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Uma escrita documental:

Cia. Teatro Documentário

em
encontros e perdas nas CASAS e
RUAS da Cidade de São Paulo
Supervisão das traduções:
Amanda Flausino
Fotografias de:
Gabriel Stippe, João Hannuch e
Jonas Golfeto
Concepção de arte dos
projetos registrados: Natália Lemos
Projeto Gráfico da Publicação:
coletânea de textos e Gabriel Stippe
memória organizados por
Aline Ferraz Autores Convidados: Dados Internacionais de catalogação na
Béatrice Picon-Vallin, Flávio Desgran- Publicação (CIP)
ges, Maria Silvia Betti e Stefan Kaegi
Autores da Cia. Teatro Documentário:
Aline Ferraz, Carolina Angrisani, Elaine
Grava, Gustavo Curado, Marcelo Soler e Este projeto tem o apoio da Lei de
Márcio Rossi, Natália Lemos. Fomento ao Teatro para a Cidade de São
Paulo e da
Cooperativa Paulista de Teatro

Colaboração: Alan Paes, Danielle Lopes e


Priscila Clemente.
Concepção Geral da Publicação:
Cia. Teatro Documentário.
Produção: Maria Tereza Urias
Revisão: Mei Hua Soares
Tradução de textos:
Fernanda Pessoa e
Laura Brauer
Agradecemos:
Aos que nos movem a fazer,
aos que lutam para garantir que
tenhamos as condições para fazer como fazemos,
aos que trabalham para concretizar que estas
conquistas se efetivem.
DOCUMENTAR, HISTORICIZAR, POETIZAR o cinema do diretor e documentaris-
ta Eduardo Coutinho tenha chamado a
atenção dos integrantes da Cia. Teatro
Documentário. Fortes laços ligavam o
Uma das principais forças mo- trabalho de Coutinho, em suas origens,
trizes do teatro é, e em alguma medi- à militância artística e política do
da foi sempre, ao longo dos tempos, a Centro Popular de Cultura da União Na-
necessidade de figurar e de discutir a cional dos Estudantes - o CPC da UNE,
sociedade à sua volta e as relações e projeto épico de cultura abortado pelo
processos vigentes nela. golpe militar de 1964. E ainda que
Com as transformações histó- por diferentes caminhos e com dife-
ricas e econômicas determinadas pelo rentes perspectivas de abordagem, os
capitalismo contemporâneo e com as documentários de Coutinho, nas fases
condições de sobrevivência e de con- posteriores ao CPC, não deixaram nunca
vívio em seu interior, essa necessida- de colocar, de alguma forma, ressonân-
de passou a implicar desafios cada vez cias dos enfrentamentos políticos e
maiores: os expedientes estéticos e estéticos travados dentro dele.
formais dominantes dificultavam, quan- Várias décadas separam, his-
do não excluíam por princípio, tudo o toricamente, a geração dos atores da
que se dispusesse a figurar artistica- Cia Teatro Documentário das gerações
mente a materialidade e a imediatez que empreenderam, no CPC, trabalhos
do tecido sócio-histórico do mundo, como os Autos (esquetes teatrais agi-
priorizando e valorizando, em lugar tativos encenados em todo o tipo de
delas, as poéticas ligadas à fragmen- espaços públicos), as séries Violão
tação, à ritualização, e às ações per- de Rua, de opúsculos de poesia, e Ca-
formáticas de cunho abstratizante. dernos do Povo Brasileiro, de educação
Diante desse quadro, que rapi- popular dialética, os diversos filmes
damente se generalizou internacional- do Cinema Novo e a pesquisa musical
mente, não foi casual, por exemplo, a que levou ao samba de partido alto e
formulação do manifesto Dogma 95, no às incelenças nordestinas.
contexto europeu, pelos diretores ci- A distância entre as duas ge-
nematográficos alemães Lars von Trier rações mostra-se ainda maior quando
e Thomas Vinterberg. Também não foi se constata que a superação do abor-
casual, no contexto brasileiro, que tamento imposto pelo golpe nunca se
deu de forma plena, e que as fissuras co, documentar é lidar com essa efe-
e sequelas acarretadas por ele nunca meridade como matéria, e fazer dela
deixaram de se fazer sentir de muitas uma forma de intervenção. O material
formas como cicatrizes históricas no documentado ganha, com isso, substân-
contexto do presente. cia e relevo que o conecta, em sua
O ato de documentar, diante minudência cotidiana, a uma totalida-
dessas circunstâncias, tem um vigo- de histórica latente, a uma tessitura
roso fôlego investigativo e criador. de classes em confronto, de processos
Documentar algo é ter uma perspecti- históricos e culturais mais amplos e
va histórica sobre as coisas e não se de lutas coletivas.
eximir de opinar sobre a realidade, O acervo de elementos poten-
diz o texto intitulado Uma escrita do- cialmente documentáveis sofre conti-
cumental: Cia. Teatro Documentário em nuamente os efeitos da desagregação
encontros e perdas nas casas e ruas e da dispersão impostas no caos do
da cidade de São Paulo, que acompa- espaço urbano. Os registros perdem-se
nha o projeto da Companhia1 . Mais continuamente, e é em meio à flutuação
que “opinar”, trata-se de mergulhar e ao desmanche que elementos “docu-
a contrapelo na apreensão das mani- mentáveis” vão sendo detectados aqui
festações urbanas em processo, e en- e ali, e registrados por meio de apre-
frentar o desafio de apreendê-las e de ensões sonoras, imagéticas, plásticas
figurá-las. e textuais.
O contato com a não ficção, em Como ato artístico, documen-
princípio, pode ser árduo2 , alerta o tar liga-se à necessidade de registrar
texto da Cia. Um artista apresentan- algo à margem de processos e parâ-
do-se na esquina, uma cena presenciada metros instituídos: discutir teatral-
em meio à praça, uma história ou uma mente a vida de pessoas que não aten-
canção compartilhadas por alguém de dem aos padrões pré-definidos de uma
passagem, são manifestações que não se vida bem sucedida3 , captar cenas e
repetirão mais dentro do fluxo inin- falas na contramão do isolamento ca-
terrupto de efemeridade imposto pela racterístico dos moradores dos gran-
megalópole. Do ponto de vista artísti- des centros urbanos4 , empreender uma

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busca que se faz tão necessáriaquanto latos, gestos, falas, etc.7
vital em direção ao desconhecido , uma A linguagem poética opera por
trilha movida pelo desejo de aprendi- meio da condensação de imagens e da
zagem5. síntese associativa. Colocando-se es-
Um papel importante é exerci- tratégicamente entre registros resi-
do, nesse processo, pela subjetividade duais da história coletiva e da memó-
dos artistas mobilizados no registro ria individual anônima, a Cia Teatro
artístico-documental: é essa subje- Documentário atua de forma análoga:
tividade que desnaturaliza imagens e suas etapas processuais sintetizam a
perspectivas, que as desentranha do relação criadora de seus artistas com
interior do senso comum, e que age no a matéria documentada e trabalhada em
sentido de romper com modelos simbó- ensaios e improvisos até tornar-se
licos “já classificados”, [...] de de- cena teatral e espetáculo.
sestabilizar a “trama das redundâncias Como na seara da escritura po-
dominantes”4, e de quebrar padrões de ética, a hierarquização dos proces-
sentido que cristalizam leituras do sos perceptivos, expressivos e cria-
contexto social6 . O elemento docu- dores é propositalmente desmontada no
mentado, com isso, é submetido à luz plano da documentação: detalhes tidos
de um olhar distanciador. Distanciar é como secundários podem ganhar rele-
ver em termos históricos, afirmou Bre- vo, a pesquisa coletiva pode dialo-
cht certa vez. Uma forma expressiva de gar com as pesquisas individuais dos
distanciamento consiste em flagrar a integrantes, os detalhes processuais
irrupção de elementos poéticos extra- podem ser problematizados e colocados
ídos às vivências cotidianas e anôni- em foco, assim como os próprios meios
mas da metrópole. A poesia em estado de produção relacionados.
bruto [...] irrompe da vida cotidia- Diante dessas característi-
na, surgida a partir da relação tra- cas, não podemos deixar de apontar,
vada com os documentados e com tudo o no trabalho da Cia. Teatro Documen-
que está imbricado na vida de cada uma tário, características potencialmente
dessas pessoas: os amigos e parentes, épicas e ligadas a um sentido latente
os objetos pessoais, as memórias, re- de intervenção e crítica dentro da so-
ciedade: a pesquisa do grupo, ao tomar
5 página 91 como matéria primordial aspectos da
6 loc. cit. 7 loc. cit.
vida pública, traz à tona questões de
interesse coletivo, inserindo o pú-
blico teatral (seus desejos, anseios,
frustrações) no processo criativo8 .
Provém daí, precisamente, o maior de-
safio da Cia Teatro Documentário, e,
ao mesmo tempo, a sua maior ousadia no
campo teatral em que se insere.

Maria Sílvia Betti

8 página 93
SUMÁRIO
CERTIDÃO DE NASCIMENTO ........................................................ 17

REGISTRO GERAL .......................................................................... 26

CADASTRO DE PESSOAS FÍSICA ou UM BREVE PLANISFÉRIO


ANTES DA CASA, DA RUA E DA CIDADE ..................................... 39

COMO SE PODE BROTAR POESIA NA CASA DA GENTE? ........... 48


MEANDROS GENÉTCOS DE UM PRETÉRITO IMPERFEITO:
a indelével interferência dos processos de criação
nos modos de recepção artística.
por Flávio Desgranges .............................................................. 86

MAPEAR HISTORIAS OU COMO DISSE GUIMARÃES ROSA: ‘‘O REAL


NÃO ESTÁ NEM NA CHEGADA NEM SAÍDA, ELE SE DISPOÕE PRA
GENTE É NO MEIO DA TRAVESSIA’’ ........................................ 119

ESTE VASTO TERÇO DO NOSSO BELO REINO


por Stefan Kaegi .................. ..................................................... 162

A MORTE NA VIDA DA GRANDE CIDADE ................................ 167

O Teatro E AS FORMAS DOCUMENTAIS


por Béatrice Picon Vallin .................................................... 206

REFERÊNCIAS ............................................................................ 224


Certidão de Nascimento

Se a produção de sentido passa


pela palavra e, por intermédio dela,
é estabelecido um possível vínculo
entre memória e reflexão, então, como
pais ansiosos escolhem o nome de um fi-
lho esperado, nos lançamos à aventura
de nomear a palavra que permeará as
narrativas que compõem as trajetórias
da Cia. Teatro Documentário, por entre
casas, ruas e espaços da Cidade de São
Paulo nos últimos quatro anos.
Estamos cientes de que esse fio
condutor será tão somente a porta de
acesso ao nosso imaginário para que
outras palavras – juntas, articuladas
ou em conflito – construam nosso dis-
curso, nossa memória. Muitas palavras

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ao longo do nosso trajeto se tornaram ontem (e norteiam as do agora), e ten-
temas de debates calorosos. Um exem- do em vista que poder escolher já é
plo foi quando percebemos que o ter- uma condição atrelada a determinadas
mo depoente , recorrente em nos- circunstâncias históricas e sociais,
so primeiro projeto (e utilizado para resta dizer que, embora adotada uma
nos referimos à pessoa que nos cede escrita em terceira pessoa, os aspec-
um relato, geralmente, alvo de nos- tos desse texto estão sendo pensados
sa documentação), detinha um caráter individualmente pelos integrantes da
policial, judicial, distante daquilo companhia.
que propúnhamos (e ainda propomos). Nesses anos de existência, o
Substituímos, então, depoente por trânsito de pessoas não foi uma cons-
documentado e o termo depoi- tante, houve entradas, saídas e perma-
mento também foi modificado, em de- nências... Algumas pessoas estiveram
corrência desse mesmo questionamento, conosco no período de suas formações
para relato . acadêmicas (e aqui vale a pena um re-
Palavras não se apresentam gistro: todos os membros da companhia
no mundo alienadas da materialidade desenvolvem atividades na área da pe-
que as impele a existir. A palavra é dagogia da arte) e após finalizarem
a morada do sentido. Então, que essa suas licenciaturas permaneceram; ou-
narrativa seja conduzida por uma pa- tras investiram em caminhos diferen-
lavra e, não por acaso, a escolhida tes dos nossos, outras ainda nos vi-
foi encontro. Encontro que se inicia sitam de quando em quando; uma, ainda,
agora entre a Cia. Teatro Documentá- depois de muitos encontros profícuos,
rio e você, caro leitor, também por nos deixou não por escolha própria...
outros que antecederam esse momento No momento de escrita desse relato,
e que nos trouxeram até aqui. Antes integram a Cia. Teatro Documentário os
de chegar propriamente aos encontros atores documentaristas Carolina An-
que fundamentaram nossas escolhas do grisani, Gustavo Curado, Márcio Rossi,

18 19
Natalia Lemos; o encenador Marcelo So- documentário brasileiro. Partindo da
ler; a preparadora corporal Luzia Ca- premissa de que, ao pensar as espe-
rion; a preparadora vocal Isabel Set- cificidades de uma proposta estética
ti; a provocadora cênica Aline Ferraz; um espaço se abre para a reflexão dos
o v i d e o m a k e r Jonas Golfeto; os ar- modos de fazer e fruir arte num deter-
tistas convidados Alan Paes e Danielle minado tempo histórico-social, então,
Lopez, a produtora Maria Tereza Urias, justifica-se a ideia de documentar nos-
além de uma série de outros parceiros sa trajetória por meio da publicação
artísticos que se unem a nós no decor- de um livro sobre os trabalhos reali-
rer de projetos específicos. Nós todos zados pela Cia. Teatro Documentário,
desejamos honestamente que você, que que, por sua vez, foram contemplados
agora passeia por essas palavras pre- pela Lei de Fomento ao Teatro.
viamente escolhidas, opte por perma- Na perspectiva de organizar a
necer conosco enquanto, de forma resu- experiência, democratizar descobertas
mida, arriscamo-nos a destacar alguns e aprofundar discussões que talvez nos
aspectos do espaço e do tempo que in- ajudem a compreender o atual interes-
fluenciaram a criação da Cia. Teatro se pela cena documental, justamente
Documentário. Da mesma forma, espera- num momento em que a própria reali-
mos que o resgate e o compartilhamento dade se apresenta de forma bastante
da nossa trajetória, bem como das pro- ficcionalizada, acreditamos que essa
posições estéticas adotadas até aqui, publicação, além de consistir em uma
possa de alguma maneira alimentar re- prestação de contas sobre nossas rea-
flexões, sejam elas sobre as metodo- lizações, colabora com os debates em
logias ou sobre as intervenções cê- torno dos modos percepção e produção
nicas apresentadas. Que essas mesmas da vida contemporânea.
reflexões e registros possam diminuir a Desejamos a você, leitor, um
lacuna existente na bibliografia sobre encontro com nossas palavras
registros de procedimentos em Teatro nessa experiência documental
pela escrita!
20 21
22 23
http://Teatro-documentario.blogspot.com.br
CASA DO Teatro DOCUMENTÁRIO
Rua Maria José, 148
Bela Vista
do cinema” e, dentro desse período,
também se localiza a fase de ouro do
cinema documentário, conforme apon-
ta o crítico Ismail Xavier (XAVIER,
2003: 163). Por outro lado, concomi-
tantemente a esse momento de maiores
incentivos, a produção cinematográfica
nacional de uma série de filmes es-
trangeiros vinculados ao Dogma 951 se
Registro Geral tornariam pauta dos encontros infor-
mais entre parte dos integrantes que
viriam a compor os primeiros traba-
Voltemos, então, aos fatos, ou lhos da Cia. Teatro Documentário. Nes-
melhor, ao que deles depreendemos. No ses debates, questões relativas tanto
início dos anos dois mil, dos atuais à abordagem técnica, distante do mo-
integrantes da Cia. Teatro Documentá- delo industrial hollywoodiano quanto
rio, poucos faziam Teatro, no entanto, a suas temáticas, tinham destaque e,
todos frequentavam cinema. Aliás, de de alguma forma, nos impulsionavam a
forma curiosa, foi esse veículo que uma percepção enfocada nos roteiros e
levou o próprio fundador da companhia
a iniciar suas pesquisas em Teatro, 1 O movimento Dogma 95 foi lançado pelos cineastas
dinamarqueses Lars von Trier e Thomas Vintenberg e recebeu
mas isso não nos importa destacar, uma mais tarde a adesão de Kristen Levring e Sören Krag-Jacobsen.
vez que faz parte das nossas escolhas Considerado como um dos acontecimentos cinematográficos
um modo de produção baseado em rela- mais importantes da década de 1990 o movimento concentrou-
ções de trabalho horizontais e demo- se em discutir e criticar o padrão de produção cinematográfico
cráticas, o que justifica nossa eleição de origem burguesa propondo a partir de um manifesto, uma
por uma narrativa prioritariamente série de restrições quanto ao uso de técnicas e tecnologias nos
plural, sem destaques da trajetória de filmes, tais como : a criação de um cinema coletivo (negação
um ou de outro integrante, mesmo que da autoria) e afirmação de uma estética voltada à verdade e ao
o grupo tenha se originado a partir real (negação os artifícios e a ilusão).
dessa pessoa.
Por isso, historicamente, vale *FILHO, H. Maurício. O dogma 95. In: BAPTISTA, Mauro;
MASCARELLO, Fernando. (Org). Cinema mundial contemporâ-
lembrar que, em meados dos anos 1990, neo. Campinas: Papirus, 2008, pp.121-136.
acontece no Brasil a chamada “retomada

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nos modos de existir que permeavam os natureza do comprometimento com a re-
imaginários da ficção, da realidade e alidade. O que se pretende não é cons-
da ficcionalização do real propostos a truir uma ficção sobre fatos que ocor-
partir daquelas experiências cinema- reram, mas discuti-los, fazendo uso de
tográficas. documentos de toda ordem, explorando
Os filmes do movimento Dogma, uma significação outra, diferente da
ainda que impactantes, não nos con- obtida quando se trabalha com produtos
duziam à mesma fruição que os docu- assumidamente ficcionais. Um documento
mentários de Eduardo Coutinho e, essa nada mais é do que uma espécie de dado
constatação, em nada estava carregada não ficcional que pode servir à encena-
de juízo de valor. Nesse momento está- ção, seja ela de caráter documentário
vamos encontrando, então, um impulso ou não. Chamamos de dado não ficcional
para nossa pesquisa: o que é documen- qualquer tipo de fonte que se configure
tar e, mais especificamente, o que seria num testemunho registrado diretamen-
documentar em Teatro? Se os discursos te da realidade, ou seja, tudo que é
artísticos, em alguma instância, se dito, escrito ou visto e que não foi
valem de documentos como fontes pri- construído pela imaginação de alguém
márias no seu processo de elaboração, no intuito de criar uma ficção.
nem todos eles têm a intencionalidade, A representação não se dá no
tanto em seus procedimentos quanto em dado em si, mas no registro dele. Essa
seus objetivos, de documentar. Existe definição guarda inúmeros questionamen-
uma especificidade no fazer artístico tos que devem ser lembrados para não
e, consequentemente, na própria pro- se correr o risco de sermos entendidos
dução advinda dele, que extrapola a de maneira simplista. Dentro do que
mera oposição à ficção, para evidenciar designamos “realidade”, nos deparamos
a análise dos fatos vividos, experien- com acontecimentos que foram planeja-
ciados, observados. O uso delibera- dos, logo, imaginados para determinado
do de documentos surge como caracte- fim. Numa situação de entrevista para a
rística importante, mas não única, já câmera, aquele que relata, muitas ve-
que a utilização deles em um processo zes, modifica deliberadamente seu dis-
não está condicionada necessariamente curso e comportamento de tal maneira
à elaboração de um discurso artísti- que chegamos a dizer que ele construiu
co interessado diretamente em docu- um personagem. No caso, não se obje-
mentar. A questão que se coloca é a da tivou a construção de uma ficção. Hou-

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ve, apenas, uma preparação prévia de
acordo com interesses específicos. Já o
dado ficcional, em oposição, surge como
representação de algo imaginado, mes-
mo que a partir de fatos reais, para a
construção de uma ficção. Portanto, é a
representação (captação) da represen-
tação (dado em si).
Para nós, além da intenciona-
lidade de documentar, um dos princi-
pais pontos para entendermos o que é
Teatro documentário está na relação
que os envolvidos (diretor, atores,
técnicos e espectadores) têm com os
dados de não ficção, mesmo quando nos
valemos também de dados ficcionais na
construção discursiva. O comprometi-
mento com a análise da realidade e
a valorização dos dados de não fic-
ção afasta a subserviência à fábula
e evidencia uma preocupação com uma
ordenação discursiva segundo valores
contrastantes ou explicativos que se
queiram atingir.
Ao pesquisar, selecionar e ar-
ticular prioritariamente dados de não
ficção para construir em cena o que se
deseja comunicar, evidencia-se um pon-
to de vista sobre o que se viu, ouviu,
sentiu. A proposta documentária impe-
le-nos a isto, pois, como Peter Weiss
declara “a realidade, por mais
impenetrável que se procure
apresentá-la, oferece saídas a
31
quem se esforça em explicá-
-la; e ela pode ser explicada
em cada pormenor”( WEISS, 1968,
p. 56).
Documentar algo é ter uma
perspectiva histórica sobre as coi-
sas e não se eximir de opinar sobre a
realidade.
O ato adquire uma conotação
investigativa, já que solicita do ator
documentarista um olhar, compreendi-
do aqui sinestesicamente, ou seja,
um olhar com olhos, ouvidos, pele,
narinas, para a realidade, tentan-
do nela perceber dados que em si são
metáforas para entendê-la de manei-
ra mais ampla. No contexto, o termo
olhar se associa ao posicionamento
do sujeito sobre algo, a visão que
extrapola os domínios do próprio
olho. As coisas não são, é jus-
por m tamente nosso olhar que faz delas
-la, ofe ais impenetráv A real algo cheio de significado. Logo, o
cá-la; e rece saídas a el que se pr idade, dado não ficcional só será percebido
el a pode q u e o c u r
menor” ser exp m se esforça ee apresentá-
como tal quando a plateia, previamente
licada e m ou durante a própria encenação, signi-
m cada expli- ficá-lo desse modo. Não basta o ato de
por-
PETER W documentar se o espectador, protago-
EISS nista da experiência artística, não
percebe o que frui como documentário.
Um espectador que, informado, chega
para assistir a uma encenação docu-
mentária, significa a obra de manei-
ra totalmente diferente daquela que
32 33
faria frente a uma obra de ficção. militar, existe um cuidado no uso das
Mesmo com a pretensão ilusio- palavras, na própria construção tex-
nista do realismo e do naturalismo, tual, já que o almejado é a elaboração
após assistirmos a uma encenação nes- de um discurso de natureza artísti-
ses moldes, sabemos que estamos diante ca. Inclusive, por isso, não podemos
de algo ficcional. Ainda que completa- confundir o que é nomeado de obra a
mente envolvidos e identificados com o partir de fatos reais com aquelas que
que presenciamos, nossa relação é di- apresentam documentos em sua própria
ferente na fruição de um discurso não constituição.
ficcional. Se ouvirmos a narração de É o olhar do espectador, por-
uma tortura por parte de um ator saben- tanto, que transforma o que está sen-
do que o texto é um produto ficcional, do apresentado em documentário. Como
por exemplo, teremos uma relação com o Fernão Pessoa Ramos explica no livro
que assistimos totalmente diversa da- O que é mesmo documentário:
quela que experimentamos quando nos é “Podemos dizer que a definição de docu-
informado que o texto trabalhado pelo mentário se sustenta sobre duas per-
ator foi transcrito de depoimentos de nas, estilo e intenção, que estão em
ex-presos políticos torturados no pe- estreita interação ao serem lançadas
ríodo militar. Sem qualquer juízo de para a fruição espectorial, que as
valor sobre o impacto de cada cena, a percebe como próprias de um tipo nar-
obra que faz uso de um documento chega rativo que possui determinações par-
aos espectadores com um dado a mais: ticulares…”(PESSOA RAMOS, 2008, p.27)
as palavras proferidas pelo ator, in- Por consequência, ao pensar
dependentemente da interpretação dada, documentário nessa perspectiva, o en-
não saíram do imaginário de um drama- tendimento do papel de espectador no
turgo, mas de um relato de alguém que acontecimento artístico se distancia
viveu a situação enfocada, que não ob- do de receptor contemplativo e passa a
jetivava necessariamente, com o texto ser o de coautor que dialoga e atribui
proferido, construir uma obra a ser significado ao que assiste. Considera-
compartilhada com uma plateia. -se, pois, a atividade dos espectado-
Mesmo quando o dramaturgo pas- res como algo ativo, um criar-ativo.
sou por uma situação análoga ou partiu O contato com a não ficção, em
de estudos históricos, como no nosso princípio, pode ser árduo. Na tenta-
exemplo sobre a tortura na ditadura tiva de dialogar com a proposta cêni-

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ca, o espectador recorre ao seu patri- uma decodificação.
mônio pessoal a fim de construir uma Cabe aqui uma abertura de pa-
interpretação também pessoal. Porém, rênteses, pois é preciso salientar que
seu repertório está impregnado de re- no Teatro, como no cinema, o ato de
ferências dos produtos ficcionais. A documentar se mantém em plena cons-
abordagem ficcional, presente inclusi- trução. Sendo assim, se há anos atrás
ve nos produtos de não ficção traba- a documentação poderia ter tido algum
lhados pelos meios de comunicação de vínculo com a ideia de se compartilhar
massa, criou um formato hegemônico. A uma verdade absoluta sobre um tema re-
necessidade da parábola e de elementos levante, hoje cabe a cada área e a cada
característicos da narrativa ficcio- coletivo que a realiza, reinventar os
nal, muitas vezes, leva à resistência próprios conceitos de documentação e
daquele que pressupõe assistir a algo questionar a relevância de padrões que
que reproduzirá um modelo recorren- impõem percepções únicas sobre o fato
te, interferindo, assim, na fruição exposto.
da obra. Por último, acreditamos que o
É importante salientar que não que impulsionou a fundação e o que
estamos exaltando a não ficção em de- ainda move as produções realizadas
trimento da ficção, mas reafirmando sua pela companhia são as pessoas. Alguns
diferenciação e importância no amplo desses encontros estiveram ligados à
leque de possibilidades de fazer e formação dos integrantes da companhia
pensar Teatro. Numa proposta de Tea- que se tornaram fundamentais para a
tro documentário, questões específicas visão de mundo que norteia a estética
são apresentadas para o espectador. O que adotamos. Foram em alguns desses
acervo da memória social, por exemplo, encontros que nos aproximamos dos par-
trazido à baila pelos documentos de ceiros que agora se juntam a nós na
ordem sonora, imagética, plástica ou escrita desse livro. Imaginamos que
escrita, é matéria do gesto artístico. sua leitura será de grande valia aos
Inquietações surgem: o que esse dado interessados nas questões que permeiam
tem a nos dizer? Como ele se articu- não só a cena documental, mas o Teatro
la com os outros signos que compõem o contemporâneo em geral.
discurso? As referências sobre o fato,
pessoa/grupo social e/ou época docu-
mentados são solicitadas em busca de

36 37
Cadastro de Pessoas Físicas
ou um breve planisfério, antes da
casa, da rua e da Cidade

No encontro inaugural, uma sé-


rie de premissas recorrentes aos mo-
dos de produzir do que viria a ser a
Cia. Teatro Documentário, já se mani-
festaram. Entre eles, podemos citar
o vínculo com a pesquisa e o desejo
de associar ao campo da experiência
a não distinção de relevância entre
as investigações de caráter artístico
e as de cunho pedagógico. Justamente
nessa intersecção das descobertas da
aprendizagem e da cena é que ocor-
re o primeiro trabalho da (ainda, na
época, não nomeada) Cia. Teatro Docu-
mentário, no ano de 2002, dentro da
universidade, a partir do convite de
Elise Vieira (na ocasião, formanda em
curso de graduação de Interpretação
Dramática pela ECA/USP e, atualmente,
mestre pela UFMG) ao diretor Marcelo

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Soler para dirigi-la na finalização do me já mencionado, serão apresentadas
módulo da disciplina de Interpretação posteriormente) como prolongamento do
Teatral. Soler aproveitou a oportuni- exercício dialógico se torna impor-
dade para por em prática e aprofundar tante aliado na diminuição da angústia
sua pesquisa em Teatro documental, sob que a opção por esse modo de produzir
a orientação da professora Maria Lúcia gera.
de Souza Barros Pupo e, junto com os O entusiasmo causado pelo for-
atores André Grecco, Guilherme Ama- mato dessa primeira produção e a de-
ral, que depois foi substituído por monstração de interesse pelo trata-
Henrique Godói, se propôs a discutir mento do tema abordado pelo público
teatralmente a vida de pessoas que não fez com que parte dos integrantes vin-
atendem aos padrões pré-definidos de culados à primeira experiência perma-
uma vida bem sucedida. necesse estudando as particularidades
Desse processo surgiu a en- de um processo em Teatro documentário,
cenação 292. Em 292, histórias pou- tanto em termos práticos como teóri-
co contadas, como a de dona Terezinha cos, numa tentativa de construir um
que se intitula uma pessoa que “não trabalho profícuo em torno dessa pro-
deu certo na vida”, ou a do persona- posta estética, geralmente, em pro-
gem-título que, não por acaso, se re- cessos de direção vinculados às esco-
vela “coisificado” – ele, como muitos las profissionalizantes de formação de
cidadãos, são números, e o código que atores e faculdades de Artes Cênicas.
o identifica é a numeração de cadas- Foi então que, em 2006, o pri-
tro do seu corpo no Instituto Médico meiro trabalho “oficialmente” apresen-
Legal. Nesse trabalho, os riscos e a tado com o nome da companhia surge.
incerteza do sucesso, bem como nas de- Tratava-se de estudo cênico intitulado
mais experiências da companhia, esti- Desde quando eu ainda era Tra-
veram sempre latentes. O encontro com vesti ou Lamentos do Palácio
os parceiros (cujas ideias, confor- das Princesas, realizado na série

40 41
Experimentos do TUSP (2007). Antes de mônios masculinos para novamente se
fazer as considerações necessárias ao “vestir de homem”. Tomamos o depoimen-
entendimento do que foi esse experi- to de Laureano para discutirmos ceni-
mento, pedimos licença, pois é preciso camente uma afirmação feita por ele: “É
esclarecer que ainda que nossa opção difícil ser mulher no Brasil”.
tenha sido a de nos nomearmos como O olhar do travesti (homem)
Companhia Teatro Documentário, há uma sobre a questão de gênero em nosso
diversidade de formas se de fazer e país foi o que nos impulsionou a cons-
pensar Teatro documentário. Sabemos truir o discurso cênico. Para a re-
da existência de outras abordagens do- alização desse trabalho específico,
cumentais e, ao nos intitularmos, não contamos com um tempo escasso. Em de-
tínhamos a pretensão de dizer que o corrência desse problema, optamos por
que fazemos é uma verdade em detri- construir uma grande intervenção cêni-
mento do que outros pesquisadores re- ca, na qual a “limpeza de cena” cedeu
alizam; pelo contrário, como pesqui- espaço à presença quase performática
sadores, fomentamos e reconhecemos os dos atores, explorando cenicamente os
debates e a diversidade como aspecto dados de não ficção (imagens projeta-
indispensável para o desenvolvimento das, objetos cedidos pela pessoa alvo
das linguagens e das pessoas envol- de nossa documentação) no intuito de
vidas. Posto o adendo, retornemos ao articular um discurso teatral conciso
Desde Quando Eu Ainda Era Tra- e plasticamente impactante. Depois do
vesti ou Lamentos do Palácio TUSP, a intervenção cênica resultante
das Princesas, experimento no qual foi apresentada em escolas profissio-
nos interessamos pela trajetória de nalizantes de Teatro, sempre dialo-
Luiz Laureano, que se travestiu aos 14 gando com espaços não convencionais.
anos, passou um período na Europa se Em seguida, voltamos à sala de
prostituindo e, ao voltar ao Brasil, ensaio e começamos a refletir sobre o
decidiu tirar os seios e tomar hor- que seria a documentação (em Teatro)

42 43
de um momento histórico. Por isso, em por meio dela que, inclusive, se fez
2008, nos inscrevemos na seleção de possível a manutenção do espetáculo em
projetos teatrais feita pela repre- temporada. Pela primeira vez, perma-
sentação do Ministério da Cultura em necíamos mais tempo em cartaz com um
São Paulo, em comemoração aos 40 anos espetáculo para o grande público, o
da geração 1968, e concebemos a ence- que possibilitou um maior contato do
nação Consumindo 68 que compôs, público com nossa produção, incluin-
junto com outros dois espetáculos, a do os críticos. Foi com esse trabalho
Mostra 68 – Utópicos e Rebeldes, re- que fomos considerados pela Revista da
alizada pelo Ministério da Cultura e Folha (domingo, 31 de agosto de 2008)
Secretaria Especial dos Direitos Hu- um dos “quatro jovens grupos dignos de
manos, com o patrocínio do SESC/SP. aplausos”.
Depois da estreia no Teatro Anchieta
do SESC/Consolação (julho de 2008), o
grupo foi convidado para uma tempora-
da no Espaço dos Parlapatões (agosto
e setembro de 2008), além de parti-
cipar das Satyrianas/2008. Em linhas
gerais, com Consumindo 68 pro-
blematizamos cenicamente como os jo-
vens atuais se apropriam dos ícones da
geração de 1968 como objetos de consu-
mo. Em apenas quatro meses, consegui-
mos construir a encenação e, depois da
apresentação, mantê-la em temporada.
Essa experiência foi de grande valia
para que a companhia adquirisse prá-
tica na gestão de verba pública. Foi

44 45
46 47
COMO SE PODE BROTAR POESIA
NA CASA DA GENTE?

Capa feita para o projeto enviado


na 16ª Edição do Fomento ao Teatro,
costurada por Vera Lúcia, mãe do ator
Márcio Rossi.
48 49
“São Paulo é hoje uma O diálogo com os espectadores,
Cidade de muros. Os mo- a percepção do interesse por parte do
radores da Cidade não público e da crítica por essa moda-
se arriscariama ter uma lidade de teatro, fez com que pes-
casa sem grades ou bar- soas interessadas pela linguagem se
ras nas janelas.Bar- aproximassem do grupo, e assim, novos
reiras físicas cercam integrantes foram incorporados ao co-
espaços públicos e pri- letivo, redimensionando ainda mais a
pesquisa. Queríamos voltar a documen-
vados: casas, prédios, tar pessoas, mas sem perder a ampli-
parques, praças, comple- tude social do discurso. Em seminários
xos empresariais, áreas desenvolvidos pelo grupo, nos depara-
de comércio e escolas. À mos com a obra do sociólogo Zygmunt
medida que as elites se Bauman que nomeia nossa era como a
retiram para seus en- da modernidade líquida. Conforme re-
clavese abandonam os gistra o autor na apresentação do li-
espaços públicos para vro Amor Líquido o mundo contemporâneo
os sem-tetoe os pobres, está “repleto de sinais confusos, pro-
o número de espaços penso a mudar com rapidez e de forma
para encontros públicos imprevisível”( Zygmunt B. RJ.: Jorge
de pessoas de diferen- Zahar Ed., 2004), tal qual um líquido.
tes grupos sociais di- Entre as obras de Bauman, escolhemos o
Amor Líquido, pois nos instigava tra-
minui consideravelmen- tar de um assunto “tão privado” sob
te.” uma perspectiva histórica.
Teresa Pires do Rio Chegamos à conclusão que as
Caldeira. relações afetivas estão cada vez mais
Cidade de muros. flexíveis, equivalendo a um “bem não
Crime, segregação e durável”. A opção por relacionamen-
cidadania tos virtuais (internet, por exemplo)
em São Paulo. revela a preferência por relações te-
cidas ou desmanchadas com extrema fa-
cilidade. Fomos pesquisar blogs que
falavam sobre o amor e/ou a paixão

50 51
e entrevistar pessoalmente seus cria- Ao voltarmos para os ensaios,
dores. Algo, então, nos encantou: ao decidimos preparar cenas com o mate-
chegarmos para a entrevista, realiza- rial recolhido, só que agora com o in-
das nas casas dos autores dos blogs, tuito de apresentá-las em espaços mais
além da pessoa a ser documentada, par- intimistas para recuperar a sensação
te da família nos esperava. De algum de estar dentro da casa daqueles que
modo, o blogueiro saía da relação pri- nos receberam.
vada de seu computador e se aventurava Durante o segundo semestre de
numa situação na qual o contato humano 2009, realizamos, a partir do material
era inclusive a tônica da conversa. Um recolhido nesse processo, uma série de
muro se quebrava. “contação de histórias documentais”,
inclusive para arrecadar dinheiro para
, a sobrevivência do grupo. Nas apresen-
m en t o s e n ã o o encontro tações, realizadas principalmente em
docu
“ (...) Eu não o c u m e n t o u ma relação.” livrarias, exercitamos e estudamos as
d rdo Coutinh
o possibilidades cênicas do ato de nar-
Edua rar. Durante esse período, fomos con-
vidados também a apresentar nossos es-
tudos e cenas no Espaço Pyndorama, da
Companhia Antropofágica. A discussão
que se seguiu nos estimulou a trilhar
um caminho fértil de pesquisa e trou-
xe uma série de indagações. Como se-
ria intervir cenicamente nas casas das
pessoas que foram alvo de nossa docu-
mentação? Como essa ação artística,
que em si é também uma ação sociocul-
tural, repercutiria na plateia? Como
utilizar significativamente o espaço
da casa para apresentação? Como deve
ser a preparação desse ator documen-
tarista para um contato tão intimista
sem que com isso se perca o intuito de
documentar?

52 53
Em 2010, Marcelo Soler, a par- é apoiar a criação e a manutenção de
tir da dissertação de mestrado apre- projetos de pesquisa e produção tea-
sentada no Departamento de Artes Cê- tral de caráter continuado que não se-
nicas da Universidade de São Paulo, guem a lógica do mercado e, portanto,
publicou pela Editora HUCITEC o livro não teriam espaço para existir.
Teatro Documentário: a peda- Sendo assim, que empresa es-
gogia da não ficção, reaquecendo taria interessada em patrocinar uma
entre nós mesmos e nossos pares os de- pesquisa que propõe apresentações de
bates sobre as especificidades da lin- intervenções em espaços urbanos nos
guagem documental. quais a morte repousa, inclusive em um
No meio de inquietações de or- cemitério?
dem teórica e prática, observamos que Nosso comprometimento não
esses possíveis encontros (entrevista estava na simples criação de um pro-
na casa da pessoa documentada e apre- duto final que atendesse a um possí-
sentação posterior de uma intervenção vel mercado. Entendemos essa pesquisa
cênica baseada nos dados coletados) como a continuidade de um projeto con-
eram ações que poderiam ir na contra- cebido pela Cia. Teatro Documentário
mão do isolamento característico dos para criar e propor ações artísticas
moradores dos grandes centros urba- de caráter documental sobre e para a
nos. De algum modo, percebíamos também cidade de São Paulo, na tentativa de
que a cidade como casa, não propiciava pensar artisticamente a metrópole nas
esses momentos. O que nos restou foi suas contradições.
a indagação: Como se pode brotar Ainda que ideologicamente te-
poesia na casa da gente? Surgiu nhamos tido uma formação que nos im-
assim o projeto homônimo que, em abril pulsionasse a acreditar em processos
de 2010, foi contemplado pela 16ª edi- artísticos autorais e em moldes dis-
ção da Lei de Fomento ao Teatro. Um tintos das produções massificadas, a
projeto ambicioso, com ações que, den- existência de uma lei que valoriza o
tro de uma perspectiva mercadológica, histórico de um grupo, reconhece e fo-
não teriam condições de se efetivar. menta a realização de trabalhos que
Por isso, faz-se necessário falar da assumem o risco da pesquisa, ratificou
importância para nós da Lei Municipal o investimento em nossas convicções no
de Fomento ao Teatro (Lei n. 13.279 - início de nossa jornada. A opção pelo
8 de Janeiro de 2002), cujo objetivo fomento só surgiu com o fortalecimento

54 55
56 57
da companhia enquanto grupo de pesqui- da narrativa, para depois correr con-
sa depois de mais de quatro anos ofi- tra o relógio... Começamos, pois, um
ciais de trabalho em torno da proposta percurso que, de forma não intencio-
estética que a batizou. nal, compôs uma trilogia que agora
O Fomento tornou possível a apresentamos.
aquisição e o deslocamento de recursos E o projeto que deu início a
humanos e tecnológicos necessários ao essa tríade foi o : 23º 32’ S 46º
diálogo com públicos diversos, muitas 38’ W. A combinação corresponde ao
vezes distantes dos centros por onde código cartográfico da cidade de São
circulam as grandes plateias tradi- Paulo. Cidade na qual a Cia. Teatro
cionais, além de permitir condições Documentário desenvolve seu trabalho.
favoráveis para a reunião de pessoas Já residimos provisoriamente em espa-
que se tornaram, ao longo do tempo, ços diversos dessa Cidade-Mundo. O ca-
ráter nômade da companhia, advindo da
parceiros nessa investigação. própria prática da documentação, fez
com que percebêssemos que os 1.522,986
A Cidade como casa km² da cidade de São Paulo – divididos
em Zona Norte, Zona Sul, Zona Leste
e Zona Oeste (além da Zona Central)
A partir de abril de 2010, fo- – têm características muito próprias.
ram quatorze meses desenvolvendo o Ainda assim, constatamos que pouco a
projeto Como se pode brotar poesia conhecemos e, antes dessa experiên-
na casa da gente?, período de intensa cia, menos ainda. Talvez seja por isso
aprendizagem e descobertas em ações que tenhamos direcionado esse traba-
que merecem ser e serão citadas com lho sobre e para São Paulo. Nossa pro-
maior detalhamento. posta intitulada Como se pode brotar
Como pessoas de um tempo que poesia na casa da gente?”, contemplada
não nos pertence, saímos em visita. pela décima sexta edição da Lei de Fo-
Encontramos nossos pares do outro lado mento ao Teatro para a Cidade de São
da cidade, reconhecemos o contexto das Paulo, configurou-se no encontro sim-
velhas histórias de grupos parceiros bólico com a cidade, em última análi-
e por eles fomos apresentados às co- se, casa/residência da companhia. Por
munidades do entorno de suas sedes. isso, as ações do projeto foram base-
Convidamo-nos a um funcionar no tempo adas em inúmeros encontros de diversas

58 59
naturezas, todos eles alvo de nossa ticipantes, que, ao mesmo tempo,
documentação e posterior alimento da desempenharam também o papel de
encenação que integrou o projeto. “escutadores” das narrativas de
Para conseguirmos tal emprei- seus vizinhos, num rico exercí-
tada, tivemos a parceria de três di- cio baseado na escuta e na va-
ferentes grupos teatrais e um grupo lorização da memória. Ao fim dos
amador, sediados em cada uma das zo- trabalhos, oferecíamos um café
nas da cidade. Eles foram nossos anfi- aos presentes, funcionando como
triões/parceiros, nos apresentando em um ritual que celebrava o encon-
suas contradições a região geográfica tro ali estabelecido.
(zona) na qual a sede do grupo está Além de estimular nos partici-
localizada, além de nos acolherem por pantes a redescoberta da importância
6 (seis) semanas. do ato de narrar e assim compartilhar
Assim, vivenciamos o cotidia- experiências em situações coletivas,
no de cada região e atingimos o alvo a oficina proposta foi o lugar propício
de nosso projeto numa primeira etapa. para encontrarmos alguém que abrisse
Em cada uma das zonas geográficas de sua residência para nosso maior inten-
São Paulo, nas sedes dos grupos te- to: documentar cenicamente a rotina
atrais parceiros (Dolores Boca Aber- dos indivíduos que ali moram e a rela-
ta Mecatrônica de Artes – Zona Leste; ção deles com a cidade.
Uzinominados – Zona Norte; Companhia Assim que um dos participantes
Antropofágica – Zona Oeste; Brava se predispunha a abrir sua casa, mar-
Companhia – Zona Sul), ministramos o cávamos um dia para um encontro todo
que divulgamos como “vivência teatral registrado audiovisualmente. Essa di-
para comunidade”. Em caminhadas nas nâmica nos permitiu conhecer “geo-
imediações da sede desses grupos, em graficamente” os bairros da região e,
explorações cotidianas, nos fortuitos principalmente, um pouco de seus mora-
esbarrões na padaria e/ou bares, apro- dores. Ao mesmo tempo, além de estimu-
veitávamos para divulgar a vivência, lar nos participantes a redescoberta
na verdade uma espécie de oficina na da importância do ato de narrar e com-
qual, por meio de jogos teatrais, en- partilhar experiências em situações
focamos o ato de contar histórias. coletivas, um workshop sobre as re-
Nesses jogos, histórias lações da memória com o ato de narrar
foram trazidas à baila pelos par- foi oferecido, evento esse que também

60 61
poderia suscitar outros participantes mental realizadas nas regiões leste,
predispostos a acolher nosso processo norte, sul e oeste da Cidade, dentro
em suas residências. Visitar casas, de residências de pessoas previamen-
encontrar pessoas, descobrir discur- te entrevistadas, chamadas pela com-
sos. Fazer deles nosso material cêni- panhia de “documentados”, dispostas a
co. Quando encontrávamos um partici- abrir suas casas para apresentações
pante do workshop disposto a abrir teatrais. Na Zona Leste, ao dobrarmos
sua casa para a investigação do grupo, a esquina da rua Xique Xique, um senhor
a Companhia Teatro Documentário entre- de 70 anos chamado Ivanil nos chamou e
vistava não apenas ele, mas todos que disse: “Ei vocês, venham filmar a minha
moravam na residência em questão. Como árvore, o meu Pau Brasil!”. Ele parti-
mencionamos, o eixo das entrevistas cipou de nossa vivência e conhecemos a
foi a dinâmica da residência e como os história do córrego da rua, construído
moradores dialogam com a cidade para em conjunto com os vizinhos. Ivanil
além dos muros. Em seguida, tínhamos compareceu à nossa vivência e nasceu
em média quinze dias para construir- desse encontro a primeira intervenção
mos, a partir dos depoimentos recolhi- na pequena casa de número 575.
dos, uma intervenção cênica de cará- Na Zona Norte de São Paulo, en-
ter documental apresentada na própria contramos um senhor chamado Guilherme
casa e/ou apartamento, onde o espa- que sofreu dois AVCs (acidente vas-
ço da residência, os objetos e móveis cular cerebral) e tem medo de se es-
eram ressignificados, numa perspectiva quecer da história da rua, da loja de
de explorarmos cenicamente o que havia relógios do Seu Joaquim, das crianças
sido documentado por nós. brincando. Na vivência ele nos disse:
Ao examinamos algumas de nos- “Quero que vocês venham ao meu aparta-
sas práticas como ações culturais em mento para registrar a memória de uma
teatro – que propositalmente pretendem Zona Norte que não existe mais”. Tí-
intervir no tecido social e, ao mesmo nhamos nossa segunda residência! Numa
tempo, alimentar nossa criação artís- cidade que está perdendo a memória,
tica –, no projeto em questão (Como a intervenção no apartamento de Gui-
se pode brotar poesia na lherme e Sônia questionou um sistema
casa da gente?), talvez as que, para cada vez obter mais lucro,
mais marcantes refiram-se a essas in- destrói aquilo que ele mesmo ergueu. O
tervenções cênicas de caráter docu- Jardim São Paulo, onde Guilherme pas-

62 63
sou boa parte de sua infância, sofreu lise, ganharam outro sentido de exis-
um AVC: o mercado imobiliário não pou- tir. Vera, Paulinho, Guilherme, So-
pou casas, praças, vilas. nia, Max, Bete, Paulo, Ivanil, Malva,
Na Zona Oeste, mais precisamen- ousaram abrir as portas para o encon-
te no bairro de Pinheiros, conhecemos tro. Por consequência, para nós, essas
uma senhora mineira proprietária de um pessoas saíram da abstração na qual se
pensionato amarelo e de três celulares costuma colocar o “cidadão comum” e se
de operadoras diferentes. Já na Barra presentificaram em toda sua potência de
Funda, encontramos Paulinho, um meni- significação.
no sem lugar, que dormia no Terminal. Para essas apresentações foram
Na primeira, pudemos fazer uma inter- convidados vizinhos, amigos, familia-
venção na residência. O segundo desa- res, numa ação com vistas a estimu-
pareceu ao longo do processo, mas foi lar a redescoberta da casa como espaço
trazido como lembrança dentro de nossa de interação e troca entre pessoas. A
encenação final. presença do documentado assistindo à
Na Zona Sul, a investigação intervenção confere ainda outro cará-
percorreu o Jardim Macedônia. Os docu- ter ao que é apresentado.
mentados foram Paulo, Bete, Micael e
Max, este último, integrante da Brava
Companhia. A intervenção revelou uma
família que tem o trabalho como con-
dição primeira. Uma família que não
pode dormir porque precisa trabalhar.
Um tempo que foi roubado e já não pode
ser compartilhado.
Assim, quando enfocávamos as
relações dos moradores com o espaço/
residência e o espaço/cidade e apre-
sentávamos a intervenção no próprio
espaço/residência, procurávamos dar
novos significados à moradia, à rua e
à própria cidade que, vistas sob uma
ótica diferente da usual, libertas da
prisão da monossemia, em última aná-

64 65
revistas.usp.br/salapreta/article/
Durante a apresentação na re-
sidência da Zona Norte, o Sr. José
Guilherme, por exemplo, diante do ma-
terial exposto, ficou emocionado e con-
versou com os atores e a plateia ain-
da durante a execução da intervenção.
Ele comentava o que sentia, ratificava
o que os atores narravam e inclusive
complementava as informações dentro
da cena, tornando o trabalho de fato
documental, já que, o próprio documen-
tado presente, interferia também em
presença cênica de maneira espontâ-

A própria intervenção dos do-


cumentados contribuiu para trazer o
caráter documental à cena, fato esse
muito importante à proposta, “pois de
nada adianta a intencionalidade em do-
cumentar o trabalho com e sobre os
dados de não ficção – inclusive os ima-
géticos – (…) se o espectador, prota-
gonista da experiência artística, não
percebe o que frui como documentário.
Revista Sala Preta_ PP-
GAC/ USP. disponível em:http://www.

Ao término da intervenção, ser-


víamos um café para todos os convida-
dos. Nesse momento, desenvolvíamos um
trabalho que envolvia os estudos dos
membros do grupo em relação a uma pe-
dagogia do espectador. De maneira afe-
nea, natural e absolutamente teatral.

67
view/57547/60587)
(Soler em
Salientamos, porém, que nossa proposta de investigação está longe de
um tratamento que preze apenas pela apresentação dos dados documentais.
Durante a seleção e articulação desses dados na construção discursiva,
queremos que sejam encontrados múltiplos sentidos, numa resignificação
daquilo que nos é trivial, óbvio.
Assim, ao documentar as relações dos moradores com o espaço residência
e oespaço/Cidade e apresentar a intervenção no próprio espaço/residência,
procuramos dar novos significados à moradia, aos objetos presentes nela.
Em uma cena, por exemplo, na casa da Sra Malva e o Sr. Ivanil, moradores
da Cidade Patriarca, bairro da Zona Leste de São Paulo, os atores na co-
zinha narram uma viagem feita pelo casal às Cataratas do Iguaçu, diante
da platéia e dos próprios documentados. Nesse momento vindo do banheiro,

66
cujo vidro abre-se para a cozinha, escuta-se o som do chuveiro evocando o
som de cataratas. O chuveiro visto sob uma ótica diferente da usual, li-
berto da prisão da monossemia, em última análise, ganhou novo significado
e sentido de existir.
Dentro do banheiro também está um segundo casal de atores, repetindo as
palavras proferidas por Malva e Ivanil na entrevista sobre o que ha-
viam conversado diante “daquela imensidão de água que fala dentro da
gente”1. O que se seguiu foram intervenções espontâneas de Malva e Iva-
nil durante a própria cena comentando: “Que lindo! Esse era o som”, “Em
frente às cataratas a gente se sentiu pequeno”, “Nós falamos assim mes-
mo!”.
1. Fala de Malva transcrita de entrevista
tuosa e significativa, durante o café Fomento ao Teatro e com o apoio da
conduzíamos discussões a partir do que Faculdade Paulista de Artes, abrimos
havia sido encenado. Esse processo se as discussões sobre as especificidades
repetiu em cada uma das quatro regiões do ato de documentar para o público em
de São Paulo. Com essas intervenções, geral. Realizado no Teatro Ruth Esco-
além do exercício contínuo na elabo- bar, o Colóquio foi organizado em três
ração de cenas, os atores e a direção noites distintas e reuniu cerca de 300
levantaram materiais e experiências pessoas, entre elas estudantes do cur-
para a segunda etapa do projeto. so de Artes Cênicas da FPA. e grupos
Aquecidos pelos encontros com de teatro em geral.
o público diante de uma série de apre-
sentações, o grupo foi para a sua sede,

“Lica era uma cahorrinha que


sabia atravessar as ruas.

bairro de Pinheiros. Antes de


pertencer a Dona Vera, Lica era de
vermelhas da verdes dos sinais

nome dele. O que sabemos apenas é


um morador de rua. Não sabemos o

Lica morreu de velhice mesmo”


Sabia distinguir as luzes

que ele também distinguia a luz


vermelha da verde do semáforo. O
de trânsito. Andava por todo o

mendigo foi morto à paulada em-


baixo do viaduto João Moura. Já

Fragmento de dramaturgia textual

GustavoCurado
cunhada pelo ator documentarista
uma casa previamente alugada no bairro
do Bixiga, em São Paulo. Começamos o
processo de construção de uma encena-
ção, acompanhado por estudos de voz e
corpo, visando o aprimoramento téc-
nico-artístico. Metaforicamente, nos
preparávamos para, de forma proposi-
tiva, instigar em nossos espectadores
múltiplas respostas à pergunta: COMO
SE PODE BROTAR POESIA NA CASA DA GEN-
TE? (A licença poética, a utilização
do pronome “se” na pergunta que dá
título ao projeto, quer enfatizar a
responsabilidade dos moradores da re-
sidência/casa e da residência/cidade
sobre esse brotar) na casa documenta-
da, na casa do grupo parceiro, na casa
encenação, na casa São Paulo.
Nesse período de intensa refle-
xão sobre o que foi vivenciado, pro-
pusemos ainda o I Colóquio sobre Te-
atro Documentário, através da Lei de

68 69
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C o vir
o

r o-
te
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a p oc ,
ri as a d tica
se s d s s -
sa
s í io
no art soc ia?
ca de o o e o
s ã ã a t e
na lvo a aç aç pl ent o?
t e a s m a a m ç ã
n es m u n a a es-
“Ë me am a iv nt
i i ca for Como mbé tiri icat ese o d m
ta rcu nif apr açã a u

gunta, que dá título ao projeto, quer


n

pela utilização do pronome se na per-


vo ce que o? r
cë çã si é repe sig ara epa par m

enfatizar a responsabilidade dos


s a

CASA DA GENTE? ( A licença poética


s, a
en t
e m l , a r p p r ta se
ve m ue u ra iliz casa a r is ta
s o

moradores da residência/casa
nh q ult r a
ut da se ent timi erca
Ao

COMO SE PODE BROTAR POESIA NA


c mo ço

bre esse brotar) na Casa


am

e da residência/Cidade so-
o v e u m n p ?
i r
C de doc o
fim fi pa
es mo tã so
se enta

documentada, casa do
lm or m
dos ar C o a t
se nta om
t o i s
do
c u

se traba a co e c to d
e
lhos,

grupo parceiro,
mi
ofe qu tui
a rua um ca reciamos
nh

casa encena-
a in
tem fé ár
poesia vo

ção, casa
São Pau-
re
Pau , ..
que molinho, .”
nela, ra
v

lo.
verso? irou
Nessa ocasião, debruçamo-nos a participação dos vizinhos da Casa
sobre as referências acerca da propos- Sede do Teatro Documentário, que em
ta estética documentária. No primeiro uma determinada cena improvisavam com
dia, a professora Dra. Marília Fran- os atores/documentaristas.
co, da ECA/USP, nos apresentou aspec- A memória do caminho se “ma-
tos do documentário em cinema, desde terializou” por meio de um dos nossos
suas raízes até os dias de hoje. No documentados em cena, relatando algu-
segundo dia, contamos com a presença mas das experiências verbalizadas e
da professora aposentadada pela FFL- atribuindo sentido mais amplo à nossa
CH/USP, Iná Camargo Costa, que trouxe encenação. Ivanil, na última cena, ra-
referências a respeito das raízes do tifica a veracidade de todos os encon-
teatro documentário em Piscator, pas- tros que foram contados pelos atores/
sando pelo teatro jornal e agitprop. documentaristas.
No último dia, a discussão aconteceu A encenação foi apresentada de
com o relato das experiências da Com- forma gratuita e, para convidarmos as
panhia Teatro Documentário e de mais pessoas, pensamos em algo que de al-
dois grupos que trabalham com seme- guma maneira simbolizasse o encontro e
lhante proposta estética: o grupo Oca- preparasse o espectador para uma expe-
morana e Janaína Leite, integrante do riência dentro de nossa casa. Por meio
grupo XIX. A mesa foi mediada pelo de agendamento telefônico prévio, pe-
Prof. Dr. Zecarlos de Andrade, coor- díamos o endereço da pessoa e enviáva-
denador do curso de Artes Cênicas da mos uma carta contando um pouco do que
Faculdade Paulista de Artes. Depois de vivenciamos em nossa trajetória por
tantos encontros, foi na Casa do Tea- São Paulo, numa proposta relacionada
tro Documentário que, ao final do pro- a um trabalho orientado pela pedagogia
cesso, centralizamos as lembranças de do espectador, aproximando-se daqui-
nossa vivência/trajetória pelos qua- lo que Desgranges chama de “ensaio de
tro cantos da cidade, inclusive com preparação” (DESGRANGES, 2006).

72 73
Na tentativa de
o d e 2011 ilustrar o teor do mate-
h
, 2 2 de jun rial apresentado nas car-
aulo
São P pe-
tas enviadas p e l o s atores
s
d o b em? E da C i a T e a t r o D o c u m e n t á -
, tu
F r a nçois a minha
r i o compartilhamos a se-
Oi . u n - guir fragmentos de duas
o q u e sim 0h e esto e São Pau o
r 3:1 e d irr cartas-convites enviadas aos
São 2 Zona Nortente no ba ocê. espectadores:
na am e v
casa, is precis ertinho dal lu-
lo, ma Menino, pndo em qu e você
Chora o imaginaa será qu o Pu- Olá,
Fic n
Santa da Alfre iro? Da
d Rosa
d e e ngel
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Cia.
TeatrNatália
o Doc Le
umen mos/
74 75 tário
76 77
es com a lín-
Somos seres vivent la-
Por fim, com o objetivo de o filósofo, as pa
propor uma desautomatização das per- gua, como afirma mente alguma coisa:
cepções do real, construímos na Casa vras não são merao caráter ideológi-
do Teatro Documentário a partir da elas representam e, são soldados que
experiência vivenciada no encontro co de uma sociedadras para produzir e
da Cia. Teatro Documentário com os lutam em trinchei s ideológicos, são
documentados nas casas localizadas reproduzir valore s sociais e preser-
nas regiões norte, sul, leste e oes- guardiãs de classe nsar e agir de ca
da
te da Cidade de São Paulo a encenção: vam o modo de pe s.
“ P r e t é r i t o I m p e r f e i t o ” _ Espera- uma dessas classetin diz: “A palavra é
Mikhail Bakh ia”,
mos que os textos abaixo nos ajudem a gico por excelênc
ilustrar esse pretérito de forma mais o fenômeno ideoló los seres sociais que
concreta e, desse modo, que ele se ela é proferida pe fendem o pensamen-
presentifique para você que permanece se relacionam e de não, “a palavra
é o
atento a essa memória. to dominante ou sensível de relação
modo mais puro e possui uma carga de
etérito imperfeito social”. Como ela o forte, e sendo tão
Uma memória em Pr afetividade muit as suas combinações
smo! Como um ros- exemplar como é, amente persuasivas;
Era imperfeito me uma flor com es- podem ser extrem for-
como á deveriam nos
to sem maquiagem, rrativa contraditória. portanto, elas “j cientes para colo-
pinhos, como um a na eito é necer razões sufi a em primeiro pl
ano
perfeição, o perf carmos a palavr eologias.” (BAKHTIN,
Não pretendia a ganizado e nossa ence-
simétrico, reto, ortorta e enviesada como no estudo das id
nação era curva, essão da face de quem 2010, p. 36) uma acompanhar
as marcas de expr a, de quem recorda. O vocabulário cost de cada período
ciais
conta, de quem narr a, tudo era verbo. as determinações so nças tecnológicas que
Tudo era narrativ o, fato, versão, histórico e as muda A palavra
gument o.
acontecem no mund primeira mão, as in-
Áudio, palavra, ar Tudo era voz e qu
eria
saudade, emoção! articula, em s-
megalópole São Pa ulo na sociedade, regi
ser. E a tal Cidaderso e prosa da boca de tervenções humana de acontecimento, por
ia brotando em ve lar, gritar, poetizar, trando todo tipo ou por um “dedo de pro-
quem deixávamos fa meio da narração, tecer em qualquer mo-
anunciar. sa” que possa acon
mento ou lugar.
78 79
fazer perguntas sobre a situação. Afi
As palavras apresentam ainda, va- eu não havia sido informado previa nal
te de
lor de representação, principalmen cio- men-
te. O público achou triste. Daí a gra
imagens, e ativam dis pos itiv os emo
vezes surpresa de quem assistia pela seg nde
nais profundos, primitivos, algo às gi- vez. “A cena era diferente da outraunda
intraduzível que está alo jad o no ima
lido, que assisti” – comentava uma especta vez
nário das pessoas. Um poema, ao ser ras E sim, era... Não havia uma marca. dora.
escutado ou encenado, pod e aces sar out Nosso
eito Teatro é proposta. É caminho.
imagens que estão introjetadas no sujadas.
e voltam à tona para ser em rep res ent
Pretérito imperfeito não tinha
e nem
uma história, nem um protagonista pli- Por Gustavo Curado
luzes e efeitos especia is. Tin ha sim
tinha
cidade, tinha movimento, tinha café, ti-
suco de tangerina e pip oca . Tin ha a par
. Na cas a ao lad o
cipação dos vizinhos. Sim lha
onde vira e mexe os ato res ped em gre
de
de churrasco emprestado e uma xícara o mo-
açúcar, vivem 12 pessoa s e, em dad
rista
mento, numa cena, eu, ator documentadeles
gritava: “Ô de casa !!!”, e saí a alg um
quin-
pra fora, pra ver o público, num quem
talzinho germinado. Eu nun ca sab ia
ado,
viria. Não havia marcação nem combinlico
só a vontade de aprese ntá -lo s ao púb
acre-
visitante daquele dia e ouvi-los. E tor.
dite: Não, não era imp rov iso car o lei
tempo
Era documentação, em ato, em cena, em
real, em vida, aliás sob re a vid a!
Um dia, uma das crianças que gos-
da,
tava de participar estava entristeci
pois
seu ratinho hamster havia mor-
ícil
rido, e para mim, como ator, foi dif o e
mediar a apresentação naq uel e mom ent

80 81
Como se pode brotar poesia pelas buzinas? Em que tempo parou a
na casa da gente? Mas antes de chegar Relojoaria do Seu Joaquim de um Jardim
na casa, tem a rua Será que começa na São Paulo que subiu em arranha céu ? O
rua? Será que a poesia da rua entra na pequeno comércio morreu: fecharam os
casa, se esconde num canto, germina e olhos da rua. A Cidade entupiu: der-
brota? Mas rua tem poesia? Asfalto tem ramou de carros. Transbordou. Alagou
flor? Só a flor tem poesia? E a árvore? o asfalto. Poesia de lata, é poesia?
E o vazio que ficou no lugar da árvore Adoniran Barbosa cantaria? A 22 minu-
que o vizinho cortou? E o outro, que tos de carro da Zona Norte, chegamos
chorou? É chorão? E a murta, o ipê e o na Zona Oeste. E se a rua tem poesia,
pau brasil, vão deixar feliz a Malva Paulinho, que mora nela, virou verso?
cheirosa do reino das rosas? E o Iva- Qual é a rima de um menino que queria
nil, ex-trapezista, contador, aposen- ser menina? Avesso? Qual será a sua
tado, que tem vontade de ser artista? sina, já que dele não se sabe mais?
Da construção do córrego feita pelos Sumiu. E a Vera, moradora do bairo de
moradores da Rua Xique Xique, na Zona Pinheiros, que queria ser codorna, ir
Leste, é chique falar? E da demolição pra frente e nunca olhar pra trás? An-
da seringueira-casa-de-pardal, corta- dar e sumir. Tem poesia no sumiço? Ou
da a pedido da fulana de tal, dona da desapareceu? Vera com seus 3 celulares
Padaria Internacional? E o leão aban- de operadoras diferentes poetiza? Fa-
donado, que morreu de fome depois de lar em prosa por celular, é encontro?
maltratado pelo circo? É de tristeza Ou esse também sumiu? E na Zona Sul,
que se faz poesia? Mas e a alegria de o Max, de uma Brava Companhia também
reunir os vizinhos dentro da casa 575 sumiu. Mas apareceu, na casa do pai e
da Xique Xique, para a apresentação do da mãe, no Jardim Macedônia. Perdeu a
Teatro que é documentário? E aquele hora, esqueceu o relógio, voltou no
comentário da vizinha: “isso que vo- tempo e contou história. Lembrou de
cês fazem é tão bonito, mas e o Tea- quando ajudava o pai a colar outdoor
tro propriamente dito, também fazem?” e de seu medo. Quem tem medo de altu-
Indo pra Zona Norte, tem mais poe- ra, tem o direito de subir? Era uma
sia brotando? Tem gente se esquecendo, vez uma Cidade Limpa. Era uma vez, uma
perdendo a memória. O trem das onze, profissão que também sumiu. E quem não
onde o Seu Guilherme da Vila Guilher- tem medo, pode descer pra construir?
me andou, estacionou ou foi abafado Paulo, pai do Max, desceu pra tra-
82 83
balhar na constru-
ção de casas. Su-
biu três moradias
e vive do aluguel
delas. Tem poesia
no concreto? No as-
falto? No sumiço?
No esquecimento?
Tem poesia no en-
contro? Na inter-
ferência da vizinha
dentro da casa que
é o espaço da ence-
nação da Companhia
Teatro Documentá-
rio? A poesia mora
de que lado? Mora
na casa? Invade a
rua? É nas coisas
que ela habita? Ela
descoisifica o ho-
mem? Ela humaniza?
A poesia é do ver-
so? Ou é do silên-
cio que se faz no
gole do café? Nas
casas, nas zonas...
é a gente que cria?
Ou ela já estava lá
e abriram a porta
pra gente entrar?

Por Elaine Grava e


Marcelo Soler
84 85
Meandros Genéticos de um Pretérito Imperfeito:
a indelével interferência dos processos de criação nos
modos de recepção artística
Flávio Desgranges1

Um espetáculo teatral traça uma longa e sinuosa


trajetória até se concretizar enquanto ato propriamente
artístico, o que acontece efetivamente no modo com que é
percebido pelo espectador. É no ato de leitura que o texto
cênico se efetiva como fato artístico. Esta sinuosa traje-
tória da concretização de um acontecimento artístico tem

86
seu princípio gerador estabelecido nas opções investigati-
vas dos artistas, nas associações mnemônicas e elaborações
estéticas que instauram em seus processos criativos. As
táticas e estratégias definidas nos modos de produção ar-
tística estabelecem condições marcantes e indeléveis para
os modos de recepção, influenciando decisivamente as opera-
ções perceptivas que são deflagradas no espectador, criando
condições para que a escrita cênica seja percebida como
1 Professor do Departamento de Artes Cênicas da USP. Autor dos livros A Inversão da Olhade-
la: alterações no ato do espectador teatral; Teatro e Vida Pública: o fomento e os coletivos teatrais de
São Paulo (org.); Pedagogia do Teatro: provocação e dialogismo; e A Pedagogia do Espectador.

poética. Desde a gênese do espetáculo, durante o processo


criativo, são gerados os operadores estéticos que serão
partilhados mais tarde com os espectadores. Podemos dizer
que são genes estéticos surgidos no processo de criação,
que se mostram potencialmente provocativos e fecundos. Ou
seja, para que algo aconteça nos espectadores em processo
de leitura, faz-se necessário que algo tenha se passado (e
esteja se passando) com os artistas em processo de cria-
ção.
Tentaremos estabelecer aqui alguns vetores de aná-
lise que possibilitem investigar como o processo de cria-
ção do espetáculo Pr etér ito I m perfe i t o , realizado pela
87

Companhia Teatro Documentário, pode trazer algumas pistas


sobre a maneira com que se efetiva a relação estreita entre
a gênese dos processos de criação artística e os efeitos
estéticos ocasionados nos espectadores. Com tal propósito,
além do conhecimento prévio que temos sobre o espetáculo
e o trabalho da companhia, entrevistamos os artistas do
grupo2, buscando colher fatos e impressões advindas da me-
mória do percurso criativo, trazendo à tona o contexto e as
circunstâncias do momento em que o grupo traçava as bases
2 A entrevista foi feita na sede do grupo no dia 7 de agosto de 2014.
da pesquisa e definia os atos investigativos geradores do
espetáculo.
A concepção de uma proposição artística não se dá
(ou não deveria) de qualquer modo, desprovida de propostas
e procedimentos experimentais que guardem coerência inves-
tigativa e que solicitem diálogo com o contexto estético e
histórico de seu tempo. Não se trata, já aí, portanto, de
um vale-tudo irresponsável e descomprometido. O investi-
mento de desejo e de sonho se deflagra no processo inves-
tigativo, na experiência inicial dos artistas, e segue nos
jogos propostos aos espectadores. As estratégias adotadas
pelos artistas em processo são definidas a partir da rele-

88
vância e da pertinência de seus interesses, de questões e
procedimentos, mais ou menos coordenados, que os artistas
propõem para si mesmos, e que podem estar intimamente re-
lacionadas com as inquietações, os riscos e desafios que os
artistas sugerem ao público.
O levantamento dos meandros genéticos do espetácu-
lo Pretérito Imperfeito não tem aqui o intuito de esgotar
as tantas experimentações e variáveis que foram implemen-
tadas pelo grupo e seus possíveis desdobramentos críticos.
Destacaremos algumas opções adotadas pela companhia em seu

percurso inventivo, evidenciadas a partir da entrevista


feita com os artistas, e que nos apontam caminhos possí-
veis para sustentar tal análise. Para isso, selecionamos
os seguintes operadores estéticos, que nos parecem marcan-
tes nos modos de produção da Companhia Teatro Documentá-
rio, e que, com as devidas particularidades de cada caso,
podem ser observadas também em outros coletivos teatrais
contemporâneos: a) pesquisa; b) ação artística: o público
em processo; c) estado de improviso; d) colaboração; e)
inacabamento; f) performatividade.

Pesquisa
89

O principal aspecto que caracteriza a pesquisa como


elemento presente e indispensável aos processos de cria-
ção dos coletivos teatrais se dá pela necessidade premente
do artista, desde o advento da modernidade, de estudar e
se posicionar ante a dimensão estética e histórica do seu
campo de atuação. Ou seja, o artista precisa ter clareza
dos diálogos que trava com seus antecessores, de que modo
a sua opção artística se relaciona com as inovações que
lhe antecedem, bem como com as proposições já desgastadas,
que perderam o vigor estético de outrora, além do conhe-
cimento acerca do jogo simbólico em curso e da perspicá-
cia estratégica de como enfrentar o panorama cultural que
vigora em seu tempo. O fazer artístico atual não admite a
ignorância ou a dissimulação do artista acerca de aspectos
da história da arte e do contexto sociocultural que o cer-
ca, ou, como aponta Ronaldo Brito, “nesse terreno minado,
saturadamente histórico, não há lugar para a consciência
ingênua”.3
O impulso de pesquisa que move o artista teatral
pode ser ainda compreendido como necessidade de escapar
dos impasses repetitivos; que não se configura somente como

90
busca por engendrar um objeto artístico inédito ou uma nova
matéria expressiva, mas também, e fundamentalmente, como
anseio de singularidade. Processa, assim, uma investiga-
ção que o lance em dimensões inusitadas de subjetividade,
recolocando-o em condição de perceber certas manifestações
semióticas que escapam ao olhar comum. Esse procedimento
visa a romper com modelos simbólicos “já classificados”,
a desestabilizar a “trama das redundâncias dominantes”44,
3 Ronaldo Brito. Experiência Crítica. São Paulo, Cosac Naify, 2005, p. 85.
4 Félix Guattari. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo, Ed. 34, 1992, p. 32.

cindindo padrões de sentido que cristalizam leituras do


contexto social.
A busca por territórios que possibilitem pontos
de vista singulares pode surgir a partir da pesquisa de
outras proposições artísticas, ou de produções teóri-
cas, ou do deslocamento social e geográfico para posições
subjetivas distintas, em percursos de investigação acer-
ca de condições existenciais particulares: pacientes de
hospitais psiquiátricos, alunos de escolas, transeuntes
urbanos, abrigos para moradores de rua, ou, como no caso
do Documentário, pessoas comuns em seus hábitos e gestos
cotidianos, que podem trazer à tona indícios das tramas
91

e marcas sensíveis de suas histórias.


Ao se colocar em pesquisa, o artista quer sair do
seu lugar, em uma busca que se faz tão necessária quanto
vital em direção ao desconhecido, uma trilha movida pelo
desejo de aprendizagem. Essa sede de conhecimentos, de
partir em busca do que não sabe, demanda que se coloque
em risco, pois não consegue assegurar para onde exata-
mente o processo de investigação o levará. A realização
da pesquisa para o artista (e assim será para o espec-
tador) é antes colocar a si mesmo em investigação, visi-
tar subjetividades estranhas, deixando-se atravessar pelo
processo em curso.
A pesquisa do grupo tem como eixo as questões que
envolvem a realização de documentários cênicos. O que se
difere das reportagens informativas, tão em voga na gran-
de mídia, que tantas vezes também apresentam a intimidade
das pessoas, mas não se preocupam em conferir ao material
um tratamento artístico. Os documentários cênicos não têm
como objetivo último a informação, mas a proposição de
efeito estético, o convite à experiência poética. O grupo,
portanto, precisa, a cada espetáculo, definir com precisão
o tipo de acordo que será feito com os espectadores para

92
deixar claro que se trata de um documentário cênico, que
o público não está diante de uma reportagem informativa.
Vale ressaltar, para definir com precisão o ter-
ritório investigativo da companhia, que há outros grupos
teatrais que também buscam informações documentais de pes-
soas ou fatos históricos para a criação de espetáculos,
mas não necessariamente se propõem a conceber um Teatro
documentário, em que as fontes e os dados documentais são
tomados como a base central da concepção cênica. Ou seja,
o objetivo do Documentário não é o de criar uma narrativa

ficcional com o material recolhido das situações de vida


das pessoas documentadas, e sim perceber e apurar artisti-
camente a poesia que brota da vida dessas pessoas. A poesia
em estado bruto que irrompe da vida cotidiana, surgida a
partir da relação travada com os documentados e com tudo o
que está imbricado na vida de cada uma dessas pessoas: os
amigos e parentes, os objetos pessoais, as memórias, rela-
tos, gestos, falas, etc. O que demanda um cuidado ético e
estético no tratamento dado, tanto ao modo de aproximação
e de relação travada com as pessoas documentadas durante
todo o processo, quanto à maneira com que o material le-
vantado será levado à cena.
93

Os espectadores precisam compreender que não se


encontram ante uma peça de ficção, mas postos em relação
com fatos, gestos, objetos pertencentes à própria vida
das pessoas documentadas. Por mais que haja um tratamento
artístico que entra em fricção com o material documental,
tornando-o poético, ou evidenciando a poesia em potencial
presente nos dados documentais. A distinção entre ficção e
documentário torna-se fundamental para o tipo de efeito
estético que será gerado no público, pois a relação dos
espectadores com uma narrativa ficcional, ainda que baseada
em fatos reais, faz-se totalmente diferente daquela esta-
belecida com cenas documentais.
Em Pretérito Imperfeito, a presença de Ivanil,
uma das pessoas documentadas no espetáculo, atuando na
cena da cozinha da casa em que se deu a encenação - que é
também a sede do grupo -, se constituía como indício mar-
cante para o público de que se tratava de um documentário.
A partir dali, os espectadores não tinham mais qualquer
dúvida de que estavam se relacionando com cenas documen-
tais. Ivanil, que não tinha formação teatral, contracena-
va com a atriz Elaine Grava, que representava sua esposa,
como se os dois estivessem na cozinha da própria casa e os

94
espectadores fossem visitas, para quem o casal, enquanto
oferecia um lanche, narrava fatos de sua vida.
A apresentação de situações de vida dos documenta-
dos, para além do caráter poético que surge da vida privada
de cada uma dessas pessoas, pode lançar os espectadores
ao encontro da perspectiva histórica dos acontecimentos.
Ressaltando o fato de que a história de um homem pode se
relacionar com a história dos homens, ou de como os fatos
ocorridos com um indivíduo podem enunciar e fazer pensar
acerca das condições políticas e sociais de um dado tempo

histórico. Os artistas recolhem os acontecimentos coti-


dianos e os retiram do movimento contínuo e irrefletido da
vida diária, captando essas situações e as colocando em
relação com as tensões coletivas do momento histórico. Os
fatos documentados podem se vincular às tensões do pre-
sente pela descontinuidade contínua dos sonhos e desejos,
pelas centelhas de esperanças (e frustrações) contidas nas
experiências de cada indivíduo, que penetram e iluminam as
situações do agora vivido coletivamente.
O título dado ao espetáculo - Pretérito Imperfei-
to - parece nos remeter a essa noção de um passado que se
faz presente. Um passado não totalmente acabado, mas que
95

pode sempre ressurgir e ser recontado à luz do presente,


que pode influenciar o presente e, quem sabe, apontar no-
vas possibilidades para o futuro. Um tempo dilatado em que
passado, presente e futuro se interpenetram e se influen-
ciam reciprocamente. Pretérito tomado como tempo verbal,
ou como tempo do verbo, da palavra, do sentido. Tempo para
recuperar o tempo. Um pretérito apresentado como matéria
maleável, um pretérito apto a ser revisto e refeito, ainda
que permaneça para sempre imperfeito.
Ação artística: o público em processo

Podemos observar, a partir das últimas décadas,


especialmente no modo de produção dos coletivos teatrais,
que a atuação dos artistas não se limita ou está necessá-
ria e prioritariamente centrada na concepção de espetácu-
los ou na apresentação de obras de arte, mas se transfere
também para outras ações em sua relação com a vida públi-
ca. Ou seja, “o epicentro do fenômeno teatral se desloca
da encenação. O processo criativo deixa de se restringir
à montagem, que passa a ser apenas uma das suas facetas”.5
De forma intensa e diversificada, esse modo de atuação pode

96
ser notado em grupos teatrais brasileiros estabelecidos em
diversas regiões do país, e mesmo em grupos estrangeiros,
com características particulares ao contexto social em que
cada coletivo artístico está inserido.
Em parcela significativa das propostas coordenadas
pelos grupos teatrais, participantes externos são convi-

5 Maria Lúcia de Souza Barros Pupo. “Quando a Cena se Desdobra: as contrapartidas sociais”. In:
DESGRANGES, Flávio; LEPIQUE, Maysa (orgs.). Teatro e Vida Pública. O Fomento e os Coletivos
Teatrais em São Paulo. São Paulo, Hucitec, 2012.

dados a integrar etapas do processo de criação, de maneira


que a autoria do público não se faz presente somente na
relação de leitura, mas já na relação de feitura. Com esse
modo de atuação, tecendo relações estreitas com a Cida-
de, os grupos teatrais buscam trazer para a arena pessoas
apartadas dos processos artísticos, convidando-as a parti-
cipar da elaboração de discursos cênicos que efetivamente
lhes digam respeito. O que faz com que os artistas percam
o controle total sobre a dinâmica criativa, disponibili-
zando-se para tomar rumos imprevistos, tanto na abordagem
de temas quanto na investigação de linguagens e maneiras
de articular a escrita cênica, que surge da ação artística
97

em curso.
No caso do Teatro Documentário, essa opção se evi-
dencia na relação com os documentados, pessoas que via de
regra não têm formação artística e são trazidas para o cen-
tro do processo criativo. Cada etapa do processo passa a
adquirir valor artístico próprio, desde o momento da apro-
ximação e do aprofundamento da relação dos artistas com
os documentados, passando pelos ensaios em que o material
recolhido é transformado em cena teatral, até as apresen-
tações dos espetáculos, que são assistidos pelo público em
geral, mas também pelas pessoas documentadas, que levam
consigo parentes e amigos.
Diferentes camadas de relação como o público se
estabelecem em um modo de produção assim concebido: os do-
cumentados observando o tratamento artístico dado às pró-
prias histórias, os parentes e amigos atentos a como a vida
de seus conhecidos se torna Teatro, e o público em geral,
que passa a conhecer aquelas histórias somente no momento
do espetáculo. Espectadores em distintas condições, com
diferentes relações com o material levado à cena, e que se
encontram, entre si e com os artistas, para compartilhar a
experiência estética.

98
O público entra no processo pelo próprio modo com
que a investigação artística se efetiva. A compreensão de
como o público integra o processo de criação pode ser pen-
sada como tensão entre, por um lado, a atuação das dife-
rentes camadas de participantes-espectadores durante todo
o processo e, por outro lado, como aspectos da vida social
são trazidos para o debate. A pesquisa do grupo, ao tomar
como matéria primordial aspectos da vida pública, traz à
tona questões de interesse coletivo, inserindo o público
teatral (seus desejos, anseios, frustrações) no processo

criativo.
Outros modos de diálogo com o público podem ser
considerados em Pretérito Imperfeito. Cada espectador
que confirmava a sua ida ao espetáculo recebia com antece-
dência uma carta enviada pelo correio, escrita à mão por
um dos artistas do grupo. Na carta, os artistas contavam
alguma história direta ou indiretamente relacionada a um
dos documentados, aproximando o público das narrativas que
seriam apresentadas. E, principalmente, conferindo um tom
afetivo na relação entre artistas e espectadores, que se-
ria desdobrado posteriormente na maneira acolhedora, fa-
miliar, de receber o público na casa, estendida a todo o
99

percurso da encenação. O mesmo cuidado e a mesma delicade-


za conferidos aos documentados no processo de criação eram
dedicados aos espectadores, mesmo antes de chegarem para o
espetáculo. O modo sutil e singular, estético e experien-
cial, permeava todas as etapas da trajetória investigativa
e propositiva do grupo em sua relação com o público. Os
espectadores, dessa maneira, entravam em contato com as
bases genéticas do processo de criação engendrado pelos
artistas.
Ao final do espetáculo, como visitantes acolhidos
em uma residência hospitaleira, os espectadores podiam fi-
car o quanto quisessem conversando entre si e com os artis-
tas. E, por vezes, as conversas se alongavam muito... Os
participantes perdiam a noção da hora e restavam por longo
tempo na casa, em conversas tão prazerosas quanto infindá-
veis. Também nesse momento, como acontecera durante todo
o percurso criativo do grupo, o espaço da arte invadia o
espaço da vida, e vice-versa.

Estado de improviso

Em quantidade significativa das produções teatrais

100
recentes, os variados aspectos da encenação são definidos
a partir de improvisações de cena, geralmente realizadas
pelos atores. As resoluções não são estabelecidas previa-
mente e depois levadas para a cena, tomando o texto dra-
mático como centro da produção, em face do qual se definem
as opções de encenação. O processo se engendra de maneira
cooperativa, com a participação de todos os artistas en-
volvidos, que atuam conjuntamente no decorrer da própria
pesquisa de linguagem. As opções cênicas, nesse caso, não
surgem como determinações vindas d e f o r a do espaço de

jogo, mas das entranhas das próprias investigações cêni-


cas.
Enfocamos prioritariamente produções que se arti-
culam em torno de diversas experimentações improvisacio-
nais, que tomam como procedimento privilegiado o ator que
fala e age em cena, associando o pensado e o não-pensado,
a partir de motivações investigativas as mais variadas:
um tema, uma proposta de luz, um objeto cênico, um texto
(dramatúrgico ou não), a desmontagem de um personagem, um
determinado registro estilístico, fragmentos de memória
dos atores. Deixando que o acaso, as circunstâncias do
presente, o inesperado se produza no processo, em tensão
101

com as bases investigativas do grupo. Possibilitando aos


artistas que escrevam o não pensado; o que pode oferecer
ensejo a que os espectadores leiam o não escrito.
Em Pretérito Imperfeito, esse estado de improvi-
so, de abertura para o imprevisto, marca a própria condi-
ção de pesquisa do grupo, desde o modo com que vai para a
rua, travando relações com os transeuntes, abrindo-se para
a percepção imediata dos acontecimentos urbanos. É justa-
mente dessa maneira, para citar um exemplo, que o grupo
conhece o Ivanil, documentado que viria a desempenhar pa-
pel fundamental no processo de criação. O grupo visitava
uma praça da Cidade, registrando imagens do local, quando
aparece um senhor gritando: “Ei, ei, vocês estão filmando
árvores? Pois eu tenho um pau-brasil no quintal da minha
casa!”. O grupo vai, então, conhecer a casa do Ivanil, que
fala de seu apreço pelas plantas e conta a sua desavença
com a vizinha, que o obriga a dar fim a algumas de suas ár-
vores, alegando que estas sujam toda a calçada e o quin-
tal da casa ao lado. Narrativa esta que, após tratamento
poético, o grupo decide integrar ao espetáculo. Assuntos
da vida privada, como dissemos, fazem surgir questões da
vida pública. Em uma Cidade como São Paulo, permeada de

102
concreto e asfalto, a vida das árvores se torna aspecto
de interesse geral. Além do que, no diálogo com Ivanil, o
texto e as demais opções de encenação já começam a surgir
como material cênico em potencial. O estado de improviso
move o processo criativo.
Para trazer outro exemplo desse estado de impro-
viso, podemos recorrer ao modo com que se deu o encontro
com outro documentado cuja história integra o espetáculo:
seu Guilherme. Morador do bairro de Santana, Zona Norte de
São Paulo, ele se prontificou, em visita que o grupo fez

ao apartamento em que residia, a apresentar memórias es-


quecidas daquela localidade. Ao mesmo tempo em que falava
do que existia anteriormente em seu bairro e que naquele
momento havia desaparecido, seu Guilherme trazia fatos da
vida privada: “Eu já tive dois AVC. Estou perdendo a me-
mória”. A memória de seu Guilherme parecia perder-se jun-
to com a memória da Cidade. Mais adiante, em conversa com
os artistas, trouxe histórias de sua infância no local:
“O que eu mais me lembro do meu pai são os carros que ele
teve...”, apresentando a relação com seu pai atravessada
pelo jeito com que este apreciava e cuidava de seus carros.
A vida do menino Guilherme ressurgia a partir dos praze-
103

rosos passeios da família. Cada novo carro adquirido pelo


pai marcava uma nova fase de sua infância; sua memória era
guiada pelos veículos que a família teve ao longo do tempo.
O grupo, que havia se impressionado com o trânsito intenso
enquanto investigava aquela região da Cidade, opta em ela-
borar o documentário cênico de seu Guilherme traçando uma
intersecção entre o acidente vascular cerebral do documen-
tado e as vias obstruídas de uma Cidade construída para os
carros, que causa transtornos à circulação dos pedestres.
Aqui também, como podemos perceber, o texto cênico do es-
petáculo foi sendo tecido em estado de improviso, aberto
para o imprevisto, atento ao inesperado de um lance poéti-
co que poderia se apresentar a qualquer momento.

Colaboração

O caráter improvisacional de processos teatrais


recentes pode ser associado a outro aspecto que caracte-
riza esses modos de produção: a participação integrada e
em situação de igualdade, das várias artes, em seus di-
ferentes domínios linguísticos. De maneira a constituir
um coletivo de artistas - encenador, atores, cenógrafo,

104
dramaturgo etc. – , que, a partir de distintas formações
artísticas e diferentes trajetórias profissionais, criam
variadas, e por vezes dissonantes, soluções cênicas, em
função da proposta investigativa em curso, definida ou pelo
encenador, que coordena as ações, ou pelo próprio grupo.
No modo de produção artística dos coletivos tea-
trais contemporâneos – e o Documentário se mostra exemplar
nesse caso – , podemos destacar ainda o fato recorrente de
cada um dos artistas integrantes do grupo desenvolver de
maneira mais ou menos clara uma pesquisa pessoal. Ou seja,

há uma pesquisa comum, coletiva, a pesquisa do grupo, da


qual todos participam e com a qual estão de acordo, mas há
também uma pesquisa pessoal, de cada artista, movida por
seus próprios desejos e inquietações.
No processo criativo do Documentário, se pode ob-
servar que a relação dos artistas com cada um dos docu-
mentados se faz de maneira singular, fazendo emergir dis-
tintos modos de enunciação, que são definidos a partir dos
lances poéticos que surgem à medida que o grupo aprofunda
o contato com o universo vivencial de cada uma dessas pes-
soas. Os variados fatos que aparecem durante o processo de
criação, carregados de sentidos poéticos em potencial, são
105

destacados pelos artistas para a composição do texto cê-


nico relativo a um ou outro documentado. A escrita cênica
do grupo é composta por partes não necessariamente inte-
gradas - fragmentos, gestos, imagens, vozes, sonoridades
-, provenientes de contextos e pessoas sempre diferentes:
os próprios documentados; os amigos e vizinhos dos docu-
mentados; texturas e objetos provenientes das casas visi-
tadas; sons e imagens da Cidade; falas e gestos proferidos
pelos próprios artistas durante o processo investigativo;
livros, filmes, poemas, ou demais objetos artísticos rela-
cionados ao processo criativo; entre outros. De modo que
o texto cênico de Pretérito Imperfeito se compõe como uma
desarticulação estética, em modo polifônico - ou mesmo
cacofônico -, resultante das tantas vozes que participam
da elaboração do processo. Ou mesmo dos modos variados de
produção operados em cada pedaço ou cada cena do espetácu-
lo, ou ainda de propostas de encenação distintas que mar-
cam cada uma dessas partes, friccionando propositalmente
os momentos subsequentes ou concomitantes do evento.
Multifacetado, aberto para variadas interferên-
cias, um processo assim constituído pode romper com o pri-
vilégio à racionalidade e criar condições que surpreendam

106
os próprios artistas participantes, gerando lances invo-
luntários e associações inesperadas, fazendo surgir uma
produção em que tudo fala, o que quer dizer também que as
hierarquias da ordem representativa estão abolidas, que
não existem detalhes desprezíveis, que justamente a par-
tir desses detalhes se podem traçar importantes vetores de
análise, que não se pode diferenciar episódios narrativos
importantes de episódios descritivos acessórios, que nada
é acessório, que não existe objeto, sonoridade, gesto ou
frase que não carregue em si a potência da obra. “Tudo

está em igualdade, igualmente importante, igualmente sig-


nificante”.6

Inacabamento

Outro aspecto que marca os modos de produção da


cena teatral nas últimas décadas está em seu caráter ex-
plicitamente inacabado. O que não quer dizer desleixo ou
falta de rigor, mas aponta tanto para o fato de que o ar-
tista guarda a sensação de que pode ainda e incessante-
mente conferir retoques de acabamento ao objeto, quanto
para sua maneira experimental; para a disponibilidade do
107

artista em correr riscos, para a falta de domínio absoluto


do que se dará efetivamente no momento em que o processo
de criação for aberto para os espectadores. Se a expecta-
tiva desse encontro sempre marcou a história do Teatro, em
diferentes períodos, pela incerteza costumeira de como a
obra será recebida pelo público, na arte recente isso se
eleva à potência até então não investigada.
Ou seja, nos interessa destacar aqui que, sob a
perspectiva do efeito estético, os dois modos de inacaba-
6 Jacques Rancière. L´inconscient estétique. Paris, Galilée, 2001, p. 37.
mento podem ser vinculados, que a incompletude da obra,
proveniente da lacuna entre o projeto inicial do artista e
o efetivamente realizado, pode ser relacionada com as re-
centes propostas de atuação feitas ao espectador. Estamos
tratando, por um lado, do inacabamento intrínseco a todos
os processos de criação, como versão sempre inconclusa
dos objetos artísticos, que parecem solicitar contínuo e
inesgotável aprimoramento aos olhos do criador. O objeto,
mesmo tido como finalizado, entregue à apreciação do públi-
co, provém de um processo inacabado, quase frustrante para
o artista. “É o inacabamento como inevitável fatalidade”.7
Não se trata, pois, de descaso, mas de assunção da mobili-

108
dade permanente do objeto, que sempre pode ser modificado.
Cada vez menos os objetos artísticos podem ser descolados
de seus processos de produção. O inacabamento inevitável
se faz modo estético na cena recente, pois assumido como
revelação das entranhas do processo de criação.
O modo com que os espectadores eram recebidos na
casa do Documentário para assistirem a Pretérito Imperfei-
to se configurava já como proposta que evidenciava o fato
7 Cecilia de Almeida Salles. Redes da Criação: construção da obra de arte.
São Paulo, Editora Horizonte, 2008, p. 20.

de que o acontecimento artístico se fazia em diálogo com


instâncias da própria vida. Cada espectador que chegava na
casa era recebido como um visitante querido, muito bem-
-vindo, e descontraidamente convidado a participar de uma
conversa estabelecida entre os participantes já conforta-
velmente acomodados na sala de estar. Cada qual falava so-
bre acontecimentos daquele dia, sobre como fizera para che-
gar ali, sobre a sua relação com a Cidade. E, subitamente,
cada qual tinha a clara noção de que o evento artístico já
tinha começado, que cada narrativa, cada gesto proferido
pelos participantes, começava a compor a estrutura signi-
ficante do espetáculo, antes mesmo de qualquer texto pro-
109

nunciado pelos artistas.


Outro momento marcante do espetáculo, que pode ser
destacado como evidenciação de seu inacabamento, acontecia
na relação de Ivanil com a atriz Elaine Grava na cozinha da
casa, tal como destacado acima. O encenador Marcelo Soler
propôs, por um lado, que Elaine, que representava a esposa
do documentado, fizesse sempre perguntas diferentes para
ele acerca de fatos da vida do casal, e, por outro lado,
que Ivanil trouxesse para a cena situações ainda não re-
veladas da vida dos dois. A cada dia a cena era recriada.
O que, por vezes, deixava a própria atriz desconcertada
ante a exposição de fatos íntimos, insólitos ou desconhe-
cidos da vida do casal. A partir do modo com que o público
recebia as narrativas apresentadas ao longo da temporada,
Elaine e Ivanil, em diálogo permanente com Soler, podiam
definir que situações da vida do casal seriam ou não cabí-
veis de se apresentar naquele momento do espetáculo.
Nesse caso, como podemos perceber, o fato de abrir
o processo de criação para o público não põe termo ao pro-
cesso, mas, ao contrário, assume a continuidade da criação,
agora com a presença dos espectadores. Os artistas instau-
ram a noção de experimentação, que está associada à ideia

110
de um ato cujo resultado é desconhecido, de tentativas nem
sempre acabadas, que buscam inaugurar e investigar outros
modos de relação com os participantes do evento. O público
deixa as suas marcas, seus rastros no processo, de modo que
o espetáculo vai sendo definido e transformado também no
decorrer da temporada. Dizer que uma produção não domina
seus fins, pois propõe que os espectadores participem desta
definição, está longe de caracterizá-la como gratuita, pois
nos referimos a acontecimento necessariamente sustentado
por coerência de programa e lucidez crítica.

Performatividade

Outro aspecto marcante na criação teatral con-


temporânea é o modo performativo com que os artistas se
disponibilizam para as reverberações e interferências dos
elementos do mundo no decorrer do processo investigativo.
Esta noção de performance como abertura para que o entorno
possa se tornar atuante no processo de criação artística
pode ser compreendida a partir das proposições do teórico
Paul Zumthor.8 O autor, para explicar a sua ideia de per-
formance, recorre a uma cena de sua infância, referindo-se
111

ao prazer que tinha, na Paris dos anos 1930, depois da es-


cola, no caminho para casa, em parar para assistir a atua-
ção de numerosos cantores de rua existentes no período. A
pequena plateia que parava para assistir ao evento, forma-
da por quinze ou vinte pessoas, era convidada a cantar em
coro com o artista. “Havia um texto, em geral muito fácil,
que se podia comprar por alguns trocados, impresso gros-
seiramente em folhas volantes”.9 Contudo, o que prendia a
8 Paul Zumthor. Performance, Recepção, Leitura. São Paulo, Cosacnaify, 2014.
9 Idem, p. 32.
atenção dos passantes era tudo o que envolvia o show: o ho-
mem fazia chacotas, vendia as canções, apregoava, passava
o chapéu. Todos os elementos que compunham o acontecimento
eram parte integrante e inseparável da canção:
Havia o grupo, o riso das meninas, sobretudo no fim
da tarde, na hora em que as vendedoras saiam de suas lojas,
a rua em volta, os barulhos do mundo e, por cima, o céu de
Paris que, no começo do inverno, sob as nuvens de neve, se
tornava violeta. Mais ou menos tudo isso fazia parte da
canção. Era a canção. 10
O caráter performativo da canção era composto por
todos os elementos que integravam o evento. Analisar a

112
canção do repentista somente por seus versos, ou sua me-
lodia, ou pelo gestual do intérprete pode ser tão válido
quanto redutor para se pensar a potência estética do acon-
tecimento artístico. Por mais que a análise de cada ele-
mento separadamente possa aprimorar o conhecimento acerca
do fato, é somente em seu caráter performativo, que inte-
gra toda a substância presente no presente, inclusive os
barulhos e gestos do mundo, que a canção pode se efetivar

10 Idem, p. 32.

como um “encontro luminoso”.11


No processo criativo do Documentário podemos des-
tacar alguns momentos em que o ruído do mundo se fez pre-
sente, impactando os artistas, que, de algum modo, buscaram
carregar reverberações deste impacto para o espetáculo. O
que pode ser observado, entre outras situações, na relação
que os artistas travaram com Denis, um menino de doze anos
que morava na casa ao lado, vizinha à sede do grupo. Um
dia, durante o processo de criação de Pretérito Imperfei-
to, o menino relatou ao grupo a história de três gatos que
haviam sido deixados naquela casa recém-alugada pelo grupo
para ser a sede do Documentário. Os antigos moradores ti-
113

nham esquecido os gatos na casa depois de irem embora. Os


animais ficaram trancados ali por dias, até que os vizinhos
perceberam e conseguiram quebrar o vidro de uma das jane-
las para que os gatos pudessem sair da casa. Na parede da
cozinha ainda se podiam ver as marcas das unhas dos gatos
que, provavelmente, buscavam alcançar uma alta janela ali
posicionada. Esta história foi levada para o espetáculo,
em clara proposta do grupo de carregar para o espetáculo
elementos performativos que surgiram no processo. A histó-
11 Idem, p. 33.
ria era contada pelo próprio Denis, em cena que os espec-
tadores eram levados a um jardim interno da casa, colado
à casa dos vizinhos. O menino era chamado pelos atores e,
aparecendo em uma janela no segundo andar de sua casa,
contava o caso dos gatos para os espectadores, a cada dia
agregando novos elementos narrativos à história.
Outro momento que pode ser destacado, para res-
saltar como elementos performativos podem participar do
processo de criação, está na relação do grupo com uma fa-
mília documentada que habitava o bairro Jardim Macedonia,
na Zona Sul da Cidade. O que mais marcou a percepção dos
artistas foi o fato de que todos os integrantes daquela

114
família trabalhavam muito, durante todo o dia, e se viam
em casa somente à noite, no fim do batente. O trabalho era
como um bem maior, que todos elogiavam como o que havia
de mais importante em suas vidas. Não havia pausa, tempo
para descanso, isso não parecia importante. Um dos atores
do grupo relata que, enquanto se relacionava com a família
documentada, ouvia seu mundo interno, percebia ressonân-
cias de algum ruído proveniente de suas entranhas, trazen-
do à tona a memória de seu pai, que morreu jovem, com 53
anos de idade. Seu pai se dedicara ao trabalho com o mesmo

fervor, até que foi interrompido de maneira inesperada e


irreversível. O desejo do ator era que o pai pudesse estar
vivo e que pudesse assistir ao discurso poético produzido
pelo grupo a partir da vida daquela família. Quem sabe,
assistindo ao espetáculo, o pai tivesse condições de re-
pensar seu modo de relação com as coisas da vida.
O documentário cênico se faz para o artista, nesta
e em outras situações do processo criativo, como tensão
com o universo pessoal. A maneira de compor e de apresen-
tar as cenas está também marcada pelas reverberações de um
diálogo potente e silencioso com o que surge no ambiente
interno dos criadores, que necessariamente precisam colo-
115

car o próprio corpo em jogo. O corpo compreendido, dessa


maneira, como espaço performativo, que disponibiliza e
produz elementos variados para a efetivação do fato artís-
tico: gestos, sensações, emoções, afetos, imagens, sonori-
dades, memórias. Além do barulho do mundo ao redor, o pro-
cesso criativo está marcado pelo som das entranhas, pelos
ruídos que ressoam no corpo dos artistas e espectadores, e
colaboram decisivamente para que o acontecimento se reali-
ze como performance e se efetive como um e n c o n t r o
luminoso.
116 117
Mapear Histórias, ou
como disse Guimarães: “o real
não está nem na chegada, nem na
saída: ele se dispõe para a
gente é no meio da
TRAVESSIA”

118 119
A Cidade como RUA, travessia. ao mesmo tempo, se arriscar a jogar e
Depois de vista por dentro, ocupada a construir materialidades artísticas
também pelos lados, do quintal ao al- em espaços abertos, amplos, públicos.
pendre, incluindo os muros e para além Se por travessia entendemos o
deles, a casa revista deseja ser re- ato ou efeito de atravessar uma re-
visitada pelo olhar do transeunte. Se gião, um continente, um mar, um mo-
nos processos artísticos o caminho é mento único nos atravessa e amplia o
tão importante quanto o lugar em que sentido da nossa pesquisa: o reconhe-
se chega, em nosso caminhar, uma sé- cimento da pertinência de aspectos que
rie de encontros nos instigaram a ver norteiam o nosso trabalho, hoje alvo
outras paisagens e a rever nossos pró- de estudos da Profa. Dra. Maria Lúcia
prios percursos. E de repente, nossos De Souza Barros Pupo (ECA/USP), de al-
desejos não se restringiam mais à in- guns alunos de graduação do curso de
vestigação da casa, mas transbordavam Artes Cênicas da Universidade Federal
pelos caminhos que percorremos para do Maranhão e da Profa. Dra. Béatrice
chegar a ela. Nascia, então, o projeto Picon-Vallin (Sorbonne- Paris III).
intitulado Mapear Histórias, ou como Para traçar esse outro cami-
disse Guimarães, o real não está nem nho, precisamos explicar como chega-
na chegada, nem na saída: ele se dispõe mos a esse lugar, espaço assumida-
para a gente é no meio da travessia. mente em trânsito, um território de
Travessia de um grupo que desejava am- incertezas. À medida que a pesqui-
pliar sua pesquisa, literalmente, para sa se concentrou na sede do Teatro
outros espaços: lugares fechados, pe- Documentário, o trânsito pelo bair-
quenos, particulares; mas, também, e ro proporcionou maior diálogo com os
nossos vizinhos extramuros. Durante
120 121
as preparações da encenação Pretérito saída nem na chegada: ele se dispõe
Imperfeito, começamos a criar laços para a gente é no meio da travessia.
com os funcionários do mercadinho da Nele realizamos intervenções teatrais
Vanessa, da padaria Abelinha, da lan de caráter documentário em quatro di-
house do Zé Pernambucano, da sapataria ferentes estabelecimentos – Salão de
do Seu João. Uma das atrizes da com- Beleza Extravagance, Bar Casa do Nor-
panhia passou a frequentar o salão de te Guaxinim, Brechó da Delourdes e do
beleza da Luzimar, que fica na esquina Luís, Transportadora Penna – locali-
da Rua Maria José, e a ouvir os “cau- zados na rua onde fica a Casa do Teatro
sos” da rua. Depois de voltar desses Documentário, no bairro da Bela Vista,
lugares e chegar a nossa casa, come- para uma plateia de convidados (vizi-
çamos a trocar as histórias ouvidas nhança), no intuito de recuperar as
nesses estabelecimentos e a observar histórias que as pessoas que convivem
como a nossa rua e as imediações pul- nesses lugares têm sobre o bairro, a
savam em vida. Percebíamos a diferença rua e o próprio estabelecimento.
de tantas outras ruas por onde passa- Novamente, os encontros ao
mos no projeto anterior. Pensamos no longo do caminho foram de vital im-
Sr. Guilherme, nosso documentado da portância. Os representantes dos gru-
Zona Norte, que mora num condomínio pos parceiros (que trabalharam conos-
fechado com churrasqueira, sala de gi- co no projeto anterior), atendendo aos
nástica, playground e fácil acesso de nossos pedidos, ofereceram workshops
carro ao Shopping Center Norte. Tudo abertos ao público em geral, mas des-
programado para não se sair à rua, que tinados principalmente para a nossa
silenciosa e vazia, como afirmou Gui- vizinhança. Os workshops foram mi-
lherme, se tornou insegura! Assim, nistrados por integrantes de diferen-
como consequência direta de um pro- tes grupos de Teatro que propuseram
jeto que pensava a Cidade como casa, práticas artísticas com o intuito de
partimos para a rua. E em agosto de desvendar geograficamente as imedia-
2011, fomos contemplados pela segun- ções da Casa do Teatro Documentário
da vez (agora na décima nona edição) no bairro da Bela Vista.
pela Lei de Fomento ao Teatro para a A ação foi proposta como um
Cidade de São Paulo, com o projeto in- prolongamento dos encontros entre gru-
titulado M a p e a r H i s t ó r i a s , ou como pos realizados no projeto anterior.
disse Guimarães o real não está na Mas aqui assumimos um discurso no pre-

122 123
sente. Entendemos ser urgente a apro- ímos nossas pinholes, fotografamos e
ximação entre coletivos diferentes, e aprendemos a revelar no tempo e com as
desejamos que ela realmente seja efe- condições necessárias para captura da
tiva, processual e afetiva. imagem. Na verdade, novamente a propo-
A Companhia Teatro Documentá- sição consistiu num dispositivo para
rio acredita ser essa real aproximação conversas com a vizinhança e numa ma-
indispensável para um aprofundamento neira sutil de começarmos a nos apre-
de reflexões sobre procedimentos e pro- sentar. Vizinhos fotografados, inclu-
posições estéticas, além das referen- sive, vieram até nossa sede para pegar
tes ao movimento de grupos na Cidade a foto tirada. Com a Antropofágica,
de São Paulo. Os workshops ocorreram construímos instrumentos com objetos
em nossa sede e nas ruas da vizinhan- variados no workshop “Musicalização:
ça. Teatro de rua ou Teatro na rua? o som da rua: o ouvido pensante”. E
Com essa questão, os integrantes da cantando uma música da esquerda ita-
Brava Cia., lançaram uma série de pro- liana, “Bella Ciao”, saímos pelas ruas
posições que percorriam os caminhos do da Bela Vista. Oferecendo uma cena ou
jogo e do improviso. A todo tempo fomos uma serenata composta por vozes e ins-
estimulados a pensar em como iniciar, trumentos inusitados, fomos nos apro-
como sair de um jogo? Em subgrupos, ximando ainda mais dos nossos futuros
chegamos a formulações em estabele- documentados. Com a vivência e o ma-
cimentos. Um grupo, por exemplo, es- terial teatral e audiovisual coleta-
colheu o Templo da Carne, restaurante dos, elaboramos uma série de pequenos
localizado na Avenida Treze de Maio, documentários cênicos, compartilha-
cujos pratos têm valores altíssimos. O dos numa espécie de mostra intitulada
ponto alto da cena foi quando o grupo Vértice – cartografias cênicas sobre e
de atores perguntou para o funcioná- para Maria José. Vale ressaltar que em
rio do estacionamento do restaurante: todas as cenas nos estabelecimentos,
“Você já almoçou aí onde você traba- os atores da companhia contracenavam
lha alguma vez?”. E ele com convicção com os próprios documentados, dentro
afirmou: “Não”! de jogos cênicos que permitiam à pla-
Já com o coletivo Dolores Boca teia conhecer as histórias da rua e do
Aberta Mecatrônica de Artes, em dois próprio lugar.
encontros distintos nosso desafio foi
colocar a Bela Vista na lata! Constru-

124 125
“ Ainda que muitas vezes optemos por re-
forçar o valor da oralidade nas nossas
propostas como uma espécie de “desau-
tomatização” dos sentidos amortecidos
pelas tantas iconografias que consumimos
diariamente, entendemos que a imagem
diz de forma diferente da palavra,
e por isso, caro leitor, nos ocupa-
mos desses dizeres, que às vezes
começam a falar ainda quando
são projetos gráficos e vão
bal buciando linhas, cores,
texturas, luzes e outros
detalhes quase cinema-
tográficos até os úl-
timos instantes da
nossa
encenação. (

Por Natália Lemos).

126 127
“E as pessoas
que passarem
Irão dizer-me:
a !
Que flor tão lind
É esta a flor
Minha querida,
adeus, minha
querida, adeus,
minha querida,
adeus! Adeus! Adeus!
É esta a flor do homem da Resistência
Que morreu pela liberdade”

Fragmento de
uma canção po-
pular italiana,
cantada pelos
soldados da re-
sistência, cunhada
pela atriz docu-
mentarista Priscila
Clemente durante as ofi-
cinas de instrumentalização
com sucatas
128 129
Além de fazer parte da nos- cena em que Nelson, baiano, ex-interno
sa pesquisa estética e de configurarem do Lar Transitório Batuíra e padei-
elaborações teatrais, as ações moti- ro, juntamente com Natalia, paulis-
vavam a discussão sobre o fenômeno que tana, atriz, compartilhavam a feitura
está transformando as ruas em não lu- de pães e materialidades artísticas na
gares, ou seja, em espaços de passa- Casa do Teatro Documentário.
gem, de rápida circulação. A maioria Numa outra, Joventino (trans-
das ruas enquanto espaço público já portador) e Elaine (atriz) Eram dois
não propicia mais o encontro de pes- pássaros sedentos: um morreu afogado,
soas, um ponto fundamental na formação o outro secou malogrado: secaram sol-
e na ação entre moradores de um mes- teiros. Era assim a cena onde Joven-
mo bairro. Para nós, quando a rua não tino, baiano, dono da Transportadora
é mais um lugar de vida social, seus Penna, e Elaine, paulista, atriz, re-
olhos se fecham. Mas o que são, ou me- memoravam seus (des) amores e seus es-
lhor, quem são os olhos da rua? São os quecimentos, em meio às coisas/merca-
donos e funcionários de padarias, mer- dorias abandonadas pelos seus donos no
cearias, lojas, pequenos serviços que galpão da transportadora. A cena ocor-
funcionam como “olhos atentos”, mais ria após a plateia ser “reapresentada”
eficazes do que a iluminação pública. às ruas do entorno da transportadora
Exatamente aquelas pessoas que esta- por uma narrativa que impedia a visão
vam em cena com a gente, personificando de pontos turísticos narrados impe-
a vida que ainda resiste em nossa rua, lindo-a a experimentar ser ela própria
a Maria José, e em outras das imedia- coisificada.
ções. E como se dava a constatação? Havia ainda a da Rose (cabe-
Por meio da presença. lereira) e do Guga (ator): dois pás-
Para isso, a plateia era saros cansados: um de tanto voar pra
convidada a entrar nos comércios, den- seu ninho encontrar e o outro de tanto
tro dos quais atores e documentados pela Julieta chamar... Dançaram um nos
a esperavam. Numa das cenas, Nelson braços do outro, sonhando o encontro.
(padeiro) e Natália (atriz) Eram dois Era assim a cena onde Rose, cearense,
pássaros pequenos: salpicando um pão, proprietária do pequeno salão de bele-
entoando um canto, esquentando um ni- za Extravagance, contava pra plateia
nho abracadabra; era uma vez uma pri- como foi sua chegada a São Paulo e
são que não era mais. Era assim a tudo o que enfrentou para se estabe-

130 131
lecer como comerciante na Bela Vista. As proposições cênicas jun-
Ao mesmo tempo, Guga, paulista, ator, tas ligadas pela travessia perfizeram
confidenciava seu desejo de ser um Ro- a encenação. Os ensaios e as dezesseis
meu. apresentações foram responsáveis pelo
Márcio e Fernando Eram dois estreitamento de laços com a vizinhan-
pássaros certeiros, um querendo ser ça, chegando a mobilizá-la totalmente
outro, querendo não ser incertos, se para os dias de encontro com o públi-
reconheceram. Era assim que Fernando, co. Recebemos até cartas espontâ-
sergipano, violeiro, poeta e cantor da
Toca do Guaxinim se apresentava junto neas de vizinhos, como a do do Sr.
a Márcio, paulista, ator, rememorando José D’amico, do número 183, na
o que havia sido (ou não) o seu passa- qual resolve “evocar velhas lembran-
do ainda presente. ças” motivado pelos ensaios que ouvia
da janela. As primeiras plateias eram
Em primeira pessoa, narro minha supos- principalmente formadas de outros vi-
ta trajetória como mágica, zinhos, familiares, clientes dos es-
uma opção que comenta de maneira lúdi- tabelecimentos documentados.
Ainda nesse projeto, propuse-
ca” a história de Nelson. mos também duas intervenções que aca-
Uma mágica. Eu e Nelson libertamos um baram por não participar do Vértice.
pássaro da gaiola . Num processo cênico com um tempo de
experimentação expandido, surgiu uma
No final a plateia come o pão feito pelo parceria entre os Marcelos num requin-
nosso documentado com tado espaço para a escuta e as com-
ingredientes criados por elE, pras de longa duração. Já na polifonia
e conversa. de vozes que acompanham as cores, os
cheiros e os gostos ao ar livre, rea-
lidade e ficção se fundiram num tempo
Por Natália Lemos com dia e horário delimitado. Hamlet,
comerciantes e compradores se reve-
zavam em atuações sincronizadas para
nos deixar ver com lente de aumento a
feira, além do comércio.
Apesar de muito joviais, os

132 133
dois Marcelos (o do antiquário Via 13
e o da Cia. Teatro Documentário) gos-
tam de lugares e coisas à moda anti-
ga. Nossa intervenção teve início com
o encontro deles. No antiquário onde
trabalha o primeiro Marcelo, trabalha
também o seu sócio, e lá não se com-
pra com a agilidade dos dias atuais.
Nesse espaço fomos percebendo que cada
coisa tinha uma história, cada detalhe
uma origem, e assim chegamos às nossas
próprias genealogias, para contar a
história dos nossos avós, com a inter-
venção: “QUEM É (foi) SUA AVÓ?”, que
ocorreu no antiquário Via 13 antigui-
dades.

134 135
O experimento narrava justa-
mente o encontro da Cia.Teatro Do-
cumentário com dois comerciantes de
origens distintas –seres opostos que
se completam – Itália e Portugal. A
experência vivida discutia questões
de apego e de não apego aos bens ma-
terias. Os objetos possuem memória?
Os seres humanos se tornam objetos?
O objeto, ser humano ou não, ao ser
restaurado, passa a ter outro valor?
No bairro da Bela Vista, o estabeleci-
mento comercial repleto de coisas por
todos os lados se tornou uma metáfora
para todos esses questionamentos.
Num outro momento, a partir de
uma conversa com a encenadora argenti-
na Vivi Tellas, nos motivamos a pensar
em uma intervenção na feira livre que
ocupa a rua Maria José às sextas-fei-
ras. Há mais ou menos dois anos con-
vivemos com o barulho, o cheiro e as
pessoas que ali trabalham – peixes,
frutas, legumes e pastéis. A relação
de fregueses/vizinhos nos fez pensar
na possibilidade de atuarmos dentro
desse espaço artisticamente. Sob essa
ótica, investimos em pesquisar as pos-
sibilidades de encontros entre perso-
nagens da ficção (clássicos do Teatro
Mundial) com a realidade concreta do
espaço.
Dessa investigação surgiu a
intervenção: Há algo de podre no

136 137
reino da Dinamarca”. Na hora da xepa parceiros e convidados, ficou bastante
(fim de feira), entre sobras e fregue- intensa) surgiram duas preocupações:
ses, restos de personagens shakespea- cuidar para não extrapolar os limites
rianos procuram suas partes. Os textos definidos pelos vizinhos mais reserva-
de William Shakespeare entram em con- dos e firmar acordos sólidos com os es-
tato com a concretude do lugar, e nes- tabelecimentos parceiros nos espaços
sa fricção, se transformam, se ressig- que desejavámos documentar em nossa
nificam e se tornam acessíveis àqueles encenação final.
que os escutam. O limite entre ficção e Alimentados por tantos encon-
realidade se tornou um dos “motores” tros e aquecidos por muitas ações re-
desse processo. A representação, de alizadas, nesse projeto chegamos à rua
Hamlet, se con(funde) com a da feira. desejosos de abordá-la não como espaço
“Hamlet (no centro da feira, de passagem, mas sim como caminho por
na hora de xepa): me mostra o homem onde paira a memória dos arredores.
que não é escravo da paixão, e eu o Na encenação Este Vasto Terço
conservarei no mais fundo do peito. É de Vosso Belo Reino, resultado do pro-
no coração do coração, por isso hoje jeto fomentado em 2011, convidamos a
há uma representação. Peço que quando plateia para passear com os atores por
vires a cena em questão observes bem. um terço de nossa rua.
Se a culpa que você esconde não se Na travessia, os documentados
manifestar, então, estamos diante da abriram as portas de seus estabeleci-
representação do inferno.” mentos para receberem os espectadores,
Hamlet não é o protagonista algumas vezes até sem a presença de
da cena/feira, ele é um dispostivo atores intermediando. Em meio a isso
que aponta para a realidade que nos tudo, muitos moradores colaboraram, e
é apresentada. Quem é a feira? Como até um menino que, fazendo mágica, se
ela era? O que existe por detrás dos destacava para com sua presença corro-
indivíduos que trabalham ali? A his- borar a ideia de que a rua ainda pode
tória da feira se materializa através ser um lugar de convivência, um es-
dos trabalhadores. A feira é a prota- paço familiar, onde encontramos nos-
gonista. sas raízes e referências de mundo. O
À medida que os laços com a rua ato cênico propunha a desconstrução da
foram se solidificando (nossa presen- rua como espaço de simples circulação
ça, assim como o trânsito dos nossos de mercadoria, que contribui para a

138 139
ode aos condomínios fechados, já que sivamente a essa vertente no país”. A
ali tudo pode ser resolvido em “casa”, opção do jornalista foi apresentar as
longe do encontro com a diferença. O propostas da encenadora Vivi Tellas,
ato de documentar nesse contexto re- da Argentina, de Stefan Kaegi, inte-
presentou um movimento de valorização grante do coletivo Rimini Protokoll,
do passado e da memória, adquirindo e as nossas. As conversas com o jor-
um caráter de resistência contra va- nalista para a realização da matéria
lores disseminados pelo primado das nos motivaram a conhecer pessoalmente
relações de mercado sobre as relações Stefan Kaegi, uma referência em nosso
humanas. trabalho que, por coincidência, esta-
Documentar cenicamente par- va no Brasil para congresso da ABRACE
te dessa Bela Vista dos pequenos co- (Associação Brasileira de Pesquisa e
merciantes, dos moradores que vivem a Pós-Graduação em Artes Cênicas).
conversar nas ruas, das crianças brin- A partir desse encontro, Ste-
cando nas calçadas, dos idosos com as fan se interessou pela nossa proposta
cadeiras em frente a residências, pas- e nos convidou para participar como
sou a ser um ato artístico/político grupo observador de um festival que
na contramão da modernização padro- integra um projeto chamado CIUDADES
nizada dos bairros silenciosos e sem PARALELAS, que aconteceu ainda em no-
diversidade. Pedimos mais uma vez li- vembro na Cidade de Buenos Aires. No
cença, caro leitor, para fazer uma pe- projeto CIUDADES PARALELAS, Stefan
quena digressão antes de continuarmos junto a outros artistas, realizou in-
para falar um pouco do projeto de que tervenções de caráter documentário em
esse livro também faz parte como ação/ vários espaços públicos dos arredores
resultado. de Buenos Aires. Todos os integran-
É preciso falar sobre o re- tes da Cia. Teatro Documentário foram
conhecimento que começamos a ter por para Argentina e acompanharam por uma
causa dos encontros propostos pela semana o projeto, num contato dire-
companhia. Em matéria de capa sobre to com Stefan. A vivência com certe-
Teatro documentário no mundo – publi- za reiterou nossa vontade de atuar em
cada no caderno Ilustrada, do jornal lugares para “além de uma casa”. Esse
Folha de S. Paulo, de 17 de novembro de sair é uma maneira de reconhecermos os
2010 – nossa companhia é citada como arredores de nosso bairro como casa.
“uma das primeiras a se dedicar exclu- Retomando a trajetória de nossas in-

140 141
vestigações, outro ponto que coinci- sobre Teatro Documentário. Inclusive,
diu com a proposta estética da ence- para explicar como foi viável o pro-
nação de Pretérito Imperfeito foi a jeto, Picon-Vallin esclareceu sobre a
presença dos documentados em cena. Em Lei De Fomento ao Teatro para a Cida-
várias intervenções em Buenos Aires, de de São Paulo. Além disso, em 2012,
a própria pessoa documentada relatava fomos convidados pela professora Dra.
suas experiências à plateia. Em virtu- Béatrice Picon Vallin para integrar-
de dessa característica das interven- mos uma publicação a respeito de Tea-
ções, no começo de 2011, fomos procu- tro documentário no mundo, em que es-
rados pela Profa. Dra. Maria Lúcia de taremos representando o Brasil.
Souza Barros Pupo (ECA/USP) para que Mesmo não atrelados a uma di-
o nosso trabalho pudesse ser alvo de vulgação midiática, dada a necessidade
uma pesquisa que ela então encabeçava das primeiras apresentações serem de-
em torno de processos contemporâneos dicadas aos próprios moradores da Rua
de criação teatral e pedagogia, ten- Maria José, arredores e familiares,
do como agência financiadora o CNPq. A despertamos o interesse da pesquisa-
professora conheceu nossas propostas dora pelo diferencial da proposta. A
e verificou a pertinência delas dentro companhia, além de ficar impactada com
da perspectiva de um fazer teatral que o olhar da pesquisadora sobre nosso
não dissocia “a depuração artística projeto, também ficou feliz por contri-
do crescimento do homem”, nas pala- buir para a visibilidade da lei de in-
vras da pesquisadora. Por sua vez, a centivo à pesquisa e produção teatral
Profa. Maria Lúcia Pupo nos colocou no exterior. O contato continuado com
em contato com a Profa. Dra. Béatri- a pesquisadora tem possibilitado o le-
ce Picon-Vallin, pesquisadora france- vantamento de questões interessantes
sa que estava no Brasil a convite da sobre nossa prática.
ECA/USP para ministrar uma disciplina
na pós-graduação. Picon-Vallin conhe-
ceu nosso trabalho, assistiu em vídeo
nossas intervenções e resolveu escre-
ver sobre Teatro documentário no Bra-
sil, tendo nosso projeto como objeto
de análise. Na França, a professora
apresentou o trabalho num Congresso

142 143
“Queríamos contar um terço da história
da Rua Maria José, que fica logo ali
na Bela Vista. Por isso encenamos
“Este Vasto Terço de Nosso Belo
Reino”. Muitos espectadores que viram
esse trabalho eram os próprios moradores da
Rua... Caminhando junto dos atores tanto
nos ensaios quanto nas apresentações e, em
inúmeros momentos, pela palavra, entravam
na cena para complementar uma informação ou
outra sobre a historia da rua ou simples-
mente palavrear que era um morador dali e
que sim, o que estava sendo discursado
teatralmente, procedia.
Como já mencionado, acreditamos ser de suma
importância contar com o diálogo das fon-
tes de pesquisa – “os documentados”
– sempre que possível, para referendar os
discursos apresentados, ou ainda,
para enviesar ainda mais a narrativa .
REDES DE FIOS vazios que indicam sons e
movimentos juntos preenchem o espaço
criando um outro tempo no aqui e agora.
Uma situação possível para que
o nosso olhar sobre a realida-
de seja contaminado por poesia”.
Por Gustavo Curado

144 145
146 147
Com a finalidade de apresentar mente no que se refere à coleta dos
o caráter diálogico da nossa propos- dados documentais e o trabalho com e
ta, realizamos, na Casa do Teatro Do- sobre eles.
cumentário, um encontro entre grupos, Contudo, aqui nosso foco de
organizado em dois dias distintos (no- investigação, como mediadores da pes-
vembro de 2011), a fim de discutir ação quisa esteve voltado para a questão
cultural em Teatro. O evento foi co- das proposições. Perguntávamo-nos
ordenado pela Profª. Drª. Maria Lúcia quais procedimentos, de que maneiras,
Pupo e pelo Prof. Dr. Flávio Desgran- em que tempos e a partir de quais
ges. Como anteriormente mencionamos, referenciais nossas propostas seriam
reconhecemos que várias das ações que lançadas aos participantes inscritos,
nutrem nossos discursos artísticos po- a fim de que os experimentos vivencia-
dem ser qualificadas como proposições dos pudessem suscitar investigações,
culturais. Dessa forma, consideramos materialidades artísticas e autorias
bastante pertinente os debates em tor- significativas.
no das aproximações da ação cultural e Após um período de apropria-
a produção artística. ção da linguagem cênica e documental
Impregnados por esse encontro (nota: entre os inscritos havia pes-
e acompanhados por uma formação em Pe- soas de áreas distintas como Letras,
dagogia do Teatro, propusémos uma ofi- Fotografia, Jornalismo), os atores da
cina gratuita em Teatro Documentário companhia, acompanhados por uma orien-
com a participação de 20 pessoas ins- tação pedagógica, como artistas orien-
critas por meio de carta de interesse, tadores, convidavam os participantes
durante um período de quatro meses. a percorrer as ruas da Bela Vista,
Nelas, houve a retomada das discussões nas imediações da Casa do Teatro Do-
e práticas em torno das intervenções cumentário, na busca de histórias que
nas casas de pessoas em diferentes zo- advinham dessas ruas e que eles gosta-
nas da Cidade de São Paulo, principal- riam de documentar cenicamente. Nossa

148 149
sede permaneceu disponível (em horá- nielle Lopes se tornaram artistas con-
rios extraoficina) como espaço convi- vidados da encenação Este vasto Terço
dativo para organização do material e de Nosso Belo Reino.
apresentação das propostas, retoman- Além disso, os participantes
do, inclusive, nossa experiência com da oficina Caminhos em Teatro Documen-
o projeto passado, embora os grupos tário foram estimulados a também par-
participantes tenham, em sua maioria, ticipar dos cursos de formação teóri-
optado pela utilização do espaço real ca, oferecidos em nossa sede e abertos
como elemento significante da proposta. a interessados. Os encontros se orga-
Além da discussão sobre as cenas ela- nizaram em torno dos temas Arte e Po-
boradas, a análise também recaía sobre lítica, com a coordenação de Luís Sca-
a maneira como o material havia sido pi (integrante do NEP Treze de Maio);
coletado: princípios, procedimentos e Fabricalização da Cidade e ideologia
metodologias. A oficina possibilitou da circulação, com a coordenação de
que obtivéssemos outra percepção da Terezinha Ferrari; e Curso teórico
nossa rua; através das materialidades sobre arte contemporânea (especifica-
cênicas que eram produzidas, percebí- mente sobre intervenção urbana/per-
amos como os participantes enxerga- formance), com a artista visual e ar-
vam nossa vizinhança. Nosso processo te-educadora Lilian Amaral.
literalmente começou a partir de um As discussões tecidas nesses
olhar estranhado, não habituado, so- encontros teóricos nos ajudaram a re-
bre nosso alvo, sobre aquilo que nos formular as estratégias de apresenta-
preparávamos para documentar. ção do 2º Colóquio de Teatro Documen-
A todo momento incentivávamos tário – Processos Criativos, realizado
os participantes mais interessados a durante 15, 16 e 17 de outubro de 2012,
investir em suas pesquisas pessoais e/ no Teatro Ruth Escobar, com público
ou acompanhar mais de perto as nossas. estimado de 100 pessoas por dia, en-
Foi dessa forma que Alan Paes e Da- tre elas estudantes do curso de Artes

150 151
Cênicas da Faculdade Paulista de Artes fim, desejávamos atuar de algum modo
e grupos de Teatro em geral. como “olhos da rua”.
Nesse segundo colóquio, os ar- A partir dessa experiência,
tistas chamados para compartilhar seus uma questão tem movimentado nossos
processos em documentário foram: Nel- debates e ela recai sobre a percep-
son Baskerville, diretor teatral da ção de que ao longo desse processo
peça Luís Antônio Gabriela , de intervenções, bem como em outros
Lucas Bambozzi, artista multimídia momentos da nossa trajetória, obti-
e o diretor teatral do grupo Teatro vemos verdadeiros achados cênicos que
de Narradores, José Fernando Azeve- mereceriam ser investigados mais a
do. Nas avaliações sobre o colóquio fundo no período de suas descobertas.
percebemos que amadurecemos pedagó- No entanto, talvez eles tenham sido
gicamente ao articular as referências abandonados em detrimento de caminhos
trazidas pelos convidados. A estraté- planejados anteriormente à prática.
gia funcionou como um convite à pla- Indagamos, então, sobre como devemos
teia para acompanhar o evento como um nos organizar para retomar esses acha-
todo. Nesse espaço, foi possível pen- dos em nosso acervo. Escrever so-
sar o lugar transitivo do artista como bre nossa memória foi provavelmente o
propositor, mediador e professor. primeiro passo para essa organização.
Essa série de ações, em con- Por isso, a seguir apresentamos outras
junto com as intervenções realizadas tentativas de resgate dessas experi-
nos estabelecimentos comerciais dos ências.
arredores de nossa sede, consolidou
uma efetiva aproximação dos integran-
tes da companhia com o espaço tran-
sitório da rua. Aos poucos, um olhar
mais apurado, voltado aos espaços pú-
blicos, foi sendo desenvolvido. Por

152 153
154 155
Se não me falhe a memória... zes, o trabalho do grupo começa no
a quatro anos atrás, meus pais vol- chão. Ali despertam os corpos com
taram a morar na casa onde nasci; suas tristezas e alegrias adquiridas
visitá-los agora é reviver as memó- ao longo da vida. Nesse acordar, os
rias presentes naquele lugar, neles, artistas da companhia transpiraram
em mim. O mesmo corredor escuro e o para trazer a experiência do corpo
medo que sentia ao caminhar sozinho em cena, tudo aquilo registrado por
por ali, o mesmo quintal repleto de meio dos olhos, câmeras, canetas e
árvores. Agora, outros cachorros en- conversas. Dilatamos o espaço inter-
toam os latidos pela manhã, a mesma no do corpo para o acontecimento da
cozinha, mas dentro dela não estou palavra – o falar tranquilo de Mal-
mais sentado com meu pijama listrado vina (documentada do projeto COMO SE
chorando por ter que ir para a esco- PODE BROTAR POESIA NA CASA DA GEN-
la. Há dias meu corpo muda. TE?). A relação do pé com o chão –
É sobre a experiência do os olhos profundos de João (documen-
corpo, vivida por mim e pela com- tado do projeto A M O R T E n a V I D A
panhia nos últimos quatro anos que d a g r a n d e c i d a d e ). O tamanho da
escrevo agora, sobre sensibilizar passada, as pausas, o peso e a opo-
nossas vozes e lugares no mundo, so- sição – o peito aberto de Fernando
bre a memória dos encontros que vem ‘poeta’ (documentado do projeto Ma-
marcando a nossa carne, nossa pele, pear histórias). Os movimentos retos
nossos ossos, sobre o mundo do in- ou sinuosos – as mãos expressivas de
térprete, que começa lá fora, entre Guilherme (documentado do projeto
casas, prédios, comércios, calçadas, COMO SE PODE BROTAR POESIA DA CASA
ruas e avenidas até chegar na sala DA GENTE?).
de ensaio, lugar esse da prática, da É necessário compreender,
construção coletiva de conhecimen- sem ser tecnicista, que o lugar da
to, sobre deitar-se no chão e arti- técnica no nosso trabalho sensibili-
cular o corpo inteiro, reconhecendo za o ser humano artista e dá reper-
limites, sobre caminhar olhando para tório de criação para o ator fazer
o espaço e as pessoas dentro dele, suas opções estéticas e pensar for-
como se fosse a primeira vez, ou mas de propor experiências ao pú-
como se fosse a última. blico. O ator-documentarista não se
Como uma árvore e suas raí- esquece da ética ao lidar com o re-

156 157
lato de seus documentados, suas
escolhas têm a intenção de desco-
brir no sujeito outros sujeitos,
famílias, Cidades, histórias. “Com seus
“A dificuldade é valorizar pássaros ou
as pessoas, sacar quem você é, a lembrança
onde está seu estômago, como que de seus
ele é, como é que eu sou, o meu
tamanho, se respeitar como ser pássaros,
humano. Essa coisa do ‘ser huma- com seus
no’ é muito importante. Enquanto filhos ou a
você não tem o ser humano, você lembrança de
não tem o bailarino” (Klauss
Vianna). seus filhos,
Como numa dança, o ator com seu povo
que baila se abre para se encon- ou
trar no outro. Cada musculatura a lembrança
registra em sua memória as expe-
riências vividas, os movimentos de seu povo,
dos ossos querendo chorar, fu- todos emi-
gir, gargalhar, abraçar, morrer, gram.”
viver. Assim, a ação teatral se
torna o momento do renascimento,
presentifica a existência, nas-
ce naquele que faz e se completa
naquele que assiste, e morre, à
espera de um novo renascer.
Fragmento de tex-
Por Márcio Rossi to dramatúrgico
cunhado pela atriz
documentarista
Danielle Lopes

158 159
“Nessa casa, Álvaro vive “Um muro, duas portas e uma jane-
la. Um grafite de um passarinho
há mais de sessenta anos. Sua redondo e rosa. Restos do que um
mãe foi professora de diver- dia foi uma casa. Do outro lado da
sos moradores da vizinhança. rua, uma frase: ‘Afinal, tudo que
Da vizinhança do saudosismo do é sólido se desmancha no ar’”.
senhor Álvaro. Da vizinhan-
ça que saiu daqui e deixou seus
fragmento de texto dramatúrgico
imóveis arrendados...O senhor cunhado pela atriz documentarista
Álvaro é um remanescente. Não Danielle Lopes
reconhece o sotaque de ontem e
talvez se incomode com o sota-
que de hoje”.

Fragmento de texto dramatúrgico


cunhado pelo ator documentarista
Alan Paes

160 161
Este Vasto Terço do Nosso Belo Reino

por Stefan Kaegi1


Tradução Laura Brauer
Numa sexta-feira à noite do outubro passado, andei
com um pequeno grupo de espectadores de Teatro por uma das
ruelas da Bela Vista, bairro construído por italianos e
hoje habitado predominantemente por nordestinos, sem que
com isso os restaurantes finos dali tenham desaparecido.
Fomos conduzidos pelos atores e atrizes do grupo

162
Teatro Documentário, e só pelo fato de termos sido con-
vidados a assistir uma encenação naquela noite, a rua
transformou-se em Teatro. As casas se transformaram em
cenários, moradores em atores e transeuntes em figurantes.
Quando nos detivemos diante de um bar, por exem-
plo, os que bebiam ali logo pararam de beber e se incli-
1 Encenador suíço, cofundador do coletivo alemão Rimini Protokoll e especialista intervenções documentais
e radiofônicas, com parcerias colaborativas diversas em ambientes urbanos. Produziu entre outros “Call Cutta
in a Box”, “Chácara Paraíso”, “Airport Kids”, “Remote São Paulo”.

naram olhando para nós, expondo seu vício habitual, como


os atores olham para a plateia ao fazer um aparte, como
às vezes requerem dos atores as indicações em itálico da
Commedia Dell’ Arte.
Numa pitoresca academia de ginástica, uma mulher
caminhou sem sair do lugar, provavelmente do mesmo jeito
que fazia todas as noites. E, no entanto, ela caminhou,
para além do seu propósito saudável, rumo a uma esfera me-
tafórica, na qual o seu ato desmascarou todas as perfuma-
díssimas academias de ginástica dos “Clubes” de Pinheiros
e dos Jardins.
E quando Marcelo Soler se dirigiu pela janela, a
163

uma senhora idosa que evidentemente morava ali (a janela


naquele momento virou palco e as cortinas à esquerda e à
direita viraram uma cortina vermelha, típica dos palcos
tradicionais), ali se pôde notar que ela perguntava (ao
Marcelo): “Amanhã tem apresentação de novo?” , em plena
encenação, que, neste caso, teve a quarta parede erguida
não pelo Teatro, mas sim pela idosa atriz que tinha es-
quecido que era atriz.
A minha capacidade de recordar também enfraquece
com a idade, e eu não me recordo mais de todos os textos
que naquela noite nos aproximavam da história da rua, mas
a experiência da teatralidade em meio ao cotidiano e da
sua simultânea desconstrução através de um espaço social
bem direto e caloroso, que envolvia essa produção, perma-
neceu viva em mim por dias e dias.
E por isso eu exclamo, exatamente do mesmo jeito
que a mulher que reconheceu os atores e seu público do
balcão de seu bar preferido: - “Olha só! Lá vem aquele
pessoal maravilhoso do Teatro!” – e talvez assim eu me
torne uma parte desse ‘Teatro do mundo’, do mesmo modo
como naquela noite essa mulher se tornou para mim. Desse
Teatro do mundo que acontece de forma tão humana e direta

164
ao nosso lado, que
faz do espectador um ator e do ator um espectador,
que desalinha as regras da sociedade, porque nesse Teatro
do mundo já não existe “em cima” e “em baixo”, porque cada
um escolhe para si o que vê e define seu papel, porque aqui
nenhum político desligado da realidade representa seus
eleitores, mas cada pessoa se representa a si mesma - aqui
fazer Teatro não significa interpretar, mas sim atuar jun-
to, (brincar) jogar junto, viver junto.
A MORTE NA VIDA DA
GRANDE CIDADE

167
Em 1940, na Cidade de Taba- O corpo pedia mergulho nos lençóis.
tinga, interior de São Paulo, viviam Francisca arrematava as rou-
João e Francisca, que de tanto amor pas, organizava o tempo, continuava
que sentiam, queriam morar um dentro a vida. Foi interrompida numa tarde
do outro. E assim fizeram. Tanto que da como outra qualquer, no dia primeiro
Francisca nasceram: Ana, Afonso, Isa- de abril. Seu irmão, também trabalha-
bel, Dirce e Maria. Mas antes disso, dor da Pontè, vinha acompanhado de um
como era costume da época, eles se ca- senhor distinto que era o gerente da
saram. A família da Francisca morava fábrica e trazia uma notícia aterra-
em São Paulo e dessa Cidade diziam que dora: João tinha sofrido um ataque do
as luzes vestiam as calçadas. Antes coração e estava vestido, pronto para
de deixar Gavião Peixoto, um clique ser velado sobre a mesa da Francis-
em preto e branco: olharam feio pro ca. Fecharam a fábrica para o enterro
passarinho. A fotografia responsável, e mais de cinquenta carros compuse-
de terno e gravata, configurava a des- ram o cortejo. O patrão, num gesto
pedida de uma vida difícil. E inaugu- de extrema e curiosa bondade, doou o
rava o álbum de família. terreno no cemitério da Vila Mariana
Na Estação da Luz começou a para João descansar. A família foi
desilusão: parece que nem era tão bo- até a fábrica, observou o ouvido ver-
nita aquela Cidade que morava na ca- melho de sangue e estranhou. Apesar
beça deles. No bolso da família, só disso, se calou. Quem não tem chão,
cabia uma casinha da Vila Prudente, cala com grado. Francisca desesperou:
numa rua sem asfalto. Lugarzinho mais nunca mais esperaria o marido às oito
ou menos. Para trabalhar, pai e filhos da noite.
encontraram a Pontè: uma fábrica de A vida ficou diferente: hoje
rádios no bairro da Mooca. João chega- Francisca reza diariamente às seis
va em casa todos os dias, às oito ho- horas da tarde e suspira a cada fi-
ras da noite, cheio de açúcar: enchia nal de frase. Quem guarda a casa é o
os filhos de balas e doces. Apesar das cachorro Tobby, alguns dos filhos já
guloseimas, a vida passava sem muita morreram e o rádio ainda está presen-
doçura; o desejo de ir aos sábados te na vida da família. Todos os dias,
ao Rio Pinheiros ficava cada vez mais sintoniza o programa do Ely Correia
fundo, submerso, afogado. Não existia na Rádio América para ouvir o progra-
ânimo para sair aos finais de semana. ma “Que Saudade de Você”.
Elaine Grava
O texto acima foi elaborado a
partir de alguns relatos que nos foram
dados por Francisca, viúva de João,
uma senhora de 96 anos, moradora do
bairro Parque São Lucas, na Zona Leste
de São Paulo. Tivemos a oportunidade
de falar com ela numa das nossas pes-
quisas de campo para determinado pro-
cesso. Não é por acharmos interessante
o relato que o transformamos em nosso
prefácio desse cápitulo. Ele foi a ma-
téria prima do projeto que finaliza uma
trilogia. Com esse início vamos, nos
despedindo de você leitor companheiro
e também finalizando esse trajeto do
nosso caminhar pelos lugares: casa,
rua e Cidade.
Este capítulo de forma distin-
ta, dos que o antecederam, está sendo
escrito em paralelo com a realização
das ações que estamos narrando. E por
isso mesmo fique perceptível que nao
há nele o desejável distanciamento dos
fatos registrados, o que talvez torne
até mais viva a abordagem da morte que
faremos aqui.
Não tínhamos ideia que iría-
mos fazer uma trilogia. Não foi algo
pré concebido; contudo, aconteceu.
Nada mais plausível e coerente para
um grupo que trabalha documentário em
Teatro e que, portanto, acredita que
as decisões se dão ao longo da pes-
quisa. De certa forma isso justifica

170 171
o fato de que nesse registro optemos mais ausente(...)”
por retomar de forma sintética nossa Elaine Grava
trajetória. Com desejo de “transfor-
mar” esse relato de dona Francisca em
discurso cênico documental, de forma
quase premunitória começamos a deba- Diante da ironia, nos pergun-
ter a questão da morte, sem saber que tarmos sobre a nossa própria existên-
ensaiávamos a perda de uma integrante cia... O quanto de morte não há nes-
que nos faz falta o tempo todo, e so- se modo de vida automatizado nosso de
bretudo, em momentos de escrita, como cada dia, não é mesmo, leitor?
esse, porque ela como poucos sabia, Enfim, seguindo caminho,
hipinotizar as palavras. Revendo todo porque aos que ficam é de bom tom pros-
o nosso material, impossível não reler seguir, ficará evidente aqui, como no
algumas vezes, esse trecho em primeira registro dos projetos anteriores, que
pessoa ... nosso caminho atual mais uma vez passa
por encontros. Se no ciclo do mercado
“ DESENTERRAR... Talvez nada se perde, na vida a renovação vem
realmente, seja eu, Elaine Grava, com outras faces, e ainda que as lem-
a integrante da Cia.Teatro Docu- branças permeadas de nostalgias aqui
sejam evidentes, aos poucos os sorri-
mentário a melhor pessoa para de- sos sem graça abrem espaços para nos-
senterrar da memória alguns frag- sas ideias, e assim, sorrindo, vamos
mentos da nossa travessia pela Rua nos despedindo e também morrendo um
Maria José e conceber esse texto, pouquinho, não sem antes apresentar-
uma apresentação da apresentação. mos nossa última proposta, que agora
Eu estive ausente. Não no projeto quer investigar no ontem inexistente
uma Cidade que ainda hoje pulsa.
inteiro, mas em sua finalização. Depois dos encontros em resi-
Não estive presente no fim. Não dências pelas quatro regiões do mu-
foi um ato voluntário. Médicos, nicípio presentes no projeto COMO SE
doença, internação, UTI. E hoje PODE BROTAR POESIA DA CASA NA GENTE?,
estou aqui, escrevendo, pensando, das travessias nas ruas do bairro da
estudando bem isso. Hoje não estou Bela Vista, no projeto Mapear His-
tórias, ou como disse Guimarães o
172 173
real não está na saída nem na che- borando o documentário cênico João
gada: ele se dispõe para a gente é
no meio da travessia, em continuidade
e seu pedaço de chão, até
então, aparentemente, um dispositivo
a essas pesquisas desenvolvidas pela para as intervenções, a fim de cons-
Cia. Teatro Documentário sobre e para truir, a partir das inúmeras inter-
a Cidade de São Paulo, estamos agora ferências, um discurso cênico sobre o
diante da explicitação das simbolo- processo de amortecimento da Cidade e
gias da morte presentes em diversos de seus moradores. Francisca permeou
espaços urbanos para observar como se nossa memória nesses últimos anos e
dá A M O R T E n a V I D A d a g r a n d e nos parece providencial que ela res-
C i d a d e . Para isso, o material bruto surja nesse momento para fechar nosso
de uma encenação em processo, provi-
soriamente intitulada João e seu
Trajeto CASA, RUA, CIDADE. Durante o
pedaço de chão , que versa so- projeto intitulado COMO SE PODE BRO-
TAR POESIA DA CASA NA DA GENTE?, em
bre a temática, fomentará intervenções uma de nossas ações, ouvimos o rela-
cênicas urbanas de caráter documental to de Dona Francisca. Infelizmente de
em quatro diferentes espaços que, de mudança para casa de uma das filhas,
algum modo, estejam explícita ou im- ela não pôde aceitar nossa proposta,
plicitamente associados às simbolo- a realização de uma intervenção em sua
gias da morte. São espaços que também residência. No processo de seleção das
aparecem na dramaturgia documental da histórias que comporiam a dramaturgia
narrativa de Francisca e pertencem a da encenação, intitulada Pretérito
diferentes regiões da Cidade de São Imperfeito , a história de Francis-
Paulo (Rio Pinheiros / Zona Oeste ; ca não foi abordada. Ainda assim, não
Galpão desativado de uma fábrica/Zona deixamos de pensar nela.
Leste; Estação da Luz /Zona Norte e Novamente, Francisca, que não
Cemitério/Zona Sul). Mais uma vez, es- reside na Rua Maria José, nem na Bela
truturamos nossa proposta no encontro Vista, não teve seu relato como alvo
com outros grupos teatrais em articu- de nossa documentação cênica em nosso
lação com a presença da plateia. Com segundo projeto. Ainda assim, o relato
a vivência de todas as ações e o ma- dela não havia se perdido em nossa me-
terial teatral e audiovisual coleta- mória. Em uma reunião sobre o quê, ao
dos, estamos progressivamente reela- longo dos dois projetos, deixamos de

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documentar e gostaríamos de recuperar, uma periculosidade, muitas vezes, não
a história de Francisca veio à tona! E existente. Essa ideia permite a des-
diante da constatação da persistência valorização das áreas. Na sequência,
em nossa memória do relato, concluímos o poder público, atrelado aos inte-
que a temática da morte presente nele resses da iniciativa privada (gran-
era algo que nos motivava a pensar e des construtoras), propõe um plano de
a pesquisar. Nos projetos anteriores, revitalização, obviamente, pautado na
a morte sempre esteve presente. Pare- remoção da população para posterior
ce redundante, pois ela sempre está, construção de condomínios “acolhedo-
mas o que queremos ratificar é que, em res” e “voltados para si mesmos”, cer-
nosso trabalho, ela muitas vezes tan- cados de espaços monumentais, limpos,
genciou as discussões. tranquilos, mas também padronizados,
Numa de nossas formações po- vazios, sem vida ou sem usuários. O
líticas (que contou com a Professora que não é resolvido dentro do “prédio”
Terezinha Ferrarri, por indicação de pode sê-lo nos shoppings construídos
Luis Scapi, educador popular), cons- a poucos metros dos empreendimentos
tatamos que, tanto no primeiro como no imobiliários.
segundo projeto, ela aparecia como te- A destruição da memória arqui-
mática: a morte das casas como espaço tetônica é a morte aceita na grande
de encontro entre vizinhos, a morte do Cidade, mesmo sendo ela estrategica-
contar histórias, a morte da ideia de mente associada à ideia de progres-
rua como espaço de convívio, o despare- so, empreendedorismo, salvação. Sem a
cimento progressivo do pequeno comér- “roupagem de progresso”, a morte en-
cio, o silenciar das vozes das calça- quanto assunto é algo interditado.
das. E não seria também a especulação Quando ela ganha espaço numa discus-
imobiliária, alvo de nossas críticas são, logo é evitada e considerada um
nos dois projetos passados e, de certo tema “pesado”. Outras vezes é abordada
modo, presente também nesse, o motor com uma estilização macabra, fantas-
de um processo de destruição de cons- magórica. As próprias práticas fune-
truções centenárias e até de bairros rais tentam maquiar a morte. Caixões
inteiros? Como apontávamos no antigo se assemelham a confortáveis camas e,
projeto, os velhos bairros passam por na preparação do defunto, tudo pode
um processo de negativa publicidade ser feito para que a aparência seja
em torno de uma pseudodegradação e de a de alguém que está dormindo, in-

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clusive, adotando-se o costume norte- desenvolver um documentário. Não que-
-americano de literalmente maquiar o ríamos construir uma narrativa (ain-
cadáver. O francês Philippe Ariès, na da que documental) linear a partir da
obra História da morte no Ocidente, trajetória de um único indivíduo. In-
afirma que há cinquenta anos a Cidade clusive, nosso receio estava no risco
cosmopolita exclui da vida produtiva de transformá-lo em um herói. Mas não
tudo que lembre a morte. As pessoas estaria aí um interessante desafio para
vivem um ritmo tão acelerado de pro- aprofundar nossa pesquisa estética? O
dução que não têm tempo para os velhos que seria, na linha de filmes docu-
e doentes. Da mesma forma, os cemi- mentais como Estamira (Marcos Pra-
térios, talvez os espaços dentro da do, 2004), e principalmente, SANTIAGO
Cidade mais associados à morte, são (João Moreira Sales, 2007), realizar
cercados de muros, isolados da corre- um documentário que parte da história
ria do trabalho, logo, da “vida pro- de uma pessoa para se pensar algo para
dutiva”. O escamotear da morte tal- além do universo privado? Percebíamos
vez esconda a contradição pela qual que o fato de uma morte tão ambígua,
o homem moderno/contemporâneo passa. que sugeria um acidente de trabalho
Inserido num modo de produção no qual não investigado pela família em troca
é obrigado a desempenhar funções que de um pedaço de terra para enterrar o
não deseja, num ritmo que não é o corpo, trazia um campo fértil para um
seu, apenas vislumbrando um crescente documentário cênico para além da his-
consumo de bens materiais, esse homem tória de um homem chamado João.
se amortece. Tinha chegado, então, a Francisca, a viúva de João,
hora de falar da morte. Ainda assim, em seu relato falou também de lugares
pensamos em não utilizar o relato de de São Paulo que hoje manifestam as
Francisca. Numa versão anterior desse mortes simbólicas presentes na vida
projeto, ele foi suprimido. Depois de da Cidade. Uma estação de trem que se
uma revisão das ações para nossa nova tornou apenas lugar de passagem, perto
empreitada, ficamos nos perguntando o da cracolândia, espaço onde convivem
porquê de tal atitude? Se optamos por os chamados pela mídia “mortos/vivos
falar da morte, o que nos assusta- do crack”, o prédio de uma fábrica que
va, então? Percebemos depois de muitas foi posto abaixo na Cidade que pulve-
conversas que havia um receio em optar riza sua história arquitetônica, um
por uma única história pessoal para rio morto e um cemitério, como outros

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tantos, isolados do cotidiano de uma das à preservação de nossa sede, com
metrópole que não pode parar. Era pre- uma ação desenvolvida com adolescen-
ciso falar da morte presente na Cidade, tes do projeto QUALÉ? do SESC/Belenzi-
era preciso falar de João, era preciso nho, a construir um discurso cênico a
dar voz ao relato de Francisca, era partir de relatos de amor, entre eles
preciso terminarmos o caminho começado o de Francisca. Sem medo do risco, im-
com nosso primeiro projeto... Portan- portante para consolidação de uma pes-
to, depois dos encontros presentes no quisa realmente diferenciada, o mate-
projeto COMO SE PODE BROTAR POESIA DA rial bruto da encenação em processo,
CASA NA GENTE?, das travessias do pro- batizada por nós de João e seu pedaço
jeto Mapear Histórias , ou como de chão (título provisório), que tem
como base dramatúrgica, como foi dito,
disse Guimarães o real não está nada menos que o relato de Francisca,
na saída nem na chegada: ele se fomentará intervenções cênicas urba-
dispõe para a gente é no meio da nas de caráter documental em quatro
diferentes espaços, que explícita ou
travessia, estaremos agora diante da implicitamente apresentam simbologias
explicitação das simbologias da morte associadas à morte e foram citadas por
presentes em diversos espaços urba- Francisca, nas diferentes regiões da
nos para observar como se dá A MORTE Cidade de São Paulo (Estação da Luz /
na VIDA da grande Cidade. Em con- Zona Norte; Rio Pinheiros /Zona Oes-
tinuidade ao projeto de pesquisa de te; Galpão desativado de uma fábrica/
documentação cênica sobre e para São Zona Leste; e Cemitério Vila Mariana/
Paulo, nossa atual proposta finaliza- Zona Sul), em parceria com grupos te-
rá uma espécie de TRILOGIA! Por isso, atrais (Uzinominados/Zona Norte, Com-
ele é fim: finitude e finalidade. Em per- panhia Antropofágica/ Zona Oeste, Do-
curso, percebemos que havia chegado lores Boca Aberta/Zona Leste e Brava
o momento de sair de casa, caminhar Cia./Zona Sul).
pelas ruas e se deparar com a Cidade Se no primeiro projeto fomen-
e, assim, explicitar a morte presente tado, cada grupo parceiro era respon-
na vida da metrópole São Paulo. Co- sável por nos apresentar a região ge-
meçamos nossas investigações rumo ao ográfica na qual está inserida a sua
atual projeto, ainda sem o fomento, em sede, no segundo, esses mesmos grupos
meio a uma série de atividades volta- ofereceram oficinas por meio das quais

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se promoveu o encontro entre nós, eles de ser admirados pela beleza e
e os moradores do bairro onde está celebridade.”
nossa sede. Agora pretendemos que a (SIMÕES, Eunice. Narrati-
parceria se estenda para a criação e vas da Mudança, disponível em:http://
ação artísticas conjuntas, para além eunicesimoesestal.files.wordpress.
dos limites da casa deles ou da nos- com/2009/04/era_do_vazio.pdf, consul-
sa. A partir dos conceitos do filóso- tado em setembro de 2014). A busca
fo Gilles Lipovetsky, a pesquisadora pela eternidade e, logo, a negação da
Eunice Simões nos aponta em seu texto morte, hoje são negócios.
Narcisismo ou a estraté- Criam-se, em decorrência, no-
g i a d o v a z i o , que: “a socie- vas necessidades em torno da saúde do
dade pós-moderna começa a ter corpo. Mas como conseguir contemplar
um fascínio pelo autoconheci- essas novas necessidades criadas? Com
mento e a autorealização. Co- “uma vida por trabalho”, independen-
meça a ter uma sensibilidade temente do que ele, trabalho, signi-
terapêutica e passa a praticar fique para o trabalhador. Ou seja, o
medo da morte é porque não se vive,
yoga, tai-chi, dança. Faz com mas se sobrevive.
que o consumo de consciência Como também já afirmamos na
se torne uma bulimia. Os in- apresentação desse projeto, a interdi-
divíduos passam a canalizar as ção da morte enquanto assunto do dia a
paixões e os sentimentos para dia talvez esconda a contradição pela
o sentimento do Eu, tornando um qual o homem moderno/ contemporâneo
passa. Inserido num modo de produção
sentimento egocêntrico, onde no qual é obrigado a desempenhar fun-
obedecem a si mesmos. Começam ções que não deseja, num ritmo que não
por ter uma obsessão pela saú- é o seu, apenas vislumbrando um cres-
de e pelo culto do corpo. Têm cente consumo de bens materiais, esse
medo de envelhecer, de morrer, homem se amortece.
passando a descartar os idosos Falar sobre morte hoje, por-
tanto, é quase um ato de resistência
para lares, também não mos- política. Por isso, as nossas ações,
tram qualquer interesse pelas todas de natureza teatral, tentarão
gerações futuras e necessitam explicitar as mortes simbólicas pre-
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sentes em São Paulo, para que seja e a produção teatral dentro dela. Fica
desvelado do aparente progresso e de- claro, portanto, que associamos a pes-
senvolvimento da Cidade que nunca dor- quisa estética a ações de mobilização
me, o poder destrutivo que a “ordem” política.
do capital impõe. Nessa proposta, o que entra em
Com o intuito de compartilhar jogo é a própria capaCidade de cada
essa discussão com um grande número de coletivo se retroalimentar da mate-
pessoas, as quatro intervenções ur- rialidade artística do outro. O desafio
banas de caráter cênico-documental, é o diálogo. O repertório de subje-
criadas e apresentas com os grupos tividades explorando respostas múlti-
parceiros em quatro diferentes espa- plas a uma mesma formulação precisa
ços pela Cidade São Paulo que estão favorece a cena e a alteridade do pró-
associados às simbologias da morte e prio artista. Do contrário, o jogo não
aparecem explicitamente na parábola se estabelece. O que se evidenciou em
cerne da encenação João e seu pe- nossa prática é que os modos de produ-
daço de chão, serão propostas em ção estão ligados aos discursos pro-
horários de grande movimentação nes- postos.
ses espaços, na tentativa de quebrar Com as intervenções, preten-
o fluxo estabelecido pela ordem do ca- demos em algum grau alterar fisicamente
pital e conseguir que os transeuntes o retrato da Cidade e, sobretudo, o
estranhem o espaço urbano, muitas ve- imaginário simbólico de parte de seus
zes invisível para olhos distraídos. habitantes. A experiência proposta
Apenas a partir do contato real com os passa ser uma manifestação artística
espaços públicos é que pode “florescer urgente para uma Cidade cuja correria
a vida pública exuberante na Cidade”. do dia a dia, imposta pelo modo de
Como mencionado, várias de produção dominante, roubou a poesia do
nossas ações guardam uma radicalidade cotidiano.
por serem intervenções cênico-docu- O fato de agora nos atermos a
mentais distribuídas por toda a Cida- espaços pela Cidade também se mostra
de, em rede com outros grupos. Logo, o como um prolongamento natural de uma
projeto propõe uma série de trocas de pesquisa que começou no espaço casa,
experiências de cunho estético e polí- foi para a rua e agora pretende, li-
tico, firmando a necessidade do diálogo teralmente, ampliar seu campo de atu-
entre pares para se repensar a Cidade ação.

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Mesmo tendo autonomia em rela- leção “refinada”, que sabemos que ser
ção à encenação, as intervenções for- excludentes, muitas vezes de pessoas
necerão dados documentais à cena em desejosas de estar mais próximas, mas
processo. A propósito, outro desafio que, infelizmente, não pudemos aten-
em termos de pesquisa estética – e der em virtude de questões práticas,
que também é a continuidade natural como por exemplo, o espaço e o tempo
de nossos estudos – se refere à cons- que dispomos para a realização de nos-
trução do documentário cênico nesse sa pesquisa.
projeto. Dessa vez, o discurso teatral O modo de produção acaba por
será construído ao longo do projeto. provar também que todas as ações con-
O documentário cênico João e seu tidas no projeto são indispensáveis
pedaço de chão, que também se para nossa investigação estética; ou
propõe a ser uma experiência artística seja, não estamos criando nenhum tipo
que promova a alteração da percepção de artificialismo na invenção de ações
sobre o processo de amortecimento da assistencialistas que não se relacio-
idade e de seus moradores, será cons- nam à construção discursiva. Apenas
truído a partir de investigações da continuamos não dissociando a contra-
Oficina Caminhos em Tea- partida social do discurso artístico.
t r o D o c u m e n t á r i o , dos encon- E nesse sentido, precisamos propor um
tros e trocas com os grupos parceiros, espaço de real experimentação e debate
das intervenções em espaços urbanos para /e /com os nossos participantes.
pela Cidade e do material documental Nosso projeto se propõe a re-
coletado. alizar, desde seu início, um estudo
Em outubro de 2013, demos iní- sistematizado em torno de uma peda-
cio à O f i c i n a Caminhos em gogia do espectador, com a presença
T e a t r o D o c u m e n t á r i o . Talvez de uma profissional, que entre outras
por conta das apresentações da encena- atribuições, irá se dedicar à obser-
ção E s t e v a s t o T e r ç o d e s t e b e l o vação e discussão em torno do papel
r e i n o estarem a pleno vapor, tivemos do espectador dentro de nossas propo-
um número muito grande de inscritos, sições artísticas. Com isso não esta-
o que se por um lado nos deixa satis- mos pensando somente numa perspectiva
feitos, por outro, nos causa um certo de formação de público ao Teatro, mas
constrangimento, uma vez que acabamos entendendo o sujeito espectador para
tendo que criar processos de uma se- além dos domínios do Teatro. Queremos

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proporcionar estímulos para que os in- destino, ponto de encontro e chegada.
divíduos se tornem leitores do mundo. Após uma série de encontros
Nessa perspectiva, durante entre os dois coletivos (Refinaria Te-
todo o projeto, mensalmente realiza- atral e Teatro Documentário) com ob-
mos encontros – batizados por nós de jetivo de compartilhar metodologias
Encontros Documentais – e articular propostas estéticas, em
com grupos de Teatro que ocupam junto torno do desafio de refazer o percur-
conosco a Casa do Teatro Documentá- so do protagonista João, os dois gru-
rio que de alguma maneira estabele- pos conceberam a intervenção: “Las
ceram algum vínculo com nossa propos- Putas Madres de la Luz”.
ta estética, ou ainda, grupos com os A estrutura da Estação Luz
quais gostaríamos de travar contato. evidencia a contradição entre a arqui-
Além de oferecer aos grupos um espaço tetura de um passado imponente e o
para que o trabalho seja apreciado e contraste com a realidade do presente.
criticado, entendemos que essa ação Em cada andar, a estação se organi-
promove a continuidade da apreciação za de forma distinta. No primeiro, há
teatral que trabalhamos para desen- uma concentração de prostitutas. Com
volver junto a vizinhança e arredo- o objetivo de documentar o espaço e as
res oferecendo apresentações teatrais pessoas que transitam pela estação,
gratuitas. várias propostas surgiram. Entrevis-
A estréia das intervenções tar uma das prostitutas (que foram
desse projeto ocorreu em um dos espa- devidamente orientadas e contratadas
ços significativos da existência real pelo período em que participaram da
de João, o espaço escolhido foi jus- intervenção) enquanto elas maquiavam
tamente o local da chegada do nosso os atores da Cia. Teatro Documentá-
protagonista à décadas atrás. Nessa rio e conforme se arrumavam para tra-
estação, ele desembarca e também têm balhar, construir imagens para ver o
as primeiras impressões da Cidade de trem, embarcar coletivamente pelas ca-
São Paulo. João chegou na Estação da tracas do metrô ao som de um violino,
Luz – (centro/norte) na década de 1940 fizeram parte da experiência.
A Cia. Teatro Documentário desembarcou Frases provocativas ditas no
em 2014 e, em coautoria com o grupo coletivo ecoavam pela estação e fun-
parceiro Refinaria Teatral, pela pri- cionavam como fio condutor da plateia,
meira vez tornou à Luz, estação de tais como: “Quem vende o corpo vem
188 189
comigo”. Em meio à poluição e grande paço faz parte do relato documental de
eloquência do espaço, sínteses poéti- Francisca, material-eixo para a nos-
cas, se instalavam, abrindo espaços no sa dramaturgia, além de ser um lugar
ferro e no mármore. Nesse contexto, carregado de simbologias associadas à
senhoras dignas aconselharam a docu- morte. O bairro Bresser, um dos pri-
mentada, que maquiava e era entrevis- meiros rumos à Zona Leste para quem
tada pelo ator Gustavo Curado, a ca- parte do centro, é com certeza um dos
lar a boca porque ela era uma “puta” mais tradicionais de São Paulo. A re-
e, segundo elas, prostituta não tem gião da Mooca e do Bresser foi por ex-
direito a estar no lugar de artista. celência tomada de galpões em que eram
Um debate real entre defesa e ataque fabricados inúmeros produtos.
a essa tese se estabeleceu ao som do
ritmo frenético do piano que permane-
cia disponível ao público da estação. “Os atores contavam para os tran-
Num determinado momento, a documentada seuntes dados documentais sobre a
foi ganhando voz, alguns espectadores estação. Como por exemplo que naque-
se renderam aos argumentos e encantos la semana uma mulher tinha sofrido
dela e… encantados permaneceram du- abuso lá, sobre o incendio no começo
rante toda a intervenção! do século etc. Muitos transeuntes
A segunda intervenção foi
construída juntamente com o Grupo So- se relacionaram com isso, e a Mayra,
brevento (Zona Leste de São Paulo), e tomando a frente do coro, indaga-
tinha como desafio explorar o percurso va os transeuntes, como por exemplo
do nosso protagonista João pela Zona aconteceu: Um homem disse que ele
Leste da Cidade. Em pleno esforço para não vendia o corpo, e ela respondia:
humanizarmos a morte, nossa parceria “Vende sim!! O Sr não trabalha o dia
rendeu animações inclusive para aqui- todo, fazendo um serviço para um
lo que não tem alma. E então, objetos patrão? Então vende o corpo sim!” No
ganharam vida e contavam a história final da intervenção, os atores e a
dos imigrantes bolivianos. Mayra, recebiam da mão da violisista
O espaço, de antemão escolhi- um bilhete de metro, e como os tra-
do, deveria ser próximo às fábricas balhadores transeuntes, atravessa-
abandonadas do bairro, já que esse es-
ram as catracas.” Por Natalia Lemos
190 191
Foi em específi-
co na fábrica Pon-
tè, onde na década
de 1940 se produ-
ziam rádios, o lugar
em que João, marido
de Francisca e do-
cumentado cerne de
nosso trabalho, pas-
sava seus dias tra-
balhando, depois de
ter se instalado com
sua esposa Francisca
e filhos no bairro da
Vila Prudente.
No início de
nossas ações na Zona
Leste, não sabíamos
exatamente a loca-
lização da antiga
fábrica em que João
trabalhou/ morreu e,
portanto, não haví-
amos ainda delimi-
tado em que es-
paço faríamos nossa
intervenção dentro
dessa área geográfica
Mooca/ Bresser. Du-
rante os workshops
com o grupo Sobre-
vento para o compar-
tilhamento de meto-
dologias, percebemos

192 193
a constância de um choro infantil que desses trabalhadores, várias pesso-
nos causava espanto. Fomos então in- as pararam inclusive a venda de seus
formados pelo grupo anfitrião que se produtos para assistir. Uma série de
tratava de alguma criança provavel- fotos registrou os olhares atentos e
mente sujeita a maus tratos e/ou ao interessados de uma plateia que estava
confinamento por conta dos trabalhos ali para ver que não são invisíveis.
escravos existentes, muito próximos Na saga de documentar a vida/
de onde estávamos, onde já se tornou morte do nosso protagonista João, ou-
comum a coexistência de oficinas clan- vimos de sua esposa Francisca as lem-
destinas de costura. branças de que na memória imagética da
Clandestino, também parecia ainda não conhecida São Paulo, pairava
ser aquele pedaço de São Paulo, onde a promessa de nadarem nas águas lím-
se localiza a Feira Boliviana da Rua pidas do Rio Pinheiros. Que na época
Coimbra, para alguns dos espectado- (década de 1940) começava a ser polu-
res das apresentações da G r a c i a s a ído.
la vida que ha dado tan- Hoje, o Rio Pinheiros é mor-
t o , intervenções realizadas na feira to. Ficou reto, perdeu suas curvas e,
boliviana após um longo processo de junto ao Tamanduateí e ao Tietê, se
aproximação dos bolivianos que traba- transformou em cadáver a céu aberto.
lham em condições ilegais na região. A preparação da interferência
Uma barraca semelhante à de que ocorreu na Zona Oeste, contou com
outros comerciantes da feira foi er- a participação de grupos parceiros:
guida pela Cia. Teatro Documentário. o Dolores Boca Aberta Mecatrônica de
Os próprios atores fizeram isso, já Artes e a Cia. Antropofágica.
chamando a atenção dos transeuntes. Após diversos encontros para
Conseguimos nos comunicar com um mem- concepção da intervenção, foi nos va-
bro da sociedade Amigos da Rua Coimbra gões do trem da CPTM que se locomove
que anunciou por alto-falante o horá- nas margens do Rio Pinheiros que a
rio que começaríamos a apresentação. intervenção ocorreu, a partir da te-
Ao invés de mercadorias, oferecería- atralização de três programas radio-
mos histórias contadas por atores com fônicos diferentes: uma radio novela
objetos de costura. cuja narrativa de um tempo passado nos
No primeiro relato, em “por- mostrava um Rio Pinheiros limpo, lu-
tunhol”, sobre a realidade boliviana gar de encontro para competições e la-

194 195
zer; um progra-
ma de jornalismo
policial sensa-
cionalizando a
morte do Rio; a
apatia da viú-
va/ população;
a exploração de
suas águas su-
jas e, por fim,
em diálogo com o
programa eleito-
ral, dados do-
cumentais acerca
do reservatório
Cantareira, da
crise da água e
sobre a má ad-
ministração do
governo do es-
tado são reve-
lados enquanto
o espectador ob-
serva o próprio
Pinheiros, que
morto, é vis-
to em movimento
numa ilusão fa-
bricada pela ja-
nela do trem.
Uma coi-
sa é certa: o pú-
blico logo per-
cebe que a morte

196 197
na vida da Cidade tem cheiro, cor e aceitam um valor irrisório pela sua
sons próprios. Os significados múl- moradia e cedem o terreno para que um
tiplos e polifônicos sugerem diálo- novo empreendimento imobiliário pos-
gos muito eficientes e interatividades sa nascer. Assim, como vislumbramos a
efetivas. Nossos experimentos têm de- necessidade de documentar a história
monstrado que nesse formato os espaços de todos esses indivíduos, coletivos
tem um potencial expressivo, históri- e espaços que protoganizaram nossos
co e social que não se pode invalidar. experimentos, percebemos que faltava
Nele o espectador em movimento é quem à nossa prática organizar nossa re-
de fato escolhe o ângulo daquilo que flexão sobre os caminhos percorridos
se apresenta. E, por vezes, as inte- na documentação sobre e para a Cidade
rações ganham cena. Pois a experiência de São Paulo. O grupo nesse sentido
se efetiva ao ver a reação das outras não quer deixar morrer as experiências
pessoas em relação às propostas lança- passadas.
das. No momento em que o rapaz abatido
por mais um dia de trabalho se ergue Talvez o relato que acaba aqui seja esse ato:
para ver com mais atenção uma foto de a compreensão da morte biológica e
um Pinheiros da década de 1940 para,
a partir dela, se lançar a rever e a refutação da morte da memória.
falar também de suas próprias mortes
diárias, é que a cena ganha vida. à Elaine Grava
E nesse sentido, procuramos em
nosso discurso cênico promover uma re-
flexão sobre nossos dias. A dramatur-
gia parte da história de um trabalha-
dor que morreu de maneira estranha em
uma fábrica e de uma família que opta
por se calar; ou seja, que morreu em
vida. A atualidade de nosso discurso
é clara diante de um momento em que
se tenta calar e reprimir o direito ao
grito. Francisca optou pelo pedaço de
chão, morada eterna de João. O mesmo
talvez ocorra com tantas famílias que

198 199
Por fim, na E s t e Pouco menos de um mês após a
tentativa de que es- livro fala do sua partida recebo um telefonema do Guga
sas experiências per- encontro, ca- (Gustavo Idelbrando), em nome da Cia Tea-
maneçam vivas em você minho e morte. tro Documentário. Contou-me que acabavam
caro leitor que nos Para mim é um de receber a notícia que tinham sido con-
acompanhou até aqui, convite para templados pela 23ª. lei de fomento de Te-
compartilhamos: refletir e jo- atro para a Cidade de São Paulo, com um
gar luz sobre a projeto sobre Morte, escrito pela própria
minha própria Elaine. Guga me convidou para fazer par-
trajetória. A cada pesquisa de campo, o te deste projeto, sensivelmente alertando
processo com o Teatro documentário traz que Elaine jamais seria substituída, mas
mais complexidade a minha maneira de en- que tinham certeza que ela ficaria muito
xergar o mundo, sou uma eterna aprendiz feliz que eu fizesse parte do projeto e es-
diante da vida. Quando conheço o outro, tivesse junto com a Cia. Aceitei o presente
conheço a mim mesma. E vice e versa. Alte- mais que especial que Elaine generosa-
ridade. A cada dia que nasce, a cada en- mente reservou para mim.
contro, a cada história, a cada memória, a Morte e vida se entrelaçam. Nos
cada experiência, é um vestígio da minha ciclos da vida é assim, nascer para morrer
existência que se revela. e renascer... O projeto tem início: A Morte
Chego na Cia Teatro Documentário na Vida da Grande Cidade.
num momento de silêncio, luto, dor e apren- Começam os ensaios na Cia com a
dizado. Algo nos unia e nos colocava na intervenção na rua Maria José “Este vasto
mesma condição, tínhamos perdido alguém terço de nosso belo reino”. Aprendo a en-
que amávamos de forma inesperada, ao mes- xergar beleza no que antes parecia ordi-
mo tempo em que precisávamos seguir com o nário. A rua através da encenação ganha-
novo projeto que acabava de nascer. va alma, era metáfora da vida, tudo era
Nosso encontro coincide com a mor- poesia.
te de alguém que foi mais que uma grande Conheço Ramon e Lauriene, que
amiga, Elaine Grava é para mim uma irmã estavam em cena conosco. As crianças da
de alma que tive a alegria de encontrar Bela Vista são mais felizes que as outras
durante essa trajetória. Estudamos juntas crianças, andam de bicicleta, jogam bola,
durante a faculdade de Artes Cênicas, di- correm , se escondem, são livres. Memórias
vidimos o mesmo palco e éramos cúmplices de um tempo vivo, bem no centro de São
na vida. Paulo.

200 201
“João chegava em casa todos os dias às
Aos poucos conheço os vizinhos oito horas da noite cheio de açúcar:
que fazem parte dessa encenação, Dona enchia os filhos de balas e doces.
Inácia, a benzedeira, Silvani, mãe de Ra- Apesar das guloseimas, a vida pas-
mon que tem um ateliê de costura, Delour- sava sem muita docura; o desejo de
des que mantém um Brechó e Seu Epideo ir aos sábados ao
sempre nos desejando uma boa tarde, cada Rio Pinheiros ficava
um com seu universo particular, cheios de cada vez mais fun-
histórias e sonhos. Lugar onde há pessoas do, submerso, afoga-
de verdade. O processo me traz a experiên- do. Não existia ânimo
cia da vizinhança, há muito esquecida na para sair
pressa da grande Cidade. Xícara de açúcar, aos finais
tábua de passar roupa, Café e bolo de maçã de semana.
com canela no fim de tarde. O Teatro me O corpo pe-
ensinou a observar a vida através de um dia mergulho
olhar mais sensível, agora empresto essa nos lençóis.
descoberta para o Teatro. Francisca
Tão forte foi aquela experiên- arrematava a
cia que em menos de dois meses me mudei roupa, orga-
para a Bela Vista, sou vizinha da rua nizava o tem-
Maria José. O Teatro me contou a história po, continua-
daquelas pessoas, do bairro, da Cidade e va a vida. Foi
a minha própria história. interrompida
numa tarde como
outra qualquer,
Por Carolina Angrisan no dia primeiro
de abri.”

fragmento drama-
turgico cunhado pela
atriz documentarista
Natália Lemos

202 203
“Minhas mãos são limpas,
macias e não possuem ca-
los. Ao contrário das
mãos de Gilberto, um ho-
mem que trabalha no ce-
mitério da Vila Mariana.
Este é Gilberto (mostra
a foto do homem estam-
pado numa foto costu-
rada em tecido no forro
de um terno como dado
documental). Gilberto
não é coveiro, aliás, se-
gundo ele, o termo certo
para o ofício é sepulta-
dor. Gilberto é um cons-
trutor de túmulos uma
espécie de maquiado. Ele
me disse que um terre-
no hoje no cemitério da
Vila Mariana custa em
média 19 mil reais, algo
impossível dele comprar,
mas eu não estou aqui
pra falar de Gilberto”.

Fragmento de texto dramatúrgi-


co cunhado pelo ator-documentarista
Gustavo Curado

204 205
O Teatro E AS FORMAS DOCUMENTAIS

1
Béatrice Picon Vallin

Traduzido do francês por Fernanda Pessoa

O Teatro hoje pode ser um meio de informação alternativo.


Peter Sellars, 2003

206
1 Pesquisadora e escritora do Teatro moderno, atualmente dirige as pesquisas no CNRS
(Centre National de la Recherche Scientifique), atua como professora de história do Teatro no Con-
servatório Nacional Superior de Arte. Seu livro Meyerhold, editado pelo CNRS em 1999 e reeditado
em 2003, recebeu o prêmio de melhor livro de Teatro, atribuído pelo Sindicato da Crítica Dramática
e Musical. Tem colaborado com as principais publicações especializadas em Teatro, na França, na
Rússia e em diversos outros países.

As artes do espetáculo estão atualmente em plena


mutação na sociedade globalizada; as fronteiras se diluem
entre os gêneros – Teatro, dança, cinema, vídeo, circo,
mímica, marionetes, etc. – e as novas tecnologias in-
tensificam esse processo de diluição fornecendo uma nova
percepção da realidade. O Teatro tem, portanto, diversos
recursos à sua disposição para atender à volubilidade de
nossa relação com o mundo, bem como ao nosso movimento de
busca pela verdade, enquanto a esfera midiática se mostra
em profunda crise. E, nesse sentido, existe uma forma em
plena efervescência em todo o mundo: a do Teatro documen-
tário – que muitos artistas acreditam ser um gênero novo,
207

ligado à incessante atividade de documentação cotidiana


que vulgarmente realizamos em nossos Iphones, tablets,
Ipads, capazes de capturar ao vivo acontecimentos e en-
viar, por toda parte em tempo real, documentos que não
cessamos de produzir, textos, fotos e filmes, mas que, to-
davia, conta com uma origem longínqua, intimamente ligada
à esfera jornalística, também chamada “midiática”.
No início do século XX...
A novidade é que a expressão “Teatros documentá-
rios” abrange hoje as múltiplas possibilidades de tratar
o mundo no Teatro de um modo mais próximo da realidade.
Uso aqui o plural de propósito, pois nossa época difere
dos dois períodos históricos anteriores, quando nasceram
e se desenvolveram as formas para as quais se criaram as
expressões consagradas: “drama documentário” (Erwin Pis-
cator, O Teatro político, 1929), depois “Teatro documen-
tário” (Peter Weiss, 1967), e quando o significado dessas
expressões tornou-se preciso – mesmo que Weiss o rejeite,
em “Quatorze teses sobre um Teatro documentário”. Nos anos

208
1920, Piscator põe em prática o drama documentário, atu-
alizando suas peças com o recurso de imagens de cinema e
de sons contemporâneos, que se tornaram possíveis devido
ao avanço das técnicas (projeções, cinema, animação, rá-
dio etc.). É uma abordagem idêntica, mas menos radical,
que conduz na URSS tanto V. Meyerhold, em colaboração com
S. Tretiakov, quanto os artistas do LEF, ao conceberem um
“Teatro fatual”. Nos anos 1960, Peter Weiss, na Alemanha,
escreve Die Ermittlung (1965), peça elaborada a partir de

documentos e notas que ele tomou durante o processo de


Frankfurt e que seria montada por toda a Europa no fim do
decênio. Quando montou Die Ermittlung, Piscator renunciou
ao uso de imagens, não sentindo necessidade de dobrar
por meio de projeções a abordagem documental do autor do
texto. Outros, porém, como Virgilio Puecher, na Itália,
construíram para essa peça (montada por ele em 1969) um
dispositivo de imagens eficaz e discreto, que até hoje é
exemplar e de uma modernidade surpreendente (cenografia
arquitetural, câmera ao vivo e projeção de documentos cui-
dadosamente escolhidos).
A questão do Teatro documentário está ligada a do
209

desenvolvimento dos meios de comunicação: Piscator queria


que o Teatro alcançasse o jornalismo em plena expansão,
sendo tão operante quanto ele na difusão de informações
e, de certa forma, rivalizando com ele. Por sua vez, Peter
Weiss queria mostrar o que os jornais escondiam, fazendo
com que o palco fornecesse a contrainformação mais comple-
ta possível. Hoje, “o jornalismo está tomado por um des-
controle”, como disse o diretor do jornal mensal Le Monde
Diplomatique2. Nossa época está sobrecarregada de infor-
mações parciais e cada um pode produzir informações sobre
milhões de assuntos. Tudo circula na Internet e curto-cir-
cuita a imprensa escrita. O jornalismo de investigação, em
crise, ameaça desaparecer, e os canais de informação fazem
circular em espirais imagens e entrevistas idênticas, num
processo hipnótico. A esse propósito, escreve o dramatur-
go Fabrice Melquiot: “cobrimos e superexpomos a atuali-
dade de um evento; no fim das contas, jogamos muita luz e
não vemos mais nada” 3. A escolha dos termos semânticos
imagéticos mostra bem o trabalho de ofuscamento realizado
pela ação de lançar uma luz muito intensa, cegando o lei-
tor ou espectador. O Teatro, por sua vez, pode sem dúvidas
“iluminar” à sua maneira a atualidade e a história, para

210
que o público reencontre, por meio de seu ritmo lento, um
verdadeiro olhar.
As múltiplas formas de Teatros documentários
Os Teatros documentários têm hoje múltiplas faces
associadas a essa crise da informação e também ao apaga-
mento, à dissolução do corte simbólico entre o campo da
ficção e o da realidade. Os métodos de coleta, a escolha e
o tratamento dado aos documentos, sua montagem e sua do-

sagem determinam uma tipologia. Na maior parte das vezes,


trata-se de trupes ou grupos que trabalham fora das ins-
tituições oficiais. Há espetáculos semidocumentários, como
O Último Caravançará (Le dernier caravansérail) do Théâtre
du Soleil, cujo trabalho da trupe se baseia em entrevis-
tas com testemunhas, refugiados de campos de diferentes
Cidades (Callais, na França; periferia de Melbourne, na
Austrália), que ressoam em off durante o espetáculo. Es-
sas vozes eram traduzidas em tela grande e acompanhavam as
cenas de ficção teatral improvisada a partir de uma docu-
mentação bem definida pelos atores, dos quais alguns haviam
convivido com esses refugiados.
211

Outros grupos que, como os que florescem na Europa


nos antigos “países do Leste”, se interessam pela rees-
critura necessária da história que deveria ser trazida à
tona, procuram descobrir a verdade escondida por trás de
regimes totalitários. Em Moscou, o pequeno Teatr.doc se
especializa nesse gênero, em uma filiação aos grupos in-
gleses pertencentes ao movimento Verbatim, que, oriundos
dos anos 1960, ministraram diversos cursos na Rússia pós-
-perestroika. Na Romênia, a jovem autora e diretora Gia-
nina Carbunariu se aprofunda no gênero documentário. Seu
espetáculo X mm por Y km (X mm din Y km, Timisoara, 2012)
se desenvolve a partir de uma dezena de páginas extraídas
do volumoso interrogatório da Securitade (polícia polí-
tica) ao escritor romeno, Dorin Tudoran, e indica quatro
variantes possíveis da leitura e da montagem desses tex-
tos. O espetáculo leva a crer que o documento escrito só
fornece uma pequena parte da informação sobre o que real-
mente aconteceu (na falta de indicações de lugar, entona-
ção, pausa, gestos etc.). Assim, G. Carbunariu realiza uma
obra ao mesmo tempo teatral e científica, na sua abordagem
do documento de arquivo. A partir de registros e testemu-
nhos, outros espetáculos preenchem as “páginas em branco”

212
da história. Frequentemente os atores realizam pesquisas,
criando assim novos arquivos de que o meio acadêmico pode
dispor. Eles não buscam conquistar os testemunhos, a pa-
lavra do outro, mas sim apropriar-se deles pouco a pouco,
em um processo de criação (vozes reais ou retrabalhadas,
testemunhos registrados e difundidos, convocação eventual
de testemunhas no palco) que introduz um elemento mais ou
menos forte de ficcionalidade. A “dosagem” entre documen-
tos e ficção distingue os Teatros documentários entre si.

Os “transgêneros”
Os espetáculos documentários podem tratar de
eventos históricos trágicos, passados ou contemporâneos
(guerras, genocídios – Rwanda 94, do Groupov –, refugia-
dos, exílios etc.) ou de eventos históricos e políticos
não trágicos, mas escandalosos, os quais não foram escla-
recidos, ou de não-eventos cotidianos, fatos corriqueiros
do dia a dia. Muitos deles questionam a transformação in-
sidiosa e rápida das Cidades no mundo todo.
Alguns grupos criam dispositivos específicos para
cada espetáculo, baseando seu trabalho na busca de um tema
capaz de lhes propor uma problemática forte sobre o mundo
213

ou sobre as Cidades. Assim, Rimini Protokoll, da Alema-


nha, ou o Grupo Berlim, de Anvers, na Bélgica, ultrapassam
os limites do Teatro e criam os “transgêneros”. O Grupo
Berlim produziu um ciclo de espetáculos excêntricos, sem
atores, mas com músicos e telas múltiplas organizadas de
formas diferentes, de acordo com o diálogo a se estabele-
cer entre as pessoas que apareciam nessas telas, recons-
tituindo o retrato de Cidades (como Moscou, Jerusalém,
Bonanza etc.) por meio de entrevistas com moradores esco-
lhidos de acordo com critérios estabelecidos durante sua
estadia em cada Cidade. Rimini Protokoll reúne, em cada um
de seus projetos que o fazem viajar o mundo, não atores,
mas “experts do cotidiano”, que lhes permite captar e des-
vendar, por meio de uma realidade parcial, mas criteriosa-
mente escolhida, os elementos escondidos que influenciam o
cotidiano. No espetáculo Cargo Sofia, o público embarcava
a bordo de um grande caminhão especialmente reformado para
que pudessem ver tanto projeções de vídeo quanto cenas do
exterior, assim que o caminhão estacionava. Ele fazia um
trajeto de cinquenta quilômetros em torno da Cidade que
era ponto de partida, conduzido por dois caminhoneiros

214
búlgaros que levavam os espectadores a descobrir segredos
da Cidade onde trabalhavam, do transporte rodoviário eu-
ropeu e dos circuitos percorridos pelas mercadorias até
que elas chegassem a seus menus e pratos. A fábula é con-
duzida por “experts” que revelam verdades tangíveis, ao
invés de construir uma artificial para obter a adesão ou o
voto de uma população. Esses “experts” do cotidiano são o
oposto perfeito dos spin doctors dos storytelling da polí-
tica contemporânea. Quanto ao Rimini Protokoll, ele con-
segue criar formatos de espetáculos que podem ser refeitos

em cada Cidade onde intervém, para mostrar sua imagem em


dado momento. As regras (número de experts, critérios de
escolha, etc.) são instituídas para permitir a junção de
voluntários e mostrar uma imagem teatralizada da realida-
de de cada Cidade visitada.
A forma conferência
Outra forma é da conferência, algo entre Teatro e
performance. Trata-se aqui de alertar, difundir uma in-
formação confidencial, que, por exemplo, veicula obras não
traduzidas. A companhia Notoire, dirigida na França por
Thierry Bédard, desenvolve desde 1989 ciclos de espetácu-
215

los de tendência mais ou menos documentária. Um dos últi-


mos, Blow up (2012), criado a partir da obra Planeta fave-
la (Planet of slums, de Mike Davis), é um solo acompanhado
de música que difunde informações inéditas: um bilhão de
habitantes do planeta – cerca de um em cada dez – vive em
favelas. Uma atriz que recita o texto ao microfone como
uma cantora de soul, enuncia descrições espantosas sobre
os arredores das grandes metrópoles. O texto é ritmado
pelo som de um guitarrista de rock e interrompido por ono-
matopeias e canções.
Outro exemplo: Katie Mitchell, diretora inglesa
que apresentou no Festival D’Avignon em 2012, Dez bilhões
(Ten billions), uma conferência de uma hora e meia – pro-
nunciada por um cientista renomado, Stephen Emmott, neu-
robiologista diretor de um laboratório em Cambridge – em
que a interdisciplinaridade permitiu compreender melhor
a complexidade do mundo. Sozinho no placo, em pé frente
a seu computador e seu power-point, Emmott alertava o pú-
blico sobre o aumento inquietante da população mundial,
insistindo no elo entre o aquecimento global e a presença
de mais de nove bilhões de humanos. Segundo K. Mitchell,

216
“botar Emmott no palco obriga o público a levar realmente
a sério a palavra pronunciada. Se fosse um ator, o público
poderia, mais uma vez, ignorar o assunto”. Por sua vez,
S. Emmot garante que a transposição do discurso científico
– frequentemente pouco escutado e mal compreendido – para
o palco do Teatro permite que um público maior entenda a
amplitude e a gravidade da situação.

O Teatro documentário de proximidade


A crise das mídias e a imprecisão das fronteiras
entre os gêneros afetam não apenas o Teatro, mas também as
artes da imagem animada: cinema e televisão são contamina-
dos pelas busca da verdade e pela tendência ao documentá-
rio. Assim, eles produzem obras contra o “pronto a pensar”
(prêt-à-penser) que os jornais televisivos nos incutem. As
formas documentais – docudrama, autoficção, documentários
puros – se multiplicam nas telas do cinema e da televisão,
assim como se desenvolvem na web. É notável o modo com que
a internet permite o desenvolvimento das web mídias que
fazem a cobertura de notícias de um bairro, uma Cidade ou
217

região. Essas mídias locais e hiperlocais parecem uma das


possíveis vias futuras para a imprensa online. Um gênero
de Teatro documentário pode se aproximar dessas mídias lo-
cais: trata-se de um “Teatro documentário de proximidade”,
como aquele praticado no Brasil pelo Teatro Documentário.
Associar os Teatros documentários a um orixá fe-
minino, uma das mais antigas divindades do panteão do
Candomblé e da Umbanda, é uma abordagem brasileira. Nanã,
entidade vestida de violeta, figura na página virtual do
Teatro Documentário de São Paulo. Ela encarna o encontro
da terra e da água, ao mesmo tempo orixá da vida em rela-
ção à morte e orixá da memória e dos ancestrais. Seu bió-
topo é o pântano, lugar cuja profundidade e a plasticida-
de evocam as memórias recônditas, que devem ser colhidas
desse meio úmido antes que sejam absorvidas.
Ligado à história espiritual do Brasil, o grupo
sabe igualmente aproveitar estratégias operacionais para
organizar seu trabalho de pesquisa e seu trabalho artís-
tico. Seja qual for sua forma, esse tipo de Teatro requer
um protocolo de ações que se assemelha àquele dos pesqui-
sadores nas ciências humanas para conseguir financiamento

218
e métodos de investigação. Arte e ciência são, nesse caso,
muito próximas.
As raízes distantes a que remonta o Teatro Docu-
mentário reivindica, porém, as fontes europeias, pisca-
torianas – não raro desconhecidas ou vistas superficial-
mente pelas companhias ocidentais que praticam o Teatro
documentário –, numa tensão fecunda entre contemporâneo e
arcaico, político e religioso. A obra de E. Piscator, O
Teatro político,2 foi publicada no Brasil em 1968 pela co-

rajosa editora Civilização Brasileira. Durante o colóquio


de Teatro documentário, organizado em São Paulo em 2010,
por Marcelo Soler, responsável pelo Teatro Documentário,
a primeira parte das intervenções foi totalmente dedicada
a Piscator.
O método do Teatro Documentário se inscreve entre
o do Teatro da Vertigem e o do Rimini Protokoll, remeten-
do também à abordagem do cineasta documentarista Eduardo
Coutinho. Trata-se de se concentrar em integrar um traba-
lho social no próprio processo de criação e estabelecer
laços em uma megalópole disforme que os destrói. A questão
aqui é escutar as vozes daqueles a quem não escutamos e de
219

responder aos problemas urbanos, característicos dos di-


ferentes bairros de São Paulo, concernentes à locomoção na
Cidade, vizinhança, violência, transformações rápidas das
ruas e paisagens. As investigações e a inclusão em cena
de diferentes pessoas que aceitam contar suas histórias
visam encontrar referências e consolidá-las na memória
coletiva e pessoal, resistindo ao processo de dissolução
característico do que Z. Bauman chama de “sociedade líqui-
da”. Os espetáculos, gratuitos, apresentados a um público
reduzido e implicado, são como uma alternativa às emissões
de reality shows, nos quais tudo está à venda. O método e
os protocolos de trabalho, de investigação e de criação
vão se afinando à medida que o grupo se desloca pelas di-
ferentes zonas de São Paulo. Pode-se dizer que esse tipo
de Teatro documentário também cria arquivos originais que
podem ser utilizados por sociólogos, historiadores e ou-
tros artistas.
Mas como emprestar voz aos que não escutamos, como
reconstituir no palco – mesmo que não seja o do Teatro,
mas o de um apartamento transformado em palco – a palavra
dos que se dispuseram a fazer confidências? O Teatro Docu-
mentário produz espetáculos destinados a grupos restri-

220
tos, em que ele pode introduzir com delicadeza as “pessoas
documentadas” que aceitam participar, sem colocá-las em
situações de superexposição.
Sabemos que o desenvolvimento dos Teatros docu-
mentários se beneficiou das tecnologias e da possibilidade
de incorporar o real à cena pela intermediação de imagens
e sons, e que as novas formas nascem graças a câmeras cada
vez mais leves ou à utilização de telefones celulares.
Contudo, muitos grupos documentais desconfiam do espetá-
culo tecnológico, empregando imagens parcimoniosamente e

preferindo, como o Teatro Documentário, o uso de aparelhos


antigos, adequando a construção do espetáculo e escolhen-
do com cuidado os lugares onde se apresentar, o que na
maioria das vezes ocorre fora do Teatro.
Ao contrário do Rimini Protokoll, o Teatro Docu-
mentário não viaja pela Cidade: o Teatro documentário de
proximidade é um Teatro que tem dificuldade em viajar, não
é um “Teatro de festival”, porque seu espectador é especí-
fico: as questões retratadas lhe concernem, como foi dito.
Seu espaço está intimamente ligado ao lugar onde o espetá-
culo foi criado, por isso, não pode ser transportado. Mas
os meios pelos quais ele poderia se tornar móvel é algo a
221

se pensar, pois o particular é frequentemente o suporte


sobre o qual um tema se universaliza.
Tatiana Frolova, diretora russa que montou um es-
petáculo documental a partir do livro One war soldier (sem
tradução no Brasil), de Arakady Babchenko, jornalista en-
gajado duas vezes na guerra na Chechênia, assegura que “o
Teatro é o lugar da realidade mais crua [...]. O Teatro é
mais concreto que o real”. Poderíamos concluir, portanto,
que ele é o lugar certo para estudar, interrogar a histó-
ria, tornar conhecida a realidade das transformações do
mundo, das Cidades, a evolução de seus habitantes, os da-
nos dos conflitos nessas Cidades, a condição das Cidades no
mundo. Pois, se hoje o romance se serve da ficção, muitas
vezes de forma descomedida, para explorar e experimentar
as possibilidades de um mundo em permanente mutação, no
Teatro, é a convocação de momentos da História e o uso,
o estudo ou confrontação de documentos ou experiências
documentadas em cena que ajudam a apreender as múltiplas
questões, grandes e pequenas – que nascem a todo o ins-
tante – e a tentar responder, tanto nas peças quanto nas
discussões que se seguem a esse tipo de apresentação: os
Teatros documentários são constantemente seguidos de de-

222
bates que fazem parte do espetáculo.

Sobre a tradução deste texto em português, ver nota de


rodapé no 5. (nota da tradutora)
WEISS, Peter. Notas sobre o Teatro Documentário. (Notizbü-
cher 1960-1971). Ed: Suhrkamp, 1982.

WEISS, Peter, in: Diskurs über die Vorgeschichte und den


Verlauf des lang andanernden Befreiungskrieges in Viet Nam.

Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1967. (nota da tradutora)

Ignacio Ramonet, in: Libération, 18 de março 2011, p. 16.


MELQUIOT, Fabrice, in: Le Matricule des anges, Paris, no 38,
2002, p. 7-8.

Traduzido por A. Della Nina, com prefácio de W. Drews, Rio de


Janeiro, Civilização Brasileira, 1968. Essa obra teve um pa-
pel fundamental no desenvolvimento do Teatro político no Bra-
sil.
223
DA-RIN, Silvio. Espelho partido -
Tradição e transformação do docu-
mentário. Rio de Janeiro,Azougue,
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