Você está na página 1de 14

P

ROCESSOS
COLETIVOS
lhares / Processos coletivos
O
50

O PROCESSO COLABORATIVO
COMO MODO DE CRIAÇÃO
Antônio Araújo
Doutor em artes, encenador e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP

Resumo: O processo colaborativo como modo de criação a partir da conexão entre o binômio método e
modo. A horizontalidade das funções criativas: atuação, dramaturgia e direção para a permanências de um
teatro construído de forma coletiva e democrática.

Palavras-chave:
processo colaborativo,
ator-criador,
criação coletiva
A ntes de entrar no tema propriamente dito,
gostaria de manifestar minha satisfação
de contribuir para o primeiro número da
revista do Célia Helena Teatro-escola, que, agora,
alça a condição de curso superior. Antes de eu mes-
cíficas, têm igual espaço propositivo, produzindo
uma obra cuja autoria é compartilhada por todos.
Sua dinâmica des-hierarquizada, mais do que re-
presentar uma “ausência” de hierarquias, aponta
para um sistema de hierarquias momentâneas ou
mo ingressar nas trilhas da carreira acadêmica, tive flutuantes, localizadas por algum momento em um
a oportunidade de trabalhar nessa escola durante determinado polo de criação (dramaturgia, ence-
vários anos, experiência esta que foi de grande im- nação, interpretação etc.) para então, no momento
portância na minha formação enquanto profes- seguinte, mover-se rumo a outro vértice artístico.
sor. Assessorado e “inspirado” pela saudosa Célia De maneira geral, tal processo é visto como
Helena – que além de atriz era uma pedagoga de um método, tanto por profissionais da área quan-
enorme talento –, e por um corpo de professores to por estudiosos de teatro. Ora, se os métodos são
comprometido com a construção do diálogo entre caminhos, diretrizes operacionais, que podem ser
o “criar” e o “transmitir”, pude amadurecer minha rígidos ou abertos, enquanto os modos são a ma-
prática no trabalho de formação de atores. Dado o neira de colocar em diálogo, de inter-relacionar os
rigor da experiência didática ali praticada – e levada diferentes elementos na construção da obra, será
avante com igual seriedade por Lígia Cortez – pa- que não seria revelador pensar o processo colabo-
recia natural que a escola ampliasse seus horizontes rativo também a partir do seu modo de fazer? Ou
e alçasse v s maiores. Que esse “passo acadêmico” melhor, estudá-lo à luz desse binômio método e
construa uma trajetória de longa continuidade! modo?
Como alguns dos meus parceiros artísticos no Tal perspectiva pode nos ajudar a entender
Teatro da Vertigem vieram justamente do quadro por que alguns artistas advogam que processo co-
de alunos desta escola, pareceu-me oportuno tratar laborativo e criação coletiva são denominações dis-
de certo modo de criação compartilhada, praticada tintas para uma prática que seria a mesma. Talvez
pelo grupo em seus processos de ensaio. a defesa da equivalência desses dois termos esteja
Fruto direto da criação coletiva das décadas baseada em um tipo de visão que os pensa enquan-
de 1960 e 1970, o processo colaborativo constitui- to método. E, de fato, por seu fazer coletivizado,
se numa metodologia de criação em que todos os por sua diretriz dialógica, pode-se, sem incorrer em
integrantes, a partir de suas funções artísticas espe- erro, pensá-los de forma geminada.
51
Contudo, se olharmos para essas duas dinâ- Se a horizontalidade das funções é uma regra
micas pelo viés do modo, perceberemos que o básica de funcionamento desse sistema de criação,
como se opera a inter-relação entre os diferentes é inegável a revalorização do ator como um criador
elementos de criação produz, aqui, processos dis- em pé de igualdade com o dramaturgo e o diretor.
tintos. Por exemplo, o diálogo ocorre entre funções A sua função autoral, muitas vezes encoberta ou
já definidas e assumidas desde o início. O trabalho restrita à execução técnica de uma determinada
de criação só se inaugura, de fato, a partir desse personagem, fica potencializada no processo. Na
pacto previamente estabelecido. Ou seja, o grupo, prática, no instável equilíbrio de forças da sala de
por meio de um consenso – ou endosso – define a ensaio, a dramaturgia e a direção parecem “perder”
ocupação de cada área artística, segundo o interes-
se e a habilidade dos integrantes ou convidados. É
claro que, em muitas das funções, tal decisão nem
se faz necessária, na medida em que é comum a
permanência e a continuidade dos colaboradores,
de um projeto para o outro.
Se, em relação às personagens, não é rara a
existência de uma etapa, durante os ensaios, em que
todos os atores exploram todos os papéis, o mesmo
não ocorre em relação às funções. Ou seja, não há
um período em que todos os integrantes experimen-
tam todas as funções – ou em que elas são deixadas
em aberto por um tempo – para, só então, haver a
definição de quem fará a cenografia ou a dramatur-
gia. Sabemos, por exemplo, que em algumas práticas
de criação coletiva, quando ocorria algum tipo de
definição de atribuição, ela só se estabelecia muito
tempo depois de iniciados os ensaios. seu caráter de onipotência e onisciência, abrindo BR-3. Teatro da
Além disso, da forma como praticada pelo espaço para uma interferência autoral forte por par- Vertigem. Direção:
Antonio Araújo.
Vertigem até agora, a criação não tem se caracteri- te dos intérpretes. São Paulo, 2006.
zado por uma mobilidade de funções. Porém, nada Outro aspecto importante diz respeito à sín- Foto: Nelson Kao
impede que isso aconteça. Pois, se essa mobilidade tese final. Se, na criação coletiva, a autoria indivi-
ocorrer de um projeto para outro – e não dentro de dual – quando ela ocorre – deve estar submetida à
um mesmo espetáculo – não há uma descaracteri- vontade grupal, aqui ocorre um tensionamento ao
zação do processo colaborativo. Por exemplo, não limite entre estes dois polos. Isto porque o artista
haveria nenhum problema de um ator do grupo, responsável por uma área tem a palavra final sobre
numa determinada peça, vir a se tornar o dramatur- ela. Parte-se do pressuposto, é claro, de que ele irá
go ou o diretor na montagem seguinte. discutir, incorporar elementos, negociar com o co-
Nem mesmo a simultaneidade ou conjugação letivo todo – durante o tempo que for necessário –,
de funções dentro de um mesmo projeto, apesar de porém, no caso de algum impasse insolúvel, a sín-
se constituir numa situação mais complexa, invia- tese artística final estará a cargo dele.
bilizaria a prática do processo colaborativo. Tudo Aliás, toda essa dinâmica de negociações é
iria depender de quais funções seriam assumidas causa principal da dilatação do tempo de ensaio.
pela mesma pessoa e da capacidade do grupo em Gasta-se – e não “perde-se” – muito tempo em de-
gerenciar uma situação assim. bates e na busca de soluções em que todos se reco-
lhares / Processos coletivos
O
52
nheçam. A criação se torna mais lenta e distendida, como uma reação espontânea e indesejada, mas
o que pode se tornar um elemento de desgaste nas como uma ação transformadora, produzida pelo
relações, em longo prazo. Por outro lado, é muito próprio processo.
difícil o amadurecimento de um discurso coletivo, É possível ainda analisar o processo colabo-
de forma orgânica e consciente, sem ser por essa via. rativo à luz dos elementos de subordinação e co-
A existência de um conceito individual for- ordenação. Em um teatro mais tradicional, com
te cria um importante polo tensionador em um hierarquias rígidas e bem definidas – muitas vezes,
processo marcado por inúmeras interferências inclusive, demarcadas por cláusula contratual –, as
e contribuições. Ele tanto favorece a filtragem e relações internas de trabalho estão submetidas a
seleção do vasto material produzido quanto fun- uma pirâmide de subordinações. Por exemplo, o
ciona como um eixo aglutinador das proposições ator se submete às indicações do diretor, que por
grupais. Se, por um lado, age como uma barreira, sua vez se submete às indicações do dramaturgo
um limite, uma fronteira, por outro, facilita e es- e, todos juntos, se submetem aos parâmetros do
timula a interlocução e a expansão das zonas de produtor. Ou, se ao contrário, o espetáculo orbita
colaboração. em torno de um determinado ator, essas linhas de
dominação se invertem.
Já em um caso diametralmente oposto a esse,
o da criação coletiva, o que se estabelece – ou se
procura estabelecer – é um plano de horizontali-
dade máximo. Ou seja, ninguém subjuga ou dire-
ciona ninguém. Todos estão em pé de igualdade,
o tempo inteiro, em relação a todos os aspectos da
criação. Daí que, nos casos em que tal dinâmica – e
o projeto utópico nela embutido – tenha funcio-
nado efetivamente, presenciamos uma estrutura
baseada num sistema de coordenação.
No caso do processo colaborativo, o que ocor-
re é uma contínua flutuação entre subordinação e
coordenação, fruto de um dinamismo associado às
funções e ao momento em que o trabalho se en-
BR-3. Teatro da Esse polo criador individual – por paradoxal contra. Por exemplo, a definição do projeto, dos co-
Vertigem. Direção: que pareça – acaba também acirrando o posiciona- laboradores, das técnicas a serem experimentadas
Antonio Araújo.
São Paulo, 2006. mento grupal. Ele provoca uma tensão produtiva, (treinamento físico e vocal, tipo de exercícios etc.),
Foto: Nelson Kao ou até mesmo um antagonismo, que fortalece o é toda decidida ou endossada coletivamente – não
próprio grupo e o conceito-geral que este tem do raro por meio de votação, em caso de impasse. Ou
trabalho – ainda que por via da crise e do conflito. seja, essa etapa ocorre sob a égide da coordenação.
Por outro lado, as individualidades também saem Em outros momentos, como a distribuição dos
fortalecidas por essa dinâmica de confrontos, diá- papéis está a cargo do diretor, a definição final do
logos e negociações, presentes dentro do processo. texto, a cargo do dramaturgo, ou o desenho da luz,
Aliás, poder-se-ia pensar a “crise” não apenas a cargo do iluminador, por mais que ocorram deba-
como uma consequência à qual o grupo está ne- tes e confrontos, o grupo acata a decisão de quem é
cessariamente fadado, mas como um mecanismo responsável por aquela função. Isto é, trabalha sob
implícito e impulsionador em processos desta na- um regime de subordinação.
tureza. Ou seja, a sua deflagração pode ser vista não É claro que tais definições não “caem de pa-
53
raquedas”. Ao contrário, são fruto de muita expe- E, por fim, é importante perceber que esses
rimentação, de um longo amadurecimento e de regimes podem ocorrer sucessivamente, num jogo
constantes negociações entre os integrantes. São de ir-e-vir, dentro de um mesmo momento da
consequência, ainda, da complexa rede de inter- montagem. Por exemplo, no âmbito da direção, a
dependências que marca todo o processo. É muito materialização das marcas e das movimentações
comum, por exemplo, haver contínuas mudanças ocorre desta maneira. Os atores propõem gestos ou
de opinião e de posicionamento em razão desses deslocamentos, o diretor seleciona e produz uma
embates criativos. O ideal, porém, quando se opera partitura, os atores, então, reconfiguram aquele pri-
numa sistemática de subordinação, é que ela não meiro desenho; o diretor, por sua vez, determina
ocorra no âmbito mesquinho da luta de poder ou uma segunda formalização, e assim por diante.
da mera demarcação de território. Em todos esses casos, pode-se identificar a
Além disso, o exercício de acatar uma defini- existência de uma atitude artística autoral, marca-
ção artística alheia parte de uma escolha anterior e da por um intrincado jogo de dependência-inde-
criteriosa realizada por todo o coletivo em relação a pendência, e que oscila entre liderar e cooperar,
esse “outro” com o qual se estabelece uma parceria. entre impermeabilidade e porosidade. O que é
Ou seja, trata-se de uma subordinação que é de- diferente, em um processo desta natureza, de ser
corrência de uma prévia dinâmica de coordenação. “Maria-vai-com-as-outras” ou, no polo oposto, de
O grupo escolheu com quem quis trabalhar e não empacar e não arredar pé antes mesmo do início
simplesmente foi contratado para realizar um espe- das discussões.
táculo com uma equipe pré-definida. Por todos os exemplos acima referidos é
Por outro lado, os colaboradores convidados possível perceber que o que está em pauta não é
pelo grupo também não atuam como simples exe- a presença ou não do elemento dialógico ou par-
cutores. Eles participam e contribuem para a defi- ticipativo, mas de como ele se estabelece. Nesse
nição do conceito-geral do trabalho (vale a pena sentido, pelo viés do modo, processo colaborativo
observar que há uma grande diferença entre “exer- e criação coletiva não são a mesma coisa, não tra-
cer uma função” e “ser funcionário” – subenten- duzem a mesma experiência. E a referida distinção
dendo aqui, no caso deste último, uma submissão – entre método e modo – é capaz de nos ajudar a
passiva e burocrática). Dessa forma, os colaborado- entender a discussão, muitas vezes polêmica, que
res-convidados vão se inserir também nessa dinâ- cerca esses dois conceitos teatrais.
mica fluida de coordenação-subordinação.
lhares / Processos coletivos
O
54

AUTORIA COLETIVA
Rosyane Trotta
Doutora em teatro, diretora, autora, ensaísta e professora da Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro – UNIRIO

Resumo: Este texto apresenta uma análise reflexiva sobre a observação, entre o anos de 2005 e 2007, da
estrutura organizacional de grupos de teatro. Análise do processo colaborativo a partir de três recortes
texto/cena, o funcionamento do grupo e a função do encenador.

Palavras-chave:
processo colaborativo,
teatro de grupo,
autoria coletiva.
N a última década, o teatro de grupo se
tornou não apenas uma modalidade ex-
pressiva no panorama artístico brasileiro
como passou a merecer festivais e eventos próprios,
editais específicos, estudos acadêmicos. O chama-
segundo, pelo eventual êxito do espetáculo, um in-
teressante espaço de projeção, no terceiro, ele já pa-
rece restrito. A perspectiva da carreira individual, a
ansiedade por novas e diversificadas experiências e
o projeto de ascensão social são alguns dos fatores
do processo colaborativo se disseminou entre os que trazem para dentro dos grupos a rotatividade
mais diversos segmentos teatrais e, de certa forma, como elemento constitutivo, em uma concepção
ultrapassou os limites de seu meio de origem: nem paradoxal que define o grupo pela relação solitária
sempre é em um grupo que ele se realiza. Qual a que o diretor cultiva com o seu projeto, mais do que
relação entre este modo de criação e a organização pela consolidação de uma parceria artística com o
de grupo? Se o que define tais processos é a criação elemento humano que funda a cena. A descon-
conjunta do texto e da cena ao longo dos ensaios, tinuidade caracteriza tanto a estrutura do grupo
é possível falar em coletivização da autoria, inde- quanto seu sistema, que reduz a prática coletiva a
pendentemente da existência de uma estrutura de ensaios e apresentações, não se concebendo teatro
grupo? fora do trajeto de construção e distribuição do es-
Entre 2005 e 2007, observei diferentes está- petáculo. Para o diretor de um grupo descontínuo
gios de ensaio a partir de três recortes: a relação e de um teatro constrito, o processo colaborativo
texto/cena; o funcionamento do grupo; a função oferece a possibilidade de tomar o método como a
do encenador. Da observação e da análise, o que matéria-prima. Segundo a atriz Miriam Rinaldi, do
emergiu foi a diferença entre o grupo e um outro Teatro da Vertigem, neste processo...
tipo de organização a que chamei de “coletivo au-
sente”. O presente texto foi extraído dos capítulos [...] é necessário um corpo coletivo com potencialidades
de conclusão da tese A autoria coletiva no processo de além daquelas específicas em sua área de atuação, além de
criação teatral.1 desejo propositivo. [...] é igualmente indispensável a dis-
Idealmente o processo colaborativo, tal qual ponibilidade para falar e ouvir e, mais do que tudo, para
a criação coletiva, investe no risco, na cooperação refazer. Isso demanda maturidade nas relações grupais e a
e no embate do processo. Ao mesmo tempo, não confiança de que as melhores escolhas serão feitas em prol
consegue fechar as portas à subjetividade agregada do trabalho, acima de qualquer vaidade ou visão pessoal.
à função do ator na sociedade de consumo daí a Nesse sentido, podemos dizer que o processo colaborati-
dificuldade de formar e manter grupos capazes de vo demanda uma qualidade poética, na maneira de fazer,
constituir o campo de forças necessário para esta- e ética, na inter-relação dos artistas e destes frente à obra
belecer a alteridade. Se, no primeiro momento, o (RINALDI, 2005, p. 21).
grupo é um interessante espaço de atuação, e no
55
O ator precisa se interessar por todos os com- vidade que caracteriza o evento teatral, se plantam
ponentes da linguagem teatral, colocar-se diante em coletivos cujo processo promove a dilatação do
deles como autor e trabalhar em benefício da obra tempo dedicado à criação, a redução de elementos
e não de si mesmo. É interessante notar que Miriam previamente definidos, a rarefação das fronteiras
Rinaldi não trata de conflitos em sua dissertação, ela funcionais. E, segundo as entrevistas, isso acontece
procura descrever as etapas do processo em pers- à revelia do desejo e da consciência dos participan- Gabriel Miziara em
Loucura, Cia.
pectiva linear, ou seja, suprime a desconstrução, o tes, que frequentemente não conseguem explicar Elevador de Teatro
dia-a-dia, e escolhe um ponto de vista por sobre o determinadas atitudes. Panorâmico.
Direção: Marcelo
processo. Como as necessidades apontadas pelo Ao analisar o processo teatral do ponto de vista Lazzaratto.
texto só podem ser verificadas no decorrer do tra- da autoria, consideramos que, se por um lado, o tea- Foto: João Caldas
balho, e não a priori, pode-se supor que elas emer-
giram do conflito e das dificuldades que a equipe
teve que superar para prosseguir. Tais necessidades
aparecem justamente porque o ator não dispõe a
princípio de determinadas qualidades: interesse
além da função específica, desejo propositivo, ma-
turidade nas relações grupais, visão da obra acima
da vaidade e do papel individual. Necessárias à
criação em coletivo e ao mesmo tempo ausentes
na formação do ator, estas qualidades terão que
ser elaboradas no processo. Em outras palavras, o
maior desafio do processo colaborativo é eliminar,
no ator, os vícios arraigados pela descontinuidade
do coletivo e pela falta de contato com o teatro fora
do âmbito do intérprete: alienação, individualismo
e competição. A poética do teatro e a ética das rela-
ções de criação se apresentam ao ator no percurso
de preparação do espetáculo.
O modo de criação pela via da autoralidade
apresenta diversos aspectos que, numa tentativa de
síntese, podem ser agrupados na polaridade entre
dois movimentos antagônicos. Tanto as questões
estéticas e metodológicas quanto aquelas relacio-
nadas ao funcionamento do coletivo parecem tran-
sitar na tensão entre o grupo e a sociedade, entre
a construção de um paradigma ético-estético e a
resultante circunstancial das contribuições indi-
viduais. Isso porque – e a pesquisa de campo tor-
nou claro este aspecto – o fazer teatral em grupo
é eminentemente ideológico: quem se propõe a
criar na relação com o outro, propõe uma forma de
organização destas relações. O coletivo ausente, a
invasão do público pelo privado, o individualismo,
a competição, coerentes com o sistema da produti-
lhares / Processos coletivos
O
56
tro reflete o mundo em que está inserido, por outro trabalho resulta de uma total liberdade de escolha.
lado pode – e deveria – ser um dispositivo reno- No entanto, ao ser progressivamente questionado,
vador das subjetividades, na medida em que colo- ele acaba dizendo “eu preciso sobreviver” ou “o
ca a autoelaboração individual em uma dimensão mercado é assim” – o que no fundo significa que
coletiva, superando a dicotomia entre indivíduo e abriu mão da liberdade possível. E nem é preciso
sociedade. “A verdadeira liberação significa conhe- perguntar sobre a responsabilidade de sua função
cer a si mesmo e, frequentemente, só pode ser reali- social.
zada por intermédio de um grupo, seja ele qual for” O direito à autoria faz parte da história das lu-
Gabriel Miziara (FOUCALT, 1994, p. 678). Mas por que esta função tas pela liberdade. Não importa a cor política de um
em Loucura, Cia.
Elevador
se mostra tão difícil de ser exercida? Depois de me líder: se o projeto não visa o processo de formação
de Teatro fazer esta pergunta um sem número de vezes, arris- do indivíduo o que inclui a instrumentalização e a
Panorâmico. quei constatar que a maioria dos artistas se recusa autonomia do grupo não existe acesso à liberda-
Direção: Marcelo
Lazzaratto. a admitir que vive numa sociedade de controle da de. No contexto de processos de autoria coletiva,
Foto: João Caldas subjetividade e, mais, insiste em acreditar que seu soa estranho, por exemplo, que um dramaturgo
ou um diretor justifique o pouco aproveitamento
do material que surge em sala de ensaio pela baixa
qualidade. A perspectiva do processo visa a cons-
trução de um sentido estético próprio, a partir do
estudo, da prática, da discussão, da reflexão, enfim,
do aprofundamento. A prevalência de uma opção
cênica ou dramatúrgica justificada com “porque
eu gosto”, “porque é bom”, “porque é minha a fun-
ção”, substitui o processo pelo resultado imediato,
que só pode ser obtido pela recorrência ao senso
comum ou ao gosto pessoal. Negar a subjetivida-
de alheia ou ocultar a própria endossa a ausência
do coletivo e a consequente retenção da autoria.
Neste caso, a presença do dramaturgo garante
que o diretor possa delegar a outra função aqui-
lo que não consegue operar no processo e, invo-
luntariamente, desenha o retorno à anterioridade
do texto em relação à cena: os atores recebem no
papel cenas inteiramente desconhecidas. Delegar
ou tomar para si são duas tentações irmãs. Parece
necessário, ao dramaturgo em processo colabora-
tivo, o prazer de impregnar-se das motivações do
outro, tanto quanto compartilhar as suas próprias
motivações. O coletivo se forma pela relação e não
exatamente pela soma das ações. Um entrevistado
diz que o coletivo necessita de indivíduos fortes –
que, concluo, são aqueles que não se perdem, mas
se encontram na diferença do outro. E quando
isso acontece, a autoria individual não se constran-
ge, pelo contrário. Por isso é necessário o tempo
57
do vazio, que não significa inação, mas ação per- so não parte desta questão: na fase inicial, o objeti-
ceptiva, ação receptiva e ação reflexiva. Por mais vo é levantar e revelar aspectos sobre o tema, ideias
antagônico que pareça, a resistência do artista em de conflitos, personagens, formas etc. Quando o
abrir as fronteiras de sua função para o coletivo se foco da história começa a ficar claro, as dinâmicas
origina menos da confiança em si e mais do medo de criação são conduzidas, saem do campo temá-
de se perder no outro. Se a defesa da pluralidade tico e estético para se concentrar nos personagens
não é apenas um discurso, deve-se estar disposto e nas possibilidades de trajetória. A construção
ao diálogo e à mudança. Enrique Dias, da Cia dos da narrativa faz parte do trabalho final e, por isso,
Atores (RJ), afirma que o grupo cria a liberdade, a estrutura final não é linear, conduz a uma leitura
e a liberdade, por sua vez, gera a fricção. E não há cumulativa e associativa.
como empreender um processo colaborativo sem Estes procedimentos identificam a perspec-
estas prerrogativas. tiva cenocêntrica da autoralidade, que envolve
Se considerarmos a criação coletiva e o pro- longos períodos de uma dedicação intensiva e lida
cesso colaborativo não como atributos de tempos com o “espaço vazio” (conceito de Peter Brook)
históricos distintos, mas como concepções dis- como gerador de dúvidas e conflitos, antítese de
tintas para o processo criativo, constatamos que a valores e conceitos como segurança, estabilidade,
pesquisa de campo aponta uma tendência à cria- êxito, produto. Ele desapropria territórios, especia-
ção coletiva, com algum hibridismo que resulta lidades e autonomias. (A noção de cenocentrismo
da ênfase na função da direção. Por outro lado, a surge, ao longo da tese, a partir da observação dos
improvisação parece ter sido generalizadamente processos criativos que, embora muitas vezes to-
substituída pelo workshop, em que um único autor mem uma ou diversas fontes literárias como ponto
concebe a dramaturgia e a concepção de uma cena de partida, elegem como matéria-prima o espaço,
e, com a participação dos colegas, a executa, ainda o corpo e o universo temático, deixando as ques-
que sem ensaio. Isso parece significar que os gru- tões relativas à composição do texto como etapa
pos procuram dar ao processo alguma sistematiza- posterior.)
ção, orientando-o para uma criação consequente. Fala-se com frequência em “crise da drama-
Embora os grupos analisados tenham se revelado turgia”. Até mesmo diretores que se dedicam ao
tão diferentes e específicos em suas prerrogativas, processo colaborativo acreditam que a medida
algumas características se mostraram comuns aos de qualidade do seu teatro estaria nas peças que
processos: produzem e sentem-se insatisfeitos se não podem
A primeira é que não há separação entre tex- apresentar ao público uma grande obra literária.
to e cena: não apenas porque a função do drama- Craig nos chamou atenção para a evidência de que
turgo é assimilada pelos integrantes, mas também aquilo que podemos apreciar no livro não é o texto
e principalmente porque o texto vem da cena ou de um espetáculo; cinquenta anos depois, a expres-
passa pela cena antes de se tornar visível à equipe, o são “escrita cênica” procurou dar conta deste cam-
que permite dizer que não há anterioridade de um po que não cabe no papel. E Brecht acrescentou
elemento em relação ao outro. Quando um ator a isso que o texto de hoje precisa ser modificado
propõe uma composição ou workshop, ele parte de amanhã. Parece que não há como produzir “bons
uma ideia cujo desenvolvimento agrega elementos textos” senão pelo trabalho solitário e espontâneo
da dramaturgia e da encenação. de um dramaturgo, enquanto que a dramaturgia
A segunda consiste em que a criação se dá por colaborativa produzida por um grupo nasce da re-
fragmentos. Quando o trabalho começa, não há lação com o espaço, com sua própria história, com
uma narrativa definida e, em alguns casos, sequer o público, com a sociedade. Possivelmente, quando
uma história, sequer os personagens. Mas o proces- apontamos uma insuficiência em tais espetáculos,
lhares / Processos coletivos
O
58
nos referimos, mesmo sem saber, a um mecanismo entre grupos e companhias parece enraizada nos
instaurado na “cultura de grupo”. valores e no modo de vida dos indivíduos, sendo a
Contrariamente ao que constatamos sobre origem da ausência de uma cultura de grupo. O co-
os encenadores modernos – cujos fundamentos letivo permanece subjetivamente desejado, embo-
técnicos visavam primordialmente a construção ra com uma prática estrangulada por um conjunto
de uma ética coletiva – a pesquisa de campo nos de fatores que vão desde a dificuldade de decidir
trouxe um fenômeno particular, em que o dire- em conjunto e de negociar os próprios objetivos
tor, ao mesmo tempo em que acumula funções até o estreitamento do fazer teatral em direção ao
de produção, já não se apropria dos meios de espetáculo.
produção da subjetividade, não pretende ser um Nos grupos que investem na formação da sub-
formador de sua equipe e sequer desempenha jetividade e da ética coletivas, esta cultura própria
de fato uma liderança artística. Na observação do funciona como uma força centrípeta que aglutina
trabalho em sala de ensaio, combinada às entrevis- os integrantes pela identificação e faz frente à for-
tas, identificamos,contudo, que nem sempre a au- ça centrífuga que emerge toda a vez que a relação
sência do coletivo se explica por uma disposição entre o indivíduo e o coletivo desencadeia um
consciente do diretor em não constituí-lo. Sua fala conflito explícito ou não. Em outras palavras, a
afirma uma convicção, enquanto algumas de suas identidade que o integrante reconhece entre si e o
ações dizem o contrário. Podemos considerar que, projeto do grupo possibilitam que ele trabalhe para
em alguns casos, o diretor almeja idealmente o co- os objetivos comuns, que ele toma para si. Na fal-
letivo, mas não sabe como construí-lo e não perce- ta desta identidade, quando os valores centrífugos
be que certas atitudes apontam uma centralização, invadem a sala de ensaio, o diretor não tem mais o
retêm o poder decisório e delimitam o espaço do que fazer senão reagir ou escapar a eles, mirando o
outro. Neste contexto, não é de estranhar que o espetáculo.
ator se recuse a ocupar funções e desempenhar ta- Identificamos, entre os grupos estudados, três
refas fora do campo da cena. Observamos dicoto- modos distintos da autoralidade, que designamos
mia semelhante no ator: ele se diz um colaborador por pronomes pessoais para traduzir a espaciali-
autoral, mas resiste à participação extracênica; ele zação e a dinâmica do processo: eu (o indivíduo),
critica o modo como o processo é conduzido, mas nós (o conjunto dos indivíduos), ele (o grupo). Os
se acomoda; afirma o prazer da criação em grupo nomes dos grupos e dos integrantes são omitidos
ao mesmo tempo em que analisa seu papel em ter- para que o foco sejam os procedimentos e não os
mos de visibilidade e protagonismo. (À pergunta autores.
sobre sua ausência na produção e na elaboração de O “nós-autores” aparece no artista que cria o
projetos para o grupo, um dos atores que entrevis- grupo, participa de todo percurso que envolve o
tei afirmou que tinha muitos projetos, mas que não espetáculo, discute e decide em diálogo com os
havia espaço no grupo para eles. Pedi um exemplo demais; ele tem a perspectiva de criador da cena,
e ele me apresentou o projeto de um monólogo.) da dramaturgia e do grupo, sendo este um resul-
Na ausência de um campo definido de identi- tado da interação entre as individualidades; tal
dade artística que funcione como critério primeiro concepção parece relacionada com a experimen-
na elaboração e no desenvolvimento de projetos, tação que corresponde aos anseios autorais dos
é natural que a motivação da autoria resida no es- participantes. O grupo, como entidade artística,
paço pessoal. Por outro lado, a ausência deste fator se flexibiliza às motivações de seus componentes,
unificante corresponde à noção de liberdade que transformando-se ao longo do tempo e da expe-
alimenta o imaginário dos artistas. Pode-se reco- riência. Os projetos são pensados para as pessoas
nhecer que a minimização da instância pública que integram o grupo, e não para o grupo como
59
sujeito. O espetáculo nasce de uma busca pessoal. contribuição seja à altura do que eu acho que é esse
A autoria parte de um centro e, pela frequência do trabalho.
diálogo, coletiviza-se desde a concepção. Mas é,
sobretudo, da cumplicidade que a experiência em O “eu-autor” coincide com o artista que in-
conjunto cultivou junto aos integrantes que surge a tegra o grupo em caráter circunstancial e está no
noção de coletivo. Com frequência eles podem ver espetáculo em uma perspectiva de criador da cena
a si mesmos como uma família, unida por laços de e da dramaturgia; sua autoria se restringe ao espa-
história. Como exemplo, um trecho do discurso de ço dos ensaios e ele não se envolve com as demais
um ator entrevistado: questões do espetáculo e do grupo; esta concepção
parece atender a uma perspectiva do teatro como
Eu gosto de estar com eles. Apesar de todas as ques- campo profissional. Existe uma pluralidade autoral
tões, discussões e eventuais brigas e tudo mais. [...] Já que resulta da afirmação de cada indivíduo em sua
houve momentos em que tive vontade de sair mes- função específica. Para o exercício desta função, o
mo, como um casamento, você briga e “não aguento ator parte de si mesmo, de seu contato autônomo
mais vocês”. [...] Eu gosto muito, pelas pessoas, por- com o material ou a proposta que lhe encaminha a
que a gente briga, mas se ama. direção. Se uma cena do espetáculo resultante tem
criadores distintos, isto se dá pela seleção dos frag-
O “ele-autor” ou “grupo-autor” funda um es- mentos apresentados ao longo do processo, de que
paço público em que a função de integrante define se colhem as células de maior empatia, força dra-
o artista e até mesmo o indivíduo, antes mesmo de mática, graça, teatralidade. Os critérios de seleção
sua especialidade e função no espetáculo; esta con- não obedecem a um projeto, concepção ou ideia
cepção funde a motivação artística e o caráter labo- coletivamente discutida. A noção de grupo se con-
ratorial da construção do grupo. Discute-se cada centra no núcleo de produção, na razão social que
passo da encenação com base na identidade artís- constrói um currículo, acumula prêmios, forma
tica e ideológica, solidificada através de uma longa uma imagem. Os atores reunidos para o espetácu-
trajetória, que, em alguns casos, pode ultrapassar a lo não atuam pela mobilização de uma identidade
contribuição dos indivíduos. Os projetos são pen- artística ou pela delimitação de fronteiras e relações
sados para o grupo e não para as pessoas; o proces- de pertencimento e, no espaço da sala de ensaio, as
so de fato atravessa os autores, que não assumem contribuições individuais são selecionadas e soma-
individualmente a função protagonista de sujeito. das em direção ao espetáculo. A autoria individual
O grupo não se constitui como interação de dese- demarca territórios e, se a criação avança além do
jos individuais, e a relação com o outro se vincula a personagem, é em consequência deste ou em bus-
um território: o coletivo emerge de um projeto em ca de seu espaço. Ainda assim, é possível, pela prá-
comum que ultrapassa o tempo e o espaço e se esta- tica colaborativa, obter uma dinâmica coletiva pela
belece como uma utopia a ser diariamente conquis- atuação do diretor, na medida em que sua função
tada. O grupo-autor vê a si mesmo como instância seja a de fomentar e balizar as autorias, encaminhar
pública e coletiva a que cada artista envolvido de- aos atores todas as questões relativas à construção
dica seu trabalho e sua criação. Como exemplo, um da obra e discutir na sala de ensaio os objetivos, os
trecho do discurso de um ator entrevistado: desejos, os gostos, as opções. Emanam justamente
deste ponto os conflitos pela posse: sem identidade
[...] [o grupo] é muito maior do que eu, começou entre si ou com o grupo, as divergências ideológi-
muito antes de mim, e eu sou antes de tudo uma cas convertem em embate pessoal. Como exemplo,
admiradora deste trabalho que hoje eu ajudo a cons- dois trechos de depoimentos colhidos juntos aos
truir. E eu fico muito preocupada com que a minha atores:
lhares / Processos coletivos
O
60

Cia. Elevador de
Teatro Panorâmico
Foto: João Caldas
Tinha reuniões em que a gente participava e a tico identitário emerge a dissipação do espaço co-
gente tinha que decidir, e tinha reuniões de que mum, a que chamar de “o grupo”, e da formação de
a gente não participava e ficava sendo comuni- público. Quando os entrevistados desta categoria
cado. [...] a gente não sabe se é da companhia. falam em “reconhecimento” não se referem à res-
Eu agora estou brigando pelo meu personagem. Mas posta que se origina de uma escolha sobre a quali-
é que... eu achava que na outra peça ele ainda tinha dade da recepção, mas à projeção junto à mídia, aos
uma trajetória [...] Mas... tudo bem, você tem que especialistas da área e a um público ao mesmo tem-
pensar no espetáculo. Eu acho que cada ator tem que po restrito e quantitativo. Em última instância, o
tentar defender o seu personagem até o final. teatro perde a possibilidade de se configurar como
espaço antitético, pela própria impossibilidade de
O ator defende seu personagem quando não o formar e transformar o artista que o elabora.
vê como parte de uma história que se deseja contar, Em 1981, o crítico Yan Michalski, no Jornal do
de uma questão que se deseja discutir, de um pro- Brasil, prenuncia este quadro no artigo “Está fácil
jeto norteador das escolhas. E também o grupo, na demais fazer teatro”, em que constata que o teatro
ausência de um projeto estético, fica à mercê de um amador deixou de ser valorizado e de represen-
gosto ideal e alheio, como sugere o seguinte trecho: tar uma fonte de renovação estética, uma vez que
todo o conjunto de jovens artistas que se organiza
[...] tem também uma questão do teatro que é de já nasce como grupo profissional. E o objetivo da
querer agradar, de querer ser diferente, você sempre profissionalização significa em grande medida o
tem que ter um diferencial. [...] Estou cansado disso engajamento no modo de produção comercial. Se
de sempre você ter que ser cult, sempre você tem que a preocupação primordial de um ator em processo
ser o acontecimento. criativo continua a ser o tamanho do seu persona-
gem, parece que voltamos às vésperas do teatro mo-
Da ausência do coletivo e de um projeto artís- derno e às companhias de vedete. É infinitamente
61
mais rápido o caminho de criar uma encenação do espetáculos que produz. Por outro lado, por mais
que aquele de mudar as mentalidades, nem que se- precária que seja a prática da autoralidade coleti-
jam apenas aquelas envolvidas no processo. va, não se pode negar o investimento dos artistas
Em julho de 2007, fui convidada a assumir a na apropriação dos meios e dos modos de criação.
dramaturgia de um espetáculo em processo cola- O cenocentrismo e o processo decisório coletivo
borativo, com data prevista para maio de 2008, o reforçam, segundo as entrevistas, a certeza de que
que supostamente fornecia o tempo necessário à “todo mundo é dono”. E parece que, no contexto
elaboração de uma autoria coletiva. No entanto, atual, esta apropriação autoral pode ser interpreta-
em função da agenda de apresentações do grupo da como uma tentativa de escapar à alienação e às
e de compromissos profissionais dos integrantes, fórmulas teatrais.
o processo de criação, naquele ano, ficou restrito No dia 12 de maio de 2006, o jornal O Globo
a três encontros semanais durante cinco semanas. publica a crítica “Atores de Laura não atingem ob-
Por necessidade de trabalho remunerado, o perío- jetivo”, em que Bárbara Heliodora, comentando o
do não remunerado de criação foi reduzido. Por espetáculo N.I.S.E, afirma que “após uma série de
outro lado, o fato revela que o grupo se define por espetáculos cuidados e interessantes” os diretores
seus autores e por isso os espera, colocando-os à “desviaram-se de seu caminho de montagem de
frente dos objetivos metodológicos e produtivos. bons textos para cair no engano da criação coletiva,
O teatro de grupo vive sob pressão externa, abri- de pouco saudosa memória”. Impressa no jornal de
ga dicotomias internas e se constitui ele mesmo maior circulação no país, a crítica mostra uma visão
como o paradoxo de um corpo estranho que ne- do teatro como lugar aonde se vai para ouvir bons
cessita se integrar e se adaptar, sempre no limite da textos. Na contramão desta concepção, os grupos
autodestruição. procuram inventar seu próprio teatro e, engajados
Os fatores conjunturais influenciam o artista, em uma vertente artística de questionamento, tra-
o grupo, as instituições de teatro. Na formação do dição inaugurada pelo teatro moderno, continu-
ator, valoriza-se a técnica do desempenho indivi- am afirmando a possibilidade, a necessidade ou
dual em detrimento da construção coletiva, como o desejo de liberdade. Este objetivo não impede,
reflexo sem filtros de uma sociedade midiática que contudo, que habitem em seu fazer dicotomias, e
explora rostos e nomes. A formação de um diretor, é justamente a presença destas dicotomias o sinto-
nas escolas, se baseia na encenação de textos e na ma de sua tentativa de independência, uma vez que
construção do espetáculo. Os conhecimentos de aceitemos que nenhuma autonomia no campo da
um diretor de companhia – sobre organização, inserção social é realmente possível. A criação cole-
planejamento, condução de processo, pesquisa téc- tiva, neste caminho, seria então uma pedagogia da
nica e estética etc – são adquiridos com a prática, máxima autoria possível.
e frequentemente a lacuna de formação nesta área
se reflete no grupo, no teatro que desenvolve e nos

Nota
1 TROTTA, R. A autoria coletiva no processo de criação teatral. Rio de Janeiro, 2008. Programa de Pós-graduação em Teatro – Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (Uni-Rio).

Referências bibliográficas
BROOK, P. O diabo é o aborrecimento: conversas sobre teatro. Trad. Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo –
Carlos Porto. Porto: Asa, 1993. ECA.
FOUCAULT, M. Dits et écrits. v.4, Paris: Gallimard, 1994. TROTTA, R. A autoria coletiva no processo de criação teatral. Rio de Janeiro,
RINALDI, M. O ator do Teatro da Vertigem: o processo de criação de 2008. Programa de Pós-graduação em Teatro – Universidade
Apocalipse 1,11. São Paulo, 2005. Dissertação de Mestrado na Federal do Estado do Rio de Janeiro – Uni-Rio.

Você também pode gostar