, o ganho decorrente do controle admi-
nistrativo e produtivo é, ainda assim, superior. Ele induz a um amadurecimento nas
relações intra-grupais, fortalece os princípios de associação e cooperação, conscientiza
66

sobre os problemas e percalços materiais, aprofunda uma relação não-alienada com


o próprio fazer, estimula posicionamentos ideológicos mais definidos e favorece uma
dinâmica não-hierarquizada entre os integrantes. Tendo em vista seu modo de funcio-
namento, não seria demasiado adjetivá-la de produção associativa ou colaborativa.

3.4 Processo Colaborativo como Resultante Estética

Antes de qualquer coisa, talvez caiba a pergunta: um modo de criar compartilha-


do e coletivizado levaria a uma resultante estética particular? A princípio, a resposta
possível parece negativa. Isso porque, ao analisarmos o processo colaborativo, perce-
bemos que ele não tem uma estrutura homogênea, nem uma metodologia rígida e
nem mesmo compreende um único estilo. Ao contrário, trabalha com procedimen-
tos e técnicas bem variadas e os espetáculos dele resultantes têm linguagens as mais
distintas. Trata-se, fundamentalmente, de um processo de caráter experimental.
Contudo é possível identificarmos alguns elementos estéticos recorrentes ou pre-
ponderantes. Comecemos pela dramaturgia. Aliás, parece-nos importante fazer um
parêntese aqui. Por mais que, às vezes, haja esquecimento ou desconsideração em
relação a este fato, o processo colaborativo estimula ativamente a escritura de peças.
Nesse sentido, ele poderia estar inserido no que vem sendo chamado de “nova dra-
maturgia”, pois, além de funcionar como uma estratégia de criação textual, ele, de
fato, produz novas peças e revela à cena novos dramaturgos.
Devemos ficar atentos a tal aspecto, na medida em que existe muito preconceito
em relação a textos escritos no bojo de uma dinâmica grupal. Por exemplo, a drama-
turgia produzida pela criação coletiva é, até hoje, vista com enormes ressalvas – o
que mereceria uma revisão mais criteriosa. É claro que muitas das peças produzidas
eram fracas estruturalmente e pecavam por panfletarismo e superficialidade no tra-
tamento dos temas. Contudo, isto é diferente de rotular toda aquela produção sim-
plesmente como “má dramaturgia”. E esse mesmo fantasma parece também rondar
os textos criados em processo colaborativo.
Mas voltemos aos elementos estéticos recorrentes. No caso das peças, é comum a
presença de forte elemento monológico. Como uma parte significativa do processo
é alimentada por workshops individuais trazidos pelos atores, este aspecto não-dialó-
gico, de ausência de intercâmbio verbal, caracterizado por depoimentos pessoais em
forma de monólogo, irá marcar a resultante dramatúrgica.
Outro traço relevante refere-se a uma escritura que ocorre em torno ou a partir de
imagens cênicas fortes. Ou seja, mais do que o desenvolvimento de conflitos psicoló-
gicos ou de longas digressões verbais, a dramaturgia encontra-se germinada e mate-
67

rializada em sínteses imagéticas. Ainda que seja pedida aos atores a criação de textos
escritos, a parte mais significativa das improvisações e workshops está assentada na pro-
dução de imagens, o que justifica a presença determinante delas no resultado final.
Poderia ser apontada ainda a existência de um elemento fragmentário, de justa-
posição de cenas sem forte ligação causal, produzindo uma estrutura dramática mais
aberta e ramificada. Tal configuração, marcada por elementos de colagem, intertex-
tualidade e cadeias de leitmotiv, é resultado direto do conjunto diversificado de vozes
artísticas presentes no processo, e poderia incorrer em flacidez estrutural e em peças
“colcha-de-retalho”. Porém a presença de um dramaturgo individual contribui para o
fortalecimento do texto, evitando uma perigosa generosidade benevolente – a qual,
de brincadeira, denominamos “síndrome de Madre Teresa de Calcutá” –, que se vê
obrigada a incorporar as contribuições de todos os integrantes o tempo inteiro.
A não-hierarquização das funções também acaba refletindo numa obra em que
os aspectos textual, espetacular ou interpretativo não têm caráter epicêntrico. Em
outras palavras, num processo constituído a partir de hierarquias móveis, os dife-
rentes elementos da cena vão também apresentar uma flutuação de dominâncias ao
longo do espetáculo. Às vezes é o texto que terá predominância, enquanto em outros
momentos, é o trabalho do ator ou a experiência sinestésica proposta pela encenação
que capturará a atenção do espectador.
Em relação a esse último aspecto, é possível observar como muitos dos espetá-
culos realizados em processo colaborativo apresentam uma forte experimentação
espacial e/ou de relação com a cidade e seus espaços públicos. Parece existir uma
conexão entre estes coletivos autorais e um projeto de exploração do espaço cênico e
de interferência em locais específicos da cidade.
Apesar de não haver uma relação direta entre a dinâmica interna deste tipo de
processo com um projeto de ocupação urbana, alguns elementos podem ser identifi-
cados. O fato de os integrantes do grupo trazerem seus problemas e interesses para
os ensaios, como material de criação, parece contaminar o trabalho com questões
ligadas à vida na cidade. Além disso, muitos desses grupos têm suas sedes em bairros
específicos (Bixiga, Vila Maria Zélia, Barra Funda, Luz, etc.), o que provoca uma inte-
ração cotidiana com o entorno destes locais. Aliada a esta conjuntura, as constantes
atividades pedagógicas realizadas pelos artistas com a população local trazem para o
âmago da companhia, depoimentos, histórias e questões a ela concernentes.
No que diz respeito à interpretação, a perspectiva testemunhal e propositiva solici-
tada aos atores induz a um registro mais experiencial, com fortes traços performáticos.
Isso é acentuado pelo fato da não existência de um texto prévio, de personagens prontas,
de marcações desenhadas previamente pelo diretor, o que amplia a zona de insegurança
na qual o ator deverá trabalhar. Este elemento de desorientação, de perigo e de risco acom­
panha todo o processo, deixando marcas na qualidade de presença e no registro físico e
vocal dos intérpretes, o que os aproxima bastante àqueles do performer.
68

3.5 O Problema da Autoria

Teatro de vários autores, resultado de uma interação múltipla e de um trabalho


coletivo, como se coloca a questão da autoria dentro do processo colaborativo? Se na
criação coletiva – salvo exceções – o autor desaparece enquanto criador individual
para deixar surgir uma “autoria coletiva”, no processo colaborativo ocorre um retor-
no e uma valorização do autor singular. Contudo ele não está isolado: o exercício de
autor, realizado em cada função artística, dialoga e é confrontado com a vontade gru-
pal. Daí que o resultado final continua sendo de todos os envolvidos, porém mantém
salvaguardada a contribuição artística pessoal. É nesta zona de litígio, com fronteiras
de difícil demarcação, que se exerce a batalha autoral. No processo colaborativo, a
questão da autoria exclusiva não se coloca; o autor ali é, necessariamente, “inclusivo”.
Na verdade, essa discussão sobre as noções de obra, de autor e de autoria já vem
de longa data, e suscita opiniões bem diversificadas. Roland Barthes, no seu célebre
ensaio “A Morte do Autor”, advoga o fim da autoria para que haja o surgimento da
escritura. Perfaz a noção histórica de “autor”, apontando para o “prestígio do indiví-
duo” na sociedade moderna. Segundo ele, “o autor é uma personagem moderna”. É
desse período o aparecimento de uma leitura crítica da obra que a enxerga apenas
como a voz de uma única e só pessoa.
Barthes invoca Mallarmé na associação entre “autor” e “proprietário”, e concorda
com a sua opinião de que “é a linguagem que fala, não o autor”. Propõe também uma
distinção entre “autor” e “escriptor”. O primeiro termo diz respeito a uma noção de
paternidade, de anterioridade, de origem em relação à obra, em suma, de um “Autor-
Deus”. Já o segundo, “nasce ao mesmo tempo que seu texto”, não há precedência
mas, sim, concomitância, inscrição feita no aqui e no agora, o que lhe outorga um
caráter “performativo”10.
Se não podemos nos esquecer do momento em que esse ensaio foi escrito – 1968
– e nem de sua ressonância contextual com o período da criação coletiva, por outro
lado devemos ter em mente que a questão-chave defendida por Barthes para a mor-
te do autor tem como alvo o fortalecimento do leitor. É aí que se encontra o ponto
nevrálgico de sua discussão sobre autoria. Não é à toa que seu texto se encerra com a
célebre frase “o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do autor”11.
Se tal defesa pode ser remetida à nova relação com a platéia e à sua transfor-
mação em co-autores advogada pela criação coletiva, ela também não é estranha à
abordagem que o processo colaborativo faz do público. Contudo, Barthes apresenta

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barthes, r.�� O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 58.
� Ibid., p. 59.
10 Ibid., p. 61.
11 Ibid., p. 64.
69

dois termos que parecem fecundos à nossa discussão: “escritura coletiva” e “escri-
tura múltipla”.
Ainda que ele não faça uma comparação entre esses conceitos, associando o pri-
meiro a um procedimento de dessacralização do autor realizado pelo surrealismo,
e o segundo, a um tipo de escritura que dispensa qualquer decifração, tomamos a
liberdade de estabelecer um paralelismo entre os dois.
Se pensarmos a “escritura coletiva” como aquela realizada por várias mãos, todas
juntas escrevendo, ao mesmo tempo, um mesmo “texto”, poderíamos associá-la a
uma prática comum na criação coletiva. Ao contrário, a “escritura múltipla” definida
como “um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras
variadas, das quais nenhuma é original”, onde “o espaço da escritura deve ser percor-
rido, e não penetrado”, remete-nos ao território do processo colaborativo.
Nele, os vários autores – ou autorias – não se somam, mas coabitam dentro da
obra. As diferentes escrituras individuais estão ali mantidas, identificáveis, e o con-
junto se forma não pela síntese entre elas, mas pelo diálogo e atrito, pelo choque de
pólos artísticos particularizados, que se justapõem ou se contaminam, mas não se
diluem um no outro.
Um ensaio também importante, que nos aponta alguns elementos em relação ao
problema da autoria, é o de Michel Foucault, denominado “O que é um autor?”. Nele,
são discutidas as noções de autor, de obra, de autenticidade, de escrita, da “função
autor” e da “função sujeito”. Em sintonia com Barthes, ele não reivindicará propria-
mente a “morte” do autor, mas sim o seu desaparecimento ou apagamento, como
uma estratégia “que permite descobrir o jogo da função autor”12.
O fato de pensar o “autor” como uma função em si amplia o campo deste concei-
to, pois ultrapassa a associação e a dependência entre a “autoria” e a pré-existência
de funções artísticas definidas. É como se ela não fosse mais um dado imanente da
função ou a ela condicionada. Foucault, ao abolir a subordinação entre esses dois
termos, nos faz pensar a função-autor como um aspecto anterior e comum a todas as
funções artísticas individualizadas.
Aliás, ele problematiza a questão da individualidade na autoria, ao afirmar que
“a palavra ‘obra’ e a unidade que ela designa são provavelmente tão problemáticas
como a individualidade do autor”13. Por exemplo, em que medida ela não comporta-
ria em si, uma pluralidade de “eus”?
Além disso, ele afirma que o “nome de autor serve para caracterizar um certo
modo de ser do discurso”14 e apresenta alguns critérios que agrupam obras distintas
sob a mesma autoria individual: “homogeneidade”; “filiação”; “mútua autenticação”,
“explicação recíproca”; e “utilização concomitante”. Se nos utilizássemos de tais cri-

12 foucault, m. O que é um autor? Lisboa: Vega, 2006, pp. 80-81.


13 Ibid., p. 39.
14 Ibid., p. 45.
70

térios, perceberíamos a sua funcionalidade tanto para a autoria individual quanto


coletiva. Ou seja, poderíamos empregá-los, por exemplo, tanto para a autora-individual
Cláudia Schapira como para o autor-coletivo Núcleo Bartolomeu de Depoimentos.
Chama à atenção, também, a afirmação de Foucault de que teria sido a crítica lite-
rária a responsável pela construção da “forma autor”. Essa idéia da autoria como um
construto, como um “arte-fato”, como uma operação, nos estimula a refletir sobre
como tal construção de autorias se dá no processo colaborativo. Se, por exemplo, na
criação coletiva, o apagamento do autor poderia provocar uma autoria individual fraca,
lacunar, cheia de fissuras – o que é diferente de não-autoria –, a fim de maximizar a
autoria coletiva, no processo colaborativo, procura-se conjugar autorias individuais
fortes capazes de propiciar ou potencializar uma autoria coletiva também forte. Ou
seja, todos são autores e co-autores, simultaneamente. Trata-se de construções ou
operações distintas – ambas, com bons e maus resultados.
Nesse sentido, parece-nos um equívoco reduzir a autoria no processo colabo-
rativo a uma mera organização do material apresentado. A não ser, é claro, que
se expanda o entendimento da noção de “organização”, aliando a ela uma atitude
construtiva e criadora – e não apenas de uma simples arrumação. O artista aqui não
é só um disciplinador, um faxineiro ou um guarda de trânsito. Ao contrário, ele cria
um conceito e articula um discurso que nasce das várias contribuições recebidas.
A autoria não se dá por filtragem – noção que implica um alto grau de passividade
– mas por uma construção conceitual e uma reelaboração da matéria cênica com-
partilhada, ainda que, por vezes, isso possa significar apenas um simples arranjo ou
uma pequena incisão.
Outro elemento a ser destacado é que, segundo Foucault, a “função autor” produ-
ziria um discurso caracterizado como um objeto de apropriação ou como “um bem
preso num circuito de propriedades”15. Tal condição traz à tona, conseqüentemente,
questões relativas aos direitos de autor. E daí, a pergunta: como eles se colocam den-
tro de uma dinâmica grupal?
Tomando como referência o relato de outras companhias e a experiência do Teatro
da Vertigem, a questão do direito de autor está presente, porém nunca aparece como
impedimento ao processo ou à vida do espetáculo. Diferentemente da criação coletiva,
onde talvez essa discussão não se colocasse, aqui os artistas assinam individualmente
por suas criações. Portanto, além das autorizações legais cabíveis (sbat, ecad, etc.) e da
correta menção no material de divulgação e no programa, o artista se vê – utilizando a
noção foucaultiana – como o “proprietário” daquela sua área específica de criação.
Esse aspecto, às vezes, durante períodos de grande tensão dentro do processo, até
pode aparecer por meio de uma fala explosiva como, por exemplo, “eu não assino
isso” ou “se for para ficar desse jeito, eu prefiro que não coloquem o meu nome na

15 foucault, m., O que é um autor?, p. 47.


71

ficha técnica”. Tais irrupções agressivas, no entanto, nunca passaram de reações pas-
sageiras a momentos de agudas crises.
Se se tratasse de um formato empresarial tradicional, talvez as conseqüências e os
desdobramentos fossem outros. Porém, no processo colaborativo, o fato de a autoria
individual estar sempre sendo estimulada pelo diálogo com as proposições e interfe-
rências do grupo todo, a demarcação rígida dos direitos de criador fica relativizada16.
Aliás, como já vimos, não se trata apenas de uma dinâmica de estímulos e retro-ali-
mentações. Há, de fato, a incorporação de sugestões e formalizações oriundas dos
outros membros da companhia, no corpus da criação individual.
Essa autoria, que se dá, – ainda que não exclusivamente –, por mecanismos de
apropriação, torna altamente problemática uma atitude de proibição ou veto à exi-
bição da obra individual. Na verdade, uma explicação para isso se encontra no fato
de se tratar de uma obra individual sim, porém impregnada de impressões digitais
alheias, criada em diálogo e em interdependência com uma obra grupal.
No caso da encenação, por exemplo, seria um contra-senso advogar tais direitos,
tamanhas são as contribuições sugeridas por toda a equipe. E mesmo no caso do
ator, cujo resultado artístico se dá no corpo – o que o torna mais palpável, às vezes,
do que um conceito de direção – também não parece fazer sentido uma eventual
briga por direitos de autoria. Pois a criação dele está atravessada pela dos outros
atores – seja quando experimentaram a sua personagem ou quando trouxeram
material cênico para ela –, pelo diálogo com a direção – as marcações e os gestos
foram criados em parceria – e pelas interferências dos outros criadores – por exem-
plo, uma proposta de figurino que consegue formalizar uma personagem ou figura
ainda embrionária.
Prova disso é que – por relatos e experiência própria – sempre que houve a neces-
sidade de realizar substituições, mesmo em saídas mais conflituosas, nunca houve
recusa, proibição ou mesmo solicitação de porcentagem financeira pela criação, por
parte dos atores que deixaram o grupo.
Examinando o problema da autoria com nosso orientador, Jacó Guinsburg, ele
defende que não há a exclusão de autorias no processo de trabalho da criação cole-
tiva. Elas continuariam ali, presentes, ainda que menos assumidas. Segundo ele, o
diferencial que ocorre em relação ao processo colaborativo é que nele a autoria se
coloca de forma mais objetivada.

16 Na opinião de Abreu, por exemplo, “num processo de criação compartilhada não há mui-
to espaço para ‘minha cena’, ‘meu texto’, ‘minha idéia’. Tudo é jogado numa arena co-
mum e examinado, confrontado e debatido até o estabelecimento de um ‘acordo’ entre
os criadores. É claro que esse acordo não significa reduzir a criação ao senso comum, nem
transformar o vigor da criação artística num acordo de cavalheiros. É um acordo tenso,
precário, sujeito, muitas vezes, a constantes reavaliações durante o percurso” (In: abreu,
l. a., “Processo Colaborativo: relato e reflexões sobre uma experiência de criação”, p. 36).
72

Além disso, tanto em um quanto em outro, a atitude autoral ocorre em todas as


etapas da criação, desde a definição do conceito até a finalização das apresentações
públicas. A distinção, no caso da criação coletiva, dizia respeito à recusa ou à dificul-
dade com a autonomia de uma atitude autoral individual.
Se quiséssemos ampliar ainda mais essa discussão, precisaríamos refletir sobre
como o papel da internet vai desestabilizar e propor uma nova perspectiva sobre o
problema da autoria. Compartilhamento de dados, blogs, sites cujos textos e imagens
podem ser reconfigurados por cada usuário que ali navegar, são alguns exemplos da
ampliação de perspectiva sobre o lugar da autoria no contexto atual. Segundo Jean-
Louis Lebrave,

[...] a estabilidade das noções de autor e de propriedade intelectual foi [...] submetida
a outra investida com a aparição das grandes bases de ‘dados textuais’ e das experi-
ências da ‘biblioteca eletrônica’. Em pouco tempo será possível dispor de um inter-
texto ilimitado, com o qual o usuário poderá jogar, entrelaçando empréstimos e
comentários, praticando colagem e plagiato, inventando caminhos não-lineares.17

3.6 O Problema da Tomada de Decisão

Aproximando-nos mais do universo da direção, além de tratar-se de questão cor-


relata àquela da autoria, seria pertinente abordarmos o problema da tomada de deci-
sões dentro do processo colaborativo. Quem decide o quê? Quando é que uma decisão
se torna necessária e inadiável? Como se dá o processo ou a sistemática das escolhas
durante os ensaios, tendo em vista a pluralidade de opiniões?
Antes de tudo, gostaríamos de invocar uma teoria extra-teatral que estabelece
conexões diretas com este problema: a teoria dos jogos. Criada pelo matemático John
von Neumann e desenvolvida, entre outros, por Morton D. Davis, a partir de estudos
de análise combinatória, ela busca a aplicação de propriedades matemáticas a pro-
blemas econômicos, sociais e políticos. Tal teoria diz respeito principalmente à toma-
da de decisões que necessitam ser feitas cooperativamente, por meio de barganhas,
negociações, estratégias e equilíbrio de forças, tanto entre dois indivíduos (Two-Person
Game) quanto entre vários (n–Person Game)18.
Lidando com questões como conflito vs. cooperação, competitividade vs. coalizão,

17 zular, r. (org.). Criação em Processo: ensaios de crítica genética. São Paulo: Iluminuras, 2002,
p. 117.
18 davis, m. d. Game Theory: a nontechnical introduction. Mineola:
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Dover Publications, 1997,
pp. xvii-xviii.
73

escolha vs. acaso, a teoria dos jogos ajuda a pensar sobre decisões que precisam ser
tomadas conjuntamente, acordos que precisam ser estabelecidos a partir de dife-
rentes interesses, e dilemas ou situações paradoxais que necessitam ser superados.
Portanto, nada mais apropriado para o cotidiano da sala de ensaio, onde dramaturgo,
diretor e atores “negociam” uma criação compartilhada, e que a partir de preferên-
cias individuais chega-se a escolhas coletivas.
Por outro lado, é importante estarmos atentos às limitações da teoria dos jogos
em relação ao campo artístico. Por se tratar de modelo matemático – do qual não
trataremos aqui – com aplicações específicas no campo da ciência política ou da
administração, entre outros, em que se buscam “soluções”, “estratégias” ou até mes-
mo “formas de se ganhar uma disputa”, as correspondências com o universo teatral
devem ser realizadas com cuidado. O aspecto evolucionista e comportamental dessa
teoria, marcadamente behaviorista, também inspira cautela. Além disso, algumas
correntes da administração se utilizam desses princípios como forma de “exploração
da cooperação”. Portanto, o que vai nos interessar não é a aplicação teatral da teoria
dos jogos, mas, simplesmente, algumas possíveis aproximações a seu universo19.
No processo de ensaio, é comum o conflito entre desejos artísticos individuais
contrastantes e mesmo desses em relação a aspirações coletivas de ordem mais geral.
Às vezes, sem perceber, as pessoas estão lutando entre si movidas por impulsos nar-
cisistas, demarcações de territórios ou crises de insegurança. Ao mesmo tempo, tam-
bém, subsiste a vontade e a necessidade de cooperarem umas com as outras.
Enquanto diretor, como perceber as motivações e as forças que se encontram em
jogo? Como não transformar, por exemplo, o período de livre-experimentação dos
papéis por parte dos atores em uma estratégia de competição? Como levar em conta
as aspirações individuais sem, com isso, se tornar refém delas, sem prejudicar o pro-
jeto que é, na origem e no fim, coletivo?
Morton D. Davis vê a tomada de decisões como um jogo de estratégia, e aponta
que “em um jogo, cada jogador deve avaliar a extensão na qual os seus objetivos com-
binam ou colidem com os objetivos dos outros e decidir se vai cooperar ou competir
com todos ou alguns deles”20
Se concordarmos quanto à natureza de “jogo” que atravessaria essa dinâmica
das escolhas grupais, que regras as norteariam? Antes de qualquer coisa, Davis
coloca a questão numérica como fator determinante. Uma decisão entre dois – por

19 Outro fator importante na compreensão da teria dos jogos foram as duas palestras
realizadas pela física Gita Guinsburg ao grupo de orientandos do Prof. Jacó Guinsburg,
no 1º semestre de 2007. Nesses encontros, ela realizou uma “tradução” da linguagem
matemática envolvida nesta teoria e ajudou-nos com exemplos práticos, retirados do
cotidiano, a transpor fórmulas e equações para casos concretos. Tal contribuição mos-
trou-se bastante útil no desenvolvimento dessa parte do trabalho.
20 davis, m. d., Game Theory: a nontechnical introduction, p. xiv.
74

exemplo, um ator e o diretor – é muito distinta daquela tomada entre mais de


duas pessoas ou “n” pessoas – imaginemos, em nossa área, uma “assembléia” com
o grupo teatral inteiro.
Além disso, se no jogo buscamos encontrar uma solução, aqui, – especialmente
por se tratar de várias pessoas reunidas, todas convivendo com objetivos coinciden-
tes e discordantes – esta solução pode não existir ou, ao contrário, existirem várias
possíveis. Segundo ele, os jogos complexos são menos previsíveis do que os jogos
simples, porém são mais interessantes e férteis.
Entre as dificuldades associadas à tomada de decisões podem ser destacados três
fatores: a falta de conhecimento das conseqüências de cada uma das opções possíveis;
as manipulações – conscientes ou não – dos outros “jogadores”; e a interferência do
acaso. Na esfera do processo colaborativo, o grau de empirismo a ele inerente acaba
por maximizar estas dificuldades.
Um dos elementos que pode auxiliar a tomada de decisão é a expressão das pre-
ferências da pessoa, de maneira consistente, a fim de que ela possa realizar uma
escolha racional. Segundo Davis, um fator determinante no processo de escolha é a
forma como as diferentes alternativas são expressas, pois “... as pessoas nem sempre
tomam decisões baseadas em suas condições ou circunstâncias, mas sim em como
essas condições apareceram ou foram descritas”21.
Sob o ponto de vista teatral, a razão é apenas um dos fatores em jogo, o que limita
bastante o acolhimento da sugestão acima mencionada. Por outro lado, o exercício do
diretor em tentar clarificar ou explorar as preferências artísticas dos outros integrantes
do grupo pode, de fato, ajudar no processo decisório. É bastante comum, por exemplo,
quando um dos atores expressa confusamente – ou com alguma timidez – suas pro-
posições, elas serem descartadas imediatamente pelo restante do grupo. Isso no caso
de serem ouvidas. Nesse sentido, o papel do diretor em apresentar todas as diferentes
alternativas surgidas, garantindo um nível de expressão consistente e claro, pode evi-
tar injustiças e auxiliar um processo de escolha mais amadurecido.
Davis identifica ainda distintas categorias de jogos: os inteiramente competitivos,
os inteiramente cooperativos e os de caráter misto. No caso do processo colaborati-
vo, por toda a complexidade que ele envolve, parece haver uma aproximação maior
com a última categoria. Por outro lado, talvez ele pudesse ser pensado como um jogo
fundamentalmente cooperativo, porém atravessado por elementos competitivos. Tal
percepção advém da identificação de motivações contraditórias nos “jogadores”.
Por exemplo, no momento da distribuição dos papéis ou na fase de improvisações
destinadas ao desenvolvimento das personagens, o posicionamento dos atores tende
a ser bastante ambíguo. Se, por um lado, existe o desejo coletivo de realizar a melhor
peça possível, por outro, as personagens maiores, mais complexas ou protagonistas

21 davis, m. d., Game Theory: a nontechnical introduction, p. 73.


75

exercem atração maior sobre os intérpretes. Além disso, numericamente falando, os


atores se constituem como um subgrupo em que todos exercem a mesma função,
em contraponto à presença de um cenógrafo ou de um iluminador. Portanto, o fator
competitividade é inerente ao processo, queiramos ou não.
Contudo, se em espetáculos comerciais, no momento de realização do casting,
o diretor pode acirrar ou estimular tal competitividade, numa perspectiva grupal
isso deve ser evitado ou atenuado. Caso contrário, podem ocorrer desgastes e cisões
incontornáveis no bojo do trabalho. Fechar os olhos e fazer de conta que essas dispu-
tas não existem é, também, ingênuo e perigoso.
Uma saída possível é manter a consciência de tais conflitos ao longo dos ensaios e, ao
invés de querer extirpar ou reprimir esse traço competitivo, adotar transparência em rela-
ção às escolhas. O encenador, por exemplo, deve justificar o mais concretamente possível
– não usando apenas o critério do gosto pessoal – as opções dramatúrgicas de desenvol-
vimento das personagens e as escolhas ator-papel por ele realizadas. Invocar ou lembrar
alguns dos aspectos artísticos fundamentais, motivadores do projeto coletivo em curso,
também pode auxiliar. Contudo, na maior parte das vezes, os sentimentos de “perda” e
frustração são inevitáveis e só são superados – quando o são – muitos meses depois.
Entre os aspectos ou traços importantes levantados por Davis em relação aos jogos
cooperativos e mistos, destacamos alguns:

• Comunicação: o grau de capacidade de comunicação dos jogadores pro-


duz efeito significativo no resultado do jogo. Em outras palavras, a inabili-
dade para se comunicar é um problema crucial e se constitui numa “des-
vantagem”. Nos jogos cooperativos é fundamental, ainda, que os jogadores
possam se comunicar livremente.
• Restrição de alternativas: ao invés de se trabalhar com uma infinidade de
opções, o princípio da limitação de alternativas pode provocar o fortaleci-
mento de posições dos jogadores e, conseqüentemente, auxiliar a tomada
de decisões. No caso do processo colaborativo, ainda que seja útil trabalhar
sob um espectro bastante amplo no início da pesquisa, o encaminhamen-
to restritivo em relação ao campo de interesse, é fundamental para que o
grupo “encontre” o eixo – ou eixos –do espetáculo.
• Ameaças: uma ameaça é a afirmação de que você agirá de determinada
maneira sob determinadas condições. O seu objetivo é provocar a mudan-
ça de comportamento em alguém ou no grupo todo, algo que talvez não
ocorresse não fosse a existência desta ameaça. Além disso, uma ameaça só
é efetiva na medida em que ela for plausível. Em relação ao teatro, sabe-
mos que muitas dessas ameaças não passam de irrupção emocional pas-
sageira. Contudo, ela apresenta também outras dimensões. Por exemplo,
durante o processo de ensaio de Apocalipse 1,11, do Teatro da Vertigem, o
76

dramaturgo ameaçou não assinar o texto caso o final da peça tomasse


determinado rumo. Tal afirmação – que se mostrou, posteriormente, se
trara apenas de uma provocação – causou impacto no grupo e fez com que
intensificássemos a busca por um final que pudesse contemplar a todos.
• Construção de acordos: como todo acordo é alcançado coletiva e volunta-
riamente, a partir da negociação entre os jogadores, ele deve ser “protegi-
do” por regras que garantam o seu cumprimento. No que diz respeito ao
teatro, a elaboração de “regras de proteção dos acordos” pode soar dema-
siado coercitivo ou burocrático. Porém, pode-se estabelecer – e lembrar,
sempre que necessário – pactos artísticos comuns. A idéia em si de cons-
trução e de manutenção de acordos – ainda que eles possam ser transfor-
mados inteiramente num momento posterior – é bastante valiosa para o
bom encaminhamento do processo.
• Agir cooperativamente: cada jogador tem duas escolhas básicas, “coo-
perar” ou “não cooperar”. Quando todos os jogadores atuam cooperati-
vamente, cada um deles tem melhor resultado individual do que quando
todos atuam sem cooperação. De fato, cooperar com um parceiro que não
coopera de volta pode levar ao desastre. E basta apenas um dos integran-
tes não querer cooperar para que todo o grupo sofra perdas. Davis sugere
a importância em determinar – ou estar atento – sob quais condições os
jogadores cooperam. Ele aponta quatro fatores principais: o tamanho dos
“pagamentos” – no sentido daquilo que você “ganha” em cooperar –; o
modo como a outra pessoa joga; a habilidade para comunicar e a persona-
lidade dos jogadores – por exemplo, a capacidade de confiar e de inspirar
confiança. Entre os fatores desfavoráveis, estariam a desconfiança do(s)
outro(s) jogador(es), a ambição, a ignorância ou falta de consciência do
que significa cooperar e do como fazê-lo e, por último, a competitividade
– alguns jogadores, por exemplo, não concebem jogar sem ser competitiva-
mente. Ele alerta ainda que, a partir de vários experimentos realizados, foi
constatada uma tendência consistente e progressiva dentro dos jogos, em
agir de modo não-cooperativo. Cita por fim o biólogo William D. Hamilton
quando o mesmo alerta que “o problema é que enquanto um indivíduo
pode se beneficiar da mútua cooperação, cada um pode ganhar ainda mais
através da exploração dos esforços cooperativos dos outros”22. No caso do
encenador que trabalha em processos de criação compartilhada, perceber
os obstáculos ou os facilitadores da cooperação passa a ser uma de suas
funções relevantes. Cabe a ele estimular e criar mecanismos de colabora-
ção entre todos os integrantes do grupo.

22 davis, m. d., Game Theory: a nontechnical introduction, p. 149.


77

Segundo ainda a definição de Davis, os jogos cooperativos – e, em certa medida,


também os mistos – são aqueles nos quais os jogadores devem formar coalizões uns
com os outros e considerar quais incentivos ou atrativos eles devem oferecer ou acei-
tar. Cada coalizão tem um valor específico, que pode ser definido como a quantidade
mínima que aquela coalizão pode obter caso todos os seus membros estejam unidos
e joguem como um time.
Sabemos bem como, ao longo do processo de ensaio, tais coalizões vão sendo for-
madas e desfeitas, a depender dos gostos e interesses individuais, e do momento em
que se encontra o trabalho. Essas alianças “temporárias” entre parte dos atores e o
dramaturgo ou entre a direção e a dramaturgia, por exemplo, vão ser determinantes
no encaminhamento das opções artísticas e dos procedimentos metodológicos. É bas-
tante freqüente, também, o choque entre coalizões diferentes, fundamental ao exercí-
cio da cooperação e à busca de soluções alternativas. Porém, insisto, o fluxo constante
na formação e dissolução de alianças, de parcerias transitórias, em que hoje lutamos
pela manutenção de determinada cena e amanhã nos confrontamos sobre determina-
do corte no texto, é um dado bastante característico do processo colaborativo.
Idealmente, em jogos do tipo cooperativo, os jogadores têm a capacidade de se
expressar e de agir conjuntamente, da maneira que lhes aprouver. Contudo, na prá-
tica, isso não ocorre bem assim. Segundo Davis, por exemplo, “a espacialização física
dos jogadores afeta as negociações, e os jogadores que são agressivos e rápidos para o
embate se dão melhor do que outros que são mais reservados”23. No caso do processo
teatral, isto não tem necessariamente validade, já que uma sugestão apresentada em
cena, ainda que no fundo da sala ou como contraplano de uma imagem, pode exer-
cer impacto inquestionável sobre todo o grupo. Além disso, desde que garantida a
expressão de todas as idéias ou opiniões, a “agressividade” ou “rapidez” de um “joga-
dor” tem um ganho – se tiver – apenas temporário.
Em relação aos resultados, eles podem ser os mais diversificados possíveis, na
medida em que se trata de um tipo de jogo de alta complexidade. É de sua natureza
ser composto por um amplo espectro de encontros e por inúmeras variáveis – entre
elas, por exemplo, a capacidade dos jogadores em negociar. Aliás, o fluxo de negocia-
ções e barganhas é intenso aqui, e custam a se fixar em algum lugar.
Esse elemento da “negociação” é fator-chave no processo de construção do texto e
da cena. Por exemplo, um ator pode desejar que determinado momento da trajetória
de sua personagem esteja presente no roteiro enquanto o dramaturgo, ao contrário,
prefere o uso de elipse naquele trecho. Esses mútuos convencimentos ou “barganhas”
não ocorrem apenas por meio de discussões verbais, mas se dão no campo da própria
cena, através de uma improvisação mostrada em defesa de um argumento, ou do
texto que é reescrito para justificar determinada posição. Nesse sentido, apesar do

23 davis, m. d., Game Theory: a nontechnical introduction, p 192.


78

ator mais combativo, por exemplo, conseguir colocar suas reivindicações de forma
rápida e explícita, o ator mais reservado tem, por sua vez, o espaço da cena para se
manifestar – o que, via de regra, produz convencimento bem mais efetivo
Nos jogos cooperativos, também, a noção de “poder” é mais sutil e mais difícil de
avaliar. Neles, o conceito de poder é mais impalpável e esquivo, já que é imperativa a
cooperação com o outro, tenha-se ou não empatia por ele. Daí decorre que o “poder”
é sempre potencial, pois necessita da cooperação dos outros para se materializar.
Além disso, muitas vezes a “dominância” de um posicionamento ocorre pela capa-
cidade de implementar propostas mais adequadas – o que significa que todos vão
“ganhar” mais do que ganhariam se mantivessem a proposta anterior.
Sem esquecermos as ressalvas feitas à teoria dos jogos no possível diálogo com a
prática teatral, acreditamos que a discussão sobre o “poder” e a forma como ele se
materializa é das mais oportunas ao pensarmos o processo colaborativo. Nele, apesar
das funções estarem estabelecidas, não ocorre a subserviência pacífica dos integran-
tes do grupo a alguma deliberação artística individual. Tais resoluções são continua-
mente confrontadas e exigem uma dinâmica de convencimento. Ou seja, é como se
o “poder” estivesse sempre colocado em xeque, relativizado, e fosse contestável em
suas decisões. Nesse sentido é que ele pode ser visto como mais esquivo e permeável
do que em processos mais tradicionais.
Além disso, sem a cooperação de todos os membros da companhia, este “poder”
não tem força de instauração. Ele depende da anuência e da participação do outro
para se concretizar enquanto ato. Não adianta, por exemplo, o diretor querer impor
à força determinada marcação ou gesto. Caso o ator não aprove tal sugestão ou não
seja convencido pelos argumentos do diretor, não há como obrigá-lo. Via de regra,
a força de uma idéia ou proposição que impacte todo o grupo exerce muito mais
“poder” do que qualquer atitude autoritária.
Davis chama a atenção também para os mecanismos de conversão das vontades
individuais em decisões grupais, num contexto em que a opinião de cada pessoa é
igualmente importante. O procedimento mais simples – e bastante freqüente nos
grupos teatrais que criam coletivamente – é o da votação. Contudo, como estabelecer
mecanismos de votação que, de fato, traduzam as preferências gerais? Muitas vezes,
por exemplo, a votação por simples maioria pode incorrer em erros ou distorções.
Daí, em casos como estes, ser preferível uma estratégia de votação por maioria abso-
luta ou, melhor ainda, por turnos ou etapas – em que o que está em jogo é o descarte
das opções que causem maior rejeição dentro do coletivo.
Por fim, tomando como base nossas experiências teatrais, podemos acrescentar
que a recorrência das parcerias ou a continuidade de membros do grupo de um tra-
balho a outro, facilitam e acentuam o espírito de cooperação. A repetição dos encon-
tros, ainda que possa incorrer na armadilha da acomodação, contribui, sem dúvida,
para o amadurecimento da tomada de decisões em processos de co-criação.
79

3.7 Polifonia e Construção da Cena

A idéia de polifonia, tal como definida por Bakhtin, é bastante útil para se pensar
o processo colaborativo. Apesar de se tratar de uma reflexão sobre a obra de um úni-
co autor – no caso, Dostoievski – é possível expandir esse conceito para um modo de
criação onde estão envolvidos vários autores.
O pensamento artístico de tipo polifônico se caracteriza pela presença simultânea
de vozes autônomas, mutuamente contraditórias. Segundo Bakhtin, trata-se da “multi-
plicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis” formando uma “autêntica
polifonia de vozes plenivalentes”24. Este aspecto da imiscibilidade pode ser remetido ao
caráter autônomo – ou de relativa autonomia – das diferentes contribuições artísticas
dentro do processo colaborativo. Como já dissemos, não ocorre a soma ou fusão das dife-
rentes áreas. Elas são consonantes, mas sem se dissolverem ou se desintegrarem uma na
outra; são contíguas, porém, às vezes, contrárias e até mesmo contraditórias entre si.
Por outro lado, essa independência pressupõe diálogo e interconexão entre as
diferentes funções. O próprio pensador russo dirá mais à frente que “o principal na
polifonia [...] é justamente o fato de ela realizar-se entre diferentes consciências, ou
seja, de ser interação e a interdependência entre estas”25. Ou seja, trata-se de uma
autonomia relativa, que não tem a obrigação de amalgamar os diferentes campos
artísticos, mas depende do diálogo entre eles para se potencializar.
O processo colaborativo busca, na verdade, sínteses parciais, relativas a cada fun-
ção. Tanto é assim que podemos identificar um conceito de som, de luz, de interpre-
tação, etc., que se justapõem uns aos outros. É claro que nesse deslizamento de dis-
tintas concepções, ocorrem infiltrações, contaminações, penetrações entre dobras e
sulcos, já que não se trata aqui, de superfícies lisas, mas sim, precárias e acidentadas.
Porém, insistimos, sem que haja dissolução ou desfiguração de campo. Por sua vez,
essas sínteses parciais comporão uma síntese geral, não condicionada pelo imperati-
vo da unidade de estilo ou pela padronização homofônica.
O próprio Bakhtin vai falar em “interação de várias consciências imiscíveis”26, o
que pressupõe um elemento dialógico e conectivo na autonomia por ele assinala-
da. Tal dialogismo, contudo, não implica homogeneidade, nem afinidade entre os
diferentes elementos constitutivos da obra. A criação se dá, ao contrário, a partir de
“materiais heterogêneos, heterovalentes e profundamente estranhos”, resultando um
trabalho “poliestilístico ou sem estilo”, “polienfático e contraditório”27.

24 bakhtin, m. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária,


2002, p. 4.
25 Ibid., p. 37.
26 Ibid., p. 7 (grifo nosso).
27 Ibid., pp. 13-14.
80

Essa multiplicidade de fontes, de matérias e de vozes é central no processo colaborati-


vo, resultando também em complexa diversidade estilística. Ainda que o texto apresente
determinado tom – o que nem sempre ocorre – ele poderá ser atravessado por uma trilha
sonora de caráter contrário ou colocado em um espaço físico que lhe crie turbulências.
Tal dinâmica é diferente do caos ou da entropia, já que um longo processo de conectivi-
dades e diálogos foi embasando e gestando aquela independência de estilos.
No plano ideológico, ainda que haja princípios norteadores dentro do grupo – por
exemplo, determinada visão sobre o uso de verbas públicas ou sobre política cultural
– eles convivem com a presença de elementos dissonantes. Durante os ensaios é bastan-
te comum o choque ou a contraposição de visões de mundo díspares. Tais contradições,
contudo, não são extirpadas, mas sim, alimentadas. Ou seja, elas estarão explicitamente
presentes dentro da obra, revelando cisões inerentes ao grupo. Por outro lado, haverá o
movimento de busca por territórios intermediários, mínimos denominadores comuns,
enfim, soluções viáveis para que os diferentes pontos-de-vista sejam atendidos.
Uma diferença, talvez, em relação à criação coletiva pode ser aqui percebida.
Como vimos, houve vários grupos em que um forte posicionamento ideológico e polí-
tico levava à produção de obras que deveriam espelhar e garantir, inequivocamente,
tal discurso. Contudo, na perspectiva da polifonia, a “multiplicidade de centros-cons-
ciência” não pode ser reduzida “a um denominador ideológico”28. É curioso, porém,
que o próprio Santiago García, de La Candelaria, invoque o conceito de Bakhtin em
seus escritos teóricos. Segundo ele, “pelo fato de recorrer, desde o início, a vários tex-
tos, a diversas abordagens que vêm dos próprios integrantes ou de outros colabora-
dores no processo de criação do espetáculo, a criação coletiva, em geral, assume um
caráter intertextual e polifônico ou ‘carnavalesco’, tal como definido por Bakhtin...” 29.
Ainda que não esteja incorreta tal associação, ela não dá conta da integralidade do
conceito bakhtiniano.
Outro elemento caracterizador da construção polifônica é a variedade e simulta-
neidade de planos – textuais, filosóficos, sociais, culturais, etc. –, também denomi-
nada como “multiplanaridade”. Esta característica leva, antes de tudo, a um enfra-
quecimento do elemento dramático – quando não à sua destruição. Daí a afirmação
de Bakhtin de que “no romance polifônico de Dostoievski o diálogo autenticamente
dramático pode desempenhar apenas papel bastante secundário”30.
A dramaturgia – e a cena – produzida em processo colaborativo vai incorporar essa
presença de planos distintos, identificáveis, por exemplo, no amplo espectro de regis-
tros, no cruzamento de referências, no choque de discursos, na estrutura fragmentada
e no mosaico de textos e cenas. O elemento dramático coabita com o épico, o lírico, o
testemunho, o documental criando uma cena – e um texto – multifacetada.

28 bakhtin, m., Problemas da Poética de Dostoiévski, p. 16 (grifo nosso).


29 garcía, s., Teoria y Practica del Teatro, p. 80.
30 bakhtin, m., op. cit., p 16.
81

Outros traços fundamentais da polifonia são a coexistência e a interação. Tais ele-


mentos, na visão bakhtiniana, ocorrem no espaço e não no tempo, o que determina
– ao contrário do aspecto multiplanar – uma atração pela forma dramática. Para o
pensador russo isso provoca uma forma de interpretar o mundo que “procura captar
as etapas propriamente ditas em sua simultaneidade, confrontá-las e contrapô-las drama-
ticamente e não estendê-las numa série em formação”31.
É importante pontuar que o aspecto simultâneo no processo colaborativo não ocorre
apenas na obra acabada. Ele é parte determinante do sistema de feitura. Diferentemen-
te de trabalhos mais tradicionais – em que se toma um texto já escrito, ensaia-se o mes-
mo com os atores e, na seqüência, os outros criadores aportam as suas contribuições
– aqui, todas as áreas artísticas são desenvolvidas simultaneamente. Não há o imperativo
de anterioridades e posterioridades. Portanto, as inter-relações entre os conteúdos e as
formas se dão contiguamente durante o próprio fazer – e não apenas na recepção. Daí
que, além de uma cena polifônica temos um processo que, também ele, é polifônico.
Além disso, essa contigüidade e coexistência contribuem, durante os ensaios, para
o enfraquecimento ou relativização das hierarquias. As diferentes funções estão colo-
cadas lado a lado, têm autonomia para propor rumos, idéias ou recuos. Não pedem
permissão para se colocar nem interferir.
Ainda que Bakhtin esteja se referindo ao autor Dostoiévski, é surpreendente como
ele parece descrever, ao tratar da conjugação de múltiplas vontades e pontos-de-vista,
a dinâmica de trabalho do processo colaborativo – todo ele pluralista e contraditório.
Um exemplo disto aparece na afirmação de que

[...] a essência da polifonia consiste justamente no fato de que as vozes, aqui, per-
manecem independentes e, como tais, combinam-se numa unidade de ordem supe-
rior à da homofonia. [...] é precisamente na polifonia que ocorre a combinação de
várias vontades individuais, realiza-se a saída de princípio para além dos limites de
uma vontade. Poder-se-ia dizer assim: a vontade artística da polifonia é a vontade de
combinação de muitas vontades, a vontade do acontecimento.32

A vontade do encenador é apenas uma entre várias, e no acontecimento-cena que o


grupo quer instaurar, o seu papel não parece ser o de criação à fórceps de uma “unidade
de ordem”. Ao contrário, sua contribuição é a de garantir o espaço de emissão das distin-
tas vozes, de estimular as suas altissonâncias sem, contudo, refutar a gagueira, o desafi-
namento e a mudez, permitindo que uma possível “unidade” ocorra como fruto-adubado
dessas interações – a partir delas e ao fim delas. A ele, cabe o ofício de ouvir todas aquelas
vozes simultaneamente, de não se ensurdecer no barulho ou, então, de fazer do ruído,

31 bakhtin, m., Problemas da Poética de Dostoiévski, p. 28.


32 Ibid., p 21 (grifo nosso).
82

partitura. Ele não dá voz a ninguém – atitude paternalista indesejada – porque todos já
têm voz, são donos dela. E a sua própria voz, a voz do encenador, não é a de solista nem
de prima-dona, e nem também se encontra dissolvida num coral indistinto. Ela é um
canto singular, contraponto e contracanto e, às vezes, só afonia e silêncio.
Mas e a unidade, tão cara à atividade da direção? Bem, talvez possamos respon-
der como Bakhtin quando ele afirma que “a unidade do romance polifônico, que
transcende a palavra, a voz e a ênfase, permanece oculta”33. No caso do processo ou
da cena polifônica, a sua unidade é produzida pela diversidade, ou, como sugere o
teórico russo, encontra-se encoberta.

3.8 Conceito de Processo Colaborativo

O termo processo colaborativo tem origem incerta. A palavra “colaborativo”, por vol-
ta de meados da década de 90, ganhou maior emprego e ampliou as suas conotações
no meio artístico e cultural. Como já apontamos, o diretor inglês Max Sttaford-Clark
refere-se ao trabalho da sua companhia Out-of-Joint como sendo collaborative work
(“trabalho colaborativo”). Em livros de dramaturgia e direção publicados naquela
década, lançava-se mão deste vocábulo para a referência a qualquer processo de cria-
ção envolvendo o elemento coletivo ou compartilhado. Anne Bogart, nos workshops
com a SITI Company – da qual é diretora artística – e durante os ensaios de American
Silents34, também utilizava freqüentemente a palavra collaboration (“colaboração”).
Baseados em lembranças pessoais, recordamos que durante os ensaios de O Livro
de Jó, do Teatro da Vertigem, o termo “colaborativo” foi usado aqui e ali, de maneira
informal, sempre como forma de caracterizar uma dinâmica de criação compartilha-
da e grupal. Porém não temos claro o momento no qual o grupo começa a empregar
conscientemente a expressão processo colaborativo. Talvez com o desejo de caracterizar
o que fazíamos, aliado ao desgaste do termo criação coletiva, fomos denominando nos-
so trabalho por meio daquela expressão.
Além disso, esse espetáculo marcou também a parceria artística com Luís Alberto
de Abreu, dramaturgo que veio de significativa experiência coletiva no Grupo Mam-
bembe. Ao nos reencontrarmos alguns anos depois, como professores da Escola Livre

33 bakhtin, m., Problemas da Poética de Dostoiévski, p. 45.


34 Durante o período de 1996-1997, por meio da bolsa Fellowship of the Americas, concedida
pelo Kennedy Center for the Performing Arts, tive a oportunidade de acompanhar o
processo de ensaio de vários diretores americanos. Entre eles, Anne Bogart, com a qual,
além de workhops e aulas na Columbia University, realizei estágio de observação da
montagem de American Silents.
83

de Teatro de Santo André – onde coordenamos vários cursos juntos, reunindo alunos
de dramaturgia e direção – Abreu também adotava a expressão processo colaborativo.
Fora dali, em outras companhias e coletivos, ouvíamos o mesmo conceito ou simila-
res: dramaturgia colaborativa; processo compartilhado; dramaturgia em processo; teatro
coletivo; criação grupal, etc. Todos eles querendo traduzir um tipo de fenômeno que não
ocorria apenas no campo do teatro. Se pensarmos nos coletivos de artes plásticas (Bijari; A
Revolução Não Será Televisionada; etc.), de cinema, de música, entre outros, todos apon-
tavam para projetos de compartilhamento de autorias. Mesmo fora do universo das artes,
experiências como a da Wikipedia ou do jornalismo colaborativo são exemplos disso.
Portanto, menos importante do que determinar a autoria ou a origem exata da
expressão processo colaborativo é flagrar a tendência de época, o contexto histórico
particular, a inquietação relativa ao modo de fazer teatro, que colocava em sintonia
diversos artistas e companhias, dentro e fora do país.
No caso do Teatro da Vertigem, adotamos e continuamos a usar essa expressão
pelo significado e força que a reunião destes dois vocábulos suscita: o elemento “pro-
cessual” aliado ao “trabalho em conjunto”. Essa ênfase colocada na idéia de processo,
em que o “colaborativo” funciona como uma qualidade ou característica intrínseca,
é bastante relevante. Além, é claro, do parentesco com outra noção valiosa, a de work
in process, que, segundo Renato Cohen “conceitualmente [...] carrega a noção de tra-
balho e de processo”35. Nesse sentido, parece-nos fundamental o exame em separado
dos dois vocábulos-conceitos que compõem a expressão processo colaborativo.

3.8.1 Idéia de Processo

Afastando-se das idéias de “genialidade”, “inspiração” e “obra-prima”, a arte con-


temporânea instaura um novo paradigma de produção e recepção, caracterizado pelo
elemento da precariedade, do transitório, do inacabado e do processual. Valoriza-se
a luta com a materialidade, o percurso de formação da obra, o trabalho do artista,
como antídoto às mistificações de toda ordem relativas à criação. Ou seja, ocorre o
deslocamento da ênfase dada apenas à obra concluída, passando-se a valorizar tam-
bém o seu processo de construção. Mesmo a idéia de “ponto final” é posta em xeque.
As obras – como seus processos – estão marcadas por um movimento contínuo, tran-
sitório, sempre aberto a novos desdobramentos.
O teatro, pelo caráter de reversibilidade de sua escritura, já que não se encontra

35 cohen, r. ‘Work in Progress’ na Cena Contemporânea: criação, encenação e recepção. São Paulo:
Perspectiva, 1998, p. 20.
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gravado na fixidez de um suporte imutável – o que ocorre com a fotografia, a literatu-


ra ou o cinema, por exemplo, – configura-se como lugar privilegiado da mutabilidade.
A idéia de “estréia” vem sendo cada vez mais relativizada pelas noções de “ensaio
aberto” ou de “abertura pública do processo”. É cada vez mais comum a perspectiva
de um trabalho sempre em desenvolvimento, que vai produzindo novas versões de si
mesmo durante o período de apresentações. Aliás, é justamente o fim da temporada
que, hoje, marcaria o fim da obra – e de seu processo. E essa finalização, na maior
parte das vezes, não é caracterizada pelo gesto deliberado, volitivo e heróico da “últi-
ma pincelada”, mas é fruto do abandono, da desistência, do cansaço ou incapacidade
em continuar transformando aquele material vivo. O que existe é apenas a “última
versão”, não mais a “versão final”.
Ainda que o público e parte da crítica avaliem com reserva e preconceito essa
categoria do provisório, enxergando ali preguiça, descuido ou até mesmo má-fé por
parte dos artistas, o que está em jogo é um novo paradigma do fazer teatral. A “obra-
em-aberto”, o “espetáculo inacabado”, o work in progress – ao contrário do que se ima-
gina – requer investimento de tempo e trabalho muitas vezes superior ao da “peça
pronta”. Isso porque não existe repouso nem acomodação. O imperativo da constru-
ção-reconstrução permanente é o oposto da lassidão, do afrouxamento, do “colher os
louros”. Planta-se e ceifa-se, aduba-se e poda-se todo o tempo, num fluxo de criação
ininterrupta. O que demanda um novo olhar e um instrumental crítico diferenciado
por parte da recepção.
Ao pensarmos o percurso da criação – ou trazê-lo para o primeiro plano – dire-
cionamos nosso olhar para os meios materiais e para o modo de produção do fazer
teatral. Essa abordagem cria também uma tensão entre processo e produto, que aca-
ba sendo iluminadora para ambos. Aliás – e é preciso insistir nisso – a ênfase na dis-
cussão sobre os procedimentos de trabalho e sobre a trajetória de construção da obra
não elimina ou abole a instância da recepção.
No universo do teatro, por mais que os ensaios tenham a duração de anos e
que ocorram encerrados em recônditas salas, sem nenhuma instância de abertura
pública, esta última certamente é desejada pelos artistas e ocorrerá em momento
oportuno. Mesmo os chamados “grupos de treinamento” treinam para, em alguma
instância ou em algum trabalho futuro, materializarem o contato com os especta-
dores. Como afirma o prof. Jacó Guinsburg, não existe teatro sem recepção, e ela
ou é um pólo subentendido e potencial durante o período de feitura, ou é trazida
concretamente para compartilhar do processo de criação – e da obra daí resultante.
Portanto, discutir a trajetória de construção não se restringe a uma instância umbi-
lical e auto-centrada, isolada do mundo, mas, ao contrário, pressupõe, planeja e
estimula o lugar e a ação do espectador. Ou seja, o ato criativo não se completa sem
a sua comunicação.
Amparados pela discussão estabelecida pela crítica genética, podemos pensar o
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período de ensaio como um “texto móvel”36, escrito e apagado a várias mãos, por
todos os artistas envolvidos e pelo próprio público – quando este é convidado a inter-
ferir nos rumos da criação. Período sísmico, turbulento e instável que produz uma
“escritura” de igual natureza. Nesse sentido, talvez seja fecundo pensar o processo de
trabalho como um “texto”, como uma “obra” também, com elementos estruturais,
operadores e dispositivos, e até mesmo com precipitações estéticas. É claro que sem-
pre perpassado pelo provisório e pelo transformativo.
Um processo tem natureza tateante, composta pelo movimento contínuo de se
fazer, desfazer e refazer. Ele é regido pelo princípio da incerteza. No desenrolar de
sua trajetória, os poucos marcos de orientação sinalizam, às vezes, apenas aquilo que
não se quer. O descarte, o “não”, a recusa tem força de germinação. A forma vai sur-
gindo de uma dinâmica de exclusões. Por esse ângulo, o processo não é democrático,
ele não acolhe tudo, ele expele e regurgita, põe para fora, elimina.
Por outro lado, na medida em que permite que os elementos, as propostas, as
idéias venham à tona e sejam discutidas e/ou experimentadas, ele assume um caráter
profundamente democratizante. É esse lugar paradoxal o habitat do processo colabo-
rativo. Ele admite e estimula que o ator traga uma cena-depoimento baseada em suas
memórias mais preciosas, para, em seguida, descartá-la, redirecioná-la para outro
ator ou ainda, transformá-la inteiramente.
Cecília Almeida Salles, pesquisadora das diferentes linguagens artísticas dentro
do campo da crítica de processos, vai pensar o ato criativo a partir da noção de “ten-
dência”, ou seja, como movimento dialético entre rumo e incerteza. Essa perspecti-
va abre espaço para o acolhimento do acaso, tornando-o um operador importante
na construção da obra. Segundo ela, “aceitar a intervenção do imprevisto na conti-
nuidade do processo com tendência, implica compreender que o artista poderia ter
feito aquela obra de modo diferente daquele que fez. Admite-se que outras obras
teriam sido possíveis”37. Em outras palavras, a obra acabada é, ao fim e ao cabo,
apenas uma possibilidade de precipitação dentre inúmeras outras, experimentadas
durante o processo. Ela é a possibilidade que se fixou.
Salles acrescenta ainda outro aspecto importante, o da “falha” – ou, se quiser-
mos ampliá-lo, poderíamos nomeá-lo como “fracasso”. Para ela, “o movimento cria-
tivo mostra-se, também, como um percurso falível. As rasuras dão a conhecer as
diversas nuances de erros e das diferentes maneiras de enfrentamento dessa possi-

36 Philippe Willemart afirma, entre algumas definições possíveis de “texto móvel”, que
“carregado de sentidos ‘desconhecidos’ do escritor, o ‘texto móvel’ insiste até estar
completamente esvaziado e tornando-se um espaço oco sem mais poder sobre o escri-
tor, a ponto de liberá-lo e deixando-o entregar o texto ao editor” (In: ZULAR, R. (org.),
Criação em Processo: ensaios de crítica genética, p. 78).
37 zular, r. (org.), Criação em Processo: ensaios de crítica genética, p. 186.
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bilidade de erro”38. Talvez a angústia do processo criativo resida justamente nesse


ininterrupto embate com o fracasso. O “fracassar de novo, o fracassar melhor”, na
visão beckettiana.
Daí a dificuldade de se concluir a obra, de se considerar que ela esteja pronta. O
fim do processo representa, apenas, “um ponto final suportável” na medida em que
“o artista se vê diante da impossibilidade de determinar o último absoluto”39.
No pólo oposto a este, encontra-se a tentativa de determinação do ponto de parti-
da. Buscar a origem da obra, o exato momento do primeiro impulso, não passa de ilu-
são. Isto porque uma obra engendra a seguinte, dentro desta já existem os elementos
embrionários, os esporos daquela. O percurso criativo está marcado por elos, cone-
xões, continuidades insuspeitas mesmo em momentos de ruptura. Segundo Salles, “a
abordagem do movimento criador, como uma complexa rede de inferências, reforça
nossa contraposição à visão da criação como uma inexplicável revelação sem história,
ou seja, uma descoberta sem passado e futuro”40.
O processo – no constante diálogo entre o sensível e o intelectual – rearticula, pro-
move combinatórias e associações de elementos, o que o faz estar sempre numa zona-
limite, de intensidades e hesitações, de pulsões e recalcamentos. Ele tem a tarefa de
tornar visível o nebuloso, de dar forma ao vago e ao abstrato.
Salles vai discorrer também sobre a tensão entre limite e liberdade, em que, por
um lado, o artista tem possibilidades infinitas para a sua criação e, por outro, ele
deverá enfrentar e constranger a sua obra às leis intra e extra-processuais. Pois, “criar
livremente não significa poder fazer qualquer coisa, a qualquer momento, em quais-
quer circunstâncias e de qualquer maneira, mas fazer seleções e tomar decisões.
Limites internos ou externos à obra [...] oferecem resistência à liberdade do artista
e revelam-se como propulsores da criação”41. Além do que, muitos desses limites
podem ter sido criados pelo próprio artista, como mecanismo interno de embate ou
como instrumento de auto-estimulação.
Por fim, caberia ainda falar sobre a questão do inacabamento relativo ao proces-
so. Há sempre uma diferença insuperável entre aquilo que o artista deseja realizar e
aquilo que ele de fato consegue. Daí, o processo – e o objeto dele resultante – estarem
fadados à incompletude. Porém, ao contrário da resignação, esta permanente insa-
tisfação é ativa e propulsora. É justamente por essa busca incansável da melhor obra
possível que o processo nunca finaliza. Ou seja, “o objeto ‘acabado’ pertence a um
processo inacabado”42.
Essa luta infinda entre acabamento e inacabamento, essa sensação de uma obra

38 zular, r. (org.), Criação em Processo: ensaios de crítica genética, p. 186.


39 Ibid., p. 187.
40 Ibid., p. 188.
41 Ibid., p. 195.
42 Ibid., p. 199.
87

que sempre fracassa em se concluir, de um processo esticado até o último dia de


apresentação, de um estar sempre “em obras”, remetem ao tipo de espetáculo-em-
processo que vivenciamos no Teatro da Vertigem.

3.8.2 Idéia de Colaboração

O segundo vocábulo da expressão processo colaborativo materializa a dimensão cole-


tiva do fazer, o construir junto, o criar compartilhado. Este aspecto múltiplo e asso-
ciativo caracteriza toda a estruturação do processo, que é marcado pela pluralidade e
precisa se organizar de forma a atender sua natureza multivocal. Determina também
uma conformação estética contaminada, contraditória, com a memória de várias
mãos impressa no corpo da obra.
Porém, antes de tudo, talvez coubesse a pergunta sobre o que motiva essa força
de agregação, o que caracteriza esse “estar junto”. Partindo de uma perspectiva mais
abstrata, poderíamos recorrer às reflexões filosóficas de Jean-Luc Nancy sobre o sen-
tido de comunidade, do viver em comum. Segundo ele, por exemplo, ”não há a comu-
nhão, não há o ser comum, há o ser em comum. [...] A existência só é para ser partilha-
da. Mas esta partilha [...] não distribui uma substância nem um sentido comum. Ela
só partilha a exposição do ser, a declinação de si, o tremor sem rosto da identidade
exposta: ela nos partilha”43.
Essa instância da exposição pessoal, da divisão não de coisas ou de objetos, mas
da partilha de nós mesmos, uns com os outros, parece ficar ainda mais acentua-
da dentro de um grupo de teatro. O labor comum se alimenta do tutano dessas
diferentes identidades, das memórias e dos desejos pessoais os mais recônditos,
de segredos que são “revelados” – ou encobertos pela metamorfose cênica – em
improvisações e workshops.
A questão do comum vai reaparecer no conceito de multidão de Antonio Negri, que
procura distanciá-la da idéia de “uniforme” ou de “idêntico”. Ela também não teria
nada a ver com o “igualitário”. Segundo ele, multidão não pode ser vista como sinôni-
mo de “massa”, informe e descaracterizada, mas como uma “multiplicidade de sin-
gularidades”, que buscam “construir de maneira cooperativa formas e instrumentos
comunitários”44. Ora, não é justamente essa tensão entre singularidades criativas que
funda a dinâmica do processo colaborativo?
Ele afirma ainda que tais “singularidades mantêm certamente sua força própria,

43 nancy, j-l. La Communauté Désoeuvrée. Mesnil-sur-l’Estrée: Christian Bourgois Éditeur,


2004, pp. 208-209.
44 negri, a. Cinco Lições sobre o Império. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2003, pp. 45-46.
88

mas a mantêm dentro de uma dinâmica relacional, que permite construir, ao mesmo
tempo, a si mesmas e ao todo”45. Parece-nos surpreendente como essa conceituação
poderia ser utilizada, quase sem nenhuma adaptação para definir o modo de criação
compartilhado que estamos tratando aqui.
Porém, como se organiza esse comum? Para o sociólogo italiano, o problema “não
é juntar indivíduos isolados, mas construir de maneira cooperativa formas e instru-
mentos comunitários e conduzir ao reconhecimento (ontológico) do comum”46. Essa
afirmação do “singular”, do “subjetivo” – e não do “individual” – dentro do “múlti-
plo”, proporciona-nos uma chave bastante útil para pensar o processo colaborativo.
Isto porque nele, quanto mais radicalizada estiver cada singularidade artística, mais
potente e eficiente ocorrerá o processo de criação.
Tal percepção fica reforçada quando, mais à frente, Negri acrescenta que o trabalho da
multidão é um produto das relações entre singularidades, e especialmente, em sua defi-
nição de multidão: “comunidade de diferenças [...] onde as singularidades são concebidas
como produção de diferença. O comum (na multidão) nunca é o idêntico, não é ‘comuni-
dade’”47. Ou seja, uma noção já bem distante daquela enunciada por Piscator, ao propor
uma “comunidade homogênea”. Pois a homogeneidade ali revelava um projeto de aparar
ou pacificar as diferenças, em nome da consolidação de uma ideologia e de um projeto
artístico único. Aqui, ao contrário, quer-se acirrar as diferenças, colocá-las em choque, em
litígio, fazendo com que as singularidades produzam cada vez mais diferença, mais hete-
rogeneidade. A singularidade, por sua vez, “é feita do conjunto e faz o conjunto”48.
Baseados nessa abordagem poderíamos definir o processo colaborativo como um
conjunto multifuncional de subjetividades que constroem simultaneamente, a si
mesmas e ao todo, produzindo uma obra de natureza heterogênea, não-hierarquiza-
da e multidisciplinar.
Daí pensarmos que a criação coletiva poderia ser vista como a associação de artis-
tas polivalentes, sem função definida, em contraposição ao processo colaborativo,
de caráter multifuncional. Pois, para este último, é fundamental a manutenção das
funções artísticas e o diálogo objetivado entre elas.
O sociólogo italiano vai ainda mais longe, concluindo que “o trabalho, hoje, para
ser criativo, deve ser ‘comum’, ou seja, produzido por redes de cooperação”49. Essa
idéia de rede, de processos determinados por redes relacionais, vem também sendo
utilizada por vários outros pensadores, como eixo paradigmático para refletir sobre
a cultura e a arte contemporânea.
Cecília Almeida Salles, em sua obra mais recente, estuda os processos de criação

45 negri, a. Cinco Lições sobre o Império. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2003, pp. 142.
46 Ibid., pp. 45-46.
47 Ibid., p.148.
48 Ibid., p. 159.
49 Ibid., p. 153.
89

justamente a partir dessa visão reticular. O seu interesse central é “pensar a criação
como rede de conexões, cuja densidade está estreitamente ligada à multiplicidade
das relações que a mantém. No caso do processo de construção de uma obra, pode-
mos falar que, ao longo desse percurso, a rede ganha complexidade à medida que
novas relações vão sendo estabelecidas”50
Baseada nas análises de André Parente – que vê na noção de rede a instauração
de um “pensamento das relações” em contraposição a um “pensamento de essências”
– Salles vai apresentar as características fundamentais dos processos contemporâne-
os de criação: “simultaneidade de ações, ausência de hierarquia, não linearidade e
intenso estabelecimento de nexos”51.
Aliás, a defesa da eliminação de hierarquias – e também da simultaneidade de
ações – como característica da cena atual, aparece na definição de Hans-Thies Leh-
mann do teatro pós-dramático. Segundo ele,

[...] um princípio geral do teatro pós-dramático é a des-hierarquização dos recur-


sos teatrais. Essa estrutura não-hierárquica contraria nitidamente a tradição,
que para evitar a confusão e produzir a harmonia e a compreensibilidade privi-
legiava um modo de concatenação por hipotaxe, normatizando a sobreposição
e a subordinação dos elementos. Com a parataxe do teatro pós-dramático os
elementos não mais se concatenam de modo inequívoco.52

Evidentemente, a ênfase colocada por Lehmann nessa des-hierarquização repousa


sobre a obra em si e na sua recepção por parte do espectador. Contudo, é oportuno
conectar essa supressão de hierarquias ao percurso de feitura da obra. É aí onde a dinâ-
mica do processo colaborativo tem uma de suas âncoras centrais. Podemos, de fato, pen-
sá-lo como um processo relacional, reticulado, construído a partir de múltiplas e móveis
interações. Na dimensão intra-grupal, esta rede de conexões ocorre entre todos os cria-
dores envolvidos. Porém, ela se dá também em dimensão extra-grupal, dos artistas com
o seu entorno, seja por meio da pesquisa de campo ou de ações pedagógico-artísticas na
comunidade, seja pela interferência dos espectadores na construção da obra.
Nesse sentido, o conceito de Salles de “criação como rede em processo” cabe intei-
ramente aqui. Pois se trata de um modo do fazer teatral alicerçado no contato, nas
contaminações, nos pactos, nas mútuas afetações, no estímulo às interferências como
forma de desenvolver a criação. Segundo a autora, as interações são “responsáveis pela
geração de novas idéias ou possibilidades de obras”53.

50 salles, c. A. Redes da Criação: construção da obra de arte. Vinhedo: Editora Horizonte, 2006,
p. 17.
51 Ibid., p.17
52 lehmann, h.-t. Teatro Pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 143.
53 salles, c. a., op. cit., p. 34.
90

Ela invoca ainda Edgar Morin, nos seus estudos sobre complexidade, o qual defi-
ne as interações como “ações recíprocas que modificam o comportamento ou a
natureza dos elementos envolvidos; supõem condições de encontro, agitação, tur-
bulência e tornam-se, em certas condições, inter-relações, associações, combina-
ções, comunicações, etc., ou seja, dão origem a fenômenos de organização” 54. Um
pouco mais à frente, Morin conclui que “a realidade, no entanto, é feita de laços e
interações, e nosso conhecimento é incapaz de perceber o complexus – aquilo que é
tecido em conjunto”55.
Aliás, refletir sobre o processo colaborativo à luz das teorias da complexidade
não deixa de ser estimulante. Pois, é da natureza desse modo de criação se constituir
como processo complexo e multicomposto, repleto de ambivalências e plurivalên-
cias. Por exemplo, ao pensarmos em fenômenos e formas de organização, o processo
colaborativo se assemelha ao dos sistemas dinâmicos, “situados em algum ponto
entre a ordem na qual nada muda como pode ser o caso das estruturas cristalinas, e
o estado de total desordem ou caos como é o caso da dispersão da fumaça”56.
Essa forma de organização, que não tem a rigidez do teatro tradicional nem a
falta de norte de experiências totalmente à deriva, nos auxilia a entrever um tipo de
organização mais móvel, permeável, aberta ao imprevisto, baseada numa estrutura
com fundações mais maleáveis. Um processo que é capaz de instaurar o caos e se
nutrir dele, mas sem, com isso, tornar-se seu refém.
Nesse sentido, a questão das funções volta a desempenhar papel importante.
Recordamo-nos da palestra do físico teórico Nelson Fiedler-Ferrara aos alunos do
curso de Direção Teatral da ECA-USP, no 2º semestre de 2004, em que ele defendia
a complexidade como um fenômeno distinto de entropia. Segundo ele, dada a difi-
culdade crescente em se conhecer a fundo qualquer assunto – por suas inúmeras
camadas, desdobramentos, vasta bibliografia disponível, grande quantidade de pes-
quisadores, centros de referência no mundo todo, etc. – a saída não se encontraria
mais na multi-especialização – idéia, vale lembrar, defendida pela criação coletiva.
Ao contrário, o exercício da complexidade consistiria em trocar, dialogar, compar-
tilhar o conhecimento aprofundado de sua área com a de outros especialistas em
áreas distintas. Tais imbricamentos e retro-polinizações seriam capazes de produzir
novos conhecimentos e criações, evitando o risco da superficialidade.

54 salles, c. a., Redes da Criação: construção da obra de arte, p. 24.


55 Ibid., p. 24.
56 morin, e.; ciurana, e-r.; motta, r. D. Educar na Era Planetária: o pensamento complexo como
método de aprendizagem pelo erro e incerteza humana. São Paulo: Cortez Ed., 2003, p. 46.
91

4 Estudo de Caso: o processo de encenação de O Livro


de Jó, Apocalipse 1,11 e BR-3

“O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, des-


montável, reversível, suscetível de receber modificações constan-
temente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a monta-
gens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um
grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede,
concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação políti-
ca ou como uma meditação.”
(Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil Platôs)

Após a discussão de caráter teórico realizada nos capítulos anteriores, julgamos im-
portante realizar um diálogo com casos concretos da prática teatral, no sentido de veri-
ficar procedimentos e dinâmicas relativas à pesquisa por nós empreendida. Escolhemos,
então, analisar três processos realizados pelo Teatro da Vertigem, que resultaram nos
espetáculos O Livro de Jó, Apocalipse 1,11- que compõem a Trilogia Bíblica – e BR-3.
Diferentemente de nossa dissertação de mestrado, na qual realizamos minuciosa
descrição de todo o percurso dos ensaios e analisamos os vários aspectos e etapas da
construção de O Paraíso Perdido, pretendemos agora enfatizar o âmbito da direção.
Apresentaremos, é claro, numa espécie de sobrevôo, os mapas de percurso, a fim de
que se possa ter um panorama da trajetória de feitura dos espetáculos. Porém, o alvo
de nossa reflexão será os diferentes aspectos da criação do encenador, no âmbito do
processo colaborativo.
Justamente pela natureza coletiva dos trabalhos aqui descritos, os problemas de
encenação vinculam-se orgânica e necessariamente às outras áreas de criação. Por-
tanto, se abordamos questões dramatúrgicas ou interpretativas, por exemplo, é por-
que elas dizem respeito, de uma forma ou de outra, a questões de direção, seja na
condução do processo, seja no desenvolvimento da escritura cênica da montagem.
Tomando como base os cadernos de direção e anotações pessoais, além do ape-
lo à memória nas inevitáveis lacunas de registro, procuraremos, quando necessário,
recorrer a depoimentos de outros criadores que fizeram parte dos trabalhos aqui
tratados. Recorreremos ainda a textos escritos por participantes dos processos, que
aparecem na forma de programas das peças, livros sobre a companhia e trabalhos de
pesquisa de cunho acadêmico e não-acadêmico. Além disso, em razão de nossa parti-
cipação concreta nesses processos de criação, realizaremos esta reflexão alternando
a redação do texto entre a primeira e a terceira pessoa do singular e, pelo aspecto
coletivo dos processos, também na primeira pessoa do plural.
92

Pelo fato de já ter sido examinado exaustivamente em nossa dissertação, conside-


ramos não ser mais necessário discutir o percurso de realização de O Paraíso Perdido.
Ele será retomado apenas a título de exemplificação ou contraponto, quando ne-
cessário. Iniciaremos, portanto, nossa investigação, a partir do segundo trabalho da
companhia, isto é, O Livro de Jó.

4.1 O Processo da Encenação em O Livro de Jó


O percurso de construção do segundo espetáculo da Trilogia Bíblica do Teatro da
Vertigem vai sedimentar alguns dos princípios e procedimentos presentes no traba-
lho anterior, ao mesmo tempo em que, decididamente, recusará outros. Ninguém
saiu ileso do Paraíso e foram necessários vários meses para o entendimento e absor-
ção daquela experiência. A sua longa temporada, com cerca de nove meses de apre-
sentações ininterruptas, permitiu-nos reavaliar nossa dinâmica de trabalho antes que
tivéssemos que projetar os próximos passos da companhia.
Porém, antes de tratarmos das novas configurações que o processo de O Livro de Jó
vai assumir, gostaríamos de apresentar, grosso modo, a sua estrutura geral e as dife-
rentes etapas de seu percurso:

• Período de trabalho do dramaturgo com o diretor: etapa em que foram


discutidas e definidas as questões centrais relativas à adaptação do texto
bíblico e à criação dramatúrgica (agosto a dezembro de 1993);
• Estudos teóricos e análise do livro bíblico Jó: leituras e discussões realizadas
pela direção e atores, sem a participação do dramaturgo (outubro a dezem-
bro de 1993);
• Início dos ensaios práticos: etapa de livre-exploração dos temas e persona-
gens, realizada durante um mês, sem a presença do dramaturgo. Esse mês

 Este processo de criação contou com a participação de Luís Alberto de Abreu, na drama-
turgia e dos atores Daniella Nefussi, Matheus Nachtergaele, Miriam Rinaldi, Sergio Sivie-
ro, Siomara Schröder e Vanderlei Bernardino. A assistência de direção foi feita por Marcos
Lobo, que havia trabalhado como ator em O Paraíso Perdido. A ficha técnica completa, com
a descrição de todos os criadores e colaboradores, tanto deste processo como dos dois
outros que serão analisados a seguir, pode ser consultada nos anexos desta tese.
 Luís Alberto de Abreu desejava, desde o início, que o seu trabalho em O Livro de Jó não
fosse uma “adaptação”, mas sim uma “recriação” do texto bíblico. Por outro lado, a
direção não pretendia uma recriação transfigurada da matriz original, como em Ha-
mlet-máquina ou Medeamaterial, de Heiner Müller. O resultado final parece ter ocupado
um lugar intermediário entre esses dois pólos.
93

inicial era sempre referido, durante o processo, como “o período da Hebrai-


ca”, pois os ensaios ocorreram no Clube A Hebraica (janeiro de 1994);
• Apresentação para o grupo da primeira versão do texto, seguido de sua
análise e discussão com a dramaturgia (fevereiro de 1994);
• Período de análise ativa: etapa de experimentação prática da peça, culmi-
nando na definição dos papéis (março-abril de 1994);
• Levantamento cênico do texto e produção de novas versões da dramatur-
gia (abril a outubro de 1994);
• Trabalho de aprofundamento das interpretações e de esboço das marca-
ções (julho a outubro de 1994);
• Entrada no Hospital Umberto Primo: ensaios de exploração do espaço e
definição da trajetória do espetáculo (novembro de 1994);
• Finalização do trabalho de encenação: aprimoramento do desenho gestual
e das marcações; refinamento da espacialização das cenas e ensaios de uti-
lização dos objetos hospitalares (dezembro de 1994 a janeiro de 1995);
• Abertura para o público, por meio da realização de dois ensaios gerais e
uma pré-estréia (6 a 8 de fevereiro de 1995);
• Estréia do espetáculo (9 de fevereiro de 1995);
• Novo período de ensaio para a realização de modificações (fevereiro a abril
de 1995);
• Temporada de um ano e sete meses, com apresentações de quinta a do-
mingo e sessões duplas aos finais de semana (até 08 de setembro de 1996).

A primeira instância a ser analisada remete às dificuldades da dramaturgia em pro-


cesso. Por ter se tratado da primeira experiência do grupo com criação colaborativa, a
construção dramatúrgica em O Paraíso Perdido ocupou quase todo o tempo do processo,
roubando muito do espaço de trabalho que deveria ser dedicado aos atores e à cena.
Até a beira da estréia todos tinham atuado, quase que unicamente, como atores-drama-
turgos ou diretor-dramaturgo, sem tempo de dedicação para as funções específicas.
É claro que, no processo colaborativo, a dramaturgização é compartilhada por to-
dos, não sendo função exclusiva do dramaturgo. O problema, porém, reside no fato de
que o processo de ensaio não é sinônimo apenas de criação dramatúrgica e nem pode
privilegiar demasiadamente este aspecto em detrimento dos demais. O processo tam-
bém é “colaborativo” na criação das personagens, da cena, dos figurinos, da luz etc.
Em razão disso, decidimos que o texto/roteiro do próximo projeto seria esboça-
do no período anterior à entrada em sala de ensaio, e que só iniciaríamos os traba-
lhos práticos quando tivéssemos a primeira versão da peça. Aí sim esse texto seria

 Nos meses seguintes ao trabalho na Hebraica, e anteriores à entrada no Hospital Um-


berto Primo, os ensaios foram realizados na sala dos Alcoólatras Anônimos, na Igreja
Santa Ifigênia.
94

explorado, transformado, modificado, e as sugestões dos atores e da direção a ele


incorporadas.
A idéia, portanto, não era abdicar da dramaturgia em processo, mas sim propor o
seu encaminhamento de outra forma. O Livro de Jó representou uma resposta a esse
desejo. O processo de escritura da peça compreendeu um primeiro momento em
que apenas o diretor e o dramaturgo trabalharam juntos, produzindo mais de uma
versão do texto; e um segundo momento em que novas versões foram sendo criadas
a partir da colaboração concreta dos atores.
Uma crítica que poderia ser feita a esta segunda etapa, diz respeito à pouca presen-
ça do dramaturgo em sala de ensaio. Por uma série de limitações externas ao processo
– como, por exemplo, o horário de trabalho do grupo ou o local de moradia do escritor
– não foi possível contar com a sua participação in loco o quanto gostaríamos.
Para minimizar o problema e garantir a natureza colaborativa do processo, foi
necessária a criação de uma nova atribuição para o diretor. Ele deveria recolher se-
manalmente todas as observações e críticas dos atores e levá-las pessoalmente ao
dramaturgo para a sua apreciação. Juntos, os dois discutiriam também o que havia
ocorrido nos ensaios, mapeando tanto as novidades e descobertas, quanto as necessi-
dades, dúvidas e problemas. O diretor, portanto, assumiu um papel de porta-voz dos
atores na relação com a dramaturgia. Essa dinâmica de mediação alterava, mas não
enfraquecia o caráter coletivo da proposta.
Abreu, porém, em uma entrevista, parece não reconhecer as interferências dos
atores como parte do processo de construção do texto de O Livro de Jó. Segundo ele,
“tinha informações de como chegavam as cenas escritas ao elenco, mas isso sempre
através do diretor. Nesse sentido não houve sugestões dramatúrgicas por parte do
elenco. Havia, sim, muita conversa e discussões com o diretor, sobre personagens, ce-
nas, trechos do texto bíblico a relevar ou desconsiderar”. O que talvez o dramaturgo
tenha esquecido é que todas as discussões a que ele se refere foram alimentadas por
uma lista semanal de problemas ou sugestões trazidas à baila pelos atores. É lógico
que a elas se juntavam as minhas próprias considerações enquanto diretor – o que
pode ter acentuado essa impressão de um trabalho textual circunscrito ao diálogo
dramaturgo-encenador –, porém é inegável a contribuição dos intérpretes no percur-
so de desenvolvimento da peça.
Evidentemente que, ao longo do extenso período de ensaios – com duração de
cerca de um ano e dois meses – houve momentos em que recebíamos a visita do
dramaturgo. Em tais ocasiões, realizávamos “corridos” de todo o material trabalhado

 In: andrade, w. w. O Livro de Jó, de Luís Alberto de Abreu: mito e invenção dramática. 2000.
199 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, p. 164 (grifo nosso). É sintomático que,
um pouco mais à frente nessa mesma entrevista, Abreu reconheça que O Livro de Jó “foi
um texto que construí de forma autônoma, embora participativa” (p. 166).
95

até então, e refletíamos conjuntamente sobre eventuais modificações. Esses poucos


encontros representaram também a oportunidade do contato direto dos atores com
o escritor, sem a mediação da direção.
A presença esporádica do dramaturgo nos ensaios, apesar de ter motivado críticas
por parte dos atores, não foi, necessariamente, danosa ao processo. Como observa
Ana Rebouças, “trabalhando de forma mais distanciada dos ensaios e optando por
dar um acabamento formal à sua obra, o autor [Luís Alberto de Abreu] pôde resol-
ver problemas estruturais que muitas vezes surgem em uma dramaturgia pensada
exclusivamente para a cena, feita exclusivamente em função da cena, como é o caso
de Apocalipse 1,11, e era a prática das criações coletivas. Ganha-se, por um lado, em
frescor e espontaneidade; perde-se, por outro, em relação ao aprofundamento do
universo temático e à formalização e acabamento do texto”.
Outra solicitação concernente à dramaturgia, requisitada exclusivamente pelos
intérpretes, dizia respeito ao desejo de trabalhar com uma narrativa encadeada, li-
near, com progressão e causalidade, ao invés de um texto construído por meio da
multiplicidade fragmentada de cenas. Essa reivindicação estava associada claramente
à vontade dos atores de interpretarem personagens com trajetória definida, ao invés
de figuras de caráter mais coral e alegórico, presentes na peça anterior.
Segundo ainda a avaliação do grupo, o processo deveria equilibrar melhor o com-
ponente corporal e vocal. O Paraíso Perdido tinha explorado quase que exclusivamente
o movimento e a expressividade gestual. Porém, havia agora a necessidade de mer-
gulho no universo da palavra, da fala e do diálogo. Os atores reconheciam o seu
descompasso técnico entre voz e corpo, e julgavam importante o aprimoramento do
trabalho da emissão e da expressão vocal. Nesse sentido, o caráter altamente literário
do livro bíblico Jó, associado à proposta do dramaturgo em escrever a peça em versos,
pareciam desafios que vinham ao encontro dessas necessidades. Aliás, uma das metas
da direção de atores foi justamente evitar o tom declamatório, muito freqüente em
textos com registro poético. O diretor abriu espaço considerável, no planejamento
dos ensaios, ao exercício e à investigação do trabalho com o verso.
Outra ressalva feita pelo grupo referiu-se ao aprofundamento da discussão religio-
sa. Pareceu-nos que O Paraíso Perdido havia conseguido apenas colocar tal assunto em
pauta, porém, sem desenvolvê-lo a contento. O resultado disso foi um espetáculo de
caráter mais impressionista, sensorial, abstrato, que traduzia o que o grupo pensava
naquele momento, não obstante, insuficiente para os anseios de questionamento
do tema do sagrado na contemporaneidade. Se a peça anterior fora marcada pelo
movimento físico e expressivo, precisaríamos, agora, trazer o verbo para o centro
da arena. Necessitávamos incluir o texto e a fala em nossa matéria cênica, a fim de

� silva,
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a. m. r. r. Poética Cênica na Dramaturgia Brasileira Contemporânea. 2001. 155 f. Dissertação
��������
(Mestrado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, p. 117.
96

conseguir abordar outros aspectos da discussão sobre fé e ateísmo, religiosidade e


fanatismo, sofrimento humano e a questão do mal, ou ainda, neste caso, sobre o
silêncio de Deus.
Quanto ao estudo da ciência, permanecia no grupo o interesse de continuar in-
vestigando possíveis aproximações daquele universo com o campo da arte. Porém,
na peça anterior, existiram duas vertentes paralelas – a Física e a temática religiosa
– que, às vezes, cruzavam-se ou se retroalimentavam, e outra parte das vezes, não. Na-
quele processo, partíramos da Mecânica Clássica, sem que ela necessariamente nos
levasse à discussão sobre o sagrado.
O grupo, então, colocou-se a seguinte pergunta: e se aqui fizéssemos o caminho
contrário, partindo do tema, e deixando que ele, por uma necessidade que lhe fosse
intrínseca, levasse-nos ao campo da ciência?
Dessa forma, após algum tempo de trabalho, e percebendo como a doença de Jó
se constituía no elemento fundamental para a concepção do espetáculo, chegou-se à
idéia de recorrer à Medicina como o pólo científico ideal para aquele diálogo inter-
disciplinar. Começamos a estudar manuais de sintomatologia clínica e, ainda que de
maneira menos extensa do que aquela realizada na Física Clássica, retraçamos uma
trajetória similar de pesquisa.
Após a leitura da descrição médica de um conceito – por exemplo, “calafrio” –,
os atores o investigavam “cientificamente”, procurando explorar com o corpo e a
voz aquele sintoma. Depois, eram realizadas improvisações nele baseadas, na busca
de uma possível plasmação expressiva – no caso, como se movimentar em cena ou
como falar um trecho do texto, estimulado pela sensação de “calafrio”. Por fim, asso-
ciávamos os sintomas às personagens e, então, a exploração dos conceitos médicos se
dava dentro do contexto da peça.
Dentre alguns dos sintomas que foram pesquisados, poderíamos citar: febre; tre-
mor; cãibra; vômito; dor de cabeça; dificuldade de respirar, sufocamento ou falta de
ar; respiração ofegante; tontura; dor de ouvido; paralisia de um membro; tosse; zum-
bido no ouvido; dores nas articulações; enrijecimento das articulações; convulsões;
cólica; dor abdominal; espirro; coceira; dificuldade para engolir; cansaço; azia ou
gosto amargo na boca; soluços; formigamento; enjôo ou náusea; dor de dente; pon-
tadas; sensação de areia nos olhos e fotofobia. Foi bastante estimulante e inspirador,
do ponto de vista expressivo, perceber a interferência que tais sintomas causavam no
gestual das personagens e na elocução do texto versificado de Abreu.
Ainda que muito desse trabalho não tenha aparecido explicitamente na composi-
ção dos caracteres, ele serviu como base de treinamento para o estado interpretativo
almejado. Na falta de uma melhor palavra, o grupo o definiu como visceralidade. Con-
ceito este já bastante gasto – além de servir como indicador de interpretações “an-
gustiadas” ou marcadas por um “exorcismo expressivo” –, para nós, ele definia uma
atuação mais física, de relação concreta com o corpo, sugerindo o mínimo possível
97

de representação. Buscávamos um estado de “descarnamento”, como se a pele hou-


vesse sido arrancada ou a carne rompida por uma fratura exposta.
Nesse sentido, o “treino de sintomas” criado pelo grupo, que era marcado pela
fisicidade e vocalização dos sinais de doença, colocava os atores em contato direto e
profundo com sua carne e órgãos. Febre, convulsões, vômito e falta de ar são alguns
exemplos de manifestações que traduzem a agonia do corpo e a iminência da morte.
No nosso caso, a sua fabricação – ainda que em pequeno grau – no corpo e voz dos
atores, estimulava-lhes a instauração do estado-limite almejado para o espetáculo.
Até mesmo o aquecimento – que alternava butô, método Suzuki e treinamento
psicofísico de origem barbiana (numa releitura estabelecida pela atriz Eli Daruj) – es-
tava conectado à busca de visceralidade que pretendíamos. Aliás, essa abordagem de
um treinamento direcionado às necessidades da criação será levada para os próximos
espetáculos da companhia.
No caderno de direção, aparecem algumas outras enunciações para os objetivos
pretendidos em relação à interpretação, definidos em comum acordo com os atores:
“estado de convalescença”; “trabalhar no limite ou com situações-limite insuportá-
veis”; “sensação contínua de estar sob tortura ou sob pressão”; “lidar com o princípio
da energia e não com o da força”; “buscar um profundo estado de concentração física
e psicológica” e “transições abruptas da apatia à extrema violência, e vice-versa”.
Outro elemento trabalhado com os intérpretes, decorrente do conceito de hibri-
dismo de gêneros proposto pela dramaturgia, foi o treinamento dos registros épico e
dramático. Como o texto alternava e imbricava todo o tempo esses dois registros, era
importante o domínio de cada um deles em separado e, principalmente, a passagem
– às vezes, numa mesma frase – de um a outro. Foram realizados, por exemplo, vários
exercícios de narração em primeira e terceira pessoa, ou de um relato que se transfor-
mava em vivência dramática, e vice-versa. O maior desafio para os atores constituia-se
justamente na alternância rápida entre esses dois registros, na medida em que a peça
esgarçava os limites entre narração, diálogo dramático e rubrica.
Diferentemente do processo anterior, houve a proposição de uma dinâmica em

 Rubens Brito denominará como “máscara tripla” ou “terceira máscara” esse procedi­mento
dramatúrgico desenvolvido por Abreu em O Livro de Jó, em que coexistem elementos
épicos e dramáticos. Segundo ele, citando o próprio dramaturgo numa entrevista, tal
máscara pretendia “essa coisa de juntar o personagem dramático com o narrador que
narra a si próprio e sofre a ação da narração” (p.42). Para Brito, a máscara tripla “resul-
ta do duplo investimento de máscaras sobre o personagem que é. Ambas as aplicações
têm o tom épico por se tratar de ações narrativas. Mas a resultante é dramática, pois
não existe o distanciamento proposto por Brecht e sim uma aproximação do ator com
o personagem e deste com a platéia. Em outras palavras, pode-se dizer que Abreu apli-
ca recursos épicos para obter a identificação da platéia com os personagens que sua
cena apresenta, objetivando, com isso, gerar a emoção” (p.148). In brito, s. j. r. Dos Peões
ao Rei: O Teatro Épico-Dramático de Luís Alberto de Abreu. 1999. 226 f. Tese (Doutorado em
Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.
98

que os atores experimentaram todas as personagens. Durante várias semanas, sem


qualquer restrição quanto à idade, tipo físico ou sexo, os intérpretes realizaram im-
provisações e workshops de cada uma das personagens do texto bíblico. Tal procedi-
mento, além de auxiliar a direção na definição dos papéis, estimulou o estudo con-
junto das personagens. Ao final desse período, o grupo constituiu uma visão mais
complexa e madura daquelas figuras. Mesmo após a distribuição dos papéis, cada
ator pôde contar com a contribuição trazida pelos seus companheiros – cada qual
revelando, acentuando ou propondo um ângulo diferente em relação às personagens
– o que proporcionou um ponto de partida multifacetado para o início do trabalho de
construção interpretativa.
Esse processo marcou também a incursão do grupo nos procedimentos da pesqui-
sa de campo. Ela se constituiu como instrumento auxiliar na elaboração das persona-
gens, em um momento mais avançado dos ensaios. Foram feitas visitas, – em geral
individuais –, a alas de doentes terminais, necrotérios, aulas de anatomia, Instituto
Médico-Legal (IML), entre outros. Diferentemente da regra utilizada nos espetáculos
posteriores, tais visitas não tinham a obrigação de se transformar em material cênico
a ser apresentado, podendo se restringir apenas à experiência vivencial dos atores.
Em suma, nesse processo pudemos tratar de forma mais integral o trabalho do
ator, levando-o a um ponto que não fora possível em O Paraíso Perdido. Não somente
o corpo e a voz – e o decorrente aprimoramento na expressão do texto –, mas tam-
bém o estado de presença, o jogo entre os intérpretes e a construção do desenho e da
trajetória das personagens, foram conquistas de uma abordagem mais totalizante da
atuação. Se, por um lado, houve um inequívoco amadurecimento dos atores no ma-
nejo de seu próprio instrumental, por outro, a direção conseguiu reservar e garantir
um tempo de ensaio satisfatório para a elaboração do trabalho interpretativo.
Uma das principais razões desta conquista foi o fato de a primeira versão do texto
ter sido trazida logo no início dos ensaios. Por mais que a dramaturgia tenha sofrido
várias modificações ao longo do processo e que os atores tenham contribuído significa-
tivamente para as sucessivas reescrituras da peça, partiu-se, desde o início, de um mate-
rial bem estruturado. O grupo obteve uma base textual mais sólida para alicerçar o tra-
balho das improvisações e a construção das personagens. Somado a isso havia a própria
narrativa bíblica que, por si só, já apresentava uma história com começo, meio e fim.
Tal contexto pôde liberar, ainda que em parte, a direção e os atores para o desen-
volvimento específico de suas áreas. Continuávamos operando enquanto atores-dra-
maturgos ou encenador-dramaturgo, porém, não exclusiva ou preponderantemente
como fora o caso de O Paraíso Perdido. Contudo, não há como negar que o processo de
construção do texto foi mais fechado que aquele do espetáculo anterior. O grau de in-

 Na verdade, não exatamente a primeira versão, pois o texto foi reescrito cerca de três
vezes antes de ser apresentado aos atores. Até esse momento, o diálogo relativo à escri-
tura da peça ocorreu apenas entre a dramaturgia e a direção.
99

terferência do grupo, seja pelo suporte da matriz mítica, seja pela estrutura e registro
textual fornecidos pela dramaturgia logo de início, foi, proporcionalmente, menor.
No âmbito da encenação, a escolha de um hospital para a apresentação do espetácu-
lo era uma idéia norteadora. Diferentemente da peça anterior, em que o espaço da igre-
ja surgiu como possibilidade cênica somente após vários meses de ensaio, em Jó essa
escolha ocorreu poucos dias depois da definição do projeto. Tanto é que, na primeira
discussão com o grupo sobre a idéia da futura montagem, ambos os elementos – o tex-
to bíblico sapiencial e o espaço hospitalar – foram apresentados concomitantemente.
Em nossa concepção, a utilização de objetos hospitalares reais – macas, carros de ex-
purgo, suporte para soro, etc. –, imantados com a história pregressa de sua utilização, se
associava ao cheiro forte de formol que impregnava o ambiente, acentuando – pela via
contrária, do cuidado e da assepsia – a relação com a enfermidade e os seus sintomas.
Além disso, durante a apresentação do espetáculo, existia o fator da proximidade.
Os atores, ao longo das cenas, encontravam-se sempre muito perto da platéia, às vezes
estabelecendo contato físico direto com ela – por exemplo, em eventuais toques ou
esbarrões. O corpo do ator se tornava algo concreto, literalmente palpável, o que inten-
sificava o caráter da presença, do aqui e do agora. Por outro lado, essa exígua distância
ator-espectador acentuava uma sensação incômoda, desconfortável, e até mesmo de
risco. Por exemplo, o público muitas vezes se sujava do “sangue” da personagem Jó.
Essa relação direta e sem mediações, tanto com os atores quanto com o lugar e
os objetos de cena, provocou, por exemplo, uma longa negociação entre diretor e
iluminador (Guilherme Bonfanti) para que este último não se utilizasse do recurso
de fumaça no espetáculo. Por mais que tal recurso, além de “esculpir” a luz, ajudasse
na criação de uma atmosfera mais concentrada, ele acabaria por esconder, maquiar e
poetizar a crueza hospitalar.
Contudo, equivocadamente, não conseguimos abrir mão do elemento-fumaça no
final da peça, pois os refletores teatrais ficariam escancaradamente expostos. Tal ex-
posição viria contra o conceito de luz desenhado até então, que deixava à mostra
apenas as fontes luminosas hospitalares – olhos cirúrgicos, negatoscópios, focos au-
xiliares, luminárias de fototerapia, etc. As outras fontes de luz, compostas por al-
guns poucos refletores teatrais, encontravam-se escondidas no lado externo do pré-
dio, atrás de janelas revestidas, e só eram utilizadas em momentos muito específicos
– por exemplo, em monólogos de Jó com Deus.
Por outro lado, a fumaça no final do espetáculo sugeria – inadvertidamente – uma
resolução milagrosa para o percurso de sofrimento de Jó. Ou seja, o contrário do que
pretendíamos. Ao invés da tomada de consciência pelo próprio protagonista e da
compreensão individual do significado de sua trajetória – que se dava sem a aparição
ex machina da divindade, indicada pelo texto bíblico original – o efeito cênico da fu-
maça abria brecha para uma solução redentora e exógena.
Somente três anos depois, na temporada do espetáculo na Dinamarca, descobri-
100

mos a possibilidade de utilização de refletores HMI, de altíssima luminosidade, que,


ao serem acionados, provocavam o ofuscamento imediato do olhar. A partir deste
momento pudemos, finalmente, abolir o que restava da presença de fumaça na peça,
e eliminar um efeito teatral desnecessário, equivocado e de gosto duvidoso.
O hospital, como lugar-purgatório, como espaço privilegiado do páthos e do sofri-
mento, da contaminação e da iminência da morte, traduzia a leitura de um Jó com
AIDS proposto pela encenação. Ele materializava, também, o desejo de configurar
uma “poética da dor”. Além disso, ao colocar o público ali dentro, exposto à concretu-
de arquitetônica e dos objetos, e à memória e ao imaginário hospitalar, a encenação
pretendia intensificar o fator-experiência. Ao invés da observação passiva, segura e
distanciada, os espectadores deveriam se confrontar com eles mesmos enquanto pos-
síveis “Jós”, e correr o risco de se contaminarem eles também.
Buscávamos a realização de uma cena imersiva, caracterizada pela impregnação
e convocação dos sentidos, e baseada na participação mais do que na observação, na
atuação mais do que na representação. Havia o desejo de produzir uma experiência
integral para cada um dos espectadores ali presentes, reunindo e ativando elementos
físicos, sensoriais, emocionais e racionais.
No caso específico do Hospital Umberto Primo, desativado em 1993, o espetáculo
se constituía, também, como uma denúncia in loco do caos do sistema governamental
de saúde. Fechado há quase um ano por falta de recursos e equipamentos, o grande
complexo hospitalar abandonado espelhava, nitidamente, a ineficiência na gestão
da saúde e o descaso com o bem público. Era freqüente nos jornais daquela época, a
veiculação de imagens de alas hospitalares apinhadas de doentes ou de cirurgias de
emergência realizadas em corredores. Conseqüentemente, tal contexto amplificava
a sensação de desconforto e revolta na platéia, quando a mesma caminhava por três
andares de um enorme hospital, repleto de quartos, enfermarias e instrumental mé-
dico, inteiramente deixado ao abandono.
O grupo, inclusive, estabeleceu acordo com a associação dos funcionários do Um-
berto Primo – os quais se encontravam há meses sem receber salário – de repassar
uma porcentagem da bilheteria (20%) para o fundo de caixa da entidade.
Outra modificação importante levada a cabo em O Livro de Jó foi o tempo destinado à
exploração do espaço. Na igreja tivemos pouco mais de quinze dias para realizar toda a
adaptação da peça no local, duração esta insuficiente e prejudicial ao espetáculo. Houve
um aprendizado, pelo erro, de que um lugar não-convencional – também denominado
site specific – demanda um período maior de apropriação. Além disso, pela primeira vez,
foi estruturado um caminho metodológico de abordagem e de investigação do espaço.
Entre outros procedimentos, a direção idealizou formas de se aproximar do lugar,
de “entrar” em seus interiores, de perceber a sua “respiração”, a fim de descobrir o
teatral dentro do arquitetônico, de trabalhar a sua atmosfera e memória como recur-
sos para a interpretação dos atores, e ainda, de experimentar diferentes trajetórias
101

espaciais para o espetáculo que dialogassem com a estrutura da dramaturgia. Para


tanto, o grupo destinou dois meses de ensaio, antes da estréia, apenas ao processo de
ocupação e apropriação cênica do hospital.
Poder-se-ia esperar que um processo tão longo, com um ano e dois meses de en-
saios, – sem considerar o tempo anterior de preparação e de estudos teóricos –, deve-
ria estar mais que concluído às vésperas da chegada do público. Porém, outra vez, as-
sim não sucedeu, e o importante livro bíblico sapiencial flagrava a nossa ignorância.
A resposta da platéia fez o grupo perceber que o espetáculo apresentava várias falhas
e leituras indesejadas. Isso provocou, conseqüentemente, a necessidade de uma série
de modificações. A mais grave disse respeito ao final da peça, que teve de ser reescri-
to e reencenado à luz do feedback recebido.
Apesar do cansaço e do desgaste nas relações intra-grupais, tornou-se obrigatória
a continuação dos ensaios após a estréia. Aliás, por paradoxal que pareça, um dos
maiores problemas deste processo foi justamente o longo período de ensaios. De
qualquer forma, o público que assistiu a O Livro de Jó a partir da segunda semana pre-
senciou um final inteiramente diferente daquele da semana anterior.
Outra razão para o dilatamento da fase de construção da peça, além da ininter-
rupta dinâmica de feedback e da natureza colaborativa e dialógica do processo – que,
como vimos, consome enorme tempo de trabalho –, disse respeito à procura do local
para as apresentações. Se a dificuldade para encontrar a igreja levou o grupo a uma
grave crise interna, no caso do hospital, a situação não foi diferente. Tivemos que
enfrentar vários meses de procura vã e de negociações emperradas, sem qualquer
perspectiva concreta de solução. Tal contexto de incerteza gerou ansiedade e preo-
cupação na companhia, provocou o prolongamento dos ensaios além do desejável, e
intensificou o desgaste e a deterioração do processo de criação.
Ainda quanto à encenação, poderíamos levantar uma última análise. Havia nela
o desejo muito forte de criação de unidade e de coesão estética, desejo este ao qual
os espetáculos posteriores responderão de forma mais relativizada. Por outro lado,
diferentemente de O Paraíso Perdido, houve a busca de maior equilíbrio entre o texto
dramatúrgico e o texto espetacular. Ou seja, tentou-se conectar e conjugar a instância
verbal – coesa e bem estruturada – com a instância imagética e arquitetônica – mar-
cada por forte plasticidade e significação. Em função disso, O Livro de Jó configurou-se
como experiência bem sucedida do diálogo e da relativa equivalência de forças entre
o discurso dramatúrgico, interpretativo e espetacular.
Fruto – e causa – disso, o processo colaborativo se desenvolveu de forma mais
amadurecida e consciente que no espetáculo anterior, embora sua plena consolida-
ção ocorra apenas na montagem seguinte do grupo.
102

4.2 O Processo da Encenação em Apocalipse 1,11

Antes de iniciarmos a abordagem do processo, seria importante discorrer sobre a


origem do projeto e do conceito da encenação de Apocalipse 1,11. Por mais que o Apo-
calipse de São João estivesse presente no horizonte de possibilidades de futuros espetá-
culos do Teatro da Vertigem – em que, entre outros, figuravam O Cântico dos Cânticos e
o Eclesiastes, apenas para nos atermos ao universo bíblico – ele não ocupava nenhum
lugar de destaque ou de preponderância. Ao contrário, a proximidade do fim de mi-
lênio provocava um sentimento de rejeição pela sua escolha, pois nada nos parecia
pior do que espetáculos comemorativos ou de efeméride.
Contudo, uma notícia de jornal reverteu tal recusa. Após vários meses fora do Bra-
sil, morando em Nova Iorque como bolsista do Kennedy Center for the Performing
Arts, deparei-me com um jornal brasileiro que estampava, na capa, a notícia da “quei-
ma” de um índio pataxó por cinco jovens de classe média-alta, em Brasília. Tal fato
provocou-me um sentimento de desolação e revolta tamanhas, dada a crueldade e o
absurdo da situação, que decidi que iria propor o tema do apocalipse para o grupo.
Associando-se a isso, a longa ausência do país me estimulava o desejo crescente de
refletir sobre ele. Na verdade, considero esse aspecto uma das mais relevantes “con-
seqüências” ou “aquisições” da minha estadia de um ano e dois meses nos Estados
Unidos. Talvez a perspectiva – configurada pela primeira vez – de olhar o país de lon-
ge, distanciadamente, ou talvez a visão deturpada e estereotipada que a maioria dos
americanos revelava do Brasil, ou talvez ainda, as constantes discussões com brasilei-
ros emigrados – legais e ilegais – que descartavam o desejo de retorno à terra natal,
enfim, tudo isso foi gerando uma sensação interna de desconforto e perplexidade. Tal
sentimento – distante de patriotismos, banzos ou ufanismos de toda ordem – impul-
sionava-me a um confronto com questões nacionais e me insuflava uma vontade de
repensar o país.
Nesse sentido, só interessava o aspecto catastrofista do texto bíblico apocalíp-
tico na medida em que ele pudesse traduzir a violenta realidade brasileira. Uma
mistura do “fim do mundo” da virada de milênio com o “fim de mundo” da boca
do lixo paulistana. Em outras palavras, o Apocalipse de São João atravessado pelo
apocalipse da (Avenida) São João, de forma que as figuras alegóricas bíblicas fossem

 Este processo de criação contou com a participação de Fernando Bonassi, na dramatur-


gia, e dos atores Joelson Medeiros, Luciana Schwinden, Luís Miranda, Mariana Lima,
Miriam Rinaldi, Roberto Áudio, Sergio Siviero e Vanderlei Bernardino. A assistência de
direção foi feita por Marcos Bulhões. O processo marcou também a entrada de Eliana
Monteiro no grupo, que assumirá a direção de cena.
 Seu nome era Galdino Jesus dos Santos, conhecido como “o índio Galdino”. Ele foi quei-
mado vivo enquanto dormia, no dia 20 de abril de 1997, após ter participado – numa
trágica ironia – das comemorações do Dia do Índio, na capital federal.
103

atualizadas para as personagens excluídas e desterritorializadas do nosso desigual


e discrepante tecido urbano.
Portanto, não imaginava a encenação com tons medievalistas ou futuristas, mas
com uma linguagem que pudesse revelar o Brasil contemporâneo. A própria sugestão
de trabalhar com Fernando Bonassi, escritor de verve agressiva, cuja obra se vincula
ao universo marginal e suburbano de São Paulo, ia ao encontro desse desejo. Havia,
inclusive, nessa opção, o vislumbre de que a conformação estética do espetáculo
devesse combinar registros díspares, como o “alto” e o “baixo”, o “elevado” e o “chu-
lo”, e em que a escatologia apocalíptica se traduzisse numa linguagem, também ela,
escatológica.
Além disso, a encenação desejava associar a matriz bíblica a algum recente “apoca-
lipse” ocorrido na história da cidade. Daí, a escolha do massacre dos 111 presos pela
Polícia Militar de São Paulo, ocorrido em 02 de outubro de 1992, e a idéia de realizar
o espetáculo nas dependências do Complexo Penitenciário do Carandiru. Na verda-
de, o projeto original pretendia encenar a peça dentro do próprio pavilhão 9 – local
onde se deu a chacina – integrando presos, atores e espectadores numa experiên­cia
teatral hardcore. Vale ressaltar que, como em Jó e ao contrário de Paraíso, a idéia do es-
paço surgiu antes do início dos ensaios, logo após a definição temática. Infelizmente,
devido a inúmeras questões de segurança, foram vetadas as apresentações naquelas
dependências e, como compensação, foi oferecido o desativado Presídio do Hipódro-
mo10, na Mooca, para a realização da montagem.
Apesar da profunda frustração que se abateu sobre o grupo – decorrente dessa
negativa – ainda vislumbrávamos, naquele momento, contar com a participação dos
presidiários do Carandiru na temporada da peça. Brincávamos, internamente, que
“se Maomé não ia à montanha, então que o Carandiru iria ao Hipódromo”. Além disso,
acreditávamos lograr a materialização cênica do massacre dos 111 presos – ou o seu
equivalente mais próximo – naquele presídio da Mooca.
Quanto aos desdobramentos do conceito de encenação, eles foram se tornando
conscientes apenas durante o processo de ensaio. Além dos aspectos acima levanta-
dos, foram aparecendo outros, de natureza correlata. O espetáculo, por exemplo, pa-
recia invocar um tom hiperbólico, exagerado, excessivo e paroxístico. Nesse sentido,
a direção incentivava os atores ao limite do descontrole e do gritado. Essa histeria,
passível de ser lida apenas como bad acting ou histrionismo barato, na verdade fazia
parte de uma estética do vômito, do trash, do precário e do malfeito, que traduzia
nossas intenções cênicas. A própria concepção visual do espetáculo deveria, também,

10 O Presídio do Hipódromo, ex-cadeia pública do Estado, foi desativado em 1995, du-


rante o governo Mário Covas, em função de uma rebelião ocorrida ali dentro, no ano
anterior. O local também apresenta um histórico marcante como prisão política, tanto
no período do Estado Novo, para os adversários da ditadura Vargas, quanto no período
da ditadura militar.
104

enfatizar este elemento de precariedade e de pobreza, sem qualquer apelo a efeitos


tecnológicos ou a acabamentos técnicos de primeira qualidade.
Havia ainda o desejo de que a peça pudesse “chacoalhar” o espectador e retirá-lo
de sua catatonia. Tal como a personagem João, a platéia não deveria antever nem se
aterrorizar com o futuro, mas sim, ser capaz de olhar de novo, e sem letargia, o pre-
sente. Daí o caráter agressivo, indignado e pontiagudo da linguagem da encenação,
em que se buscava romper com a anestesia do olhar por meio de um choque sinesté-
sico de alta voltagem.
Esse componente de violência se consolidava pelo contraste ou contraposição de
elementos díspares – colocados lado a lado e sem transição, na mesma cena – bem
como pela concretização, sem mediações, da brutalidade e selvageria. Neste último
caso, chegava-se a lançar mão, inclusive, de inserções do “real”, como na controverti-
da cena de sexo explícito.
Talvez coubesse um parêntese exemplificador, retirado da própria peça. A única
ocasião do espetáculo em que a platéia era convidada a interagir explicitamente com
os atores era durante a cena de Talidomida do Brasil (uma deficiente física e mental),
no Ato do Juízo Final, quando lhe eram entregues ovos crus. Via de regra, imitando
a ação da personagem Anjo Poderoso, quase todos os espectadores jogavam os seus
ovos sobre a atriz Luciana Schwinden, intérprete de Talidomida.
Exatamente nesse instante, em função do ato de linchamento, operava-se uma in-
versão no jogo de violência proposto pela peça. De espectadores passivos das imagens
de agressão e selvageria, o público se tornava, ele mesmo, agente delas, promovendo
e corroborando a brutalidade mostrada em cena. Conseqüentemente, por flagrar em
si mesma esse traço de violência, a platéia tornava-se cúmplice e consciente de sua
própria ação desumana e, de certa forma, era também julgada naquele tribunal.
O desejo último do projeto da encenação nunca foi o “choque pelo choque”, mas
a desestabilização dos sentidos e a recuperação da perspectiva crítica por parte da
platéia, capazes de provocar algum tipo de re-sensibilização ou de ativação de possi-
bilidades transformadoras. O final do espetáculo colocava nas mãos do próprio ho-
mem-cidadão – e não de uma divindade – a capacidade de mudança do estado de coi-
sas. Daí a saída de todos – atores e público – de dentro do presídio para a rua, onde os
aplausos, no meio da calçada, ressoavam como uma “retomada” simbólica da cidade
pelos artistas e espectadores. Era como se ganhássemos novamente o espaço urbano,
como se recuperássemos a dimensão pública e a configuração coletiva da ágora. O
tom pessimista da peça se revertia, então, numa ação positiva de reencontro com a
pólis e com o sentido de cidadania.
Contudo, iniciemos a discussão sobre o processo de Apocalipse 1,11. O seu plane-
jamento partiu, antes de qualquer coisa, da identificação do que de melhor ocorreu
nos dois trabalhos anteriores, ao mesmo tempo em que procurou evitar alguns dos
problemas previamente encontrados. Em certa medida, ele funcionou como filtro
105

dos procedimentos de ensaio de O Paraíso Perdido e O Livro de Jó. Talvez, por isso, a
unânime percepção grupal de que ele tenha sido o mais equilibrado de todos os pro-
cessos vividos até então.
De início, houve a divisão dos ensaios em duas grandes fases. A primeira dedica-
da exclusivamente à escritura do texto, e a segunda, ao levantamento das cenas, ao
trabalho de interpretação e à construção do espetáculo. Estabelecemos também um
pacto coletivo que, caso a dramaturgia resultante daquela primeira etapa não fosse
satisfatória, não nos obrigaríamos a passar à etapa seguinte e nem produziríamos
um espetáculo nela baseado.
De determinada maneira, retomávamos o espírito existente em O Paraíso Perdido,
cujo elemento mais importante era a pesquisa a ser realizada. Porém, desta vez, não
negávamos a possibilidade da montagem de uma peça, caso o processo a ela nos en-
caminhasse. Era claro e consciente que ambicionávamos uma formalização cênica
ao fim do período de ensaios, mas não desejávamos ser pressionados por ela, nem
por ela constrangidos. Portanto, ao contrário do primeiro processo do grupo, em que
o “desejo de espetáculo” era um tabu, aqui ele se encontrava explicitado e assumido
desde o início. Por outro lado, porém, não gostaríamos de repetir a coação da estréia
de O Paraíso Perdido, que tanta turbulência trouxe ao final dos ensaios.
Além disso, diferentemente do que ocorreu em O Livro de Jó, desejávamos a pre-
sença mais freqüente do dramaturgo em sala de ensaio, especialmente durante as
improvisações temáticas, recolhendo e dialogando diretamente com o material bruto
produzido pelos atores. É claro que sabíamos da inviabilidade da freqüência diária,
por parte do escritor, num processo de longa duração. Por outro lado, por paradoxal
que parecesse, também havia sido importantes os largos períodos de ausência e afas-
tamento de Luís Alberto de Abreu durante a construção de Jó.
Daí, as perguntas-desafios que o grupo então se colocava: como trabalhar com o
dramaturgo, trazê-lo para o embate corpo-a-corpo da sala de ensaio, sem provocar o
constrangimento das dinâmicas individuais de criação, e sem a pressão decorrente
da estréia do espetáculo? Como encontrar uma estrutura que favorecesse o diálogo
entre as diferentes funções durante a escritura do texto? Como conjugar a alternân-
cia de presença e ausência do dramaturgo durante o processo?
A resposta que vislumbramos foi a criação de um momento específico no trabalho,
com duração previamente estipulada, em que o dramaturgo pudesse acompanhar in-
tegralmente o ensaio. Além disso, incorporando a experiência positiva ocorrida em O
Livro de Jó, também deveria haver períodos em que diretor e dramaturgo pudessem
trabalhar conjuntamente sem a presença dos outros integrantes. Por fim, deveriam
ainda ser resguardados os momentos em que o dramaturgo trabalhasse solitariamen-
te no desenvolvimento do texto.
Para tanto, foi idealizado o seguinte esquema de trabalho:
106

Fase 1 – Criação da Dramaturgia11

• Encontros preparatórios: tiveram por objetivos a definição do dramatur-


go; o estabelecimento da estrutura e cronograma do processo; a resolução
de questões práticas em relação ao espaço físico para os ensaios; o levan-
tamento de material bibliográfico e, por fim, a realização de leituras, es-
tudos teóricos e discussões concernentes ao tema do apocalipse (agosto a
outubro de 1998);
• Primeiro Workshop: trabalho prático em sala de ensaio, com a presença
dos atores e do diretor, a partir das principais referências de textos apo-
calípticos selecionados pelo grupo, a saber: o Apocalipse de São João; o Livro
de Daniel; os apocalipses apócrifos; Profecias e Adivinhações, de Leonardo da
Vinci; e Considerações sobre o Apocalipse de São João e o Livro de Daniel, de Isaac
Newton. O dramaturgo Fernando Bonassi não participou desse workshop,
pois se encontrava concluindo uma bolsa de residência artística, na Ale-
manha. Por essa razão, todas as improvisações foram gravadas em vídeo.
Além disso, por meio de conversas telefônicas diárias, dramaturgo e di-
retor avaliavam o ensaio do dia anterior e planejavam o seguinte. Este
workshop teve a duração de duas semanas. (13 a 24 de outubro de 1998);
• Primeiro intervalo: trabalho conjunto do dramaturgo – já de volta ao Bra-
sil – e do diretor, sem a presença dos atores, na tentativa de encontrar um
eixo estrutural a partir das inúmeras improvisações realizadas durante o
Primeiro Workshop;
• Segundo Workshop: trabalho de improvisações baseado exclusivamente no
Apocalipse de São João, do Novo Testamento, na versão da Bíblia de Jerusalém.
Retomada de algumas personagens urbanas surgidas no Primeiro Workshop,
com a criação de conexões entre elas e as figuras bíblicas. O dramaturgo já
se encontra presente nos ensaios e participa ativamente do processo, apre-
sentando os primeiros fragmentos de texto. Este workshop também teve a
duração de duas semanas (07 a 19 de dezembro de 1998);
• Segundo intervalo: novo trabalho conjunto do dramaturgo e do diretor,
sem a presença dos atores, visando à seleção de cenas, à escolha de mate-
rial para reimprovisações e à escritura de primeiros esboços de texto;
• Terceiro Workshop: desenvolvido, na sua maior parte, pelas propostas de
textos trazidas pelo dramaturgo. Houve também aqui a preparação de um
“varal de cenas”, primeiro esforço de organização de todo o material sele-

11 Tanto essa fase quanto a seguinte ocorreu nas dependências da Oficina Cultural Oswald
de Andrade, como parte do Projeto de Residência Artística do Teatro da Vertigem na-
quela oficina. O espetáculo foi todo ali criado, desde o Primeiro Workshop até o início
dos ensaios no Presídio do Hipódromo.
107

cionado e de estabelecimento de uma possível linha narrativa. As impro-


visações e workshops se restringiram, neste momento, apenas à parte final
do texto bíblico – aquela que tratava de “Nova Jerusalém”. Em suma, esta
etapa foi voltada para a seleção de material, articulação da estrutura, reso-
lução do fim da peça e experimentação relativa à distribuição dos papéis.
Este workshop teve a duração de três semanas (18 de janeiro a 05 de feve-
reiro de 1999);
• Terceiro intervalo: trabalho do dramaturgo e do diretor, novamente sem
a presença dos atores, visando a uma seleção final do material levantado e
a um esboço de estruturação da peça;
• Escritura do primeiro esboço do texto: trabalho realizado solitariamen-
te pelo dramaturgo;
• Primeira avaliação: discussão deste primeiro esboço com o diretor e a
dramaturgista (Lucienne Guedes). Foram escritos e avaliados, na verdade,
dois esboços do texto, com um intervalo de tempo entre a produção do
primeiro e do segundo;
• Escritura da primeira versão do texto: trabalho este também realizado
solitariamente pelo dramaturgo;
• Segunda avaliação: discussão desta primeira versão da dramaturgia com
todo o grupo;
• Escritura da segunda versão do texto: trabalho este também realizado
solitariamente pelo dramaturgo, a partir do feedback grupal recebido;
• Leitura dramática do texto: foram realizadas duas leituras dramáticas no
Festival de Teatro de Curitiba, e uma, no Auditório da Folha de S. Paulo,
todas seguidas de discussões com a platéia (26 e 30 de março de 1999);

Fase 2 – Criação do Espetáculo

• Ensaios de levantamento do texto: realizados ao longo de quase sete me-


ses, com a participação de todos os criadores (cenógrafo, iluminador, figu-
rinista, etc.). Uma vez por semana, ou no máximo a cada quinze dias, o ma-
terial cênico levantado era apresentado para discussão com o dramaturgo.
As experimentações concernentes à encenação e ao trabalho de direção de
atores também ocorreram durante esse período. Além disso, houve aqui o
início das oficinas com os presidiários no Carandiru e dos estágios de acom-
panhamento em todas as áreas de criação (abril a setembro de 1999);
• Ensaios de ocupação do espaço: trabalho de investigação e de implantação
do espetáculo no Presídio do Hipódromo (outubro-novembro de 1999);
• Ensaios abertos: primeira experiência do grupo em um processo de feed-
108

back por parte da platéia, antes da estréia, aliada à manutenção regular e


paralela dos ensaios, a fim de incorporar as críticas e sugestões levantadas
(novembro-dezembro de 1999);
• Estréia de Apocalipse 1,11 (14 de janeiro de 2000).
• Temporada: o espetáculo ficou em cartaz cerca de um ano, com sessões de
quinta a domingo (até 17 de dezembro de 2000).

Os procedimentos desenvolvidos nos três workshops de construção do texto e no


período posterior de elaboração do espetáculo reúnem muitos dos exercícios e práticas
realizadas em O Paraíso Perdido e O Livro de Jó. Contudo, eles aparecem aqui de forma
mais consciente e estruturada12. Nesse sentido, esse processo marca o amadurecimento
do grupo em relação ao seu modus operandi de criação. As categorias de exercícios, por
exemplo, passaram a receber nome definido (treinamento direcionado; vivência; escri-
ta automática; pergunta/resposta; workshop; pesquisa de campo, entre outros) e, sinto-
maticamente, já denominávamos nosso modo de trabalho como processo colaborativo.
Quanto às técnicas de aquecimento, em função do desejo de realizar uma peça
violenta e agressiva, julgamos que elas deveriam se estruturar em torno do elemento
“luta”. Optou-se, então, pelo kempô – arte marcial indiana baseada no movimento dos
animais – e pela capoeira de angola. Mais tarde, no processo, integramos a luta cênica
– denominada na Inglaterra e Estados Unidos como stage combat, fight direction ou stage
fight. Trata-se de princípios de coreografia de luta, usados no cinema e teatro, para
simular, com veracidade, combates de alto teor agressivo, garantindo a segurança e
a integridade física dos atores. Todas essas técnicas visavam a estimular nos intérpre-
tes um caráter bélico e animalesco, além de auxiliar na concentração, prontidão e
disponibilidade física.
Incorporamos ainda, em fase mais avançada dos ensaios, a meditação Rajneesh ou,
também chamada, meditação ativa. O foco, nesse caso, era diferente daquele da luta.
Buscava-se a exaustão física associada a um estado de livre expressão das pulsões
mais inconscientes e a experimentação de um estado de “insanidade”, que nos pare-
cia fundamental ao registro interpretativo do espetáculo.
Tal conceito não estava definido a priori, tendo sido encontrado – ou melhor, ten-
do emergido – durante a primeira fase dos ensaios. A partir de um registro que mis-
turava desequilíbrio emocional, imprevisibilidade e desespero a um estado-limite

12 Para a descrição detalhada dos exercícios e procedimentos de trabalho utilizados no


processo de criação deste espetáculo, indicamos a leitura da dissertação de mestrado
de Miriam Rinaldi, O Ator do Teatro da Vertigem: o processo de criação de ‘Apocalipse 1,11’.
Sugerimos, também, a pesquisa realizada por Mariana Lima, como resultado da Bolsa
Vitae de Artes, denominada O Processo Colaborativo no Teatro (tendo como base a pesquisa e
realização do espetáculo ‘Apocalipse 1,11’, do Teatro da Vertigem). Ambas encontram-se discri-
minadas nas Referências, ao final da tese.
109

de ser – que foi aparecendo, pouco a pouco, em algumas improvisações e workshops


– buscamos um nome para defini-lo. Exatamente como ocorrera com o termo ”visce-
ralidade”, em O Livro de Jó, que nos soava desgastado demais, a palavra “insanidade”
era a que mais se aproximava ou traduzia o estado que almejávamos. Estava longe de
ser perfeita, mas funcionava como espécie de palavra-guia ou de termo-farol.
O grupo julgava importante ainda, a distinção desse conceito em relação ao de
“loucura”. O estado “insano” não era aquele dos doentes psiquiátricos, pois tal condi-
ção poderia justificar – e, portanto, reduzir – a dimensão exacerbada das personagens.
Segundo a atriz Miriam Rinaldi, que participou do processo de criação, “mudanças
inesperadas de atitude, excentricidade, apatia, mutismo, obsessão e alternância de
humor foram algumas das características que experimentamos na composição das
personagens e que nos remetiam a essa zona do insano”13. Ou seja, tratava-se de um
registro de interpretação fronteiriço, limite, transbordante e excessivo, mas que não
incorria na representação nem na encarnação da loucura.
Por outro lado, esboçava-se também o tipo de linguagem ou estilo que não nos inte-
ressava. Sem que o soubéssemos antecipadamente, foi somente por meio das propos-
tas trazidas pelos atores que as ressalvas e os repúdios foram se tornando conscientes
e assumidos – especialmente por iniciativa da dramaturgia e da direção. Por exemplo,
percebemos que o texto e o espetáculo não deveriam trabalhar em chave realista, ou
melhor, de realismo psicológico. Já o realismo estranhado, fraturado por elementos
absurdos ou ilógicos, este sim, nos interessava. Além disso, descartamos a imagística e
o bestiário medieval, o humor televisivo à la Casseta e Planeta e a ficção científica e sua
estética futurológica. Por fim, queríamos também que o espetáculo escapasse do tom
cínico, que nos parecia simplificador e fácil para a abordagem dos temas escolhidos.
Porém, retornando aos três workshops de construção do texto, houve a projeção,
para cada um deles, de que durassem de duas a três semanas, com cerca de seis horas
por dia de trabalho. Estabelecemos também algumas regras básicas ou princípios
condutores: nunca chegar atrasado; lidar com o material temático sempre na pers-
pectiva do depoimento pessoal ou de uma visão crítica própria; não querer impres-
sionar o diretor ou o dramaturgo; não reprimir nenhuma proposta ou ponto de vista,
por mais tolo ou preconceituoso que fosse, sem medo de cair no trash, no clichê, no
óbvio e no senso-comum; ser sincero com você mesmo e com o outro; e, last but not
least, não querer repetir o sucesso de O Livro de Jó e nem a sua estética.
Em relação a esse último aspecto, tratava-se de um pacto coletivo da maior im-
portância. Por mais que O Paraíso Perdido tenha rendido prêmios e atraído atenção do
público e da crítica, o espetáculo posterior obteve repercussão ainda mais inesperada.
O grupo realizou temporada de um ano e sete meses na cidade de São Paulo, viajou

13 rinaldi, m. O Ator do Teatro da Vertigem: o processo de criação de Apocalipse 1,11. 2005. Dis-
sertação (Mestrado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São
Paulo, p. 103.
110

para várias capitais brasileiras, amealhou prêmios e foi alçado ao circuito de festivais
internacionais. O lado perigoso de todas essas conquistas, contudo, para um grupo re-
lativamente jovem e no seu segundo espetáculo, era o da acomodação precoce e o do
inebriamento pelo sucesso. Daí que, em um dos primeiros encontros preparatórios,
foi reiterada, enfaticamente, a necessidade de esquecermos todas aquelas vitórias e
louros para que conseguíssemos nos aventurar de novo. Era preciso que matássemos
O Livro de Jó a fim de que não nos domesticássemos.
Esse espírito de investigação de outras possibilidades temáticas e estéticas, e de recu-
sa da repetição do modelo anterior, estimulou um estado de entrega e de abertura nos
atores, que foi extremamente fértil. Os workshops foram marcados por um registro de
alta intensidade criativa, e por um ininterrupto brainstorm de cenas e proposições14, em
que o elemento da censura – e da autocensura – parecia não existir. Além disso, por mais
que não se tratasse de uma estratégia pensada previamente, o fato de os três workshops
terem como foco a construção da dramaturgia, liberava os atores e o encenador para
experimentações mais descompromissadas. Era como se quem estivesse na berlinda,
naquele momento, fosse o dramaturgo, desresponsabilizando os demais criadores da
tarefa de produzir bons resultados teatrais ou de formalizações cênicas acabadas.
É importante ressalvar que o dramaturgo em Apocalipse 1,11 – como de resto, no
processo colaborativo em geral – não funcionou apenas como organizador ou selecio-
nador do material cênico produzido pelos atores. Fernando Bonassi, além de propor
– em parceria com a direção – estímulos verbais e imagéticos para os intérpretes,
ou de escolher e descartar elementos propostos pelo grupo, irá também rearticular,
transformar ou reescrever tal material, bem como produzir cenas e textos de autoria
própria – ainda que inspirado ou mobilizado pelo que ocorria em sala de ensaio15.
Uma característica inerente à dramaturgia é o seu caráter pouco dialógico. Mesmo
quando as personagens estão interagindo, o que sobressai nessa suposta troca, é o
elemento monológico. Ou seja, a aparência de dialogismo esconde, na verdade, uma
justaposição de solilóquios que se entrecortam. Se tal construção textual vincula-se,
sem dúvida, a procedimentos da dramaturgia contemporânea, aqui, ela revela tam-
bém rastros processuais. Como vimos, o depoimento pessoal – que é, muito freqüen-
temente, materializado por meio de workshops – induz à formalização de cenas indi-
viduais, com caráter monológico. O texto de Apocalipse 1,11 flagra, indubitavelmente,
tal dinâmica, espelhando sem distorções o processo no qual ele foi gerado.

14 Miriam Rinaldi, em sua referida dissertação, chega a computar um total de mais de 540
cenas, apenas no período dos três workshops.
15 A dramaturgia e a direção tiveram várias discussões divergentes a esse respeito, pois
Fernando Bonassi tendia a considerar a sua atitude de apropriação ou de reelaboração
do material proposto pelo grupo como não-autoral, algo próximo da atividade de co-
pidesque ou de mera organização. A discordância dessa avaliação, enquanto diretor,
baseia-se no fato de ser possível identificar, no resultado final do texto, cenas inteiras
e monólogos que foram produzidos inteiramente por iniciativa do dramaturgo.
111

Outro elemento auxiliar na busca de novos rumos artísticos para a companhia


refere-se à visão que o dramaturgo tem do trabalho do grupo. Ainda que esse não
seja um critério na escolha do escritor, é curioso como cada novo dramaturgo pare-
ce recusar ou ter ressalvas em relação ao espetáculo anterior. Luís Alberto de Abreu
criticava o aspecto por demais fragmentário de O Paraíso Perdido, Fernando Bonassi
rejeitava o caráter ritualístico e “elevado” de O Livro de Jó, enquanto Bernardo Carva-
lho, em BR-3, defendia a redução dos aspectos alegóricos, e propunha uma narrativa
com começo, meio e fim, sem a estrutura de quadros autônomos, em contraposição
ao que ocorrera em Apocalipse 1,11.
Apesar das diferenças artísticas, metodológicas e de temperamento dos dramatur-
gos que trabalharam com o Vertigem, é preciso reconhecer que a relação destes com a
direção sempre foi das mais profícuas. Mesmo com divergências pontuais ou em mo-
mentos de crise, o diálogo diretor-dramaturgo foi estimulante e provocativo. As razões
dessas bem-sucedidas parcerias podem ser encontradas no interesse do encenador pela
criação de novos textos e, por sua vez, no interesse dos dramaturgos pela visualidade e
interdisciplinaridade, além da abertura à instância processual e coletiva.
A etapa dos três workshops marcou, também, a entrada de um novo colaborador no
processo de ensaio do Vertigem: o dramaturg ou dramaturgista. Se, em Paraíso Perdido,
Sérgio de Carvalho acumulou tal função com a de dramaturgo propriamente dito e,
em O Livro de Jó, Ivan Marques funcionou como coordenador teórico no período inicial
dos ensaios, em Apocalipse 1,11, o grupo deu um passo além. Convidou Celso Cruz para
assumir a função de dramaturgista no Primeiro Workshop e, após a sua saída, trouxe
Lucienne Guedes para ocupar este lugar. Além de ter colaborado intensamente nos
dois workshops seguintes, a dramaturgista teve um papel importante na construção do
espetáculo, especialmente por meio dos constantes diálogos com o dramaturgo.
No que diz respeito à interferência da direção ao longo dessa primeira fase, ela
cumpriu um papel fomentador ou provocador da criação do dramaturgo e dos atores.
Seja por meio do diálogo ou da contraposição, seja por meio da sugestão de estímulos
concretos, o diretor foi mobilizando o fluxo da criação dentro do processo. Além dis-
so, ele funcionou como parceiro do dramaturgo na seleção e na organização do mate-
rial produzido. Segundo Miriam Rinaldi, ao avaliar a quantidade numericamente su-
perior de comentários da direção no Terceiro Workshop em relação aos dois primeiros,
“a voz do diretor [aumentou] em número e grau, reflexo de um direcionamento mais
objetivo e seletivo dos materiais apresentados e reapresentados. [Houve] também in-
dicações mais claras na pesquisa de interpretação e de criação das personagens”16.
Quanto à distribuição dos papéis, o processo se deu diferentemente de O Livro
de Jó. Ali, pela pré-existência de personagens advindas da matriz bíblica, houve um
período de livre-experimentação de cada uma delas, por parte dos atores. Já em Apo-

16 ���������� �� O Ator do Teatro da Vertigem: o processo de criação de Apocalipse 1,11, p. 89.


rinaldi, m.,
112

calipse 1,11, ao contrário, as personagens – ainda que referenciadas no original bíblico


– foram emergindo das próprias improvisações dos atores. Ou seja, os intérpretes, de
certa forma, já “escolhiam” de antemão as figuras que lhes interessava encarnar – ou,
quem sabe, eram por elas escolhidos. Portanto, a divisão dos papéis foi se dando or-
ganicamente, de maneira que o último workshop serviu apenas como confirmação do
que já se desenhava. Apenas uma ou outra personagem chegou a ser experimentada
por mais de um ator, quando do início da segunda fase dos ensaios17.
O aspecto mais problemático do “casting” referiu-se aos atores que não tiveram as
suas proposições de personagens selecionadas para o texto final. No pólo diametral-
mente oposto, houve a incorporação, por parte da dramaturgia, de várias persona-
gens criadas apenas por um único ator. Na prática, tal situação provocava, necessaria-
mente, a migração de material cênico de um intérprete para outro. Essa transferência
de personagens, em alguns casos, foi difícil e gerou crises internas no processo. Con-
tudo, tanto pelas negociações do diretor com os “doadores” mais apegados às suas
criações, quanto pela total apropriação e reelaboração de tais “doações” por parte
dos “receptores”, as eventuais turbulências foram superadas.
Após o final dos três workshops e das leituras dramáticas públicas, avaliamos a dra-
maturgia daí resultante e tomamos a decisão de realizar a sua montagem. O texto,
ainda que parecesse necessitar de maior desenvolvimento, conseguia traduzir, satis-
fatoriamente, as motivações centrais do grupo.
Demos início, então, à segunda fase do processo de ensaio, que seria destinada à
criação do espetáculo. Os encontros, a partir de agora, ocorreriam cinco vezes por
semana, com cerca de seis horas diárias. Nessa fase, contudo, a presença do drama-
turgo se reduziria a uma vez por semana ou, em situações excepcionais, a apenas um
encontro a cada quinze dias.
Nesse dia “D” era apresentado a ele todo o material cênico desenvolvido até en-
tão, o que não incluía apenas o levantamento do texto, mas também novas idéias ou
sugestões para a solução de problemas. Após o “corrido” das cenas, o grupo inteiro
discutia com o dramaturgo as questões, as dúvidas, as conquistas e as eventuais no-
vas necessidades. Nas apresentações realizadas a cada quinze dias, todos os outros
criadores envolvidos participavam ativamente, e suas experimentações – de luz, figu-
rino, cenografia ou som – eram incorporadas aos “corridos”.
Essa nova etapa, além dos exercícios já mencionados – porém, executados em
outro contexto e almejando propósitos ligados à encenação e à interpretação – agre-
gava ainda outras dinâmicas. Dentre elas, poderíamos citar: análise ativa do texto;
experimentação da trajetória das personagens (improvisações realizadas a partir do
percurso das personagens, privilegiando os eventuais turning points); esboço de mar-

17 As personagens “João” e “Juiz” foram testadas pelos atores Vanderlei Bernardino e


Sergio Siviero durante um breve período, antes que a decisão final fosse tomada.
113

cações e espacialização; trabalho com a palavra (série de exercícios para exploração e


apropriação do texto escrito); pesquisa de campo voltada para o universo das perso-
nagens; e, por fim, ensaios individuais para aprofundamento do trabalho interpreta-
tivo (ensaios idealizados exclusivamente para as necessidades de um ator específico,
com o objetivo de ajudá-lo a superar dificuldades particulares e de adensar a constru-
ção de sua personagem).
É importante notar que a pesquisa de campo nesse processo ganhou uma dimen-
são maior que no anterior. Se em Jó referia-se apenas à elaboração das personagens,
em Apocalipse ela se prestava também ao desenvolvimento da dramaturgia. Por exem-
plo, durante o período dos três workshops, foi realizada uma série de “visitas” a locais
pré-definidos pelo dramaturgo e diretor. Entre eles, poderíamos destacar a rodoviária
do Tietê; a cracolândia; o Minhocão; as saunas da Rua Augusta; os teatros de sexo
explícito da Rua Aurora; uma delegacia de polícia no Pari e, ainda, a Rua Amaral Gur-
gel, com sua mistura de prostitutas, traficantes, travestis e moradores de rua. Como
instrumental de pesquisa, chegamos, inclusive, a lançar mão de algumas noções do
geógrafo Milton Santos sobre espaço urbano – por exemplo, a identificação da pre-
sença de vários tempos diferentes (acelerado/dilatado; rápido/lento) em um mesmo
espaço. Havia também uma regra obrigatória: qualquer atividade de campo deveria
ser “transformada” em alguma formalização cênica. Ou seja, ela não poderia se res-
tringir apenas à experiência impressiva ou subjetiva dos atores.
Durante a criação do espetáculo, realizamos também algumas atividades extra-
ensaio, de caráter pedagógico, porém associadas diretamente à construção da cena. A
primeira delas foi um curso de iniciação teatral para os detentos dos pavilhões cinco,
oito e nove do Complexo Penitenciário do Carandiru. Tal oficina – que teve a duração
de oito meses – poderia ser justificada apenas pelo viés da pesquisa de campo, como
se fosse uma das “visitas” a local específico na cidade – no caso, o maior presídio da
América Latina. Contudo, em relação ao Carandiru, a questão ia mais além. Havia, pri-
meiramente, o desejo de que o espetáculo fosse apresentado nas dependências deste
complexo prisional. Em segundo lugar, existia o interesse de que tanto o processo
de ensaio quanto as apresentações pudessem congregar uma mistura de aspectos da
“vida real” com outros, de natureza teatral. Tal vontade implicava, entre outros ele-
mentos, na conjugação de trabalho entre atores e não-atores – no sentido profissional
do termo – os quais participariam da construção e da temporada do espetáculo.
É importante salientar que todos esses aspectos conjunturais, relativos ao projeto
artístico do grupo, foram discutidos franca e abertamente com os prisioneiros, desde
o início. Tal prerrogativa auxiliou no estabelecimento de um pacto ou compromisso
comum, com força de contrato oral, entre eles e nós. Nesse sentido, por exemplo,
alguns dos ensaios regulares da peça foram realizados dentro do Carandiru, como
parte do referido curso de iniciação teatral.
Essa iniciativa estava também vinculada ao acordo previamente estabelecido com
114

o diretor do presídio para a participação dos detentos em Apocalipse 1,11. A última


parte da oficina, então, se voltou para o trabalho específico de construção de perso-
nagem, de memorização do texto e de aprendizado da marcação de algumas cenas da
peça, especialmente daquelas em que os detentos atuariam de forma coral.
Infelizmente, às vésperas da estréia oficial do espetáculo, apesar de todos os esfor-
ços de negociação – caracterizados por inúmeras reuniões com políticos e com fun-
cionários da Secretaria de Administração Penitenciária – foi definitivamente negada
a participação dos presos na temporada da peça. A frustração foi geral, pois tanto o
grupo se sentiu ludibriado pelos poderes públicos quanto os detentos viram ruir a
sua possibilidade de atuação artística no trabalho.
De qualquer forma, ainda que o espetáculo não tenha podido contar com a presen-
ça deles em cena, é inegável o quanto essa experiência, dentro de uma penitenciária
ativa, marcou profundamente o processo de ensaio, e a nós artistas. Temos a certeza
que Apocalipse 1,11 não seria o mesmo sem as contribuições, a convivência intensa e
o complexo diálogo com aqueles presidiários. Ninguém do Vertigem saiu imune ou
indiferente a esta “descida aos infernos”, bem como um movimento transformador
também ocorreu naquele grupo de detentos.
Ironicamente, tivemos que esperar até o Festival Theater der Welt 2002, na Ale-
manha, para podermos atuar em um presídio ativo. E foi apenas também em outro
país, na Polônia, durante a participação no Festival Internacional Dialog-Wroclaw
(2003), que pudemos, finalmente, contar com a participação dos presidiários em cena.
Somente aí, na cidade que abrigou o Teatro-Laboratório de Grotowski, o conceito ori-
ginal da encenação pôde se completar.
Outra atividade pedagógica, igualmente fundamental ao processo de construção
da peça, foi a realização de oficinas de criação com estudantes e estagiários, durante a
residência artística do Teatro da Vertigem, na Oficina Cultural Oswald de Andrade. A
idéia central dessa iniciativa era abrir os ensaios do grupo para pessoas previamente se-
lecionadas, que acompanhariam o dia-a-dia do trabalho. Ao invés de um curso regular
de direção ou iluminação, o conjunto de “alunos” poderia ver de perto o trabalho do
diretor ou a criação da luz, vinculado ao desenvolvimento concreto de um espetáculo.
No nosso caso, em especial, os estagiários puderam contribuir diretamente na feitura
da obra, trazendo suas visões, sugestões e críticas ao projeto. Tal dinâmica se configu-
rou, pois, como um misto de processo pedagógico e assistência de criação.
A princípio, ficamos preocupados se esse acompanhamento por parte de pessoas
estranhas ao grupo não causaria algum tipo de constrangimento à criação. Até aque-
le momento nossos processos de ensaio haviam sido fechados, e víamos com descon-
fiança, num misto de desrespeito e dessacralização, a presença de “curiosos” dentro
da sala de trabalho. Contudo, para nossa surpresa, sucedeu o contrário.
Nos primeiros dias, é claro, foi desconfortável a presença de observadores exter-
nos. Porém, movidos por esse desconforto de mão dupla, nós e eles fomos estudando
115

maneiras possíveis para que uma melhor integração ocorresse. No caso da oficina de
direção, os estagiários não apenas participavam dos ensaios, mas compartilhavam
do planejamento do cronograma da semana, discutiam problemas referentes à inter-
pretação, sugeriam encaminhamentos em reuniões de produção, e assim por diante.
Além disso, cada um deles fazia o acompanhamento individual de um ator, ajudan-
do-o e interferindo na construção de sua personagem. Desta forma, depois de algum
tempo, eles passaram a construir a peça com o grupo e, de certa maneira, expuseram-
se aos mesmos riscos que nós.
Além do assistente de direção oficial (Marcos Bulhões), passei a contar com sete
assistentes-estágiários18 com os quais dividia o trabalho diariamente. Enquanto en-
saiava na sala principal uma determinada cena, acompanhado do estagiário que
havia ficado responsável por ela, o assistente e os outros estagiários se encontra-
vam, ao mesmo tempo, em salas contíguas, fazendo a análise, o levantamento ou
o primeiro esboço de marcação das cenas subseqüentes – que, por sua vez, mais
tarde, passariam necessariamente por mim. Portanto, a cada segunda-feira, quando
nos reuníamos para estruturar o cronograma da semana, fazíamos o agendamento
de trabalho para cada um dos diretores envolvidos, de forma a contemplar essa di-
nâmica rotativa de ensaio das cenas.
Foi gratificante perceber que o processo colaborativo ficou muito mais “colabo-
rativo” com esse sistema artístico-pedagógico. As interferências na criação se multi-
plicaram, o que aumentou a complexidade do trabalho, deixando-o, apesar das difi-
culdades, mais polifônico e provocativo. O mito do artista isolado e misantropo, que
mantinha seu processo de criação trancado a sete chaves, encontrava-se relativizado.
A abertura dos ensaios, desde que realizada com critério, não comprometia o desen-
volvimento da obra. Por outro lado, enquanto professor de teatro, tal dinâmica se
comprovou como uma das experiências pedagógicas mais intensas e bem-sucedidas
que tive a oportunidade de coordenar.
Contudo, apesar dos acertos acima descritos, essa segunda etapa do processo tam-
bém comportou algumas contradições. Primeiramente, a rígida divisão entre “fase de
criação do texto” e “fase de criação do espetáculo” mostrou-se inócua e inoperante.
Ambos os períodos se influenciaram e se contaminaram todo o tempo. As fronteiras
entre as diferentes etapas de construção da obra revelaram-se tênues, quando não

18 Durante os ensaios na Oficina Oswald de Andrade os estagiários-assistentes foram: Kleber


Vallim, Péricles Raggio, Silvania Barbosa, Simone Shuba, Stella Marini, Verenna Gorostia-
ga e Eliana Monteiro. Ao entrarmos no Presídio do Hipódromo, Kleber Vallim integrou-se
ao elenco da peça e Silvania Barbosa passou a ocupar a função de Produção Executiva.
Nesse momento, também, dois novos estagiários de direção agregaram-se ao processo,
oriundos do curso de Direção Teatral do Departamento de Artes Cênicas da eca-usp: Gláu-
cia Felipe e André Bortolanza. Quando da estréia do espetáculo, Eliana Monteiro assumiu
a Direção de Cena e Stella Marini e Verenna Gorostiaga se tornaram Assistentes de Dire-
ção de Cena, integrando a equipe da peça durante toda a temporada de Apocalipse 1,11.
116

inexistentes. Inúmeras reelaborações dramatúrgicas foram realizadas à medida que


avançavam os ensaios de cena, bem como várias das imagens ou idéias apresentadas
à época da construção do texto tornaram-se matrizes para a linguagem da encenação.
Tais separações constituem, na melhor das hipóteses, apenas ênfases ou acentos dife-
renciados, de acordo com o momento do processo.
Apesar da divisão racional e bem-intencionada dos ensaios de Apocalipse em dois
momentos distintos, o diálogo entre eles se deu natural e organicamente, e a pre-
tendida separação se revelou apenas uma espécie de subterfúgio didático ou psico-
lógico – por exemplo, no sentido de não tensionar os atores em relação ao “peso”
de construção da dramaturgia. No processo colaborativo não existe criação de texto
desvinculada da criação de cena, e vice-versa. O critério da sucessividade também se
relativiza, pois nem todas as coisas se criam antes ou depois de outras, mas sim, conco-
mitantemente. Um determinado momento já pode estar prenhe do seguinte, trazen-
do dentro de si o seu passado e o seu futuro. Por mais que quiséssemos a ordem e o
seqüenciamento, a criação nos arrastava ao caos.
Outra contradição referiu-se à duração dos ensaios como um todo. Havíamos saí-
do de O Livro de Jó traumatizados com processos demasiado extensos. Pretendíamos,
pois, com essa nova estruturação, gerenciar melhor o tempo e, sem comprometer a
profundidade da investigação, atingir um resultado cênico com maior rapidez. No
entanto, se comparado com os dois espetáculos anteriores, Apocalipse 1,11 foi aquele
que teve o mais largo período de ensaio, a saber, um ano e quatro meses.
Porém, como então explicar um desgaste e cansaço menores do que nos outros
dois? Uma possível resposta para essa charada encontra-se não apenas na natureza
do projeto, mas também na maneira como foram propostas e articuladas as diferen-
tes etapas do processo. Apesar de mais extenso, houve uma melhor estruturação na
dinâmica de ensaio. A sua configuração em partes diferenciadas, cada qual com mo-
vimentos ou tendências específicas, minimizou a rotina do trabalho.
Contudo, tal distensão temporal continuou ainda a ser uma das objeções centrais
dos atores. Miriam Rinaldi, por exemplo, critica o desequilíbrio quantitativo de tem-
po dedicado à construção dramatúrgica quando comparado àquele destinado à ela-
boração das partituras corporais dentro do espaço. Segundo ela, “os atores reclamam
um maior equilíbrio entre a experimentação e a repetição”19. Porém, não seria esta
uma das características ou objetivos desse tipo de processo, isto é, muita experimen-
tação e pouca repetição?
Cabe-nos ainda tratar de dois momentos importantes na feitura desse espetáculo:
a entrada no espaço e o período de ensaios abertos. A ocupação do Presídio do Hipó-
dromo, apesar de inúmeros contratempos burocráticos e de produção, foi a mais ela-
borada de todas. Além de aprofundarmos os procedimentos de exploração espacial

19 rinaldi, m., O Ator do Teatro da Vertigem: o processo de criação de Apocalipse 1,11, p. 159.
117

desenvolvidos em O Livro de Jó, acrescentamos a preocupação com o aspecto “ener-


gético” ou “vibracional” do espaço. A entrada no lugar foi preparada com bastante
cuidado pelo grupo, contemplando desde uma faxina geral em todas as zonas de cir-
culação até uma limpeza de caráter “espiritual”, realizada por especialistas na área.
Houve também, na primeira semana de ensaio no local, a introdução de uma téc-
nica conhecida como “Viewpoints”. Esta técnica, proveniente da dança pós-moderna
americana e adaptada para o teatro pela diretora Anne Bogart, apresenta princípios
que são muito adequados à fase exploratória de espaços não-convencionais. Entre
outros aspectos, ela investiga a relação do corpo dos atores com as formas e linhas do
lugar, criando um diálogo concreto com a arquitetura. Desenvolvemos, portanto, no
processo de ocupação do Hipódromo, os tópicos relacionados aos Viewpoints de espa-
ço: “massas sólidas” (paredes, pisos, tetos, janelas, portas, mobiliário, etc.); texturas;
luminosidade; cores; “metáforas espaciais”; “relações espaciais” e topografia20.
Quanto à etapa dos ensaios abertos, ela se constituiu numa experiência-modelo
das mais importantes para a companhia. Nunca, antes de uma estréia, tínhamos rea-
lizado mais que três ensaios com a presença de público. Dessa vez, porém, durante o
período de um mês e meio, tivemos a oportunidade de nos confrontar com o feedback
dos espectadores, o que alterou significativamente as conformações do trabalho.
Descobrimos que o processo se tornava mais colaborativo na medida em que ga-
rantíamos um espaço definido para as interferências e sugestões do público. Isso não
quer dizer que, após a estréia, esse diálogo com a platéia deixasse de ocorrer. Porém,
a instauração de um momento de abertura da criação, ainda no período de ensaio,
promoveria a colaboração dos espectadores na feitura da obra e na confecção de sua
própria materialidade. No caso de Apocalipse 1,11, as objeções críticas e as proposições
do público foram reescrevendo e remodelando o espetáculo. Nele, a experiência do
processo colaborativo parecia ter chegado à sua instância mais abrangente.
A função da encenação, nessa dinâmica compartilhada de criação, também pa-
rece ter conquistado um maior amadurecimento. Ao invés da busca pela unidade
estilística – como em Jó – a direção, em Apocalipse, deixou que variadas linhas de
força emergissem, provocando o aparecimento de distintas vertentes estéticas. Por
exemplo, o Quarto de João (Ato I) apresenta um realismo estranhado, pontuado por
elementos absurdos ou fantasmagóricos – as “aparições” da Noiva, do Senhor Morto
e do Anjo Poderoso. A Boite New Jerusalém (Ato II), por sua vez, recebe o tratamento
de um cabaré grotesco e histérico. O Massacre (Ato III), ao contrário, vai em direção a
uma formalização hiper-realista – este é o único momento, inclusive, que o presídio
é apresentado enquanto tal, sem maiores metaforismos. Por fim, o Juízo Final (Ato

20 Para uma descrição detalhada desses tópicos e um melhor conhecimento da técnica,


aconselhamos a leitura de duas obras-chave: Anne Bogart Viewpoints, editada por Michael B.
Dixon e Joel A. Smith, e The Viewpoints Book, escrita pela própria Anne Bogart em parceria
com Tina Landau. Ambas encontram-se discriminadas nas Referências, ao final da tese.
118

IV) é marcado por forte teatralismo – a descida do Juiz, a Noiva na escada, a crucifica-
ção da Besta, a procissão do Anjo Poderoso e de seus asseclas, o enforcamento do Juiz,
entre outros. Ou seja, há a emergência e a coabitação de diferentes vetores estéticos.
Não é de se estranhar que uma peça ancorada – temática e processualmente – na
cidade de São Paulo, cujos bairros e lugares serviram como fonte de referência para
a construção da dramaturgia e da cena, não sofresse a influência dessa urbanidade
multifacetada. Como imaginar que uma cidade marcada pela pluralidade e mistura
de traços arquitetônicos díspares não induzisse a uma equivalente justaposição de
estilos e linguagens, num espetáculo nela inspirado?
Além disso, a encenação deixou vir à tona, de forma mais integral e intensa do
que nos espetáculos anteriores, o hibridismo e a polifonia das diferentes vozes e vi-
sões artísticas do grupo. Apocalipse 1,11 conseguiu materializar, a contento, a natureza
impura e colaborativa do processo de origem. E nos fez perceber que a “unidade” da
encenação não se encontra, apenas, no resultado estético da obra, mas também, na
conformação e na linguagem do processo.

4.3 O Processo da Encenação em BR-321

A idéia-leme para a estruturação do processo – e para a construção do espetáculo


– foi a realização de uma pesquisa de campo em três regiões do país – Brasilândia
(SP), Brasília (DF) e Brasiléia (AC) – cujo único elo aparente residia no fato de todas
apresentarem o radical “brasil” na formação de seus nomes. É claro que, além da
coincidência vocabular – em si mesma lúdica e acidental – estava em jogo o desejo de
discutir o controvertido tema da “identidade nacional”.
Para tanto, foi realizada uma imersão do grupo em Brasilândia, bairro da Zona Nor-
te da cidade de São Paulo, durante o período de um ano (janeiro a dezembro de 2004).
Além disso, no mês de julho do referido ano foi empreendida uma viagem de 35 dias,
realizada por todos os criadores da peça. Partindo de São Paulo e cruzando o país por
via terrestre, num ônibus-caminhão denominado Exploranter, a expedição artística
chegou até o Acre. Tal viagem materializava, no plano geográfico, possíveis conexões
entre aquelas regiões, as quais o espetáculo procuraria relacionar, no plano simbólico.
Em outras palavras, BR-3 efetivou a construção de um espetáculo a partir de uma
estrutura cartográfica: três regiões distintas; viagem por suas estradas ou vias de

21 Este processo contou com a participação de Bernardo Carvalho, na dramaturgia, e dos


atores Bruna Lessa, Bruno Batista, Cácia Goulart, Daniela Carmona, Denise de Almeida,
Ivan Kraut, Luciana Schwinden, Marília de Santis, Roberto Audio, Rodolfo Henrique,
Sergio Pardal e Sergio Siviero. A assitência de direção foi feita por Eliana Monteiro.
119

ligação; pesquisa de campo em ecossistemas urbanos diferenciados. Ao invés de um


texto de base ou de referência, como havia ocorrido nos processos anteriores, seriam
o estudo in loco das regiões e a experiência por elas proporcionadas que informariam
os direcionamentos artísticos do projeto. A pesquisa de campo, portanto, deixava de
ser apenas instrumento para se tornar matriz da criação.
Por considerarmos o processo colaborativo como uma metodologia de criação em
rede – ou mapa –, tal metodologia, nesse novo trabalho do Teatro da Vertigem, espe-
lhava um núcleo conteudístico e conceitual que era, também ele, cartográfico. Em
outras palavras, o modo do processo dialogava concretamente com o próprio assunto
ou tema-motor.
Porém, antes de tudo, é importante que se tenha a visão global do percurso de
criação, a fim de permitir a localização de seus pontos cardeais. O mapa geral do pro-
cesso, de forma sintética e esquemática, desenhou-se da seguinte maneira:

• Definição do projeto; início da escolha do dramaturgo e demais colabora-


dores; realização das primeiras incursões do grupo a Brasilândia (2º semes-
tre de 2003);
• Leituras; seminários; encontros com intelectuais convidados; fechamento
da equipe de criação; primeiro módulo das oficinas e da pesquisa de cam-
po em Brasilândia (1º semestre de 2004);
• Viagem por terra até o Acre e pesquisa de campo em Brasília e Brasiléia (30
de junho a 3 de agosto de 2004);
• Discussão do argumento proposto pelo dramaturgo; improvisações a par-
tir da viagem e do argumento; segundo módulo das oficinas e da pesquisa
de campo em Brasilândia (2º semestre de 2004);
• Elaboração do roteiro; improvisações, exercícios e workshops relacionados
à construção da dramaturgia; escritura da primeira versão do texto; início
dos estágios em todas as áreas de criação (1º semestre de 2005);
• Experimentações cênicas a partir da dramaturgia criada; produção de no-
vas versões do texto; ensaios de apropriação e colocação do espetáculo no
Rio Tietê; realização dos ensaios abertos ao público (2º semestre de 2005);
• Ensaios corridos e técnicos; finalização da dramaturgia; aprimoramento do
espetáculo e do trabalho interpretativo; sincronização na logística da monta-
gem; estréia oficial; temporada de dois meses e meio (1º semestre de 2006).

O processo de BR-3 iniciou-se em meados de 2003, a partir do fórum artístico inter-


no da companhia, no qual se fez um balanço do percurso artístico percorrido para a
elaboração da Trilogia Bíblica (O Paraíso Perdido; O Livro de Jó e Apocalipse 1,11). Além da
avaliação crítica dos procedimentos e resultados atingidos até ali, fez-se também um
120

esforço de identificação das futuras metas artísticas e das vontades pessoais e coletivas.
Entre os tópicos levantados, apareceu fortemente o desejo de abandono ou suspensão
da temática religiosa. Ainda que se percebesse o quanto tal assunto não se encontrava
esgotado em nossas criações, havia uma recusa ou cansaço em relação a ele.
Em função disso, cada integrante trouxe textos, peças ou idéias que gostaria de tratar
no próximo espetáculo. Após vários encontros de compartilhamento deste material –
boa parte dele, curiosamente, composta por monólogos –, não se conseguiu chegar a ne-
nhum denominador comum. Finalmente, por não vislumbrar perspectivas de consenso
a curto prazo, apresentei ao grupo o embrião de um projeto, ainda confuso e nebuloso.
Em decorrência da exposição fotográfica de Thomas Farkas, no Instituto Moreira Sal-
les (2002), em que eram apresentadas imagens de Brasília em construção – com seus tra-
ços arquitetônicos ainda pela metade, sujos de terra e desfigurados – ocorreu-me o desejo
de lançar mão deste material para a realização de um espetáculo. Acrescentou-se a isso
a lembrança de um projeto irrealizado, proposto pela Secretaria Municipal de Cultura,
para que o grupo montasse uma peça na periferia da Zona Norte. Um bairro em especial,
naquele momento, chamou a atenção da companhia: Brasilândia. Desnecessário dizer
que, pela semelhança vocabular, a associação Brasília-Brasilândia foi imediata.
Se o Vertigem saía de Apocalipse 1,11 exaurido da temática religiosa, por outro lado,
tal espetáculo descortinou um universo de provocantes questões relativas à socieda-
de brasileira. Foi inegável a mobilização do grupo em relação aos problemas nacio-
nais ali tratados. Talvez caiba reconhecer que, se Apocalipse, por um lado, marcou a
última etapa de uma trilogia bíblica, por outro, ele se configurou como a primeira for-
malização de uma futura trilogia brasileira. De alguma forma, BR-3 já se encontrava,
embrionariamente, dentro dele.
O passo seguinte na elaboração do novo projeto se deu de forma eminentemente
lúdica. Movido pelo radical “brasil”, o grupo perscrutou um atlas geográfico e des-
cobriu, na extremidade do Acre, uma pequena cidade chamada Brasiléia. O círculo
havia se fechado. Na verdade, não um círculo, mas uma parábola. Esta era a figura
geométrica que unia, no traçado do mapa, aqueles três Brasis, cuja única associação
residia na mera coincidência vocabular.
Por outro lado, tal escolha cartográfica apontava para uma discussão de país, não
pelo viés geral e abstrato, mas ancorada em três lugares muito específicos e concre-
tos. Chamava a atenção, ainda, o fato de aquela parábola imaginária perfazer um
sentido centrípeto, do litoral rumo ao interior. Estava, enfim, esboçado o desenho do
projeto: o grupo faria uma viagem para o interior do país, até o limite de suas últi-
mas fronteiras, e criaria uma peça a partir desta expedição-experiência.
Partiu-se, então, para a escolha da equipe de criação. Diferentemente dos proces-
sos anteriores, o primeiro passo foi a busca do dramaturgista, a fim de que ele pudes-
se auxiliar, desde logo, na escolha do escritor e nas primeiras abordagens teóricas do
projeto. Foram convidados a professora e pesquisadora Sílvia Fernandes e o diretor e
121

dramaturgo Ivan Delmanto para ocuparem essa função.


Em seguida, houve o encontro com vários potenciais dramaturgos, a saber, Ber-
nardo Carvalho, Ferréz, João das Neves, Márcio Souza e Milton Hatoum. O interesse
do grupo oscilou entre escritores associados, de alguma forma, às regiões geográficas
envolvidas no projeto, e outros, cuja obra compreendesse alguma filiação ao gênero
“literatura de viagem”.
Considerou-se, também, a possibilidade de convidar três dramaturgos diferentes
para a escritura da peça. Tal perspectiva não estava vinculada apenas à equivalência
numérica em relação aos locais escolhidos. Representava, também, a oportunidade de
retomar a parceria de trabalho com Luís Alberto de Abreu e Fernando Bonassi – que
se associariam, por sua vez, a um terceiro dramaturgo. Contudo, esta idéia foi abando-
nada mais tarde, pois se julgou que melhor do que uma tríade heterogênea de visões
dramatúrgicas, seria mais desafiador a presença de um único escritor que pudesse
estabelecer as conexões entre aqueles diferentes lugares. Após várias reuniões – algu-
mas delas, polêmicas – a escolha do grupo recaiu sobre o autor Bernardo Carvalho.
Esse período preparatório marcou, ainda, as primeiras incursões da companhia
em Brasilândia. Estabeleceu-se contato com agentes culturais e sociais que trabalha-
vam na região e, por meio deles, foi possível conhecer e se aproximar dos líderes co-
munitários locais. A partir desses encontros, definiu-se conjuntamente – o Teatro da
Vertigem e as lideranças do bairro –, a forma de atuação do grupo ali dentro. Ou seja,
os dias de trabalho, os tipos de oficina, os locais onde seriam ministradas as aulas, os
mecanismos de divulgação e inscrição, entre outros aspectos.
Outro ponto fundamental do projeto era a constituição de uma sede “avançada”
e temporária da companhia, no bairro. Por meio de negociações com os líderes lo-
cais, foi disponibilizada uma casa semi-destruída, pertencente à comunidade, que o
grupo deveria reformar para uso. O acordo proposto era que os recursos financeiros
alocados para a reforma do imóvel equivaleriam ao aluguel que seria pago por sua
ocupação durante um ano. Outro quesito do acordo, nesse caso condicionado pela
companhia, era que, quando da saída do Vertigem, ao final do ano de trabalho, aque-
le espaço deveria ser utilizado para atividades artísticas e educacionais.
Antes de se prosseguir e analisar os aspectos relativos ao percurso da encenação
de BR-3, é importante uma descrição mais detalhada da trajetória dos ensaios. Se an-
tes foi apresentado o mapa geral de desenvolvimento do projeto, pretende-se agora
realizar uma cartografia mais pormenorizada das etapas de criação, capaz de revelar
a sua estrutura reticular.
122

Fase da Pesquisa Teórica e de Campo22

Encontros com escritores (2003/2004)

• Márcio Souza: conversa sobre seu livro Galvez, O Imperador do Acre (15 de
dezembro de 2003);
• Bernardo Carvalho: conversa sobre o processo de criação dos romances
Nove Noites e Mongólia (20 de dezembro de 2003);
• Milton Hatoum: conversa sobre sua visão de Manaus e da região Norte,
além de discussão sobre seus dois romances, Relato de um Certo Oriente e
Dois Irmãos (13 de janeiro de 2004);
• João das Neves: conversa sobre sua experiência com tribos indígenas no
Acre (15 de janeiro de 2004);
• Bernardo Carvalho: segundo encontro com o escritor, destinado a apro-
fundar e esclarecer algumas questões de ordem artística, e a auxiliar o
grupo na tomada de decisão em relação à escolha do dramaturgo (18 de
janeiro de 2004);
• Ferréz: conversa sobre seu trabalho sócio-cultural no Capão Redondo, bair-
ro da periferia de São Paulo (24 de janeiro de 2004).

Oficinas e trabalho prático em Brasilândia (2004)

• Visitas às comunidades do bairro, ONGs e associações de moradores. En-


contros com líderes comunitários para a definição das oficinas, locais para
a sua realização e formas de divulgação e inscrição nas mesmas. Acompa-
nhamento da reforma da “sede” avançada do grupo (janeiro-fevereiro);
• Participação da companhia na festa do 57o Aniversário de Brasilândia, no
Largo da Pancada (24 de janeiro);

22 As fontes documentais utilizadas para o estabelecimento deste mapa do processo


foram: os cadernos de direção; os relatórios enviados à Secretaria Municipal de Cul-
tura, em razão da Lei de Fomento ao Teatro; os relatórios internos do grupo, e o
cronograma de atividades realizado pelo dramaturgista Ivan Delmanto. Sempre que
ocorreu alguma dúvida, lacuna ou contradição de informações optou-se pelos regis-
tros contidos nos cadernos de direção. Esta fase e a seguinte tiveram suas atividades
realizadas tanto em Brasilândia – na “sede” do grupo, situada no Jardim Paulistano,
e em vários outros locais no bairro – quanto na Casa Nº1, residência artística tempo-
rária da companhia, localizada no centro histórico de São Paulo, ao lado da Praça da
Sé, num projeto de parceria com a Secretaria Municipal de Cultura. O grupo ocupou
a Casa Nº1 de dezembro de 2002 a novembro de 2005, data do início dos ensaios aber-
tos de BR-3 no Rio Tietê.
123

• Encontro preparatório das oficinas, realizado com a líder comunitária Noê-


mia, coordenadora do Núcleo Sócio-Educativo Arte na Rua (29 de janeiro);
• Encontro com Márcia Barral, liderança política na região da Freguesia do
Ó, e subprefeita de Brasilândia durante o ano de 2003 (03 de fevereiro);
• Encontro preparatório com a professora Maria Lúcia Pupo, destinado à
orientação do grupo sobre princípios de teatro-educação, e ao auxílio no
planejamento e condução das oficinas (3 de março);
• Início das treze oficinas: teatro para crianças; teatro para adolescentes
(turmas 1 e 2); música; DJ; cenografia; iluminação; figurino; dramaturgia;
vídeo; formação de monitores; expressão corporal para mulheres e teatro
para a melhor idade. As aulas ocorriam uma vez por semana, durante todo
o ano – com exceção de julho –, sempre às terças-feiras, de manhã e à tar-
de (9 de março);
• Festa de lançamento do Projeto BR-3 e inauguração do Barracão Cultural
– nome dado à “sede” do grupo –, no Jardim Paulistano (11 de março);
• Início das atividades de livre-investigação: por meio de visitas, encontros,
entrevistas, caminhadas de reconhecimento, improvisações na “sede” da
companhia e no seu entorno, o grupo ia recolhendo material e experimen-
tando a vivência prática do lugar. Tais atividades ocorriam pelo menos
uma vez por semana, durante todo o ano – com exceção de julho –, às
quintas-feiras à tarde (18 de março);
• Visita à favela Vila Penteado, acompanhada da professora Márcia Apareci-
da da Silva e de seus alunos da Escola Municipal Théo Dutra (10 de abril);
• Segundo encontro com a professora Maria Lúcia Pupo, destinado à primei-
ra avaliação do trabalho nas oficinas (23 de abril);
• Encontro com médicos e terapeutas do Núcleo de Saúde Mental de Brasi-
lândia (30 de abril);
• Excursão pela Serra da Cantareira, guiada por alunos das oficinas (15 de
maio);
• Terceiro encontro com a professora Maria Lúcia Pupo, destinado à avalia-
ção do trabalho pedagógico desenvolvido até então (31 de maio);
• Encerramento da primeira etapa das oficinas: apresentação pública e con-
junta dos experimentos desenvolvidos ao longo do semestre, pelos alunos
de todas as oficinas (26 de junho);
• Início da segunda etapa das oficinas, além da realização de nova divulga-
ção para os cursos com excedente de vagas (10 de agosto);
• Encerramento da segunda e última etapa das oficinas: apresentação públi-
ca dos trabalhos desenvolvidos ao longo do ano, pelos alunos de todas as
oficinas, seguida de confraternização final entre os participantes e o grupo
(18 de dezembro).
124

Encontros com intelectuais e pesquisadores (1º semestre de 2004)23

• Antonio Nóbrega, ator e músico: discussão sobre a identidade e as matri-


zes do ator brasileiro (27 de janeiro);
• Márcia Aparecida da Silva, professora de geografia na Escola Municipal
Théo Dutra, em Brasilândia, e moradora do bairro: discussão sobre sua
tese de doutorado Percepção da Paisagem e Planejamento no Distrito da Brasi-
lândia – SP, apresentada ao Departamento de Geografia da FFLCH/ USP, em
2002 (22 de março);
• Marta Baião, atriz: relato de sua experiência de trabalho com psicodrama,
em Brasilândia e em outras regiões periféricas de São Paulo (13 de abril);
• Cibele Rizek, urbanista: discussão sobre urbanismo e políticas públicas na pe-
riferia de São Paulo. Sua fala recebeu o título de “Centro e Periferia, inclusão e
exclusão” (26 de abril);
• Pedro Fiori Arantes, arquiteto: encontro sobre as diferenças e contrastes
da arquitetura em Brasília e São Paulo (3 de maio);
• Suely Rolnik, psicóloga: discussão sobre políticas da subjetividade, capita-
lismo cognitivo e fetichização do objeto artístico (10 de maio);
• Wagner Hermuche, fotógrafo: apresentação e discussão sobre seu livro
Abstrata Brasília Concreta (17 de maio);
• Guilherme Wisnik, arquiteto: discussão sobre a obra de Lúcio Costa e a
utopia da arquitetura moderna (24 de maio);
• Luiz Recamán Barros, arquiteto: discussão sobre a construção de Brasília e
a modernização conservadora no Brasil (31 de maio);
• Maria Antonieta Antonacci, professora de história da PUC-SP: discussão
sobre o trabalho dos seringueiros no Acre (4 de junho);
• Airton Rocha, professor de história da Universidade Federal do Acre (UFAC):
apresentação de impressões e análises do Acre – e de Brasiléia –, do ponto
de vista de um acreano (18 de junho).

Conferências abertas ao público (1º semestre de 2004)

• “Territorialização da Pobreza e Precariedade Urbana em Brasilândia”, com


o sociólogo Pedro Aguerre (27 de fevereiro);
• Lançamento do Projeto BR-3, com o Teatro da Vertigem (03 de março);
• "Amazônia e Literatura", com o escritor Milton Hatoum (2 de abril);

23 Estes encontros ocorriam, via de regra, às segundas-feiras, das 20h00 às 23h00, na Casa
Nº 1, envolvendo todos os criadores e colaboradores do trabalho. Eles não eram abertos
ao público.
125

• "A forma difícil: artes plásticas no Brasil", com o crítico de arte Rodrigo
Naves (30 de abril);
• "Trem-fantasma: a modernidade na selva", com o pesquisador e crítico lite-
rário Francisco Foot Hardman (7 de maio);
• "Sociologia das religiões no Brasil", com o sociólogo Antônio Flávio Pieruc-
ci (14 de maio);
• "Tráfico e crime organizado no Brasil", com o juiz e ex-secretário nacional
antidrogas Walter Maierovich (11 de junho).

Viagem (julho-agosto de 2004)24

• Brasília: Visita ao Palácio do Planalto, ao Congresso Nacional e ao Palácio da


Alvorada. Reunião como o senador Tião Viana. Visita à Catedral da cidade, ao
Panteão da Pátria e ao Espaço Lúcio Costa. Encontro com o poeta Adão Lopes
Xavier, com os construtores-pioneiros, Sr. João Omar e Sr. Francisco Simões
Júnior (seu Chiquinho), com o historiador Luís Sérgio Duarte e com um gru-
po de teatro de Taguatinga. Visita à Favela Estrutural, ao Parque Nacional de
Brasília, ao Núcleo Bandeirante, à Ceilândia e ao Chaparral. Visita à Vila Pla-
nalto, bairro dos pioneiros de Brasília. Conversa com a socialite Moema Leão.
Seminário no CCBB, denominado “Visões de Brasília”, do qual participaram
o poeta TT Catalão, a urbanista Raquel Rolnik e a socióloga e professora da
UNB, Maria Angélica Madeira, discutindo a proposta do Projeto BR-3. Encon-
tro com o poeta Nicolas Behr e com o cineasta André Luís Oliveira. Visita ao
Vale do Amanhecer. Encontro e consulta com o pai Raul de Xangô. Palestra
do Teatro da Vertigem e encontro com representantes do movimento teatral
local. Participação em um ritual de danças circulares para a lua (somente as
mulheres). Visita ao Memorial das Idades dos Povos do Brasil, criado pelo his-
toriador Paulo Bertran (1 a 7 de julho);
• Serranópolis: Caminhada pela cidade acompanhada do vereador Théo. Vi-
sita às pinturas rupestres. Visita ao sítio arqueológico Arara Azul. Conversa
com violeiros e sanfoneiros da cidade. Oficina teatral ministrada pelo Teatro
da Vertigem na Escola Municipal JK. Visita ao famoso “puteiro” da cidade
(somente os homens) (8 de julho);
• Cuiabá: Reunião no SESC Arsenal. Caminhada pela região portuária e
margens do Rio Cuiabá. Visita ao Museu do Rio, ao Monumento do Centro

24 Foi publicado um diário de viagem, na Folha Online, escrito pelo dramaturgista Ivan
Delmanto, no qual ele relata impressões pessoais e tece análises sobre sua experiên-
cia durante o percurso. O endereço do site é:http://www1.folha.uol.com.br/folha/espe-
cial/2004/teatrodavertigem/diario_de_viagem.shtml
126

Geodésico e à Casa do Artesão. Participação em festa junina na periferia da


cidade, na qual se apresentaram grupos de siriri (dança) e cururu (música),
manifestações folclóricas regionais. Visita à Chapada dos Guimarães (9 de
julho);
• Vila Bela da Santíssima Trindade: Conversa com moradores da cidade.
Visita às ruínas de uma igreja de 1752. Encontro com Dona Nemésia, uma
das moradoras mais antigas de Vila Bela, e organizadora da Festa do Divi-
no, da Dança do Chorado e da Dança do Congo. Visita a um circo mam-
bembe em apresentação na cidade, o Circo Fantástico (11 de julho);
• Ji-Paraná: Caminhada pela cidade e visita ao teatro local (12 de julho);
• Porto Velho: Estadia em uma pequena comunidade do Santo Daime. Pas-
seio de barco pelo Rio Madeira. Visita ao Museu Ferroviário e aos escom-
bros da ferrovia Madeira-Mamoré. Encontro com a pesquisadora Arneide
Cemin, estudiosa do Santo Daime e de suas ramificações e dissidências no
Brasil (Ceflures; Colônia 5000; Céu do Mapiá; Barquinha; União do Vegetal).
Encontro com João Ribeiro Nogueira, líder religioso do Centro Eclético de
Correntes da Luz Universal, ligado ao Santo Daime. (13-14 de julho);
• Rio Branco: Visita aos pontos turísticos da cidade e aos marcos da guerra
contra a Bolívia. Visita à Rua Eduardo Assmar, à Gameleira, à Casa dos Po-
vos da Floresta, à Casa do Artesão e ao Museu da Borracha. Caminhada pelo
Bairro Pá Pôco e pela Praça da Bandeira. Palestra do Teatro da Vertigem e
encontro com representantes da classe teatral local. Visita à comunidade
original do Santo Daime, localizada em Alto Santo, região na periferia de
Rio Branco, e encontro com Dona Peregrina, esposa do Mestre Irineu Ser-
ra (criador do Santo Daime). Encontro com o historiador Marcos Vinícius
Neves, chefe do Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural do Acre.
Visita à Colônia Souza Araújo, leprosário de Rio Branco. Visita e livre-inves-
tigação na periferia da cidade, em especial no Bairro Chico Mendes. Conver-
sa com os professores de história da Universidade Federal do Acre, Gérson
Souza e Airton Rocha. Participação em cerimônia do Santo Daime, em Alto
Santo. (15 a 20 de julho);
• Porto Acre: Viagem de barco pelo rio Acre até o seringal Bom Destino.
Visita a uma casa dos índios Apuanã. Visita ao “memorial” da Revolução
Acreana, em Porto Acre (19 de julho);
• Seringal Dois Irmãos: Estadia e pernoite na reserva extrativista, próxi-
ma a Xapuri. Conversa com seringueiros. Visita a “estradas de seringa” e
acompanhamento do trabalho de retirada do látex. Realização de oficina
teatral com os filhos dos seringueiros (20-21 de julho);
• Xapuri: Visita à casa de Chico Mendes. Conversa com sindicalistas e ex-se-
ringueiros do PT local. Visita ao pólo moveleiro de Xapuri. Visita à Fundação
127

Chico Mendes. Visita ao “museu” do Sr. Antônio: dois galpões com todos os
tipos de vestígios, jornais, garrafas, rótulos e sucatas, colecionados há vários
anos por ele. Encontro com o irmão de Chico Mendes, no Sindicato dos Tra-
balhadores Rurais (21-22 de julho);
• Brasiléia: Visita à Rua da Goiaba e conversa com vários moradores antigos
da cidade, como Dona Oceana, Seu Dadá e Seu Sebastião. Noite no Forró
da Cacilda. Visita ao Seringal Bom Sucesso. Encontro com o historiador
Marcos Fernando. Encontro com o Dr. Tufic, representante da comunidade
libanesa local. Encontro com Iamar Pinheiro, filha de Wilson Pinheiro, e
com o líder seringueiro Osmarino Amâncio. Visita a Epitaciolândia, cidade
fronteiriça “rival” de Brasiléia e encontro com Gislene Salvatierra. Acom-
panhamento da eleição para presidente do sindicato dos seringueiros de
Brasiléia e entrevista com integrantes das duas chapas. Visita ao Centro
Cultural de Brasiléia. Livre-investigação da cidade e encontro com diversos
moradores (entre os quais, parteiras, benzedeiras, seringalistas, delegado
de polícia, radialista, prefeito, etc.), realizados individualmente ou em du-
plas (22 de julho a 01 de agosto);
• Assis Brasil: Visita à tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Bolívia. Parti-
cipação na Festa de Congraçamento dos Povos. Estadia por dois dias, de
parte do grupo, na aldeia indígena dos Jaminawa (24 de julho);
• Cobija: Visita à cidade boliviana que faz fronteira com Brasiléia. Visita ao
Cristo Seringueiro, na Igreja Nuestra Señora Del Pilar. Encontro com a “Rai-
nha Mariana”, uma louca de rua, na praça central da cidade (27 de julho);
• Rio Branco: Encontro com Gregório Filho, presidente da Fundação Elias
Mansour. Primeira avaliação da viagem. Volta a São Paulo. (02-03 de agosto).

Fase de Criação do Texto/Criação da Cena25

Criação do argumento e do canovaccio (2º semestre de 2004)

• Bernardo Carvalho trabalha individualmente na escritura do argumento


ou sinopse do enredo. Início da segunda etapa das oficinas em Brasilândia
(agosto);

25 Após a viagem ao Acre, o Teatro da Vertigem interrompeu temporariamente o Projeto


BR-3, a fim de apresentar a íntegra da Trilogia Bíblica, no Festival Internacional de Belo
Horizonte (FIT-BH), em agosto de 2004. Tal intervalo foi utilizado como período de tra-
balho individual para o dramaturgo Bernardo Carvalho, a fim de que ele pudesse apre-
sentar uma proposta de argumento para o grupo, no início de setembro. As oficinas em
Brasilândia foram retomadas em agosto, mesmo sem a presença de toda a companhia.
128

• Análise e discussão da proposta de argumento elaborada pelo dramaturgo (se-


tembro);
• Improvisações a partir de situações do argumento. Improvisações e
workshops baseados nos diários de viagem de cada um dos atores. Realiza-
ção de ensaios dedicados às personagens centrais do argumento, nos quais
todos os atores experimentaram cada uma das personagens. Realização de
workshops específicos sobre Brasilândia, Brasília e Brasiléia. Estruturação
do canovaccio, compreendido como organização das ações e personagens
(outubro a dezembro);
• Processo de seleção dos estagiários de Direção e de Direção de Arte (outubro);
• Processo de seleção dos estagiários de Interpretação e de Produção. Iní-
cio dos estágios de Direção e de Direção de Arte. Realização de quatro
workshops intensivos de interpretação: “Dança”, com Ricardo Iazetta; “Más-
cara Neutra”, com Cuca Bolaffi; “Canto”, com Laércio Resende e “Antropo-
logia Pessoal”, com Marcelo Gabriel (novembro);
• Treinamento de Máscara Neutra, com Cuca Bolaffi. Início dos trabalhos
com o xamã Lynn Mário Menezes de Souza. Encerramento das oficinas em
Brasilândia (dezembro).

Criação do roteiro (janeiro a março de 2005)

• Início da segunda etapa do processo de criação, visando à estruturação


do roteiro. Tal trabalho foi também realizado a partir de improvisações
e workshops, tendo como base tanto o argumento e o canovaccio quanto a
experiência da viagem. Processo de seleção dos estagiários das outras áre-
as de criação e início oficial de todos os estágios de acompanhamento – à
exceção dos de Direção e Direção de Arte que se iniciaram no final do ano
anterior (janeiro);
• Distribuição dos papéis. Elaboração da versão final do roteiro, a partir das
contribuições e sugestões de todos os integrantes do projeto (fevereiro);
• Encerramento da segunda etapa do processo de criação dramatúrgica, por
meio da encenação da versão final do roteiro – realizado na íntegra e sem
interrupções. É importante notar que todas as falas e marcações eram ain-
da improvisadas. Duração: 6 horas (11 de março);
• Recesso para que Bernardo Carvalho escrevesse os diálogos da primeira
parte do texto. Período de descanso para os atores (2ª quinzena de março).
129

Escritura do texto e criação das cenas (abril a julho de 2005)

• Início da montagem da primeira parte do texto. Todas as sextas-feiras


ocorria a apresentação das cenas levantadas durante a semana. Esta etapa
compreendeu um espaço de experimentação não apenas para o texto e a
interpretação, mas também para as demais áreas de criação: direção, luz,
música, cenário e figurino (abril);
• Escritura e montagem da segunda parte do texto (maio-junho);
• Corrido integral da primeira versão do texto – composta pela reunião da
primeira e segunda parte. Nesta apresentação, os diálogos e as falas já se
encontravam memorizados pelos atores, e havia também um esboço de
marcação. Duração: 4 horas, sem interrupção (11 de julho);
• Período de descanso de 15 dias para os atores e demais criadores (2ª quin-
zena de julho).

Ocupação cênica do Rio Tietê (2º semestre de 2005)

• Primeiras visitas de reconhecimento ao Rio Tietê, realizadas por cada área


de criação, isoladamente, como também por todo o grupo junto, incluindo
aí os estagiários. Produção da segunda versão do texto, com reelaboração
dos diálogos e da estrutura, em função das sugestões levantadas após o cor-
rido do mês anterior (agosto);
• Trabalho de investigação e de apropriação cênica do Rio Tietê, por meio de
improvisações e workshops. Esta etapa consistiu na busca da definição do
percurso, do sentido da navegação e do local específico para cada cena. Foi
realizado também um estudo da duração dos deslocamentos e da logística
de transporte de atores e técnicos (setembro-outubro).

Diálogo com o público (novembro de 2005 a junho de 2006)

• Realização de ensaios abertos: ao final de cada apresentação os especta-


dores eram convidados a preencher um questionário, por meio do qual
apontavam problemas e sugestões de mudança. Esses questionários eram
avaliados cuidadosamente e discutidos com as áreas de interesse. Em
caso de pertinência, as críticas e proposições por eles levantadas eram
incorporadas ao espetáculo (novembro-dezembro);
• Remontagem da cenografia, luz e som, em função da pausa de fim de ano.
A partir da experiência dos ensaios abertos e do feedback recebido, houve a
130

realização de várias melhorias técnicas. Todo o foco do trabalho, durante


o mês de janeiro, esteve concentrado apenas nos aspectos materiais da
montagem, pois, como parte do acordo firmado com o DAEE26, não pode-
ria haver ensaios no período crítico de chuvas (janeiro);
• Retomada dos ensaios no rio, visando aos seguintes objetivos: realização
dos ajustes finais, aprimoramento da logística de cena – no sentido de
resolver a equação atores e contra-regras + deslocamentos nas margens +
trajetos das embarcações –; ensaios técnicos; detalhamento da interpreta-
ção e redução do tempo total do espetáculo (fevereiro);
• Estréia de BR-3 (24 de março de 2006);
• Temporada de dois meses e meio, interrompida abruptamente no início
de junho, em razão da elevação do valor de aluguel dos barcos (até 04 de
junho de 2006).

É importante relembrar que, apesar deste mapa de percurso apresentar as eta-


pas de BR-3 numa seqüência cronológica, elas devem ser pensadas integradamente,
como nós ou picos de uma rede, em constante e contínua contaminação. Em outras
palavras, devemos ser capazes de interconectar esses pontos, de pensá-los enquanto
acontecimentos geminados, frutos, não apenas, de uma lógica causal. O tempo da
criação artística não é linear, e segundo Salles, “qualquer momento do processo é
simultaneamente gerado e gerador (...), e a regressão e a progressão são infinitas”27.
Do percurso apresentado, elegemos alguns aspectos que concernem – direta ou
indiretamente – à condução do trabalho e ao campo de ação do encenador. Procura-
mos, também, apontar algumas crises e contradições, já que elas se constituíram em
linhas de força motrizes na materialização da própria peça.
Um dos pontos mais problemáticos do processo referiu-se à relação entre os atores
e a dramaturgia. Uma parte disso, é claro, pode ser associada ao temperamento forte e
às vezes beligerante do dramaturgo e, por outro lado, às manifestações egóicas dos ato-
res em relação às suas personagens. Porém, é possível identificarmos outras causas
igualmente significativas. Uma delas concerne à nostalgia do processo de Apocalipse
por parte dos atores. Pela natureza do que nos propusemos naquele momento, além
do próprio modo como Fernando Bonassi operava, os atores tiveram uma enorme
interferência na primeira fase de criação da peça. Como já descrito, não existiu ne-
nhuma proposta a priori por parte do dramaturgo, e o que se consolidou como texto
de Apocalipse foi fruto direto dos três workshops iniciais.
Nesse sentido, a dramaturgia de Bonassi é explicitamente mais generosa em relação
às sugestões dos atores e suas necessidades. Ela consegue concretizar – e talvez mais

26 Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado de São Paulo.


27 salles, c. a., Redes da Criação: construção da obra de arte, p. 26.
131

do que isso, estampar – as múltiplas interferências dos intérpretes e do diretor na


construção da peça. Contudo, apesar de menos aparente, o texto de BR-3 também
incorpora vários elementos provenientes das improvisações e workshops, além de dia-
logar com o feedback e as sugestões da direção.
Não podemos nos esquecer que, apesar das diferenças de temperamento, estilo
e metodologia de trabalho, o dramaturgo é convidado pelo Teatro da Vertigem para
participar de uma dinâmica coletiva de criação. Tal dinâmica, contudo, pode assumir
distintas formas de funcionamento, sem ter que obedecer a alguma regra “ideal”,
estabelecida de antemão. Existe apenas um princípio de base: o projeto do grupo é
anterior à escritura da dramaturgia. Ou seja, a peça não tem papel fundador nem
funciona como ponto de partida. Por outro lado, porém, ela não é mero pretexto e
nem está subordinada aos caprichos da encenação. Em outras palavras, o dramatur-
go escreve a partir de um projeto cênico grupal a ele apresentado – e não a partir de
uma encenação previamente imposta.
Segundo a análise de Ana Rebouças, “o texto é pensado e estruturado em função
do processo de criação, resultando na inscrição de uma poética cênica, ainda que
virtual”28. Poderíamos afirmar, nesse sentido, que a dramaturgia contracena com a
encenação, e vice-versa.
Bernardo Carvalho, num movimento aproximado àquele de Luís Alberto de Abreu,
trouxe um argumento narrativo como base para o desenvolvimento da dramaturgia.
Na verdade, ele o fez com muito menor incisão do que Abreu, na medida em que este
último já apresentou a primeira versão integral do texto, logo após o mês inicial de
ensaio. Sintomaticamente, Jó e BR-3 são peças em que o elemento narrativo é estru-
turador, o que solicita do dramaturgo a prévia visão global da história, sob pena de o
enredo não lograr comunicação ou se plasmar de forma flácida e claudicante.
Aliás, nos dois encontros iniciais com Carvalho, ainda antes da escolha de seu
nome como escritor do projeto, houve uma única condição imposta por ele: escrever
uma história com começo, meio e fim. Não lhe interessava, portanto, uma drama-
turgia de fragmentos, composta por cenas autônomas e isoladas, e com personagens
que não cumprissem uma trajetória. Apesar de certas divergências e dúvidas, sur-
gidas nesses encontros, o grupo concordou com o pré-requisito narrativo e tomou,
conjuntamente, a decisão de convidá-lo como dramaturgo.
Talvez não tenha ocorrido a alguns atores, naquele momento, que a concordância
com essa condição significaria deixar a cargo do escritor, em primeira instância, a

28 silva, a. m. r. r. Poética Cênica na Dramaturgia Brasileira Contemporânea, p. 32. A propósito


da tensão entre dramaturgia e encenação, Rebouças afirmará, na p. 116 desta disserta-
ção, que “N’O Livro de Jó percebe-se a existência de dois sistemas paralelos (texto e cena)
que às vezes apresentam pontos de contato que colaboram para conduzir a narrativa
(como na metáfora do tempo) e outras vezes se contrapõem, tornando-se evidente a
justaposição ou contraposição dos dois sistemas (como na metáfora do espaço)”.
132

composição do argumento e a estruturação do enredo. Além disso, a referência do


processo anterior – baseado, como vimos, em outros parâmetros – era ainda muito
forte (na verdade, a única, pois muitos dos atores não viveram o processo de constru-
ção de O Livro Jó). Tal contexto, portanto, foi gerando comparações a todo tempo e de
toda ordem, instaurando uma espécie de “saudades do Apocalipse” que, ao fim e ao
cabo, se revelavam injustas com ambos os processos.
Primeiramente, porque a construção de Apocalipse 1,11, apesar de intensa e esti-
mulante, não foi tranqüila e sem conflitos. No momento em que Bonassi, por exem-
plo, realizou cortes expressivos no texto, muitos dos atores ficaram sem lhe dirigir
a palavra durante várias semanas. Em segundo lugar, esperar ou cobrar de BR-3 uma
dinâmica não inerente à sua natureza, só poderia gerar insatisfações e frustração de
expectativas.
Os atores reclamavam que não eram ouvidos pelo dramaturgo e que não perce-
biam suas proposições sendo incorporadas ao texto. Acrescido a isso, havia um fator
agravante: a dificuldade de compreensão ou de aceitação do conceito proposto pelo es-
critor para as personagens da peça. Por exemplo, um caráter introvertido, com poucas
falas, e sem justificativas claras para seu comportamento, era lido pelos atores como
“má dramaturgia”. Outras vezes, a resistência era fruto da dificuldade em lidar com a
própria materialidade do texto, como se faltasse – na visão dos intérpretes – “emboca-
dura teatral” à peça. Por fim, o sofisticado jogo de quebra-cabeça da história e o trans-
bordamento narrativo da peça eram criticados por filiação supostamente indevida ao
universo do cinema ou da literatura – como se a dramaturgia contemporânea já não
tivesse explodido as fronteiras de linguagem e as molduras dramáticas tradicionais.
Por sua vez, o dramaturgo se via desrespeitado pela maneira como os problemas
eram colocados em grupo e se sentia injustiçado por determinadas avaliações feitas
em relação ao texto. É sintomático o artigo escrito para o jornal francês Libération, in-
titulado “Eu odeio os atores”. O tema central desse artigo é justamente a descrição de
sua experiência no processo de BR-3. Nele, apesar do tom bem-humorado, Carvalho
não deixa de expor seus problemas com os intérpretes:

Nós estamos na fase das improvisações [...]. Eu não agüento mais [...]. Para minha
estupefação, a minha trama inicial se modifica pouco a pouco, e, freqüentemente,
para pior – sobretudo quando as improvisações são confiadas a algum dos trinta
jovens atores estagiários [...]. Eles me dizem que isto faz parte do processo. E que
sou eu quem deve se adaptar. [...] É difícil controlar a minha expressão de frustra-
ção e de ódio, para não falar do meu desespero [...]29.

A franqueza do dramaturgo, perceptível no referido artigo, trouxe-lhe vários desa-

carvalho, b. “Je hais les acteurs”. In: Libération, 5 e 6 de março de 2005, p. 45.
29 �������������
133

fetos ao longo dos ensaios. Talvez por sua pequena prática em dinâmicas de criação
grupal, Carvalho demonstrou maior dificuldade tanto para lidar com os humores e
instabilidades dos outros criadores, quanto para assimilar o ininterrupto jorro propo­
sitivo do processo. Diversas vezes, inclusive, em razão da ênfase com que defendia
seus pontos de vista, a sua convicção era interpretada como rigidez ou intransigência.
Esse conjunto de aspectos acarretou, infelizmente, o crescente distanciamento entre
atores e escritor.
As rusgas e polêmicas advindas do embate desses dois pólos atravessaram todo
o processo, já desde a apresentação inicial do argumento. Nos momentos de maior
acirramento do conflito, a encenação ocupava um papel de mediação e de gerencia-
mento da crise. Contudo, tal função apaziguadora teve um custo artístico – e pessoal
– alto. Muito do tempo destinado à criação foi subtraído para discussões do relacio-
namento grupal, esfriamento dos ânimos ou intermináveis convencimentos sobre a
qualidade das proposições. Nunca antes essa figura de “diretor-bombeiro” havia sido
tão requisitada nos processos de trabalho do Vertigem.
Este teor polêmico, interno ao grupo, também ocorreu durante a recepção. A dra-
maturgia de BR-3 foi muitas vezes atacada como o “problema” do espetáculo. Curio-
samente, essa avaliação negativa – a nosso ver, injusta – também recaiu sobre o texto
de Apocalipse 1,11. Tal reincidência crítica suscita um questionamento: em que medida,
no diálogo entre dramaturgia e encenação, determinadas opções cênicas acabam por
dificultar a leitura da dimensão textual? Se, por um lado, na dinâmica colaborativa, é
absurdo dissociar essas duas instâncias, por outro, a encenação pode criar “obstáculos”
à compreensão, como por exemplo, ao optar por um espaço não-convencional.
No caso de BR-3, a dramaturgia colocava um enorme desafio para a encenação, con-
cernente à comunicação – ou à explicitação – de sua complexa narrativa. Como fazer
com que a platéia pudesse acompanhar o entrecho e as reviravoltas daquela saga bra-
sileira? Como encenar uma peça-romance ou uma peça-filme? Talvez, uma possível
solução fosse a da concentração do foco ou a da limpeza na linguagem cênica. Contudo,
ao contrário, a encenação também ela se caracterizou por uma dimensão épica. O re-
sultado, então, nesse caso, foi marcado pela justaposição de transbordamentos cênicos
e narrativos. O que, de novo, nos faz questionar: tal conjugação – por seu caráter dupla-
mente excessivo – não provocaria ruídos de leitura para ambas as instâncias?
Por outro lado, a experiência cênico-fluvial do espetáculo não espelharia – e, portanto,
intensificaria – a viagem das personagens, no plano ficcional? Ou ainda, o périplo pelo Tietê
não agregaria um fator de vivência ou de “realidade” para os espectadores, potencializando
– e materializando – o caráter de epopéia da narrativa? Esses questionamentos suscitam
considerações controversas, pois as mesmas opções de direção podem, simultaneamente,
– e às vezes, dentro da mesma cena –, dificultar e contribuir para o fortalecimento de aspec-
tos da dramaturgia. Nesse sentido, sem pretender estabelecer um juízo definitivo sobre a
questão, cabe-nos, ao menos, apontar a existência de tal tensão no espetáculo BR-3.
134

Outro ponto passível de discussão refere-se à pesquisa teórica. Como ocorrera em O Paraí-
so Perdido, o grupo parece ter novamente se estendido em demasia na quantidade de leituras,
encontros e seminários. O problema, talvez, não resida no excesso de material teórico estu-
dado – diferentes e múltiplas informações podem provocar os criadores de forma imprevi-
sível –, mas, sim, na duração ou estruturação desta etapa dentro do processo. Por exemplo,
se ao invés de seis meses ininterruptos de um módulo de palestras e debates, houvesse a
alternância com momentos práticos de criação, o aproveitamento das informações em sala
de ensaio e a sua incorporação à própria feitura da obra poderiam ter sido maximizados.
As oficinas em Brasilândia significaram outro grande aprendizado nas intervenções
pedagógicas do grupo. Nunca antes tínhamos realizado, com tanto cuidado, o plane-
jamento e a aproximação a uma comunidade específica. Desde a escolha do que seria
desenvolvido até a orientação por parte de uma profissional especializada na área (Ma-
ria Lúcia Pupo), a tentativa do grupo foi a de buscar um diálogo consistente e maduro
com os moradores locais. Procurou-se fugir da lógica “oficineira” – em geral associada
à obrigatoriedade de contrapartida social –, que substitui a qualidade da experiência
pelo mero cumprimento de tarefa assistencial.
Além disso, o dia-a-dia das oficinas trouxe desafios enormes. Por exemplo, como
conduzir uma experiência de criação literária com alunos mal-alfabetizados, pouco
interessados na escrita e cujo principal meio de expressão se dava pela oralidade?
Ou ainda, como estimular a invenção de figurinos em alunos que pretendiam apenas
aprender a costurar? As faltas constantes, os abandonos temporários ou definitivos
e a entrada de novos alunos durante todo o tempo de duração das oficinas, fizeram
parte dos percalços com os quais o grupo teve que aprender a lidar. A realidade, ali,
era bastante distinta das experiências pedagógicas em escolas formais, e mesmo dos
workshops e cursos livres já ministrados pela companhia.
Houve também a preocupação com a continuidade ou permanência das atividades
iniciadas pelo grupo. Procurou-se, por exemplo, identificar lideranças dentro das classes
e fornecer-lhes um apoio suplementar de formação, a fim de que os trabalhos pudessem
ter prosseguimento sem a presença do Vertigem. A oficina de cenografia realizou, inclu-
sive, uma intervenção no próprio local do curso, com o objetivo de melhorar, visual e
espacialmente, as condições físicas do ambiente30. Houve ainda a organização de uma
série de atividades extraclasse como visitas a museus, teatros, empresas de som ou luz,
no sentido de ampliar a visão dos alunos em relação à arte e ao teatro.

30 � Segundo o relato de Márcio Medina, coordenador desta oficina, houve “um trabalho, em
mutirão, com a comunidade local, de limpeza do terreno em torno da Casa de Cultura.
Cada aluno ‘adotou’ uma pedra, que pintou de branco, desenhou com carvão e depois fez a
sua pintura. Nessa última fase, pintamos externamente a unidade e, com a participação de
grafiteiros locais, os alunos desenharam e pintaram imagens e mensagens sobre diversos
temas levantados por eles, tais como cidadania, preservação da natureza, diferenças”, in
fernandes, s.; audio, r. Teatro da Vertigem – BR-3, São Paulo: Perspectiva/edusp, 2006, p. 98.
135

Outro aspecto desta experiência pedagógica foi a integração de alunos ao espetá-


culo BR-3, tanto no âmbito artístico – como atores ou assistentes de direção de arte –
quanto na área técnica. É o caso, por exemplo, dos intérpretes Bruno Batista e Denise
de Almeida, que se associaram ao espetáculo, mantendo um vínculo de relação com a
companhia. Mesmo os alunos que não foram incorporados, contribuíram de alguma
forma, para a criação do espetáculo, seja por meio de suas histórias ou relatos, seja
pelo auxílio que prestaram ao grupo no diálogo com a comunidade. Desde o início
todos sabiam das intenções do projeto e foram convidados a ajudarem ou a partici-
parem como co-criadores de BR-3. Houve oficineiros ainda que foram indicados para
outras companhias teatrais, na condição de operadores de luz ou técnicos de som.
A idéia da viagem, como vimos, foi um elemento axial neste processo e trouxe
contribuições significativas para o encenador, desde imagens até materiais de uso cê-
nico concreto. O périplo de São Paulo até o Acre trouxe, ainda, o ato mesmo de viajar
como um dos motores de criação do espetáculo, e a questão da identidade – conceito-
chave da encenação – adquiriu nessa experiência um campo privilegiado para a sua
investigação. Segundo bem observa o filósofo Sergio Cardoso, as viagens

[...] assinalam sempre desarranjos internos ao próprio território do viajante, advin-


dos das fissuras e fendas que permeiam sua identidade. [...] Pois, as viagens, na
verdade, nunca transladam o viajante a um meio completamente estranho, [...] mas,
marcadas pela interioridade do tempo, alteram e diferenciam seu próprio mundo,
tornam-no estranho para si mesmo. [...] O estranhamento das viagens não é nunca
relativo a um outro, mas sempre ao próprio viajante. [...] O “estrangeiro” está sem-
pre já delineado – latente e invisível – nas brechas da nossa identidade, na trilha
aberta por nossa própria indeterminação.31

Para além das “armadilhas” presentes em empreitadas desta natureza – como a mera
contemplação turística ou o extrativismo predador de informações – um aspecto cen-
tral de nossa experiência foi a realização de uma viagem coletiva. Dezoito pessoas viajan-
do juntas, durante cerca de trinta e cinco dias, rumo ao Brasil profundo. Esta vivência
comunitária, este cruzamento cotidiano de impressões, este compartilhamento de inti-
midades – acordávamos juntos, tomávamos as refeições em horários semelhantes, divi-
díamos os banheiros, viajávamos durante horas a fio, um ao lado do outro–, foi tecendo
uma base comum para o processo e a criação que se descortinavam à nossa frente.
Além disso, o foco inicial da pesquisa foi adquirindo novos contornos. Além de
Brasilândia, Brasília e Brasiléia, outras cidades ou pontos de parada no percurso, fo-
ram ganhando importância. A experiência das distâncias e dos trajetos de ligação

cardoso, �s. “O olhar viajante (do etnólogo)”. In: novaes, a. (org.), O Olhar. São Paulo: Cia.
31 ����������
das Letras, 1988, p. 347-360.
136

também se afirmou como tema nuclear, quase equivalente à das três localidades
escolhidas. BR-3, portanto, falaria de uma jornada e de um grupo de artistas-viajantes,
à luz da contaminação provocada pela vivência de determinados lugares, e dos deslo-
camentos geográficos entre eles. O prefixo “brasil” não apenas unificava o percurso,
mas também flagrava tudo o que nele é separado, distinto e mal integrado.
Essa viagem coletiva foi tão marcante no processo que, de certa forma, ela vai de-
terminar o próprio suporte do espetáculo. O que é proposto aos espectadores, ao en-
trarem num barco e cruzarem 14 km de trecho urbano do rio Tietê, é justamente uma
experiência de deslocamento geográfico, de expedição pela cidade. BR-3 é uma “peça
de viagem” que espelha o deslocamento país adentro realizado pela companhia.
Quanto ao tratamento idealizado pela encenação para o tema da identidade nacio-
nal, pretendia-se passar ao largo de discursos patrióticos oficiais. O que interessava
ao grupo era a noção de identidades dinâmicas e móveis – ainda que essa mutabilida-
de ocorresse dentro de limites, sem se abrir indefinidamente. Refutava-se a idéia de
uma identidade nacional rígida, por se tratar de um conceito, via de regra, utilizado
como mecanismo de manutenção do poder, de controle sobre um grupo social, ou
ainda, como estratégia de manipulação política.
Além disso, discutir “identidade brasileira” a partir dos três locais escolhidos já
era, por si só, problemático. Brasilândia – ao contrário da Mooca, ou do Bixiga – não é
um bairro com características identitárias especialmente marcantes. Compõe, junto
com outras regiões periféricas da cidade, zonas urbanas com perfis assemelhados
de pobreza e exclusão. Brasília, ao contrário, apresenta traços arquitetônicos ímpa-
res, símbolos não só locais, mas nacionais. Porém, trata-se de uma cidade construída
artificialmente, “de cima para baixo”, refém de uma identidade forjada de antemão.
Brasiléia, por sua vez, é cidade de fronteira, de passagem, de trânsito entre brasilei-
ros e bolivianos. Uma cidade em que se fala português e espanhol, e onde essas duas
nacionalidades convivem e se estranham ao mesmo tempo.
Portanto, o projeto BR-3 tratava de três regiões onde a questão da identidade era
complexa e difícil de ser apreendida, pois ela se relativizava a todo tempo. Contudo,
essa zona do contraditório ou paradoxal, em que a identidade é problema, crise ou
quase impossibilidade, pareceu constituir um lugar privilegiado e estimulante para
discutir a “brasilidade”.
Foi-se encaminhando, então, para noções de identidade vinculadas a uma pers-
pectiva mais temporal do que geográfica, como se se tratasse de um “vir-a-ser” ou de
“instantâneos de identidade”, que se precipitam e evaporam a todo o momento. Nes-
se sentido, buscou-se materializar, no texto e na cena, identidades flutuantes, fluidas
e turvas, como o próprio rio onde a peça se passaria.
Daí porque tal abordagem ficava potencializada pelo espaço cênico proposto pelo
encenador. Os espectadores, colocados longe da terra firme, balançando de um lado para
outro dentro da embarcação, vivenciariam uma instabilidade física real, reflexo de iden-
137

tidades também oscilantes, fugidias e em constante trânsito, presentes no plano ficcio-


nal. O rio se movia, o barco se movia, os espectadores se moviam dentro dele, criando
um diálogo entre esta justaposição de movências e o deslizamento das identidades.
Tal instabilidade também se confirmava por outro elemento identificado ao longo
da pesquisa. Durante um ano, o grupo presenciou o estado de construção permanen-
te e de interminável canteiro de obras, nas ruas de Brasilândia. Essa obsessão constru-
tora vinculava-se à “arquitetura de sobreposições” da laje. Por outro lado, em Brasília,
flagrou-se uma arquitetura moderna cheia de rachaduras e goteiras, clamando por
preservação. Era como se a obra-edifício nunca estivesse concluída, fundada sempre
em um “entre”, ora em zona de perpétua fabricação, ora em estado de decadência
precoce. Uma obra que, se chegasse a nascer, já nasceria deteriorada. E que nos tor-
nava construtores ou restauradores, mas nunca habitantes. Essa condição identitária
em incessante edificação direcionará, por exemplo, o conceito dos figurinos, traba-
lhado a partir de uniformes da construção civil.
A viagem nos mostrou também que a “brasilidade” não residia apenas no plano da
língua ou de manifestações culturais específicas, mas aparecia na recorrente devas-
tação da natureza. Destruição esta, que era justificada pelo projeto de uma pretensa
– e sempre adiada – modernidade. Flagrou-se, portanto, uma identidade na e pela des-
truição, presente nos córregos poluídos de Brasilândia, nas favelas e assentamentos
ao redor do plano piloto, em Brasília, e nas castanheiras mortas, no meio de florestas
devastadas pelo agrobusiness, em Rondônia e no Acre.
Daí, mais uma vez, o porquê de o rio Tietê se configurar como o espaço ideal da en-
cenação. Rio quase sólido, moribundo, veia doente e inflamada no corpo da cidade, ele
materializava o símbolo perfeito do impulso predatório de certo projeto de modernidade.
Além disso, o Tietê é um não-lugar, invisível aos próprios cidadãos que passam pelas mar-
ginais diariamente. Esgoto a céu aberto criado por nossas próprias ações, insistimos em
não reconhecê-lo como obra nossa ou, simplesmente, viramos-lhe o rosto. Curiosamente
também, o Tietê é um rio que corre para dentro – daí a sua importância para os bandei-
rantes – o que, de certa forma, espelhava a viagem do grupo ao interior do país.
Colocar o espectador ali dentro significava obrigá-lo a olhar de frente a doença – a
sua e a da cidade –, a sentir o cheiro de enxofre e a reconhecer a sua ação predatória.
Com isso, pretendíamos injetar nele, o antídoto da anestesia. Por outro lado, este
“mergulho” no rio, significava também a sua redescoberta, a sua reconquista, a sua
inscrição, de novo, no mapa de percepções da urbis. Desejávamos que o espetáculo
pudesse “devolver” ao cidadão o rio da sua cidade. Ou, no mínimo, ressensibilizá-lo
para a sua presença e existência. Tal dimensão utópica, para o Vertigem, era mais
forte do que o desejo de ressignificação do rio enquanto espaço teatral.
Outro elemento do projeto poético de BR-3, ao qual não pudemos escapar – apesar
do pacto estabelecido pelo grupo no fórum que antecipou o início do processo –, foi
a questão religiosa. A presença das igrejas evangélicas em Brasilândia, das diversas
138

seitas místicas em Brasília (como se esquecer do “carnaval levado a sério” do Vale


do Amanhecer?) e do Santo Daime no Acre, fez com que voltássemos atrás em nosso
acordo inicial. Não era possível tratar desses três lugares – e nem dos trajetos entre
eles – sem abordarmos o problema religioso. Daí porque a condução do processo – ao
invés de se pautar por inflexíveis decisões tomadas de antemão – deve permanecer
sempre permeável àquilo que dele emerge.
Contudo, é importante ressaltar que a encenação, em nenhum momento, se propôs
à reprodução fotográfica ou à realização de um “teatro-documentário” sobre aqueles
lugares. Além de tal perspectiva trair uma indisfarçável arrogância cultural, ela contra-
ria o desejo de falarmos da nossa experiência em contato com tais localidades. Como
traçar um retrato do Distrito Federal se não moramos lá? Como documentar o Acre,
se não passamos mais do que dezoito dias nesse estado? E mesmo Brasilândia, apesar
de situada em São Paulo, nós só a “descobrimos”, com nosso olhar “estrangeiro”, em
função do projeto. Além do que, nossa atuação no bairro – ainda que bastante superior
à dos outros dois lugares – se restringiu ao curto período de um ano.
Portanto, pretendíamos falar apenas de certa Brasilândia, aquela que nos atraves-
sou e que contaminou nossa sensibilidade e imaginação. Isto é, a nossa Brasilândia,
moldada a partir da experiência concreta da companhia naquela região. Não é à toa
que, no resultado final do espetáculo, este bairro paulistano marcou uma presença
maior do que a da capital federal ou a da cidade acreana. Foi com ele que, apesar da
curta duração, estabelecemos o diálogo mais continuado e duradouro. Foi ali que es-
tivemos mais vezes, que trabalhamos mais tempo, e que conseguimos, ainda que em
escala reduzida, transformar e sermos transformados pelo ambiente.
Entre os temas de improvisação e workshop utilizados ao longo do processo, alguns
dos quais em diálogo direto com questões acima levantadas, poderíamos citar: “o que
é familiar e o que é estrangeiro”; “virar de costas é o primeiro movimento de rejeição
do outro”; “a recusa de uma identidade que não é sua”; “passeio por Brasilândia de
olhos vendados”; “relação mãe-filho: a Brasilândia que você não quer que seu filho
veja”; “Brasília imaginária”; “Brasiléia imaginária”, entre outros.
Em relação à interpretação, o conceito de identidade também funcionou como
elemento norteador. Foi em função dele que se optou pelo treinamento de másca-
ra. Partiu-se da técnica de máscara neutra – de acordo com a estruturação formula-
da pelo pedagogo francês Jacques Lecoq – passou-se pela meia-máscara, até que se
atingiu o treino com máscara expressiva32. Além das constantes trocas de identidade
propostas pela dramaturgia em relação às personagens, a encenação lançará mão do
uso de “máscaras de látex” e de “máscaras de fotos”. Tais máscaras deveriam ser cons-
truídas a partir dos próprios rostos dos atores, com o máximo de rigor mimético e

32 Para o desenvolvimento deste treino, o grupo contou com assessoria de Cuca Bolaffi
(máscara neutra) e de Daniela Biancardi e Luciana Viacava (máscara expressiva; análise
do movimento e jogo da máscara).
139

naturalista possível, a fim de materializar a discussão identitária proposta pela peça.


Essa sobreposição estranhada de caracteres iguais, em que o ator vestia uma máscara
que estampava a foto ou a imagem de seu próprio rosto, contribuía para colocar em
xeque ou em crise as percepções comuns sobre identidade. O naturalismo da repro-
dução mimética das feições dos atores era friccionado pelo paroxismo de teatralidade
advindo do recurso da máscara.
O elemento do risco físico também estava potencializado no espetáculo. Na verdade,
trata-se de um aspecto central no trabalho de ator do Vertigem. Interpretar ao ar livre, à
beira das marginais, em um rio poluído ou sobre margens inclinadas, colocava os atores
em constante estado de perigo. Muitas das cenas ocorriam sobre embarcações leves, às
quais se tinha que entrar e sair com rapidez, ou permanecer em pé dentro delas, dizen-
do o texto sem se desequilibrar. É claro que o risco de uma queda dentro d’água, em tais
condições, era iminente. Outras cenas, em terra firme ou nas margens, não eram menos
perigosas. As bermas de concreto inclinadas, a presença de ratos e baratas, o risco de
contaminação pela sujeira acumulada e, ainda, a atitude agressiva dos motoristas nas
marginais ou dos transeuntes sobre as pontes – inconseqüentes a ponto de jogar pedras
nas embarcações –, tudo isso gerava um estado de alerta e preocupação. A interpretação,
em tal contexto, exigia o aguçamento máximo da sensibilidade, a obrigação irrevogável
de se estar no aqui e no agora33, e o instinto de sobrevivência sempre à flor da pele.
Tais condicionantes, aliadas ao princípio autoral do trabalho do ator, à utilização
de elementos autobiográficos e à busca do desenvolvimento pessoal, intensificavam
a ligação do registro interpretativo com o universo da performance. A atuação aqui é
encarada menos como atividade profissional, e mais como campo de experiências. A
direção, por sua vez, também se encaminhou para uma concepção performática da
cena, ao dialogar com as irrupções do real e a especificidade do espaço, e ao inten-
sificar os aspectos de presença e de acontecimento. E mesmo a dramaturgia de BR-3,
apesar do caráter narrativo e da existência de personagens, também abriu espaço
para instâncias de performatividade34. Isto aparece, por exemplo, nos jogos que Ber-
nardo Carvalho estabelece entre a história do grupo ou os elementos biográficos de
seus integrantes com as personagens da peça.
É importante ressalvar que, apesar de todo o perigo real envolvendo a apresen-
tação do espetáculo, foi tomada uma série de medidas para impedir ou atenuar pos-
síveis acidentes. Os atores interpretavam com luvas, joelheiras, botas impermeáveis

33 � Este imperativo do “aqui e agora” gerava, curiosamente, um estado meditativo parti-


cular, não associado à tranqüilidade e ao repouso, mas sim à urgência e ao desconforto.
Chegamos a nos referir a ele como “estado meditativo de emergência”.
34 � Ana Rebouças, por outro viés, analisará a interferência do elemento performático em
Jó. Segundo ela, “é o que parece acontecer na concepção do espetáculo O Livro de Jó, que
apresenta uma estrutura dramática íntegra que é constantemente desestabilizada e
desestruturada pela performance, em uma dimensão fractal”, in silva, a. m. r. r., Poética
Cênica na Dramaturgia Brasileira Contemporânea, p. 116.
140

antiderrapantes e, principalmente, neste caso, com coletes salva-vidas, freqüente-


mente costurados aos figurinos, e feitos sob medida para o peso e as dimensões de
cada ator. Toda a equipe técnica e de criadores foi vacinada ou recebeu medicações
contra doenças passíveis de serem contraídas naquele ambiente (hepatite A e B; téta-
no e leptospirose). Além disso, foi contratado um técnico de segurança e, mais tarde,
um engenheiro de segurança, que propuseram soluções para os riscos identificados.
Também instruíram todo o grupo, por meio de encontros expositivos, alertas e de-
monstração de procedimentos, sobre noções básicas de segurança. Por fim, foram re-
alizados, ainda, inúmeros ensaios dedicados exclusivamente à apropriação do lugar.
Isso compreendia desde o entendimento técnico dos deslocamentos ou as subidas e
descidas dos barcos, até a busca de soluções alternativas para situações ou marcações
mais arriscadas.
A dificuldade na direção de atores residiu, muitas vezes, na troca de registros que
o texto ou a encenação pediam. Além das múltiplas identidades que caracterizavam
os personagens e da necessidade de trânsito de uma a outra – às vezes na mesma
cena –, também era exigida do ator uma alternância entre a construção e a não-cons-
trução, entre a formalização expressiva mais acentuada e a não-interpretação. Talvez
pela falta de experiência nesta última modalidade, alguns atores sentiam dificuldade
quando lhes era solicitado para “pararem de interpretar”, isto é, simplesmente dize-
rem o texto ou executarem um movimento com naturalidade. Além da dificuldade
técnica de realização deste registro, havia uma desconfiança em relação a ele, segui-
da, em geral, do sentimento – equivocado – de “perda” de qualidade interpretativa.
A própria condição espacial requeria flexibilidade na conformação expressiva do tra-
balho do ator. Por exemplo, as cenas apresentadas nas margens, com o barco do público
em posição mais afastada, solicitavam uma amplificação gestual diferente daquela reali-
zada dentro da embarcação, onde os atores se encontravam ao lado dos espectadores.
Outro difícil aprendizado para os intérpretes foi a relação com os microfones. Tan-
to as cenas das margens, em razão da distância da platéia e do barulho das marginais,
quanto aquelas no interior do barco principal, em função do ruído do motor, exigiam
o uso de amplificação eletrônica. Tal prerrogativa consumiu inúmeras horas de en-
saio, a fim de que houvesse clareza na captação das vozes e uma eficiente equalização
sonora dentro da embarcação. Além disso, o domínio técnico desses instrumentos de
mediação da voz causou significativos ajustes interpretativos. Por exemplo, em ce-
nas de alta voltagem emocional os atores estavam impedidos de gritar, sob pena de
danificarem os microfones de lapela ou de provocarem problemas de microfonia nas
caixas de som. Conseqüentemente, os intérpretes tiveram que aprender a construir
uma intensidade emocional dentro de uma faixa vocal reduzida35. Havia também o

35 �����������������������������������������������������������������������������������
O grupo contou com a assessoria vocal de Mônica Montenegro, que já havia trabalha-
do com a companhia em Apocalipse 1,11.
141

impeditivo, sob qualquer hipótese, de molharem os microfones e de falarem nos mo-


mentos em que não estivessem em cena – a fim de evitar vazamentos de som.
Durante o processo de construção das personagens foi realizada, como em Jó e em
Apocalipse, uma pesquisa de campo específica. Os atores, de acordo com seus papéis,
visitaram igrejas evangélicas, salões de beleza e delegacias de polícia, além de se
encontraram com pessoas associadas ao tráfico, adolescentes da FEBEM, pilotos de
barco, policiais, etc. O ator Sergio Pardal, inclusive, em função da personagem “Bar-
queiro”, chegou a realizar um curso de pilotagem de embarcações de pequeno porte,
prestou prova de habilitação e adquiriu uma carteira de piloto.
Quanto à distribuição dos papéis, ela apresentou caráter um pouco diferenciado
dos outros processos. Primeiramente, porque ao escrever o argumento, o dramatur-
go já tinha em mente os atores que poderiam desempenhar as suas personagens.
Ainda que não tivesse caráter obrigatório – e nunca o dramaturgo impôs tais escolhas
à direção – este era um dado contextual difícil de ignorar. Em segundo lugar, o fórum
que antecedeu o início dos ensaios trouxe à tona, por parte dos atores, desejos e desa-
fios interpretativos a serem enfrentados. Além disso, as improvisações do argumento
sugeriram novas possibilidades para essa relação ator-personagem, que vieram se
somar aos elementos acima levantados. Como em Jó, também houve um período em
que os atores experimentaram todas as personagens. Ao final, pelo fato de a direção
ter conseguido conciliar os diferentes critérios apresentados, a distribuição das per-
sonagens não provocou nenhuma grande polêmica ou insatisfação.
Infelizmente, o mesmo não pode ser dito em relação às etapas posteriores do pro-
cesso. À medida que o argumento ia se transformando no roteiro, as reclamações dos
atores – fruto do descontentamento com a dramaturgia – começaram a crescer.
Os problemas se intensificaram com a entrada dos estagiários de interpretação. De
forma semelhante a Apocalipse 1,11, houve estágios de acompanhamento em todas as
áreas de criação. Porém, a experiência, dessa vez, foi mais acidentada. Por exemplo,
o estágio de direção sofreu com a imaturidade dos participantes e com a falta de um
maior comprometimento deles com o trabalho. Entretanto, é importante que se diga,
os poucos que ficaram até o final36 apresentaram um inegável empenho e dedicação.
O espetáculo, inclusive, incorporou as estagiárias Suzana Aragão e Carol Pinzan em
seu quadro funcional, como responsáveis pela assistência de direção de cena.
No caso do estágio de interpretação, o seu funcionamento e resultado foram ain-
da mais insatisfatórios. Entre as possíveis causas, poderíamos destacar: grande quan-
tidade de participantes (trinta e um atores), o que provocou um acentuado grau de
dispersão nos ensaios; forte competitividade entre os estagiários, já que nem todos
poderiam ser incorporados ao espetáculo; envolvimentos afetivos entre os intérpre-

36 � Os estagiários de Direção que acompanharam o processo até a sua última etapa foram:
André Queiroz, Carol Pinzan, Marília Risi e Suzana Aragão.
142

tes mais antigos e os recém-chegados, o que provocou situações desagradáveis no


interior do grupo.
Além disso, as constantes críticas ao texto por parte do núcleo antigo de intér-
pretes acabaram contaminando os mais novos, e indispondo-os também em relação
à dramaturgia. Aliás, a “cultura da reclamação”, que grassava entre a maioria dos
atores participantes, minou muito do prazer da sala de ensaio, além de consumir um
tempo precioso do trabalho. Parecia que o lixo do rio tinha trazido à tona a nossa
própria sujeira. O diretor, por sua vez, oscilava entre “cuidar” das intermináveis insa-
tisfações e tomar posições mais duras em momentos de agudização da crise.
Aliás, ainda no que compete à direção, houve falha na escolha dos pares e falta
de um melhor encaminhamento no que concerne à quantidade e à interferência dos
novos integrantes presentes no processo. Além do dramaturgo, o grupo recebia, para
uma primeira parceria de criação, o cenógrafo, a figurinista, os criadores musicais, os
dramaturgistas e o produtor. Portanto, além da associação de vários estagiários aos
ensaios, houve uma mudança significativa dos criadores de BR-3 em relação à Trilogia
Bíblica, a maior parte deles, neófitos na dinâmica do processo colaborativo.
Por outro lado, agravando tal situação, ocorreu o fato de dois atores antigos do
Vertigem não participarem da peça. Vanderlei Bernardino, integrante desde o primei-
ro espetáculo, decidiu se ausentar por um período, a fim de vivenciar outras expe-
riências teatrais. Miriam Rinaldi, atriz desde O Livro de Jó, e força agregadora impor-
tante no grupo, mudou-se temporariamente para Nova Iorque. No meio do processo,
ainda, outra atriz de longa data, Luciana Schwinden, resolveu abandonar o processo,
alegando motivos de ordem pessoal37.
Talvez, diante da ausência de parceiros antigos e da presença de tantas novas
vozes, o núcleo central da companhia tenha perdido o eixo – e, por que não, a identi-
dade. É curioso – e sintomático – que o grupo tenha realizado justamente um projeto
discutindo questões identitárias, diante de tal contexto. Por um lado, a companhia
sofria na pele a perda de referências importantes, por outro, via-se desafiada a incor-
porar novos registros e parceiros.
A ocupação cênica do rio também foi bastante problemática. De todos os espaços
utilizados pelo Vertigem este foi o que apresentou os maiores desafios. Comparado
às outras montagens, por exemplo, foi onde ensaiamos o maior tempo antes da es-
tréia. Trabalhamos cerca de oito meses in loco. No início, ensaiávamos apenas um dia
por semana no rio e os outros quatro, na Casa Nº1. Depois, após conseguirmos a au-
torização do DAEE, os ensaios passaram a ocorrer diariamente lá – salvo em dias de
chuva ou de outros eventuais problemas (quebra da embarcação; excesso ou falta de
volume d’água no leito do rio, etc.).

37 Luciana Schwinden retornará a BR-3 dois meses antes da estréia, substituindo a atriz Tel-
ma Vieira, impossibilitada de continuar no trabalho em razão de uma gravidez de risco.
143

Os procedimentos metodológicos de exploração do espaço foram semelhantes àque-


les de Apocalipse, entretanto, com obstáculos redobrados. Primeiramente, tínhamos
apenas um barco para as atividades, o que limitava os deslocamentos e o ensaio simul-
tâneo de várias cenas. Depois, surgiu a questão da dificuldade de comunicação entre
diretor e atores. Para falar com os intérpretes nas margens, por exemplo, a direção
teve que lançar mão de megafone, pois a voz alta ou o grito não funcionavam em um
espaço aberto e ruidoso. Um pouco mais tarde, criou-se um sistema de mediações: o
diretor falava por meio de rádio com o seu assistente, que estava na margem, próximo
aos atores. Esse assistente, então, transmitia-lhes o feedback da direção. O tempo consu-
mido nesse “telefone sem fio”, associado às inevitáveis distorções e má compreensão
do que era solicitado, ajudavam a tornar o processo de ocupação ainda mais lento.
Além disso, os ensaios estavam sujeitos às condições climáticas. Se chovesse, não
havia trabalho, mesmo que todos já estivessem lá, aquecidos e com figurino. Inúme-
ros ensaios foram cancelados, enquanto outros, interrompidos no meio. Às vezes, a
chuva não ocorria no trecho urbano do Tietê, ocupado pelo grupo, mas sim na cabe-
ceira ou nascente. Porém, isso já era suficiente para provocar o aumento do volume
de água e o conseqüente alerta de perigo, causando, inevitavelmente, o cancelamen-
to do trabalho. Muitas vezes, o motor do barco fundia ou estragava, e tínhamos que
ser rebocados por outra embarcação. Ou seja, perdíamos horas esperando a vinda do
socorro e, em geral, o ensaio daquele dia – e dos próximos – costumava ficar compro-
metido até a finalização do reparo do motor.
Como existiam obras de engenharia civil sendo executadas nas margens e leito do
Tietê, houve diversas situações de impedimento dos ensaios. Por exemplo, quando
ocorriam explosões dentro da água, para o desassoreamento ou rebaixamento da
profundidade do rio, a colocação dos explosivos e dinamites podia ocupar um dia
inteiro. Isto acarretava o cancelamento total do ensaio ou, no mínimo, uma mudan-
ça emergencial no cronograma da peça. O problema é que só sabíamos, na hora, ao
chegarmos para trabalhar, os entraves do dia. Por mais que o grupo solicitasse uma
agenda semanal das atividades das obras, não havia nenhum esforço por parte das
empreiteiras em avisar, com antecedência, dos eventuais impedimentos.
A bem da verdade, éramos vistos como estranhos ali dentro, e muitas vezes sofre-
mos boicotes e perseguições de engenheiros e operários que lá trabalhavam. Houve
falsas acusações – por exemplo, em relação a supostos desrespeitos às normas de se-
gurança – que nos custaram dias de explicação ou retratação à Secretaria de Recursos
Hídricos ou ao DAEE. À parte qualquer teoria conspiratória, não restava dúvida de
que algumas empreiteiras tentaram dificultar a realização do espetáculo.
Fruto desse boicote velado, toda semana era comum aparecer alguma nova con-
dição para continuarmos no rio. Ora, era a necessidade de um técnico de segurança
que acompanhasse os ensaios, ora, era a inesperada proibição de um local que já vi-
nha sendo utilizado cenicamente. Ou ainda, para nossa estupefação, alguma descabida
144

prerrogativa moral, como, por exemplo, as atrizes não poderem conversar com os ma-
rinheiros ou operários.
Após a construção do barco dos espectadores, denominado Almirante do Lago, a
situação melhorou um pouco. Foi possível instalar um sistema provisório de som
– com o qual, por meio de microfone, o diretor conseguia se comunicar diretamente
com os atores –, além de se tornar factível a marcação das cenas no espaço de acordo
com o ângulo de visão que os espectadores teriam durante o espetáculo. Graças à
presença do Almirante do Lago, o grupo passou a contar com dois barcos de apoio, o
que auxiliava na realização dos ensaios simultâneos.
Porém, uma situação traumática estava na iminência de irromper. Segundo a em-
presa proprietária38 da embarcação principal, a navegação durante a peça poderia ser
realizada em qualquer sentido, tanto no fluxo quanto no contrafluxo do rio. De acor-
do com sua avaliação, o “potente” motor do Almirante do Lago seria capaz de parar o
barco em ré ou de fazer qualquer manobra complexa necessária. Esta informação, é
importante ressaltar, foi confirmada e reconfirmada várias vezes.
Tomando como baliza a diminuição do tempo de duração do espetáculo, o grupo
optou pela navegação no sentido do fluxo do rio, pois ela pouparia vários minutos
de deslocamento, além de proporcionar uma passagem mais rápida de uma cena a
outra. De posse de todos esses dados, passamos várias semanas explorando e implan-
tando as cenas da peça de acordo com essa orientação fluvial. Chegamos, inclusive, a
correr a peça inteira seguindo o sentido do fluxo do rio, isto é, partindo da Ponte da
Anhangüera e desembarcando no Cebolão.
Contudo, quando o Almirante do Lago começou finalmente a navegar no Tietê, a
situação revelou-se completamente outra. Além da pouca velocidade e do motor que
fundia e quebrava freqüentemente, o barco não conseguia ficar parado no fluxo do
rio. A empresa passou dias tentando, infrutiferamente, resolver a questão. Ao final,
reconhecendo a irreversibilidade do problema, comunicou ao grupo a necessidade de
inversão do sentido da peça no espaço.
O impacto de tal notícia causou um trauma no elenco. Vários atores – justificada-
mente – caíram aos prantos, pois viram todo o trabalho árduo de semanas ir, literal-
mente, por água abaixo. A realidade, nua e crua, era que teríamos que começar do
zero novamente. Porém, não havia outra saída. Fomos obrigados a remarcar a peça
inteira, agora no contrafluxo, isto é, partindo do Cebolão e desembarcando na Pon-
te da Anhangüera. Sem dúvida, este foi o pior momento no processo de ocupação
espacial do Tietê.
Contudo, passado o trauma e a crise dele decorrente, descobrimos que, em ter-
mos de possibilidades cênicas, o sentido do contrafluxo era muito mais fecundo. Uma
vez mais, os limites à liberdade de criação mostraram-se inspiradores. Tal percepção

38 A Transrio Navegação Fluvial S.A.


145

trouxe novo alento aos criadores, o que determinou que a remarcação espacial fosse
realizada em um tempo de ensaio proporcionalmente menor.
A encenação, por sua vez, logrou definir um conceito de utilização do espaço. As
cenas do texto situadas em Brasília seriam encenadas ao redor dos viadutos, onde o
aspecto de monumentalidade ficava evidenciado. Utilizamos, para tanto, o Cebolão, a
ponte da CPTM e o viaduto da Anhangüera. Já as cenas em Brasilândia ocorreriam em-
baixo de pontes, no sentido de acentuar o elemento de precariedade. Em função disso,
as encenamos sob a Ponte dos Remédios e sob a ponte Atílio Fontana. Por fim, aquelas
que se situavam em Brasiléia seriam apresentadas ao ar livre, nas margens e leito do rio,
reforçando o aspecto de “natureza” – salvo a cena do Seringal Egito, que demandava um
local fechado.
Um grande desafio para a encenação concernia à criação de focos de atenção num
ambiente marcado pela dispersividade39. Além dos recursos de luz – via recorte do espaço
– e de som – via uso de microfones, que auxiliavam na compreensão do que era dito – a po-
sição do barco principal e a sua distância das margens era muito importante. Um posicio-
namento errado poderia comprometer a percepção visual, prejudicando a fruição da cena.
Além disso, o excesso de afastamento do barco alargava em demasia o campo de visão do
espectador, o que desviava a atenção e “esfriava” a experiência. Daí os vários ensaios com
os marinheiros e capitães das embarcações, a fim de que eles compreendessem o rigor
exigido e dominassem tecnicamente as manobras. Fundamental também, nesse sentido,
foi o papel desempenhado por Eliana Monteiro, na coordenação da logística de cena.
Por fim, o feedback do público esteve mais organizado em BR-3 do que nos proces-
sos anteriores. A dramaturgista Sílvia Fernandes elaborou um questionário que era
entregue ao público no final da peça. O fato de os espectadores retornarem juntos,
no mesmo ônibus, em direção ao Memorial da América Latina – ponto de partida e
chegada do espetáculo –, “obrigava-os” a despender um tempo “livre”, antes da volta
às atividades cotidianas. Talvez, por essa razão, quase todos os questionários eram
preenchidos cuidadosamente.
As perguntas destinadas ao público eram as seguintes:

1) Quais são as suas impressões sobre o espetáculo? 2) Qual é sua opinião sobre o
texto? Foi possível compreender a narrativa? Quais foram as passagens em que
ela não ficou clara? 3) Qual é a sua opinião sobre a encenação? O que você achou
interessante e quais as cenas de que não gostou? 4) Qual é a sua opinião sobre a
interpretação? Como foi a experiência da voz microfonada dos atores? 5) Você acha
a peça muito longa? 6) Você teve uma boa visibilidade do espetáculo?

39 Por exemplo, em Jó, a dramaturgia tentava resolver tal problema por meio da utilização
do verso – que apresenta uma estrutura sonora sintética – e do elemento épico, materia-
lizado pela narração da história, que era constantemente retomada ao longo da peça.
146

Os questionários eram recolhidos e entregues à direção no dia seguinte, que fazia


uma listagem das críticas negativas e das sugestões de mudança. Esses tópicos eram
discutidos e ensaiados com os atores, contra-regras e marinheiros, e alguns outros
itens, de caráter mais específico, encaminhados às devidas áreas de criação. Como em
Apocalipse, muitas modificações foram efetivadas em razão dos comentários da platéia.
Os mecanismos de feedback, como já vimos, são um dos pilares do processo cola-
borativo. Por um lado, eles se constituem em diálogos internos do artista com a obra-
em-processo, permitindo uma constante avaliação e julgamento, por parte de todos
os criadores e participantes. Por outro, eles efetivam uma prática de diálogo externo,
realizado diretamente entre o artista e o receptor. Ainda que nem todas as altera-
ções daí advindas resultem, necessariamente, em melhoras do objeto, é inegável a
colaboração concreta entre diretor e espectador. Aliás, não devemos nos esquecer da
natureza “observadora” do papel do diretor, que o torna, de certa maneira, o “pri-
meiro espectador” da obra. Aqui, nesse caso, ocorre também o inverso, com a platéia
assumindo um papel diretivo, isto é, o de um “espectador-diretor”.
O processo de BR-3, de todos o mais desafiador e desgastante para o grupo, foi
também o de maior duração: dois anos e meio. No âmbito da encenação, ele consoli-
dou o aspecto híbrido e polifônico que teve início em Apocalipse. A impureza cênica, a
justaposição de estilos e linguagens, a multiplicidade simultânea de registros ganhou,
aqui, dimensão privilegiada. Os três andares do Almirante do Lago, a presença conco-
mitante de duas ou três embarcações na mesma cena, o jogo entre as duas margens
e a distensão espacial quilométrica criava múltiplos planos cênicos e “plataformas”
poliestilísticas. Nesse sentido, a encenação, também ela, foi marcada por deslizamen-
tos de identidade, assumiu várias máscaras e traços, e a sua “unidade” revelou-se
pluralista e flutuante. Ela espelhou, enfim, a fragmentação territorial e a diversidade
geográfica que lhe deram origem.
147

5 Para uma poética do processo colaborativo no Teatro


da Vertigem

“[...] a função ARTÍSTICA da atividade teatral não é, certamente,


a criação de divisas, de poder, de segurança. É seu caráter sub-
versivo (atenção, mais uma vez, a essa poderosa palavra) o que
conta, o que a define”
(Luiz Roberto Galizia, Teremos de Ser Radicais)

Tomando como base as experiências realizadas pelo Teatro da Vertigem para a


realização de seus espetáculos, buscamos identificar os princípios de trabalho e os
procedimentos recorrentes que nortearam a prática do grupo. Com isso não preten-
demos anular as características específicas relativas a cada um dos processos nem
tabular uma fórmula ou receituário metodológico.
Cada companhia ou coletivo de artistas encontra o seu modo de operar, à
medida que o movimento criador se instaura. Como bem afirmou Pareyson, na
formulação de sua estética da “formatividade”, a arte “é um tal fazer que, en-
quanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer”. Portanto, se entendemos a
obra como um vir-a-ser, resultante do embate entre matéria e pensamento, em
que “concebe-se executando, projeta-se fazendo, encontra-se a regra operando”,
cada grupo inventará o seu próprio “processo colaborativo”. O que descrevemos
a seguir são os elementos, as etapas e os procedimentos reincidentes do nosso
próprio fazer-inventar.
É importante ressalvar que algumas dessas etapas ocorrem simultaneamente. Ou
seja, a linearidade da descrição não espelha com fidelidade a dinâmica de sobrepo-
sições que caracteriza a prática. Trata-se de recurso didático, a fim de melhor apre-
sentar o mapa do percurso, devendo, portanto, ser relativizado. Ainda que haja, em
alguns casos, sucessão temporal, essas “anterioridades” e “posterioridades” se inver-
tem com freqüência, esgarçam a cronologia, criando flechas temporais multidirecio-
nais. Convidamos, pois, a que se faça um esforço de pensar as distintas fases sincroni-
camente, e não apenas em seqüencia, como se encontra aqui descrito.
Cabe ainda acrescentar que cada elemento apresentado não é mais do que uma
tentativa de delimitação de campo. Delimitações precárias, pois cada aspecto contami-
na ou é contaminado pelo outro. As suas fronteiras são tênues – ou elásticas – e cada
campo deve ser pensado como núcleo vibratório de irradiação mais do que como terri-

���������� � Os Problemas da Estética. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 32.


 pareyson, l.
 Ibid., p. 32.
148

tórios rigidamente delimitados. Feitas essas ressalvas, passemos aos “dispositivos” ou


“linhas de força” recorrentes dos processos de criação do Teatro da Vertigem.

5.1 Definição do projeto

A definição do projeto é realizada por meio de discussões coletivas envolvendo to-


dos os integrantes fixos da companhia. Geralmente ocorre a partir de uma dinâmica
que denominamos “fórum”. Nela, é feita a avaliação do processo anterior e do espetá-
culo resultante, seguida de um brainstorm de desejos individuais positivos e negativos.
Isto é, aquilo que cada integrante tem vontade de trabalhar ou aquilo do qual ele já
está cansado ou não tem mais interesse em desenvolver. O passo seguinte é a mate-
rialização dessas vontades por meio da apresentação de propostas concretas – peças,
contos, textos filosóficos, recortes de jornal etc. – trazidas por cada um. Então, todo
esse material é lido e discutido conjuntamente. O objetivo é encontrar um denomi-
nador comum ou eleger a proposta que tenha causado maior reverberação no grupo
– ou ainda, caso seja possível, a junção, numa nova idéia, de algumas das sugestões. O
fórum se encerra com a definição da questão, tema, problema ou dispositivo que será
o foco do próximo projeto.

5.2 Definição do dramaturgo e da equipe de criação

Escolhido o núcleo temático – ou o dispositivo central do trabalho –, parte-se


para a definição do escritor. Elemento fundamental no tripé dramaturgia-encenação-
interpretação – base geradora do processo colaborativo – esse escritor representa o
elemento absolutamente novo, o “outro” que virá dialogar com a companhia. Dada
a importância de sua função, ele atua como uma espécie de provocador – ou até
mesmo de antagonista – num contexto marcado por relações já estabelecidas e de
longa duração. Em geral, o escritor efetua uma ação simultaneamente perturbadora
e estimuladora, trazendo outras e novas referências para o grupo. Daí a importância
e o cuidado nessa escolha. A partir da sugestão de nomes trazidos por todos os inte-
grantes, inicia-se o trabalho de leitura dos textos de possíveis convidados e, até mes-
mo, o convite para que venham se encontrar informalmente com o grupo – para uma
conversa ou discussão sobre sua obra. Tomando como base a sintonia com o material
literário e uma empatia mínima com o escritor – avaliada nos encontros realizados
149

ao vivo – o grupo discute e elege aquele com quem pretende trabalhar. Viemos in-
sistindo no termo “escritor”, pois não há a obrigatoriedade de que o convidado seja
necessariamente um dramaturgo profissional.
Após essa definição, caso seja necessário, parte-se para o convite aos outros co-
laboradores. Por mais que se busquem parcerias de longo prazo nas áreas visuais e
musicais do espetáculo, ocorre de um antigo colaborador não poder integrar o pro-
jeto naquele momento ou também do grupo querer estabelecer novos vínculos – em
geral decorrente de desgastes ou insatisfações ligados ao processo anterior.
Os procedimentos de escolha são semelhantes aos da dramaturgia. A partir de
um leque de indicações apresentado pelos integrantes do grupo, entra-se em contato
com o material produzido por esses artistas e, em alguns casos, recorre-se ainda a
encontros pessoais com os possíveis parceiros. Esse período de perscrutação e sonda-
gem é seguido da busca de um consenso relativo à escolha dos nomes.
Apesar da participação de todos nessa dinâmica de indicações e seleção, é comum
um maior engajamento dos atores na eleição do dramaturgo, e da direção na escolha
dos outros colaboradores. As razões disso, provavelmente, estão ligadas ao papel da dra-
maturgia no desenvolvimento das personagens e das falas – foco de especial interesse
dos atores – e, por outro lado, da importância do cenógrafo, figurinista, criador musical,
etc. para o âmbito da linguagem espetacular – foco de preocupação do encenador.
Pouco comum nesse momento, na medida em que o projeto apenas começa a
se esboçar, podem ser feitas também indicações para possíveis atores convidados.
Na prática do Vertigem, por haver um núcleo fixo de atores, é mais freqüente tais
escolhas ocorrerem numa etapa posterior dos ensaios, em função de necessidades
específicas do projeto.
De qualquer maneira, esta fase de definição dos colaboradores é extremamente
importante para o êxito do projeto, pois, quem colabora, colabora com alguém. Em
outras palavras, em um processo baseado na instância do compartilhamento, a de-
finição das parcerias e a formação do grupo de trabalho podem determinar tanto os
resultados quanto a própria sustentação e sobrevivência de uma prática coletiva.

5.3 Pesquisa Teórica

Constitui-se de leituras, estudos teóricos e seminários que visam ao mapeamento


e aprofundamento do assunto escolhido. Na verdade, tal pesquisa ocorrerá ao longo
de todo o período de ensaios – ainda que com mudança de foco, como por exemplo,
no auxílio à construção das personagens –, porém ela apresenta uma ênfase acentua-
da nos primeiros meses de trabalho. É freqüente também o convite a especialistas ou
150

intelectuais para realizarem palestras públicas ou encontros fechados com o grupo,


a fim de discutirem temas ou questões pertinentes ao projeto. O levantamento de
material iconográfico ou fílmico desempenha outro papel importante aqui.
É preciso ficar atento em relação ao excesso de leituras, seminários e encontros
teóricos. Por se tratar de temas amplos, estimulantes e dos quais o grupo tem pouco
conhecimento, às vezes ocorre um acúmulo ou sobrecarga da parte teórica, dilatan-
do o processo ainda mais, e consumindo um tempo precioso dos ensaios.
A coordenação dessas atividades fica, em geral, a cargo do dramaturgista. Ele aju-
da na organização das leituras, na análise de textos, no encaminhamento das discus-
sões, na sugestão dos palestrantes a serem convidados e no levantamento de material
visual e bibliográfico, entre outras atividades de caráter teórico.

5.4 Pesquisa de campo

A pesquisa de campo ocorre, principalmente, em dois momentos dos ensaios: na


etapa de criação do texto e durante a fase de construção das personagens. Apesar da
diferença de objetivos, os procedimentos se assemelham. Por meio de visitas de inves-
tigação a determinados locais ou comunidades; percepção de seus aspectos topográfi-
cos, arquitetônicos e sensoriais (cores, cheiros, luminosidade, sonoridades, “vibrações”,
etc.); conversas com seus habitantes ou freqüentadores; entrevistas; levantamento de
histórias orais; registros em foto ou vídeo; identificação de traços lingüísticos, sociais,
culturais e materiais e, principalmente, pela realização de uma experiência ou vivên-
cia concreta in loco, perfaz-se o estudo prático daquele espaço ou situação.
A coleta de documentação e a experimentação vivencial podem ser realizadas
individualmente ou em grupo. Às vezes, a presença da companhia inteira pode ser
um elemento inibidor ou provocar estranheza no local. Neste caso, a depender da si-
tuação, opta-se pelo desmembramento do coletivo, e seus membros conduzem a pes-
quisa solitariamente ou em duplas. O uso de câmeras ou gravadores também requer
bastante cuidado, a fim de não criar situações artificiais. Muitos dos registros devem
se utilizar apenas da memória e das impressões do pesquisador-observador, devendo
ser lançados em cadernos de ensaios, blocos de notas pessoais ou diários de viagem
somente após a finalização dos encontros.
Contudo, existe um encaminhamento norteador para a pesquisa de campo, es-
pecialmente no caso dos atores. Eles devem, necessariamente, transformar aquela
experiência in loco em algum material prático, quer sejam imagens, personagens,
improvisações ou workshops. A visita ou encontro precisa ser reelaborado em forma
cênica, não podendo se limitar apenas ao plano impressivo-subjetivo dos intérpre-
151

tes. Além disso, eles devem adotar uma postura de observadores ativos, interferindo,
questionando, duvidando, buscando inter-relações – mesmo sem se manifestar expli-
citamente durante o ato da pesquisa.
É necessário estar atento a algumas armadilhas – ainda que seja necessário cair
nelas para poder, então, desarmá-las. A primeira refere-se ao aspecto turístico. Tal
aspecto acaba por restringir a pesquisa de campo ao simples registro do inusitado
ou à observação superficial de paisagens humanas e geográficas. A troca e o diálogo
tornam-se epidérmicos e a experiência se dilui no entretenimento.
O segundo problema é o risco do voyeurismo. Por se tratar, em alguns casos, de
situações ou locais significativamente distanciados do universo do grupo, instaura-se
um frisson ou uma curiosidade mórbida, às vezes com forte conotação sexual. Essa
possibilidade que se abre à pesquisa de campo, de penetrar em universos fechados
ou de compartilhar segredos inauditos cria um fascínio magnético e erotiza o olhar.
É claro que essa energia libidinosa pode ser útil em determinadas “aproximações”,
gerando encontros de alta voltagem e estimulando interesses mútuos e comuns. A
questão é quando tais encontros reduzem-se apenas a jogos de sedução camuflados,
a mecanismos de conquista, em que cada um quer mostrar unicamente o melhor de
si ou aparentar mais do que é. Daí, sob tais circunstâncias, a pesquisa adquire um
caráter artificial e mentiroso.
Mais pernicioso ainda é quando esse voyeurismo vem marcado por diferenças de
classe social, nível de educação ou poder aquisitivo. O “outro”, nesse caso, transfor-
ma-se em “bicho de zoológico”, ao qual se oferece uma ternura complacente e carido-
sa. A interação com o “menos favorecido” passa a ser instrumento de alívio da culpa
social ou elemento de marketing de pretensas preocupações sociais. Na perspectiva
contrária – ou seja, do ponto de vista do “objeto de estudo” – o pesquisador se reduz
a manancial de recursos, a fonte de investimento e, até mesmo, a bóia de salvação. O
grupo, então, se torna uma espécie de ONG, com o dever de alimentar, vestir, educar
ou fornecer oportunidades de trabalho.
Uma terceira armadilha diz respeito ao perigo da exploração e do extrativismo. Isto
é, a companhia coleta histórias, informações, elementos de toda ordem, apropria-se
desse material bruto recolhido, transforma-o em peça teatral – ou apenas enverniza ou
enfeita a sua obra com ele – e não disponibiliza nada em troca (é claro que o espetáculo
resultante dessa interação representa a principal “troca”; porém, muitas vezes, a comu-
nidade não é sequer convidada para assisti-lo). Quando muito, são oferecidas oficinas

 Em nossa dissertação de mestrado, descrevemos a “observação ativa” como um proce-


dimento de pesquisa que não implica “na mera observação do fato”, mas que, ao con-
trário, pressupõe um “diálogo ativo com os fatos”, procurando estabelecer as relações
internas entre eles. Para a análise completa desse conceito – retirado da metodologia
científica –, consultar o capítulo 1, pp. 15-17, in: silva, a. c. a., A Gênese da Vertigem: o
Processo de Criação de ‘O Paraíso Perdido’.
152

– às vezes de discutível valor pedagógico – ou alguma recompensação de ordem mate-


rial. Em outras palavras, não se estabeleceu de fato um diálogo, em que pesquisadores
e pesquisados se modificam a partir da interação, em que todos ganham – e perdem
também – em decorrência do encontro. Trata-se apenas de uma lógica de expropriação
contrabandeada para o âmbito artístico. Tal atitude, além de se constituir em falha
ética grave, joga por terra as “boas intenções” do projeto, revelando ainda um dado de
contradição e manipulação do qual, às vezes, não se tem consciência.
Alguns cuidados ou dispositivos podem ser úteis na prevenção dessas armadilhas
– ou, no mínimo, nos auxiliam a sairmos delas. O primeiro deles refere-se à duração
e à continuidade da pesquisa. Quanto mais tempo nos expusermos a determinado
local ou comunidade e quanto mais freqüente e continuada for a nossa interação
ali, maiores as chances de aprofundar a investigação e de alicerçar as relações. Tal
pressuposto provoca a transformação do “turístico” em “cotidiano”. Daí porque a as-
similação do tempo-ritmo local, o “não fazer nada”, o “entediar-se”, são instrumentos
importantes para se alcançar camadas mais subterrâneas na pesquisa de campo. Por
paradoxal que pareça, o pesquisar pressupõe, também, o “não-pesquisar”, o abando-
nar a pesquisa ou, ao menos, o esquecer que se está pesquisando.
No caso do voyeurismo, esse procedimento funciona como antídoto poderoso. É
pouco comum o frisson que perdure meses a fio, pois, a atração exercida pelo fator
“novidade” é inversamente proporcional à duração da experiência. Ou seja, atividades
de médio e longo prazo permitem que as contradições emerjam, que os problemas e
conflitos manifestem-se e, ainda, que as aparências forjadas se dissolvam.
Um segundo dispositivo de auxílio é a construção conjunta da investigação, aliando
pesquisador e pesquisado. Em outras palavras, trata-se da elaboração de um projeto que
procure des-hierarquizar sujeito e objeto. O pesquisador, nessa perspectiva, não é “me-
lhor” ou “mais importante” que o pesquisado, mas constrói e reconstrói a sua investiga-
ção em diálogo com ele. Por sua vez, o pesquisado não está à mercê e nem é dependente
do pesquisador, já que interfere nos rumos e encaminhamentos do trabalho. Essa abor-
dagem, por exemplo, permite determinar as prioridades momentâneas de uma comuni-
dade e garante a presença de seus pontos-de-vista no interior do projeto. Todos, portanto,
são tratados como sujeitos e elimina-se a dicotomia ativo-passivo. Com isso, esvai-se a
perversa lógica do paternalismo e do assistencialismo, que ronda a pesquisa de campo.
Aliás, a colaboração de um líder comunitário, de um funcionário da instituição,
de um freqüentador do local ou, simplesmente, de membros residentes de uma co-
munidade, podem ser de inestimável valia para a pesquisa. Eles trazem o conheci-
mento de dentro, autóctone, podendo auxiliar a entrada e a presença do grupo num
determinado lugar. Ajudam também a revelar problemas e contradições que, talvez,
demorassem muito tempo para serem percebidos. Este tipo de parceria deve ser esti-
mulado, tomando cuidado, é claro, para não restringir a leitura de campo apenas ao
olhar desse guia-colaborador.
153

Aliado a isso é fundamental a honestidade e a transparência nos objetivos do pro-


jeto. Obviamente, no caso de alguma investigação pontual, “arriscada” ou sigilosa,
em que a revelação dos propósitos possa pôr em risco o contato ou a realização do
trabalho, tal sugestão não cabe. Porém, via de regra, defendemos a explicitação dos
desejos e das metas da companhia. Por exemplo, julgamos importante já no primeiro
encontro ou visita, esclarecer o porquê se está ali, o que se quer, o que se pode ofere-
cer em troca, quanto tempo está previsto de trabalho e, o mais fundamental, solicitar
a permissão e o auxílio do local ou comunidade para a realização da pesquisa.
Um terceiro elemento a ser levado em consideração é o que o grupo pode oferecer
ou desenvolver como espécie de retorno ao apoio prestado. De novo, a resolução sobre
essa contrapartida necessita ser discutida e negociada com o próprio lugar e seus ha-
bitantes ou freqüentadores. Deve-se buscar uma construção conjunta do que fazer, ao
invés da imposição de uma proposta fechada por parte da companhia. Quando se chega
a esse pacto comum, urdido por uma elaboração conjunta, os mecanismos de explora-
ção tendem a se esvaziar. E mesmo que um determinado local, por exemplo, não queira
absolutamente nada do grupo, tal decisão terá sido consentida por ambas as partes.
A pesquisa de campo proporciona uma experiência viva que se soma à pesquisa
teórica e a complementa. Ela causa uma impregnação vivencial nos artistas envol-
vidos – especialmente nos atores – que pode ser determinante para a construção do
texto e das personagens. Ainda que, algumas vezes, seja vista com preconceito, como
se os atores estivessem apenas “fazendo laboratório”, ela tem uma significação e um
poder de interferência que vão além disso.
Por fim, a presença do dramaturgista nessa etapa da pesquisa tem uma importância
capital. Ele auxilia nas entrevistas externas, na reflexão sobre procedimentos e resultados,
no acompanhamento das atividades, na proposição de estímulos, na documentação da
pesquisa de campo, entre outras contribuições. Ainda que sua atuação apresente outras
facetas relevantes ao longo do processo, é inegável o seu destaque nessa fase do trabalho.

5.5 Atividades pedagógicas correlatas

O processo colaborativo, por sua própria natureza, tem um caráter aberto, agrega-
dor e inclusivo. Esta dimensão que ocorre entre os criadores, no âmbito intra-grupal,
ganha sentido e amplitude maior ao incorporar alunos, estagiários e outros observa-
dores externos durante o período de ensaios.
Mais do que apenas oferecer oficinas teatrais a possíveis interessados, procura-se
integrar os aprendizes e estagiários ao processo da criação. A idéia é que eles atuem
ativamente da feitura da obra, seja discutindo ou experimentando elementos que ve-
154

nham sendo trabalhados pela companhia, seja “colocando a mão na massa” – através
da apresentação de cenas, da proposição de workshops, da sugestão de idéias de luz,
som, figurinos, etc. – seja, ainda, participando presencialmente no espetáculo final
– como atores, operadores de som ou luz, músicos, etc.
Ao invés da idéia de “aprender para depois fazer”, procura-se incorporar o apren-
dizado ao movimento turbulento e dinâmico do próprio criar. Nesse sentido, não
existem “professores” e “alunos”, mas criadores – com maior, menor ou nenhuma
experiência – colocados juntos em situação de criação. Evidentemente que os artis-
tas do grupo funcionam como coordenadores ou orientadores de percurso, contudo,
sem a preocupação didática de um curso formal.
Por exemplo, nas oficinas ou estágios de direção que coordenamos, nunca houve
encontros sobre técnicas de direção ou teoria da encenação. Ao contrário, sentáva-
mos juntos e planejávamos o cronograma de trabalho da semana, discutíamos os
problemas internos ou as crises de processo e fazíamos um brainstorm de exercícios,
jogos e temas de improvisação para serem aplicados nos ensaios. À medida que ocor-
ria o aumento da cumplicidade entre nós, tratávamos de temas delicados ou espinho-
sos concernentes às outras áreas de criação e, inúmeras vezes, pedíamos auxílio ou
socorro aos estagiários para problemas difíceis de resolver.
Este papel do “professor em crise”, hesitante, angustiado, do mestre frágil ou
fragilizado, é um papel difícil de aceitar e de assumir – por ambos os lados. Como a
pessoa que coordena o processo pode ficar sem rumo? Como se deixar orientar por
alguém transpassado pela dúvida? Esse exercício da fragilidade, esse enfrentamento
do saber falho e incompleto exigem uma maturidade tanto do “mestre” quanto do
“aprendiz” difícil – e dolorida – de se atingir.
Contudo, se superado esse mito do “professor-sabe-tudo”, ao invés da falência da
didática, ocorre a sua revitalização. Todos aprendem e ensinam, sabem e erram, expe-
rimentam o prazer da descoberta conjunta e o terror da paralisia e da impotência. É
preciso perceber as limitações – suas e do outro – para que novos conhecimentos se pro-
duzam. Mais do que o fracasso da pedagogia temos uma pedagogia do – e no – fracasso.
No nosso caso, o que ocorre, ao longo dos ensaios, é a imbricação do artístico no
pedagógico, e vice-versa. Um alimenta e é alimentado pelo outro. O que é diferente
de desaparecerem um no outro, de se tornarem a mesma coisa. De novo, insistimos no
diálogo entre os campos, e não nas suas dissoluções. Portanto, as oficinas e os está-
gios não são simplesmente tarefas a serem cumpridas nem se reduzem a contraparti-
das obrigatórias. Elas são outra forma de exercício do colaborativo e de ampliação da
sua prática. Expõem os “oficineiros” a um processo de criação em que as fraturas es-
tão expostas. Lançam os “aprendizes” na concretude do fazer artístico, não enquanto
observadores passivos, mas como agentes de criação.
Além disso, conforme já mencionado, as oficinas também cumprem um papel de re-
torno ou devolução do grupo em relação a determinada comunidade. É importante, con-
155

tudo, a fim de evitar problemas, que os conteúdos, a freqüência e os horários sejam acor-
dados através do diálogo entre as necessidades locais e os interesses ou possibilidades da
companhia. As aulas e os estágios funcionam como um espaço de aprofundamento das
relações entre os artistas e os residentes/freqüentadores do local, estimulando o surgi-
mento de material para a criação. Se, por um lado, através de tais atividades pedagógicas,
os artistas se inserem na comunidade e passam a exercer uma função dentro dela, por
outro, aquela paisagem geográfica e humana impregna a obra em gestação.

5.6 Treinamento direcionado

A noção de treinamento veio sofrendo modificações ao longo da trajetória do Tea-


tro da Vertigem. De um lugar de destaque, com função quase autônoma no processo,
ele passou a estar vinculado às necessidades da criação. Ao invés de um treinamento
voltado para si mesmo, numa prática umbilical do ator com seu corpo, voz e auto-
expressão, houve o encaminhamento para a noção de “treinamento aplicado”. Isto é,
associado diretamente às questões da obra em fabricação.
Nesse sentido, ele não se reduz apenas ao aquecimento físico-vocal no início dos
ensaios, mas prepara ou introduz os atores nos aspectos expressivos e artísticos do
trabalho. Ainda que o treino contenha uma dimensão técnica acentuada, tal dimensão
estabelece vínculos estreitos com o tema, com o registro interpretativo pretendido e
com procedimentos formais que serão desenvolvidos no espetáculo. A idéia é se afastar
de uma técnica cabotina, virtuosística, autocentrada, para colocá-la a serviço do discur-
so cênico. O que – é importante ressaltar – é diferente da sua abolição ou descarte.
Outra prática do grupo foi a de criação de um treinamento específico para cada
montagem, estimulando o aparecimento e a invenção de procedimentos técnicos pe-
culiares. Se, por exemplo, em Paraíso Perdido trabalhamos com Laban e Improvisação
de Contato, paralelamente a isso foi desenvolvido um treino baseado nos princípios
da Mecânica Clássica – objeto de nossa pesquisa naquele momento. Já em O Livro de
Jó, conforme descrevemos, houve a criação de uma prática baseada em estudos de
sintomatologia clínica.
Essa perspectiva de técnicas “inventadas” – que não elimina a outra, de técni-
cas “importadas” – estimula uma atitude ativa e propositiva por parte dos atores e
subverte certa mistificação tecnicista – a da “técnica pela técnica”, em que o apren-
dizado das ferramentas é meramente quantitativo e desprovido de dimensão crítica
ou artística. Além disso, traz uma dimensão criativa para um pólo, em geral, visto
apenas como instrumental, e redimensiona a relação de dependência entre método
e expressão – na medida em que cada espetáculo pede a invenção de seus próprios
156

procedimentos e ferramentas. As técnicas “inventadas”, ainda, pressupõem uma par-


ceria entre direção e atores, e só se delineiam após algum tempo de ensaio.
No caso das técnicas “importadas” ou “exógenas” – butô, Suzuki, Laban, etc. – recor-
remos a profissionais habilitados para virem colaborar com o grupo. Outra alternativa,
ainda, é a condução do treino ficar a cargo de algum dos atores do grupo que detenha
conhecimento específico numa determinada metodologia. De qualquer forma, a esco-
lha das técnicas e dos respectivos instrutores é realizada coletivamente, sem imposição
da direção. Na maioria das vezes, inclusive, a indicação vem dos próprios atores, por já
terem experimentado algum instrumental que julguem ser útil ao trabalho.

5.7 Depoimento pessoal e depoimento coletivo

Antes de passarmos às demais instâncias práticas presentes nos ensaios, é funda-


mental discutirmos um dos eixos centrais do processo colaborativo: o depoimento
pessoal. Por paradoxal que pareça, no âmbito de um projeto coletivo, tal depoimen-
to é responsável por inegável força agregadora. A valorização da perspectiva indivi-
dual pode, é claro, num primeiro momento, acirrar as diferenças. Contudo, a médio
prazo, ela possibilita a construção de uma plataforma comum. Isso, evidentemente,
desde que haja a existência prévia de um contexto grupal e de um projeto coletivo
de base. Na verdade, será essa constante tensão entre depoimento pessoal e depoi-
mento coletivo – tensão essa de difícil apaziguamento durante o processo – que
definirá o modo colaborativo de criação. Porém, insistimos, é justamente a radicali-
zação das subjetividades que vai propiciar, de maneira orgânica e endógena, que o
discurso coletivo se forme.
Conforme já analisado em nossa dissertação de mestrado, o depoimento pessoal
é um testemunho, uma confissão, uma opinião ou um posicionamento crítico reali-
zado de forma cênica. É claro que posições individuais aparecem nas discussões e de-
bates durante os ensaios. Porém, o que denominamos depoimento pessoal pressupõe
um ponto de vista formalizado cenicamente, sem importar aí o grau de acabamento. Ele
se configura, portanto, da seguinte maneira:

• é desenvolvido a partir da relação e do confronto dos atores com os conteú­


dos e temas do projeto (aspecto opinativo);
• resgata a memória pessoal, com a retomada freqüente de histórias passadas
e de registros subjetivos remotos (aspecto autobiográfico e confessional);

 silva, a. c. a., A Gênese da Vertigem: o Processo de Criação de ‘O Paraíso Perdido’, pp. 84-86.
157

• exercita a reflexão crítica e conceitual com respeito aos temas, por meio
de uma tomada de posição (aspecto crítico).

Além disso, o depoimento pessoal cumpre uma dupla função no processo. É, por
um lado, instrumento de investigação da pesquisa temática e, por outro, gerador de
material cênico bruto para a dramaturgia e o espetáculo. Na verdade, sob esse último
aspecto, o depoimento pessoal se torna o próprio fragmento cênico passível de reelabo-
ração. Ou seja, ele tanto é procedimento metodológico quanto resultado expressivo.
O depoimento pessoal é a base sobre a qual se constrói a criação. É em razão
dele que se consolida, por exemplo, o ator-autor. Ao invés de ser apenas tradutor,
intérprete ou repetidor de falas alheias, o ator vai produzir o seu próprio discurso,
enunciar a sua visão de mundo, ou seja, posicionar-se. Esse posicionamento é tanto
estético quanto ideológico, pertence tanto ao indivíduo-ator quanto ao cidadão-ator,
enraíza-se na vivência pessoal, mas também no contexto histórico-social em que ela
está inscrita, em suma, constrói uma formulação que imbrica arte e vida.
No processo colaborativo, portanto, o ator não apenas representa personagens, mas,
sobretudo, efetua um depoimento artístico autoral. Sob este ângulo, ele se aproxima
da idéia de performer, que cria a partir da sua visão de mundo particular, trazendo para
a cena uma presentificação – ou reelaboração – de sua própria história de vida.
Do ponto de vista estritamente interpretativo, a prática do depoimento pessoal,
por seu caráter confessional, vai estimular no ator um estado de abertura e despren-
dimento, provocando o que poderíamos chamar de desvelamento. Nesse sentido, o
depoimento pessoal se constitui em ferramenta capaz de interferir nos mecanismos
de bloqueio do ator, estimulando a sinceridade e a entrega. Ele contribui também no
processo de autoconhecimento do ator, imbricando prática artística e experiência de
vida, consciência da obra e consciência de si.
Segundo Mário Santana, em sua análise sobre o depoimento pessoal, a sua função é

[...] fornecer aos atores estímulos de superação das próprias limitações, é buscar que
se deixem em condições de dar vazão ao interdito e ao indizível; àquelas possibilida-
des de fala pessoal onde o insólito, o inusitado ou o insuportável brotam de impulsos
pessoais profundos e livres de compromissos com estruturas expressivas prévias.

Do ponto de vista grupal, o exercício desse depoimento acaba por promover a


cumplicidade e o amadurecimento nas relações interpessoais, na medida em que os
intérpretes vão conquistando, conjuntamente, um espaço comum de desvelamentos. À
medida que um ator se abre e compartilha suas histórias, memórias pessoais, opiniões

 santana, m. a. A Cena e a Atuação como depoimento estético do ator criador nos espetáculos ‘A
Cruzada das Crianças’ e ‘Apocalipse 1,11’. 2003. 197 f. Tese (Doutorado em Artes) – Escola
de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, p. 154.
158

e críticas, os outros atores também se contaminam por tal atitude, e um espírito co-
letivo de respeito mútuo, de parceria e de cumplicidade vai se consolidando.
Contudo, é importante ressaltar que, apesar do caráter de auto-exposição ineren-
te a essa abordagem, é o ator quem decide que material ou que memória de seu “baú
pessoal” ele pretende compartilhar com o grupo. Estabelece-se um pacto, inclusive,
de que ninguém deverá expor algo com que não se sinta apto a lidar ou que ainda não
esteja suficientemente “trabalhado” no plano subjetivo. O limite entre desvelamento
e terapia de grupo é tênue, com o agravante de que não possuímos capacitação pro-
fissional na área psicológica para coordenar – ou socorrer – tais desvios. E, sobretudo,
porque o nosso objetivo é, na origem e no final, a realização de uma obra artística.
Quanto ao diretor, ele cumpre um papel importante no sentido de estimular e
acirrar os pontos de vista de cada integrante em relação ao projeto e de incitar os
atores a investigarem a si mesmos e a extensão dos seus limites. Ele deve evitar a cen-
sura e o menosprezo a posicionamentos mais frágeis ou confusos, a fim de não criar
uma atmosfera de intimidação.
Como já dissemos, será da intensificação deste olhar individual que emergirá a
visão panorâmica do conjunto. A radicalização das singularidades abre espaço para
que os diferentes dialoguem, contraponham-se e, na seqüência, o conjunto se afirme.
O ator submisso, que não se posiciona – o que é diferente do ator neutro, já que a
neutralidade pode implicar num posicionamento –, é um entrave à polifonia grupal.
Pois é justamente do embate de múltiplos depoimentos pessoais que se construirá o
depoimento coletivo.

5.8 Exercícios de vivência

A vivência é uma prática de trabalho de matriz stanislavskiana – e strasberguiana


–, realizada no início dos ensaios, logo após o treino, que funciona como uma espécie
de aquecimento sensorial, emocional e imaginativo para o ator. São exercícios realiza-
dos individualmente, muitas vezes com os olhos fechados, que não visam a nenhuma
produção de material cênico e nem têm a preocupação com a comunicação. Trata-se de
um procedimento que procura colocar o ator em contato consigo mesmo, por meio de
algum estímulo temático ou contextual relativo ao projeto. Além disso, a fim de auxi-
liar na concentração, trabalha-se com luz baixa e com estímulos sonoros ou musicais.
Por exemplo, em Apocalipse 1,11, uma proposta lançada aos atores como mote do
exercício foi: “O mundo vai acabar em 24 horas. O que você faria nesse tempo que
lhe resta?”. Tal proposição, realizada na primeira semana de ensaio, visava a colocar
os atores frente à possibilidade do “fim do mundo”, aproximando-os das suas reações
159

e sensações, sob um ponto vista íntimo e particular. Ou seja, ao invés de criarem


cenas de morte e destruição, interessava-nos que entrassem em contato com as suas
subjetividades, sem a obrigação de nada explicitarem.
A direção, caso necessário, pode interferir no exercício, sugerindo desdobramen-
tos à proposição inicial. Porém, os atores não devem nunca interromper o fluxo da
experiência para ouvirem tais indicações. Aliás, podem inclusive desconsiderá-las,
caso a sua vivência não comporte ou dialogue com aquele novo estímulo. No exercí-
cio descrito acima, por exemplo, após alguns minutos do início, a direção reduzia o
tempo que antecedia a catástrofe: “faltam 12 horas”; “falta 1 hora”, “faltam 5 minu-
tos”; “falta apenas um minuto”.
Esse tipo de exercício serve também para aproximar os atores de temas grandio-
sos e abstratos, proporcionando-lhes uma experiência mais individualizada. Além,
é claro, de evitar as respostas-prontas e a caricatura. Ele gera um estado físico, sen-
sorial e emocional ao mesmo tempo em que reduz a censura e a autocrítica do ator
– já que não há a necessidade de apresentar nem comunicar nada. Por outro lado ele
“aquece” a sua subjetividade para as improvisações e workshops que virão a seguir
O perigo de uma prática como essa é o desvio para os famigerados exercícios do
tipo “ameba com angústia”, em que se vê um bando de atores sofrendo, gritando e
se contorcendo. Esse risco, de fato, existe, e sua prevenção vai depender da forma
como o diretor enuncia o estímulo e da maneira como o ator lida com a proposição.
Como já dissemos, busca-se uma aproximação inicial ao tema, uma resposta indivi-
dual, uma investigação subjetiva e não, exorcismos expressivos descontrolados.

5.9 Improvisações e jogos

A improvisação cumpre um papel vital – talvez o mais importante – no processo


colaborativo. Quase todas as práticas lançam mão dela, utilizando-a para os mais
diferentes fins: investigação do tema; desenvolvimento da dramaturgia; criação de
cenas; produção de imagens; aprofundamento das personagens; ocupação espacial,
entre outros.
E como se opera o trabalho da improvisação na prática concreta dos ensaios?
Além das dinâmicas já citadas e de outras que iremos tratar a seguir, podemos identi-
ficar algumas formas recorrentes de sua utilização, a saber:

• Improvisações de clichês: feitas no período inicial dos ensaios como forma


de, por um lado, expurgar todas as idéias-prontas e imagens-padrão que
temos de determinado assunto e, por outro, reavaliar alguns elementos
160

dos clichês que, se reelaborados, poderiam ser úteis à discussão. Por exem-
plo, em Apocalipse 111, como contraponto ao exercício de vivência acima
descrito, foi proposto aos atores que trouxessem todas as suas imagens de
fim de mundo e de destruição, da Bíblia às histórias em quadrinhos, sem
medo de caírem na obviedade. A idéia era que “colocassem para fora”, que
“gastassem” tudo aquilo que parece ter se impregnado e cristalizado no
seu imaginário;
• Improvisações temáticas: realizadas com o propósito de mapear os temas
e subtemas do projeto e, num segundo momento, aprofundar a discussão
dos recortes estabelecidos;
• Improvisações de personagens: importantes tanto no levantamento geral
de possíveis personagens para a dramaturgia quanto, depois, para o me-
lhor delineamento delas e de suas relações.

Todas as improvisações acima descritas são utilizadas como instrumento de cons-


trução do texto e do espetáculo. Portanto, elas cumprem tanto um papel de produção
de material bruto quanto de aprofundamento das proto-cenas que começam a se es-
boçar. Aliás, a enorme quantidade de imagens, de possibilidades de personagens e de
novos interesses temáticos, suscitados pelas improvisações, tornam o processo mais
complexo e estabelecem pontos de contato inesperados – além, é claro, de subverter
as “idéias primeiras” do grupo e da direção. Aliás, esse estado febril e convulsivo de
criação, decorrente de um sem-número de improvisações, provoca nos atores um
desprendimento, uma abertura, um despudor e uma suspensão da autocensura, que
só vêm ajudar na investigação.
O procedimento norteador básico desta prática é o da “tentativa-e-erro”. E, de
fato, experimenta-se muito, testam-se várias possibilidades, perscrutam-se vários ca-
minhos para, em boa parte das vezes, não se chegar a lugar nenhum. Contudo, esse
errar contínuo é condição sine qua non de qualquer investigação artística.
Em termos de condução, salvo onde dito o contrário, as improvisações podem
ser realizadas por meio de dinâmicas individuais, duplas, trios ou coletivamente. No
que se refere ao tempo de preparação, ele oscila de zero a vinte minutos. Tudo vai
depender da proposta. Por exemplo, se é fornecido um livro de fotografia aos atores
para que eles escolham ali alguma imagem, o tempo gasto na leitura e seleção das
fotos será necessariamente maior ao de uma frase-estímulo lançada de chofre. Con-
tudo, o tempo despendido não é garantia de melhor resultado. Prova disso é que as
improvisações à queima-roupa costumam produzir, freqüentemente, material cênico
de inegável qualidade.
Quanto aos jogos, eles também são bastante utilizados ao longo dos ensaios,
porém adaptados ou recriados para atender a alguma necessidade de investigação
temática ou interpretativa. Por exemplo, em O Livro de Jó, trabalhamos com um jogo
161

de resistência que espelhava a situação do protagonista ao ser testado por Satanás.


Cada ator deveria trazer três “provações”, em grau crescente de dificuldade, pen-
sadas sob medida para outro determinado ator – ou seja, se algum deles odiasse
fumaça de cigarro, o jogador-desafiante fumaria e baforaria na sua frente. Caso o
outro jogador conseguisse resistir às três “provações”, ele receberia um presente do
desafiante, também escolhido sob medida. Este é um exemplo da adaptação de jo-
gos comuns – ou mesmo de jogos infantis – para situações pertinentes ao projeto.

5.10 Pergunta/resposta

Tipo de improvisação proveniente do processo de trabalho da coreógrafa alemã


Pina Bausch, em que um conjunto de perguntas ou palavras-chave é utilizado para
estimular os bailarinos à produção de material cênico. Em nosso caso, a partir de
uma indagação relativa ao tema do projeto, os atores devem responder à queima-
roupa, sob a forma de um fragmento de cena. Esta dinâmica, em geral, é feita indi-
vidualmente.
A idéia é a produção de uma resposta imediata, espontânea, sem grandes refle-
xões, deixando aflorar elementos inconscientes e ilógicos. Também é importante o
fato de o ator não querer impressionar ou divertir o restante do grupo, nem com-
parar as suas respostas com a de outro companheiro. Não existem respostas certas
ou erradas para as perguntas propostas. Às vezes, por exemplo, uma resposta que
aparentemente tenha se desviado da pergunta, pode suscitar conexões inesperadas.
Por outro lado, a resposta cênica a ser dada não tem a obrigação de “responder” nada.
Ela pode simplesmente se constituir em uma nova pergunta, lançada de volta para o
dramaturgo, o diretor ou os outros atores.
Além disso, é comum muitas das questões não produzirem qualquer material de
interesse. Caso isso ocorra, – o que é normal e esperado –, o diretor pode optar por
reformular a pergunta ou propor uma questão inteiramente nova.

5.11 Escrita automática

Procedimento empregado pelos surrealistas, como forma de suscitar a produção


de um jorro textual, evitando mecanismos de autocensura. No processo de ensaio,
essa é uma prática que estimula os atores à criação verbal ou literária, fornecendo
162

também idéias, frases ou fragmentos de texto para o dramaturgo. Tais contribuições,


é claro, podem ou não ser incorporadas à peça. A escrita automática, portanto, é uma
improvisação redigida, realizada individualmente e à queima-roupa, com um tempo
exíguo de duração, a partir de uma pergunta ou bordão. Por exemplo, em Apocalipse
1,11, alguns dos estímulos utilizados foram “Quem você julgaria e por quê?” ou “Eu
me arrependo de...”, enquanto que em O Livro de Jó, “Eu acredito em...”.
Esta dinâmica ocorre de maneira simples: distribui-se uma folha em branco e um
lápis para os atores, fornece-se a pergunta ou bordão, e cada um deles, sentado ou dei-
tado no chão, escreve o seu texto, de forma ininterrupta. O ator não deve premeditar,
reescrever ou corrigir a gramática, a fim de que a escrita saia como um fluxo, sem
pausa nem controle. Ele não deve também se preocupar com clareza, lógica ou sentido,
nesse seu texto em erupção. Ao final de um curto tempo – não superior a dez minutos
– cada um deles vem à frente e faz uma leitura simples, não-interpretada, daquilo que
escreveu. Depois que todos leram, os textos são recolhidos e entregues ao dramaturgo.
Esse tipo de prática aquece e estimula os intérpretes a se colocarem como atores-
dramaturgos no trabalho.

5.12 Workshop

Improvisação com maior grau de elaboração, uma “quase-cena”, preparada com


um ou mais dias de antecedência, e que estimula a visão individual de cada ator em re-
lação a um assunto ou problema. Apesar de concebido individualmente, ele pode in-
corporar outros atores no momento das apresentações. É um dos eixos fundamentais
do processo colaborativo e coloca em evidência a função autoral do ator. Tanto como
o canovaccio ou o roteiro para o dramaturgo, ou a montagem e a ocupação espacial
para o encenador, o workshop é, para o ator, o seu espaço por excelência de criação e
posicionamento artístico.
O termo workshop, na verdade, tem pelo menos três significados distintos. O pri-
meiro deles é aquele que nomeia um “curso intensivo”, uma “oficina”, um “seminá-
rio prático”. A segunda acepção, de acordo com a tradição anglo-americana, o define
como um processo teatral de curta duração, em que se realiza o esboço de algo, que
poderá ou não ser desenvolvido posteriormente. É comum, tanto em companhias in-
dependentes (Wooster Group; Mabou Mines, etc.) quanto em teatros que criam e pro-
duzem suas próprias peças (Royal Court Theatre; New York Theater Workshop, etc.),
existirem esses “balões de ensaio” de possíveis novos trabalhos para o repertório.
Às vezes, uma peça-em-processo ou uma produção embrionária pode ser desen-
volvida por meio de vários workshops, separados por intervalos de tempo, até que se
163

decida por sua montagem oficial. O workshop, portanto, assume o caráter de teste, de
livre-exploração artística sem as pressões de produção, isto é, torna-se um espaço de
“segurança e intimidade”, como definido por Schechner. Segundo o diretor e teórico
americano, o “workshop é um tempo/espaço protegido onde as relações intra-grupais
podem se desenvolver sem serem ameaçadas por agressões extra ou inter-grupais”.
Talvez, em decorrência dessa idéia de “livre-experimentação”, o termo workshop vai
ganhar ainda uma terceira conotação. Entramos em contato com ela pela prática de
trabalho do grupo Boi Voador, dirigido por Ulisses Cruz. Nesse importante grupo pau-
lista da década de 80, o workshop traduzia a idéia já mencionada de uma “quase-cena”,
que era apresentada pelos atores durante o processo de montagem do espetáculo.
Uma pequena diferença entre esta prática e aquela realizada pelo Teatro da Verti-
gem repousa no fato de o Boi Voador – e de outros grupos da época – usar o workshop
principalmente em peças prontas ou em adaptações. Ele era um instrumento desti-
nado, com maior ênfase, à encenação e ao levantamento do espetáculo. No caso do
Vertigem, além de cumprir esse papel, o workshop tem importância fundamental na
criação e construção da dramaturgia.
É justamente no período de elaboração do texto que ocorre o maior número de
workshops. Evidentemente, eles servirão também à criação do espetáculo, porém, o
seu foco, nesse momento, está colocado no levantamento de material para o roteiro
e na investigação de possíveis personagens. Na última fase dos ensaios, pouco após a
entrada no espaço, a dinâmica de workshops deixa de existir.
Quanto à sua mecânica de funcionamento, trabalhamos sob determinados parâ-
metros, pactuados pelo grupo inteiro. Todos os dias, ao final do ensaio, o dramaturgo
e o diretor – ou apenas este último – propõem um estímulo para ser trazido na forma
de workshop no dia seguinte – ou no máximo dois dias depois, se assim determinado.
Esse estímulo pode ser uma palavra, uma frase, uma imagem ou um fragmento de
texto. No dia seguinte, todos os atores devem apresentar o seu workshop, o qual tradu-
zirá a visão pessoal daquele ator em relação à proposição dada.
À medida que os ensaios vão se desenrolando, é comum algum dos atores não
querer apresentar o seu workshop. Porém, em função do pacto firmado, tal possibili-
dade não existe. Ou seja, ele deve elaborar alguma cena, seja no intervalo do café ou
mesmo minutos antes de se apresentar. Este cotidiano de intensa profusão de cenas,
de incessante brainstorm gera um material heterogêneo e desigual. Por outro lado, po-
rém, esse caos criativo contínuo vai esgotando as idéias-prontas e abrindo o processo
para textos, imagens e soluções inesperadas.
Assim, a exaustão física grotowskiana parece, no processo colaborativo, ganhar
uma dimensão ligada à exaustão de propostas – idéias, textos, imagens ou cenas – as
quais os atores devem produzir no calor da hora do ensaio ou nos workshops trazidos

 schechner, r. Performance Theory. London: Routledge, 1994, pp. 103-104.


164

de casa. Contudo, essa exaustão não é aquela do cansaço, mas sim, do esgotamento
– no sentido deleuziano do termo. Isto é, não ocorre a extenuação, a desertificação
artística, mas sim, um esgotar total de possibilidades que acaba provocando o apare-
cimento inesperado de novas idéias ou conformações.
Poder-se-ia perguntar aonde desemboca tanto material cênico e textual produzido
nos workshops e improvisações. Conforme apontamos em nossa dissertação, uma par-
te dessa produção, de fato, se perde; outra parte se materializa no corpo dos atores
– ainda que de forma não explícita, como, por exemplo, numa qualidade de presença
– e uma última parte, enfim, se concretiza em cena. Ou seja, nem tudo se perde, mas
também nem tudo se transforma.
É fundamental que os atores se sintam livres para trazer de casa, naquelas 24
horas de preparação, o que quer que seja. Não deve haver censura, nem recusa de
nenhum impulso ou desejo que lhes ocorrer. Eles apresentam, então, um esboço de
cena ou uma improvisação estruturada, em que criaram e/ou selecionaram o texto
– se houver – as imagens, a música, os objetos, o espaço, a luz e os figurinos. Em
outras palavras, eles se exercitam enquanto atores-dramaturgos, atores-encenadores,
atores-cenógrafos e assim por diante – o que é diferente de se tornar ou assumir o
lugar do dramaturgo, do encenador ou do cenógrafo.
Além disso, a qualidade plástica ou técnica relativa a essas áreas não é o que
vem em primeiro lugar. O que importa é a materialização de um conceito ou de um
ponto de vista. Apesar disso, na prática, alguns workshops revelam alto grau de ela-
boração estética.
Após as apresentações do dia, o grupo todo realiza uma discussão sobre o que foi
visto e, a partir desse feedback, o diretor ou o dramaturgo pode solicitar a reelabo-
ração do material. O intuito é desenvolver melhor alguma idéia ou imagem cênica,
permitindo o aprofundamento do ator em relação às suas próprias visões. Não é inco-
mum, portanto, os atores apresentarem duas ou três versões de um mesmo workshop
– às vezes até com acréscimos de texto propostos pela dramaturgia.
Apesar de o depoimento pessoal ser inerente a tudo o que ocorre em sala de ensaio,
ele fica maximizado nos workshops. Isto, provavelmente, em decorrência da formaliza-
ção cênica por eles exigida. Em outros tipos de improvisação, por exemplo, é comum a
alternância de momentos de acirramento e de diluição deste depoimento. O workshop,
ao contrário, exige uma síntese artística que estimula o ponto de vista individual.

 Segundo Deleuze, no posfácio às peças para televisão de Beckett, entitulado L’Epuisé,


“o esgotado é muito mais do que o cansado. [...] O cansado apenas esgotou a realiza-
ção, enquanto o esgotado esgota todo o possível. [...] apenas o esgotado pode esgotar
o possível, uma vez que ele renunciou a toda necessidade, preferência, finalidade ou
significação”. In:���� beckett, s. Quad et autres pièces pour la television. �����������������������
Paris: Les Éditions de
Minuit, 1992, pp. 57-61 (trad. Alexandre de Oliveira Henz).
 � silva, a.
������� ������ � A Gênese da Vertigem: o Processo de Criação de ‘O Paraíso Perdido’, p. 98 e p.150.
c. a.,
165

Não devemos nos esquecer, porém, que apesar de planejado solitariamente por
um ator, ele acaba congregando o grupo inteiro em sua execução. Na maior parte
das vezes, esse ator-encenador convida os outros intérpretes a participarem de sua
proposta. Não há ensaio, tudo é combinado na hora e improvisado ali mesmo. No
entanto, seguindo as indicações de uma estrutura dramatúrgica e cênica elaborada
previamente pelo ator-proponente.
Essa dinâmica propositiva individual acaba fomentando, como já vimos, um tipo
de dramaturgia monológica. Contudo, tal tendência pode ser revertida por meio da
firme interferência do dramaturgo durante a elaboração do texto. Ela também pode
ser atenuada pelo estímulo do encenador à realização de exercícios dialogados e de
um maior número de improvisações coletivas.
Porém, a natureza pessoal e particular do workshop não é a responsável pela trans-
formação da peça numa descosida colcha de retalhos. Não nos esqueçamos de que es-
sas “quase-cenas” aparecem com maior força na primeira etapa do trabalho. Ou seja,
ainda que tenhamos uma constelação de discursos individualizados, não conectados
entre si, eles só explicitam os diferentes pontos de vista presentes no grupo. O passo
seguinte do processo, como veremos, consiste na busca dos mínimos denominadores
comuns e na conseqüente construção de um discurso coletivo.
Por fim, gostaríamos de apontar que, na seqüência das atividades de um dia de
ensaio, o workshop aparece como a última dinâmica, sendo seguido apenas pela ava-
liação grupal do que foi desenvolvido naquele encontro. A idéia é de um encaminha-
mento que vá “aquecendo” criativamente os atores. Parte-se do treinamento direcio-
nado, de caráter mais físico, para uma instância mais subjetiva, materializada pelas
vivências. A seguir, vêm as improvisações – grupais, em duplas ou em trios; temáti-
cas; de personagens; escrita automática; pergunta/resposta, etc. – e somente então,
são apresentados os workshops, culminado o dia de trabalho. Portanto, resumindo, a
seqüência que geralmente é empregada nos ensaios é a seguinte:

treinamento direcionado ç vivência ç improvisações ç workshops ç avaliação


do dia de trabalho

5.13 Seleção do material

Quais são os critérios que orientam a escolha do material, tendo em vista a enor-
me quantidade de exercícios, improvisações e workshops realizados durante a fase
inicial dos ensaios? É neste momento que a existência de funções artísticas definidas
cumpre um papel fundamental.
166

É claro que tudo o que é produzido ao longo do processo vai sendo debatido, dia-
riamente, por todos os integrantes. Essa dinâmica cotidiana de discussão estimula
o reconhecimento de zonas de interesse comum e, também, é lógico, das áreas de
conflito. Daí que, uma parte das escolhas ocorre organicamente, por meio do diálogo
e da negociação, cabendo ao dramaturgo ou ao diretor apenas o papel de facilitar,
mapear ou organizar as distintas sugestões e opiniões. Ambos podem contribuir tam-
bém para deixar explícito e assumido aquilo que o grupo deseja excluir da obra, ou
seja, funcionariam como uma espécie de consciência da via negativa do trabalho.
Contudo, outra parte da seleção – seja pelo seu caráter mais polêmico, duvidoso ou
delicado – é difícil de ser feita. Por exemplo, em razão do apego aos próprios depoimen-
tos pessoais – atitude compreensível e justificável – os atores tendem a lutar pela perma-
nência de um volume de material maior do que o desejável. Daí se tornar premente a
interferência incisiva, do dramaturgo e do diretor, em relação às escolhas a serem feitas.
Nessa etapa do processo, por exemplo, é necessária a transformação das idéias e
proposições em um canovaccio. Portanto, o dramaturgo precisa chamar a responsabili-
dade para si em relação a essa estruturação. Tarefa difícil, pois se parte de um momen-
to em que tudo pode, marcado por vigorosa ebulição criativa, para a primeira tentativa
de roteirização, na qual deve imperar uma rigorosa e cuidadosa seleção. Desnecessário
dizer que, em geral, esse é o primeiro grande momento de crise no processo.
A tarefa da dramaturgia não se restringe apenas a apontar o que fica e o que sai,
mas também a identificar o material que carece ainda de maior desenvolvimento – o
que significa a necessidade de mais improvisações e workshops. Porém, o fator mais
determinante dessas escolhas é justamente a própria cena. Isto é, aquilo que funciona
ou não, teatralmente. Deve-se evitar transformar essa etapa de seleção numa arena
argumentativa, na qual a esgrima verbal e a retórica discursiva tornam-se as principais
fontes de convencimento. Ao contrário, é a cena que deve nos dizer – e convencer – do
que, de todo o material levantado, deve permanecer ou ser eliminado. Como afirma
Luís Alberto de Abreu, a cena “é o fiel da balança e, como algo concreto e objetivo, é
hierarquicamente superior à idéia, à imagem, ao projeto, às visões subjetivas”10.

 Alonso Alegría, dramaturgo e diretor teatral peruano, identifica nessa etapa do tra-
balho um dos pontos mais problemáticos da criação coletiva. Segundo ele, “é uma
miscelânea de coisas, tem muitas mãos nesse prato, (...) quem quiser trazer o seu, pode
trazer o seu, e como não é aceitável que um indivíduo diga em relação aos dez temas
ou dez cenas apresentadas pelos dez integrantes do grupo, que diga para examinarmos
uma e abandonarmos as outras nove, isso é impossível, porque isso não é muito cole-
tivo. Como não há um diretor autoritário, não existe quem possa dizer isso e, então,
o que acontece? Opta-se por apresentar as cenas de todo mundo ou aquelas em que
tenha havido um consenso, ao invés de – desnecessário dizer – colocarmo-nos todos
de acordo para escolher um único incidente, para examiná-lo com profundidade” [In:
céspedes, f. g. (org.). El Teatro Latinoamericano de Creación Colectiva., pp. 64-65].
10 abreu, l. a., “Processo Colaborativo: relato e reflexões sobre uma experiência de cria-
ção”. In: Cadernos da ELT, p. 38.
167

Abreu define cena “não como a unidade acabada, mas qualquer organização de
ações proposta por atores, diretores ou dramaturgos”11. Portanto, a idéia é observar
atentamente o conjunto do material cênico produzido até ali – o qual, evidentemen-
te, apresenta uma qualidade precária e inacabada – e “perguntar” a ele ou encontrar
nele, as balizas do roteiro.
É importante ter em mente que, além dos critérios gerais até aqui levantados,
cada obra vai demandar ou criar os seus próprios critérios de seleção. Ou seja, o pro-
cesso de elaboração do texto – e da cena – gera os seus parâmetros específicos de es-
colha. Daí a necessidade de se estar atento ao fluxo da criação e de desenvolver uma
capacidade de escuta que permita identificar tais parâmetros no seu nascedouro – ao
invés, simplesmente, de impor uma visão exógena e desconectada do processo.

5.14 Canovaccio

Termo proveniente da commedia dell’arte e empregado por Luís Alberto de Abreu


para definir a “estruturação básica das ações e personagens”12. Trata-se, portanto,
da primeira organização ou sistematização, por escrito, do material criativo surgido
em sala de ensaio. Pode ser definido como um roteiro sem falas ou escaleta – termo
usado no cinema – que propõe um percurso com início, meio e fim, de situações
e personagens, de cenas e de ações, de imagens e de conceitos do trabalho. Ele é o
primeiro passo rumo à construção do texto final e da dramaturgia da cena. Insisto
na presença desses dois aspectos porque, apesar do canovaccio estabelecer uma asso-
ciação mais direta com a produção do texto escrito, ele é, também, uma ferramenta
importante na estruturação do espetáculo. Por mais que dividamos em etapas a
constituição dessas duas instâncias, trata-se apenas de uma questão de ênfase, pois
a feitura do texto e da montagem ocorrem simultaneamente no processo colabora-
tivo. Na verdade, poderíamos dizer que o espetáculo já começa a se delinear desde
a primeira improvisação.
Abreu alerta ainda que “embora o canovaccio seja responsabilidade da dramatur-
gia ele não se constitui em mera ‘costura’ das propostas do coletivo nem uma visão
particular do dramaturgo”13. Ou seja, o dramaturgo não se transforma em mero es-
criba de improvisações, atuando apenas como copidesque dos ensaios. Por outro lado,
essa estruturação dramatúrgica precisa dialogar em alguma medida com o que vem

11 abreu, l. a., “Processo Colaborativo: relato e reflexões sobre uma experiência de cria-
ção”. In: Cadernos da ELT, p. 38.
12 Ibid., p.38.
13 Ibid., p. 38.
168

sendo criado em ensaio. É essa tensão entre voz individual e voz coletiva, marca – e
cicatriz – do processo colaborativo, que deverá moldar o corpo do canovaccio.
Na prática do Vertigem, costumamos também denominar esse primeiro roteiro-
geral como “esqueleto” ou “varal de cenas”. Além disso, já experimentamos esboçar
inicialmente um argumento – espécie de sinopse do trabalho, na qual, em um ou dois
parágrafos, são descritas as circunstâncias centrais e as trajetórias das personagens
– para só então haver a construção do canovaccio.

5.15 Improvisação do canovaccio

Após a definição do canovaccio, parte-se para a sua improvisação integral, sem


interrupções. Por se tratar da primeira tentativa de organização, o resultado dessa
improvisação costuma ser bastante extenso e extenuante. Apresenta, em média,
uma duração de quatro a seis horas. Além disso, dada a complexidade da empreita-
da – em que, por exemplo, são resgatadas personagens, imagens ou fragmentos de
cena que foram improvisadas várias semanas antes – tornam-se necessários um ou
mais dias de preparação. Os atores precisam se lembrar do que fizeram, os objetos
de cena e figurinos necessitam ser resgatados, o roteiro de músicas e de ocupação
do espaço tem que ser confeccionado, enfim, toda uma preparação material e logís-
tica deve ser realizada.
Como é importante a percepção do todo, disposto num fluxo contínuo, a improvi-
sação da íntegra do canovaccio não deve ser interrompida – aconteça o que acontecer.
Portanto, não está previsto nenhum intervalo durante a apresentação.
Além disso, todo o material é gravado em vídeo, a fim de fornecer uma memória do
processo, um arquivo de cenas e um suporte imagético para os posteriores desenvolvi-
mentos dramatúrgico, cênico e mesmo interpretativo. Por exemplo, ao ocorrer a transfe-
rência de uma determinada personagem, do ator-propositor para outro ator, esse material
gravado poderá servir como base de apoio, estudo ou referência. Ou seja, a gravação cum-
pre o papel de “texto escrito” da peça, associado ao elemento de sua realização cênica.

5.16 Feedback

Um elemento-chave do processo colaborativo, que irá atravessá-lo inteiramente,


do primeiro ensaio à última apresentação, é aquele relativo ao exercício da crítica e
do feedback. Realizado diariamente por todos os integrantes do grupo, ao se discutir
169

as improvisações e os workshops, ele assume um papel igualmente importante no pe-


ríodo de seleção e construção do texto.
É a partir dos comentários e das impressões sobre o material visto que as escolhas
serão definidas e que as perspectivas de desenvolvimento aparecerão. A crítica aqui,
não tem caráter apenas avaliador ou de julgamento, mas assume função propositiva,
capaz de estimular e impulsionar os desdobramentos artísticos do projeto.
Contudo, tal exercício pressupõe um aprendizado específico e certo grau de ama-
durecimento da equipe de criação. Como divergir da improvisação do parceiro sem
desmerecê-la, e, ao mesmo tempo, deixar claras as razões da discordância? Como
ouvir a crítica negativa em relação a determinada proposição, sem tomá-la pessoal-
mente? Na maior parte das vezes, o que está em jogo não são o acabamento ou a exe-
cução técnica perfeita do que foi apresentado, mas sim o sentido daquilo no âmbito
da estrutura da obra, do projeto estético ou do discurso coletivo da companhia.
Se o excesso crítico pode gerar entraves e bloqueios, intimidações e constrangi-
mentos – elementos arruinadores de qualquer processo criativo –, o constante “pisar
em ovos”, o cuidado extremado, o elogio indiscriminado e o recalque ou sublimação
da instância crítica podem ser igualmente nocivos.
Além disso, se o feedback cumpre uma função criadora e propositiva nos ensaios,
ele pressupõe, também, uma interferência na área de criação alheia. Tal perspectiva
não só é bem vinda como deve ser estimulada. Ela faz parte da natureza do processo
colaborativo. Porém, de novo, é necessário estar atento, tanto para quem critica e
sugere como para quem recebe a avaliação, para não transformar sugestão em impo-
sição, ou assimilação em “política de boa vizinhança”. Interferir não significa desres-
peitar, nem muito menos anular ou tomar o lugar do outro.
Se realizado de forma madura e respeitosa, o processo continuado de feedback
consolida e aguça o olhar crítico do grupo, criando uma prática de reflexão que só
contribui para o aprofundamento da pesquisa. A crítica ao outro e a crítica a si pró-
prio criam uma dinâmica de retroalimentação e elevam, positivamente, o padrão de
qualidade e de exigência do trabalho.
Pelo caráter precário e afeito a constantes mudanças, a obra-em-construção exige
um tipo de crítica processual, ela também. Por mais que se vejam cenas “prontas”,
textos impressos, conformações estéticas “definidas” é preciso treinar o olhar para
observar aquilo como algo em mutação. Não se observa – e se critica – apenas “o-que-
é”, mas também “o-que-pode-vir-a-ser”. Essa percepção da potencialidade, do germe,
do esporo, provoca uma abertura no campo de visão e evita abortos artísticos apres-
sados e desnecessários.
A crítica processual tem caráter propositivo. Ela não apenas aponta os problemas,
mas procura encontrar as possíveis soluções. É uma crítica imaginativa e criadora,
capaz de se colocar no lugar do outro sem, contudo, roubar-lhe a posição. Por outro
lado, aprender a receber um feedback dessa natureza, significa tornar-se permeável,
170

deixar-se contaminar, flexibilizar o controle sobre a própria criação. A influência


aqui não deve causar angústia.
Esse exercício de escuta, interferência e transformação prepara o grupo para o
feedback mais arriscado, aquele que ocorre durante os ensaios abertos e apresenta-
ções. A crítica por parte de indivíduos completamente alheios ao processo pode ser
bastante desestabilizadora, porém, por outro lado, se ganha o olhar virgem sobre a
obra. Treinada numa prática crítico-propositiva ao longo dos ensaios, a companhia
tem maiores condições de conseguir filtrar o ataque gratuito da sugestão oportuna.
Consegue ter maturidade para ouvir ou ler os comentários da platéia e encaminhar
as modificações que façam sentido para aquele projeto artístico em questão.
Em geral utilizamos o termo “feedback” no lugar de “crítica”. Por mais que se fale
em crítica construtiva ou processual ou criadora, este termo traz ainda, infelizmente,
uma conotação negativa de julgamento e valoração. Caber-nos-ia resgatar o sentido
de discernimento da raiz desse termo – o que não é tarefa simples, dada a carga de
significação que lhe foi imposta. A palavra feedback, ao contrário, pelo significado
presente em sua construção composta, traz a idéia de “alimentar de volta” ou de “re-
troalimentação”. Ser nutrido – e não destruído – pelo comentário do outro, carrega
uma conotação positiva e generosa, de partilhamento e cumplicidade.

5.17 Roteiro

Após a discussão e avaliação do canovaccio, realizada pelo grupo todo, a dramaturgia


inicia a decupagem e o detalhamento dos conteúdos de cada cena e a revisão do po-
sicionamento delas na estrutura. Além disso, a necessidade de exclusão ou criação de
novas cenas também é colocada em pauta. Em suma, ocorre a reelaboração do canovac-
cio – primeira síntese dramatúrgica – na busca de uma nova conformação, mais consis-
tente e estruturada. Ela é chamada, então, de “segunda versão do canovaccio” ou – como
denominamos em nossa prática, a fim de melhor distinguir as etapas – de “roteiro”.
O objetivo central desta segunda estruturação é trabalhar contra a superficiali-
dade e o esquematismo que rondam a dramaturgia de origem coletiva. Por exemplo,
a elaboração de novas cenas pode vincular-se ao desenvolvimento da trajetória de
determinada personagem ou à criação de pontos de tensão e de contradição na estru-
tura. Busca-se, também, a redução do recorte temático a fim de evitar o dado pano-
râmico – em detrimento da complexidade. Procura-se engendrar, ainda, uma rede de
conexões mais sólida entre as diferentes cenas e personagens.
Apesar do roteiro ainda não possuir falas, a concatenação das cenas, a trajetória
das personagens e o conteúdo central de cada trecho da estrutura encontram-se mais
claros para todos.
171

Finalizado o roteiro, parte-se para a sua improvisação na íntegra, em moldes se-


melhantes àqueles empregados para o canovaccio. A diferença qualitativa principal
reside no maior grau de apropriação do material por parte dos atores. O resultado,
menos precário do que o anterior, ainda assim apresenta qualidade irregular, espe-
cialmente pelo fato de as falas serem improvisadas. Por mais que o eixo temático e
o percurso das personagens estejam definidos, os diálogos improvisados costumam
ser extensos e prolixos. Em razão disso, o tempo de duração dessa apresentação do
roteiro é pouco menor do que aquela do canovaccio.
Desnecessário dizer que parte considerável do quebra-cabeça realizado pela dra-
maturgia, modificando cenas de lugar e reordenando episódios ou seqüências, se
dá também por “tentativa-e-erro”. Daí a necessidade do roteiro ser testado e corrido
integralmente mais de uma vez, a fim de se verificar os pontos frágeis e as propostas
de modificação.

5.18 Primeira versão do texto

Terminada a experimentação do roteiro, a dramaturgia inicia a escritura do texto


propriamente dito. Esse é o momento em que os monólogos e diálogos começam a
apresentar melhor qualidade literária e a peça, finalmente, ganha corpo. Além disso,
há a depuração de todos os aspectos dramatúrgicos já levantados (personagens, eixo
temático etc.).
O texto, em geral, não é entregue de uma vez, mas sim, em blocos. Toda semana
o dramaturgo escreve e apresenta novas cenas, que serão trabalhadas pela direção
e atores. É comum, a partir desse momento, uma presença menor do dramaturgo
em sala de ensaio, por encontrar-se em pleno processo de confecção do texto. Além
disso, a sua ausência no dia-a-dia do trabalho permite-lhe uma visão mais distanciada
do que vem sendo produzido pelo grupo, fator este que contribui para uma melhor
avaliação dos resultados.
Na prática do Vertigem, tudo o que é ensaiado durante a semana é apresentado
ao final da mesma, por meio de um pequeno “corrido”. Esse é o momento em que
o dramaturgo está presente para assistir ao trabalho que foi realizado com o texto,
e marca também o encontro com todos os outros colaboradores. Após os corridos é
realizada uma reunião geral de avaliação, na qual devem comparecer, no mínimo,
os atores, o diretor e o dramaturgo. Trata-se de intensa ocasião de troca e feedback,
tanto pela presença de todos – ou quase todos – os criadores, quanto pela possibili-
dade de uma reflexão “a quente”, logo após a apresentação das cenas. Esse corrido
semanal é a oportunidade que o grupo tem de começar a perceber, de fato, a obra-
em-construção.
172

É freqüente o acirramento dos ânimos nessa etapa, já que de todas aquelas pos-
sibilidades infinitas de obras, esboça-se a materialização de apenas uma. O ator, por
exemplo, não improvisa mais longos monólogos, devendo, ao contrário, memorizar
um conjunto reduzido de frases. Tudo começa a ser sintetizado e o grupo é obrigado
a encarar as resultantes de seu esforço. Além disso, esse é o momento em que ainda
cabe alguma grande modificação estrutural. Daí a presença de um maior fôlego nos
embates e discussões.
Se, por todas as razões expostas, a dramaturgia encontra-se na berlinda, sofren-
do pressões de toda ordem, a encenação, por sua vez, está mais livre para realizar
experimentações. É o momento em que são testadas possibilidades de estilos, de
linguagens, de espacializações e de atmosferas. Por não estar no foco das atenções,
o diretor adquire um espaço privilegiado para testar as suas idéias e encaminhar os
seus decorrentes desdobramentos. O mesmo ocorre com os outros criadores. A cada
semana, nessa fase, figurinista, cenógrafo, iluminador e diretor musical utilizam o
“corrido” para experimentar as suas propostas. Isto cria uma ebulição artística, uma
efervescência teatral, que torna cada “corrido” um espetáculo à parte.
Apesar da imbricação e da simultaneidade de todos os aspectos da montagem, se-
ria oportuno relembrar o trajeto percorrido pela escritura dramatúrgica:

argumento ç canovaccio ç roteiro ç texto

5.19 Análise Ativa

À medida que as cenas vão sendo escritas e enviadas ao grupo, é realizado um


trabalho de estudo de texto, baseado nos procedimentos stanislavskianos da Análi-
se Ativa. Por se tratar de uma metodologia dinâmica, que alterna instâncias teóri-
cas e práticas, ora trabalhando analiticamente sobre o texto, ora estudando as suas
motivações em cena, ela parece bem adequada à abordagem de uma dramaturgia
em processo.
María Knébel, citando o próprio Stanislavski em um encontro que tiveram, afirma
que “a análise ativa é um dos meios que conduzem o ator a um estudo profundo e
concreto da ação, e que revela a mola das forças motrizes da obra”14.
Essa forma de trabalho também auxilia os atores na memorização das falas, pois
a sua instância prática pressupõe o acompanhamento da lógica argumentativa e
das linhas de ação, tais como foram escritas. Na verdade, ela funciona como um ins-

14 knébel, m. o. La Palabra en la Creación Actoral. Madrid:


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Editorial Fundamentos, 2000, p. 56.
173

trumento para a descoberta das ações – instrumento este que se encontra ancorado
no esqueleto da peça – possibilitando aos intérpretes, a partir daí, a memorização
do texto.
Segundo Bella Merlin, o objetivo central da Análise Ativa, além de retirar o ator
da passividade inerente às “leituras de mesa”, é fazê-lo encontrar a partitura das
ações físicas. Para tanto, realiza-se a seguinte seqüência:

1. Você lê uma cena;


2. Você discute a cena;
3. Você improvisa a cena sem maiores referências ao texto;
4. Você discute a improvisação, antes de retornar ao texto;
5. Você compara o que quer que tenha ocorrido na sua improvisação com as pala-
vras e os acontecimentos do texto, tal como ele foi escrito.15

Aliás, a aplicação desse mecanismo de análise acaba auxiliando na identificação


de pontos cegos, de “buracos” e de falhas na construção dramatúrgica. A Análise
Ativa, portanto, não cumpre apenas um papel de avaliação e mapeamento, mas gera
novas propostas para a reescritura da peça. Muitas das modificações ocorridas entre
a primeira e a segunda versão do texto são dela decorrentes.
Além da Análise Ativa, são propostos ainda jogos e improvisações, os quais procu-
ram investigar as circunstâncias, as motivações das personagens, os conflitos entre
elas e os seus traços característicos. Como, nesse momento, já se trabalha sobre um
texto concreto – ainda que em estado de mutação – os procedimentos não diferem
muito daqueles empregados no estudo de uma dramaturgia previamente escrita. O
diferencial reside na constante lembrança e percepção de que se está atuando sobre
um objeto móvel, em contínua transformação.
Depois que o texto inteiro – cena após cena – foi analisado e levantado, realiza-se
um novo corrido do trabalho, na íntegra. Esse corrido – e os próximos que virão – vai
gerar outras modificações e, conseqüentemente, novas versões do texto irão surgir. É
comum a produção de cinco, seis ou mais versões até o final da temporada. Ou seja,
o trabalho com a dramaturgia continuará mesmo depois da estréia.

5.20 Pesquisa de interpretação

Um dos perigos do processo colaborativo é a utilização do tempo de ensaio apenas


para a resolução de questões dramatúrgicas, deixando em segundo plano o trabalho

15 merlin, b. The Complete Stanislavsky Toolkit. London: Nick Hern Books, 2007, p. 197.
174

do ator e os problemas da encenação. Na trajetória do Vertigem, a experiência de O


Paraíso Perdido – em que incorremos em tal erro – serviu de lição.
É claro – como já dissemos – que dramaturgia, encenação e interpretação se de-
senvolvem simultaneamente, desde o início. Ou seja, o ator já se encontra desen-
volvendo uma qualidade de presença ou estudando uma possível linha expressiva
desde o primeiro dia de ensaio. Na verdade, a diferença reside apenas numa questão
de ênfase. Existem períodos do processo em que o texto está em maior evidência en-
quanto, em outros, por exemplo, a preocupação com o espaço se destaca.
Se por um lado, o acúmulo de experiências ao longo do processo – via treinamen-
to, improvisações e workshops – vai necessariamente se materializar no corpo e voz
do ator, por outro, é importante dedicar uma atenção específica e detalhada à cons-
trução interpretativa. Na medida em que o ator é solicitado a pensar e a agir como
dramaturgo e encenador – e assim o será até mesmo após a estréia – é fundamental
que o processo também abra espaço para o seu exercício enquanto intérprete. Isso,
de novo, sem nos esquecermos de que essa condição de ator-dramaturgo-encenador
já cria e instaura, por si mesma, outro registro de interpretação.
Nesse sentido, procuramos realizar práticas que aprofundem o trabalho de atua-
ção. Trata-se de procedimentos já utilizados durante a criação da dramaturgia – jogos,
exercícios e improvisações – porém, agora, voltados exclusivamente para esse fim. Por
exemplo, ao invés de uma vivência de exploração temática – talvez desnecessária a
essa altura – é proposto um exercício de estados internos relativos ao personagem. Os
workshops também mudam de foco, acirrando o cruzamento de componentes pessoais
com as figuras a serem representadas. Além disso, é idealizada uma pesquisa de campo
específica para cada ator, voltada exclusivamente para as suas necessidades e interes-
ses. Como também se trata de uma interpretação-em-processo, a direção de atores vai
se estender por toda a temporada, incorporando a pesquisa interpretativa à presença
do público.

5.21 Investigação e apropriação do espaço

O processo colaborativo pode gerar espetáculos destinados a qualquer tipo de


espaço cênico, seja ele italiano, arena, semi-arena ou “não-convencional”. Como essa
reflexão sobre procedimentos toma como base a experiência do Teatro da Vertigem,
falaremos sob o ponto de vista da ocupação de espaços públicos e urbanos, não-ins-
titucionalmente destinados ao teatro, numa categoria denominada site specific. Não
trataremos, porém, da luta política, burocrática, administrativa e de produção para a
liberação dos locais de apresentação – que ocorre paralelamente ao processo de cria-
175

ção do texto e da montagem. Partiremos do momento em que o espaço encontra-se


disponível para a realização dos ensaios.
A encenação, apesar de experimentar registros e formalizações concomitante-
mente à escritura do texto, só vai se consolidar enquanto visão e linguagem após a
entrada no lugar. Isso, é claro, por se tratar de um trabalho de natureza site specific. O
espaço, nesse caso, é um divisor de águas na criação do encenador, além de configu-
rar-se como um elemento autônomo no espetáculo. Por outro lado, – é importante
ressaltar –, a função criadora do encenador encontra-se presente ao longo de todo o
processo, não se restringindo apenas a essa fase.
O local da apresentação, evidentemente, afetará também a dramaturgia – que
deverá ser reelaborada à luz desse novo elemento – e o trabalho dos atores, o qual
sofrerá um redimensionamento radical em razão desta ocupação. Ou seja, o processo
de descoberta, exploração e diálogo com o espaço será compartilhado por todos.
Entre algumas das atividades que congregam todo o grupo, poderíamos citar os
exercícios de percepção espacial ou de sensibilização arquitetônica, os workshops re-
alizados a partir de algum nicho específico ou, ainda, as improvisações de implanta-
ção das cenas para aquele novo local. O espaço, nesse momento, passa a ser o motor
e o objetivo da colaboração.
O mesmo vigor e ebulição investigativa que a companhia sentiu durante a confec-
ção do canovaccio e do roteiro são, de certa forma, revividos aqui. Testa-se com grande
liberdade a conformação do espetáculo àquela nova lógica arquitetônica. Por exem-
plo, a mesma cena é experimentada em nichos distintos e o percurso do espetáculo
é improvisado em diferentes trajetórias espaciais.
Assim que o trajeto é definido, inicia-se a exploração de possibilidades cênicas em
cada trecho. Novas improvisações são solicitadas aos atores e o dramaturgo começa a
adequar a sua escritura àquelas condições arquitetônicas. O próprio deslocamento de
um nicho a outro, ou de uma cena à seguinte, pede acréscimos ou exclusões de texto
que não estavam previstas.
Acrescente-se a isso o impacto que o local exerce na sensibilidade dos intérpretes,
afetando tanto a qualidade de presença quanto a construção das personagens ou fi-
guras. Os elementos de perigo e de risco, inerentes a esses lugares, fazem com que os
atores saiam de suas zonas de segurança e atuem num estado quase sempre limite.
Dentro da prática do Teatro da Vertigem, desenvolvemos a seguinte seqüência de
procedimentos em relação ao reconhecimento e à apropriação espacial:

• Livre-exploração do local: primeiro contato com o ambiente, realizado por


meio de uma “caminhada”, “dança” ou de alguma vivência sensorial, sem
nenhuma preocupação ou vinculação com a peça ou as personagens. A
idéia é se deixar levar pela atmosfera ou pela própria curiosidade;
• Jogos: abordagem lúdica e descompromissada de lidar com o lugar, por
176

meio de jogos infantis clássicos ou adaptados (esconde-esconde, cabra-cega,


caça ao tesouro, etc.). Tal dinâmica ajuda a “quebrar o gelo” com o local,
atenuando os constrangimentos, a timidez e os eventuais medos;
• Viewpoints de espaço: técnica adaptada para o teatro pela diretora america-
na Anne Bogart, que trabalha com improvisações de movimento a partir
de aspectos ligados à arquitetura e à topografia (dimensões do ambiente,
texturas, luminosidade, etc.);
• Encontrando ou construindo a “casa” da personagem: primeira dinâmi-
ca de aproximação ao universo da peça. Também com caráter lúdico, ela
consiste em propor aos atores que busquem – ou construam – um nicho
dentro do espaço, que servirá como “morada” de suas personagens;
• Jogos e improvisações situacionais: buscam, por meio de impressões subje-
tivas ou de “tentativa-e-erro”, um diálogo do espaço com situações ou cir-
cunstâncias concretas da peça. Nesse momento, inicia-se, de fato, a com-
plexa “transposição” e reconfiguração daquilo que foi construído em sala
de ensaio para uma nova conformação arquitetônica;
• Experimentações da trajetória do espetáculo e do percurso do público den-
tro do espaço: através de vários “corridos” da peça inteira, vão sendo testa-
das diferentes possibilidades de ocupação, estruturação e deslocamentos.
Trata-se do momento de espacialização da seqüência integral das cenas,
procurando identificar relações plásticas, simbólicas e metafóricas com o
lugar. É a primeira vez, também, que se experimenta a materialidade do
texto em diálogo com a concretude do local. Em suma, esta etapa instaura
o processo de ressignificação do espaço;
• Ensaios de marcação: definida a trajetória espacial da peça, inicia-se o trabalho
de investigação das possibilidades de cada cena dentro do nicho escolhido;
• Ensaios de aprofundamento da interpretação: além da apropriação espacial
e do domínio técnico na relação com o lugar e seus objetos – fundamental
para evitar acidentes –, estes ensaios exploram outras camadas de diálo-
go do ator com a arquitetura. Ao invés de “brigar” com o espaço e as suas
dificuldades, buscam-se maneiras de utilizar os elementos arquitetônicos,
atmosféricos, acústicos, “energéticos” ou ligados à história ou memória do
lugar, a favor do trabalho interpretativo. A idéia é potencializar o estado de
presença do ator ou os aspectos simbólicos das personagens por meio da re-
lação concreta com a materialidade e a significação dos objetos e do local;
• Corridos e ensaios gerais: fundamentais para o domínio da “logística de
deslocamentos” de uma zona a outra, de um nicho a outro. Eles marcam
também a etapa final do processo de apropriação do lugar;
• Ensaios abertos: importantes na definição da quantidade real de especta-
dores por sessão, na compreensão do deslocamento do público pelo espaço,
177

na correção de problemas de visibilidade e na identificação de elementos


de risco para a platéia, que não foram ainda percebidos.

Pelo esquema acima proposto, pode-se perceber um percurso no processo de ocu-


pação espacial, que parte do ator para a personagem, e daí para o espetáculo como um
todo. Conquistado isso, volta-se novamente para uma instância menor, primeiramente
relativa à cena, e depois, ao trabalho individualizado de cada ator. Somente, então, con-
sidera-se o espetáculo levantado. Poderíamos, portanto, resumir assim este percurso:

o ator no espaço ç a personagem no espaço ç a trajetória do espetáculo


no espaço ç a espacialização de cada cena em seus respectivos nichos ç
a individualização do trabalho do ator no diálogo com o espaço ç ensaios corridos

5.22 Ensaios abertos

Concluída a fase de ocupação cênica do espaço, o processo se abre, novamente, a


outras colaborações. Na medida em que já é possível “correr” o esboço do espetácu-
lo, do início ao fim, sem interrupções, realiza-se, finalmente, a abertura dos ensaios
para eventuais interessados.
O feedback dos espectadores, por meio de conversas ou questionários distribuídos
ao final da apresentação, identifica problemas até então não percebidos, além de
fornecer sugestões úteis à montagem. Nesse sentido, o público torna-se um parceiro
concreto da criação, interferindo na materialidade da própria obra.
O fator “colaborativo” se amplia nessa convocação da platéia para a arena do pro-
cesso. Tem-se um público participativo se exercitando numa recepção processual. A
criação explode os muros da sala de ensaio, ocupa o espaço público e transforma os
espectadores em agentes transformadores da obra. Por outro lado, os artistas ganham
outros “parceiros” de trabalho, e um novo aprendizado de escuta se faz necessário.
Diferentemente das avaliações de marketing com potenciais consumidores ou mes-
mo dos testes de público no teatro comercial, o objetivo dos ensaios abertos não
é tornar a peça mais palatável e entretida – e, portanto, mais vendável – mas, ao
contrário, a sua meta é encontrar mecanismos de intensificação da experiência e de
radicalização do olhar crítico.
Parece-nos sintomático que essa busca de outra relação com o público, baseada
não na manipulação, mas no resgate de sua dimensão de cidadania, dialogue com a
maneira como as próprias relações internas se estabelecem no interior da compa-
nhia. Se compreendermos o grupo teatral como um microcosmo social, com leis de
178

funcionamento e convivência, é de se esperar que discurso e obra, que ética interna


e ações externas, estejam integradas ou se espelhem.
Na prática do Vertigem, os ensaios abertos têm a duração de quatro a seis sema-
nas. O texto e a cena se modificam sensivelmente após essa interferência direta dos
espectadores. Uma nova versão da peça é produzida, a montagem incorpora grande
parte das críticas e sugestões oferecidas e, para os atores – além das contribuições
mencionadas – a presença da platéia marca uma nova etapa em seu trabalho, já que,
a partir daí, o fenômeno teatral se completa.

5.23 Ensaios durante a temporada

A estréia do espetáculo não determina a finalização do processo. Durante vários


meses ao longo da temporada, seja por avaliação interna da companhia, seja por co-
mentários do público, outras alterações textuais e cênicas são ainda efetuadas.
Os questionários continuam a ser distribuídos e é comum ocorrerem apresen-
tações especiais para grupos específicos de espectadores – estudantes de teatro ou
arquitetura, moradores de uma determinada comunidade, escolas de ensino médio,
etc. Tais espetáculos são, em geral, seguidos de debates – o que, por sua vez, coloca
em pauta o olhar e as sugestões de um setor particular.
O processo colaborativo, portanto, só se conclui com a última apresentação. Ou
melhor, não se conclui nem mesmo com ela. O seu caráter aberto e inacabado perma-
nece na memória como um motor de continuidade e aperfeiçoamento para a próxi-
ma obra – a qual, por sua vez, também permanecerá inconclusa.

Gostaríamos de reiterar que o conjunto de procedimentos e dispositivos apresen-


tados não tem a pretensão de se constituir em um método reproduzível e aplicável
a outros coletivos de criação. Cada obra inaugura o seu próprio processo e metodo-
logia. Ele também não almeja se configurar como uma sistematização do processo
colaborativo em geral. Traduz, apenas, a síntese de quinze anos de trabalho no Teatro
da Vertigem. Reflete a nossa prática particular de colaboração. Espelha a forma como
a entendemos e a experimentamos até agora. Amanhã, talvez, já será outra. Pois, o
seu interesse e eficácia residem, justamente, na sua contínua mobilidade.
179

6 A Encenação no Coletivo: o encenador e o


processo colaborativo

“A cena ‘work in progress’ é gestada pelo grupo de criação e pelos


atores-performers a partir de impulsos da direção, num processo
distinto da ‘criação coletiva’, e experienciado em laboratório”
(Renato Cohen, ’Work in Progress’ na Cena Contemporânea)

6.1 Função e Campo de Ação do Encenador

Qual é campo de atuação do encenador? Da organização material da cena à pro-


dução dos sentidos do espetáculo, o espectro de sua ação é amplo. Antes, porém, de
se discutir seus atributos, seria pertinente uma breve apresentação daquilo que se
entende propriamente por “função”. A definição do termo, encontrada nos dicioná-
rios, compreende desde a “atividade natural ou característica de algo que integra um
conjunto” até “obrigação a cumprir” ou “papel a desempenhar”, passando ainda por
“atividade específica de cargo assumida em uma instituição”, “ofício” e “profissão”
(Houaiss). Na sua acepção jurídica, ela é vista como “o conjunto dos direitos, obriga-
ções e atribuições duma pessoa em sua atividade profissional específica” (Aurélio).
A idéia de “operação”, “atividade” ou “ação”, dirigida para um determinado fim, per-
passa quase todas as definições.
Do ponto de vista filosófico, a noção de “função” já traz em si a idéia de “unifica-
ção”. Kant, na Crítica da Razão Pura, a define como “a unidade da ação, que consiste
em ordenar diversas representações sob uma representação comum”. Hume, antes
dele, associará ainda os aspectos da “interdependência” e da “conexão” às relações
funcionais.
No caso específico deste trabalho, cabe lembrar que o elemento função é o aspec-
to axial definidor do processo colaborativo. Se a criação coletiva permitia, a cada
membro do grupo, a máxima utilização de sua capacidade criadora na associação
concomitante de diferentes áreas de criação, o processo colaborativo, por sua vez, vai
direcionar essa capacidade criadora para uma determinada função ou atributo.

 houaiss, a.; villar, m. s. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,
2001, p. 1402.
� ferreira,
�������������
a. b. h. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa 3. ed. Rio de Janeiro:
�����
Nova Fronteira, 1999, pp. 951-952.
 in brugger, W. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Editora Herder, 1962, p.256.
180

Ora, seria a função do encenador uma “atividade natural” dentro da montagem?


Se pensarmos sob o ponto da vista da necessidade de um olhar externo, de alguém
que, “saindo de cena”, seja capaz de perceber o conjunto e emitir uma opinião sobre
ele ou sugerir-lhe algum ajuste ou modificação, parece sim, “natural” e “espontâ-
neo”, que tal atividade ocorra. Por outro lado, é possível perceber, historicamente,
a instituição da obrigatoriedade desse “papel”. Ainda que mesclada ou acumulada à
função do dramaturgo, do cenógrafo, do primeiro-ator ou ainda, à do chefe da trupe,
essa atividade de “observador externo” ou de “organizador da cena” vai se impondo
e se consolidando.
Passo seguinte, à medida que o teatro apresenta contornos mais complexos, tal
atividade se estabelece como um “ofício” ou “profissão”. Surge, então, a função do
“régisseur” ou “diretor de palco”, que passa a coordenar todos os aspectos materiais de
conformação do espetáculo, desde a troca de cenários e adereços até a marcação dos
atores, promovendo assim, a organização objetiva da cena.
Na segunda metade do século XIX, em decorrência dos avanços tecnológicos, da
iluminação elétrica, da “mutabilidade e polimorfismo do espaço cênico”, da “am-
plitude e variedade do repertório”, e, sobretudo, ainda segundo Bernard Dort, pela
“modificação quantitativa e qualitativa do público teatral” – que se dá tanto por sua
composição heterogênea de classes quanto por sua atitude frente ao teatro -, a função
do diretor se amplia de um plano apenas material para outro, de âmbito conceitual.
De acordo com o teórico francês, “diante de um público variado e em constante mo-
dificação, a obra não mais possui uma significação eterna, mas exclusivamente um
sentido relativo, vinculado ao lugar e ao momento”, o que torna necessária “a inter-
venção de um encenador”.
Este encenador, portanto, fará a “mediação de um espetáculo historicizado”, na me-
dida em que foi introduzida na representação teatral, “uma tomada de consciência
histórica”, obrigando-nos, enquanto espectadores, a perceber a nossa própria historici-
dade. Dort conclui seu ensaio apontando a contradição essencial da encenação moder-
na: de um lado, a sua “vocação historicista”, de “comunicação histórica e social” e, de
outro, o seu desejo de autonomia absoluta, de criação fechada em si mesma.
Seja como for, a encenação deixa de se restringir ao âmbito técnico para assumir
uma dimensão artística diferenciada em relação aos outros elementos teatrais. Ela se
torna agente de uma escritura cênica, ou ainda, essa própria escritura. O encenador
ou “metteur en scène” passa a ter a atribuição de fabricar o(s) sentido(s) da obra, de
constituir um recorte ou uma visão que lhe seja própria, de conferir uma unidade ao
discurso espetacular. Segundo Jacó Guinsburg, referindo-se à “função e [à] necessida-
de da operação diretorial”,

� dort, b. “Condição Sociológica da Encenação Teatral”, in: O Teatro e sua Realidade, São
������ ��
Paulo: Editora Perspectiva, 1977, pp. 83-99 (grifo nosso).
� Ibid., pp. 97-99 (grifo nosso).
181

[...] do projeto de direção, que poderá abranger os mínimos pormenores e os máximos


significados de tudo o que se encontra e age em cena, provém a totalidade daquilo
que o espetáculo pode transmitir ou transmite como presentificação teatral.

Guinsburg, contudo, vai mais além na discussão sobre a função do diretor. Em


diálogo com o autor deste trabalho, ele afirma que “o encenador não se reduz a uma
função histórico-estilística, mas cumpre, sobretudo, uma função estrutural”.
O diretor realizaria ainda, segundo Dort, a mediação entre o texto e o espetáculo,
os quais passam a estabelecer uma relação de mútuo condicionamento. Ele é, enfim,
o responsável pela criação de um sistema cênico regido por leis próprias, tornando-
se, portanto o autor do espetáculo.
Que tal função tenha, por um lado, se hipertrofiado ao longo do século XX, ou, por
outro, sido continuamente colocada em xeque ou negada, tem-se que admitir que não
é possível conceber o teatro moderno e contemporâneo sem a sua contribuição. A fun-
ção do encenador revolucionou a linguagem teatral, modificando os nossos paradigmas
de leitura e percepção do próprio teatro. Nesse sentido, não se trata mais de um movi-
mento ou tendência localizada dentro da categoria “teatro de encenador”, mas sim na
quase impossibilidade de dissociação entre teatro contemporâneo e encenação.
Que seja possível realizar um espetáculo sem a presença do diretor, não resta dú-
vida, porém, a função do “olhar externo” continuará sendo demandada ou exercida
por algum integrante do trabalho. Que se possa abdicar da concepção do encenador,
é também fato, contudo, a sensibilidade do espectador contemporâneo parece reque-
rer uma construção do(s) sentido(s) da cena, atribuição esta que deverá ser desempe-
nhada por alguém da companhia, ou por toda ela, conjuntamente, não importa. Em
outras palavras, se podemos abrir mão da autoria do indivíduo diretor, o mesmo não
pode ser dito em relação à função da direção ou encenação. Por mais problemática e
complexa que essa competência seja, a cena contemporânea necessita entabular um
diálogo – ainda que tenso – com ela.
A autoria, no caso do encenador, está geralmente associada à configuração de
certo campo de coerência conceitual ou teórica e à constituição de uma unidade es-
tilística ou estética particular. São estes os elementos que lhe conferem o caráter de
interpretação pessoal. Essa autoria, às vezes vista com desconfiança, parece sempre
estar em busca de sua legitimação. Segundo Patrice Pavis, a encenação, como parte
visível do teatro, “teve que afirmar a sua legitimidade, convencer que ela não era
nem uma decoração facultativa nem um discurso derivado e arbitrário”.
Retomando a questão da função, poderíamos citar, entre os principais atributos

 guinsburg, Jacó. Da Cena em Cena. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001, p. 26.
 dort, b. “Condição Sociológica da Encenação Teatral”, pp. 97-98.
� pavis, �� La Mise en Scène Contemporaine: origines, tendances, perspectives. Paris: Armand Co-
������� p.
lin, 2007, p. 11.
182

associados ao papel do encenador, os seguintes aspectos: condução do processo de


ensaio; materialização do conceito de encenação por meio dos elementos cênicos e
dos intérpretes; análise do texto teatral; no caso de dramaturgia em processo, cola-
boração com dramaturgo e atores na seleção de cenas - ou de trechos de cenas - para
a composição do texto; direção de ator – o que compreende, entre outros elementos,
a construção vocal e corporal das personagens e o trabalho de intenções, ritmos e
musicalidade do texto; investigação e exploração de possibilidades cênicas; edição
do material levantado em ensaio; estabelecimento do tempo-ritmo e das atmosferas;
construção das transições entre as cenas; marcação dos atores e desenho dos deslo-
camentos; composição das cenas de grupo; coordenação da mecânica do espetáculo;
afinação técnica da peça – entrada e saída de cenários, adereços, “deixas” de som e
luz, ajustes nos volumes vocais e sonoros, etc.; garantia da segurança dos atores e do
público; no caso de espaços não-convencionais, resolução da condução e/ou colocação
do público no espaço e dos decorrentes problemas acústicos e de visibilidade, espa-
cialização das cenas e eliminação de elementos desconcentradores da atenção.
Por fim, seria possível pensar as funções da direção por uma via negativa. Recor-
rendo a algumas das denegações de Pavis, poderíamos afirmar, entre outros pres-
supostos, que o diretor não realiza cenicamente uma potencialidade textual nem
precisa ser fiel ao texto dramático. Além disso, na via contrária, a encenação “não
aniquila, nem dissolve o texto dramático”. Não cabe também ao diretor a obrigação
de preencher supostos “buracos” do texto por meio do discurso cênico. E, last but not
least, não há a necessidade de que ele siga as rubricas do texto nem qualquer de suas
indicações cênicas.

6.2 Encenação Performativa

A encenação contemporânea vem estabelecendo um forte relação com a perfor-


mance, sendo contaminada e reconfigurada por ela. Relação de desconfiança, muitas
vezes, até mesmo antípoda, em alguns casos, mas também legítima e complementar.
Utilizamos aqui o conceito mais restrito de performance, associado à performance art,
ao invés da noção ampliada com que Richard Schechner vem abordando este termo,
no campo dos perfomance studies – incorporando a ele os rituais, as cerimônias cívicas,
a política, as apresentações esportivas, entre outros aspectos da vida social.
Nesse sentido, o caráter autobiográfico, não-representacional, não-narrativo, de
contraponto à ilusão, e baseado na intensificação da presença e do momento da ação,
num acontecimento compartilhado entre artistas e espectadores - traços caracterís-

� pavis, �� O Teatro no Cruzamento de Culturas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2008, pp. 23-27.
������� p.
183

ticos da arte performática - vão orientar as sugeridas aproximações com o campo


teatral. Segundo Lehmann, “é evidente que deve surgir um campo de fronteira entre
performance e teatro à medida que o teatro se aproxima cada vez de um aconteci-
mento e dos gestos de auto-representação do artista performático”10.
O caráter multidisciplinar, de cruzamento de diferentes linguagens artísticas, tão
axial na performance, é também prática recorrente na encenação atual, que se alia,
cada vez mais, às artes plásticas, à dança, à música e ao cinema. Porém, diferente-
mente do projeto wagneriano de síntese das artes em sua Gesamtkunstwerk, o encena-
dor contemporâneo coloca lado a lado essas diferentes linguagens artísticas, “presen-
tificando-as” autonomamente.
O corpo em risco, colocado em situação-limite, que não representa mais persona-
gens, mas utiliza sua autobiografia como material cênico, é outro ponto em comum
desse diálogo. Como analisa Josette Féral, o performer recusa “totalmente a persona-
gem e [...] [põe] em cena o artista ele-mesmo, artista que se coloca como um sujei-
to desejante e performante, mas sujeito anônimo interpretando a ele mesmo em
cena”11. Ou ainda, na visão de Jorge Glusberg, “o performer não ‘atua’ segundo o uso
comum do termo; [...] ele não faz algo que foi construído por outro alguém sem sua
ativa participação” 12. Ou seja, essa instauração da presença do corpo e da pessoa do
próprio performer, não mediada por instâncias ficcionais, que marcou a cisão entre
“representação” – associada ao teatro – e “apresentação” – elemento-base da perfor-
mance - será revista e rearticulada pela encenação contemporânea.
Entre outros elementos, ela vai lançar mão da exposição nua e crua do corpo do
ator-performer, de sua ampliação imagética – ou de partes dele – por meio de recursos
tecnológicos, acentuando o elemento presencial – ou pondo em xeque a sua ausência
ou virtualidade –, além de colocar em risco ou em perigo a integridade física dos pró-
prios atuadores. É inegável a matriz artaudiana e de experimentos como os do Living
Theater nessa busca de um teatro “vivo” e não-representado.
A questão do olhar de fora, da observação externa, função precípua do diretor,
também dialoga com a atitude do performer. Féral, por exemplo, reitera esse caráter
de não-imbricação na obra, pois o performer “mantém sempre um direito do olhar. É
o olho, substituto da câmera que filma, [...] operando deslizamentos, superposições,
ampliações em um espaço e sobre um corpo tornados os instrumentos de sua própria
exploração” 13. Ou ainda, na formulação de Glusberg, “o performer atua como um ob-
servador. Na realidade, ele observa sua própria produção, ocupando o duplo papel de

10 lehmann, h.-t. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 223.
11 féral, j. “Performance et théâtralité: le sujet démystifié”. In: féral, j.; savona, j. l.; walker,
e. a. (dir.). Théâtralité, écriture et mise en scène. Quebéc:
��������������������������������
Éditions Hurtubise HMH, 1985, p. 135.
12 glusberg, j. A Arte da Performance. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987, p. 73.
13 féral, op. cit., p. 131 (grifo do autor).
184

protagonista e receptor do enunciado (a performance)” 14. Essa observação, não raro, é


marcada pela auto-ironia e pela autocrítica. Nesse sentido, o ator se transforma, ele
também, no encenador da obra, ou seja, um performer-encenador. Renato Cohen sin-
tetiza bem tal perspectiva:

Apesar da ênfase para a atuação a performance não é um teatro de ator, pois, [...] o
discurso da performance é o discurso da mise en scène, tornando o performer uma parte
e nunca o todo do espetáculo (mesmo que ele esteja sozinho em cena, a iluminação,
o som etc. serão tão importantes quanto ele – ele poderá ser todo enquanto criador
mas não enquanto atuante) [...] O performer, à medida que verticaliza todo o proces-
so de criação teatral, concebendo e atuando, se aproxima da pessoa descrita por
Appia em A Obra de Arte Viva, que acumularia as funções de autor e encenador.15

Contudo, esse paroxismo da presença e da biografia pessoal não ocorrerá apenas


por meio dos atores. Na medida em que a função precípua do diretor não é mais a
passagem do texto à cena, o campo de experiência do próprio encenador se abre
também como material cênico. Suas memórias, histórias pregressas e busca de au-
todesenvolvimento são convocadas para a construção do espetáculo. Na verdade, a
vida pessoal do encenador já se encontra, desde o momento da escolha dos projetos,
determinando os critérios de seleção. Portanto, a encenação passa a ser, em certa
medida, a encarnação, a “mise en chair” do diretor. E ele, por sua vez, torna-se, en-
tão, um encenador-performer – que trabalhará na elaboração do acontecimento cênico
com um grupo de performers-encenadores.
A questão da especificidade do espaço para a performance é outro ponto de con-
tato com a encenação site specific contemporânea, na medida em que “toda perfor-
mance só é feita (e só pode ser feita) em e para um dado espaço ao qual ela está indis-
soluvelmente ligada”16. Esse local específico e único, muitas vezes aberto à própria
cidade, e às eventuais interferências dos espectadores-atuadores, vai trazer ainda a
questão do inesperado, do diálogo e da incorporação do acaso dentro da obra. Como
Glusberg aponta, “deve-se ter em mente que o elemento inesperado na performance é
inesperado não só para o espectador, [...] mas também e primeiramente ao artista de
performance, cujo trabalho sempre tem um aspecto de inesperado” 17.
Outro dado de aproximação importante refere-se à pouca ou à ausência de hie-
rarquia entre os elementos constitutivos da cena, no âmbito da performance. Tal
perspectiva dialoga diretamente com as hierarquias móveis do processo colaborativo.
Pois, como vimos, tal mobilidade ou flutuação entre as funções acaba gerando uma

14 glusberg, j., A Arte da Performance, p. 76.


15 cohen, r. Performance como Linguagem. São��������������������������������
Paulo: Editora Perspectiva, 1989, p. 102.
16 féral, j., “Performance et théâtralité: le sujet démystifié”, p. 129.
17 glusberg, j., op.cit., p. 83.
185

obra em que nem o texto, o ator ou a encenação têm caráter epicêntrico. Ou seja, a
resultante do espetáculo – como no caso da performance - reflete uma alternância de
dominâncias textuais, cênicas, interpretativas, etc. ao longo de sua apresentação.
Contudo, uma diferença pode ser encontrada na análise distintiva que Renato
Cohen faz entre happening – de caráter mais grupal – e performance – de natureza
preponderantemente pessoal. Nesta última,

[...] o trabalho passa a ser muito mais individual. É a expressão de um artista que verti-
caliza todo seu processo, dando sua leitura de mundo, e a partir daí criando seu texto
(no sentido sígnico), seu roteiro e sua forma de atuação. O performer vai se assemelhar
ao artista plástico, que cria sozinho sua obra de arte; [...] Por esse motivo vai ser mui-
to mais reduzido o trabalho de criação coletiva. Mesmo quando o artista (no caso,
um encenador) trabalha em grupo [...] esse processo se dá por ‘colaboração’ ou por
‘direção’. Essa relação [...] vai ser uma relação horizontal, de colaboração.18

É curioso que Cohen já utilize aqui a palavra “colaboração” para descrever um


modo de criação horizontal que seria distinto daquele da criação coletiva. É claro que
o que ele tem em mente não é ainda a dinâmica ocorrida no processo colaborativo,
o que se evidencia no exemplo por ele apresentado: a parceria entre Robert Wilson e
Philip Glass, na qual este último compõe, separada e independentemente, a música
para suas “óperas”. A colaboração, nesse caso, se dá pela equivalência das diferentes
criações, isto é, pela não-subjugação da produção musical à vontade e ao discurso do
encenador. É na afirmação territorial de suas autonomias, e na justaposição não-dia-
logada de suas criações, que eles “colaboram”.
O teatro contemporâneo, ao deixar aparente e evidenciado o seu processo de fa-
bricação, também estabelece conexão com os aspectos de revelação de procedimen-
tos construtivos, presente na performance. Ela, segundo Féral, “se interessa por uma
ação em curso de produção mais do que em um produto acabado”19. O posicionamen-
to performativo do encenador, nessa medida, o condiciona menos para a realização
da “obra perfeita”, deixando que o espetáculo apresente em cena e em ato o seu pró-
prio processo de feitura. Tal perspectiva se materializa tanto pela explicitação de ras-
tros do processo, pela não-maquiagem dos seus buracos, fissuras e fracassos, quanto
pela apresentação da obra como um constante e contínuo work in progress.
Por todas as aproximações acima levantadas e, ainda, tomando como base a abor-
dagem de Féral20, segundo a qual ela prefere o uso do termo “teatro performativo”

18 cohen, R. Performance como Linguagem, pp. 100-101.


19 féral, j., “Performance et théâtralité: le sujet démystifié”, p. 137.
20 Tal abordagem foi apresentada em recente palestra no Encontro Mundial das Artes
Cênicas (ecum) – 6ª Edição 2008, realizada em Belo Horizonte e São Paulo, em 20 e 27
de março de 2008, respectivamente.
186

ao invés de “teatro pós-dramático” para se referir à cena contemporânea, resolvemos


também nomear esta direção estreitamente vinculada à performance como “encena-
ção performativa”.
Tal tipo de encenação, inclusive, na sua busca de negação da representação, chega
a se apresentar como uma não-encenação. Evidentemente, não no sentido pré-meinin-
geriano, de mera organização material dos elementos, mas colocando em crise a capa-
cidade “todo-poderosa” que ela teria de unificar, simbolizar ou interpretar um texto ou
a própria realidade. Experiências de “não-encenações” ou de “mise en scènes precárias”
podem ser encontradas nas leituras encenadas, nas encenações improvisadas ou cons-
truídas a partir de dispositivos improvisacionais, e ainda, nos exercícios cênicos incon-
clusos, nos quais o aspecto processual – de apresentação do processo, de revelação do
“movimento-do-fazer”, do “showing doing” (“mostrar o próprio fazer, no momento em
que se faz”) schechneriano – espelha, sem dúvida, procedimentos performativos.
Tanto como na performance, a encenação performativa pretende provocar a ins-
tauração de um acontecimento. Segundo Féral, “não contando nada nem imitando
ninguém, a performance [...] sem passado, nem futuro, acontece, transforma a cena
em acontecimento, acontecimento do qual o sujeito sairá transformado, esperando
uma outra performance para seguir o seu percurso”21.
Portanto, o objetivo principal deste tipo de encenação é menos a amarração esté-
tica do todo, mas, sobretudo, a produção de experiência. Busca-se uma interferência
no espectador a fim de que ele seja capaz de “mobilizar sua própria capacidade de
reação e vivência a fim de realizar a participação no processo que lhe é oferecida”22.
Esse posicionamento performativo do teatro, segundo Lehmann, abre-lhe, justamen-
te, possibilidades de novos estilos de encenação.
Contudo, ainda de acordo com Féral,

[...] contrariamente à performance, o teatro está impossibilitado de não colocar,


dizer, construir, fornecer pontos de vista: pontos de vista do encenador sobre a
representação, do autor sobre a ação, do ator sobre a cena, do espectador sobre o
ator. Há toda uma multiplicidade de pontos de vista e de olhares [...]. A performance
não tem nada a dizer, nada a dizer a si mesmo, a capturar, a projetar, a introjetar
a não ser os fluxos, as redes, os sistemas. Tudo nela aparece e desaparece como
uma galáxia de ‘objetos transicionais’ (Winnicott), que só representam as falhas da
captura da representação. [...] Ela não procura dizer (como o teatro), mas provocar
relações sinestésicas de sujeito a sujeito.23

Tal discussão leva, necessariamente, ao problema da unidade, que atravessa, por

21 féral, j. “Performance et théâtralité: le sujet démystifié”, p. 135 (grifo do autor).


22 lehmann, h.-t. Teatro pós-dramático, p. 224
23 féral, op. cit., pp. 136-138.
187

mais de um século, a função do encenador. Ao contrário da perfomance, que não visa


ao estabelecimento de um sentido geral ao discurso cênico ou à materialização de
um ponto de vista sobre um determinado assunto ou texto, a encenação parece, por
natureza, convocada a essa composição ou articulação do sentido. Pavis busca em Co-
peau a formulação clássica da noção de mise en scène: “ela é a ‘totalidade do espetáculo
cênico que emana de um pensamento único, que o concebe, o regula e, no fundo, o
harmoniza”24. Ainda que o espetáculo possa colocar em xeque um posicionamento
ou deixar em aberto a amarração de um significado último, o imperativo da consti-
tuição de unidade parece ser sempre uma espécie de teleologia da encenação.
Bernard Dort sustenta, porém, que essa “vontade de unificação [...] é somente
um fenômeno histórico”25. Em outras palavras, é preciso se interrogar sobre essa
visão do teatro – e da encenação – como arte unificada. A unidade artística da re-
presentação surge com o teatro realista, no final do século xix. Tratava-se, ali, de
uma unidade não apenas visual ou cenográfica, mas também do registro de inter-
pretação dos atores. Essa busca da unidade estilística e rítmica do espetáculo no
seu conjunto, de um eixo estético no discurso da encenação, da conformação de
um todo orgânico e harmônico, é o que veio a configurar a noção de ensemble, que
atravessará todo o século xx.
Contudo, em sua análise, Dort aponta para uma nova configuração relativa à en-
cenação:

Constatamos hoje uma emancipação progressiva dos elementos da representação


e vemos aí uma mudança de estrutura desta última: a renúncia a uma unidade
orgânica prescrita a priori e o reconhecimento do feito teatral como uma polifonia
significante, aberta sobre o espectador.26

O teórico francês opõe, então, a “visão unitária” de Wagner ou de Craig a uma


“visão agonística”, que pressupõe um combate entre os diversos elementos cênicos
para a construção do sentido, do qual o juiz será o espectador.
A encenação performativa, nesse sentido, vai buscar justamente se libertar da
construção da unidade, do discurso homogêneo e do sentido articulador. Ela pro-
curará se deixar atravessar por sentidos, por linhas de força, por heterogeneidades
materiais, discursivas e de linguagens. Ao invés da “produção de sentido”, busca-se,
como na performance, a “produção de presença”, ao invés da “organização simbóli-
ca”, da “homogeneização dos materiais” ou da amarração de um sentido, emergem
“pedaços de sentido”, possibilidades tateantes de significação, postas em movimento
e em contato, por ação do diretor. Ele, então, funcionaria mais como um operador de

24 pavis, P. La Mise en Scène Contemporaine: origines, tendances, perspectives, p. 45.


25 dort, B. La Représentation Émancipée. �������
Arles: ������
Actes �����������
Sud, 1988, �������
p. 177.
26 Ibid., p. 178.
188

fluxos erráticos, um “presentificador” de “pedaços de representação”, um produtor


de uma rede de motivos cênicos diversos.
Inspirada pela performance – e por sua estrutura de collage e de leitmotive encadean-
do as ações - a encenação performativa vai colocar os diferentes fluxos de desejo e de
sentido em conexão, deixando emergir as diversidades, habitando em heterotopias e,
por fim, desestabilizará, a todo momento, as cristalizações de unidade. Como sustenta
Pavis, no seu recente estudo sobre a encenação contemporânea, “a encenação tornou-
se performance, no sentido inglês da palavra: ela participa de uma ação, ela se encontra
em um devir permanente”27. E, nesse sentido, a associação – ainda que instável - entre
“performance” e “encenação” é um dado ao qual a cena contemporânea não consegue
mais escapar, pois “uma não vai sem a outra, é somente a dosagem que varia. É neces-
sário inventar uma performise [junção das palavras ‘performance’ e ‘mise en scène’]”28.

6.3 Encenação-em-Processo

O teatro contemporâneo, ampliando seu campo de formalização e experiência,


vem colocando enorme ênfase no aspecto processual, deixando de se pautar apenas
pela obra acabada e pela produção de resultados. Tal perspectiva, por conseqüência,
também alarga os sentidos e os procedimentos da encenação.
Diferentemente de parâmetros mais tradicionais, o início do trabalho da direção
não necessita ocorrer, obrigatoriamente, antes dos ensaios. O projeto da encenação,
por sua vez, não precisa estar definido ou programado a priori, mas se inicia no mo-
mento mesmo em que os ensaios começam. Por esse caráter indeterminado e aberto
às variáveis processuais, o encenador se coloca em pé de igualdade com os outros
criadores. Ele não sabe “mais”, nem sabe “antes”; na verdade, ele “não sabe”, “igno-
rância” esta, em igual medida daquela de seus parceiros de trabalho. O saber, neste
caso, será construído junto, durante a elaboração da obra.
Sem um conceito definido de antemão nem um plano estético preestabelecido, a
encenação se plasma no aqui-e-agora do processo, assumindo um caráter movediço e
permeável. Segundo a análise de Renato Cohen,

Apesar dessa fase processual existir também em outros procedimentos criativos,


no campo em que estamos definindo como linguagem work in process, opera-se com
maior número de variáveis abertas, partindo-se de um fluxo de associações, uma

27 dort, b., La Représentation Émancipée, p. 37.


28 Ibid., p. 40.
189

rede de interesses/sensações/sincronicidades para confluir, através do processo, em


um roteiro/storyboard.29

Essa abordagem tateante e empírica da encenação coloca o diretor também em


situação de risco. A sua “autoridade”, muitas vezes construída sobre um saber prévio
em relação aos rumos da criação, é relativizada ou colocada em suspensão. A ele tam-
bém, como aos atores, é proposto um mergulho no escuro e no desconhecido. Nada
garante a obtenção de um resultado. Além disso, a idéia de “alguém que conduz a um
determinado lugar” sofre um abalo, pois este “lugar” será construído coletivamente,
ao longo dos ensaios. O processo, por se constituir em tramas de percursos possíveis
e potenciais, é atópico ou heterotópico. De acordo com Cohen,

Caracterizando uma linguagem de risco, marcada pela vulnerabilidade e também


pelo mergulho e descoberta de novas significações, o work in process, enquanto pro-
duto criativo, estabelece através de seus anaforismas, da criação de novas sintaxes
cênicas, uma nova epistemée consonante com os paradigmas contemporâneos.30

A plasmação da encenação, portanto, ocorre a posteriori, a partir da experiência


in loco, das improvisações dos atores, das discussões entre todos os participantes,
da retro-alimentação do público. A experimentação e o contínuo cambiamento,
supressões e desvios, baseados na dinâmica de tentativa-e-erro31, são os operadores
que construirão o conceito de encenação. É como, segundo Zular, “se a escritura
buscasse, por meio da produção de possibilidades e sucessivas escolhas, a forma
que possibilita a autoria, como os seis personagens em busca de um autor na peça
de Pirandello”32.
Nesse sentido, o olhar específico do encenador produzirá, sim, uma leitura ou
recorte do material levantado. A diferença é que ela se constrói simultaneamente
com os outros elementos do espetáculo, sofre contaminações e contraposições a todo
tempo e se modifica ao longo do percurso criativo. O encenador, portanto, precisa
ser capaz de perceber os pontos de referência ou os núcleos vibratórios de sua visão
particular, ao mesmo tempo em que se mantém permeável às derivas, às hibrida-

29 cohen, r. ‘Work in progress’ na Cena Contemporânea: criação, encenação e recepção. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1998, p. 17. Cohen utiliza tanto o termo work in progress – já conso-
lidado na literatura crítica - quanto work in process, visando, segundo ele, incorporar “as
noções de progresso temporal e processualidade” (Ibid., p. xxviii)
30 Ibid., p. 45.
31 “Erro”, como bem define Cohen, “enquanto espaço do vivo, do novo, do não previa-
mente conhecido. [...] A inserção do elemento ‘erro’ corrobora, no universo artístico,
o princípio da incerteza/indeterminação de Heisenberg, que rompe com o paradig-
ma do determinismo” (Ibid., p. 97).
32 zular, r. (org.), Criação em Processo: ensaios de crítica genética, p. 19.
190

ções, enfim, aos campos de força dos outros colaboradores, evitando cristalizações
prematuras, e duvidando sempre da forma acabada.
A encenação processual, é importante reiterar, não busca a fusão ou a união de
todas as contribuições artísticas. Ao contrário, ela estimula e garante a independên-
cia das partes, justapõe e fricciona diferentes sentidos ou percepções e coloca as múl-
tiplas e divergentes intensidades, em combate. Poderíamos pensar tal processo de
forma assemelhada àquela com que Dort analisa a representação contemporânea
não-unificada, na qual

[...] os diversos elementos entrariam em colaboração, e mesmo em rivalidade, ao


invés de contribuírem [...] para a edificação de um sentido comum. Então, o espec-
tador poderia escolher tapar os buracos ou apagar os excessos de tal polifonia que
não conheceria mais uma dominante. [...] as relações entre os componentes da cena
podem mesmo ser pensadas não em termos de união ou de subordinação. O que
ocorre é uma competição, o que se desenrola diante de nós, espectadores, é uma
contradição. A teatralidade, então, não é mais somente esta “espessura de signos”
da qual falava Roland Barthes. Ela é também o deslocamento destes signos, a sua
impossível conjunção, o seu confronto sob o olhar do espectador desta representa-
ção emancipada.33

O processo teatral coletivo não é, necessariamente, um campo pacífico e organi-


zado. Ele é marcado por assimetrias, irrupções, transbordamentos propositivos, con-
flitos e instabilidades. A encenação in progress vive, então, o paradoxo de querer con-
trolar esse sistema dinâmico e, ao mesmo tempo, de ter pouco ou nenhum controle
sobre ele. Na verdade, trata-se de uma resultante em constante estado de tensão, em
que as cristalizações e dissipações cênicas são forjadas através de contínuas lutas e
negociações. Por ser uma obra “em obras”, ela relativiza a todo tempo a sua confor-
mação, interroga-se constantemente sobre a sua materialidade, resultando uma en-
cenação em contínuo confronto com o seu estatuto de precariedade.
Dentro desse contexto, os ensaios tornam-se como um “meio de cultura” para a
germinação de cenas. Contudo, o encenador não se relaciona com seus colaborado-
res como se eles fossem meros fornecedores de matéria cênica em estado bruto. A
instância processual cria associações, interpolações, mutações, polissemias, redes de
conexões nas quais todos se tornam, simultaneamente, produtores, receptores e trans-
formadores de tudo o que emerge em sala de ensaio. O diretor não é, portanto, apenas
um mero organizador material do caos criativo – ele é, antes, um “organizador” da
experiência -, nem também um “aproveitador” ou “expropriador” de contribuições ar-
tísticas alheias. O seu texto espetacular é, ele também, uma escritura em processo.

33 dort, b., La Représentation Émancipée, pp. 181-183.


191

Ao colocar em diálogo ou confronto os elementos, os materiais e os sujeitos da


criação, o processo passa a ser o protagonista da cena. Conseqüentemente, a direção
postula ou encontra o seu discurso não na afirmação isolada de sua individualidade,
mas no embate com o outro. A encenação-em-processo é uma encenação negociada,
ou, se quisermos, é uma encenação de alteridades.
E não é somente ela que se encontra em desenvolvimento: o imperativo processu-
al impregna e mobiliza tudo. Temos, portanto, uma dramaturgia em processo, uma
interpretação em processo, uma iluminação em processo, e assim por diante. No caso
específico do processo colaborativo, num âmbito mais amplo do que aquele delinea-
do por Cohen, não se trata apenas da estruturação de um “roteiro” ou “storyboard”.
Há o objetivo de se constituir uma dramaturgia textual. Porém, a sua formulação
pode passar longe dos modelos dramáticos convencionais e até mesmo incorporar
procedimentos artísticos os mais diferenciados.
Essa tensão entre “dramaturgia em processo” e “encenação em processo” será, na
verdade, uma das linhas de força centrais no desenvolvimento da obra. Por operarem
concomitantemente e em conjunto, o dramaturgo cria também a encenação, e o ence-
nador, por sua vez, participa na criação do texto. Os dois pólos se auxiliam, apesar de
ninguém “servir” a ninguém. Cena e texto estão juntos, dialogam, e, de certa forma,
sem perder sua autonomia ou campo, estão marcados e contaminados um pelo outro.
No limite, ambos abdicam do seu caráter processual em si, para adquirirem uma dinâ-
mica processual inter-relacional. Em outras palavras, trata-se de uma “dramaturgia em
processo de encenação” e de uma “encenação em processo de dramaturgização”.
Texto e cena apresentam estrutura relativamente móvel ou, se quisermos, marca-
da por uma estabilidade precária. O conflito entre diferentes processualidades criam
ondas de turbulência que afetam, simultaneamente, as precipitações cênicas e textu-
ais. Tais efeitos sísmicos, contudo, ao invés de enfraquecerem as decorrentes forma-
tações e formalizações, trazem-lhes força renovada. Os pólos não se anulam, não se
dissolvem, nem se submetem um ao outro. Em outras palavras, eles não se desestru-
turam, adquirindo, ao contrário, uma estrutura porosa, permeável e flexível. A dire-
ção, por exemplo, não desconstrói ou relê o texto a seu bel prazer, pois já inscreveu
ou inseminou nele a sua própria poética espetacular. Por outro lado, a dramaturgia
também já inoculou a sua “textualidade” ou teatralidade no discurso da encenação.
Tanto é assim que, no processo colaborativo, não é pertinente a tentativa de iden-
tificar aquilo que foi inserido ou criado pelo dramaturgo, pelo encenador ou pelos
atores. Como ocorre uma associação entre o literário e o cênico, em que estrutura
dramatúrgica e projeto de encenação estão profundamente imbricados, essa demar-
cação dos territórios de contribuição, quando não impossível de ser determinada, soa
ingênua, egóica e extemporânea.
É importante ressaltar que a encenação-em-processo não se conclui com a estréia
do espetáculo. Ela continua o seu trabalho de transformação da cena até o fim da
192

temporada. Daí a importância do acompanhamento do encenador, ainda que não


diário, no curso das apresentações. É claro que uma encenação compreende, por
menor que seja, um grau de formalização e de fechamento do processo. A diferença
reside na manutenção – ainda que dentro de certos limites – de sua capacidade de
autotransformação. Ela pressupõe - e é capaz de percorrer - um caminho de volta, da
cristalização cênica à forma-em-movimento. Tal como na oscilação de estado entre
partícula e onda, a encenação oscila, continuamente, entre produto e processo. Não
se trata apenas da rememoração e repetição, a cada espetáculo, de palavras ou mar-
cas, mas sim, da reinstauração da memória e das pulsões do processo. Não é somente
o texto dramatúrgico ou cênico que é revivido a cada (a)presentação, mas também, e
fundamentalmente, o texto processual.
De qualquer forma, além de identificarmos a escritura da encenação como um
produto necessária e intrinsecamente dependente do processo, encontramo-nos dian-
te, também, de outra resultante: o processo da encenação é apresentado ou revelado
enquanto tal, na própria formulação cênica. Em outras palavras, o resultado estético
da “encenação-em-processo” é a colocação em cena do “processo da encenação”. A
linguagem a ser utilizada – ou por meio da qual a cena se expressará - é a linguagem
do percurso. O inacabamento deixa de ser condição contextual ou rastro de imper-
feição para se constituir como materialidade cênica, isto é, texto e cena processuais.
No sentido inverso da transmutação ficcional do ator em personagem, temos a anti-
metamorfose da “encenação” em “processo”.

6.4 A Encenação no Coletivo e o Encenador Colaborativo

Como o diretor atua num processo socializado de construção do espetáculo? Con-


forme já analisamos, numa dinâmica coletiva de criação, o encenador não é mais o
epicentro do trabalho, para onde tudo converge. O seu poder autocrático se desesta-
biliza, abrindo espaço para o partilhamento das decisões e para as interferências na
condução do processo. O conceito do espetáculo, ainda que possa ser por ele sinte-
tizado, é, em geral, construído ao longo dos ensaios, a partir de múltiplas contribui-
ções e hibridações.
O encenador, portanto, recusa o seu protagonismo ou a sua protagonização dentro
do processo, assumindo o papel de partícipe de uma coralidade. Ocorre uma mudan-
ça em seu posicionamento, pois ele abdica da atitude autoritária – o que é diferente
de perder a “autoridade” ou abrir mão da “autoria” – assumindo, ao invés, o papel
de provocador ou orientador dentro da equipe. O atributo da liderança ocorre, então,
num contexto de participação e negociação. O diretor coordena o processo, mas tal
193

coordenação pressupõe diálogo, crítica e autocrítica, interferência do grupo e, em


alguns casos, até mesmo decisões por meio de votação.
Trata-se de um encontro de artistas e não de discípulos que orbitam ao redor de
um diretor-guru. Aliás, o processo colaborativo, por demandar uma postura criativa e
crítica por parte dos integrantes, tende a recusar a figura do diretor-profeta, do dire-
tor-messiânico. Delegar a alguém a função de conduzir não implica crença cega; pelo
contrário, espelha uma confiança construída ao longo de vários meses – ou anos – de
trabalho em comum. Este “poder” de coordenar – que não é imposto exogenamente,
mas baseado em cumplicidade duramente conquistada - pode ser colocado em xeque
ou contestado durante os ensaios.
Outro aspecto importante é o fato de o grupo criar a partir de um projeto cênico co-
letivo e não de uma encenação previamente concebida. O “projeto cênico” tem um âm-
bito maior que o de uma “encenação”, pois compreende desde a definição do tema ou
assunto a ser tratado, a escolha da equipe, o consenso em relação a encaminhamentos
metodológicos até as elaborações conceituais, artísticas e éticas da obra. A encenação,
por sua vez, apesar de estreitamente vinculada ao projeto cênico, diz respeito à mate-
rialização concreta do discurso em cena. Valendo-se da definição de Cohen,

O topos da encenação é o da justaposição e espacialização (mise en place) de todos


os elementos da operação cênica: atuantes, cenários (environment), textos (tramas
de leitmotiv), imagens, ruídos, partituras são estruturados e passam a vivificar uma
retórica de signagens e significações: o discurso da mise en scène.34

Evidentemente que esse discurso cênico virá atravessado pelos discursos singula-
res de cada um dos criadores. O diretor, então, teria justamente a função de agrupar
tais discursos, ou melhor, de colocá-los em movimento, lado a lado, conectando as
subjetividades criadoras. A escritura da obra, nesse contexto, se dá em regime de co-
criação, pelo confronto concomitante de distintas autorias. Cabe, pois, ao encenador,
estimular a enunciação do discurso por parte de cada um dos integrantes do grupo.
Contudo, o fomento a esse ponto de vista individual, a essa criação particular, não
deve colocar em risco a coesão grupal e o depoimento artístico coletivo. O diretor
precisa equilibrar – ou melhor, manter em tensão contínua - o “singular” e o “coleti-
vo”, estimulando e dialogando ao máximo com o que cada criador oferece e, ao mes-
mo tempo, socializando e colocando em embate essas contribuições particulares.
A encenação no coletivo, portanto, é uma encenação híbrida, apoiada em multi-
vocalidades e em pluriperspectivismos, na qual as hierarquias são precárias ou mó-
veis, e vão se revezando ao longo do processo e na própria resultante da obra, cuja
natureza da construção é complexa. Essa hibridização, segundo Cohen, “resulta da

34 cohen, r. ‘Work in progress’ na Cena Contemporânea: criação, encenação e recepção, p. 98.


194

intercessão de significações/cenas formando um corpo único sem característica de


collage”35. Ele sustenta que o work in process

[...] é muito distinto da “colagem”, que é uma construção de menor potência. Se


na colagem teatral agrupam-se cenas por associação temática, imagética e até por
número de personagens, na hibridização busca-se o unívoco nas diferenças, cadeias
de significação de um mesmo enunciado ou digladiações de opostos pertinentes.36

O encenador colaborativo, nesse sistema dinâmico, vai inter-relacionando as con-


comitâncias e os paralelismos das distintas contribuições, fazendo com que os campos
artísticos específicos, em sua relativa autonomia, interajam entre si. Nesse sentido, é
importante reiterar que a autonomia da encenação, no processo colaborativo, é acentu-
adamente relativa. A criação do encenador não deixou de existir e não se resume à mera
organização material da cena, porém, ela só se consolida pela dinâmica dialógica entre
os campos. É um truísmo afirmar que o diretor necessita do outro – seja ele ator, técnico
ou membro da equipe – para materializar sua concepção cênica. Porém, o que levanta-
mos aqui é de outra ordem, pois não se trata apenas do plano de execução. Será somen-
te por meio da colaboração – concreta, efetiva e horizontal – que a própria concepção
do diretor será forjada. Ela é o gatilho ou a matriz geradora da encenação em si.
É curioso como a força motora das colaborações para a existência da própria en-
cenação já aparece na chamada “década dos encenadores” do teatro brasileiro. Como
bem observou Sílvia Fernandes, a estética de Gerald Thomas, nos anos 80, esteve
profundamente vinculada à parceria e às contribuições de Daniela Thomas e Beth
Coelho. Contudo, essa relação de co-dependência não era assumida – o diretor ali se
apresentava como o principal criador – e nem foi levada às últimas conseqüências,
como será feito a partir da década de 9037.
Poderíamos afirmar que o percurso construtivo da encenação no coletivo se dará,
justamente, pela operação dessas múltiplas colaborações, que funcionarão como li-
nhas de força, vetores, cadeias de leitmotive processuais, capazes de provocar a es-
truturação do conceito e da materialidade da direção. Tais vetores não funcionam
apenas pela via positiva, por exemplo, na afirmação de um determinado impulso ou
rastro, mas também atuam por via negativa, no descarte e na rejeição de caminhos,
formalizações ou procedimentos. A poética gerativa da encenação se dá nessa zona
de embate, de simultaneidades conflituosas e de territórios díspares.
Um eixo fundamental deste diálogo/combate se dá entre o encenador e o ator,
no caso, um ator-performer. Como já vimos, o diretor compartilha com os atuantes

35 cohen, r., ‘Work in progress’ na Cena Contemporânea: criação, encenação e recepção, p. 44.
36 Ibid., p.27.
37 Observação realizada pela referida pesquisadora no contexto do Exame de Qualifica-
ção deste trabalho.
195

a criação das imagens cênicas, dividindo com eles a autoria do texto espetacular.
Nessa abordagem criativa, portanto, o ator se posiciona também como encenador.
Não no sentido de disputar esta função com o diretor que foi oficialmente designa-
do para esse papel. No entanto, é inegável o seu exercício enquanto tal – ainda que
temporária ou provisoriamente. O workshop, por exemplo, é o território privilegia-
do deste ator-encenador.
O diretor, por mais que estimule o ator a trazer todo e qualquer tipo de proposição,
sem nada lhe censurar, funciona também como um pólo crítico a posteriori daquilo que
é levantado em sala de ensaio. Ao mesmo tempo em que necessita ser cúmplice do
“despudor” criativo do atuante, cabe-lhe analisar e selecionar o que é trazido nos en-
saios com uma reserva de distanciamento. Ele precisa, ainda, por um lado, identificar
as dificuldades ou travas de cada um dos atores em relação à temática do projeto, au-
xiliando-os na dissolução desses bloqueios, e simultaneamente, por outro lado, servir
como barreira ou “bloqueio” para grande parte do material produzido.
No processo de montagem, essa ação do diretor sobre os atores, e destes sobre
aquele, criam fricções e dobras, cujas eventuais contradições só vêm a fortalecer a
dinâmica dos ensaios. Ambos os pólos se motivam todo o tempo, não cabendo ao
encenador o papel - comumente a ele associado - de estimulador-mor.
Por fim, parafraseando Dort, talvez pudéssemos afirmar que a vocação da encenação,
hoje, não seja a de “figurar um texto ou de organizar um espetáculo, mas de ser uma
crítica em ato da significação. [...] Tanto quanto construção, a teatralidade é interroga-
ção do sentido”38. A encenação, portanto, apresentaria tanto um caráter sinestésico e de
instauração de experiência, quanto de ativação do viés crítico e de autoquestionamento.
Encenar é também, nessa perspectiva, colocar em questão o próprio ato de encenar.
Seria possível ainda, examinar o âmbito da encenação colaborativa à luz de ou-
tro instrumental teórico, no caso, de algumas referências extra-teatrais oriundas dos
estudos de complexidade e da filosofia. Por exemplo, parecem-nos iluminadoras as
pistas sugeridas por Steven Johnson ao estudar os “sistemas de auto-organização”.
Tais sistemas colocariam em questão a necessidade de um líder, afirmando a pos-
sibilidade das comunidades se organizarem por si próprias. Os estudos realizados por
Johnson sobre os “fenômenos coletivos emergentes” – criando uma analogia entre
mundo biológico e cultural - levam-no a defini-los como

[...] complexos sistemas adaptativos que mostram comportamento emergente.


Neles, os agentes que residem em uma escala começam a produzir comportamen-
to que reside em uma escala acima deles [...]. O movimento das regras de nível
baixo para a sofisticação do nível mais alto é o que chamamos de emergência.39

38 dort, b. La Représentation Émancipée, p. 184.


39 johnson, s. Emergência: a dinâmica de rede em formigas, cérebros, cidades e softwares. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 14.
196

Em outras palavras, trata-se de sistemas que dispensam o controle centralizado


e se auto-organizam de baixo para cima. Um pouco mais adiante, ao definir melhor
tal “sistema complexo”, o autor o conceitua de uma forma que em muito remete ao
processo colaborativo:

[...] sistema com múltiplos agentes interagindo dinamicamente de diversas formas,


seguindo regras locais e não percebendo qualquer instrução de nível mais alto
[...] mostram a qualidade distintiva [...] de reagirem às necessidades específicas e
mutantes de seu ambiente.40

Esses sistemas dinâmicos têm a capacidade de não se fixarem em um único for-


mato, apresentando forte caráter adaptativo. Tal perspectiva parece ecoar no acentu-
ado traço de experimentalismo que marca os processos coletivos de criação. No caso
dos sistemas emergentes, Johnson vai identificar, entre outros, os princípios da “inte-
ração entre vizinhos” – diálogo e ações conjuntas realizadas entre pares, localizados
num mesmo nível do sistema – e “feedback” – autocrítica do sistema. Tais princípios
auxiliam o funcionamento do sistema em sua natureza irregular e descentralizada,
dispensando a necessidade de líderes organizadores.
O elemento do feedback, cabe ressaltar, cumpre um papel fundamental, pois “os
sistemas emergentes não são intrinsecamente bons”41. É importante que o sistema
tenha um meio de se auto-avaliar, pois dependendo de seus componentes e da forma
de articulação entre eles, podem apresentar também objetivos altamente destrutivos.
Daí, a necessidade de um dispositivo crítico capaz de auto-regulamentar, ou, no míni-
mo, servir de alerta, para a comunidade.
Outro aspecto encorajado por esse tipo de sistema é o dos encontros aleatórios. As
interações aleatórias dos indivíduos, o caráter arbitrário dos encontros na exploração
de um determinado território possibilitam a percepção do próprio sistema em ação,
favorecendo a capacidade de adaptação dos integrantes de um coletivo, e abrindo-os ao
novo e ao acaso.
Esta inteligência coletiva do sistema faz com que o mesmo encontre regras lo-
cais42 de funcionamento, isto é, dispositivos de ação que agem de forma coorde-
nada, os quais independem de qualquer gerenciamento central. A adaptabilidade
vai surgir justamente deste conhecimento em nível local. Está aí, justamente na

40 johnson, s., Emergência: a dinâmica de rede em formigas, cérebros, cidades e softwares, p. 15.
41 Ibid., p. 101.
42 Segundo Johnson, “local é o termo ideal para compreendermos o poder da lógica do
enxame. Vemos comportamentos emergentes em sistemas como os de colônias de for-
migas, onde os agentes individuais do sistema prestam atenção a seus vizinhos mais
próximos em vez de ficarem esperando por ordens superiores. Eles pensam localmen-
te e agem localmente, mas sua ação coletiva produz comportamento global” (In: Ibid.,
p. 54, grifo do autor).
197

capacidade de construção coletiva de regras comuns de ação, a potência e a sobre-


vivência dos sistemas emergentes.
A princípio, a presença do diretor teatral parece não fazer qualquer sentido em
sistemas descentralizados – ou policêntricos - e que dispensam a interferência de uma
autoridade central - como aqueles estudados por Johnson. Contudo, o encenador,
como uma das linhas de força nessa rede dinâmica, poderia garantir a interconexão
dos elementos, a ação dos dispositivos criados coletivamente, a manutenção de um
permanente feedback e, ainda, fomentar o caráter de experimentalismo e de produção
de novas experiências. Os processos de escritura cênica, em âmbito coletivo, podem,
portanto, se aproximar dos parâmetros de sistemas não-lineares, especialmente da-
queles baseados na auto-organização, sem excluírem, com isso, a figura do diretor.
A filosofia pós-estruturalista de Deleuze e Guattari – pensadores estes que produ-
ziram, sintomaticamente, eles também, uma obra em estreita colaboração – também
nos fornece pistas fecundas para refletirmos a atuação do encenador colaborativo.
Em uma de suas obras mais importantes, eles afirmam:

Não chegar ao ponto em que não se diz mais EU, mas ao ponto em que já não tem
qualquer importância dizer ou não dizer EU. Não somos mais nós mesmos. Cada
um reconhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados, multiplicados.43

Os conceitos de multiplicidades (“não supõem nenhuma unidade, não entram em


nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito” 44), de hecceidades (“individu-
ações sem sujeito” 45), de rizoma (formado por “princípios de conexão e heterogenei-
dade” 46) e, de agenciamento, entre outros, se mostraram inspiradores para a reflexão
que ora empreendemos.
Renato Cohen também já apontava a potência do pensamento deleuziano para o
diálogo com os procedimentos do work in progress e de organizações não-hierárquicas:

Conceitos como os de “territórios”, “agenciamento”, “devir”, “singularidade”,


“máquina”, “fluxos”, “rizoma” – todos eles dentro da gramática deleuzo-guattariana
e que têm em comum a noção de dinâmica, processo, reocupação de espaço físico,
imaginário, mental – dão contingência e abrangência teórica aos novos modelos e,
particularmente, ao modo de operar do work in process. Explicitam, também outros
modos narrativos que operam redes, fluxos pulsionais e seqüências não-causais.47

43 deleuze, g.; guattari, f. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995,
vol. 1, p. 11 (grifo dos autores).
44 Ibid., p. 8.
45 Ibid., p. 8.
46 Ibid., p. 15.
47 cohen, r. ‘Work in progress’ na Cena Contemporânea: criação, encenação e recepção, p. 23.
198

Entre todos esses conceitos, nos deteremos, em especial, na noção de agen-


ciamento. Ela pressupõe, de modo geral, dois eixos: o primeiro, ligado ao con-
teúdo e à expressão, e o segundo, ao território e à desterritorialização. Ambos
parecem ressoar a discussão sobre encenação contemporânea que ora empre-
endemos.
Fugindo da velha dicotomia forma-conteúdo – já que “expressão” e “conteúdo” se
referem um ao outro e interferem um no outro, sem o primeiro ser uma descrição ou
representação do segundo, isto é, ambos têm uma “forma” e uma “substância” em
si mesmos -, os autores vão colocar, lado a lado, o “agenciamento maquínico” – que
refere-se aos corpos, às ações e às paixões, aspectos estes, conteudísticos, compondo
um “sistema pragmático” – e o “agenciamento coletivo de enunciação” – concernen-
te aos signos e enunciados, de caráter expressivo, compondo um “sistema semiótico”.
Segundo Zourabichvili, podemos falar em agenciamento “todas as vezes em que pu-
dermos identificar e descrever o acoplamento de um conjunto de relações materiais
e de um regime de signos correspondentes”48
O eixo conteúdo/expressão parece traduzir uma possibilidade de composição do
território da encenação, como agenciamento, por um lado, de atuadores - que se in-
ter-relacionam, se conectam ou se “maquinam” por meio de ações e de afetos – e, por
outro, de enunciados cênicos coletivos. A territorialidade da encenação se funda, ela
também, nesta simultaneidade de conteúdo e expressão.
O segundo eixo do agenciamento, relativo às “linhas de desterritorialização”,
subverte ou transborda o agenciamento territorial, arrastando-o a outros agen-
ciamentos, a territórios inexplorados e descodificados, ao abandono do estabe-
lecido. São as “linhas de fuga” que trazem em si a potência de mutação, e que
abrem o agenciamento para algo que não é ele mesmo, podendo, inclusive, colo-
cá-lo em ameaça.
Este eixo, por sua vez, parece reverberar o impulso da encenação colaborativa, de
abandonar o caráter centralizador e unitário, migrando para regiões limítrofes, po-
licêntricas e de convívio de heterogeneidades. Ao abrir mão do controle unificador,
ao exorcizar o centro de poder, a encenação se desterritorializa. O encenador, então,
não passaria mais a materializar aquele coletivo, a representar aquele “um” que es-
maga a multiplicidade constitutiva do conjunto49.
Um aspecto importante do conceito de agenciamento é a sua não-redução à opo-
sição entre individual e coletivo. O agenciamento propõe, ao contrário, outros mo-
dos ou sentidos do coletivo. Isto porque, para Deleuze e Guattari, “o enunciado é
sempre coletivo, mesmo quando parece emitido por uma singularidade solitária [...]

48 zourabichvili, f. O Vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004, p. 20.


49 As aulas e encontros com Peter Pál Pelbart embasaram várias das considerações aqui
levantadas.
199

o enunciado jamais remete a um sujeito”50. Daí porque o agenciamento compõe um


território coletivo ou faz funcioná-lo.
O problema que se coloca, no âmbito específico da encenação, é como pensar esse
coletivo ou multiplicidade com um mínimo de jogo – o que pressupõe regras -, de
coesão, ou, para usar o termo deleuziano, de um “plano de consistência”. Em relação
ao conceito de multiplicidade – fundamental à operação de uma dinâmica colabora-
tiva - Deleuze o designa não como “uma combinação de múltiplo e de uno, mas, ao
contrário, uma organização própria do múltiplo como tal, que de modo algum tem
necessidade da unidade para formar um sistema”51. Ainda de acordo com o autor, é
necessário que os elementos que compõem a multiplicidade “sejam determinados
[...] por relações recíprocas que não deixem subsistir qualquer independência”52.
Daí o desafio de se instaurar um “plano de consistência” sem, contudo, abrir mão do
elemento anárquico ou não-hierárquico – desafio esse que poderia incorrer no perigo da
volta do organizador central e superior. Contudo, para as coisas se organizarem não é ne-
cessário um organizador – papel que traz em si um princípio transcendente. No caso do
teatro, a questão seria como fomentar um processo que crie esse “plano de consistência”
cênico, sem a obrigatoriedade da figura do encenador autocrático. Ou seja, como fazer
com que o encenador atue como um agenciador coletivo de enunciação?
Uma saída para tais questionamentos poderia ser a idéia do encenador como um
facilitador, no caso, um facilitador de agenciamentos. Ele precisaria, antes de tudo,
trabalhar em prol do agenciamento coletivo até porque, muitas vezes, é por meio do
diretor que se aglutinam determinadas forças de um determinado modo. Tal perspec-
tiva não se configura como contradição. Pois é importante reiterar que um agencia-
mento, na sua conexão de múltiplos elementos, não é algo caótico ou sem organiza-
ção. Ele comporta vários procedimentos ou dispositivos singulares.
O agenciamento produz uma certa individuação – que é singular e coletiva, simul-
taneamente. Lembremo-nos que o “coletivo”, para Deleuze e Guattari, não se opõe ao
“singular”. Ele, na verdade, é composto por singularidades em jogo ou, se quisermos,
por um jogo de singularidades. Daí falarmos no binômio – e não na oposição – singu-
lar-coletivo, já que o singular é sempre produzido no coletivo e este último, é sempre
um coletivo de singularidades. De acordo com Deleuze, reafirmando o caráter impes-
soal e pré-individual das singularidades nômades e anônimas,

Longe de serem individuais ou pessoais, as singularidades presidem à gênese dos


indivíduos e das pessoas: elas se repartem em um “potencial” que não comporta
por si mesmo nem Ego (Moi) nem Eu (Je) pessoal, mas que os produz atualizando-

50 deleuze, g.; guattari, f. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago Editora,
1977, p. 121.
51 deleuze, g. Diferença e Repetição. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Graal, 2006, p. 260.
52 Ibid., p. 261.
200

se, efetuando-se, as figuras desta atualização não se parecendo em nada ao poten-


cial efetuado.53

Nesse sentido, o encenador poderia funcionar como um elemento agenciador no


“canteiro de obras”. Ele fomentaria ou garantiria que determinado campo de expe-
riência se produzisse, que os fluxos de desejo não estivessem bloqueados, que um
plano de consistência e de intensidades se estabelecesse, e que a percepção crítica
não desaparecesse ao longo do processo. Ainda que ele detivesse o poder em deter-
minados momentos, esse poder seria móvel e rotativo, tanto quanto as hierarquias
flutuantes das quais ele também faz parte.
Não se trata, portanto, de uma encenação à deriva, mas, sim, de uma encenação
da deriva ou sob deriva. O encenador é convocado como um operador de redes dinâ-
micas, reterritorializando cenicamente os inúmeros experimentos, ao mesmo tempo
em que se encontra aberto às linhas de fuga do próprio processo. À superfície de uma
estrutura cênica marcada por mutações e inúmeras variáveis, o encenador atuaria
como um catalisador, como um “metteur en flux”.
A autonomia de sua escritura cênica ocuparia um lugar semelhante àquele des-
crito por Philippe Willemart, quando ele sustenta o deslocamento do “estudo dos
processos de criação do escritor, sujeito da enunciação, para o scriptor, que ocupa o
verdadeiro lugar ou campo das mudanças, sem ser todavia o agente”54. Em outras
palavras, mais do que compor cenas, o encenador colaborativo trabalharia a cons-
trução da obra-processo – ou do processo-obra – por meio de procedimentos gerati-
vos, dispositivos e operadores. Aliás, o conceito de “dispositivo”, como um elemento
capaz de engendrar situações, seria mais apropriado, a nosso ver, para se pensar as
matrizes cênicas atuais. A estrutura cênica dele resultante seria reticular ou, então,
permitiria operar com redes ou com campos de força.
Se no século xix houve o surgimento da mise-en-scène como uma arte autônoma, e o
século xx presenciou a sua incontestável consolidação, que caminhos se apontam para
o diretor nesse nascente século xxi? Não estaríamos hoje, frente à retomada de um tea-
tro grupal e coletivizado, diante de uma mudança “territorial” em relação à direção?
O século xxi, ao consolidar o uso da tecnologia digital e das redes virtuais de
cooperação, não traria em seu bojo uma “anarqui-encenação”, liberta dos conceitos
de autoridade e unidade? Será que a força da mise-en-scène, contemporaneamente fa-
lando, não residiria na sua capacidade de potencializar os agentes nela conectados?
Talvez um “novo” diretor surja quando ele “liberta-se do seu ego, liberta-se de seu
nome, liberta-se da pretensão inócua de entrar para a história e, então, ao se dester-
ritorializar pode participar de um plano mais complexo, onde o sentido construído

53 deleuze, g. Lógica do Sentido. 4 ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006, p. 105.
54 zular, r. (org.), Criação em Processo: ensaios de crítica genética, p. 83 (grifo do autor).
201

pelo autor é substituído pelas estratégias de múltiplos sentidos em co-autoria com


seus integrantes”, num entrelaçamento de “multiplicidades heterogêneas num jogo
de livres conexões”55
Se ainda é prematuro realizar tal afirmação, especialmente ao nos defrontarmos
com o complexo e diversificado fenômeno da encenação contemporânea, talvez
seja pertinente, ao menos, pensá-la no âmbito restrito das experiências dos coleti-
vos teatrais atuais.

55 barreto, r.; perissinotto, p. “A Cultura da Imanência”, in catálogo da exposição FILE 2002,


São Paulo, Paço das Artes, Imprensa Oficial do Estado, pp. 14-23.
202

7 Considerações Finais

Procuramos, ao longo do trabalho, descrever e analisar algumas experiências de


atuação do diretor teatral quando colocado em situação de compartilhamento da
criação. Partimos, inicialmente, de exemplos do final do século XIX e início do século
xx por ser a época do estabelecimento da encenação enquanto arte autônoma. Nesse
período, identificamos três matrizes fundamentais com as quais esse diretor-colabo-
rador veio dialogar: a matriz tolstoiana, a simbolista e a do agitprop. A partir desses
exemplos, percorremos a idéia da “fraternidade de artistas” do simbolismo russo, a
utopia da “comunidade de trabalho” do Primeiro Estúdio do Teatro de Arte de Mos-
cou, o projeto revolucionário da “comuna teatral auto-ativa” do agit-prop soviético e,
ainda, os experimentos criativos coletivistas do Estúdio do Teatro Piscator.
Em tais experiências, o papel do encenador autocrático foi, de certa forma, re-
dimensionado. Em primeiro lugar, ele passou a ser visto como um colaborador em
situação de igualdade com os outros artistas, perdendo o seu estatuto de superiori-
dade. Depois, ele partilhou a escrita cênica com outros encenadores, por meio de
experimentos de direção coletiva, nos quais um grupo de diretores coordenava, con-
juntamente, o processo da montagem – ainda que se revezassem, individualmente,
na condução diária dos ensaios. Além disso, foi estimulada a sua parceria concre-
ta com atores e escritores no desenvolvimento do texto dramatúrgico, criado por
meio de improvisações. Ou seja, o diretor tornava-se, nesse caso, um fomentador e
co-partícipe da criação dramatúrgica.
Além disso, o projeto utópico coletivista o impulsionou a encenar as suas peças
ao ar livre, em espaços públicos e dentro de lugares não-convencionais, trabalhan-
do com atores e não-atores – no sentido profissional do termo – na busca da comu-
nhão com a comunidade ou da agregação política. A importância da dimensão pe-
dagógica do encenador e da instância processual da obra também ganharam relevo
nesse limiar – e primeiras décadas – do século xx.
Aspectos que anteriormente estavam associados à sua função, passam a ser com-
partilhados pelos outros integrantes do coletivo, tais como a escolha do texto, o es-
tabelecimento do conceito ou plano de encenação e a distribuição dos papéis. Aliás,
o seu papel será o de conjugar as contribuições artísticas de todos os colaboradores
no resultado cênico final.
É claro que a figura e a ação desse encenador democrático coexistirão com aque-
la dos grandes encenadores autocráticos – às vezes, até mesmo, conjugando essas
duas instâncias num mesmo artista, a depender do momento ou do contexto em
203

que ele atuasse, como foi o caso de Evrêinov, Vakhtângov ou Piscator. Além disso,
o desejo de configuração do ensemble – objetivo perseguido pelo menos desde Mei-
ningen – também perpassará ambos os modelos, quer sejam compartilhados ou
hierarquizados.
Como nosso intuito não foi realizar um mapeamento de cunho historiográfico,
defrontamo-nos, algumas décadas depois, nos anos 1960 e 1970, com outra expe-
riência utópico-comunitária exemplar: a criação coletiva. Tal modo de construção
teatral trará dificuldades no estudo e na avaliação do papel do diretor, em razão do
fato de terem existido diferentes formas de criação coletiva nesse período, tanto
no Brasil quanto no exterior e, conseqüentemente, distintas maneiras de atuação
do encenador dentro delas. O modo de funcionamento criativo em grupos como
Théâtre du Soleil, Living Theatre, La Candelaria ou Pod Minoga espelham bem tal
diversidade.
Contudo, de certa forma a criação coletiva retomará as matrizes tolstoianas,
simbolistas e de agitprop do início do século xx, acirrando-as ou mesclando-as de
acordo com o projeto artístico e ideológico dos grupos. Por exemplo, o viés comu-
nitário, de retorno à natureza e a uma vida menos artificial – de inspiração tols-
toiana – se associará ao elemento do “viver em comunidade”, do vegetarianismo,
do culto ao natural, da ruptura das amarras do corpo e da sexualidade, presentes
em vários grupos teatrais de tendência telúrico-estética. Neles, buscava-se a reto-
mada da expressão do corpo, da interpretação mais “natural”, do desnudamento
– metafórico e concreto – dos atuantes, remetendo à não-interpretação ou ao im-
bricamento arte-vida da performance. É interessante notar como esses traços de
inspiração tolstoiana retornam com o movimento contracultural característico da
época, muito bem representado por coletivos teatrais como o Living Theatre ou
o grupo tuca.
A matriz simbolista e seu forte componente estético, de pesquisa de linguagem
e de reunião das artes, reaparecerão nos coletivos teatrais caracterizados pela pri-
mazia da plasticidade e pela ênfase no aspecto visual – e sua decorrente mistura ou
trânsito de linguagens artísticas. Exemplos dessa tendência são o Pod Minoga ou
o grupo Sonda. Não nos esqueçamos ainda que o campo da polivalência artística e
dos vetores sinestésicos, tão caros a uma parcela significativa da criação coletiva,
também foram marca da corrente simbolista.
Por fim, o caráter político, de conscientização e agitação, eixo da matriz do agit-
prop, encontrará reverberações no engajamento, na contestação social, no discurso
revolucionário e na militância comunista de grupos como o San Francisco Mime
Troupe, o União e Olho Vivo ou o Núcleo Independente.
É claro que se trata, aqui, de tendências ou ênfases, e não de categorias rígidas
e fechadas. Prova disso é que alguns grupos transitarão ou amalgamarão essas
matrizes, em combinações diferenciadas, nas suas práticas artísticas. É o caso do
204

próprio Living – com intensa atuação política e preocupações estético-formais


avançadas – e também do Théâtre du Soleil, que reúne, no caso, além desses dois
aspectos, aquele de raiz tolstoiana, da vida em comunidade. Alguns outros gru-
pos, ao contrário, vão radicalizar ou acentuar uma – ou duas – dessas tendências,
em detrimento de outra. O Asdrúbal, por exemplo, apesar de não se configurar
como uma “comunidade hippie”, traz em si o desejo de falar de sua geração, de
sua “turma”, e a formação do grupo advém desse desejo de fazer teatro “entre
amigos”. Porém, em paralelo a isso, é um grupo marcado por inquietações for-
mais e pela pesquisa de linguagem. O Teatro Experimental de Cali, por sua vez, e
mesmo o La Candelaria, apesar de não serem avessos totalmente a algum tipo de
busca formal, irão militar por um teatro de conscientização política e social, de
extração piscatoriana e do agitprop.
Quase todos eles, contudo, serão atravessados pelo desejo de rompimento com
o espaço cênico tradicional – ou, pelo menos, de recusa da rígida separação ator-
espectador –, por forte caráter de contestação – política, artística ou de costumes
– e pela retomada do ator como um eixo criador na construção da dramaturgia e
do espetáculo.
Além disso, o ataque à especialização – elemento conjuntural da época – recairá
sobre todos os setores da criação artística, o que inclui, portanto, a direção. A auto-
ria solitária do dramaturgo e o poder centralizador do diretor precisariam – no âm-
bito de um projeto coletivista – ser abolidos. É claro que essa abolição das funções
encontra-se associada, também, ao desejo de supressão das fronteiras que separam
os diferentes campos artísticos.
Daí que exercer a função de diretor de forma individualizada passa a se consti-
tuir em problema. A fim de resolvê-lo, oscila-se entre tentativas de eliminação desse
papel, seja por meio da direção coletiva, realizada por todo o grupo conjuntamente,
ou por uma “comissão” de direção, seja pela aceitação de sua permanência, desde
que sub judice.
A direção, portanto, vive sob a égide de um “mal-estar” de função. O papel do
diretor – e o atributo de sua autoria – não é assumido, isto é, lida-se com ele de
forma problemática. Contudo, não raramente esse discurso de supressão da função
diretiva esconde traços manipuladores por parte de lideranças dentro do grupo.
Como dissemos, a dificuldade para analisar a atuação do encenador na criação
coletiva é decorrente dessas contradições. Houve companhias que aboliram o diretor
ou que o colocaram sob suspeita ou “em quarentena” – como foi o caso de alguns
trabalhos do Living Theatre ou do Open Theater. Houve outras, ao contrário, em que
a coletivização das funções limitou-se à dramaturgia ou às demais áreas de criação,
mas que mantiveram a figura de um coordenador – ou mesmo de um encenador. Foi
o que ocorreu, por exemplo, com Santiago García, em La Candelaria. Outros grupos,
ainda, experimentaram mecânicas diferentes de criação, ao longo de suas trajetórias,
205

ou foram se encaminhando de um modo “sem diretor” para outro, que compreendia


a sua presença – em certa medida, o tec exemplifica tal percurso.
De qualquer forma, independentemente dos modelos, o elemento da improvisa-
ção foi a principal ferramenta do diretor – nos casos, é claro, em que se manteve essa
função –, tanto na construção dos textos coletivos quanto na escritura cênica grupal.
Ainda que possamos identificar experiências que partiram de dramaturgia pré-
via, a base da criação coletiva – como também do processo colaborativo – se susten-
ta na construção e escritura de novos textos – mesmo que sem palavras, baseando-
se apenas em gestos ou “expressão corporal”. Na prática, porém, não era incomum
nesses grupos haver alguém – às vezes, o próprio diretor – que recolhia todo o
material das improvisações e o alinhavava ou ordenava. Foi assim com Julian Beck,
Ariane Mnouchkhine, Santiago García, Hamilton Vaz Pereira e Mário Piacentini,
entre outros.
Nos anos 1990, já sob um contexto em que a especialização não é vista mais
como vilã ou como entrave à criação grupal, haverá a retomada de um projeto tea-
tral coletivista que mantém a figura do encenador. Trata-se, como vimos, do proces-
so colaborativo, fundado no diálogo entre funções previamente estabelecidas. Tal
prática delineou os rumos, os processos e a linguagem de alguns grupos brasileiros,
entre os quais, o Teatro da Vertigem.
O diretor, nesse modo de criação, não se encontra no epicentro da cena nem é
um corpo estranho a ela. Por um lado, ele é um dos responsáveis – com os outros
integrantes – pela efetivação da experiência coletiva e pela garantia do comparti-
lhamento da criação e, por outro, ele se constitui em voz autoral autônoma, em
diálogo com outras vozes, igualmente autônomas. A sua função está objetivada e é
legitimada pelo grupo, desde o início do trabalho.
Nem mesmo a preponderância dessa função em algum momento do processo é
vista como “problema”, na medida em que houve etapas no trabalho nas quais outros
criadores assumiram papel de destaque. Essa rotatividade de dominâncias desarma a
lógica do autoritarismo, garantindo o pacto de horizontalidade das funções.
A preexistência de um projeto grupal ou comum permite, também, que as au-
torias individuais possam se constituir, sem colocar em risco a prática e o depoi-
mento coletivo. Na verdade, pelo contrário, o conjunto de criações individuais vai
conformando e embasando essa criação grupal. É na tensão permanente entre
esses dois pólos que a criação do encenador ocorrerá. Ele nem impõe, exogena-
mente, a sua concepção, nem se reduz a mero organizador do material produzido
pelo grupo. A sua autoria não é um dado a priori, mas se materializa nesse espaço
dialógico e de mútuas interferências. Trata-se de uma autoria que nasce contami-
nada e que coabita com outras autorias. A criação dela resultante tem, portanto,
uma autonomia relativa.
Procuramos mostrar, “de dentro”, como essa dinâmica des-hierarquizada e in-
206

terdependente ocorre na prática de um processo teatral. No caso, na montagem


de três espetáculos do Teatro da Vertigem. Ao fazermos, hoje, um balanço dessas
experiências – algumas delas já bem distanciadas no tempo – podemos identificar
alguns elementos reincidentes, que dão sustentação aos procedimentos criativos
do grupo. Primeiramente, a idéia de pesquisa e experimentação, motor tanto da
concepção dos projetos quanto das atividades desenvolvidas em sala de ensaio. Tal
pesquisa está associada a um processo de descoberta e aprendizado, entendendo
a criação como uma forma de conhecimento – de si próprio e do mundo. Essa in-
vestigação ocorre em várias instâncias: teórica, temática, de campo, interpretativa,
espacial, estética, entre outras.
Depois, pode-se apontar a criação compartilhada. No processo de ensaio, a co-
laboração instaura um campo de forças, que atuam umas sobre as outras, gerando
um material cênico híbrido e contaminado. Se tais interações, por um lado, são
marcadas pelo paradoxo e pela crise, por outro, geram uma potência de criação
advinda, justamente, da vertigem da experiência. O processo colaborativo é, sobre-
tudo, um acontecimento: o acontecimento da partilha.
O princípio do “por que não?”, da discordância em relação a modelos tradicio-
nais rígidos – o que é diferente de recusar a tradição –, do desvio das regras, do jogo
com as variantes, de revelação das coisas fora de seu contexto habitual, da busca de
uma criação inimiga da rotina e da burocracia, são outros aspectos desses proces-
sos. Aliás, existe uma tentativa do grupo de se reinventar, de se transformar a cada
novo trabalho, de incorporar a mudança como um procedimento de criação.
A perspectiva da intertextualidade e da incorporação à obra do inesperado são
também elementos presentes nos percursos de construção. Muitas vezes, o impre-
visto é acolhido e transforma-se em regra ou em dispositivo da poética do grupo.
Por exemplo, no que diz respeito à encenação, ocorre uma dinâmica em que “con-
cepção” e “realização” se dão concomitantemente, levando a um jogo exploratório
sem um rígido plano pré-concebido.
A dramaturgia, por sua vez, não é mero ponto de partida ou condição sobre a
qual o grupo cria a sua obra. Pelo contrário, ela nasce no bojo e no calor do proces-
so. Daí o fato da forma assumida pelo texto estar intrinsecamente conectada ao fa-
zer concreto da sala de trabalho e ao depoimento pessoal dos artistas participantes.
Esta dinâmica de múltiplas interferências, de árduas e exasperantes negociações,
provoca a necessidade de processos longos de ensaio, nunca – até agora – inferiores
a um ano de duração.
Apesar das entradas e saídas de membros da equipe, inerentes a qualquer proje-
to coletivo, a criação se estrutura sobre uma prática de trabalho continuado, o que
provoca o amadurecimento das relações grupais, e a construção de parcerias artísti-
cas de longa data. É claro que, diante de tal contexto, o risco da acomodação existe.
Contudo, ele é minimizado pela entrada de novos colaboradores a cada projeto, pe-
207

las críticas e feedback ao longo do processo, e pelas intensas e dolorosas avaliações


– os fóruns – realizadas entre um espetáculo e outro.
A experiência do Vertigem não apresenta apenas um âmbito artístico e proces-
sual, mas inclui uma dimensão pedagógica. Ela se estrutura como formação interna
dos próprios integrantes, e se abre, também, ao diálogo com artistas iniciantes,
estagiários, membros da comunidade ou simples interessados. Ela é responsável
tanto por uma formação no grupo quanto pela formação do grupo. Aliás, cabe recor-
dar que o Vertigem foi criado como um grupo de estudos e, portanto, na raiz de sua
origem, encontramos tal matriz pedagógica.
Outro aspecto fundamental, claramente associado à imagem do grupo, refere-se à
apropriação de espaços públicos. Tais espaços, não destinados funcional e institucio-
nalmente à atividade teatral, travam um diálogo com os temas e as questões propos-
tos pelos espetáculos. Suas diferentes arquiteturas funcionam como um texto a ser
decifrado e reconstruído – ou reescrito – pela intervenção artística da companhia.
Busca-se a instauração de uma cena imersiva, que aguça os sentidos, a emoção
e a razão dos espectadores, gerando não apenas um exercício de observação – dis-
tanciado e mental – mas, sobretudo, um campo de experiência. A sinestesia dos
espetáculos dialoga com a própria sinestesia do tecido urbano que lhes deu origem.
Paralelamente à ressignificação do espaço para o espectador, ele é induzido a uma
perda de referências, de marcos de localização, sendo lançado numa situação la-
biríntica. Na verdade, tal desreferencialização perceptiva não é apenas geográfica,
mas também temporal.
Essa cena processional e em estações faz com que o corpo do espectador seja
investido e comprometido na ação da peça. Ela exige, também, uma relação íntima
e aproximada com os atores, o que determina um número reduzido de pessoas
na platéia. Tal proximidade e estado-de-presença fazem com que o trabalho oscile,
constantemente, entre o físico mais carnal e o metafísico mais impalpável dos te-
mas tratados. Aliás, a temática flagra, também em si, outra oscilação: vai da abstra-
ção do sentimento religioso à concretude da sociedade brasileira atual.
A ocupação e a reativação destes espaços coletivos inauguram, também, rela-
ções inauditas entre o ficcional e o real. Em resumo, uma peça de ficção, ainda que
contaminada por elementos documentais, é colocada num espaço de realidade. O
objetivo, contudo, não é um embaralhamento confuso e letárgico entre estas duas
esferas, mas sim a potencialização crítica do diálogo entre elas.
Além disso, a apropriação artística de edifícios institucionais e a ressignificação
de espaços públicos provocam uma interferência concreta na vida da pólis. É ofere-
cida aos cidadãos a possibilidade de redescobrirem a sua cidade, de recuperarem
locais esquecidos ou abandonados, de ocuparem lugares e trajetos até então inex-
plorados e, por fim, de reencontrarem a dimensão pública do próprio teatro. Em
São Paulo, os trabalhos do Vertigem delinearam uma linha de força centrífuga na
208

cartografia da cidade. Partindo do centro histórico (Igreja Santa Ifigênia), o grupo


ocupou um edifício no centro expandido, na região da Av. Paulista (Hospital Um-
berto Primo); instalou-se, em seguida, no Brás, na Zona Leste (Presídio do Hipódro-
mo), e, por fim, realizou uma intervenção na marginal (Rio Tietê). A percepção dos
limites da cidade, portanto, foi se ampliando a cada novo espetáculo.
Para finalizar, caberia acrescentar que nos processos analisados houve, por um
lado, a busca constante de transformação dos próprios criadores, tanto no âmbito
pessoal quanto artístico, e por outro, a crença na possibilidade de afetar e transfor-
mar o espectador por meio da ação teatral.
À luz das experiências do Vertigem, procuramos mapear os elementos-chave da
pesquisa prática que empreendemos há quinze anos. Nosso objetivo não foi o da
constituição de um “manual de trabalho”, até porque a natureza experimental e
cambiante dos processos impede fixações demasiado rígidas. Além disso, há que se
tomar cuidado com uma super valorização de métodos e sistemas. Por exemplo, o
caráter anárquico de um grupo como o Living Theatre, avesso a formalizações me-
todológicas, não o torna menos modelar e propagador de conhecimentos do que o
Teatro Experimental de Cali e seu método de criação coletiva.
De qualquer forma, os processos de ensaio do Vertigem nos serviram de base
para refletir sobre o papel do diretor no processo colaborativo. O encenador, ali,
não ocupa o lugar de centro gravitacional em torno do qual orbita toda a criação.
Ao contrário, há a convivência e a simultaneidade de vários centros irradiadores. É
como se o diretor se deslocasse para o lado ou para as margens, não no sentido de
tornar marginal o seu trabalho, mas sim de investigar as fronteiras e os limites de
sua função e, ao fazer isso, se desterritorializar.
Se, por um lado, é prematuro falarmos de um novo paradigma para o trabalho
do encenador, por outro, é evidente que seu papel tenha sofrido certo deslocamen-
to ou reconfiguração. O seu campo de possibilidades e a sua forma de atuação ga-
nham aspectos particulares. O diretor, aqui, não tem o controle integral do processo
– e nem do espetáculo. Ocorre uma dinâmica de criação que não se encontra mais,
inteiramente, em suas mãos, pois há um transbordamento criativo que ultrapassa
a própria direção. O diretor não é mais a “cabeça” do grupo, pois o grupo habita o
corpo inteiro do processo-obra, dos membros inferiores ao cérebro, do olho à mão,
dos ouvidos à língua.
Esse encenador colaborativo é, antes de tudo, um encenador-facilitador, um en-
cenador-catalisador, um encenador-enzimático. Daí vem a idéia de lançar mão do
conceito de agenciamento para refletir esse campo de experiência ou esse territó-
rio paradoxal que é o processo compartilhado de criação. Pois, de acordo com esse
conceito, o que está em jogo não são indivíduos ou subjetividades, mas sim singu-
laridades em funcionamento, ou ainda, multiplicidades capazes de abrir mão da
unidade para comporem um sistema. O encenador “agenciador”, nesse sentido, não
209

se coloca enquanto um organizador central, mas como um facilitador de agencia-


mentos, um conector de múltiplos elementos, um provocador de experiências para
que, só então, a partir daí, um “plano de consistência” cênico se estabeleça.
O encenador colaborativo não se restringe a um encenador de processo colabora-
tivo, mas seu trabalho pressupõe, em alguma medida, um processo compartilhado
de criação. A encenação no coletivo refere-se, portanto, a qualquer sistema teatral
de criação em que a função do diretor esteja presente e assumida, porém operando
num campo múltiplo e coletivizado de criação. Ela é provocadora de uma polifonia
criativa. Trata-se de uma encenação contaminada e marcada por autonomia rela-
tiva. Nela, não nos encontramos, nem de longe, próximos do “fim da encenação”,
mas sim de uma encenação desterritorializada.
210

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Dissertação (Mestrado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de
São Paulo.

TRABALHO DE PESQUISA SEM VÍNCULO ACADÊMICO

lima, Mariana. O Processo Colaborativo no Teatro (tendo como base a pesquisa e realização do
espetáculo ‘Apocalipse 1,11’, do Teatro da Vertigem). 2001. (2 volumes). Resultado da pesquisa
subsidiada pela Bolsa Vitae de Artes.

ARTIGOS

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de criação. Cadernos da ELT, Santo André, v. 1, n. 0, pp. 33-41, mar. 2003.
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Camarim (Cooperativa Paulista de Teatro), São Paulo, n. 37, pp. 30-42, 1º sem. 2006 (trad.
Eduardo Fava Rubio).
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anexos
218

Anexo A – diretivas para o coletivo teatral


do teatro piscator

Apresentamos aqui a tradução de um trecho suprimido da edição brasileira do Teatro


Político, de Erwin Piscator. Tal excerto expõe os princípios diretivos do Teatro Piscator,
em um projeto elaborado por Erich Mühsam, com a aprovação do próprio Piscator. Pela
importância esclarecedora deste documento – que norteava também as atividades dentro
do próprio Estúdio – julgamos oportuna a sua inclusão:

Diretivas para o coletivo teatral do Teatro Piscator


1. O coletivo do Teatro Piscator é um órgão corporativo fundado sobre relações amigáveis. Ele
é constituído por amantes da arte animados por um espírito revolucionário, que assumem
o duplo engajamento de cuidar da programação e das realizações do Teatro Piscator, além
de aconselhar constantemente a direção e de assumir a responsabilidade comum pelo Teatro
Piscator.

2. O coletivo decide, com total independência, a sua composição, sem outra preocupação que
aquela de manter o nível ideológico do teatro e a sua eficácia política. O número de colabo-
radores do coletivo não é limitado. Os colaboradores podem ser recrutados por designação
da assembléia, no caso de ser necessária uma colaboração específica e ocasional. Como regra
geral, só se pode pôr fim a uma colaboração sob a base de um acordo amigável, tendo como
resultado uma declaração comum e pública das partes envolvidas. Esta declaração não apre-
sentará jamais um caráter difamatório. As exclusões decididas contra a vontade do colabora-
dor excluído só podem ser promulgadas por meio de uma reunião do coletivo convocada para
esse fim, à qual devem estar presentes pelo menos dez membros do coletivo, sendo que uma
maioria mínima de 70% é necessária.

3. O coletivo reparte todos os trabalhos (elaboração e escolha definitiva do repertório,


organização do Estúdio, redação do programa, etc.), após uma análise das competências,
segundo entendimento entre seus membros e as comissões formadas, em mútuo acordo; em
certos casos, o coletivo se reserva o direito de tomar uma decisão em conjunto. O trabalho do
coletivo não é remunerado nem fixado previamente por escrito, segundo normas anteriores à
própria experiência prática.

4.Toda atividade do coletivo e de seus comitês é fundada sobre os princípios fundamentais do


livre consentimento, da igualdade de direitos e da responsabilidade individual em consonância
com a responsabilidade coletiva. Será deixado por conta da iniciativa pessoal de cada membro
do coletivo a fatia de liberdade necessária ao cumprimento prazeroso do trabalho, devendo
219

este ser conciliável com o conceito de uma coletividade fundada sobre a camaradagem e sobre
uma ideologia comum específica. O peso do trabalho repousa fundamentalmente sobre os
ombros dos membros da comissão. O coletivo se reúne ao menos uma vez por mês para ouvir
e discutir o relatório de trabalho das diferentes seções e, outra vez ainda, para ser informada
pela direção do Teatro Piscator sobre as atividades e os projetos do teatro.

�������� E. Le Théâtre Politique. Paris: L’Arche Éditeur, 1972, pp.137-138.


� piscator,
220

Anexo b – fichas técnicas resumidas dos espetáculos

O Livro de Jó

criação Teatro da Vertigem

dramaturgia Luís Alberto de Abreu ambientação cenográfica Marcos Pedroso

atores Daniella Nefussi (Mulher de Jó, figurinos e visagismo Fábio Namalame


1995)
Joelson Medeiros (Sofar, 1997) composição e direção musical
Lismara Oliveira (Coro, 1995-6) Laércio Resende
Luciana Schwinden (Mulher de Jó, 1998)
Marcos Lobo (Sofar, 1996) coordenação teórica Ivan Marques
Mariana Lima (Mulher de Jó, 1995-7)
Matheus Nachtergaele (Jó, 1995-7) assistente de direção Marcos Lobo
Miriam Rinaldi (Elifaz, Coro)
Roberto Audio (Jó, 1998) projeto acústico Kako Guirado
Sergio Siviero (Mestre, Eliú)
Siomara Schröder (Sofar, 1995-6) produção executiva
Suia Legaspe (Coro, 1996) Arma Leonor Silva Costa
Vanderlei Bernardino (Contramestre, Marcos Moraes
Baldad) Noêmia Duarte

músicos Alexandre Galdino (voz) direção de produção Marcos Moraes


Camila Lordy Costa (teclado, voz)
Flávia Campos (voz) concepção e direção geral
Giovanna Sanches (voz) Antônio Araújo
José Eduardo Areias (voz)
Miriam Cápua (percussão, voz)
Rita Carvalho (voz)
Roseli Câmara (percussão, voz)

iluminação Guilherme Bonfanti


221

Apocalipse 1,11

criação Teatro da Vertigem

dramaturgia Fernando Bonassi desenho de luz Guilherme Bonfanti

atores Joelson Medeiros (Anjo Poderoso) cenografia Marcos Pedroso


Luciana Schwinden (Talidomida do
Brasil, Homem Machucado) figurinos Fábio Namatame
Luis Miranda (Carteiro, Policial
Fundamentalista, Benedito, Pastor direção musical e trilha sonora
Alemão, Palhacinho 1) Laércio Resende
Mariana Lima (Babilônia)
Miriam Rinaldi (Noiva, Palhacinho 2) dramaturgismo Lucienne Guedes
Roberto Audio (Senhor Morto e Besta)
Sergio Siviero (Juiz) assistência de direção Marcos Bulhões
Vanderlei Bernardino (João)
direção de cena e administração
participação especial Aline Arantes Eliana Monteiro
(Criança)
Amanda Viana e Wagner Viana (Bartira e projeto acústico Kako Guirado (Usina
Aritana - casal de sexo explícito) Sonora)
Kleber Vallim (Policial Fundamentalista,
Coelho, Chacrinha, Go-Go Boy, Pai) produção executiva Adriana Oddi
Silvania Barbosa
elenco convidado
(Policiais Fundamentalistas, Adoradores) direção de produção Fernanda Signorini
Alexandre Russin
Eduardo Avelino concepção e direção geral
Marçal Costa Antônio Araújo
Pedro Vieira
Tales Vinícius
222

BR-3

criação Teatro da Vertigem

dramaturgia Bernardo Carvalho desenho de luz Guilherme Bonfanti

atores Cácia Goulart (Evangelista e Rainha direção de arte Márcio Medina


Mariana)
Daniela Carmona (Helienay, Fiel da figurinos Marina Reis
Tia Selma e Mulher do Senador e
Seringueiro) criação, direção musical e desenho de som
Luciana Schwinden (Zulema Muricy, Tia Marcus Siqueira
Selma e Mulher de Jonas e Seringueira) Thiago Cury
Roberto Audio (Jonas)
Sergio Siviero (Dono dos Cães) coordenação teórica e dramaturgismo
Sílvia Fernandes
atores convidados Bruna Lessa (Patrícia, Ivan Delmanto
Pernas e Fiel da Tia Selma)
Bruno Batista (Edmilson, Pernas, Crente assistência de direção Eliana Monteiro
da Igreja dos Mortos, Cão e Seringueiro)
Denise de Almeida (Sereia, Pernas, assistência de direção de cena
Sombra de Vanda, Seringueiro) Carol Pinzan
Ivan Kraut (Galego, Pernas, Gladiador, Suzana Aragão
Cão, Oséias, Vendedor de poeira,
Seringueiro e Senador) desenho de som (projeto acústico)
Marília de Santis (Jovelina, Vanda, Kako Guirado
Princesa, Funcionário de Pedro Biló e
Seringueiro) produção excecutiva Carol Di Deus
Rodolfo Henrique (Douglas e Daniela Renzo
Escriturário) Erlon Souza
Sérgio Pardal (Barqueiro, Pedro Biló e Leal) Paula Micchi

músicos Amilcar Ferraz Farina (laptop e coordenação de produção Carla Estefam


cavaquinho)
Gabriel Levy (acordeon) direção de produção Walter Gentil
Aloísio Cézar (acordeon)
concepção e direção geral
Antônio Araújo

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