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d a n çae

dra-
m atu r -
g i a [s]
© Vila das Artes, 2016
© Paulo Caldas, 2016
© Ernesto Gadelha, 2016

d a n ça e
coordenação editorial Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes
assistente editorialIsabela Sanches
tradução Nathália Mello, Rosa Ana Druot de Lima e Sylvain Druot

dra-
revisão Milena Bandeira e Papel Ofício
revisão técnica Ernesto Gadelha e Paulo Caldas
projeto gráfico Renan Costa lima

m atu r -
diagramação Jorge Salum e Renan Costa Lima

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

g i a [s]
Odilio Hilario Moreira Junior CRB-8/9949

D173 Dança e Dramaturgias (s) / organizado por Paulo


Caldas, Ernesto Gadelha ; traduzido por Nathália Mello, –––––
Rosa Ana Druot de Lima, Sylvain Druot - Fortaleza;
São Paulo : Nexus, 2016. orgs.

312 p Pau lo Cal das e


Ernesto Gadelha
ISBN: 978-85-66943-36-3

1. Dramaturgia. 2. Dança. 3. Coreografia. I. Caldas,


Paulo. II. Gadelha, Ernesto. III. Mello,
Nathália. IV. Lima, Rosa Ana Druot de. V.
Druot, Sylvain. VI. Título.

CDD 792.62
CDU 793
2016-434

Índice para catálogo sistemático:


Artes : Dança 792.62
Artes : Dança 793

A reprodução parcial sem fins lucrativos deste livro, para


uso privado ou coletivo, em qualquer meio, está autorizada, nexus
desde que citada a fonte. Se for necessário a reprodução na 2016
íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores.

|nexus é um selo da n-1 edições|


V i la das A rt e s
u m a a p o s ta d o p o d e r p ú b l i c o n a p o t ê n c i a d a a rt e 7
Da n ça e d r a m atu r g i a ( s )
pa u l o c a l d a s e e r n e s t o g a d e l h a 11
1 e
2 D r a m atu r g i as
verbete 19
O c r i m e c o m p e n sa o u o p o d e r da d r a m atu r g i a
25
a n a pa i s

E r r â n c i a c o m o t r a bal h o
andré lepecki 61
Corpo
verbete 85
O d r a m atu r g i sta i g n o r a n t e
b o ja n a c v e j i c ć
91
A ec o n o m i a da p r ox i m i da d e
111
b o ja n a k u n s t

M ov i m e n to
verbete 131
Fo r m a n d o es paç o s c r í t i c o s :
sumário
heidi gilpin 137
P e n s a r o p e n sa m e n to d e n i n g u é m
maaike bleeker 149
olhar
verbete 173
O p r o c es s o d r a m atú r g i c o
179
m a r i a n n e va n k e r k h ov e n

D r a m atu r g i a a n s i o sa
191
m y r i a m va n i m s c h o o t

Sentido
215
verbete

D r a m ato lo g i as da da n ça
sandra meyer 221
Da n ça , d r a m atu r g i a e p e n sa m e n to d r a m atú r g i c o
synne k. behrndt 243
– –
4 D e r i vas d e u m p la n o d e c o m p o s i ção e m da n ça 5
t h e r e z a r o c h a 269

RE F ER ê n c i as
bibliográficas 307
Vila das Artes
Uma aposta do poder público na potência da arte

vila uma aposta Completando um ciclo de gestão à frente da pasta da Cultura do


das do poder município de Fortaleza, situamos a publicação do livro Dança e dra-
ARTES públic o na maturgia[s] como uma ação ancorada na compreensão de que as
potência da políticas públicas da gestão cultural são, antes de tudo, possibilida-
arte
des de ampliação do acesso à informação e à educação. No exercí-
 cio da dinamização do ambiente sociopolítico, percebemos essa ini-
 ciativa pela via da qualificação do corpo cultural como aposta no
desenvolvimento humano e nas suas mais diversas manifestações
de pensamentos e práticas. No que se refere à construção de ins-
trumentos fomentadores dos complexos campos em que se dão os
processos artístico-culturais, os escritos reunidos nessa publicação
apresentam-se como um bem cultural e consolidam-se como subsí-
dio para reflexões estéticas e políticas; acolhem, assim, a difusão e
a fruição de pensamentos, num cruzamento que sinaliza caminhos
possíveis para novos desdobramentos de paradigmas artísticos na
criação em dança no Brasil.
Dança e dramaturgia[s] é formulação afirmativa sem ser dogmá-
tica. E se quer pública. Longe de apresentar-se como uma coleção
segmentada de ideias, é obra plural que interroga e aguça, desenca-
deando a produção de diferentes percepções e sentidos. Numa su-
peração da tendência imobilista habitual dos antecedentes históri-
– –
6 7
cos das políticas culturais, estabelece de forma estruturada um ter- mentos da cidade e apresenta-se como espaço que se propõe a con-
ritório que tece novas conformações do conhecimento e amplia o tribuir para a percepção e abordagem da dança a partir de perspec-
campo de ação da dramaturgia; evoca, portanto, ressignificações tivas múltiplas. Com um corpo docente formado por profissionais
dos processos criativos no campo da arte. do Brasil e do exterior, seu programa pedagógico promove a for-
No âmbito do direito cultural, a Secretaria Municipal da Cul- mação e o aperfeiçoamento técnico, artístico e teórico em dança cê-
tura de Fortaleza (Secultfor), através da Vila das Artes, assume essa nica, proporcionando aos alunos o contato com distintas visões so-
ação como conexão híbrida, de múltiplas interações e de função co- bre os vários processos e conteúdos da dança.
letiva que busca sedimentar uma experiência com vistas a romper Finalmente, numa perspectiva mais ampla, cabe mencionar que
com a lógica do fazer episódico e demasiadamente localizado. Ao a Vila das Artes, atua, ainda em programas de formação voltados
mesmo tempo em que é memória, Dança e dramaturgia[s] é também para o audiovisual, o teatro e a cultura digital. Instaura assim, na
matéria cultural que desloca e tensiona os espaços, tempos e ações, rotina cultural de Fortaleza, distintas práticas que redesenham as
sem negligenciar a variação de contextos e seus aspectos singulares. relações tecidas entre arte, política e cidade. A presente publica-
Considerando que as políticas públicas para a cultura têm trajeto re- ção, com suas múltiplas dramaturgias, torna-se, portanto, uma fer-
cente e sua institucionalidade ainda vem acompanhada de desafios ramenta relevante de prolongamento e desdobramento dos saberes
merecedores de atenção, destacamos que essa iniciativa da publica- e fazeres da cena cultural.
ção faz confluir um conjunto de elementos que explicitam os esfor-
magela lima
ços impulsionadores e inaugurais de uma atuação do ente público
Secretário Municipal da Cultura de Fortaleza
 
na percepção da cultura como bem de coletividade e de múltiplas
cláudia pires
 
autorias. Aberto esse novo campo, há dois destacados desafios gera-
Diretora da Vila das Artes
dos: estabelecer agendas que garantam a continuidade de ações que
fomentem a produção teórica no campo cultural local, bem como a
criação de canais de socialização dessa produção, tornando-a mais
acessível, abrangente e fluida. O daqui em diante já antecipa uma
boa provocação.
Vale expressar o quanto celebramos, na instância municipal, a
efetivação dessa ação pública que alcança um lugar definitivo nas
propostas de política cultural da cidade. A Vila das Artes, equipa-
mento público vinculado à Secretaria Municipal da Cultura, idea-
lizadora do Dança e dramaturgia[s] através da Escola Pública de
Dança, é um espaço formativo que completa 10 anos e tem como
premissa a construção de laços entre o fazer e o pensar, apostando
nesse encontro como propulsor de forças criativas. Rememorando
um traço histórico, a Escola Pública de Dança da Vila das Artes
surge a partir de discussões travadas com os mais diferentes seg-
– –
8 9
dança e
DRAMA-
Turgia [s]

Paulo Ernesto
Caldas Gadelha

A
Formado em Dança Graduado em Pedagogia da o principiar um breve texto em que transcreve e edita
Contemporânea na Escola Dança pela Ballettakademie as palavras recolhidas numa série de encontros intitulada
Angel Vianna (RJ), o Köln / Rheinische Conversations on Choreography 1 , realizada entre 1999 e
coreógrafo Paulo Caldas é Musikschule e pós-graduado
diretor da companhia de em Dança Contemporânea
2000, Scott deLahunta (2000) admite que, não obstante sua “evo-
dança Staccato e codiretor pela Folkwang Universität der lução”, a dramaturgia permanecia uma “prática desconcertante” e
do dança em foco – Festival Künste, atua como professor, que as questões quanto a “[…] sua definição (o que é dramaturgia?)
Internacional de Vídeo & gestor e curador em diversos e metodologias (o que faz o dramaturgista?) constantemente pre-

Dança. Bacharel em Filosofia, projetos. Atualmente, faciam cada livro, simpósio ou aula sobre o tema” (p. 25, tradução

é mestre e doutorando em coordena a Escola Pública de
nossa).
Educação. Atualmente, Dança da Vila das Artes e faz a
é professor dos cursos de direção artística e pedagógica Pois é assim que, de alguma maneira, repetimos como primeira
bacharelado e licenciatura em da Bienal Internacional de a questão “o que é dramaturgia?” ao abrir os textos ensaísticos aqui
Dança da UFC. Dança do Ceará. reunidos já com um primeiro verbete da obra coletiva De quoi la
_ – dramaturgie est-elle le nom? (boudier et al., 2014): pois ali, a par-
tir da breve obra de Joseph Danan (2010), que faz daquela questão
seu título (Qu’est-ce que la dramaturgie?), são listados dois sentidos
porque distintos dois fazeres: no sentido 1, diríamos sumariamente,
a dramaturgia é afirmada como um fazer sobretudo textual, produ-
tor de literatura dramática; no sentido 2, como um fazer ligado me-
nos a textos do que a tessituras, a matérias e sentidos para além da
1 O texto refere-se às duas primeiras sessões do projeto, realizadas em Ams-

terdam (março de 1999) e em Barcelona (novembro de 1999); entre os partici-


pantes, além do próprio Scott deLahunta, listam-se nomes como André Lepecki,
Heidi Gilpin e Myriam Van Imschoot, além de Diana Theodores, Hildegard De
Vuyst e Isabelle Ginot.

– –
10 11
org s .
(eventual) dimensão propriamente textual, um fazer afinal copro- Para além da pergunta “o que é dramaturgia?” – pergunta que
dutor de cena, de encenação. E é mesmo neste sentido 2 que, hoje, não quer resposta, mas fazer problema –, e considerada a paisagem
reconhecemos algo que cênica nacional hoje, importa com igual pertinência ainda uma ou-
está, claramente, na base de toda criação artística, quer se trate de mon- tra: como pensar dramaturgia na ausência desta figura que encarna
tar uma peça ou de dar um concerto. Nós lidamos o tempo todo com e personifica a tarefa do seu fazer? Mais simplesmente: como pen-
dramaturgia, até quando nós não lidamos com ela. Desde que se saiba sar dramaturgia sem dramaturgista? Pois é fato que, à diferença
no que consiste a dramaturgia, pode-se vê-la e encontrá-la em todos do que se passa talvez em outras paisagens — sobretudo, sabida-
os lugares (lamers, apud kerkhoven, 1997, p. 19).2 mente, na alemã e na belga —, a dramaturgia na dança se faz ques-
A língua alemã, aquela a partir da qual o “moderno”3 sentido 2 tão entre nós predominantemente na ausência daquela figura. Daí
da palavra dramaturgia emergiu, soube evitar a equivocidade na no- que, embora alguns dos ensaios aqui recolhidos pareçam ocupar-se
meação das figuras às quais se atribuem aqueles fazeres; assim, as dela, importa — mesmo neles — pensar sobretudo os fazeres vários
palavras Dramatiker (o autor de textos dramáticos) e Dramaturg (o subsumidos pela palavra dramaturgia, o que, material e imaterial-
coautor de tessituras cênicas) distinguem fazeres de uma maneira mente, implica o fazer dramatúrgico. Importa pensar, afinal, aquilo
que não se repete nas línguas inglesa, francesa ou portuguesa, nas que Bernard Dort (1986, p. 8, tradução nossa) chamou, desde a pai-
quais as palavras dramaturg, dramaturge e dramaturgo, respectiva- sagem teatral francesa, de “estado de espírito dramatúrgico”:
mente, recobrem ambos os sentidos. A reflexão dramatúrgica está presente (conscientemente ou não) em
No entanto, aqui, assumimos o termo não completamente dicio- todos os níveis da realização. É impossível limitá-la a um elemento ou

 
narizado dramaturgista4 para operar em nossa língua aquela distin- a um ato. Concerne tanto à elaboração do cenário, ao modo de repre-

 
ção, mesmo que, entre nós, não seja incomum operá-la repetindo a sentar dos atores, como ao trabalho do “dramaturgista” propriamente
original alemã Dramaturg. Assumimos, assim, o termo que tem se dito. Impossível circunscrever no teatro um domínio dramatúrgico. En-
tão, em vez de trabalho dramatúrgico, falarei de estado de espírito dra-
consolidado em razão de seu uso por aqueles – falantes do portu-
matúrgico.
guês – que tratam de dramaturgia: indagado a esse respeito, André
Lepecki muito simplesmente respondeu: “[…] foi como sempre usei É por assim definir a dramaturgia que Dort (idem, p. 10) pode di-
o termo em português, dado que dramaturgo significa também ou zer, talvez polemicamente: “O dramaturgista é transitório. […] Uma
principalmente, escritor de peças de teatro, e dramaturg me parece vez partilhado o estado de espírito por todos, o dramaturgista será
não português”.5 supérfluo”.
O fazer dramatúrgico se quer portanto plural, errático, trans-
versal, distributivo e expansível sobre variados domínios cênicos e
artísticos, nutrido por variados domínios não necessariamente cê-
2 Consultar a presente publicacão, p. 179.
nicos nem artísticos, ligado a uma poética de sentido inscrita no
3 Consultar Pavis, 1999.
4 Como escreve Fátima Saadi (2010, p. 102), “só a partir da década de 1990
espaço-tempo singular de cada obra – de cada uma de suas efetua-
a palavra dramaturgista começou a ser utilizada na imprensa e, aos poucos,
ções performativas –, operando das mediatas decisões das salas de
nas fichas técnicas dos espetáculos de teatro”.
5 E-mail aos editores.

– –
12 13
ensaio até as imediatas decisões que modulam um gesto cada vez gia que nos interessa, pois que se anuncia como uma “[…] ‘prática’
que é performado. (aberta) que visa questionar e a produzir pensamento” (idem), alheia
Daí que a dramaturgia seja repetidamente afirmada, hoje – a qualquer desejo de prescrever procedimentos e arbitrar sentidos.
exista ou não a figura do dramaturgista –, como um fazer com- Os textos aqui coletados pretendem, portanto, não mais do que
partilhado, um “campo coativo” em que “não tanto um texto, mas isso: questionar e produzir pensamento. Sua disposição obedece à
uma textura é tecida, entrelaçada, suturada”6 , um espaço comum mera e arbitrária ordem alfabética de nomes: diante do único de-
pois ocupado por todos com a propriedade de seus saberes e com sejo de dar a ler textos referenciais – donde um certo sabor de anto-
o exercício de seus não saberes. Fazer in situ, a dramaturgia não logia e a predominância de escritos europeus –, qualquer outra con-
pode supor (pre)determinações generalizantes. figuração pareceu-nos artificiosa: portanto, não há aqui nem blocos
Recuando a Lessing, de fato, ao preterir o inicialmente consi- temáticos, nem uma ordenação cronológica, mas uma série de en-
derado título Didascálias de Hamburgo (o que talvez erroneamente saios mais ou menos curtos, intervalados, eventualmente, ora por
insinuasse um desejo de instrução, indicação ou mesmo de norma- alguns aforismos, ora por algum dos cinco verbetes colhidos dentre
tização de procedimentos, à maneira de escritos aristotélicos) em os mais de trinta publicados no recente e, diríamos, já fundamental
favor de Dramaturgia de Hamburgo, ele permite-se “decidir o que De quoi la dramaturgie est-elle le nom?, um léxico produzido pelo
[nela] incluir ou não” (s/d, p. 488)7 , não sem lembrar a seus leitores Laboratoire Agôn – Dramaturgies des arts de la scène, de Lyon.8
– sacrificando-se “[…] o axioma da não-contradição, a pretensão de Aqui, estão abarcadas aproximadamente duas décadas: do semi-
coerência própria, que assumimos como obrigatórios para todos os nal dossiê Danse et dramaturgie publicado pela Nouvelles de Danse,

 
que escrevem e falam”, conforme escreve a esse propósito Hannah em 1997, até a recém-publicada coletânea organizada por Pil Han-

 
Arendt (2008, p. 11) – que sen e Darcey Callison, de 2015, extraímos textos assinados por no-
estas folhas contém tudo menos um sistema dramático. Portanto, não mes notabilizados como pensadores e fazedores de dramaturgia.
sou obrigado a resolver todas as dificuldades que crio. Meus pensamen- Evidentemente, teria sido possível – não fosse a dimensão limitada
tos podem parecer cada vez menos conexos, podem mesmo parecer se de nosso projeto editorial –, multiplicá-los. Esperamos que outras
contradizer, pouco importa, desde que sejam pensamentos em que se iniciativas o façam, haja vista a atualidade do tema na dança e na
encontre matéria para pensar! Aqui, quero apenas disseminar fermenta cena que produzimos hoje no Brasil.
cognitionis (lessing, s/d, p. 479, tradução nossa). Este Dança e dramaturgia[s] quer, portanto, sobretudo, colabo-
Daí que a “revolução operada por Lessing” (danan, 2010, p. 14), rar com a formação de uma bibliografia em língua portuguesa sobre
mesmo ali onde não se trata ainda propriamente da questão da en- o tema, e ambiciona ter seus textos transitando entre aqueles que
cenação, tal como veio a se estabelecer a partir de fins do século xix, pensam e fazem dramaturgia tanto no contexto artístico quanto no
instaure dimensões que, diríamos, permanecem caras à dramatur- acadêmico. Por isso, mesmo seu projeto gráfico se quer favorecedor
6 Conforme Lepecki, na presente publicacão, p. 61. 8 Agradecemos aos editores Marion Boudier, Alice Carré, Sylvain Diaz e Barbara
7 Em LESSING, lemos: I had had the intention of calling my journal the ‘Hamburg Métais-Chastanier, assim como à editora L’Harmattan pela gentil concessão
Didaskalia’. But the title sounded too foreign and now I am very glad I dos direitos de tradução e publicação dos verbetes aqui apresentados. Para
preferred the present one. What I chose to bring or not to bring into a acessar a produção textual do laboratório, consultar a Agôn: Revue des arts
Dramaturgy, rested with me”. de la scène, no link: agon.ens-lyon.fr/.

– –
14 15
de sua circulação em outros formatos: a proporção de suas páginas, Referência
a posição de sua área impressa, o contraste e o tamanho de seus
• arendt, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Compa-
caracteres, os espaços vazios que ladeiam seus textos (e que convi-
nhia das Letras, 2008.
dam a anotações) querem alegremente facilitar a reprodução, des-
tino sabido e fundamental para uma efetiva capilarização de produ- • danan, Joseph. Qu’est-ce que la dramaturgie? Arles: Actes Sud,
ções impressas, diante de nossa realidade social e educacional: a fo- 2010.
tocópia de qualquer folha deste livro é legal, diríamos, contrariando • delahunta, Scott. Dance dramaturgy: speculations and reflexi-
a praxe editorial. ons. Dance Theatre Journal, v. 16 n. 1, 2000, p. 20–25.
Agradecemos ao Instituto de Cultura e Arte (ica) e aos cursos
• dort. Bernard. L’état d’esprit dramaturgique. Théâtre/Public, Dra-
de bacharelado e licenciatura em Dança da Universidade Federal do
maturgie, n.67, 1986.
Ceará, dos quais fazem parte os professores Paulo Caldas e Thereza
Rocha. • kerkhoven, Marianne Van. Les processus dramaturgique. Nouvel-
Agradecemos imensamente aos autores e editoras, sobretudo à les de Danse. Dossier danse et dramaturgie, n. 31. Bruxelas: Con-
sarma – Laboratory for discursive practices and expanded publica- tredanse, 1997.
tion9 , plataforma online mantenedora de um importante acervo de • lessing, Gotthold Ephraim. Hamburg dramaturgy. Londres: Wil-
documentos escritos e sonoros, inclusive de antologias de textos liam Clowes and Sons, Ltd. s/d.
de André Lepecki e Marianne Van Kerkhoven (da qual gentilmente
• pavis, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Editora Perspectiva,
 
nos cedeu o direito de tradução e publicação).
1999.
 
A André Lepecki e Armando Menicacci, nossos agradecimentos
pelo apoio e pelo estímulo ao desenvolvimento deste projeto. • saadi, Fátima. Dramaturgia/Dramaturgista. In: nora, Sigrid. Te-
Por fim, gostaríamos de agradecer à Petrobras por patrocinar a mas para a dança brasileira. São Paulo: Edições sesc sp, 2010.
realização desta publicação, fruto da política de apoio à produção e
difusão de conhecimento em dança da Vila das Artes, equipamento
cultural ligado à Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza.
ernesto gadelha e paulo caldas

9 Consultar: sarma.be/pages/Index .

– –
16 17
1 e 2
“O
BOUD I ER , Mario n et al. CALDAS ,
D e q uoi l a d ra mat urgi e Pau lo; qe é a dramaturgia?”, pergunta, com razão, numa
est -el l e l e nom? Pari s :
GADELHA, obra epônima, Joseph Danan (2010), que relembra a
drama-
L’Harmat t an, 2 014. p.
1 5- 1 8 Er n es t o.
D a nça e dra -
dupla acepção deste termo na língua francesa. A dra-
maturgia, em primeiro lugar, é “[…] a arte da composição de peças
tu r g i a s
maturgia [s].
São Paulo: de teatro” (p. 7), seguindo uma definição que prevalece desde Lit-
nex us, 20 16 .
tré até Patrice Pavis, como relembra o ensaísta que fala de “drama-
turgia no sentido 1”, ou “dramaturgia 1”.1 A dramaturgia é, em se-
 gundo lugar, de acordo com a definição dortiana, retomada e sinte-
 tizada por Joseph Danan, o “[…] pensamento da passagem à cena
das peças de teatro” (idem, p. 8) que se encontra designado como
“dramaturgia no sentido 2”, ou “dramaturgia 2”.
Essa segunda acepção foi herdada de uma prática alemã inici-
ada no século xviii por Lessing, que, em Hamburgo, trabalha em
nada menos que uma reforma do teatro.2 Trata-se, especialmente,
de desfazer o sistema do principado entre os atores, que até então
era regra — o ator principal se impondo como empresário e diretor
artístico da companhia. Tal empreitada se dá pela introdução, na
instituição teatral, de um terceiro, que estaria encarregado de favo-
recer a colaboração entre a direção do teatro — que escolhe as obras

1 DANAN, Joseph. Qu’est-ce que la dramaturgie? Arles: Actes Sud, 2010. p. 7.

(Coleção Apprendre).
2 LESSING, Gotthold Ephraim. Dramaturgie de Hambourg. Tradução de Jean-Marie

Valentin. Paris: Klincksieck, 2010 [1769]. p. 4. (Coleção Germanistique).

– –
18 19
— e os praticantes — que as conduzem à cena — a fim de oferecer ao Para o autor, então, a dramaturgia não é mais que uma forma de 1 e 2
dra-
espectador uma apresentação coerente, atendendo às exigências es- escrita crítica que oferece uma certa liberdade na sua ausência de m atu r -
téticas e ideológicas do autor.3 Além disso, importa ressaltar a des- normatividade, razão pela qual deve permanecer não definida. Não gias

crição dada por Lessing ao considerar o efêmero Teatro Nacional é a própria obra de Lessing que determina a dramaturgia 2, mas a
de Hamburgo (1767–1768) como uma “[…] sociedade de amigos do prática singular do teatro iniciada em Hamburgo, quando ela supõe
teatro colocando a mão na massa” e trabalhando em um projeto de a aparição de um terceiro denominado ulteriormente Dramaturg.
utilidade pública contra os cálculos egoístas dos chefes de trupe.4 É importante notar que esse neologismo impede qualquer con-
Essa é a identidade do primeiro Dramaturg. No entanto, é ne- fusão com o autor de peças, nomeado em alemão Dramatiker; confu-
cessário notar que Lessing nunca se designa como tal, mesmo que, são, ao contrário, efetiva na língua francesa, onde dramaturge (dra-
no final de sua experiência em Hamburgo, ele tenha publicado, maturgo) designa tanto quem escreve a obra como quem acompa-
em 1769, uma coleção de textos inicialmente destinados aos espec- nha o processo de sua criação, suscitando desconfiança com relação
tadores do Teatro Nacional, precisamente intitulada Dramaturgia a essa função e mal-entendidos quanto a essa prática. Tanto que,
de Hamburgo. O termo Dramaturgia não é, contudo, objeto de ne- como Claude-Henri Buffard, alguns artistas não necessariamente
nhuma definição. Lessing apenas apresenta sua obra na introdução francófonos chegaram a militar pela invenção de uma nova palavra
como “uma revisão crítica” de todas as apresentações que acontece- para designar a dramaturgia 2, a fim de diferenciá-la da dramatur-
ram no Teatro Nacional de Hamburgo, a fim de “[…] acompanhar gia 1.8 Assim, Corrado Bertoni, um dos colaboradores de Caterina
cada passo que fará a arte do poeta, como a do ator”.5 Ele volta a Sagna, propõe falar de “dramasurgia (o que permite o surgimento

 
tratar do título de sua obra no último artigo da coleção, no qual ex- da ação)”, ou também de “dramapurgia (o que purga a ação)”, e até

 
plica ter cogitado dar como título Didascálias de Hamburgo em re- mesmo de “drama-urgie”, para ressaltar “a urgência da ação”.9 E um
ferência a “[…] estas curtas notas […] que o próprio Aristóteles não universitário do Quebec preferiu, ao termo de “dramaturgo”, o de
se recusava em redigir sobre as peças da cena grega”.6 Pelo fato de “dramaturgista”, a fim de evitar qualquer confusão.10
“[…] os eruditos pensarem que sabem com o que ela[s] deve[em] Não podemos negar a ambiguidade desta noção fugidia, por sua
parecer”, Lessing prefere, finalmente, Dramaturgia à Didascálias de dualidade, de dramaturgia, mas será que temos, contudo, que re-
Hamburgo, forma inédita na qual ele é o único a decidir o que pode nunciar a ela? Com efeito, convém, com Joseph Danan, considerar
“incluir ou não incluir”.7 que é a sua própria dualidade que determina seu interesse11 , pois
se elas são distintas, dramaturgia 1 e dramaturgia 2 não se excluem:
8 BUFFARD, Claude-Henri; GALLOTA, Jean-Claude. Le chorégraphe et son drama-
3 Sobre a participação de Lessing no projeto do Teatro Nacional de Hamburgo turge. Encontro organizado por Marion Boudier e Aude Thuries. Agôn [re-
entre os anos de 1797 e 1798, cf.: DORT, Bernard. Le ‘Mule’ de Lessing. vista eletrônica], Danse et dramaturgie, Le laboratoire. Disponível em:
L’Écrivain périodique. Editado por Chantal Meyer-Plantureux. Paris: P. O. L., <http://agon.ens-lyon.fr/index.php?id=924>. Acesso em: 23 nov. 2009.
2001. p. 332–351. 9 ADOLPHE, Jean-Marc. La dramaturgie est un exercice de circulation pour tenir
4 LESSING, Gotthold Ephraim. Dramaturgie de Hambourg, op.cit., p. 4. le monde à l’écart. in Nouvelles de danse, n. 31, 1997, p. 32.
5 Id. 10 BOURASSA, André G. Glossaire du théâtre. Disponível em:
6 Ibid., n.101–104, 19 de abril de 1768, p. 332. <http://www.theatrales.uqam.ca/glossaire.html#D>. Acesso em: 7 abr. 2011.
7 Id. 11 DANAN, Joseph. Qu’est-ce que la dramaturgie? Op.cit., p. 5–6.

– –
20 21
frequentemente, o comentário da obra se faz reescritura para dar
sentido12 à representação. Isso é ainda mais verdadeiro nas práti-
cas artísticas não-textuais, onde dramaturgia 1 e 2 tendem, às ve-
zes, a se confundir. Assim, no campo da dança, Bojana Cvejić con-
sidera, junto a outros, que coreografia e dramaturgia são um só: so-
mente regimes de trabalho diferentes durante o processo de criação
do espetáculo.13
Então, como pensar não a unidade, mas a coerência dessa dra-
maturgia necessariamente dual, plural e que poderíamos conside-
rar como contraditória? Talvez a etimologia, sondada por Euge-
nio Barba em L’Énergie qui danse (2008), possa nos ajudar: “drama-
-ergon” designa, de fato, segundo ele, o “trabalho”, a “implementa-
ção das ações” no palco, definição que corresponde tanto à drama-
turgia 1 quanto à dramaturgia 2.14




12 N. do E.: Consultar verbete SENTIDO na página 215.


13 Bojana Cvejić, em entrevista inédita concedida a Marion Boudier, Alice

Carré e Barbara Métais-Chastanier, realizada em Paris no dia 17 de abril


de 2010. C.-H. Buffard está próximo, neste ponto, da posição expressa por
B. Cvejić: Buffard, Claude-Henri; Gallota, Jean-Claude. Le chorégraphe et
son dramaturge. Encontro organizado por Marion Boudier e Aude Thuries. Agôn
[revista eletrônica], Danse et dramaturgie, Le laboratoire. Disponível em:.
Acesso em: <http://agon.ens-lyon.fr/index.php?id=924> 23 nov. 2009.
14 BARBA, Eugenio. Actions au travail. In: BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola.

L’énergie qui danse. Montpellier: L’Entretemps, 2008. p. 54.

– –
22 23
Dramaturgia é a ética que compõe o
trabalho que traz ao mundo a obra-por-vir.
trecho de: André Lepecki
[e-mail aos editores]

O crime CALDAS ,
Vers ão am p liad a e
at u aliz ad a d o texto Pa u lo ;
p u b licad o e m : NORA ,
GADELHA,
compensa
S i g rid (O rg .). Tem a s
para a d a n ç a b ra s i l ei ra . E r n e st o .
S ã o Paulo: E d içõe s Danç a e d ra-

ou o poder
SES C S P, 2 0 1 0 . maturgi a[s].
S ã o Pa u l o :
n ex u s, 20 1 6.

da drama-
tu r g i a
––––––
Ana
Pa i s

– –
24 25
Ana Pais é dramaturgista, O crime qando este texto foi publicado pela primeira vez no Brasil, na
compensa ou
curadora e investigadora.
o p o d e r da coletânea editada pelo sesc Temas para a dança brasileira, em 2010,
Além disso, é doutora
em Estudos de Teatro na
d r a m atu r g i a assistíamos a um momento de viragem na edição de textos sobre
Faculdade de Letras da
––––––
a n a PA IS
dramaturgia no plano internacional. Desde 2006, surgiu mais de
Universidade de Lisboa uma dezena de novos volumes sobre dramaturgia (só em 2015 foram
com a dissertação: Comoção: publicados cinco estudos).1
os ritmos afectivos do Tais publicações propõem outras cartografias e problematizam

acontecimento teatral e
o papel do dramaturgista no contexto atual da sociedade globali-

autora do livro O discurso da
cumplicidade. Dramaturgias zada. Algumas obras centram-se nas práticas teatrais; outras nas
contemporâneas (2. ed. práticas coreográficas; outras ainda expandem-se pelo campo das
Lisboa: Edições Colibri, artes visuais e artes multimídia. Esta emergente bibliografia sina-
2016). liza a urgência de refletir sobre a expansão do conceito de drama-

turgia, intensificando-se à medida que a figura do dramaturgista

1 TRENCSÉNYI, Katalin. Dramaturgy in the making: a user’s guide for theatre


practitioners. Londres; Nova York: Bloomsbury, 2015.
PROFETA, Katherine. Dramaturgy in motion: at work on dance and movement
performance. Madison: University of Wisconsin Press, 2015.
KUNST, Bojana. Artist at work, proximity of art and capitalism. Winchester:
Zero Books, 2015.
HANSEN, Pil; CALLISON, Darcey (Orgs.). Dance dramaturgy: modes of agency,
awareness and engagement. Londres: Palgrave Macmillan, 2015.

PITÁGORAS 500: Revista de Estudos de Teatro. Dossiê dramaturgias di-


versas, v. 8, (jun. 2015). Disponível em: <publionline.iar.unicamp.br-
/index.php/pit500». Acesso em: 29 jan. 2016.

– –
26 27
ganha terreno em áreas distantes da sua origem vinculada ao texto Podemos falar de coreografia expandida desde que Mårten O crime
compen-
dramático, a exemplo das áreas de curadoria e das práticas discur- Spångberg promoveu uma conferência sobre o tema em 2012, con- sa ou o
sivas. tando com participantes de vários campos artísticos e teóricos.2 poder
da dra-
Porém, as recentes publicações estão disponíveis maioritaria- Naquela ocasião, começamos a pensar noções de teatralidade ex- m atu r -
gia
mente em inglês, revelando a necessidade imperiosa da presente pandida, pelo menos a partir da discussão de Michael Fried (1998) ––––––
antologia em português, bem como da reedição portuguesa, em sobre a força insidiosa da teatralidade sobre as formas puras da es- ana
pa i s
2016, do livro que deu origem a este artigo (pais, 2004). Uma das ra- cultura; podemos conceber a coreografia, a documentação ou o ar-
ras exceções é a edição bilíngue inglês/espanhol Rethinking drama- quivo como “práticas expandidas”, como as designou Paula Caspão
turgy, errancy and transformation (belisco; cifuentes, 2010). Este (2016), dinamizando um seminário em Lisboa com o objetivo de
volume enfatiza a importância de abordar a dramaturgia como um ressituar as suas práticas transversais na relação com o capitalismo
“campo expandido”, um espaço de mediação entre elementos do neoliberal e as economias de conhecimento a ele associadas. Nes-
evento teatral e os âmbitos social e político (direção para a qual tas práticas, a dramaturgia afigura-se, explícita ou implicitamente,
a segunda seção do livro aponta). O volume contempla tópicos da uma ferramenta essencial para circunscrever o lugar de onde se
dramaturgia da dança e da multimídia, para além das práticas tea- fala e o campo para o qual se fala, na medida em que esta circuns-
trais, promovendo uma inovadora mediação entre tradição e con- crição decorre de escolhas estruturais sobre o modo como se atra-
temporaneidade, teatro e dança, o Norte (geografias de onde ainda vessam diferentes campos, onde se insere o discurso produzido e
surgem a maioria dos trabalhos) e o Sul. Esta noção de um campo como estes gestos reconfiguram os campos tradicionais, quer da

 
expandido é relevante não só para compreender a disseminação do arte, quer da sua relação com os aspectos sociais e políticos.

 
conceito de dramaturgia, mas também os riscos que ela acarreta. Como ferraa figura do dramaturgistamenta de produção e aná-
Se hoje o conceito de dramaturgia tem validade operativa em vá- lise, a dramaturgia surge em práticas artísticas que, de alguma
rias disciplinas artísticas e em diferentes campos discursivos, isso forma, desviam-se dos materiais, processos e metodologias tradici-
se deve, por um lado, a uma crescente conceitualização das artes onais das disciplinas em que emergem. Os múltiplos e crescentes
enquanto práticas expandidas, que designam quer cruzamentos de cruzamentos entre linguagens artísticas, bem como entre técnicas
formatos artísticos, quer ligações entre o artístico, o social e o polí- tradicionais e tecnologias inovadoras que caracterizam muitas das
tico. Por outro lado, a miscigenação das linguagens artísticas prati- experiências contemporâneas, exigem repensar os modos de fazer.
cada desde o surgimento da Performance Art, cuja sintaxe define a Embora as estratégias estéticas da Performance Art venham conta-
singularidade artística da estética dos criadores, vem exigindo uma minando outras artes há mais de uma década, nos nossos dias, a
reflexão sobre metodologias e formas de estruturação de sentido e variedade de opções de formatos, processos e cruzamentos é expo-
reclamando operações dramatúrgicas na construção de novos for- nencialmente maior. Os próprios criadores começam por ter uma
matos e enunciados. Em ambos os casos, a dramaturgia é reclamada formação híbrida, tanto técnica, dentro de uma mesma disciplina,
como uma ferramenta pertinente para atravessar esses novos terri-
tórios, mostrando uma forte influência na definição do posiciona- 2 O encontro Expanded Choreography: Situations, Movements, Objects foi rea-
mento artístico e teórico dessas práticas, bem como na reconfigura- lizado de 28 a 31 de março de 2012. Disponível em: <macba.cat/en/expanded-
ção dos próprios campos. -choreography-situations>.

– –
28 29
quanto disciplinar, combinando ferramentas de diferentes campos. necessariamente o conhecermos, tal como o nosso corpo funciona O crime
compen-
Neste sentido, podemos acrescentar a Marianne Van Kerkhoven, do ponto de vista fisiológico independentemente da consciência do sa ou o
para quem não só cada processo dramatúrgico é único, posto que Eu. O Genius é o ser que nos é estranho, mas com o qual convi- poder
da dra-
depende das pessoas, das condições e dos acasos envolvidos no pro- vemos intimamente; torna-se invisível pelo hábito, embora perma- m atu r -
gia
jeto, mas também que para cada artista/obra existe uma singulari- neça como uma “uma zona de não conhecimento” (agamben, 2007, ––––––
dade estética decorrente dos processos dramatúrgicos que a define p. 17). ana
pa i s
como única, já que as linguagens e formatos artísticos convocados À parte da questão divina, a dramaturgia partilha, com esta ca-
e articulados já partem de uma matriz miscigenada (kerkhoven, racterização do Genius, a noção de uma intimidade com um ser es-
1994b). tranho, que se constitui fatalmente como uma zona de não conheci-
A dramaturgia tornou-se, portanto, um modo de fazer; um con- mento – no caso, inerente ao espetáculo ainda por ser criado e que
ceito e uma prática familiar a diversas áreas artísticas e não artís- se revela durante o processo. De certa forma, a invisibilidade que
ticas. Se familiar é aquilo que conhecemos, fator de conforto e se- identifiquei como constitutiva da dramaturgia e que está patente
gurança fundamental para o domínio de qualquer prática, aquilo na escolha do conceito de cumplicidade para distinguir o seu dis-
que nos é estranho, pelo contrário, é como um grão na experiência, curso no espetáculo possui uma relação íntima com a encenação,
um incômodo capaz de potencializar novos desafios. Ao tornar o posto que prevalece a tradição da autoria consignada ao encenador
mundo mais próximo, a familiaridade também cria hábitos de ação (ou ao autor), ficando a dramaturgia encrustada na visibilidade das
e de relação com ele, visto que ela estrutura, constrói e delimita opções tomadas por ele (pais, 2004).

 
um território de intimidade apaziguador que se concretiza na repe- Enquanto zona desconhecida e estranha, tal invisibilidade par-

 
tição de gestos, ações e de encontros. Entrar no hábito, porém, im- ticipa da constituição do espetáculo e revela-se nas escolhas do seu
plica entrar na invisibilidade. A grande intimidade com determina- lado visível. Neste sentido, a dramaturgia pode ser familiar, mas
dos aspectos familiares do mundo e da nossa ação nele apaga os de- ignorada enquanto força autônoma; desconhecida, mas ativa na es-
talhes da experiência, retirando a possibilidade de ver a coisa como truturação de sentidos; estranha, mas íntima dos processos de cons-
ela é. A “força do hábito”, como a expressão popular tão bem for- trução do enunciado. No entanto, por mais familiar que se torne
mula, opera sem sabermos em consciência se as opções que toma- nos diversos campos onde ocorre e em que vai se reconfigurando,
mos são adequadas ou não, posto que os gestos, as ações e os en- a dramaturgia resiste a tornar-se um hábito que age por si justa-
contros se tornam invisíveis, esquecidos e ignorados, abandonados mente porque seu tipo de invisibilidade é estranho e desconhecido.
a uma força que repete sem ser questionada. Esse grão do processo criativo potencializa diversificados modos de
Como lembra Giorgio Agamben no seu ensaio sobre o conceito fazer, outros enunciados artísticos e renovadas cumplicidades.
de Genius, o deus que nos cabe como protetor no dia em que nas- Ao longo da pesquisa para o livro O discurso da cumplicidade.
cemos tal como era entendido na Antiguidade romana, o que nos é Dramaturgias contemporâneas, de que este artigo constitui um re-
mais íntimo e pessoal é também aquilo que é mais impessoal: em- sumo, era clara, para mim, a necessidade de um movimento para-
bora nos pertença, não o conhecemos. Para ele, viver com a divin- doxal: para compreender a especificidade da dramaturgia era pre-
dade que nos guia não é apenas uma crença espiritual como tam- ciso considerar o seu amplo espectro de incidência e, assim, descor-
bém uma prática impessoal. Convivemos com o nosso Genius sem tinar as razões da sua disseminação enquanto metáfora e prática.
– –
30 31
O elo comum consiste nas operações de escolha e no modo como um espetáculo. Essas revoluções envolvem o lugar do texto no es- O crime
compen-
estas estabelecem conexões significativas e complexas. petáculo e as relações de contaminação recíproca entre as diferen- sa ou o
O discurso da cumplicidade. Dramaturgias contemporâneas toma tes artes que acontecem a partir dos anos 1960/1970. Por um lado, poder
da dra-
por objeto a dramaturgia enquanto modo de estruturação do sen- é retirada do texto – matriz em potência traduzida para a cena – a m atu r -
gia
tido no espetáculo. Contemplam-se dois propósitos nucleares: iden- centralidade, convertendo-se num material paritário e transformá- ––––––
tificar e sistematizar as múltiplas e coexistentes acepções e contex- vel, tal como todos os outros materiais cênicos. Simultaneamente, o ana
pa i s
tos do termo dramaturgia e subsequentes visões do dramaturgista; questionamento da figura do encenador enquanto visionário e au-
e analisar o discurso dramatúrgico como modo de dar a ver, cons- tor maior do espetáculo teve consequências claras tanto na ampli-
tituindo um ponto de cruzamento entre materiais cênicos através tude dos processos criativos (criação coletiva, colaborações) como
da criação de relações de sentidos no tecido da representação. As- na própria organização interna dos mesmos (distribuição de fun-
sim, num primeiro capítulo, distinguem-se os momentos da evolu- ções, fixação de escolhas). Por outro lado, o surgimento da Perfor-
ção do termo dramaturgia nas artes performativas em geral, e no mance e a interdisciplinaridade que dela emerge também oferecem
teatro e na dança em particular, que nos parecem pertinentes para estimulantes desafios para as artes performativas, particularmente
a discriminação da variedade dos seus significados e de conotações no plano da concepção do que são os materiais cênicos e das suas
deles decorrentes (Lessing e Brecht, a Performance, os anos 1960 possibilidades de utilização em cena. A Performance abre um uni-
e 1970 e os paradigmas pós-modernistas da Europa Central). Na verso de questionamento e reflexividade para as artes de palco que
segunda parte, foi ensaiada uma proposta teórica da dramaturgia exige um labor dramatúrgico na estruturação dos sentidos do espe-

 
como modo de criar relações de cumplicidade – implícitas, invisí- táculo e uma procura de outras lógicas de organização dos materi-

 
veis e ilícitas – numa ação comum, passível de contribuir para o ais, deixando as suas marcas bem visíveis na diversidade das práti-
entendimento da sua participação fundamental em qualquer espe- cas contemporâneas.
táculo. Ela será, pois, equacionada como um discurso da cumplici- A dança, especialmente a contemporânea, sobretudo a partir
dade. Ambicionou-se, ainda, refletir sobre as implicações da metá- dos anos 1980/1990, reclamou para o seu espaço de ensaio e sua ex-
fora do teatro e a invasão terminológica da dramaturgia em discur- perimentação a figura do dramaturgista, tirando partido dele como
sos e saberes não artísticos, procurando perceber como ambas – me- um colaborador ativo na criação, cúmplice direto da construção de
táfora e invasão – estão patentes na forma de constituir a realidade novas lógicas e de relações de sentido entre os materiais na cena.
“mundo” e na relação que com ele estabelecemos. Quando existe um dramaturgista envolvido na produção de um es-
petáculo, há uma série de expectativas quanto a sua colaboração
I. no processo. Ele desempenha, contudo, um papel ambíguo, porque
enquanto elemento participante na concretização do espetáculo, a
Depois da incontornável contribuição de Brecht para a prática dra- sua colaboração nunca é fixa e não está incluída no elenco tradici-
matúrgica, abrindo as portas da sala de ensaio ao dramaturgista e onal das funções artísticas. Ela pode abarcar múltiplas tarefas, que
inaugurando o conceito de dramaturgia como “adaptação”, deram- são estipuladas no início de cada processo criativo e até alteradas
-se outras revoluções que alteraram profundamente os materiais, os no seu decorrer. Tentemos enumerar, de forma inevitavelmente in-
processos criativos e o funcionamento das equipes que levam à cena
– –
32 33
completa, dadas as especificidades de cada processo, suas tarefas e • manter-se alerta, numa atitude de observador/participante que re- O crime
compen-
funções na atualidade: corda as motivações do espetáculo, tendo em vista a sua concep- sa ou o
ção global, comentando o desenrolar do processo; poder
da dra-
1. trabalho com os materiais: • contribuir para a estruturação de sentidos do espetáculo, opi-
m atu r -
gia
• desenvolver uma análise ou descrição crítica do texto dramático nando, questionando, refazendo, problematizando as escolhas ––––––
ana
(no caso de se tratar de uma tarefa vinculada ao texto), da temática que envolvem todo o discurso da cena; pa i s
ou da abordagem a que se propõe o espetáculo;
• servir o processo como uma consciência crítica;
• pesquisar o contexto histórico e cultural do texto, do autor e do
• ampliar o universo de materiais e escolhas e, posteriormente, aju-
tema;
dar a reduzi-las ao essencial;
• pesquisar temáticas ou tópicos que possam relacionar-se com o es-
• atender à coerência das relações internas dos materiais cênicos uti-
petáculo e inspirar o processo criativo recorrendo a qualquer tipo
lizados em função dos objetivos e implicações da concepção geral
de material (literatura, filosofia, cinema, música, imagens, mitos,
do espetáculo;
história, ciência, artes plásticas, artigos de jornais, programas de
televisão, novas tecnologias etc.), de modo a ampliar as possibili- • ter presente a ideia da totalidade do espetáculo e dos efeitos que
dades das escolhas; as opções da encenação pressupõem;
• fundamentar as opções da encenação ou coreografia, constituindo • observar o processo e gerir o momento e a forma adequados para

 
as relações de sentido entre os materiais cênicos; expressar as suas opiniões;

 
• assessorar o dramaturgo no processo de escrita ou adaptação (cor- • trazer materiais (imagens, registros de áudio e vídeo, artigos de
tar, reescrever, determinar uma linha interna de coerência entre jornal, entrevistas, filmes, livros e frases) e fazer propostas de idas
as personagens, história etc.), caso haja um; a lugares, exposições ou espetáculos passíveis de estimular a cria-
tividade do encenador (ou coreógrafo) e de toda a equipe; e
• adaptar e/ou traduzir textos dramáticos, poéticos ou narrativos,
concebendo um roteiro do espetáculo; • considerar a sua função de “olhar exterior” ou de “primeiro espec-
tador, mediando a relação entre espetáculo e público.
• escrever e editar textos para o programa.
O vasto e diversificado elenco de tarefas pode ser lido tanto como
2. ensaios: uma consequência da especialização (do fato de cada vez mais es-
• tomar notas para debater com o encenador ou coreógrafo; treitarmos o âmbito da nossa atividade, havendo, portanto, drama-
• colaborar com o encenador (ou coreógrafo), confrontando-o com turgistas especializados em determinadas tarefas) quanto como re-
o seu ponto de vista; sultado da evolução do conceito de dramaturgia e da amplitude de
exigências feitas ao dramaturgista contemporâneo. No processo cri-
• colocar de modo sistemático as perguntas (por quê? quando?
ativo, a sua pertinência consiste numa presença menos retórica e
onde? como?);
mais orgânica: ele constitui-se como um colaborador, um Outro,

– –
34 35
prefigurando uma ontologia da alteridade. Queremos, com isto, di- opções da dramaturgia a dupla face – oculta e fundacional – das O crime
compen-
zer que a imagem que propomos do dramaturgista nas práticas atu- opções da encenação ou coreografia, poderíamos acrescentar que sa ou o
ais assenta-se na sua contribuição enquanto sujeito histórico e cul- tanto o dramaturgista como o encenador ou coreógrafo partilham poder
da dra-
tural, indivíduo com saberes e instrumentos próprios e diferentes funções basilares: observam, selecionam e estruturam os materi- m atu r -
gia
dos do encenador ou do coreógrafo. Estas diferenças constitutivas ais. Neste sentido, ambos podem apresentam semelhanças com o ––––––
não distinguem qualitativamente a posição do dramaturgista da dos dj nas festas. Aproximando-se das metodologias contemporâneas ana
pa i s
seus pares “fazedores” do espetáculo; não tornam a sua contribui- de composição em dança, esta figuração pós-moderna do criador
ção superior ou inferior a qualquer outra, técnica ou artística. Não é (autor) foi argutamente equacionada por Helena Katz (1998, p. 22–
o valor hierárquico da colaboração que está em causa. Pelo contrá- 23), atribuindo ao coreógrafo as competências do dj, manipulador
rio, entendemos que, de representante de uma verdade autoral ou de si mesmo e das experiências que o rodeiam.
de um conhecimento especializado, o dramaturgista tem passado As questões relacionadas ao ponto de vista do dramaturgista e
a ser visto como um colaborador, uma figura de alteridade, convo- da transformação dramatúrgica como um espaço de confronto en-
cada para o interior do processo criativo, para aí operar em uma re- tre diferentes, estimulante e construtivo, afiguram-se fulcrais para
lação paritária na estruturação de sentidos de um mesmo objeto: o a compreensão da evolução do conceito de dramaturgia e das suas
espetáculo. acepções. Sobre isso, consideramos exemplar o trabalho desenvol-
Embora a trave-mestra da lista apresentada seja o teatro, a vido por Marianne Van Kerkhoven, para quem a dramaturgia de
maior parte das suas tarefas é transversal a outros tipos de formas dança, no essencial, não difere da dramaturgia do teatro, apesar da

 
artísticas, depurando-se num traço comum: todas dizem respeito a natureza e da história do seu material serem distintos (kerkhoven,

 
operações de escolha, seleção, enquadramento e composição. Cada 1996b, p. 146).
espetáculo resulta de um conjunto de opções que são feitas em Nas décadas de 1980 e 1990, Van Kerkhoven foi dramaturgista
função do material que se seleciona, do enquadramento através residente no Kaaitheater de Bruxelas, onde o seu trabalho se tor-
do qual se dá a ver esse material (ponto de vista) e da estrutura- nou famoso pela colaboração com a coreógrafa Anne Teresa De Ke-
ção dos seus sentidos (composição). Aqui, entende-se estruturação ersmaeker, instituindo uma das principais fontes de documentação
como uma tomada de consciência em relação ao modo como se dá e pensamento sobre a dramaturgia da Europa Central nesta época,
a ver o espetáculo determina os seus efeitos perante um público. a revista Theaterschrift, da qual foi diretora entre os anos de 1992
Ao escolher materiais cênicos e articulá-los na cena, o olhar artís- e 1995. Participando como dramaturgista em produções variadas
tico estrutura-os também dramaturgicamente, fundamentando es- (também no teatro e em espetáculos em que a palavra detinha uma
sas opções e criando uma lógica e uma coerência próprias a cada função central), Van Kerkhoven dispôs de um conjunto de informa-
espetáculo. ções privilegiado sobre o qual procurou refletir. Nas suas sistema-
Assim, cabe ao dramaturgista-colaborador, por um lado, alimen- tizações sobressaem dois aspectos que nos parecem dominantes na
tar o processo com materiais e reflexões, ampliando o horizonte prática dramatúrgica da nossa época: a dramaturgia como o estabe-
da pesquisa e das escolhas, e, por outro, contribuir para, a partir lecimento de relações entre materiais, que tem como premissa um
do caos, criar uma nova ordem dos elementos, sintetizando-os e grau zero de formalização antecipada e de objetivos estabelecidos
fixando-os de acordo com a intenção global do projeto. Sendo as
– –
36 37
antes do processo criativo, e a importância da intuição para o seu estruturas; atingir uma visão global; ganhar percepção sobre como O crime
compen-
trabalho. lidar com materiais, seja qual for a sua origem – visual, musical, sa ou o

Uma das características fundamentais do que designamos hoje por textual, fílmica, filosófica, etc…” (1994b, p. 146, tradução nossa). poder
da dra-
‘Nova Dramaturgia’ é precisamente a escolha de um método de tra- Cada processo criativo é singular e corresponde a uma conjun- m atu r -
gia
balho orientado para o processo. Por isso, os atores têm frequente- tura específica de condições, pessoas e responsabilidades. Cada cria- ––––––
mente uma contribuição significativa através do material que eles dis- ção é diferente e as funções dos elementos do grupo estão em aberto, ana
pa i s
ponibilizam durante os ensaios. Este material pode ter a forma de um prontas para serem reinventadas. As variáveis existem em maior
texto, claro, mas também pode ser imagens, sons, movimentos, etc. número do que as condições fixas, na certeza, porém, de que toda
(kerkhoven, 1994a, p. 18, tradução nossa). a proposta dramatúrgica que privilegie a presença da alteridade
Uma dramaturgia orientada para o processo tal como é apre- tem lugar num espaço de transformação. Esta transformação tam-
sentada por Marianne Van Kerkhoven não tem origem em qual- bém existe, obviamente, quando há acúmulo de funções (encena-
quer conceito ou elemento definido antes dos ensaios. Ela permite dor/dramaturgista/cenógrafo/ator), embora, neste caso, não sendo
que o significado e a estruturação do espetáculo, temporários na melhor ou pior, nem mais ou menos interessante, possa ser menos
sua natureza pós-moderna, possam emergir durante o seu pro- rica porque não está aberta a confrontos, e o ponto de interseção
cesso de construção. Esta prática, que a Performance vem impul- subjetivo não se desloca do centro do sujeito que se enuncia.
sionar, concentra-se na estruturação de sentido entre os materiais No nosso entender, o enfoque no processo modifica o estatuto
cênicos no desenrolar do processo, por oposição à forte dicotomia do dramaturgista de especialista a colaborador, participante na cri-

 
forma/conteúdo, típica do teatro político dos anos 1960 e 1970.3 De ação, funcionando como uma figura de alteridade, um Outro que

 
um modo genérico, Van Kerkhoven entende por materiais todos usa a intuição e o seu repertório de materiais como ferramentas
os elementos passíveis de serem integrados num espetáculo, com do seu fazer (ibid.). Esta ontologia da alteridade reside no entendi-
linguagens de naturezas diferentes e com expressividades especí- mento do dramaturgista enquanto figura comprometida com um
ficas, incluindo aqueles que servem de estímulo aos ensaios (foto- programa estético, ao lado do encenador ou coreógrafo, cuja con-
grafias, filmes, objetos, sons, jornais etc.). Esta designação ampla tribuição deriva da confrontação de pontos de vista e de uma parti-
remete-nos à abolição das fronteiras conceituais de forma e con- cipação na estruturação do sentido do espetáculo.
teúdo decorrentes da performance, pois cada material passa a ser O dramaturgista é, portanto, um outro elemento participante da
considerado intrinsecamente forma e conteúdo, sendo estruturado construção do espetáculo, a par de todos os outros; simplesmente
e enquadrado numa composição global. Assim, Kerkhoven afirma: cabe-lhe uma tarefa tão definida quanto invisível. E se defendemos
“As preocupações principais [da dramaturgia] são: o domínio de anteriormente que a participação do dramaturgista releva da aber-
tura de um espaço, que a performance consagra à relação com o ou-
tro e/ou desconhecido, será o caso de afirmar que o confronto e a
3 Note-se também a evolução significativa do conceito de dramaturgia no teatro
transformação de materiais e pontos de vista são diretamente pro-
antropológico de Eugenio Barba, patente nas diferenças entre o seu artigo de
porcionais à abertura que é facultada ao dramaturgista, permitindo
1985, no qual privilegiava a ação e o texto, e o artigo escrito quinze anos
mais tarde (2000), em que distingue três faces da dramaturgia (orgânica, a troca e a viabilidade da comunicação.
narrativa e de estados de mudança) para além do texto ou da história.

– –
38 39
Parafraseando a entrevista feita com Fransien van der Putt, dra- dar com a complexidade contemporânea: confiando nela, o drama- O crime
compen-
maturgista de dança e uma das primeiras críticas de dança na Ho- turgista resolve quebra-cabeças, organiza o caos numa nova, não sa ou o
landa, o que pode ser muito estimulante para um coreógrafo fazer obstante temporária, ordem (kerkhoven, 1994b, p. 146). poder
da dra-
pode ser bastante previsível para o dramaturgista ver, sendo que Intuir é igualmente um modo de ver com os olhos do espírito, m atu r -
gia
a sua pergunta constante ao espetáculo é sempre a seguinte: “[…] diriam os Antigos. A dramaturgista holandesa Maaike Bleeker, que ––––––
como é que esta composição organiza a minha percepção?” (tra- atualmente dirige o Departamento de Teatro da Universidade de ana
pa i s
dução nossa). Para van der Putt, a sua colaboração passa, de uma Utrecht, descreveu justamente o conceito de dramaturgia como um
forma muito consciente, pela sua presença nos ensaios enquanto modo de olhar: “A dramaturgia torna-se um modo de olhar. Um
um Outro que observa com uma visão externa (idêntica ao “olhar modo de olhar que implica uma atenção para as possibilidades de
exterior”): sentido inerentes às ideias e ao material, bem como para as suas
Eu contribuo sendo uma voz de um Outro mas igualmente por não implicações, os seus efeitos” (bleeker, 2000, tradução nossa).
ter um corpo treinado da mesma forma. Eu não vejo os bailarinos da Esta proposta demonstra uma consciência do trabalho drama-
mesma forma que eles próprios. Os bailarinos veem os outros bailari- túrgico no âmbito da recepção, produtor de efeitos para um pú-
nos com o conhecimento e a consciência do treino e da técnica, que o blico, o que nos ajuda na caracterização de uma dramaturgia do
público, ou eu, não temos. Não me refiro a histórias que poderia ver, olhar pela sua tônica na potencialidade expressiva dos materiais e
mas a uma noção quotidiana de equilíbrio e de espaço (putt, tradução consequentes implicações da sua estruturação. Para Bleeker, o co-
nossa).4 reógrafo ou encenador e o dramaturgista, fazendo parte do mesmo

 
A consciência apurada de estarmos perante uma função especí- processo, operam sobre o mesmo material mas olham-no através de

 
fica de estruturação de materiais cênicos numa plataforma de cola- um prisma diferente, de olhares diferentes (ibid.). Esta dramaturgia
boração dentro do coletivo permitiu o nascimento gradual de um do olhar pode ser tomada também como um modelo de análise dos
dramaturgista participante. Do confronto com a alteridade resulta componentes estruturais e significativos de outras expressões cul-
o fato assinalado por Marianne Van Kerkhoven de que os sentidos turais, como, por exemplo, museus, instituições ou cidades.
e a intuição são instrumentos, por excelência, dessa participação. Em face da recorrente utilização do conceito e, em medidas
Ao longo dos textos de Van Kerkhoven, sobretudo na revista Thea- variáveis, da prática da dramaturgia em contextos não exclusi-
tershrift, podemos encontrar palavras que nos remetem ao territó- vamente teatrais nem apenas artísticos, tornou-se urgente, du-
rio semântico da sensibilidade e das relações humanas. Esta ênfase rante o período de pesquisa, encontrar uma forma abrangente de
salienta um nível de participação singular do dramaturgista, por- caracterizá-la com justeza. Inquietava-me a sua transversalidade
quanto ele desenvolve a intuição como “instrumento de trabalho” magnânima, estimulando a compreensão do seu poder escondido e
(kerkhoven, 2000)5 , dispondo do sempre necessário repertório de tão frequentemente solicitado. Acompanhando-me desde a gênese
conhecimentos. A intuição constitui um saber indispensável para li- deste trabalho, o termo cumplicidade ganhava então uma clareza e
pertinência que até o momento da escrita apenas intuía.

4 Entrevista realizada em Amsterdam em 14 de novembro de 2000.


5 Van Kerkhoven em entrevista realizada em Amsterdam em 2 de novembro de 2000.

– –
40 41
ii. subjacentes ao uso da metáfora do teatro serão pensadas no que diz O crime
compen-
respeito às qualidades intrínsecas do ato performativo: o gesto e a sa ou o
Sendo invisível, a dramaturgia só se deixa detectar quando o espe-
palavra que se fazem e dizem mutuamente e nos remetem à noção poder
táculo é representado; ela só é perceptível por meio de uma concre- da dra-
de discurso como formação continuadamente atualizada da subje- m atu r -
tização material, visível. Ela é indissociável do espetáculo porque gia
tividade, ou seja, como movimento discursivo implicado no espetá- ––––––
participa de todas as escolhas que o estruturam, mas permanece in-
culo/mundo. ana
visível; pertence à esfera da concepção do espetáculo, uma espécie pa i s
A relação determinante entre encenação e dramaturgia é uma
de fio que tece ligações de sentido, criando um discurso. Simultane-
cumplicidade que converte produtivamente a potencialidade – o
amente dramatúrgico e performativo, este discurso caracteriza-se
caos – em articulações renovadas de sentido, o microcosmos de
por um movimento que envolve a teia latente de sentidos fabrica-
cada espetáculo. Negociando uma turbulência dionisíaca do questi-
dos e entrelaça todos os materiais estéticos. Tal como uma fotogra-
onamento com uma ordenação global apolínea, a dramaturgia tem
fia, o discurso do espetáculo sobrepõe um negativo – a dramatur-
como função a articulação dos materiais do espetáculo. Ela situa-se
gia – e um positivo – a composição estética –, ambos produzidos no
nas suas margens, delineando a concepção fundamental do mesmo,
processo criativo e revelados no decorrer do espetáculo, que é uno.
numa ausência constitutiva. É das margens que ela tece e (in)forma
Por isso, quando tentamos individualizar a dramaturgia num espe-
o visível, construindo o modo implícito pelo qual o espetáculo se
táculo, nomeamos inevitavelmente as opções manifestas da encena-
concretiza em opções e relações várias. É nas periferias da materia-
ção, da cenografia, dos figurinos, da interpretação, do movimento,
lização do visível, nas zonas de contato e cruzamento entre materi-
em suma, todas as escolhas reveladoras de relações de sentido pos-
 
ais cênicos, que ela opera, transgride e participa no espetáculo.
síveis e que radicam na sua concepção. Adjetivamos, muitas vezes,
 
As categorias – visível e invisível – não se opõem, não se ex-
essas escolhas com qualidades dramatúrgicas e isso nos mostra, por
cluem mutuamente, mas implicam-se reciprocamente. Compreen-
um lado, a sua onipresença em cada opção, e, por outro, a invisibili-
dendo-as num movimento único, como o “avesso” e o “direito”, ou
dade dessa presença. A dramaturgia é, em rigor, o outro lado do es-
o “côncavo” e o “convexo” (merleau-ponty, 2000, p. 209) de um
petáculo, o aspecto invisível de toda a extensão do visível, firmando
mesmo objeto ou realidade, poderemos pensar as margens e o cen-
a representação no espaço e no tempo em que ela acontece. A sua
tro como uma realidade una para a qual são igualmente importan-
dimensão latente é aquela em que participam o olhar artístico, fun-
tes a transformação dramatúrgica e a composição estética. O cará-
dado dramaturgicamente, e as múltiplas leituras do espectador.
ter singular de cada processo artístico confere uma cumplicidade
Uma teoria da cumplicidade procura dar corpo a um pensa-
à ligação entre uma e outra, o que permite a reconstrução, o fazer
mento sobre a condição ontológica da dramaturgia no espetáculo:
de novo de cada espetáculo. Como se de uma fotografia se tratasse,
onde, quando e como existe. Propomo-nos analisar o seu modo
o negativo que informa e constitui o espetáculo é uma película ex-
discursivo, como este se constitui e participa no ato performativo.
posta à luz a qual retém as formas visíveis contidas no seu par posi-
A apropriação do termo dramaturgia em várias áreas da cultura e
tivo; a fotografia é una porque a sua totalidade compreende o duplo
do pensamento leva-nos a crer que ele será tudo, menos um ele-
de si mesma. É chegada, pois, a altura de nos aprofundarmos nas
mento menor na construção de qualquer discurso. Na sua invisibi-
consequências desta proposta, ou seja, a reciprocidade entre ence-
lidade constitutiva reside, a nosso ver, o seu poder. As motivações

– –
42 43
nação e dramaturgia e das suas possíveis ilações: o que há a equa- entre a concepção e a concretização do espetáculo, fazendo do pú- O crime
compen-
cionar é a complexidade da relação cúmplice entre uma e outra. blico seu cúmplice no discurso. Neste sentido, uma definição possí- sa ou o
Os conteúdos lexicais das palavras são mais abrangentes do que vel e abrangente do discurso específico da dramaturgia será dizer poder
da dra-
o campo semântico específico em que ocorrem, que é sempre con- que ela consiste em criar relações de cumplicidade. O implícito, o m atu r -
gia
textualizado. Ao extrairmos um termo do seu contexto para apro- crime e a ação comum são características que se ajustam, de forma ––––––
fundar as suas mais densas camadas lexicais e assim o compreen- lapidar, à prática e ao discurso dramatúrgico: a dramaturgia está im- ana
pa i s
dermos com maior acuidade, devemos agir com rigor e delicadeza, plícita em todas as escolhas do espetáculo, possui a qualidade cri-
com uma certa “cortesia lexical” (steiner, 1993, p. 143-144). Ao aco- minosa de transgredir as leis do visível (o centro) através de reno-
lhermos os “segredos etimológicos” da palavra cumplicidade logo vadas articulações de sentido (periféricas) e participa, na ação co-
nos surpreendem três significados, nem sempre explícitos no seu mum que constitui, o processo criativo e o discurso dos variados
uso cotidiano: cumplicidade significa “implícito”, “pacto criminoso” materiais cênicos.
e “ação comum”. De origem latina, ela é composta pela preposição A dramaturgia cria relações de cumplicidade. O implícito é uma
cum (união, reciprocidade) e pela forma verbal plicare (dobrar, enro- das qualidades que a caracteriza. Essas relações encerram enigmas
lar), significando a “ação conjunta de dobrar”, o que a aproxima pe- complexos, visto que transportam em si o paradoxo de estrutura-
rigosamente de termos vizinhos como “complicado” ou “complexo”. rem possibilidades de sentido invisíveis num espetáculo materiali-
De fato, a raiz é a mesma e em todos os significados permanece a zado no visível, habitando-o. Sendo invisível, mas constituindo-se
ideia de tortuosidade, de dificuldade. Esta dificuldade prende-se à como um modo de dar a ver, a dramaturgia ocupa um lugar espe-

 
própria ação que as predica: dobrar ou enrolar é moldar o espaço cialmente ambíguo, quer nas suas práticas, quer na sua participa-

 
que determinado objeto ocupa (como um tecido ou uma peça de ção em qualquer espetáculo. O conceito de cumplicidade possibilita,
roupa), tornando-o, para além disso, apenas parcialmente visível. em nosso entender, equacionar um plano ontológico do discurso
Ora, o domínio em que penetramos é de um complicado mundo de da dramaturgia baseado na forma implícita de como as relações de
dobras, pregas, novelos; um universo cuja totalidade não é percep- sentido estão patentes no espetáculo, sem com isso perverter a sua
tível a olho nu. Também verdade, todavia, que a partir do mesmo condição invisível.
verbo latino se compõem os verbos explicar (ex plicare) e implicar Uma relação define-se por uma ligação entre dois ou mais ele-
(in plicare), e consequentemente os adjetivos explícito e implícito. mentos num determinado período de tempo ou espaço. No contexto
Ou seja, a ação de dobrar tanto pode ser efetuada para dentro como das artes performativas, as relações entre os materiais podem ser
para fora do objeto em questão, pode ser desenrolar ou enrolar; as de ordens variadas, mas estabelecem-se, inevitavelmente, no tempo
dobras tanto podem deslindar e esclarecer como enredar e embru- do discurso. Assim, também as relações dramatúrgicas de sentido
lhar; as pregas tanto podem abrir e tornar algo visível como po- de um espetáculo existem no seu tempo de duração, instalando-
dem fechar-se e torná-lo invisível. E é justamente na invisibilidade -se nas dobras do visível, dando-se a ver num determinado lugar.
de um mundo de dobras e pregas que a cumplicidade dramatúrgica O tempo afigura-se, pois, uma categoria-chave para o entendimento
participa no espetáculo. da cumplicidade enquanto conjunto de relações invisíveis, partici-
Articulando materiais e estruturando o sentido do espetáculo, a pante no período de duração do discurso performativo: é na tem-
dramaturgia estabelece cumplicidades entre o visível e o invisível, poralidade das relações invisíveis estabelecidas entre os materiais
– –
44 45
que a dramaturgia permeia o espetáculo e atravessa o espaço vi- lho lendo passagens de Madame Bovary, de Flaubert, oferece um O crime
compen-
sível, constituindo-o. O discurso performativo é um ato no espaço quadro dramatúrgico de potências de sentido, diferentemente da re- sa ou o
(no visível) e no tempo (no invisível). Como tal, é no cruzamento de petição incessante de uma frase do mesmo livro proferida por um poder
da dra-
ambos os eixos que o espetáculo ganha terreno ontológico: existe corpo negro de homem. Destas escolhas advém a cumplicidade que m atu r -
gia
dizendo-se e fazendo-se. a dramaturgia estabelece no seu discurso, ou seja, de forma implí- ––––––
Assim como no ato de dobrar uma peça de roupa, no qual con- cita os materiais relacionam-se, pregueiam implicações que cabem ana
pa i s
centramos o seu espaço nas pregas com que a moldamos, o espetá- ao espectador desvelar e à dramaturgia fundamentar.
culo apresenta dobras, zonas que, não se vendo, não deixam de o No tempo, simultaneamente movimento e mudança, a drama-
constituir, de ser parte integrante dele. Tornamos parcialmente vi- turgia gera sentidos no espetáculo. Ela existe na medida em que
sível a roupa sem anular o seu conjunto – não vemos as mangas do participa dele como concepção invisível – a lógica que subjaz a to-
suéter arrumado, mas sabemos que elas fazem parte da sua cons- das as escolhas –, fazendo parte, assim, da representação. Também
tituição –; implicamos nessa operação tátil a capacidade de com- o espetáculo não se restringe, ontologicamente, ao visível: é um dis-
plexificar a existência do objeto, confrontando a percepção visual curso da presença e do estar no espaço e no tempo mais complexo
com a experiência do invisível. Esta complexidade do objeto não do que a mera relação entre quem vê e o que é visto. Desta forma,
faz depender a sua existência da visão – o suéter existe com man- a especificidade das artes performativas possui uma condição efê-
gas dobradas, invisíveis ao olhar. Com um espetáculo passa-se exa- mera, vinculada, portanto, à passagem ou à extinção do tempo, e,
tamente o mesmo, não obstante os seus contornos conceituais mais com maior razão, a criação de relações de cumplicidade ativa-se,

 
imbricados. O espetáculo tem uma existência dupla: um tecido vi- estrategicamente, no tempo em que o espetáculo existe, ou melhor,

 
sível, constituído e fundamentado por pregas invisíveis. As opções em pleno cruzamento do tempo e do espaço.
que materializam o espetáculo no plano do visível são dobradas por Entendemos a invisibilidade da dramaturgia como instrumento
relações invisíveis que as integram. de renovação de cada criação, sediada nas margens do visível, que
Dobrando para dentro, complexificando e estruturando o espe- ocupa o centro do discurso performativo. O visível é a lei cuja or-
táculo, a dramaturgia implica dimensões possíveis de sentido, en- dem definidora e legitimadora do espetáculo como aquilo que se vê
tretece as pregas do invisível no visível. Nesse trabalho microscó- a dramaturgia desafia. No teatro, a reescrita dos clássicos – encena-
pico de criar relações de cumplicidade, a dramaturgia, velha tecelã, ções que reveem o texto, evidenciando nele uma perspectiva dife-
delimita um território de participação no espetáculo. É próprio da rente – é talvez o exemplo mais declarado de ações criminosas, pois
configuração do espetáculo a existência de dobras invisíveis, de sen- refletem leituras feitas a partir da periferia do texto canônico. À luz
tidos implicados e decorrentes da articulação de materiais cênicos dos paradigmas sociológicos e jurídicos, a dramaturgia funcionaria
(corpo, luz, som, palavra etc.). As dobras fazem parte da sua reali- como um espaço de resistência, de fronteira, onde se cruzariam as
dade total, por isso têm uma existência autônoma, mas indissociá- variadas linguagens e materiais potenciadores de relações de sen-
vel do espetáculo. tido. Experiências contemporâneas, por exemplo, de intercultura-
Ao estruturar a composição dos elementos cênicos, a dramatur- lismo, hibridismo, espetáculos multimídia ou virtuais constituem-
gia seleciona determinados sons, cores e movimentos que se relaci- -se numa linha inconformista própria da sua dramaturgia. Portanto,
onam e se afetam entre si: um corpo de mulher vestido de verme- conceitos fundamentais para a viabilização do discurso da cumpli-
– –
46 47
cidade, transgressão e periferia merecem uma reflexão mais apro- manece nas zonas insondáveis do desconhecido, não existente. Do O crime
compen-
fundada. mesmo modo, no teatro, o que é visto no lugar do teatro existe, é sa ou o
A invisibilidade tem um papel fundamental na constituição do real, embora seja um mundo ficcional. poder
da dra-
discurso do espetáculo. Na tradição filosófica e teatral do Ocidente, Compreende-se, por isso, que a dramaturgia não seja facilmente m atu r -
gia
o teatro (do grego theatron, lugar onde se vê) define-se em termos reconhecida como um componente passível de ser identificado no ––––––
de visibilidade e de espacialidade: o que se vê, quem vê, onde se vê. espetáculo, pois, sendo invisível, não encontra neste paradigma ana
pa i s
Ver e ser visto, no lugar específico do teatro (e, por extensão, das ar- da visão um espaço de existência autônomo. Sugerimos, porém,
tes de palco), são condições que conferem uma existência ao espe- uma existência autônoma da dramaturgia em qualquer espetáculo.
táculo. Associado à ordem, à vigilância e ao poder, e sendo objeto A possibilidade da sua realidade releva, no nosso entender, da fun-
privilegiado da desconstrução pós-estruturalista, o visível constitui ção de “contrapoder”, periférico e clandestino, através do qual a dra-
a lei de base segundo a qual a composição estética do espetáculo é maturgia constitui e participa no visível do espetáculo. Se ela con-
concebida, isto é, para ser visto por um público no espaço do teatro. siste em criar relações de cumplicidade que se estabelecem numa
Contudo, a afirmação da prática dramatúrgica na criação contem- zona periférica do visível, como uma linha que contorna e deli-
porânea das artes performativas compele-nos a repensar a centra- mita a sua forma e existência, essas relações decorrem concomitan-
lidade tradicional da visão destas artes na atualidade e o papel do temente num plano temporal – no decorrer do espetáculo. Assim
invisível na criação e sustentação do espetáculo. sendo, a dramaturgia é, simultaneamente, invisível e efêmera, e é
Infringindo a lei do visível, que subjaz à concepção tradicional nessa qualidade – clandestina, para o paradigma da visão – que ela

 
do teatro, a dramaturgia é uma possível cúmplice da subversivi- está presente no espetáculo.

 
dade característica da arte, na medida em que reside numa zona Peggy Phelan aborda criticamente o poder do visível, explo-
de fronteira, deslocando-se nas margens do visível e consumindo- rando a condição da ausência na performance (entendida num sen-
-se no plano temporal do espetáculo. Ela recria as formas do visível; tido lato) e reivindicando o poder do invisível (bem como do silên-
é um modo de fazer mundos e, consequentemente, de fazer as leis cio e do não-reproduzível) na construção do visível. O poder do in-
que regem esses mundos (goodman, 1995). Daí que tenhamos afir- visível configura-se, para Phelan, no conceito de unmarked, numa
mado, relativamente às práticas dramatúrgicas pós-modernistas, a subjetividade que informa, constitui e ultrapassa as representações
sua função de articulação de sentidos do espetáculo como um modo visíveis. A ensaísta inscreve o visível no plano da lei e da vigilância,
de dar a ver, que tornam visíveis mundos outros por uma acção pe- defendendo a performance enquanto a arte da desaparição, isto é,
riférica e ambígua. Como veremos, não só no visível se consuma constrói uma subjetividade que se desvanece no momento em que
o espetáculo, mas também no tempo durante o qual as relações de se concretiza, resistindo ao visível enquanto único poder de criar
cumplicidade existem. realidades e de as reproduzir (phelan, 1993, p. 6). Assentado na efe-
No paradigma tradicional, a visibilidade funciona como um dis- meridade intrínseca do ato performativo – depois da representa-
curso de poder, posto que circunscreve e atesta a existência do real ção, o que resta são as críticas, o texto, ou, mais recentemente, o re-
(é visto, logo, existe) e da subjetividade (o eu vê e é visto, logo, gisto em vídeo, documentos de natureza diferente do espetáculo –,
existe). Assim, o que é visto pode ser conhecido, circunscrito e este paradigma ontológico da performance convoca a invisibilidade
cartografado, enquanto aquilo que não se apreende pela visão per- como uma característica potencialmente transgressora, que “cons-
– –
48 49
titui e define” o que é visível (ibid. p. 14). Depois de Phelan, é difícil -o e constituindo-o por renovadas articulações de sentido, e por isso O crime
compen-
sustentar o visível como elemento único e totalizante na constru- a sua ação é ilícita e inconformista; por outro, participa, no espetá- sa ou o
ção da representação sem considerar o valor e a participação do in- culo, nas margens do visível, ponto de encontro entre os materiais poder
da dra-
visível enquanto realidade integrante da efemeridade, traço ontoló- que o constroem, estabelecendo uma aliança clandestina – implí- m atu r -
gia
gico do espetáculo ao vivo. cita – entre visível e invisível; entre espaço e tempo. ––––––
A dramaturgia consubstancia uma transgressão inconformista, É neste sentido que Merleau-Ponty, no contexto da sua análise ana
pa i s
embora complementar, na periferia do visível, pelo que a lei deste fenomenológica da condição do ser e do mundo, questiona a opo-
último é infringida na medida em que é através da invisibilidade sição entre visível e o invisível, sugerindo uma duplicidade intrín-
da dramaturgia que o espetáculo é constituído. Das margens do vi- seca ou uma íntima relação entre ambos, como um côncavo e um
sível, das suas dobras implícitas, surgem relações de sentido que convexo, um avesso e um direito de um mesmo objeto ou realidade.
se desenrolam, indeléveis, no tempo do espetáculo. Em outras pa- É esta aliança implícita que importa aqui sublinhar. São as relações,
lavras, a dramaturgia transgride a ordem do visível porque o cons- os abraços conceituais com-plexos entre estes planos que uma teo-
titui e permite-se ver através de uma rede invisível e periférica de ria da cumplicidade privilegia, reequacionando o nível implícito da
relações de sentido que existem e se movem no tempo do discurso, participação do invisível no visível.6
na duração do espetáculo. Por este motivo, a operação criminosa Ilicitamente, a dramaturgia circunscreve-se como periferia cri-
da dramaturgia reporta-se igualmente à falácia do visível enquanto adora de novos enunciados do espetáculo. Tradicionalmente, a no-
único elemento legitimador do espetáculo: invisíveis, as relações de ção de periferia define-se por oposição a um centro (entendidos, no

 
sentido dramatúrgicas podem, por um lado, ser alvo de múltiplas contexto dos sistemas artísticos, como polos de atraso e progresso,

 
leituras (qualquer obra é aberta a interpretações várias), o que nos respectivamente) e por estratégias de resistência ou ruptura (melo,
permite pensar que o domínio do visível alberga em si dimensões 2002, p. 99). Esta teorização, para além de ter sido revista pelos atu-
de significado que o excedem; e, por outro, recriar mundos e reno- ais paradigmas de flexibilidade e mobilidade do mundo globalizado,
var enunciados artísticos, transgredindo justamente a lei que atesta só parcialmente corresponde à abordagem que procuramos fazer
a existência do real pelo estritamente visível. Se o espetáculo é ape- da dramaturgia. Não se opondo, mas constituindo e participando
nas um, todavia passível de leituras variadas, torna-se evidente que de um centro – o visível –, a dramaturgia de um espetáculo recorre,
o visível não se esgota nem se expressa em si mesmo, razão pela porém, a estratégias próximas da resistência ou do inconformismo
qual a dramaturgia, estabelecendo as ligações temporais e invisí- no que respeita à ordem estabelecida pelo visível. As relações de
veis entre os elementos do espetáculo, tem um papel de relevo na sentido estruturadas para cada espetáculo exibem traços de reno-
sua constituição. A realidade do espetáculo é, portanto, composta vação, típicos de periferias artísticas, e zonas de ambiguidade e en-
por um plano espacial visível e por um plano temporal efêmero, que contro. A renovação dramatúrgica passa pela rentabilização de sua
se entrecruzam e complementam.
6 Uma breve explicação: Merleau-Ponty utiliza também a palavra cumplicidade
Em suma, uma teoria da cumplicidade permite-nos compreen-
der o discurso performativo à luz das dinâmicas transgressoras e no livro que temos vindo a citar para qualificar relações entre o corpo que
vê e se vê, entre o visível e o invisível. No entanto, o autor não elabora
participativas de um ato criminoso: por um lado, a dramaturgia co- teoricamente este termo, utilizando-o em alternância com “solidariedade” ou
mete infrações na ordem estabelecida pelo visível, transformando- “entrelaçamento”.

– –
50 51
invisibilidade, da sua condição marginal de participação no espetá- como um arsenal de memórias, de vida acumulada para os atores, O crime
compen-
culo, em prol de uma potencialização de articulações de sentidos que promove a diferença entre cada enunciação do discurso (esta- sa ou o
possíveis. Vivendo à margem da lei – como todas as periferias dis- dos psicológicos e físicos), sendo que o público, constituído ciclica- poder
da dra-
cursivas, identitárias e políticas –, a dramaturgia informa, repensa mente por indivíduos diferentes, torna-se também fator de intera- m atu r -
gia
e refaz as leis e os códigos de cada novo espetáculo. ção inerente a essa variável. ––––––
Para nós o conceito de periferia é útil na medida em que torna Ao contrário de outras artes, a recepção da obra realizada ao ana
pa i s
possível pensarmos a dramaturgia como um espaço de fronteira, vivo adquire a dimensão particular de uma experiência vivida em
um envolvimento que engloba o centro, um lugar de discurso de tempo real, por mais ficcionado que seja o universo representado.
onde pode surgir a mudança, a ruptura. Posto que é uma fronteira, Neste sentido, o espectador participa das condições ontológicas ne-
ela será igualmente um espaço de encontro e transformação en- cessárias para a realização do ato performativo, modificando-a pela
tre os vários materiais do espetáculo, pois é da sua articulação que leitura individual que dela constrói, permanecendo em si através da
nasce o sentido; este invisível cruza o tempo em que o espetáculo se memória. Também aí a cumplicidade, na acepção de ação comum,
dá a ver com o modo em que se dá a ver no espaço. A dramaturgia é um fator central.
faz uso do descentramento que a periferia lhe confere para manter- O discurso performativo caracteriza-se por uma experiência
-se permeável à mudança, à reconstrução, à transmutação, diríamos, conjunta, ou seja, por uma participação no seu movimento que
dionisíaca. À semelhança, de resto, do que acontece com qualquer reúne materiais cênicos e público num mesmo local e tempo. Gos-
processo artístico periférico, a distância em relação ao centro esti- taríamos de pensar esta participação do público no movimento do

 
mula a multiplicação e cruzamento de informações, a diversidade e discurso como uma comoção (cum moveo), um mover-se com e ser

 
a variação (melo, 2002, p. 120). movido por, uma agitação causadora de um deslocamento interior.
A cada representação, o espetáculo desenrola-se na reciproci- Enquanto parte integrante do eixo espaço-tempo que atravessa o
dade entre o discurso enunciado no palco e o espectador que o re- espetáculo na sua extensão visível e invisível, o espectador é con-
cebe, e por isso ele é atualizado. Dia a dia a representação difere; duzido pelo trajeto do discurso, em parte por via dos efeitos que lhe
repete-se apenas na medida em que cada repetição produz um ob- estão subjacentes, em parte produzindo a sua leitura individual. As
jeto único. O discurso do espetáculo, assim como o dramatúrgico, práticas contemporâneas têm sabido explorar a simultaneidade e a
manifesta-se na sensação estética específica, nos termos da duração crescente multiplicidade de pontos de vista e lógicas de organiza-
do material que a constitui, pelo que o cruzamento dos eixos tempo- ção dos materiais cênicos enquanto estratégias de estruturação do
ral e espacial na representação do espetáculo configura a condição- discurso, obrigando o espectador a escolher o que ver ou a reequa-
-base da atualização do discurso. cionar os seus instrumentos de interpretação.
O público participa deste quadro ontológico pois, para assistir Em suma: se o discurso dramatúrgico dá a ver o espetáculo, es-
ao espetáculo, partilha o espaço e o tempo em que o discurso se pro- truturando o seu sentido, o espectador, por seu turno, sendo influ-
duz. Mantendo-se, geralmente, o lugar da representação, a variável enciado por ele, também o modifica, também o vive e lhe acres-
do discurso é sobretudo o tempo, não em termos da duração do ma- centa algo. Consequentemente, a dramaturgia apresenta-se nova-
terial estético, mas dos momentos particulares (dias, meses, anos) mente como um espaço de fronteira e encontro, já que é através
em que ele é enunciado. O tempo entre representações configura-se dela e da rede de relações de sentido do espetáculo que o especta-
– –
52 53
dor nele participa duplamente, construindo leituras no tempo du- descoberta, a arte constrói novas possibilidades de sentido, novas O crime
compen-
rante o qual as relações de cumplicidade entre materiais se estabele- realidades, novos caminhos. sa ou o
cem; participando dessa duração pela coincidência entre produção Assim também a dramaturgia nos permite uma abertura de ação poder
da dra-
e recepção. Ainda que a cumplicidade seja uma ação comum – in- e análise no mundo de que fazemos parte. O crime compensa por- m atu r -
gia
visível e implícita –, a dramaturgia será um movimento discursivo que ao participarmos no espaço e no tempo do mundo, somos nós, ––––––
que reúne, na sua atualização, relações de sentido estabelecidas no habitantes do mundo, os cúmplices pelas opções que fundamen- ana
pa i s
tempo do espetáculo, bem como múltiplas leituras. Materiais cêni- tam o espetáculo constituído perante nós. Somos nós, inconformis-
cos e público participam dele como numa trajetória pelo tempo e tas com a lei prescritiva de uma passividade, na qual não nos reve-
pelo espaço, experiência conjunta da criação e da recepção. mos metaforicamente, que tecemos relações de sentido, relações de
A ação comum da dramaturgia estende-se, neste sentido, à ex- cumplicidade como modo de relacionamento com o outro e com o
periência partilhada por palco e plateia, num movimento invisível mundo. Somos nós, participantes no mundo, que nos movemos e so-
de participação e construção. Talvez não seja por acaso que, na gí- mos movidos, que nos (cum-)movemos no fluxo contínuo da vida e
ria teatral, a palavra “química” seja usada para qualificar uma re- transformador do real. Somos nós, criaturas duplas, atores e espec-
lação intensa e particularmente satisfatória, porém invisível e ín- tadores, visíveis e invisíveis, que existimos no mundo e nos cons-
tima, entre intérpretes e espectadores. Se as reações químicas são truímos nele.
precisamente aquelas que se reportam às transformações e combi- Quando revejo este artigo para publicação nesta antologia,
nações potencialmente infinitas da matéria, elas serão igualmente cruzo-me por acaso com o fundamental texto de José Murilo de

 
relações invisíveis, deixando marcas no produto transformado. De Carvalho sobre construções identitárias e cidadania no Brasil. Nele

 
igual modo, a comoção poderá ser o conceito que descreve a rela- encontro a palavra cúmplice utilizada como sinônimo de “respon-
ção química das cumplicidades dramatúrgicas, na complexidade de sável”. Segundo a análise do autor, fundamentada em estudos es-
relações invisíveis em constante transformação, aliando, no movi- tatísticos realizados em 1995 e 1996, os políticos e as instituições
mento, a singularidade da relação estabelecida, entre palco e pla- estão entre os maiores motivos de vergonha para os brasileiros.
teia. A falta de confiança nos seus representantes políticos, manifestada
numa desidentificação com o papel de ator da vida pública, prove-
iii. niente da herança colonial, gera não só uma falta de participação
direta e indireta, mas também uma desresponsabilização sobre o
Do ponto de vista artístico, o crime compensa porque a evolução que acontece no seu país. O brasileiro, defende Murilo de Carva-
da arte é um movimento de recriação do real (ou de criação de rea- lho (2016), não se vê a si próprio como “cúmplice da ação dos seus
lidades) que se desenvolve e aperfeiçoa através de alterações suces- representantes”.7 Ele considera-se mero espectador de um mundo
sivas as quais subvertem, perturbam e abalam os códigos estéticos que lhe parece imutável, tal como o seu lugar nele.
e de comunicação, criando-os de novo. A originalidade da obra de No momento pós-impeachment que a democracia brasileira
arte consiste nisto: na dramaturgia que constrói um mundo outro, atravessa, as relações de sentido entre cumplicidade e responsabi-
detentor de uma verdade e cumplicidade renovadas. A cada nova
7 A versão online não apresenta número de páginas.

– –
54 55
lidade ressoam de forma particularmente vibrante. Somos cúmpli- • cardullo, Bert (Org.). What is dramaturgy? Nova York: Peter O crime
compen-
ces das nossas ações e de quem elegemos para nos representar, e Lang Publishing, 2005. sa ou o
isso deve-se à responsabilidade de ser cidadão. Neste sentido, não • carvalho, José Murilo de. O motivo edênico no imaginário so-
poder
da dra-
há cumplicidade sem responsabilidade, que importa reclamar para cial. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 13, n. 38. Dispo-
m atu r -
gia
o exercício da cidadania. Tal como nas práticas dramatúrgicas, a nível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext& ––––––
cumplicidade surge, aqui, como o modo implícito e responsável da pid=S0102-69091998000300004>. Acesso em: 9 set. 2016.
ana
pa i s
construção do mundo, como uma participação invisível inerente
• caspão, Paula. Expanded practices. Choreography, archive, publi-
à constituição do visível. Assumir esta responsabilidade é assumir
cation. Disponível em: <www.letras.ulisboa.pt/images/noticias-
as consequências de ser cúmplice da ordem do mundo e de como
/expanded_practices.pdf>. Acesso em: 8 ago. 2016.
somos condicionados por ela, seja como espectadores, seja como
atores. Para isso, é necessário tomar posição, o que exige, por sua • de marinis, Marco. Dramaturgy of the spectator. tdr — Drama
vez, uma tomada de consciência. Ambas as etapas são essenciais Review, n. 31.2, p. 100-113, 1987.
para que a cumplicidade com a construção de mundos possa emer- • fried, Michael. Art and objecthood. Chicago: Cambridge Univer-
gir de uma vivência livre e plena, ainda que muitas vezes ilícita sity Press, 1998.
em face da ordem preestabelecida. Por isso a dramaturgia constitui • goodman, Nelson. Modos de fazer mundos. Porto: Asa, 1995.
uma prática crucial para atuarmos de forma cúmplice, tanto para
• jonas, Susan et al. (Orgs.). Dramaturgy in american theatre: a sour-
tecer relações de sentido num espetáculo quanto para desenredar
cebook. Orlando: Harcourt Brace & Company, 1997.
 
construções de mundo que (não) queremos para nós.
• katz, Helena. O coreógrafo como dj. Lições de dança 1. Rio de
Referências   Janeiro: Universidade Editora, 1998.
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• barba, Eugenio. The nature of dramaturgy: describing actions at • ______. Introduction. Theaterschrift: On dramaturgy, n. 5-6, p. 8–
work. ntq — New Theatre Quarterly, 1.1, fevereiro, p. 75-78, 1985. 34, 1994a.
• ______. The deep order called turbulence: the three faces of dra- • melo, Alexandre. Globalização cultural. [S.l.]: Quimera, 2002.
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follows them?. TanzDrama, n. 54, p. 27-29, 2000. N. do E.: Texto
inédito em língua inglesa. Tradução alemã: Dramaturgie als Mo-
dus der Betrachtung. Über die Beziehung des Choreographischen
mit dem Dramaturgischen.
– –
56 57
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compen-
Routledge, 1993. sa ou o
poder
• steiner, George. Presenças reais. Lisboa: Ed. Presença, 1993. da dra-
m atu r -
gia
––––––
ana
pa i s




– –
58 59
A dramaturgia interroga a ação que se
representa e, mais além, a ação mesma
de representar. Qual é o sentido desse
agir; como a ação faz sentido? A lógica
teatral evoca, sem dúvida, o sentido
das ações, mas também (e podemos agora
entrever o que seria uma dramaturgia
própria da dança) a ação do sentido.

trecho de: Jean-Marc Adolphe


Errância CALDAS ,
P u b l icad o com o t ít ulo
La dramaturgie est un exercice de circulation pour E rra n cy a s wo r k : s eve n Pa u lo ;
s t rewn note s for
tenir le monde a l’écart GADELHA,
como tra-
d a n ce d ram at urgy. I n :
[Nouvelles de Danse: Dossier Danse et Dramaturgie. HANSEN , P il; CALL ISON , E r n e st o .
D a rc ey (O rg s .). D a n c e Danç a e d ra-
n. 31. Bruxelas: Contredanse, 1997, p. 32.]
b al h o :
dram at u rg y : m od e s of maturgi a[s].
a g ency, aware ne s s and S ã o Pa u l o :
en g ag e m e nt . L ond re s : n ex u s, 20 1 6.

s e t e n otas
Pa l g rave Macm illan,
2015.

d i s p e r sas
sobre dra-
m atu r g i a
da da n ça
––––––
André
L e p e c ki

– –
60 61
André Lepecki é curador, Errância como nota um
cocriador e professor t r a bal h o :
s e t e n otas No inverno de 2009, em Múrcia, na Espanha, o Centro de Docu-
de Performance Studies
na New York University
d i s p e r sas s o b r e mentação e Estudos Avançados de Arte Contemporânea (cendeac)
d r a m atu r g i a da
(NYU). Atuou como da n ça e o Centro Cultural de Desenvolvimento e Pesquisa das Artes Cêni-
dramaturgista junto a nomes –––––– cas, ligado ao Governo Regional (Centro Párraga), organizaram um
como Francisco Camacho, A n d r é L e p e c ki
Seminário Internacional de Novas Dramaturgias, reunindo profissi-
Vera Mantero, Meg Stuart
onais das artes performativas, acadêmicos e estudantes. Os debates

e Damaged Goods. É
do seminário partiram da seguinte proposição: “Pode-se compreen-

colaborador de várias
publicações internacionais der a prática dramatúrgica como um exercício de questionamento
e editou importantes e composição que, tradicionalmente, mediou a difícil relação entre
antologias em dança e a escrita e a ação física” (trecho retirado do edital de chamada para
teoria da performance, tais o seminário).1 Se a relação entre escrita e ação física tem sido difícil
como Of the presence of
the body (2004), The senses (nos níveis tanto de sua teorização quanto de sua implementação
in performance, (2006) e ou performance, como a história da notação coreográfica demons-
Documents of contemporary tra desde os primeiros manuais renascentistas), essa relação torna-
art: dance (2012). É autor -se ainda mais complicada ao entrarmos no campo da dramaturgia
de Exhausting dance: da dança. Nesse modo de colaboração relativamente recente na prá-
performance and the politics
of movement (2006) e 1 Uma primeira versão mais longa desse texto foi entregue como condutora do
Singularities: dance in the
seminário. Uma versão revisada foi publicada em espanhol e inglês na obra
age of performance (2016).
Repensar la dramaturgia. Errancia y transformación (ARAÚJO, 2011). Essa

versão atual é a quarta errância desses textos prévios, e a tradução em
português foi realizada a partir da versão publicada em inglês da obra Dance
dramaturgy (HANSEN; CALLISON, 2015), que contém alguns pontos de partida
substanciais.

– –
62 63
tica da dança – desbravado por pioneiros como Raimund Hoghe, em bém colocado imediatamente na difícil posição de ser um “sujeito ERRÂNCIA
COMO
sua colaboração inicial com Pina Bausch; Marianne Van Kerkhoven, suposto saber”. Poderia haver conexão entre saber, não-saber e um T r a ba -
em suas várias colaborações com coreógrafos flamengos, incluindo desejo de que o dramaturgista adentre o estúdio de dança a fim de l h o : SETE
N oTAS
Anne Teresa De Keersmaeker; e Heidi Gilpin, como dramaturgista nele errar? Qual é a relação entre dramaturgia, errância e (não) sa- DIS -
PERSAS
para William Forsythe (todos começaram a atuar em dramaturgia ber? Na verdade, permitam-me reformular a questão de modo mais SOBRE
para dança na década de 1980) –, o exercício de questionamento que concreto, corporal e político: qual é a relação entre a presença física DRAMA -
TURGIA
a dramaturgia vai estabelecer para cumprir sua promessa de colabo- do dramaturgista no estúdio e as tensões que esta pode criar em DA DANÇA
––––––
rar com a composição não é entre escrita e ação física. Na verdade, relação àqueles que supostamente deveriam manter o saber sobre A NDRÉ
o que nutre a dramaturgia para dança e na dança é a tensão estabe- o trabalho que está sendo criado (isto é: o autor, o coreógrafo, os L E P ECKI

lecida entre múltiplos processos de pensamento não-escritos, difusos bailarinos)? Quem, efetivamente, sabe o que o trabalho-por-vir é,
e errantes e múltiplos processos de atualização desses pensamentos. o que o trabalho-por-vir quer e, portanto, o que o trabalho-por-vir
Essa tensão muito específica cria – tanto quanto diagnostica – precisa? Parece-me que resolver essas questões é dissolver a equi-
um enorme problema para a dramaturgia da dança, que está pro- valência, geralmente não problematizada, entre saber o que o tra-
fundamente ligado à questão do saber, mais especificamente à rei- balho é/quer/precisa e deter (a autoria do) o trabalho.
vindicação do saber sobre o processo de composição de uma obra Então, proponho que a tensão fundamental em dramaturgia
que desde o início se apresenta estranhamente em aberto. como prática não ocorre entre escrita e ação, mas entre saber e de-
Nesse texto, abordo a questão do quê o dramaturgista “supos- ter. Além disso, essa tensão é iniciada não pela dramaturgia, mas

 
tamente deveria saber” na prática diária da dramaturgia da dança. pelo dramaturgista, alguém cuja simples presença (uma presença

 
Todavia, gostaria de começar recordando como a famosa expressão que começa antes mesmo da sua chegada ao estúdio de dança para
“sujeito suposto saber” foi formulada por Jacques Lacan em Os qua- o primeiro dia de ensaio) coloca em questão a estabilidade da auto-
tro conceitos fundamentais da psicanálise. No capítulo 18, intitulado ria daqueles que supostamente deveriam saber o trabalho-por-vir.
“Do Sujeito Suposto Saber, da Díade Primeira, e do Bem”, Lacan ex- Sugeriria que a dramaturgia aplicada ou processual – o traba-
pande o conceito psicanalítico de transferência. Ele desloca o con- lho de interação diária no estúdio com bailarinos, coreógrafos, de-
ceito da dinâmica particular que informa a relação entre analista e signers3 , técnicos, produtores, diretores, todos engajados na cria-
analisando para propor a transferência como um vetor, sempre ope- ção de algo que está ainda difuso – deve ser um incansável e metó-
rando e informando qualquer situação onde haja um “sujet supposé dico exercício de destruição da figura daquele que é suposto saber.
savoir”. Acerca disso ele escreve: “A transferência é um fenômeno Esse método de destruição de um tipo de presunção do saber é o
essencial, ligado ao desejo como fenômeno nodal do ser humano”. que fundamenta uma profunda interação dialógica, essencial para
E conclui “[…] desde que haja em algum lugar o sujeito suposto sa- a atividade do dramaturgista. A dramaturgia emerge graças à ca-
ber […] há transferência” (lacan, 1978, p. 232–233).2 Partindo desta pacidade do dramaturgista de ultrapassar uma posição de sujeito
formulação, mas também distanciando-me do autor, gostaria de su- de (pré)saber, permitindo que a lógica da peça que está-por-vir se
gerir que tão logo alguém ocupe a posição de dramaturgista, é tam-
3 N. do E.: Termo que, na língua inglesa, recobre as funções de iluminador
2 N. do E.: Consultar edição brasileira, p. 220. (light designer), figurinista (costume designer) e cenógrafo (set designer).

– –
64 65
torne atual, concreta. Conforme desenvolverei ao longo deste texto, ser compreendida não como uma busca por erros, um privilégio ERRÂNCIA
COMO
afirmo que o que permite ao dramaturgista operar longe da posição dos equívocos ou, ainda, uma apologia à falha como método (todos T r a ba -
de sujeito suposto saber é errar. Talvez essa seja uma posição polê- projetos válidos nas práticas teatrais contemporâneas, como no te- l h o : SETE
N oTAS
mica demais para começar um texto sobre a atividade do dramatur- atro do Forced Entertainment ou Goat Island), mas no seu sentido DIS -
PERSAS
gista. Certamente incita questões muito práticas e imediatas, pois etimológico mais forte: errar como derivar, perder-se, extraviar-se. SOBRE
se a dramaturgia é performada como processo, no estúdio, junto à Mas permitam-me somar a esses modos de navegar sem bússola um DRAMA -
TURGIA
criação coreográfica que se desdobra, como pode, então, o drama- afeto que chamaria de persistência ética; um desejo de seguir sem DA DANÇA
––––––
turgista preparar suas contribuições específicas para o trabalho? E precisar saber para onde nos dirigimos, de modo que juntos possa- A NDRÉ
se não se tratar de o dramaturgista ocupar a posição daquele que mos construir aquilo que não sabemos o que pode ser. Aqui, esta- L E P ECKI

sabe (sempre ligado às noções de objetividade, racionalidade, dis- mos perto da noção situacionista de dérive (deriva) como prática de
tância), então qual exatamente deveria ser sua posição, ou função, cartografias imanentes a uma situação (que está sempre em movi-
ou seu lugar no estúdio de dança? mento).5 Acredito que a dramaturgia processual deve sempre invo-
Quando o dramaturgista senta ao lado do coreógrafo e observa car e promover esse tipo de ir sem saber, esse errar que vaga, como
o ensaio junto aos outros colaboradores, como o coreógrafo assis- método rigoroso.
tente, os bailarinos que não estão performando naquela cena ou ato
particular, o compositor, os designers – entre esse grupo de outros nota dois
colaboradores que também são supostos saber, com conhecimento Comecei meu trabalho profissional com a dança na metade
 
também supostamente focado, especializado, técnico –, a questão dos anos 1980, em Lisboa, onde cresci. Comecei sendo um amigo-
 
que se impõe é: o que exatamente o dramaturgista investiga, o que -colaborador, trabalhando no que quer que o coreógrafo precisasse:
está analisando, procurando, retendo com sua atividade, com sua sugerindo música, indo aos ensaios, participando das conversas so-
presença singular? O outro lado da mesma questão é: o que exata- bre possíveis pontos de partida para as novas partes de uma peça,
mente é esperado do dramaturgista por aqueles que dançam e core- ou para novas peças, propondo textos (teóricos ou não) para leitura
ografam diante de sua presença examinadora? Antes de todas essas da equipe de criação, ajudando a produzir o material de divulga-
questões, prementes e práticas, uma das respostas que proponho ção para imprensa, escrevendo cartas para patrocínio, desenhando
é que o dramaturgista deverá engajar-se numa metodologia “ane- cenários, entre outras atividades. Aos poucos, passei de amigo-
xata e contudo rigorosa”4 , que não se alinha com o conhecimento -colaborador a colaborador-geral, dramaturgista (oficialmente rece-
e o saber, mas sim com o trabalho de errar. Aqui, a errância deverá bendo esse título em 1992, quando comecei a trabalhar com Meg
4 A expressão “anexato e contudo rigoroso” foi formulada por Edmund Husserl Stuart e Damaged Goods), codiretor (oficialmente recebendo esse
em seu notável ensaio “A origem da geometria”, e reaparece várias vezes nos
escritos de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1987 [1997]), especialmente em p. 555). Sugiro que a dramaturgia seja uma ciência vagabunda, errante ou
Mil platôs, para significar qualquer esforço rigoroso apontando para além vaga: errante, rigorosa, ética, modulada com os virtuais e as atualizações
da questão da exatidão. Significativamente, é uma expressão que Deleuze da situação, mas necessariamente para além da questão da exatidão. [N. do
e Guattari conectam à errância, mais precisamente ao modo “vagabundo” de E.: Consultar edição brasileira, p. 33.]
existência (p. 367) em que o que mais importa é criar uma “ciência vaga 5 Sobre os Situacionistas e suas proposições de deriva como composição errante,

e contudo rigorosa,” “e não precisa, exata ou inexata” (nota de fim na ver, por exemplo: DEBORD, 2009; DEBORD et al., 1990; DEBORD et al., 1971.

– –
66 67
título na instalação com Bruce Mau, em 2000), diretor (oficialmente filme; outro com Walid Ra’ad para seu show na Whitney Biennial ERRÂNCIA
COMO
recebendo esse título em 2006, quando dirigindo o remake de 18 2002; outro com o Jewish Museum, em Nova York (Mabou Mines, T r a ba -
Happenings in 6 Parts), curador (oficialmente recebendo esse título Chamecki-Lerner Dance Company, Castillo Theater, entre muitos ou- l h o : SETE
N oTAS
em 2008, com o festival Transit, na hkw, Berlim). Enquanto isso, tros). Havia também dramaturgistas trabalhando com instalações DIS -
PERSAS
e de modo significativo através dos meus anos de atuação em dra- de música e som, artes visuais e performance, teatro musical e assim SOBRE
maturgia para dança, estive também profundamente envolvido na por diante. Trabalhar nas produções permite que os alunos se en- DRAMA -
TURGIA
atividade da crítica de dança, de 1989 a 1995. Finalmente, a par- gajem completamente no que o processo de dramaturgia demanda: DA DANÇA
––––––
tir de 2001, tornei-me professor no Departamento de Estudos de uma imersão profunda no processo de criação, baseada no fato de A NDRÉ
Performance na New York University (nyu). Havia parado de atuar que você vai trabalhar como um maníaco, auxiliando, intervindo, L E P ECKI

profissionalmente em 1998 (minhas últimas colaborações foram dando ideias, pesquisando, aconselhando e propondo sem nunca,
para Appetite, produção de Damaged Goods, e para Gust, do coreó- entretanto, saber ao certo se o seu trabalho será realmente reco-
grafo português Francisco Camacho). Foi, entretanto, na nyu que nhecido como seu algum dia ou ao final de uma produção. Sobre
encontrei a dramaturgia novamente. isto, Marianne Van Kerkhoven escreveu certa vez em Theatersch-
Na primavera de 2001, ofereci meu primeiro curso de Drama- rif (1994) que sua foto provavelmente não aparecerá no programa.
turgia Experimental. Com a experiência de anos com a dramatur- Como se pode imaginar, tal curso demanda muita organização pre-
gia processual em dança, estava claro para mim que o curso deveria paratória – ligações intermináveis, e-mails e conversas persuasivas,
colocar os alunos de dramaturgia num contexto profissional. Então, a fim de que se possa conectar quinze dramaturgistas com quinze

 
em 2001, 2002 e 2005, os alunos de Dramaturgia Experimental não artistas/produções diferentes. Assim, meus próprios refrões nas li-

 
deveriam somente frequentar os seminários – onde lidamos com gações e e-mails são os seguintes: “Você precisa de um dramatur-
vários textos relevantes para a dramaturgia prática contemporânea gista?”, “Você gostaria de um dramaturgista?”, “Posso te oferecer
–, como também foram colocados na posição de dramaturgistas em um dramaturgista?”, “Sim, eu posso explicar o que é um dramatur-
produções variadas enquanto faziam o curso.6 gista…”.
As produções precisam ser compreendidas aqui no modo mais Finalmente, os estudantes são estabelecidos: no estúdio de ar-
abrangente possível da definição: um aluno trabalhou com o estú- quitetura, no set de filmagem, no museu, no estúdio do artista vi-
dio de arquitetura de Vito Acconci; outro com uma produção de sual, no estúdio de dança. Entretanto, nas respostas de um grupo
específico de produções, um estranho refrão começou a aparecer, o
6 Textos do programa de estudos do curso de Dramaturgia Experimental incluem
seu surgimento veio seguido por um tipo de lei, e quanto mais eu
“O terceiro sentido”, de Roland Barthes (1991); “O retorno do real”, de
abordava produções que supostamente deveriam saber o que um
Hal Foster (1996), uma seleção de textos de uma variedade de dramaturgistas
norte-americanos e europeus, incluindo Heidi Gilpin, Marianne Van Kerkhoven,
dramaturgista é (em dança, em teatro), mais mensagens similares
Myriam Van Imschoot, entrevistas e textos sobre coreógrafos como William recebia: “Caro Prof. Lepecki, estamos encantados com seu e-mail e
Forsythe, Meg Stuart, Jérôme Bel, Boris Charmatz, Ralph Lemon, diretores proposta, mas a essa altura nós não estamos prontos para um dra-
como Elizabeth Lecompte, Richard Foreman, Matthew Goulish e Lin Hixson e
maturgista”; “Oi André, esse é um ótimo projeto. Infelizmente, não
de filósofos como Walter Benjamin e Gilles Deleuze. O leitor pode encontrar
alguns textos muito úteis sobre processo e dramaturgia da dança no volume nos sentimos prontos para trabalhar com um dramaturgista ainda.
Theaterschrift: On dramaturgy, n. 5–6, 1994. Talvez depois, em abril?”; ou “Querido André Lepecki, nós acha-
– –
68 69
mos sua proposta intrigante. Entretanto, a essa altura, não temos Geralmente, o sujeito suposto saber o trabalho é atribuído à fi- ERRÂNCIA
COMO
nenhuma produção no estágio de receber um dramaturgista. Tal- gura de autor/diretor/coreógrafo, mas o dramaturgista chega com T r a ba -
vez no próximo ano pudéssemos pensar um período melhor para a aura simbólica de alguém cujo trabalho não é somente ser outro l h o : SETE
N oTAS
essa colaboração?”. sujeito que supostamente deveria conhecer a produção, mas como DIS -
PERSAS
O refrão sobre a condição de não estar pronto para a chegada um sujeito cuja única função é saber. Sua chegada (cedo ou tarde) SOBRE
de um dramaturgista é interessante, revelador e sintomático. Como revela uma ansiedade constitutiva no centro da nossa atual econo- DRAMA -
TURGIA
disse, quanto mais as pessoas com quem entrei em contato conhe- mia da autoria. Essa dinâmica clama por mais reflexão sobre a ques- DA DANÇA
––––––
ciam o papel ou função do dramaturgista, menos se sentiam pron- tão da prontidão na prática da performance baseada em processo; A NDRÉ
tas para sua chegada. E, para ser claro, isso não estava somente rela- força uma série de questões interrelacionadas: quem alguma vez L E P ECKI

cionado ao fato de que as produções com as quais entrei em contato está pronto para o dramaturgista? Quando alguém está pronto para
estavam muito adiantadas. Algo mais estava acontecendo; alguma o dramaturgista? Por que raramente alguém está pronto para o dra-
coisa no nível do que Lacan viu operando na transferência em ge- maturgista?
ral: onde quer que haja uma figura a quem atribuímos a posição de
um sujeito suposto saber… nota três
Há algo a ser pensado a partir desse refrão de não estar pronto
Essa dinâmica me fez pensar no final da década de 1980 e
para um dramaturgista. Se a dramaturgia foi sempre desejável e
começo da década de 1990, quando coreógrafos começaram a
requerida e bem vinda na dança – e desejada, pois dramaturgia é
convidar-me para trabalhar com eles num tipo de habilidade cola-
 
o nome dado a uma consistência, solidez e coerência estética do
borativa que mesmo sem ter nome era considerada necessária. Eu
 
trabalho em geral (mesmo que a coerência desejada seja exatamente
estava certo, naquele momento, de que não sabia o que estava fa-
a de ser incoerente) –, não são muitas as pessoas que parecem ter
zendo enquanto trabalhava com esses coreógrafos. Certamente não
sentimentos imediatos de hospitalidade e interesse com relação à
sabia que eu era um dramaturgista. E, inicialmente, os coreógrafos
chegada, presença e trabalho do dramaturgista (de dança).
não sabiam como nomear o que eu fazia, também não sabiam que
Ao contrário de uma “[…] difícil relação entre a escrita e a ação
eu era um dramaturgista. Uma vez que todos começamos a traba-
física”, pressuposta no encontro de Novas Dramaturgias, realizado
lhar juntos, os questionamentos sobre esse não-saber começaram
em Múrcia, o que estava surgindo com o refrão da não-prontidão era
a ser resolvidos e dissolvidos pela prática compartilhada do fazer.
uma manifestação de um tipo diferente de dificuldade na relação en-
E o que nós mais fazíamos no estúdio era isso simplesmente: errar
volvida na prática da dramaturgia. Não entre as possibilidades ou
lado a lado, no percurso de um trabalho.7
impossibilidades de tradução (ou não) da escrita para a ação física
e vice-versa, mas sobre as dificuldades que a presença do dramatur- 7 Para uma descrição dos procedimentos, aptidões e tarefas dramatúrgicas espe-
gista traz consigo no momento em que entra no estúdio. O drama- cíficas desenvolvidas por mim nas colaborações citadas, ver meu “Dramatur-
turgista personifica a função que gera ansiedade no nível da pron- ging – a quasi-objective gaze on anti-memory (1992–1998)”, em Are we here

tidão. E prontidão para o quê? Prontidão para saber (sobre) o que é yet? (STUART; PEETERS, 2010). Essas aptidões e procedimentos são importan-
tes (documentar, obter fontes de inspiração e informação externas, desen-
a peça. volver cenas, acumular e indexar material produzido no estúdio, organizar a
memória coletiva do processo), mas o que eu gostaria de destacar aqui é que,

– –
70 71
nota qatro larino. Não há como tratar de todas essas modulações senão por ERRÂNCIA
COMO
Eugenio Barba uma vez avançou uma definição de dramaturgia meio de uma rigorosa errância. T r a ba -
l h o : SETE
muito útil, dada sua ênfase muito mais performativa que herme- N oTAS

nêutica: “[…] dramaturgia é ‘drama-ergon’: o trabalho das ações na nota cinco DIS -
PERSAS
performance” (barba; savarese, 1991, p. 68). Mesmo que através Nesse ponto, precisamos chegar a uma especificidade que desde SOBRE
DRAMA -
dessa definição Barba continue a enfatizar a centralidade do textual a década de 1980 chamamos de dramaturgia da dança, o que sig- TURGIA
DA DANÇA
na dramaturgia (sem considerar se o textual precede a performance nifica que temos que esboçar um paradoxo: o momento no qual a ––––––
ou se é elaborado a partir da performance), sua definição ajuda-nos dança recebeu o sufixo teatro para qualificar um gênero específico, A NDRÉ
L E P ECKI
a perceber como a atividade do dramaturgista (e particularmente eclodindo durante os anos 1980 – dança-teatro (o qual é também um
do dramaturgista de dança) é dupla. O dramaturgista deve atender gênero ligado a um específico modo de produção e criação de dança,
e “tecer” (idem, 1991, p. 68) não somente todas as ações constante- onde o dramaturgista pela primeira vez sente-se bem-vindo) –, é
mente construídas pelo grupo, mas também todas aquelas produzi- também o momento em que a dança torna-se pós-dramática.8 O te-
das por cada um dos elementos (incluindo os impessoais) envolvi- atro entra no nome da dança quando está abandonando o problema
dos na cocriação da peça. do drama, quer dizer, quando está abandonando um certo tipo de
Assim, objetos, temperatura, horário do dia, elementos invisí- compreensão da função teatral da escrita. Assim, sem a espinha dor-
veis e intangíveis devem ser considerados como ações a serem ob- sal de uma narrativa estruturante anterior para a qual o trabalho é
servadas. Considerar um objeto como uma ação não implica neces- direcionado (como nos trabalhos de Martha Graham nas décadas de
sariamente uma operação metafórica ou poética (por exemplo, não   1950 e 1960, por exemplo) ou sem o suporte principal da abstração
se trata de ver um objeto como uma ação), mas requer uma acei-   formal (onde o espaço do palco foi equiparado ao espaço da tela,
tação muito literal do fato de que coisas e objetos e temperaturas como em Merce Cunningham), a dança se torna dança-teatro, por
certamente agem. problematizar intensamente a função da escrita e, certamente, por
No caso da dança, a dramaturgia decorre da aceitação de como descreditar a função unificadora e soberana da escrita como uma
todos os elementos (pessoais, corporais, objetais, textuais, atmosfé- das principais tensionadoras da e na dramaturgia. A dança torna-
ricos) poderão estar já criando eventos. É uma questão de compre- -se dança-teatro ao desviar-se do drama no teatro. Mas tal desvio
ender sua modulação, de escolher as qualidades adequadas ou ina- coincide com a chegada dos dramaturgistas da dança nos estúdios.
dequadas da peça porvir. A modulação de um gesto; a modulação O dramaturgista chega para já encontrar o drama fora do quadro.
de uma cor; a modulação de um poema, a modulação de um objeto, Sem drama, o que resta da dramaturgia é, como Barba lembra, er-
a modulação de uma fisicalidade ou cadência específica de um bai- gon – em outras palavras, trabalho. O dramaturgista chega, então,
no estúdio da dança, como um simples trabalhador.
No mesmo momento em que o ponto de partida para criar uma
mesmo que esses procedimentos sejam importantes e úteis, não são essenciais
para a tarefa da dramaturgia, que defino como uma ativação particular da
peça de dança não é mais a técnica, o enredo ou o texto, mas a
sensibilidade, sensação, percepção e imaginação em direção aos processos de aceitação de vagos (e contudo concretos) campos de heterogenei-
atualização do virtual sob a singularidade de um processo composicional e
coletivo. 8 Ver Lehmann, 2006.

– –
72 73
dade, um novo tipo de trabalhador surgiu no estúdio de dança, o vações, obsessões, temas sejam considerados pontos de partida e de ERRÂNCIA
COMO
dramaturgista. Esse trabalhador encontrou uma variedade de cor- chegada”. T r a ba -
pos, vozes, técnicas de dança, palavras, gostos, imagens e gestos já Então, criar seria pouco mais que um preenchimento desses l h o : SETE
N oTAS
povoados todos por outros corpos, vozes, palavras, técnicas, refe- enunciados-comandos. Entretanto, a dramaturgia como prática dá DIS -
PERSAS
rências, gestos. Tudo em estado de dispersão, amplificado por um ocasião à descoberta de que é o trabalho em si que estabelece sua SOBRE
modo ainda mais dispersivo de compor danças e de trabalhar com própria soberania, seus próprios desejos e comandos performati- DRAMA -
TURGIA
bailarinos que tem caracterizado o fazer da dança desde 1980. vos. A dramaturgia como uma prática da errância descobre que é DA DANÇA
––––––
Em vez de estruturar um arco dramático para ser seguido por o trabalho-por-vir que detém sua própria força autoral. Nesse sen- A NDRÉ
todos, o coreógrafo é um proponente de questões abertas para os tido, o dramaturgista da dança, liberto do drama e lançado ao tra- L E P ECKI

bailarinos, que vão respondê-las provisoriamente; em vez de esta- balho puro, não é interpelado pelo coreógrafo, pelos bailarinos ou
belecer uma técnica, o coreógrafo vai privilegiar o uso daquelas ca- pelos (ou com) outros colaboradores; o dramaturgista trabalha para
pacidades e intensidades singulares, imanentes ao corpo de cada e com o trabalho-por-vir. Mesmo que ninguém, inclusive o drama-
bailarino; em vez de um tempo-espaço ficcional, há uma ênfase so- turgista, ainda saiba o que o trabalho pode ser. Uma atividade im-
bre as especificidades concretas que fazem o lugar-duração de cada portante do dramaturgista é lembrar a todos dessa força soberana
performance. do trabalho, da necessidade de todos trabalharem para o trabalho –
O trabalho do dramaturgista parte dessas zonas de indetermina- desfazendo, assim, uma certa imagem (teológica) da criação.
ção, dessas nuvens e vapores já povoados por elementos muito con- Para voltar à minha proposição inicial, é na tensão estabelecida

 
cretos que compõem o campo heterogêneo de dispersão específico de entre um quase-nada implicado num desejo (vamos chamá-lo, por

 
cada singularidade autoral. Nesse campo-nuvem, material e especí- ora, de autoral) e uma quase-atualização dos virtuais (que vamos
fico, estão coreógrafo, bailarinos, colaboradores artísticos e drama- chamar de implementação final do trabalho-por-vir) que a drama-
turgista tentando o seu melhor para não se tornarem somente va- turgia da dança opera. E como essa dramaturgia da dança opera?
por. Em outras palavras, a dramaturgia da dança opera num campo Como trabalha enquanto faz seu trabalho? Como habita essa zona
de desunidade que, entretanto, permanece específico e exige coe- de indeterminação que é, entretanto, tão precisa, tão concreta e tão
rência. Essa coerência parte da materialidade granulada das ações, rigorosa?
pensamentos, passos, gestos, objetos, acessórios, figurinos, tempos Não há nada mais próximo do processo de atualização do que
e ritmos que cada bailarino, cada objeto, cada lugar exala, invoca e, esse modo particular de cocriação num estúdio de dança com uma
coletivamente, reúne num plano da composição. equipe de colaboradores heterogêneos. Começamos com uma zona
Qual é a força que pode aparelhar essa nuvem de desunidade de indeterminação que cerca os elementos concretos. Essa zona é
que aparentemente é quase um nada, mas não totalmente? Essa constituída por uma variedade de nós de problemas específicos e
força não tem outro nome senão desejo autoral. Geralmente, o de- bem definidos (problemas coreográficos como, por exemplo, dan-
sejo autoral é articulado performativamente; isso quer dizer que to- çar imóvel ou como dois corpos podem ocupar o mesmo espaço);
das as declarações feitas por um autor sugerem uma força de im- nós de afetos (problemas afetivos como, por exemplo, de que forma
plementação. O autor diz: “Quero fazer uma peça que trate dessa é possível criar um corpo de pânico, um corpo de delírio, um corpo
questão específica”, ou “Quero fazer uma peça em que certas obser- de perda); ou nós de referências (problemas estéticos – como a pin-
– –
74 75
tura de Francis Bacon, a escultura de Joseph Beuys ou certos frag- nota seis ERRÂNCIA
COMO
mentos da filosofia, poesia, jornais diários – podem ser ativados No nebuloso, mas rigoroso território da dramaturgia, errando T r a ba -
nessa peça em particular). A partir dessa nuvem inicial composta em meio a uma multiplicidade de pensamentos e atualizações, a
l h o : SETE
N oTAS
de elementos heterogêneos e suas referências, modos adequados clareza é obtida através de uma abordagem sutil e contextual de
DIS -
PERSAS
para sua condensação (ou atualização) precisam ser criados fisica- cada elemento da performance. Aqui, um imperativo deve sempre SOBRE
mente, gestualmente, corporalmente, temporalmente, atmosferica- ser observado. Vamos chamá-lo de imperativo imanente, para ob-
DRAMA -
TURGIA
mente, espacialmente, semanticamente e assim por diante. servar cuidadosamente todos os elementos presentes na situação,
DA DANÇA
––––––
A atualização é o conceito filosófico que descreve como qual- mesmo os supostamente periféricos e insignificantes: um corpo es- A NDRÉ
quer aqui-e-agora se forma. Porém, enquanto se cria um trabalho pecífico de um bailarino e seus modos particulares de mover, de ser
L E P ECKI

artístico de modo geral, a atualização é desejada. Desejar a atua- e de temperamento; a singularidade de um gesto, de um passo, de
lização da imprecisão no plano particular da composição requer uma frase, dentro de sua própria lógica e dentro da lógica global de
sintonia para com a consistência diagramática da situação no en- sua articulação com o que antecede e o que sucede e/ou gestos, pas-
saio. O dramaturgista, junto com todos os colaboradores da equipe, sos e frases ao seu redor; não somente a composição material e a
erra entre a clareza da situação (mesmo que essa clareza implique funcionalidade do objeto, mas também as ramificações poéticas do
a forma de um borrão, desde que seja isso o que está sendo con- seu nome (por exemplo, a maneira como um objeto funciona como
vocado) e sua imprecisão (mesmo nos processos mais metódicos, a simples ferramenta ou instrumento não pode ser isolada da forma
atualização sempre chega com a surpreendente erupção de um real com a qual seu nome funciona num campo das palavras, que pode
 
acontecimento). O lugar da duração, onde os modos de condensa- gerar um campo subliminar, ainda que concreto, de imagens acús-
 
ção e atualização são invocados e criados, experimentados e repeti- ticas ou significantes). Mapear como todos esses elementos se reú-
dos, descartados e recuperados, é chamado ensaio. O dramaturgista nem, às vezes por coerência, às vezes por adesão, às vezes por dis-
é, simultaneamente, o cartógrafo do ensaio e um dos seus catalisa- persão, às vezes por conflito, é a tarefa da dramaturgia. O dramatur-
dores – trabalhando singularmente, ainda que com o grupo e para gista serve a essa tarefa ao identificar, seguir, possibilitar essa mul-
o trabalho-por-vir. tidão de forças a seguir as linhas que elas mesmas traçam. Essa é a
Na dança, o que descobrimos enquanto atuamos na dramatur- errância no trabalho. Esse é o “anexato e contudo rigoroso” traba-
gia a partir do lugar do quase-nada é que para cada trabalho especí- lho da errância.
fico, em cada novo projeto, em cada nova peça sendo feita, um modo Ações e interações como objetos, bailarinos, coreógrafo, drama-
particular de experimentação – um modo particular de ensaio – pre- turgista e todos os outros, todos agindo e reagindo. Através e sobre
cisa ser reinventado a cada vez, de forma que a peça que ninguém esse campo coativo, não tanto um texto, mas uma textura é tecida,
sabe o que é, e menos ainda o que será, talvez se torne atual. A dra- entrelaçada, suturada. Uma superfície começa a emergir – uma pele,
maturgia da dança deve sempre lembrar que cada nova peça exige uma vibração, um estado afetivo. Elementos começam a encontrar
seus novos métodos e modos específicos. Cada peça exige seus pró- lugar – espontaneamente ou depois de meses de concatenação.
prios modos de incorporação e atualização, excorporação e virtua- Errar. Errar. Errar.
lização. Não saber. Não saber. Não saber.

– –
76 77
Fazer. Fazer. Fazer. larino foi preenchido com técnicas e gestos que parecem preestabe- ERRÂNCIA
COMO
E, no entanto, não há nada mais assustador do que trabalhar a lecidos para servir a uma certa concepção do que um trabalho de T r a ba -
partir da posição do não-saber. Mas o nome de uma força fugitiva dança, um trabalho de arte, é, ou mais que isso, deveria ser. Esse é l h o : SETE
N oTAS
já está lá nesse terror específico: erro. Esse afeto é exatamente o o drama, esse é o terror – não saber como chacoalhar tudo o que DIS -
PERSAS
que atinge o dramaturgista em seu trabalho diário. É exatamente do já preenche os nossos corpos com clichês, nossas percepções, ou SOBRE
que o dramaturgista é constantemente acusado: de cometer erros, mesmo a peça que ainda está por vir. Então, para que alguma outra DRAMA -
TURGIA
de não ver adequadamente, de não dançar adequadamente, de não coisa possa aparecer, perdemo-nos. Como Deleuze (2003) escreve: DA DANÇA
––––––
decidir adequadamente, de não conhecer a peça adequadamente… “A tela [branca] já está de tal maneira cheia que o pintor deve entrar A NDRÉ
Aprender como lidar com essas acusações sobre o não-saber é nela. Ele entra assim no clichê […]. E entra porque sabe o que quer fazer.
L E P ECKI

o rito de passagem pelo qual passam todos os dramaturgistas no Mas o que o salva é que ele não sabe como conseguir, não sabe como
momento do fervor da atualização, quando a estreia é iminente e a fazer o que quer” (p. 78, grifo nosso).10
peça insiste teimosamente em permanecer numa nuvem imprecisa.
Eu certamente tive a experiência de momentos nos quais bailarinos nota sete
me mandavam dançar um trecho que eu lhes dizia que “não pare- Há um tipo de violência na errância, paradoxal talvez, já que
cia bem”. Então você vai até lá, parecendo um bobo, claro; você não estruturada sob o signo do cuidado e da assistência. Entretanto, o
sabe dançar, mas dança de qualquer modo, e todos dão uma boa chacoalhar dos clichês exige, como Deleuze nos lembra, uma desfi-
risada, e porque você não sabe, mas ousa dançar a sua ignorância, guração de uma certa imagem da representação, ou mesmo de uma
 
então um bloqueio passa a ser removido, e o trabalho agora encon- autorrepresentação. Mas uma desfiguração nunca é completamente
 
tra uma maneira de continuar sua atualização. Mas para mim, em alcançada; é um limite, um limiar. Na melhor das hipóteses, é a força
todo meu trabalho como dramaturgista de dança, o real terror de que direciona ou fundamenta a errância, seu horizonte de fibrilação
não saber era somente um. E esse terror, apesar de sua natureza re- ou atrator.
petitiva, é sempre específico para cada e toda nova peça, então é Na New York University, uma aluna no seminário de Drama-
preciso lidar com ele todas as vezes: o de não saber como fazer com turgia Experimental estava trabalhando com um coletivo de teatro
que o trabalho escape ao clichê. numa produção de uma peça teatral pós-dramática. Ela havia co-
Como Gilles Deleuze (2003, p. 76–78)9 nos lembra em A lógica laborado com esse grupo muitas vezes antes, eram amigos, confia-
da sensação, todos os espaços aparentemente vazios que servem vam uns nos outros. A partir de um certo ponto, ela decidiu como
como suporte para a representação (tela branca, papel branco, palco arquitetar sua presença dramatúrgica e seu trabalho nessa nova pro-
vazio, estúdio de dança) já estão enchidos, preenchidos, transbor- dução; ela daria somente maus conselhos durante a primeira parte
dando com inúmeros clichês, que devem ser removidos antes que do processo. Em suas próprias palavras, ela escolheu para si a ocu-
alguma outra coisa possa acontecer. Essa preocupação do espaço pação de “dramaturgista como sabotadora”. Não se tratava de im-
representacional povoado por clichês é particularmente dominante por sua visão ao trabalho, uma vez que não tinha nenhuma visão
na dança, quando não somente o palco, mas também o corpo do bai- pré-formada do trabalho e porque o trabalho também não tinha ne-
9 N. do E.: Consultar edição brasileira, p. 91–94. 10 N. do E.: Consultar edição brasileira, p. 99.

– –
78 79
nhuma visão explícita de si mesmo. O que ela estava secretamente Referências ERRÂNCIA
COMO
propondo, até para ela mesma, (e há toda uma história de sigilo na T r a ba -
• araújo, Antônio et al. Repensar la dramaturgia: errancia y trans-
dramaturgia, tema que renderia um outro ensaio), era transformar l h o : SETE
formación. Murcia: Centro Párraga; cencdoc, 2011. N oTAS
a todos (incluindo ela mesma) em errantes no seu próprio domínio. DIS -

• barba, Eugenio; savarese, Nicola. The dictionary of theatre anth-


PERSAS
Seguir rigorosamente com essa proposição anexata significou que, SOBRE
a partir de um determinado momento, ninguém, incluindo o dra- ropology: the secret art of the performer. Londres; Nova York: Rou- DRAMA -
TURGIA
maturgista, sabia qual era a ideia original da peça ou sobre o que o tledge, 1991. DA DANÇA
––––––
processo deveria ser. Havia até dúvidas sobre o que, afinal, teria le- • barthes, Roland. The responsibility of forms: critical essays on A NDRÉ
vado o grupo até aquele ponto. Até mesmo a dramaturgista deixou music, art, and representation. Berkeley: University of California
L E P ECKI

de estar certa sobre seus próprios procedimentos. Totalmente perdi- Press, 1991.
dos, o que continuaram a fazer foi, diariamente, simplesmente tra-
• debord, Guy et al. To create at long last a situation which goes
balhar. Juntos. Só sabiam que queriam fazer uma peça juntos. Gra-
beyond the point of no return: 4 situationist texts. Londres: Liberta-
ças à sabotagem como tática dramatúrgica preliminar, esqueceram
ria, 1971.
rigorosamente como fazer a peça. Então tudo que lhes restava era
trabalhar. Trabalharam e trabalharam e trabalharam. Errando, er- • ______ et al. Theses on the Situationist International and its time.
rando, errando. Não sabendo, não sabendo, não sabendo. Esse tra- Londres: B.M. Chronos, 1990.
balho pesado é precisamente a desfiguração em processo. É a obs- • ______. Correspondence: the foundation of the situationist interna-
 
tinação rigorosa de trabalhar juntos por algo que ninguém sabe o tional (June 1957–August 1960). Los Angeles: Semiotext(e), 2009.
 
que vai ser. Até que, finalmente (e esse advento é sempre explícito
• deleuze, Gilles. The logic of sensation. Minneapolis: University of
e vago, milagroso e esperado, mas sempre claro quando finalmente
Minnesota Press, 2003 [Edição brasileira: Francis Bacon: lógica da
eclode), alguma outra coisa, alguma coisa em geral diferente do que
sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997].
foi concebido como pontos de partida e chegada predeterminados
do processo coletivo, começa a amalgamar-se. Atualização. Nesse • ______; guattari, Félix. A thousand plateaus: capitalism and schi-
ponto, que é literalmente um ponto crítico, ponto de inflexão no zophrenia. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1987 [Edi-
processo, uma singularidade, a dramaturgista decidiu parar com a ção brasileira: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 5. São
sabotagem intencional. Os clichês (incluindo os clichês que ela ti- Paulo: Editora 34, 1997. v. 5].
nha sobre sua própria atividade, ou trabalho, ou função, assim como • foster, Hal. The return of the real: the avant-garde at the end of
os que ela tinha sobre suas próprias expectativas quanto ao tipo de the century. Cambridge: mit Press, 1996.
trabalho que queria fazer com esse grupo) haviam sido removidos.
• hansen, Pil; callison, Darcey (Orgs.) Dance dramaturgy: modes
Algo podia começar a ser construído.
of agency, awareness and engagement. Nova York: Palgrave Mac-
Todos estavam prontos.
millan, 2015.

– –
80 81
• lacan, Jacques. The four fundamental concepts of psycho-analysis. ERRÂNCIA
COMO
Nova York: Norton, 1978 [Edição brasileira: O seminário, livro 11: T r a ba -
os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: l h o : SETE
N oTAS
Jorge Zahar Editor, 1988]. DIS -
PERSAS
• lehmann, Hans-Thies. Postdramatic theatre. Londres, Nova York: SOBRE
DRAMA -
Routledge, 2006 [Edição brasileira: Teatro pós-dramático. São TURGIA

Paulo: Cosac Naify, 2007].


DA DANÇA
––––––
A NDRÉ
• stuart, Meg; peeters, Jeroen (Eds.). Are we here yet? Dijon: Les L E P ECKI
Presses du Réel, 2010.
• theaterschrift. On dramaturgy, n. 5–6, Bruxelas, 1994.

 
 

– –
82 83
corpo
“N
BOUD I ER , Mario n et al. CALDAS ,
D e q uoi l a d ra mat urgi e Pau lo; inguém até agora determinou o que pode o corpo”.1
est -el l e l e nom? Pari s :
L’Harmat t an, 2 014. p.
GADELHA, Substituindo um princípio de essência por um princí-
2 7 - 30. Er n es t o.
D a nça e dra -
pio de potência, Espinosa, em Ética, abre o caminho
maturgia [s]. para uma exploração dos possíveis do corpo que, hoje em dia, nu-
São Paulo: merosas práticas dramatúrgicas parecem seguir. As artes vivas têm,
nex us, 20 16 .
com efeito, a peculiaridade de dar a ver corpos — corpo do intér-
prete, corpo do manipulador — que, nas suas simples presenças, já
 abrem uma rede de significados, expectativas, signos e convenções
 históricas, culturais e sociais.
Buscando definir essa expressividade primeira do corpo, o bai-
larino e coreógrafo Boris Charmatz propunha o termo “autodrama-
turgia” para designar o agenciamento, autodeterminado, de um sen-
tido articulado à presença:
Antes mesmo de se mover, o corpo tem inscrito em si os potenciais que
sua cultura forjou. Além disso, no olhar dirigido aos corpos, já pree-
xiste o movimento que consideramos possível, aceitável, visível ou de-
sejável. Fica claro, então, que o corpo está amarrado a uma autodra-

1 “Aliás, ninguém até agora determinou o que pode o corpo, ou seja, ninguém

até agora aprendeu pela experiência do que o corpo é capaz segundo as leis
da natureza considerada unicamente como corporal, e do que ele não é capaz
a menos que seja determinado pelo pensar”. In: SPINOZA, Baruch. Éthique —
Livro III, Escólio da proposição 2. Tradução de Henri Lurié. Mônaco: Éditions
du Rocher, 1974. p. 148.

– –
84 85
maturgia que não precisa necessariamente de uma situação narrativa lidade do corpo num universo extremo (cacos de vidro, formigueiro corpo

para existir.2 ou cadeira de faquir forçando-o a ultrapassar alguns limites físicos):


É contra o domínio de uma vontade de significação que não “Na lentidão, ninguém sabe para onde vai o movimento. Nem o per-
consideraria esse sentido primeiro, que até se exercitaria contra ele, former, nem o espectador”.6 Contendo em si mesmo seu próprio
que Antoine Pickels intitulou, uma de suas contribuições à revista princípio e sua realização, o corpo é o meio de construção de uma
Nouvelles de danse: “O corpo tem suas razões (que o dramaturgista dramaturgia performativa de significações imanentes e circunstan-
ignora)”.3 O dramaturgista belga convocava, desse modo, uma pos- ciais.
tura de modéstia capaz de admitir a prevalência da inteligência sen- Uma das primeiras escolhas dramatúrgicas que permanece é a
sível sobre a intenção intelectual a priori: “O dramaturgista deve ad- da distribuição, que pode corroborar com uma dramaturgia prévia,
mitir, então, perder o sentido diante da lógica do corpo, do movi- apoiar uma leitura singular da obra ou até mesmo deslocá-la. O des-
mento e do gesto – porque o gesto dominado/controlado é despre- vio pode ser ínfimo, mas transgressivo, em particular na ópera cujo
zível”.4 Antoine Vitez compartilhava da mesma desconfiança em re- público é especialmente atento ao respeito pelos códigos e tradições
lação à disjunção entre as linhas dramatúrgica e física, quando lem- de representação. Dessa forma, Catherine Ailloud-Nicolas, drama-
brava que turgista de Richard Brunel, explicava o choque provocado pela so-
prano Petya Ivanova, encarnando Lakmé na ópera epônima de Léo
[…] tudo que chamamos de dramaturgia, tudo que é, a princípio, ensi-
Delibes7 , com seus cabelos loiros ao natural, rompendo com a tradi-
nado aos atores durante as sessões de trabalho ao redor de uma mesa,
tudo isso tem de ser feito. Mas ao longo do trabalho físico concreto.
ção da garota brâmane morena associada ao folclore indiano.8 Re-

 
É aí, na escolha entre um gesto e outro, entre uma entonação e outra, cusando a cor local, essa escolha de elenco revelava a orientação

 
entre um gesto verbal ou corporal, que eu situo a dramaturgia.5 dramatúrgica escolhida pelo diretor, cuja intenção era livrar a obra
de seu exotismo ultrapassado, a fim de engajar-se na investigação
Em nome dessa “autodramaturgia” do corpo, alguns dramatur-
do nó trágico da peça.
gistas de hoje preconizam o silêncio e uma postura de distancia-
De maneira mais decisiva ainda, a distribuição de papéis ar-
mento frente à frágil expressão corporal. Trabalham na recusa da
ranca os corpos de seus empregos tradicionais na encenação de Mi-
narração e no esvaziamento da noção de personagem para que “o
chel Raskine em Jeu de l’Amour et du hasard (2009): atores de cin-
corpo ultrapasse a mente”, como busca, por exemplo, o performer
quenta anos de idade encarnam os jovens amantes que se deixam
suíço Yann Marussich, por meio de suas experiências sobre a imobi-
surpreender pelo amor.
2 CHARMATZ, Boris. De la dramaturgie en danse contemporaine: pistes et inter- 6 Yann Marussich, a propósito do espetáculo Brisures, criado em 2009, em

rogations. Entrevista com Laure Fernandez. In: DANAN, Joseph. Dramaturgie Genebra. Disponível em: <http://www.yannmarussich.ch>. Acesso em: 7 jan.
au présent (Org.). Registres, n. 14, 2010. p. 89. 2014.
3 PICKELS, Antoine. Le corps a ses raisons (que le dramaturge ignore). Danse 7 DELIBES, Léo. Lakmé. Encenação de Richard Brunel criada na Ópera de Rouen

et dramaturgie, nouvelles de danse, n. 31, 1997. p. 26–30. em 11 de outubro de 2009.


4 Antoine Pickels em entrevista inédita com Barbara Métais-Chastanier, reali- 8 AILLOUD-NICOLAS, Catherine. Dramaturgie de l’opéra. Opéra et dramaturgie,

zada na cidade de Bruxelas (Bélgica), em 10 de maio de 2010. laboratoire de recherche, encontro animado por Marion Boudier e Alice Carré.
5 VITEZ, Antoine. L’acteur n’est pas un intellectuel. In: COPFERMAN, Émile. Disponível em: <agon.ens-lyon.fr/index.php?id=1675> . >. Acesso em: 07 jan.
De Chaillot à chaillot. Paris: Hachette, 1981. p. 130. (Entrevista). 2014.

– –
86 87
O espaço público da representação no qual o corpo se oferece à
interpretação, assim como ao olhar, interroga ou critica igualmente
as representações dominantes do que pode (ser) o corpo. Em re-
ação oposta aos corpos modelados pela tradição espetacular, cor-
pos gloriosos da proeza no circo tradicional ou padronizados e vir-
tuosos dos balés clássicos, algumas escolhas dramatúrgicas podem
procurar perturbar as normas socialmente admitidas. Assistimos,
assim, por exemplo, a uma reavaliação do lugar da façanha na arte
do circo, que baseava-se tradicionalmente na proeza e num fascínio
pelo risco do acidente, em favor da busca de um corpo frágil, assu-
mindo suas fraquezas e seus fracassos, em contraponto à represen-
tação do esforço glorificado e do intérprete magnificado.
O recurso ao corpo fora da norma, herdado dos espetáculos
populares ou das feiras de diversões, é igualmente reinventado e
reinvestido por alguns encenadores ou coreógrafos, como Bouchra
Ouizuen, que em Madame Plaza (2009) trabalha com mulheres aï-
tas, cantoras de cabaré marroquino de corpos largos e vozes poten-

 
tes, consideradas prostitutas. Atrelada a corpos incomuns ou tabus,

 
essa autodramaturgia das bailarinas se opõe às lógicas de virtuo-
sismo e de distanciamento do corpo sublimado do intérprete, tanto
quanto ela questiona a uniformização dos modelos corporais e seus
valores sociais. O fato é que o impulso espetacular usado pode le-
vantar a questão da ambivalência entre exibição e banalização da
singularidade. Se o corpo tem suas razões que o dramaturgista des-
conhece, a dramaturgia pode ignorá-las?

– –
88 89
O projeto dramatúrgico se elabora assim em comum.
Não antes, mas durante os ensaios. Parte-se
talvez de uma suposição, de uma aposta sobre um
sentido possível. Essa suposição, os ensaios irão
confirmar ou contestar, enriquecê-la, de todo
modo. A dramaturgia é obra de todos, no ato mesmo
do teatro.

trecho de: Bernard Dort


L’état d’esprit dramaturgique
[THÉÂTRE PUBLIC. Dramaturgie, n. 6-7, 1986, p. 10.]
0 drama- CALDAS ,
P u b l icad o com o t ít ulo
T h e ig norant d ram at urg . Pa u lo ;
In: M a s ka , v. 1 6, n. 1 3 1 -
GADELHA,
tu r g i sta
132, 2 0 1 0 , p . 4 0 -5 3 .
E r n e st o .
Danç a e d ra-

ignorante
maturgi a[s].
S ã o Pa u l o :
n ex u s, 20 1 6.

––––––
B oja n a
Cv e j i ć

– –
90 91
P
Bojana Cvejic´ é O d r a m atu r g i Sta ara mim não é surpresa que tenhamos nos reunido aqui
ignOrantE
dramaturgista, performer
–––––– para falar sobre dança e dramaturgia.1 Podemos orgulhosa-
e professora da University
Singidunum, em Belgrado.
B ojA n A cv e j i ć mente reconhecer que já realizamos vários seminários, ofi-
Além de diversos cinas e todos os tipos de encontros sobre “dramaturgia da dança”.
ensaios, publicou livros Entretanto, a razão pela qual o tema chama tanta atenção hoje tem
como Choreographing menos a ver com sua novidade do que com o seu recente reconhe-
problems: expressive cimento como uma prática – que é mesmo uma profissão – cujo
 
concepts in european
papel na criação em dança ainda não recebeu reflexão suficiente.
 
contemporary dance
and performance (2016) Uma outra abordagem demandaria o questionamento sobre
e Drumming & rain: a como a “dramaturgia da dança” segue paralelamente a outros con-
choreographer’s score, ceitos tratados na dança a partir de 2000, como “pesquisa”, “cola-
juntamente com Anne boração”, “teoria”, “educação e aprendizado”: como a dramaturgia
Teresa De Keersmaeker
da dança redefine esses conceitos e por quê. Vim até aqui decidida
(2014).
– a não buscar problemas como “Por que a dramaturgia agora?”, ou
“Por que somente agora?”, e outras questões do mesmo tipo, visto
que elas inevitavelmente me levariam a desconstruir o tema geral
do debate e, então, iríamos para casa um pouco mais céticos e cíni-
cos do que o normal. Ao contrário, aceito o convite para pensar “O
que é dramaturgia da dança?”. Entretanto, meu impulso é desviar
da pergunta essencialista “o que” para ir em direção a outras per-
guntas: “Dramaturgia da dança?” Sim, mas por quem? Para quem?

1 Esse texto foi escrito originalmente para a conferência Danswerkplatz Ams-

terdam, em 4 de dezembro de 2009, no Fórum sobre Dramaturgia.

– – –
92 16 93
Com quem? Onde e quando? Como, em que situação e quanto? vra aparece com uma terminação feminina – um aviso divertido so- 0 DRA -
MATUR -
Multiplicar as questões faz com que a dramaturgia da dança pareça bre a feminização do trabalho. Colocar o gênero na profissão não GISTA
problema menor – de uma minoria (minoritário) – e, consequente- tem que revelar a mulher-dramaturgista sentada ao lado do homem- IGNO -
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mente, um problema plural. -coreógrafo; feminização, de acordo com Antonio Negri e Michael ––––––
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Estudando muitos casos um por um, poderíamos descobrir Hardt (2000, p. 280–303)2 pressupõe a transformação do trabalho da CVEJIĆ
como o trabalho de dramaturgia reinventa-se, como é diferente manufatura de objetos para a produção de serviços. Para limpar o
sempre que consegue ser verdadeiramente um problema de uma terreno da norma e da necessidade, permitam-me desestabilizar al-
nova criação, em oposição à repetição de uma “fórmula de sucesso”. gumas suposições sobre os serviços que o dramaturgista de dança
A tentação de revelar as muitas dramaturgias esconde o perigo da deve oferecer.
relativização arbitrária – tudo e nada são ou podem ser (conside- O dramaturgista de dança tem habilidades linguísticas que o lo-
rados) dramaturgia –, e a perda de uma posição a ser defendida. calizam no polo reflexivo da tediosa separação mente-corpo. Essa
Portanto, estabeleço aqui, prontamente, minha posição e tarefa: de- hipótese gera uma divisão binária do trabalho segundo faculdades
bater a dramaturgia da dança na circunstância específica do traba- mentais e corporais: coreógrafos são fazedores mudos; dramatur-
lho freelancers baseado em projetos, algo a que costumávamos nos gistas, pensadores e escritores sem corpo. Mostrarei como as fron-
referir como “independente”. teiras dessas faculdades estão borradas e em constante transforma-
Quando existe um dramaturgista, ele não pertence ao quadro de ção.
funcionários da companhia ou de um teatro de repertório; ele não O dramaturgista de dança observa o processo da distância de

 
é, como dramaturgista, o encarregado de um know-how, de um ofí- uma perspectiva exterior. Espera-se que mantenha um olhar crí-

 
cio, de uma profissão (o caso exemplar de Marianne Van Kerkhoven tico contra a autoindulgência e o solipsismo do coreógrafo. Mas e
vem lembrar-nos das décadas de 1980 e 1990). A chegada do drama- se o trabalho de coreógrafo, como escreveu recentemente Jonathan
turgista na dança contemporânea a partir de 2000 é ainda mais cu- Burrows (2010, p. 33), é “[…] ficar suficientemente perto daquilo
riosa pelo fato de os próprios coreógrafos nunca terem estado tão que estamos fazendo para sentir e ao mesmo tempo usar estraté-
articulados e reflexivos sobre seus métodos de trabalho e conceitos. gias para nos distanciarmos o suficiente para compreender momen-
Então, por que um dramaturgista? Minha hipótese é: só podemos taneamente o que outra pessoa poderá perceber”? Burrows segue
começar a falar sobre a dramaturgia da dança e tentar tornar essa deliberando que a coreografia poderia ser “[…] algo que faz com
noção mais substancial quando aceitarmos que ela não é necessá- que você dê um passo para trás por um momento, tempo (bastante)
ria, que um dramaturgista de dança não é necessário. Mais que esta- para ver o que outra pessoa pode ver” (idem. Então, novamente, a
belecer uma definição normativa, gostaria de explorar funções, pa- divisão entre fazedores e observadores não funciona quando tanto
péis, atividades do dramaturgista no trabalho experimental; como o dramaturgista quanto o coreógrafo exercitam perspectivas exter-
o dramaturgista torna-se elemento constitutivo de um método de nas. Minha tarefa será a de discernir a natureza mais sutil dessa
criação experimental – um cocriador de um problema. cumplicidade e dessa afinidade na faculdade compartilhada de ver
Mas antes que eu proceda com isso, uma outra questão que me e refletir.
causa confusão: como vocês escrevem ou pronunciam essa palavra
em inglês: dramaturg ou dramaturge? Ao acrescentar o “e”, a pala- 2 N. do E.: Consultar edição brasileira, p. 301–324.

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O ponto anterior pode ser contra-argumentado da seguinte Nós, dramaturgistas, nos lembramos de pelo menos uma experiên- 0 DRA -
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forma: o dever especial do olhar crítico de dramaturgista é colocar- cia obscura desse tipo e que preferiríamos esquecer. GISTA
-se entre o coreógrafo e o público, de forma a mediar e ter certeza de Agora que liberamos nosso dramaturgista da dança desses servi- IGNO -
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que a comunicação funciona para ambos os lados. Mas isso trans- ços (tradicionais), estarão nossas mãos suficientemente livres para ––––––
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forma a dramaturgia numa pedagogia em que o dramaturgista se outro empreendimento? Quando pedem para Jan Ritsema, produ- CVEJIĆ
coloca na posição professoral ou sacerdotal, daquele que sabe mais, tor holandês de teatro, definir o que é um dramaturgista, sua res-
de quem pode prever o que as pessoas da plateia podem ver, sentir, posta é deliberadamente vaga: um copensador no processo. A par-
pensar, gostar ou desgostar. tir dessa visão, mesmo que genérica, questiono: se o dramaturgista
Nós, artistas e teóricos, estamos obcecados demais em relação à é o parceiro de trabalho no pensamento, ele é, então, um tipo de
condição do espectador, em vez de sabiamente relaxarmos, como es- colaborador? Sim, mas um colaborador muito especial; o dramatur-
creveu Jacques Rancière em O espectador emancipado (2004), e con- gista é, portanto, amigo de um problema. Ou, mais precisamente,
fiarmos que estes são mais ativos do que podemos admitir. Oponho- ele é o amigo mais próximo do coreógrafo na produção de um pro-
-me ferozmente a uma estreiteza desse tipo, pressuposição paterna- blema, amigo para advogar um experimento, inimigo da compla-
lista de que o público não poderá compreender se não for adequa- cência. O dramaturgista está lá para ter certeza de que o processo
damente – dramaturgicamente – guiado. Em vez de ceder à pressão não compromete a experimentação. O que faz dele amigo é a pro-
da acessibilidade que estamos vivendo nessa era neoliberal, drama- ximidade em estar com e em ficar sob (o que nem sempre é com-
turgistas poderiam estar preocupados sobre como a performance preender) o drama das ideias. Giorgio Agamben (2009, p. 31)3 escre-

 
torna-se pública. Isso tem a ver com mais do que somente publici- veu recentemente: “Não se pode dizer ‘amigo’ como se diz ‘branco’,

 
dade; é um esforço para articular, encontrar formatos apropriados, ‘italiano’ ou ‘quente’ – a amizade não é uma propriedade ou uma
para tornar públicas justamente as ideias específicas, processos e qualidade de um sujeito. […]. Reconhecer alguém como um amigo
práticas – o envelope imaterial de trabalho e conhecimento que sus- significa não ser capaz de reconhecê-lo como ‘algo’.”
tenta a obra propriamente dita. Não estou dizendo que precisamos Estou engajando a figura do amigo com o intuito de afastar a ins-
de dramaturgistas para sensibilizar aqueles espectadores hostis e ig- trumentalidade e especialização do papel e da relação do dramatur-
norantes. Falo sobre um desafio para combater o hermetismo, para gista com o coreógrafo. O tipo de amizade que estou evocando aqui
pensar como tornar disponível (e talvez interessante) os saberes so- começa com a ignorância. Não sobre o que ambos querem trocar
bre a criação em performance fora da nossa própria disciplina. entre si ou que utilidade podem ter, porque deve haver mesmo al-
A última barreira a ultrapassar é a função notória do dramatur- guma forma de afinidade anterior para considerarem trabalhar jun-
gista conhecida como “terapeuta da companhia”. Esse lado escuro tos, mas a ignorância sobre o trabalho a ser feito. Aqui estou me re-
e vergonhoso da dramaturgia vale ser mencionado apenas para tor- ferindo à “ignorância” na parábola de Jacques Rancière: O mestre ig-
nar claro que no momento em que o dramaturgista é relegado ao norante: cinco lições sobre a emancipação intelectual (1991). A eman-
papel de “cuidador” dos humores e tensões num processo de traba- cipação é a pedagogia que Rancière opõe à instrução, porque é uma
lho – um filtro entre coreógrafo, performers e outros colaboradores, situação de aprendizado de algo que ambos, mestre e aluno, igno-
por exemplo –, ele perde seu poder de criação e, talvez, sua alegria.
3 N. do E.: Consultar edição brasileira, p. 85.

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ram. Aprender, então, passa por assumir a igualdade de inteligên- dos de experiência: “[…] real sem ser atual, ideal sem ser abstrato”.5 0 DRA -
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cias, como também a existência de um terceiro termo de mediação O conteúdo de uma ideia é virtual porque é diferenciação: uma rela- GISTA
entre mestre e aluno, que é representado em Rancière pelo livro que ção diferencial entre vários elementos conduzida por um problema, IGNO -
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mestre e aluno leem em duas línguas diferentes. uma questão. O problema está na ideia em si, ou melhor, esta existe ––––––
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Dramaturgista e coreógrafo estabelecem uma relação entre somente em forma de questões. CVEJIĆ
iguais similar à que existe entre duas pessoas ignorantes confron- Como o ato de questionar hoje em dia é uma obviedade domes-
tando o livro que não sabem como ler. O “livro” é o trabalho de ticada e desgastada para qualquer atividade intelectual, as questões
pesquisa, algo conectado por uma forma radical de esforço que pelas quais o problema é posto são distinguidas pelas respostas que
ambos investem no processo de definição do que está em jogo e levantam. Então o problema é medido pela solução que merece – se
de como é esse jogo. O trabalho é a coisa, o “livro” que coreógrafo a solução é uma invenção que dá existência a algo novo, ao que não
e dramaturgista não vão ler, mas escrever juntos, aquela terceira existia ou àquilo que poderia nunca ter acontecido. Colocar um pro-
conexão que garante a regra da materialidade. O que quer que seja blema não é revelar uma questão ou preocupação, algo que iria apa-
feito, pensado e sentido pode ser mostrado, discutido, confrontado recer cedo ou tarde. Um problema também não é uma questão re-
no trabalho em si com dois pares de olhos ou mais. tórica que não pode ser respondida. Ao contrário, levantar um pro-
Agora que colocamos o dramaturgista lado a lado com o coreó- blema implica construir os termos nos quais ele vai ser formulado
grafo, temos que perguntar: qual a relação entre esse trabalho de e as condições por meio das quais será resolvido. A solução acar-
construção, ao qual ambos se dedicam, com a produção de um pro- reta a construção de procedimentos e a situação de trabalho. Para

 
blema? Quando digo um problema, falo, na verdade, sobre uma abor- orquestrar em termos práticos o que aqui denomino como metodo-

 
dagem ou método que força o trabalho de criação a se desviar das logia do problema, vou tratar da dramaturgia da performance And
possíveis – isto é, familiares – operações com: um “tema” ou aquilo then (2007), de Eszter Salamon (francamente, eu preferiria desdo-
que o trabalho quer abordar; uma “linguagem” ou meios de expres- brar uma variedade de casos, e não arriscar idealizar um exemplo
são; uma assinatura ou preferências estéticas; um processo ou di- de um trabalho próprio autocelebrativo, mas o tempo pressiona-me
nâmica pela qual o trabalho se desenvolve; e um “dispositivo” ou a escolher um caso apenas para ilustrar minha visão; usarei, pois,
aquilo que mantém a atenção dos espectadores. Listar todas essas um exemplo da minha própria prática dramatúrgica).
categorias já mostra certa estabilidade num leque de opções, pos- O projeto começou com a descoberta de uma homonímia: cen-
sibilidades reconhecíveis porque “sabemos o que funciona e o que tenas de mulheres na Europa e nos Estados Unidos possuíam um
não funciona”. A produção de um problema não começa com pos- nome que a coreógrafa (assim como suas homônimas) considerava
sibilidades – uma vez que estas dizem respeito a um conhecimento raro e pouco conhecido, por ser proveniente de um país relativa-
cujos limites achamos que devem expandidos –, mas com ideias que mente pequeno, a Hungria. Depois de Magyar Tancók (2006), uma
divergem e diferenciam condições para o novo que surge. Gilles De- performance-palestra sobre sua experiência de tornar-se bailarina
leuze (2004, p. 101)4 qualifica a criação como virtual, e para explicar
essa noção, geralmente cita a descrição de Proust sobre seus esta- 5 N. do E.: A citação original de Proust, contida no livro Em busca do tempo

perdido. O tempo redescoberto, feita por Deleuze, está adaptada; nela, consta
4 N. do E.: Consultar edição brasileira, p. 137. o plural: “[…] reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos”.

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na Hungria, Salamon estava interessada em investigar mais a rela- contratar dúzias de Salamons de toda parte do mundo para per- 0 DRA -
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ção entre contingência cultural e agenciamento individual na sua formar no palco não era uma opção, decidimos perguntar se pode- GISTA
própria biografia. Entretanto, ela acabou percebendo que o ques- riam reencenar as respostas espontâneas, os gestos e a presença que IGNO -
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tionamento quanto ao fato de se ter um nome ou outro produzia elas apresentaram na ocasião das entrevistas. Filmamos, assim, seus ––––––
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resultados arbitrários e insignificantes. A questão “O que há num “comportamentos restaurados” (schechner, 1985)6 numa organiza- CVEJIĆ
nome?” tornou-se, assim, trivial, um falso problema. ção específica no estúdio, uma mise-en-cadre (enquadramento) no
Entrevistando mais de uma dúzia de Eszter Salamons, a coreó- qual elas se moviam num espaço que o público podia ver como um
grafa Salamon e eu estávamos diante de uma miríade de estórias todo enquanto a câmera filmava as figuras descentralizadas em pla-
de/sobre pessoas simples – individuais, singulares e incomparáveis. nos provisórios, simulando o ponto de vista de um espectador de
Nossa especulação inicial de que esse material poderia nutrir outro teatro. Dessa forma a tela podia penetrar o palco e vice-versa, bor-
solo acerca da anulação da identidade de um sujeito singular por rando suas respectivas fronteiras.
múltiplos sujeitos revelou-se desinteressante. Significava repetir as Os artistas (as Eszter-Salamons, homônimas de nome, e seus du-
banalidades sobre construção identitária e autodeterminação per- plos, homônimas visuais) circulavam entre tela e palco como num
formativa. A questão transformou-se, então, em um desafio: era ne- único espaço contínuo, dividido entre passado e presente, documen-
cessário interrogar o próprio conceito de autoidentificação. O que tário e ficção, afirmação original e comentários autorreflexivos, es-
significa encontrar uma pessoa cuja existência não lhe diz respeito paço não teatral imaginário e palco teatral nu. É preciso mencio-
de nenhum modo específico? Não é estranho e até perturbador es- nar que, fora a ajuda de um cineasta profissional7 , a coreógrafa e a

 
preitar a vida de alguém quando você se depara com ela por puro dramaturgista eram diletantes na mídia de que se apossaram para

 
acaso? O que faz com que essas mulheres falem como todo mundo, a performance. Construir esse tipo de híbrido entre teatro e cinema
como pessoas singulares, mas não particulares? O que faz a expres- significou também questionar a coreografia, e quando digo que isso
são de cada uma parecer banal e, no entanto, sempre importante? só poderia ser feito por diletantes, faço uma distinção retórica entre
Nosso ponto de partida documental abriu caminho para a fabula- a abordagem diletante que contesta e se esforça para expandir sua
ção, sendo o gatilho da homonímia utilizado como critério mínimo disciplina e linguagem e a visão essencialista do trabalho de pro-
para a escolha, a conexão e o confronto dessas diferentes experi- fissional: diletantes são aqueles que formulam questões que estão
ências de vida. A pergunta “O que há num nome?” tornou-se uma para além da verdade dos especialistas da linguagem.
questão de arbitrariedade e coincidência que condicionou a perfor- Discernir a dramaturgia da coreografia aqui seria difícil, por-
mance, enquanto o nome “Eszter Salamon” funcionou metonimica- que ambas se transformaram numa composição de movimento por
mente – não como um sinal de congruência entre as Salamons, mas meio do texto, dos takes da câmera, da luz simulando cinema, da
exatamente como um sinal para individuação entre homônimos sin- montagem entre tela e palco, da trilha sonora, dos modos performa-
gulares (vujanović, 2008). tivos, dos gestos e, finalmente, da dança. Foi à composição de cada
Uma parte considerável da solução consistiu em construir um 6 N. do E.: Consultar SCHECHNER, Richard. Between theater and anthropology.
processo que permitiria coreografar a fabulação das singularidades.
Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 1985.
E a metodologia do problema envolve exatamente isso, uma inven- 7 O cineasta Minze Tummescheit foi responsável pela cinematografia e trabalho

ção de limitações que agem como condições de possibilidade. Como de câmera em And then.

– –
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um desses elementos, e mais que isso, das relações entre eles, que sem necessidade, obrigação, dever. Para chegar-se a uma amizade 0 DRA -
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Vujanović (2008) chamou de coreografia do “[…] conceito (deleuzi- no problema, duas noções precisam casar. Afinidade não significa GISTA
ano) de diferença, que por meio da repetição transforma os elemen- apenas ser próximo, similar, familiar, gostar da mesma coisa ou ter IGNO -
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tos introduzidos em um processo de abolição da auto-identidade”. uma compreensão comum acerca dela, mas fazer esses sentimen- ––––––
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Então o que a metodologia do problema gera? Questões que tos movimentarem-se em direção a um fim, e estou trazendo aqui CVEJIĆ
vão abrir espaço para eliminar lentamente as possibilidades conhe- a etimologia do francês à fin no sentido de finalidade. A afinidade
cidas e facilitar a produção de um problema qualitativamente novo. sentida em uma produção que é desejada proverá uma restrição in-
É uma maneira de liberar as mãos, como mencionei antes. Burrows terna, limitando o número de escolhas possíveis, conduzindo o pro-
chama isso, laconicamente, de “desapegar” (2010, p. 81), e eu diria jeto a um “terminus” que, contudo, não vai predeterminá-lo inteira-
desfazer-se de certos hábitos que tornam a mente preguiçosa e as mente desde o início.
mãos rotineiras. O problema irá distinguir-se na medida em que de- Se afinidade é o que dramaturgista e coreógrafo compartilham,
mande sua própria – diferente, singular ou nova, mas impura e he- o que é que eles não compartilham? A motivação do coreógrafo,
terogênea, talvez mesmo híbrida – operação. A operação é definida que pode ser pessoal – o lugar em que o trabalho afeta o criador.
pelas limitações específicas que asseguram sua consistência. O re- Mas esse lugar não é essencialmente a origem do trabalho, ainda
sultado é um novo dispositivo; não um arranjo arquitetônico, mas que frequentemente seja reivindicado como tal. A afinidade pode
uma reconfiguração da atenção, o que significa que os espectado- ajudar o coreógrafo a abandonar aquilo que é pessoal como fonte
res vão também ter que experimentar o quão diferentemente eles de defesa solipsista, defesa esta refletida em afirmações como “por-

 
são capazes de ver, pensar, sentir, em vez de recorrerem àquilo que que eu acredito que, eu gosto, isso significa para mim…”, e a assu-

 
reconhecem. O problema terá também a consequência de proble- mir uma posição externa política, social ou conceitual, constitutiva
matizar ou perturbar as visões e opiniões sobre o que está sendo do trabalho da performance em si, mas, em todos os casos, uma po-
apresentado, ou como a dança, a coreografia ou performance são sição refletida. A afinidade desdobra-se então em afiliação – conec-
tratados. Agora serão os espectadores que não mais perguntarão a tando ambos, coreógrafo e dramaturgista, a um quadro de significa-
si mesmos a questão essencialista “O que é isso?”, mas receberão, ções mais amplo do que a fantasia e a realização artística individual.
como fizemos no início com a dramaturgia, o presente de um pro- Amigos de problema são também aliados que não defendem ego ou
blema se apresentando sob a forma de uma pluralidade de questões mitologias pessoais sobre o grande artista, mas certas visões, pre-
minoritárias sobre “quem, como, quando, onde, em que caso” é isso. missas, questões, critérios. Tudo isso que defendem os torna par-
Isso é uma performance? ciais e cúmplices, compartilhando a responsabilidade de afetar um
A próxima série de questões diz respeito ao dramaturgista, no contexto sempre maior que a performance. Mais uma vez, o aspecto
tipo de dramaturgia que defino como a metodologia do problema. pessoal da relação é esvaziado para dar lugar ao compromisso com
Como um dramaturgista se envolve na produção de um problema determinadas políticas, de forma que não podemos falar nunca da
e, já que é um amigo tão próximo do problema, como sua posição lealdade do dramaturgista ao seu coreógrafo, mas sim de fidelidade
pode ser diferenciada da função do coreógrafo? É importante que o a uma posição.
dramaturgista não entre no processo porque este necessita de um E em relação à criticidade e à distância crítica, consideradas
dramaturgista; problemas só podem ser criados a partir do desejo, como aquilo que permite ao dramaturgista permanecer relativa-
– –
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mente autônomo no seu trabalho? Certamente, agora, nós temos Se os dramaturgistas devem ser exaltados por contrabandear 0 DRA -
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que inverter a questão e perguntar: o que é que o dramaturgista não ideias e conceitos de performances para outros modos discursivos GISTA
compartilha com o coreógrafo? Qual é a sua motivação, além do in- – livros, salas de aula, revistas e, assim esperamos, outros campos IGNO -
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teresse na problemática específica do trabalho? Observar como o de conhecimento – ou se devem ser considerados trapaceiros por- ––––––
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pensamento se materializa numa forma de expressão é bem dife- que sentam sempre em várias cadeiras ao mesmo tempo, ocupando CVEJIĆ
rente da premissa comum de que dramaturgistas chegariam com diversas posições por meio de atividades distintas (professores, crí-
seus conceitos e teorias elaboradas e achariam uma maneira de ticos, curadores, performers), isso vai depender da ética do coreó-
enfiá-las no processo. Os problemas dos quais eu falo aqui não re- grafo. Cada vez mais, hoje, coreógrafos reconhecem que as ideias e
presentam conceitos pré-formados, eles criam conceitos na expres- materiais da performance são criados e circulam de maneira aberta.
são, que não podem ser separados das situações nas quais ocorrem. Há dois anos, eu e Xavier Le Roy, coreógrafo com quem traba-
Conceitos nascidos na expressão não preexistem nem transcendem lhei como dramaturgista em diversas performances, iniciamos um
seus objetos. Em vez da identidade do objeto, o conceito tem como projeto que reuniu vários coreógrafos e performers para trabalhar
objetivo articular uma multiplicidade – os elementos que são variá- em condições socioeconômicas drasticamente diferentes do nosso
veis e reciprocamente determinados por relações. Um conceito ex- regime habitual de trabalhadores freelance, nômades no nosso tra-
pressivo dessa ordem, desenvolvido durante o processo And then, balho, assim como na vida. Essas condições se refletiram no título
foi o de “terceiro espaço”, um espaço que não existe literalmente, do projeto: Six Months One Location (6M1L). Uma outra proposição
mas virtualmente entre tela e palco. era a de que cada um de nós, além do nosso próprio projeto, nos en-

 
Marcado por vários cortes entre memória e presente e por vozes gajaríamos nos projetos de outros dois participantes. Teríamos que

 
cujos corpos desaparecem, ou sons provenientes do extracampo (o escolher que função gostaríamos de exercer, isto é, não somente a
que se escutava excedia o que se via no palco ou na imagem da de performer no projeto, mas de dramaturgista, conselheiro, escri-
tela), esse terceiro espaço tornou-se uma zona negra de manobras tor, cantor, iluminador ou responsável pela trilha.
entre um contexto perdido e a realidade do teatro. Começamos a A rotatividade na função refletia o senso de flexibilidade, uma
pensá-lo como um canteiro de obras para o imaginário, como se ele prontidão para assumir outras funções, que para a maioria dos ar-
absorvesse todos os blackouts do teatro nos quais os espectadores tistas independentes é uma realidade cotidiana; então era só uma
continuam a editar o filme. questão de formalizar e dar um nome a isso. Le Roy depois encon-
Eu agora corro o risco deslizar para a poesia, mas aqui estou trou a noção de “intercessores”, numa entrevista com Deleuze (1990,
chegando à imaginação conceitual para a qual a teoria da perfor- p. 125)8 na qual ele introduz a figura do intercessor para descrever
mance, quando praticada somente em gabinetes, torna-se seca e in- sua colaboração com Félix Guattari:
suficiente. Não deveríamos esquecer que muitos dos conceitos po- O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem
derosos na filosofia foram tomados emprestados de mãos não filosó- eles não há obra. Podem ser pessoas – para um filósofo, artistas ou
ficas de artistas eloquentes que refletiram sobre suas próprias poé- cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas – mas também coi-
ticas. Podemos citar o exemplo do corpo sem órgãos, de Antonin Ar- sas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, ani-
taud, renovado por Deleuze e Guattari.
8 N. do E.: Consultar edição brasileira, p. 156–157.

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mados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores. vezes convidados como consultores para passar no ensaio “uma ou 0 DRA -
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É uma série. Se não formamos uma série, mesmo que completamente duas vezes” e dar sua opinião de especialista. Isso ocorre já no final GISTA
imaginária, estamos perdidos. Eu preciso de meus intercessores para do processo, quando a maior parte do tempo de pesquisa acabou e IGNO -
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me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim: sempre se traba- o trabalho do dramaturgista transforma-se no de afinar a compo- ––––––
lha em vários, mesmo quando isso não se vê. […]. Não existe verdade sição, a atitude, o estilo de performance. Por isso, este é relegado
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que não ‘falseie’ ideias preestabelecidas. Dizer ‘a verdade é uma cria-
ao papel de um mentor que chega para supervisionar o trabalho de
ção’ implica que a produção de verdade passa por uma série de opera-
acordo com um padrão de sucesso. Na minha própria experiência,
ções que consistem em trabalhar uma matéria, uma série de falsifica-
ções no sentido literal. Meu trabalho com Guattari: cada um é o falsá- eu já tive que me debater com a pergunta frequente: “Você acha
rio do outro, o que quer dizer que cada um compreende à sua maneira que funciona?”, para a qual minha resposta é: “O que você quer di-
a noção proposta pelo outro. Forma-se uma série refletida, de dois ter- zer com… funciona? Meu carro funciona, por exemplo, sim… Mas
mos. Não está descartada uma série de vários termos, ou séries compli- poderíamos, por favor, falar sobre a performance em outros termos,
cadas, com bifurcações. Essas potências do falso é que vão produzir o não-normativos?”
verdadeiro, é isso os intercessores… E se vamos falar sobre isso como produção de problema, o su-
Há dois pontos que gostaria de destacar a partir dessa noção. cesso não pode ser a medida da dramaturgia. Como prática, ela
Primeiramente, a dramaturgia tende a normatizar a colaboração em pode, na melhor das hipóteses, ser especulativa. Eu desenvolvi essa
termos duais quando é esperado que o dramaturgista aja como um ideia da prática especulativa em oposição às práticas normativas
analista, conferindo sentido à coisa toda. No entanto, como diz De- da filósofa belga Isabelle Stengers (2008), que trata experimentos

 
leuze, há sempre mais de uma diferença; há uma série, uma multipli- da Física ganhadores do Prêmio Nobel e feministas-bruxas norte-

 
cidade de vozes, de intercessores que frequentemente não reconhe- -americanas como práticas igualmente valiosas. Especular significa
cemos e cujas vozes pegamos emprestadas. O outro ponto é ver a posicionar o pensamento como crença ou fé num determinado re-
dramaturgia como uma salvaguarda contra uma verdade, como tra- sultado sem ter evidência consistente. Por exemplo, alguém espe-
jetória de falsificação de muitas; às vezes, até mesmo literalmente, cula sobre os resultados num requerimento para um subsídio ou
ter o luxo de dois dramaturgistas. Ter três é mais divertido ainda investimento em ações ou qualquer outro empreendimento com a
que ter dois, porque ideias e energia deixam de ser espelhadas, bus- esperança de ganhar, mas com o risco da perda. Como pesquisa-
cando no outro a confirmação ou o questionamento, e começam a dora, sempre que você elabora ou decide aplicar um método, você
circular, proliferar e ter vida própria. especula se isso vai levar a um resultado desejado ou se vai refu-
Muito poderia ser dito sobre a prática da dramaturgia e suas tar uma hipótese, ou, ainda, até mesmo conseguir produzir qual-
várias tecnologias, mas uma característica me parece nunca ser su- quer coisa. As palavras-chave para extrair da especulação são “in-
ficientemente destacada: a importância de levar o tempo que for certeza”, “risco”, “audácia”. Mas especular pragmaticamente não se
preciso. Se algo diferente ou novo está por acontecer, o processo resume a ser prudente com relação a ilusões ou pensamentos ávi-
do trabalho tem de atender sua duração, e isso, então, possibilita a dos; trata-se também de perspectivar uma situação, agregar um con-
percepção da mudança. Por outro lado, nosso tempo de produção junto de restrições ao colocar um problema, obrigando-se a ava-
é determinado pela eficiência. Portanto, dramaturgistas são muitas liar os efeitos que uma especulação, um pensamento, uma decisão,
um método, terão tido – no tempo futuro do presente composto –
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nessa performance. Na dramaturgia, praticamos especulação. So- • vujanović, Ana. The choreography of singularity and difference. 0 DRA -
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mos apreendidos pelas coisas antes de compreendê-las. Aprende- And Then, by Eszter Salamon. Performance Research: A Journal of GISTA
mos a fazer e dizer “vamos pensar novamente”, pois não sabemos the Performing Arts, v. 1, n. 13, 2008, p. 123–130. IGNO -
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agora, mas teremos sabido até lá. ––––––
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CVEJIĆ

Referências
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fórnia: Stanford University Press, 2009 [Edição brasileira: O que é
o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009].
• burrows, Jonathan. A choreographer’s handbook. Londres: Rou-
tledge, 2010.
• deleuze, Gilles. Desert islands and other texts 1953–1974. Los An-
geles; Nova York: Semiotext(e), 2004, p. 101 [Edição brasileira:
A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953–1974). São
Paulo: Iluminuras, 2006].
• ______. Negotiations. Nova York: Columbia University Press, 1990
[Edição brasileira: Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992].  
• hardt, Michael; negri, Antonio. Empire. Cambridge, ma; Londres:  
Harvard University Press, 2000 [Edição brasileira: Império. Rio de
Janeiro: Record, 2001].
• rancière, Jacques. The emancipated spectator. Manuscrito de uma
palestra realizada na abertura do International Theatre Academy,
em Mousonturm, Frankfurt, 2004, cortesia do autor [Edição brasi-
leira: O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012].
• ______. The ignorant schoolmaster: five lessons in intellectual
emancipation. Califórnia: Stanford California Press, 1991 [Edição
brasileira: O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação
intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2007].
• stengers, Isabelle. Including non-humans into political theory.
Manuscrito, 2008, cortesia da autora.

– –
108 109
De fato, a oposição entre os que
praticam e os que teorizam instaura
a distinção metafísica entre corpo e
mente, entre fazer e pensar, entre a
cabeça – com seu privilegiado órgão do
sentido, o olho – e outras intensidades
sensoriais. [...] A identificação da
figura do dramaturgista como o “olhar
exterior” é suficientemente clara a esse
respeito. Gostaria de falar para além do
paradigma cartesiano, que separa a mente
A ec o n o - CALDAS ,
P u b l icad o com o
do corpo e que equipara a mente com o t ít u lo T he e conomy Pa u lo ;
ótico. [...] Ultrapassar o paradigma o f p roxim it y :
GADELHA,
m i a da
d ra m at urg ical wor k in
cartesiano é mover-se fora de um terreno c o nte m p orar y d ance , E r n e st o .
Danç a e d ra-
sólido, é tropeçar e gaguejar no limite em P er fo r m a n c e

p r ox i m i -
Re s ea rc h : O n maturgi a[s].
do nosso pensamento, revelando novos e d ra m at urgy, v. 14 , 3 e d ., S ã o Pa u l o :
imprevisíveis modos de pensar e sentir. p . 8 1 -8 8 , 2 0 0 9 . n ex u s, 20 1 6.

trecho de: Christel Stalpaert dade:


A dramaturgy of the body o t r a ba -
[Performance Research, 14 (3), Taylor & Francis,
2009, p. 124.] lho dra-
m atú r g i c o
n a da n ça
contempo-
rânea
––––––
B oja n a
Ku n st
– –
110 111
Bojana Kunst é filósofa, a E C O n O m i a da introdução
dramaturgista e teórica da P r Ox i m i d a d E :
o t r a bal h o “Sei o que faço, mas não sei qual nome dar a isso”, disse André
performance. É professora
no Institut for Applied
d r a m atú r g i c o Lepecki no começo da década de 1990 sobre sua função no traba-
n a da n ça
Theater Studies da Justus- contemporânea lho de Vera Mantero. “Você é um dramaturgista”, foi a resposta do
Liebig University Giessen, –––––– produtor Bruno Verbegt (lepecki, 2001b). Nesse ensaio, gostaria de
Alemanha, onde coordena B ojA n A ku n st
apresentar as razões pelas quais a dramaturgia adentrou a dança
o programa internacional
contemporânea nas duas últimas décadas. Tais razões não estão so-
 
de pós-graduação em
mente relacionadas a suas mudanças estéticas e formais, mas a um
 
Choreography and
Performance. É integrante deslocamento profundo na nossa maneira de compreender os mo-
do conselho editorial das dos de trabalho na dança contemporânea, seus modos de produção
revistas Maska, Amfiteater e e apresentação.
Performance Research. Seu É fato conhecido que a dramaturgia surge na dança contem-
livro mais recente é Artist at
work: proximity of art and porânea a partir da década de 1980, ou seja, ao mesmo tempo em
capitalism (2015). que começam a ocorrer mudanças na Europa. A dança contempo-
– rânea, por sua abordagem interdisciplinar, começou a desestabili-
zar as categorias que definiam funções na dança e na coreografia,
levantando a questão: o que é dança?
À primeira vista, o trabalho dramatúrgico na dança parece re-
fletir a necessidade crescente de teoria e reflexão que questionem
novamente suas próprias premissas e autoevidências (por exemplo,
de que dança corresponda a movimento, de que exista um corpo
neutro na dança), e lhe tragam uma dimensão autorreflexiva: uma
consciência sobre seus contextos cultural, histórico e econômico.

– – –
112 20 113
Entretanto, se a entrada da dramaturgia for compreendida somente características do “trabalho” dramatúrgico.1 Lembro de Meg Stuart A ECONO -
MIA DA
como uma consequência de mudanças estéticas, corremos o risco descrever um automatismo corporal como consequência da proxi- PROXIMI -
de rotulá-la como uma nova doxa. De acordo com essa nova doxa, midade da colaboração com sua antiga dramaturgista, Bettina Ma- DADE :
O TRA -
o dramaturgista seria alguém formado segundo os modos da crítica soch, a qual sempre esteve ao seu lado durante o processo e para BALHO
DRAMA -
pós-estruturalista e familiarizado com a expansão pós-dramática da quem sempre se voltava, colocando as mãos em seus ombros: “Eu TÚRGICO
prática da performance, ou seja, quem garante a interdisciplinari- continuei a fazer isso por um tempo, mesmo quando ela não estava NA DANÇA
CONTEM -
dade. Ao mesmo tempo, seu trabalho convém aos conceitos curato- ao meu lado”.2 Esse automatismo anedótico da proximidade no tra- PORÂNEA
––––––
riais de festivais e a produções cada vez mais orientadas pelo con- balho (que, claro, pode incluir uma variedade de imagens topográ- b oja n a
texto — uma compreensão da dramaturgia como uma garantia de ficas) fala de um aspecto específico e incorporado ao trabalho dra- ku n st

qualidade da performance, como se tal garantia já estivesse dada, matúrgico que está, frequentemente, no primeiro plano quando dis-
embora nem sempre conscientemente, nos esquemas de formação cutimos a dramaturgia de uma performance de dança. O que essa
dramatúrgica acima mencionados. necessidade de proximidade sugere? De onde ela vem?
Ao ler cuidadosamente como dramaturgistas descrevem seus
próprios fazeres em dança contemporânea, pode-se observar que paradoxo da proximidade do público
muitos enfatizam a necessidade de proximidade para com os pro-
Uma das respostas pode ser encontrada nos “[…] métodos de
cessos, de sua inclusão, e destacam os aspectos afetivos associados
trabalho mais orientados pelo processo, onde sentido, propósito,
a seus trabalhos. O fazer dramatúrgico foi descrito como incorpo-
forma e substância do trabalho vêm do próprio processo e não
 
rado (Lepecki), como a administração de energias dramatúrgicas
de um sentido dado antecipadamente que precisa ser investigado”.
 
diferentes (Myriam Van Imschoot), como a transformação do mate-
Kerkhoven (1994, p. 18–20) aponta, deste modo, a mudança em di-
rial em algo mais rico, sobretudo em termos de dinâmica e signifi-
reção a modos de criação da performance de dança mais orientados
cado (Eleonora Fabião) (behrndt; turner, 2008).
pela pesquisa, mais abertos e interdisciplinares. Em seus ensaios, há
Frequentemente, essas descrições rejeitam a noção do drama-
duas décadas, essa maneira de trabalhar aparece vinculada a uma
turgista como aquele observador que detém o saber, aquele alguém
compreensão pós-moderna da arte, que se recusa a aceitar verda-
que passa boa parte do tempo sentado no escuro das arquibancadas
des e significados previamente estabelecidos. Assim mesmo, é pos-
com sua perspectiva crítica distanciada. Tais descrições buscam su-
sível argumentar, a partir da perspectiva atual, que, para além das
perar a função do dramaturgista como um garantidor de conheci-
características estéticas de algum estilo ou período da arte especí-
mento objetivo. A colaboração dramatúrgica é, portanto, caracteri-
fico, estes métodos de trabalho orientados por pesquisas estão fre-
zada por uma demanda de proximidade que não surge somente da
quentemente relacionados a contextos culturais e econômicos mais
instabilidade das categorias epistemológicas ou do fato de que dra-
maturgistas colaboram em performances de dança com corpos, e 1 No momento em que as diferenças entre as metodologias de trabalho vão

não textos. desaparecendo, a dramaturgia também pode ser abordada a partir da perspectiva

A colaboração descreve, além disso, a topografia do processo e a do trabalho imaterial.


2 Esta afirmação se refere a uma conferência que tratava de duos entre coreó-
divisão de funções e atividades – podemos falar também em certas grafos e dramaturgistas. A conferência foi organizada por Luk van den Dries,
no deSingel international arts campus, Antuérpia, em 2004.

– –
114 115
abrangentes e ao trabalho imaterial em geral. Ao longo das duas as habilidades humanas cognitivas). Portanto, o trabalho torna-se A ECONO -
MIA DA
últimas duas décadas, no primeiro plano de muitas das produções público, uma prática virtuosa que sempre se dá diante de outras PROXIMI -
e apresentações de dança contemporânea, a orientação multidialó- pessoas. DADE :
O TRA -
gica e pluralista do processo artístico – assim como sua dimensão Não é coincidência que a dança e outras formas de arte contem- BALHO
DRAMA -
afetiva, linguística e cognitiva – tem contribuído e dado forma, de porânea sejam criadas e apresentadas por meio de muitos contex- TÚRGICO
maneira significativa, aos contextos de apresentação e instituciona- tos de produção que encorajam e desenvolvem fazeres artísticos na NA DANÇA
CONTEM -
lização da dança, bem como da dança-educação, da pesquisa etc. presença do público: assistimos a works in progress, ensaios aber- PORÂNEA
––––––
O processo de trabalho na dança contemporânea está, ademais, tos, festivais com orientações curatoriais e contextuais, resultados b oja n a
intimamente ligado aos modos de colaboração em comunidades de processos de pesquisa etc. “Nesse novo cenário, o coreógrafo rei- ku n st

temporárias. Isso é comprovado pelo fenômeno do aparecimento vindica uma voz teórica, o crítico emerge como produtor, o agente
e desaparecimento de centros de dança (Bruxelas, Berlim, Amster- escreve críticas de dança, o filósofo arrisca alguns passos de dança,
dam, Paris) e pelas iniciativas de produções temporárias, cujo valor o público é convidado a participar como estudante e praticante”
adicional é precisamente esse de uma troca constante de trabalho (lepecki, 2001b).
imaterial (informação, conhecimento, afeto, emoção, proximidade, Na primeira parte de seu texto, Lepecki relaciona esse tipo de de-
crítica, pertencimento).3 saparecimento das diferenças a uma incerteza epistemológica que
A proximidade frequentemente encontrada nas descrições dos emerge sobre o discurso crítico da dança. Ao mesmo tempo, des-
fazeres dramatúrgicos na dança não é somente uma consequência taca que esse tipo de desaparecimento deveria ser estudado a par-

 
do trabalho do dramaturgista com corpos, ou sua consciência de tir da perspectiva da economia e do capital, que estão influenciando

 
que não há garantia externa de verdade. Essa demanda de proximi- modos atuais de produção em performance. O desaparecimento das
dade está estreitamente relacionada ao desaparecimento das dife- diferenças entre várias categorias de trabalho e práticas resulta de
renças entre modos individuais de experiência humana, entre traba- uma mudança na compreensão da materialidade dos próprios pro-
lho, ação e intelecto. Paolo Virno tem analisado o desaparecimento cessos de trabalho artístico, o que influencia profundamente os mo-
das diferenças entre trabalho (orientado em direção a uma troca dos vigentes a partir dos quais a dança é performada.
orgânica com a natureza) e ação (atividade política) no mundo do Pode-se argumentar que a necessidade de proximidade e a in-
trabalho contemporâneo pós-fordista, um mundo onde este tem se corporação do trabalho dramatúrgico na performance decorrem do
tornado cada vez mais similar à ação pública e política – o tipo de fato (paradoxal) de que os métodos de trabalho e seus processos,
ação que encontra sua própria completude em si mesma. Ao mesmo em geral, tenham se tornado visíveis ou públicos. O trabalho en-
tempo, o intelecto também não é mais uma atividade reflexiva iso- volvido na criação de uma performance assume uma dimensão per-
lada, mas, de acordo com Virno (2004), torna-se um princípio bá- formativa – é um processo em si mesmo e, portanto, requer um
sico do trabalho pós-fordista (no primeiro plano da produção estão público. A necessidade de proximidade é, portanto, atualmente, o
outro lado do aspecto público dos processos artísticos do trabalho.
3 O fato de que a maioria dessas trocas acontece de modo voluntário enfatiza, A performance do processo está intimamente conectada com a ne-
adicionalmente, o valor desse tipo de trabalho imaterial, que é gratuito cessidade de inclusão de participantes.
(BAUER, 2007).

– –
116 117
É fato que a arte do século xx chama atenção para a visibilidade, neo, no qual, de acordo com Virno (2004), as habilidades humanas A ECONO -
MIA DA
percepção e materialidade dos processos criativos; a arte é perfor- fundamentais começam a ter destaque. PROXIMI -
mada como uma prática específica que encontra sua própria com- No primeiro plano da produção estão linguagem, pensamento, DADE :
O TRA -
pletude em si. Como Agamben (2012) afirma, a arte contemporânea autorreflexão e habilidade para aprender. A produção contemporâ- BALHO
DRAMA -
passou pela experiência de um desaparecimento gradual da distin- nea consiste em compartilhar hábitos cognitivos e linguísticos, e é TÚRGICO
ção entre poiesis e prâxis, as duas dimensões do trabalho humano essa troca afetiva e intelectual de conhecimento que constitui a pro- NA DANÇA
CONTEM -
que Aristóteles formulou como separadas. O desaparecimento da dução de trabalho pós-fordista. PORÂNEA
––––––
diferença entre o trabalho cuja completude se encontra fora de si Todos os trabalhadores participam da produção proporcionalmente ao b oja n a
(poiesis) e aquele em que a completude é encontrada em si (prâxis) quanto são falantes-pensantes. Isso, atente-se, não tem relação com
ku n st

influenciou muitas mudanças na arte, como os aspectos emancipa- ‘profissionalismo’ ou com conceitos antigos de ‘habilidade’ ou ‘téc-
tórios da vanguarda, a relação entre vida e arte, conceitos de obra nica’: falar/pensar são hábitos genéricos do animal humano, o oposto
aberta, assim como processos artísticos conceituais e colaborativos. de qualquer outra forma de especialização (virno, 2004, p. 41).
Na dança contemporânea, todavia, enfrenta-se um problema in- Para o autor, isso pode ser descrito como um compartilhamento
teressante que, nesse momento, só pode ser brevemente delineado. preliminar, que é em si a base da produção contemporânea. A seu
Desde o início, a dança contemporânea tem sido vista como uma ver, o ato de compartilhar é oposto à divisão tradicional do traba-
prática única, um movimento que encontra sua própria realização lho. Não há mais critérios técnicos objetivos que regulem as condi-
em si, uma (meta)cinética única que não diferencia poiesis e prâxis. ções de trabalho compartilhado ou que definam a responsabilidade
 
Os movimentos da dança contemporânea — que ao longo dos últi- de cada trabalhador na sua própria esfera de especialização. Como
 
mos 20 anos colocaram novamente em primeiro plano a práxis da escreve Virno, “[…] a separação de responsabilidades não mais res-
dança e nela comprometeram-se com a proximidade do espectador ponde aos critérios ‘técnicos’ objetivos, sendo, ao invés, explicita-
— não são, portanto, uma digressão da dança contemporânea vol- mente arbitrária, reversível, variável” (idem).
tada para produções que podem perceber a si mesmas como únicas Nesse contexto, o modo da produção artística não mais difere
em sua poiesis. de outros modos de produção; aliás, o capitalismo contemporâneo
Sugiro, também, que não se trata neste caso de confrontar ide- aceitou algumas das características básicas do trabalho artístico,
ologias ou afirmações sobre o que a dança deveria ser, o que fre- tais como criatividade, autonomia e inovação. A interdisciplinari-
quentemente faz com que a descrição dos seus movimentos nas dade, a dança como um campo do conhecimento, a pesquisa, a obra
duas últimas décadas como dança conceitual falhe em compreen- aberta, o trabalho em processo, a dramaturgia incorporada, todas
são. O que realmente acontece é uma mudança na prática, na pro- essas categorias deverão ser repensadas e posicionadas em relação
dução da dança em si, em como é feita, ou seja, é preciso levar em ao capitalismo cognitivo, que coloca as relações de linguagem in-
consideração tudo o que é estreitamente vinculado ao trabalho co- corporadas e os eventos no primeiro plano dos processos de pro-
reográfico no sentido mais amplo da palavra. A proximidade e o co- dução. Nesse sentido, o próprio caráter de evento da dança, seu as-
lapso da distância entre vários processos de trabalho e profissões pecto relacional e a afetividade dos processos de trabalho são en-
estão muito relacionados às mudanças no capitalismo contemporâ-

– –
118 119
fatizados e tornam-se parte da produção e performance da dança do aparecimento do capitalismo cognitivo e dos modos de produ- A ECONO -
MIA DA
contemporânea. ção associados a ele. PROXIMI -
Também seria possível estabelecer uma hipótese sobre a qual Essa é a razão pela qual o trabalho do dramaturgista é forte- DADE :
O TRA -
não podemos, ainda, discutir em profundidade. Ligado, ao longo do mente caracterizado pela flexibilidade. Como um participante no BALHO
DRAMA -
século xx, aos princípios do fordismo (movimento contínuo, velo- processo, o dramaturgista pode ocupar uma variedade de papéis – TÚRGICO
cidade, oscilação entre ordem e caos, o regulado e o coincidente), de dramaturgista prático, produtor, diretor de festival, diretor de NA DANÇA
CONTEM -
o desenvolvimento da dança contemporânea durante as duas últi- palco, escritor, jornalista, professor, oficineiro, tutor, palestrante, PORÂNEA
––––––
mas décadas tem refletido mudanças profundas, acarretadas pelo acadêmico, artista, bailarino, produtor de network, conselheiro b oja n a
modelo pós-fordista de trabalho (virtuosismo afetivo e cognitivo, político-cultural, mentor, amigo, bússola, memória, companheiro ku n st

temporalidade com múltiplas camadas, proximidade, processos co- de viagem, mediador, terapeuta. A complexidade desta profissão
laborativos, abertura do trabalho etc.). – a habilidade afetiva de mover-se entre reflexão teórica e conhe-
Nesse sentido, práticas coreográficas diferentes não deveriam cimento prático, ser ao mesmo tempo um olhar exterior e partici-
ser compreendidas somente como práticas estéticas, mas também pante envolvido – é, com frequência, apressadamente reduzida a
sociais, mais ampliadas, de distribuição de corpos no tempo e es- um tipo de indefinição “estética”. Porém, ao contrário disso, a flexi-
paço. Esses tipos de práticas não mais emergem da velocidade e da bilidade do trabalho de dramaturgista está ligada à produção con-
autonomia do movimento industrial. O que se revela diante de nós temporânea de eventos e relações. Assim, o dramaturgista torna-se,
é a incorporação perceptiva do corpo, a intermediação deste, a po- frequentemente, mediador da troca contemporânea de conceitos,

 
tencialidade cognitiva e biogenética do movimento. Houve um des- sentidos, atenções, percepções.

 
locamento da autonomia e do dinamismo do movimento para a dis- A flexibilidade, que é parte da política econômica do trabalho
tribuição social e cultural mais expandida dos corpos, com a hete- do dramaturgista, possibilita a negociação contínua com as várias
ronomia e a proximidade emergindo enquanto características prin- metodologias de produção artística. Essas possibilidades de produ-
cipais das relações culturais e econômicas contemporâneas. ção estão bastante conectadas com novas instituições, que não es-
tão baseadas tanto na estável arquitetura e no poder representativo
a profissão de dramaturgista das instituições culturais, mas sim num modelo de plataformas para
Uma das principais razões para a entrada da dramaturgia na eventos e reuniões sempre mutáveis, críticas e criativas. Nesse sen-
dança pode ser encontrada nas mudanças ocorridas nos contextos tido, a dramaturgia contemporânea difere-se do projeto moderno
da prática artística e do trabalho social. A entrada do dramaturgista de formação de plateia e de discurso crítico que moldou o gosto do
na dança pode ser lida como uma consequência das transformações público e a identificação coletiva. Como escreve Eda Čufer (2001),
na economia política do trabalho, onde a produção de linguagem, a função de dramaturgista, de acordo com o modelo tradicional ilu-
contextos e habilidades cognitivas e afetivas humanas agora domi- minista, é especialmente estabelecer fluidez e transição entre vários
nam. Tais mudanças não são somente consequência da autorrefle- sistemas ou esferas autônomas.4 Precisamente por sua habilidade
xividade artística, e não podem ser consideradas como eventos iso-
lados na esfera (supostamente autônoma) da arte, mas um reflexo 4 Eda Čufer (2001, p. 23) escreve que a dramaturgia é uma intermediação entre

três esferas autônomas: a primeira é o discurso filosófico, teórico e aca-

– –
120 121
em transgredir, o trabalho da dramaturgia tradicional é marcado apenas porque públicos contemporâneos não podem mais ser defi- A ECONO -
MIA DA
por um senso de objetividade em que o dramaturgista identifica e nidos como uma multidão caracterizada por uma identificação co- PROXIMI -
categoriza o público que visita a instituição artística. Hoje, entre- mum: como os desenvolvimentos das artes performativas no século DADE :
O TRA -
tanto, quando as diferenças entre as diversas formas de experiência xx mostraram, os modos de percepção e recepção do público se tor- BALHO
DRAMA -
humana (trabalho, ação, intelecto) são borradas e a distinção entre naram fragmentários; os públicos contemporâneos são muito mais TÚRGICO
sistemas autônomos discutida por Čufer começa também a desa- instáveis, dinâmicos, singulares; os espectadores são mais conscien- NA DANÇA
CONTEM -
parecer, as noções de objetividade e exterioridade parecem anacrô- tes das suas próprias posições e perspectivas, experimentando pro- PORÂNEA
––––––
nicas. A proximidade, portanto, corresponde à tendência atual de ximidade e distância de formas incorporadas. Tais maneiras indivi- b oja n a
fragmentação e individualização do público, como também dos ide- dualizadas de ver, entretanto, levantam um problema interessante ku n st

ais de mobilidade e flexibilidade adotados por instituições artísticas que posiciona o espectador contemporâneo (anônimo, porque a pri-
contemporâneas. Mais do que adotar uma perspectiva de distanci- ori não pertence a um grupo definido, nação, classe, gênero etc.)
amento objetivo, o dramaturgista profissional, hoje, incorpora um na proximidade do evento. O espectador torna-se um participante
tipo de proximidade afetiva, que, ao mesmo tempo, está também no que está ativo e criticamente envolvido com o que acontece. Essa
primeiro plano da compreensão dos processos criativos contempo- economia da proximidade é característica dos contextos de produ-
râneos, dos modelos de instituições contemporâneas e dos modos ção nos quais a arte contemporânea é apresentada e produzida. In-
de disseminar o trabalho artístico. clusão, participação, relacionalidade, engajamento, envolvimento
É muito comum ter a função de dramaturgista definida pelo sim- emocional e intelectual, temporalidade afetiva, expectativa: todos

 
ples fato de que uma performance sempre acontece diante de um esses modos são incluídos na dramaturgia da dança contemporâ-

 
público. O dramaturgista é continuamente visto como um primeiro nea.
espectador, ou alguém que traduz o processo em produto apresen-
tado: alguém que forma o contexto de apresentação e que realiza conclusão
uma mediação entre os variados processos de disseminação do tra- Uma das minhas experiências dramatúrgicas mais incomuns co-
balho artístico. meçou numa manhã de segunda-feira, em 2007, quando um gentil
Em todas essas descrições, o dramaturgista adota uma perspec- organizador de uma instituição cultural voltada para a dança con-
tiva exterior, enquanto o público é apresentado como uma espécie temporânea passou-me uma lista dos participantes de um encontro
de multidão anônima, cuja identificação seria também construída de orientação dramatúrgica com duração de uma semana. Como
pelo dramaturgista, que não somente representa o gosto do pú- dramaturgista, eu deveria encontrar três autores ou grupos por dia,
blico, mas também é capaz de transformar atitudes por meio da com três horas no estúdio disponível para nossa “sessão”.
interpretação do sentido. A dramaturgia contemporânea desvia-se A intenção era trabalhar performances em processo ou abordar
radicalmente dessa função representacional do dramaturgista, não questões geradas pelos autores durante o trabalho, analisar mate-
dêmico; a segunda é a prática literária e teatral; a terceira é o teatro
riais criados, questionar a relação com o público etc. Logo foi fi-
como uma instituição de importância pública e discurso ideológico. Esses cando claro que os autores vinham de experiências muito diferen-
três campos correspondem aos domínios da experiência humana descritos por tes e com motivações bastante diversas. Alguns tinham questões
Virno (2004).

– –
122 123
abertas que surgiam no meio do trabalho com suas performances; nidade para a socialização e a prática de formas contemporâneas de A ECONO -
MIA DA
outros queriam compartilhar ideias dos estágios iniciais dos seus dança e teatro. Considerando que um tal treinamento sempre tem PROXIMI -
trabalhos; outros, ainda, com performances prontas. Como muitos como objetivo desenvolver alguma habilidade, aumentando a qua- DADE :
O TRA -
dos autores, me senti, no início de cada “sessão” com três horas de lidade da performance de certa atividade e aperfeiçoando alguma BALHO
DRAMA -
duração, como se estivesse indo para um encontro às escuras, sal- disciplina, qual seria o objetivo de um treinamento dramatúrgico? TÚRGICO
tando de um precipício. Como é comum em encontros desse tipo, al- Que qualidade deveria ser intensificada através dela? Como o ob- NA DANÇA
CONTEM -
guns são inesquecíveis; outros, fracassos desde o início. E foi exata- jeto dessa troca poderia ser melhor articulado? Qual habilidade é PORÂNEA
––––––
mente pela diversidade dessas reuniões intermináveis e da materia- treino? O que pode ser modificado ou deslocado através desse en- b oja n a
lidade indefinida das nossas trocas que eu comecei a buscar obsessi- contro? A resposta poderia ser simplesmente a de que se trata do ku n st

vamente um denominador comum por meio do qual eu pudesse fa- diálogo entre duas partes sobre uma proximidade que abre caminho
zer conexões e “dar chão” aos nossos encontros. No final da semana em direção à possibilidade de trocar conhecimentos e abordagens.
percebi que, com o propósito de fazer anotações, todos usávamos o Por que, todavia, esse diálogo recebe um valor material em termos
caderno Moleskine, atualmente muito na moda, um sucesso comer- financeiros concretos e simbólicos? E por que afinal é um tipo de
cial vendido junto à experiência romântica de seu primeiro adepto, proximidade dependente da mediação de uma terceira parte (que
Bruce Chatwin. marca essa proximidade com seu carimbo permanente)?
Comparada aos formatos mais intensos e mais orientados por Acho que essas questões somente podem ser respondidas atra-
pesquisa, essa aventura singular de uma semana de orientação dra- vés da análise dos contextos culturais e econômicos que influen-

 
matúrgica poderia ser repelida como má ideia por parte de uma ciaram o surgimento da dramaturgia na dança contemporânea

 
instituição de produção. No entanto, acho que o simples fato de nas duas últimas décadas, especialmente desde os anos 1990. Ape-
que haja uma necessidade de que o artista (coreógrafo, diretor, bai- nas dessa maneira o fenômeno do treinamento dramatúrgico não
larino etc.) seja exercitado dramaturgicamente precisa ser consi- será lido de modo moralista, como um excesso ou como exemplo
derada. Nesse caso descrito acima, os artistas envolvidos pagam de prática que não funciona, atestando a apropriação pelo mer-
por esse encontro; uma troca econômica acontece entre o artista e cado/produção das formas de trabalhos abertas, interdisciplinares
o “treinador” dramatúrgico através de um produtor/intermediário. e orientadas por pesquisa. Muito pelo contrário; o treinamento é
Ao mesmo tempo, tais oficinas não estão no contexto das empresas apenas o lado extremo da “boa prática”, a parte da prática drama-
de produção motivadas por resultados, mas são geralmente solicita- túrgica que se reconhece como indefinida, sua frequente inabili-
das por organizações de arte mais interessadas em modos abertos dade anedótica de nomear, sua invisibilidade visível e sua habili-
de trabalho do que em produtos. dade de combinar teoria e prática. É essa abertura da prática dra-
Antes da aventura descrita, tive a oportunidade de participar de matúrgica na dança contemporânea que pode assumir diferentes
oficinas oferecidas por organizações mais orientadas pela pesquisa. funções, oscilando entre “[…] reflexão e criatividade; detalhe e vi-
Não pediam pagamento para participação de artistas e o cachê de são geral” (behrndt, 2007, p. 96). É, pois, interdisciplinar, visto que
facilitadora da oficina era bem mais baixo. Havia, entretanto, mais abre possibilidades para a produção e representa uma habilidade
ênfase no valor simbólico da troca, porque possibilitava que artis- que é difícil de definir.
tas adquirissem novos conhecimentos, assim como oferecia oportu-
– –
124 125
Foi somente um bom diálogo entre eu, como dramaturgista e eles, artis- Por um lado, a proximidade geralmente esconde a apropriação A ECONO -
MIA DA
tas… Antes, atuo mais como um curador, mas, em ambas funções, o que do caráter processual do trabalho e dá prioridade a uma compre- PROXIMI -
realmente importa é que eles, artistas, tenham um parceiro para ofere- ensão crítica, mas não antagonista do trabalho de performance e DADE :
O TRA -
cer um tipo de fé que é bem-vinda, aceita e compreendida. Esse é pro- da recepção do público. De acordo com essa perspectiva, o drama- BALHO
vavelmente o fator principal, a compreensão (frank apud behrndt; turgista torna-se um companheiro conversador que acalma seus te-
DRAMA -
TÚRGICO
turner, 2008, p. 112).
mores sobre a vida contemporânea, por assegurar que uma certa NA DANÇA
CONTEM -
É assim que Thomas Frank (dramaturgista e atual diretor ar- prática pode ser mostrada no mercado. Por outro lado, temos que PORÂNEA

tístico associado do teatro Brut, em Viena) descreve seu trabalho


––––––
examinar se a entrada do dramaturgista na dança contemporânea b oja n a
com a companhia britânica Lone Twin. Enfatizando a noção de pro- atesta uma certa mudança radical da prática artística que tem o po- ku n st

ximidade, ele descreve a função de dramaturgista como a de acal- der de intervir socialmente e revelar o trabalho artístico como es-
mar, oferecer suporte emocional e, inclusive, fé. O que é aceito (ou paço político de antagonismo.
não) como resultado da proximidade do dramaturgista? O que exa- Com base nessa perspectiva, a proximidade não se inicia na me-
tamente é calmante nessa presença do dramaturgista? Essas devem diação de uma terceira parte que nos permite escrever nossos pen-
se somar às questões introdutórias que se referem à dificuldade de samentos nos mesmos cadernos da moda, mas resulta do encontro
articular os processos de treinamento dramatúrgico. entre diferentes modos de se trabalhar junto, o que só possibilita
Se quisermos respondê-las ao menos aproximadamente, pre- (ou falha em possibilitar) mudanças e estabelece novas formas de
cisamos imergir no complexo cerne do conhecimento imaterial – existência. O posicionamento do conhecimento cognitivo no centro
uma habilidade e potencialidade indefinidas que são parte do tra-
 
dos processos de produção pode, pois, inaugurar novas formas de
balho dramatúrgico. A aparência desse conhecimento/habilidade
 
existência e questionar profundamente a natureza da dança e sua
pode ser explicada com ajuda da famosa descrição de Marx sobre suposta autoevidente relação com a vida contemporânea.
as mudanças do século xix: “Tudo que é sólido desmancha no ar”.
Como bem sabemos, é a desmaterialização que garante a mais-valia, Referências
ou melhor, a ficcionalidade do valor (cujas consequências materi-
ais estamos encarando durante a crise econômica atual). Nesse pro- • agamben, Giorgio. O homem sem conteúdo. Belo Horizonte: Au-
cesso imaterial, articulado por intermédio de modos diferentes de têntica Editora, 2012.
proximidade e colaboração, o conhecimento cognitivo e incorpo- • bauer, Eleanor. Becoming room, becoming mac: new artistic iden-
rado torna-se frequentemente apropriado e organizado por meio do tity in the transnational Brussels dance community. Maska, 2007,
mercado e do capital. Além disso, esse conhecimento está no centro n. 107–108, p. 58–67.
da produção contemporânea. As perguntas que considero essenci-
• behrndt, Synne K. The dramaturg as collaborator: process and
ais são: como é possível colocar o trabalho dramatúrgico em rela-
proximity. Conferência Dramaturgy as applied knowledge: from
ção com a política e o capital? O problema mais interessante, aqui,
theory to practice and back, Department of Theatre Studies,
é a questão sobre o potencial político da proximidade em si. Qual a
Tel Aviv University. Disponível em: <www.expandeddramatur-
potencialidade de trabalhar com um dramaturgista?
gies.com/?cat=10>. Acesso em: 25 mar. 2007.

– –
126 127
• ______; turner, Cathy. Dramaturgy and performance. Nova York: A ECONO -
MIA DA
Palgrave Macmillan, 2008. PROXIMI -
DADE :
• čufer, Eda. Petnajst lepih tez o dramaturgiji. Maska: Dramatur- O TRA -
BALHO
gija plesa, n.1–2, p. 23, 2001. DRAMA -
TÚRGICO
• kerkhoven, Marianne Van. Introduction. Theaterschrift: On dra- NA DANÇA
maturgy, n. 5–6, p. 18–20, 1994. CONTEM -
PORÂNEA
––––––
• lepecki, André. Dance without distance. Ballett internatio- b oja n a
nal/Tanz aktuell, n. 2, p. 29–31, 2001a. ku n st

• ______. Dramaturgija na pragu. Maska: Dramaturgija plesa, n. 1–


2, p. 26–29, 2001b.
• virno, Paolo. A grammar of the multitude: for an analysis of con-
temporary forms of life. Cambridge, Massachusetts: Semiotext(e),
2004 [Edição brasileira: Gramática da multidão: para uma análise
das formas de vida contemporâneas. São Paulo: Annablume Edi-
tora, 2013].

 
 

– –
128 129
N
a condição de intercessor entre os diferentes pratican-
m ov i - CALDAS ,
BOUD I ER , Mario n et al.
D e q uoi l a d ra mat urgi e Pau lo;
est -el l e l e nom? Pari s :
GADELHA, tes, entre as diferentes formas de expressão e as significa-
m e n to ções, “criador de turbulências”1 , iniciador ou comentarista,
L’Harmat t an, 2 014. p.
1 07 - 1 1 0 Er n es t o.
D a nça e dra -
maturgia [s].
o dramaturgista gera movimento e deslocamentos concretos e sim-
São Paulo: bólicos tanto quanto reage a esses fluxos. Encarnada ou não numa
nex us, 20 16 . só e única pessoa, a dramaturgia revela-se uma atividade cinética
em vários níveis: movimento e encenação do pensamento, trabalho

do movimento do texto e dos corpos, desestabilização dos especta-

dores.
Ao olhar o texto ou a cena, o dramaturgista ajuda a equipe ar-
tística a captar o movimento da obra e animá-la, no sentido etimo-
lógico da palavra, pois esse movimento não se confunde rigorosa-
mente com a sua estrutura, seu ritmo ou sua ação, mas pode ser
modulado tanto pela frase musical como pelo movimento da alma,
como em Interieur, de Maeterlinck, ou nas encenações de Claude
Régy. O movimento da obra, a vida de sua forma2 , resulta efetiva-

1 FRATINI-SERAFIDE, Roberto. Dramaturgie de l’attente. Résonances – du regard

à l’oeuvre: autour de la réception en danse, comunicação apresentada durante


a jornada de estudos Biennale de la danse, sob a direção de Irène Filiberti
e Claudia Palazzolo, organizada pela Université Lumière—Lyon 2, 2 de outubro
de 2010. N. do E.: Roberto Fratini-Serafide foi colaborador da coreógrafa
Caterina Sagna nesse processo.
2 “Nesses mundos imaginários, cujo artista é o geômetra e o mecânico, o físico

e o químico, o psicólogo e o historiador, a forma, pelo jogo das metamorfoses,

– –
130 131
mente de forças mais ou menos visíveis e moduláveis que a drama- Movimento e implementação do pensamento que tece a obra m ov i -
m e n to
turgia contempla, mensura e orienta.3 Feita de observação, de refle- e atravessa o processo de criação, a dramaturgia é, então, também
xão, de diálogo, de hipótese e de reação, a dramaturgia possui as- uma forma de encenação do pensamento, iniciado ou conduzido
sim um caráter experimental4 que faz dela um mover: anima, aci- pelo corpo, pois, nas artes da cena, pensamos também com os pés.
ona, remexe, questiona. Bojana Cvejić evoca o trabalho do dramaturgista como um jeito
Consciência e intuição do movimento da obra, a dramaturgia é de “especular de maneira pragmática”.9 Além disso, a dramaturgia,
também fazê-la entrar em movimento, na medida em que, como es- pensamento em movimento do movimento da obra, não existe sem
creve Joseph Danan, ela é “[…] o que anima de fato a cena teatral, os corpos10 dos intérpretes que impulsionam e exprimem esse pen-
seja a partir de um texto dramático ou não”, protegendo-se “contra samento.
um pensamento que se fossilizaria”.5 De maneira recorrente, a dra- A referência quase-orgânica à energia que ela canaliza enfatiza
maturgia, “pensamento que se coloca em ação”6 , é descrita assim, suas ligações com o movimento físico. Inscrita na escolha entre um
tal como um colocar em circulação de energia, uma realização, uma gesto e outro, na escolha de um sopro ou de um ritmo, a dramatur-
ativação, um trabalho no sentido físico do termo: “A dramaturgia gia é, por uma parte, articulada ao corpo do intérprete. Até mesmo
é, nesse sentido, como o filtro, o canal através do qual uma energia o movimento mais dessubjetivado instala um tipo de presença sig-
transforma-se em movimento”7 , explica„ por exemplo Franco Ruf- nificante em cena. Jean-Marc Adolphe defende, assim, uma “dra-
fini, seguindo o pensamento de Eugenio Barba. Este último define maturgia do movimento”, empírica, “ação do sentido” não intencio-
a dramaturgia de maneira global como “drama-ergon”, trabalho das nal que ele opõe ao modelo teatral da dramaturgia do “sentido das

 
ações e ações no trabalho: maneira cujos gestos e falas, sons, luzes, ações”:

 
variações de espaço, episódios da história, evolução das persona- “A intenção não é, às vezes ou frequentemente, esse inusitado que re-
gens, ritmo, objetos etc. (tudo isso é “ação”, segundo o vocabulário sulta de um trabalho? […]. Uma dramaturgia do movimento consiste
de Barba) tecem a trama da obra. A tecelagem determina o espetá- talvez em reconhecer a organicidade desta lógica interna […]. ‘It works’,
culo e sua vida: “as ações em ações — a dramaturgia”.8 está trabalhando, como a madeira trabalha: a matéria trabalha”.11

vai incessantemente de sua necessidade a sua liberdade”. FOCILLON, Henri.


Elaborado em torno de uma esteira rolante cuja velocidade varia, À
Vie des formes seguido de Éloge de la main. Paris: P.U.F., 1996 [1934]. bas bruit (2012), do circense Mathurin Bolze, exibe os laços entre
(Coleção Quadrige). movimento concreto e movimento do sentido: a corrida dos intér-
3 N. do E.: Consultar verbete SENTIDO na página 215.
4 BENHAMOU, Anne-Françoise. Bref aperçu de dramaturgie expérimentale. in cou-
pretes nessa cenografia fugidia materializa a passagem do tempo,
tant, Philippe. Du dramaturge. Nantes: Éditions Joca Seria, 2008. p. 45. (Co-
a capacidade do homem de se adaptar ao seu ambiente. Uma maté-
leção Les carnets du grand T).
5 DANAN, Joseph. Qu’est-ce que la dramaturgie? Arles: Actes Sud, 2010. p. 67. 9 CJEVIĆ, Bojana. Le dramaturge ignorant. Agôn, Laboratoire de recherche,

(Coleção Apprendre). Danse et dramaturgie. Disponível em: <agon.ens-lyon.fr/index.php?id=1751>.


6 FARCET, Charlotte. h2O. in COUTANT, Philippe. Du dramaturge. Nantes: Éditions Acesso em: 29 ago. 2011.
Joca Seria, 2008. p. 42. (Coleção Les carnets du grand T). 10 N. do E.: Consultar verbete na página 84.
7 BARBA, Eugenio. L’énergie qui danse: l’art secret de l’acteur. Montpellier: 11 ADOLPHE, Jean-Marc. La dramaturgie est un exercice de circulation pour

L’Entretemps, 2008. p. 255. tenir le monde à l’écart. Danse et dramaturgie, Nouvelles de Danse, n. 31,
8 Ibid. p. 54. p. 32–33.

– –
132 133
ria, um corpo ou um objeto vêm sempre questionar novamente as
ideias ou os conceitos estabelecidos. Érection (2007), de Pierre Rigal
e Aurélien Bory, também começa de um movimento físico concreto
para fazer emergir suas significações e metáforas. O movimento
dramatúrgico não é dissociável do momento do jogo, dinâmica do
instante própria às artes da cena. Levé des conflits (2010), de Boris
Charmatz, coreografia construída segundo um princípio formalista
de movimento perpétuo e a repetição em cânon de vinte e cinco ges-
tos por vinte e quatro dançarinos, revela essa vida do movimento
através das mudanças de escala, do detalhe de um gesto ante a ima-
gem do conjunto, assim como das interações inéditas que ela pro-
põe ao olhar do espectador.
O movimento, com efeito, também não seria concluído ou man-
tido sem a recepção do espectador que o prolonga. Análise e pes-
quisa de dispositivos de representação e de visibilidade, ajustes en-
tre o movimento da obra e os movimentos que ela produzirá no es-
pectador: o mover da dramaturgia é, então, também um comover.


A reflexão dramatúrgica experimenta (no que põe em xeque e per-


cebe) a tensão entre o movimento externo e interno da obra, coloca
essa tensão em movimento e tenta ajustar sua força de desestabili-
zação.

– –
134 135
Esta abordagem, mais “intuitiva e
feminina”, tenta ser paciente e seguir
o que se produz ao longo do processo
de ensaio e o que daí provém, em vez
de predeterminá-lo ou antecipá-lo.
Ela se aplica particularmente bem à
dança, em que não há em geral um texto
preexistente e na qual o “texto” do
espetáculo se escreve com e sobre os
corpos dos bailarinos. Neste “processo”,
o dramaturgista tem a função de
Fo r m a n d o CALDAS ,
P u b l icad o com o
simultaneamente estimular a intuição t ít u lo S hap ing cr itical Pa u lo ;
criativa, frequentemente inconsciente, s pa ce s : is s ue s in
GADELHA,
es paç o s
t h e d ram at urgy of
dos corpos, e colaborar com o coreógrafo move m e nt p e r for m ance . E r n e st o .
Danç a e d ra-
na estruturação dessa intuição segundo In: JONAS, S us an et

críticos:
al. ( E d .). D ra m at u rg y maturgi a[s].
sua lógica própria. in am er i ca n t h eater : a S ã o Pa u l o :
[...] s o u rce b ook. O r land o: n ex u s, 20 1 6.

q u estõ e s
H a rcour t B race &
Assim definida, a dramaturgia pode ser Co m pany, 1 9 9 7 .
aplicada a todas as disciplinas. Isso
implica também que cada artista e mesmo da d r a m a -
cada nova criação tenha necessidade
de uma forma de dramaturgia única e tu r g i a da
específica.
trecho de: Guy Cools p e r fo r -
De la dramaturgie du corps en danse mance de
[Jeu: Revue de Théâtre, n. 116, (3) 2005, p. 90-91.]
m ov i m e n to
––––––
Heidi
G i lp i n

– –
136 137
Heidi Gilpin é professora FO r m a n d O Ocorre também que, margeando os sólidos muros de
E S Paç O S
associada no Amherst Marósia, quando menos se espera se vislumbra uma
CrítiCOS:
College (Massachusetts,
q u estõ es da
cidade diferente, que desaparece um instante depois.
EUA). É doutora em d r a m atu r g i a da Talvez toda a questão seja saber quais palavras pronunciar,
Literatura Comparada pela p e r fo r m a n c e d e quais gestos executar, e em que ordem e ritmo, ou então
Universidade de Harvard. m ov i m e n to basta o olhar, a resposta, o aceno de alguém, basta que
De 1989 a 1996, trabalhou –––––– alguém faça alguma coisa pelo simples prazer de fazê-la, e
como dramaturgista para Heidi GiLPin para que o seu prazer se torne um prazer para os outros;
naquele momento todos os espaços se alteram, as alturas,
 
William Forsythe e para o
as distâncias, a cidade se transfigura, torna-se cristalina,
 
Ballett Frankfurt. Atua nas
áreas de estudos críticos e transparente como uma libélula. Mas é necessário que
tudo aconteça como se por acaso, sem dar muita
culturais da performance,
importância, sem a pretensão de estar cumprindo uma
com ênfase nas questões da
operação decisiva, tendo em mente que de um momento
corporeidade e da prática para o outro a Marósia anterior voltará a soldar sobre as
corporal, teorias literária, cabeças o seu teto de pedra, teias de aranha e mofo.
crítica e fílmica, novas
(Italo Calvino, As cidades invisíveis)
tecnologias, arquitetura,
performance e dramaturgia.

performance de movimento: ilhas de um território des-


conhecido
Como podemos começar a pensar, por meio das possibilidades
e processos de dramaturgia, a performance de movimento? Como
podemos começar a imaginar maneiras de abordar as questões mul-
tidisciplinares inerentes às dramaturgias para performances de mo-
vimento?
– – –
13826 139
Marósia, a cidade invisível de Italo Calvino, mapeia o lugar do da ausência de esforço, leveza, de que alguém pode atuar graciosa- FOR -
MANDO
presente artigo de diferentes maneiras. Em primeiro lugar, descreve mente e não chamar atenção para o esforço por trás da criação da ESPAÇOS
minha experiência ao descobrir um tópico de investigação, assis- performance, tentando manter um estado de dinamismo para afir- CRÍTICOS :
QUESTÕES
tir ao seu desaparecimento e vê-lo ressurgir com outra aparência, mar estase; e da memória e consciência de impedir repetição: es- DA DRA -
MATUR -
como que por acaso. A questão de Calvino sobre quais palavras di- sas são, de maneira profundamente psíquica e intelectual, as bases GIA DA
zer, quais ações executar e em que ordem e ritmo nos direciona do meu trabalho como dramaturgista. Para impedir que Marósia re- PERFOR -
MANCE DE
ao âmago dos atos de performar e testemunhar o movimento nas torne e solde o teto de pedra, teias e mofo sobre nossas cabeças, es- MOVIMEN -
TO
simultâneas e variadas formas são o foco desta breve exploração. peremos, então, que um gesto, como sugere Calvino, seja suficiente. ––––––
O princípio fundamental da performance – especialmente a perfor- Foi a linguagem de um gesto e suas repetições que primeiro H EIDI
G I L P IN
mance de movimento contemporânea, que será investigada aqui – hipnotizou-me quando assisti à performance da companhia de Pina
é que tudo consiste no conhecimento sobre que atos performar e Bausch, o Tanztheater Wuppertal, em Wuppertal, Alemanha, anos
em que ordem e ritmo fazê-lo. Para um crítico desse tipo de tra- atrás. Como uma cena de interação humana, sem palavras, poderia
balho, tudo consiste no conhecimento sobre que palavras escrever se repetir por pelo menos vinte e cinco vezes sem nenhuma mu-
– que alguém terá a habilidade de transportar leitores para um es- dança visível na frase gestual performada e mesmo assim produzir
paço que transforma os arredores, suas alturas, suas distâncias; um uma série de reações, pensamentos e emoções no seu espectador?
espaço transfigurado em transparência. Em outras palavras, um es- Como situações psicológicas que pareciam tão íntimas poderiam as-
paço que aparece e desaparece quando você menos espera. sumir um sentido de experiência coletiva? Como poderia uma dire-

 
Contudo, os coreógrafos e diretores de performance de movi- tora extrair essas experiências, aparentemente mais coletivas que

 
mento nos ensinam que eles mesmos nunca sabem quais ações per- outras, para mostrá-las em configurações alienadas das suas narra-
formar. Preceituam que há muita incerteza, e que esta, em si, é ob- tivas contextuais? Por que eram tão poderosas?
jeto e foco do seu trabalho. As questões do desaparecimento, do co- A Marósia de Calvino também ressoa em minha primeira expe-
nhecimento, da transformação; do cativar o prazer que transfigura riência de trabalho com William Forsythe e o Frankfurt Ballet: um
e o torna transparente; da noção do acaso; da arte da sprezzatura1 ; sentimento e uma consciência avassaladores da sprezzatura, de fa-
zer algo pelo puro prazer de fazer algo, levando a todos que o teste-
1 O conceito de sprezzatura merece investigação adicional em relação ao pro- munham a considerar as coisas sob outra luz (algumas vezes bem
cesso de composição de movimento. Baldesar Castiglione, diplomata e lite- literalmente, e frequentemente com bem pouca luz no palco). Foi
rato italiano ligado à corte do Duque de Urbino no século xvi, desenvolveu também a experiência de reconhecer que se alguém dá muita impor-
essa noção de modo provocativo sobre a vida na corte no seu Il libro del
tância a algo, paralisia e estase são instauradas. Como continuar a
Cortegiano de Conte Baldesar Castiglione. Para Castiglione, sprezzatura é a
aparência de total ausência de esforço enquanto uma atividade complicada é
realizada. Nesse tipo de manifestação, os observadores não possuem conheci- ou mental) sem expor o trabalho pesado ou o esforço que contribuiu para o
mento das dificuldades envolvidas na execução de tais tarefas. Um observa- sucesso da execução. Isso poderia ser visto como um paradoxo geral para o
dor deveria ser surpreendido pela leveza e graciosidade de uma performance movimento, especialmente para os gêneros clássicos como o balé, em que os
(que, no caso de Castiglione, geralmente envolvia sedução e interação polí- sinais do sucesso incluem sempre a mesma leveza sorridente e a ausência de
tica/social para benefício pessoal) e pelo refinamento do performer, que, esforço como afetos que dissimulam o trabalho pesado e suado. Cf. CASTIGLI-
portanto, levaria ou convenceria o espectador pelo gesto (físico, emocional ONE, Baldesar. The book of the courtier. Nova York: Zone Books, 1991, p. 94.

– –
140 141
mover-se, pensar, produzir e decidir de que forma mover-se e pen- É fascinante que o processo de dramaturgia, especificamente FOR -
MANDO
sar e produzir: essas eram minhas questões sobre Forsythe. Suas para a performance de movimento, tenha sido amplamente negli- ESPAÇOS
estratégias de composição de “forma fraca” que inicialmente tanto genciado por críticos literários e teatrais: parece-me crucial explo- CRÍTICOS :
QUESTÕES
me mobilizaram anos atrás ainda me movem. Ou seja, são questões rar criticamente o trabalho de artistas que estão trabalhando com DA DRA -
MATUR -
que têm me ensinado como encenar essas estratégias não somente muitas disciplinas ao mesmo tempo, a fim de encontrar e desenvol- GIA DA
no trabalho, mas em cada aspecto da vida que a performance imita ver uma linguagem contemporânea para expressar a experiência PERFOR -
MANCE DE
e desafia. humana. Talvez essa negligência seja sintoma da absoluta comple- MOVIMEN -
TO
O que esses coreógrafos apontam é o que Calvino tenta nomear xidade desse tipo de trabalho. ––––––
também: aquilo que não é audível ou visível. Silêncio, transparên- A questão da plateia é significativa para a dramaturgia do movi- H EIDI
G I L P IN
cia, invisibilidade, infinita repetição dos desaparecimentos, falha da mento em performance, pois talvez haja alguns que tenham familia-
constância e estase em suportar nossos pensamentos, movimentos, ridade com vocabulários de dança ou movimento, mas não tenham
vidas me levam a explorar o território do performativo, seja atra- com filosofia ou teoria literária, por exemplo. Podem não ter famili-
vés das cidades invisíveis de Calvino, seja por meio da arquitetura aridade com movimento, mas ser extremamente versados em teoria
ou da filosofia. Como Henri Bergson sugere, “[…] não há percepção cinematográfica, estudos culturais, teoria e história arquitetônica
que não se prolongue em movimento…”.2 ou teoria psicanalítica. Essa situação é única para a performance de
Quanto mais você se permite perder o controle e permite um tipo de movimento. Ao contrário do teatro dramático, em que o texto está
transparência no corpo, um sentimento de desaparecimento, mais você no centro das estratégias interpretativas do público, nas produções

 
será capaz de capturar forma e dinâmica diferenciadas. Você pode se de performance de movimento, os espectadores são confrontados

 
mover muito, muito rápido nesse estado e não dar a mesma impres- com tantos variados vocabulários (texto, imagem, movimento, som)
são, e não dar impressão de violência. Você também pode se mover e perspectivas disciplinares – nenhuma das quais desempenhando
com uma aceleração tremenda desde que saiba onde você deixa o mo- hierarquicamente um papel central – que geralmente eles não são
vimento – não onde você coloca o movimento, mas onde você o deixa. versados igualmente em todas elas.
Você tenta alienar o corpo do movimento, como oposição ao pensa- É importante, portanto, começar uma reflexão acerca da cria-
mento de que você está a produzir movimento. Então não seria como
ção e da interpretação da performance de movimento à luz da mul-
pressionar avançando no espaço e invadindo o espaço – seria como
tidisciplinaridade, que também é evidente em muitas outras face-
abandonar seu corpo no espaço.
Dissolução, permitir-se evaporar. Movimento é um fator do fato de tas da produção cultural contemporânea. Ironicamente, uma ma-
que você está, na verdade, evaporando.3 neira de começar esse processo seria considerar nossa relação com
a textualidade. Historicamente, atos de leitura têm recebido muita
atenção. Críticos literários têm focado na questão de como lemos
um texto literário, assim como teóricos do cinema têm articulado
2 BERGSON, Henri. Matter and memory. Nova York: Zone Books, 1991, p. 94 [N. do
como abordar a leitura da linguagem visual do cinema e historiado-
E.: Edição brasileira: Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999,
res do teatro têm observado as inflexões semióticas do texto dramá-
p. 105].
3 FORSYTHE, William apud GILPIN, Heidi. Eidos: Telos. Frankfurt: Ballet Frank- tico quando encenado. Todavia, poucos acadêmicos literários explo-
furt, 1995. p. 33. raram a questão de como começar a ler a totalidade mais complexa
– –
142 143
do texto da performance, particularmente quando o movimento é brepor textos falados e gravados.6 Isso desloca o foco da nossa aten- FOR -
MANDO
o protagonista. ção das palavras faladas para o lugar da fala e para a noção de vi- ESPAÇOS
Se nos treinam para sermos predominantemente leitores de tex- sibilidade ou invisibilidade daquele que fala. Essas produções com CRÍTICOS :
QUESTÕES
tos verbais, como lemos e compreendemos o “texto” de espetácu- frequência valorizam o movimento físico conferindo a ele um pa- DA DRA -
MATUR -
los de performance de movimento, um texto de múltiplas camadas, pel importante, permitindo que frases gestuais ou de movimento, GIA DA
composto de linguagens visuais, físicas, técnicas, temporais e sono- mais do que as palavras, sejam as portadoras essenciais de sentido. PERFOR -
MANCE DE
ras? Que ferramentas podemos usar para compreender esse “texto” Quando nossa atenção é, pois, deslocada das palavras para as ima- MOVIMEN -
TO
quando ele não é simplesmente um trabalho escrito de literatura ––––––
dramática representado num teatro, mas uma produção envolvendo desse fenômeno, entre muitos outros, é a produção, também de Robert Wilson, H EIDI
G I L P IN
da peça de Gertrude Stein (produzida como um musical, intenção original
uma quantidade tão grande de sequências de movimentos que estas da dramaturgista): Dr. Faustus Acende a Luz (estreia em abril de 1992 no
acabam por assumir a responsabilidade formal da produção? O ato Hebbel Theatre, Berlim, com tour mundial de performances em Frankfurt, Nova
de ler que performamos como membros de uma plateia de espetácu- York, Houston etc., de maio a novembro de 1992), com iluminação de Wilson

los de movimento, no palco e na tela, requer nossa atenção. Exige e partitura musical e números musicais do compositor e artista sonoro Hans
Peter Kuhn, um colaborador de Wilson desde 1979.
reconhecimento e percepção mais gerais do movimento e mais es- 6 Algumas produções do autor teatral do antigo leste europeu Heiner Müller

pecíficos dos corpos que movem. empregam tais estratégias como, por exemplo, seu Quarteto (estreia em 1982,
Elementos não linguísticos têm se tornado uma força predomi- em Berlim Ocidental), dirigida por Robert Wilson em colaboração com Müller,

nante nos trabalhos de performance contemporânea. Produções re- com performance no American Repertory Theatre, em Cambridge, Massachusetts,
com pré-estreias de 5 a 9 de fevereiro de 1988 e estreia em 10 de feve-

 
centes de textos dramáticos clássicos, nos casos mais extremos, não reiro de 1988. De acordo com ART Records, Wilson foi diretor solo dessa

 
mais apresentam simplesmente as interações linguísticas entre per- produção. Müller, no entanto, estava presente nos ensaios em Cambridge e

sonagens como dispositivo motivador central da narrativa. Ao con- contribuiu para a montagem (Direção e cenário: Robert Wilson. Diretora as-
sistente: Jane Perry. Iluminação: Howell Binkley e Robert Wilson. Tradu-
trário, eles podem permitir que o peso da narrativa seja carregado ção: Carl Weber. Composição musical e adaptação: Martin Pearlman. Trilha
pela iluminação ou partituras de som4 , por posicionar o lugar da sonora: Stephen D. Santomenna. Figurinos: Frida Parmegianni). As produções
ação na escuridão5 , ou por transmitir palavras ininteligíveis ao so- que Müller realizou das suas próprias peças Hamletmachine (estreia em 1978,
Bruxelas) e Germania Tod in Berlin (estreia em 1978, Munique) também são
relevantes aqui. Müller discute sua abordagem do fazer teatral em vários
4 Tentativas recentes de direcionar o corpo em movimento e os espaços do corpo textos em Germania(editado por Sylvère Lotringer, traduzido e comentado por
a partir de perspectivas multidisciplinares incluem, entre outras: CRARY, Bernard e Caroline Schüttze. Semiotext(e) Foreign Agents Series (Nova York:
Jonathan; KWINTER, Sanford. Zone 6: incorporations. Nova York: Urzone, 1992; Semiotext(e), 1990). Samuel Beckett, entretanto, é claramente um agente que
COLOMINA, Beatriz (Ed.). Sexuality and space. Princetown: Princetown Archi- sugere e inspira o material de performance ao qual faço alusão aqui: seu
tectural Press, 1992; e Body criticism: imagining the unseen in enlightment trabalho inicial com as tecnologias de reprodução, em Krapp’s Last Tape e
art and medicine. Cambridge, MA: The Mit Press, 1991. em outras peças, propõe a necessidade de produções que consideram a unidade
5 Cf., por exemplo, a montagem de Rei Lear, de Shakespeare, por Robert Wilson, da voz que fala e a presença simultânea de múltiplas vozes. Além das peças
que estreou no Bockenheimer Depot (Schauspiel Frankfurt) em 26 de maio de de Beckett, consultar Knowlson, James (Ed.). The theatrical notebooks de
1990 (König Lear, com Marianne Hoppe atuando como Lear. Produção, direção e Samuel Beckett. V. II: Endgame e V. III: Krapp’s Last Tape. Nova York: Grove
cenário: Robert Wilson. Dramaturgia e colaboração: Ellen Hammer. Figurinos: Press, 1993. Consultar também uma discussão sobre a posição de Beckett ante
Yoshio Yabara. Iluminação: Heinrich Brunke e Robert Wilson. Música: Hans a estética da performance contemporânea em Wipes Dream Amaway With Hand, de
Peter Kuhn. Movimento Suzushi Hanayagi). Um dos exemplos mais contemporâneos Mel Gussow, The New York Times Book Review, 7 de março de 1993, p. 10.

– –
144 145
gens, da fala para o movimento, de textos para corpos e daquele e muitos outros) oferece possibilidades previamente não reconheci- FOR -
MANDO
que fala para o performer que se move, e quando o resultado é feito das de, em suas distintas maneiras – formal, conceitual, psicológica ESPAÇOS
inaudível ou invisível, ou ambos, devemos considerar como a in- e fisicamente – manifestar a multidisciplinaridade. CRÍTICOS :
QUESTÕES
visibilidade e a ausência nos impelem a reavaliarmos nosso treina- A constante atenção dada a outras disciplinas e outras formas DA DRA -
MATUR -
mento como leitores, a fim de reexaminarmos nossas expectativas de expressão faz com que a performance de movimento seja um GIA DA
em relação à performance, ao entretenimento, aos comentários so- gênero inerentemente multidisciplinar. Para o dramaturgista desse PERFOR -
MANCE DE
ciais, políticos, históricos, psíquicos, intelectuais, bem como para re- gênero é uma atividade ampla, sendo necessário expor e explorar MOVIMEN -
TO
considerar a importância da performance como um modo progres- como essa qualidade multidisciplinar funciona no nível da compo- ––––––
sivamente transformativo de engajamento com as questões críticas sição na criação dessas produções, assim como no desenvolvimento H EIDI
G I L P IN
e de cunho espectral das realidades contemporâneas. de novos discursos por meio dos quais serão interpretados. A aten-
O teatro, resumindo, desenvolveu sofisticadas “linguagens per- ção conferida a vários textos, de literatura, música, filosofia, arqui-
formáticas” de iluminação, som e movimento que vieram não so- tetura e ciência, por exemplo, ganha corpo como uma investigação
mente a predominar nas produções contemporâneas de perfor- das condições desses “outros” espaços enquanto tentativa de trazer
mance, mas também a assumir maior importância que o texto dra- esses “outros” para o estúdio de ensaio, para o processo de ensaio
mático em si. O conceito de “texto dramático” é colocado de lado, e para a performance em si.
ou alterado de forma irreconhecível, até o ponto em que o tea- Minha experiência em fazer e interpretar performance de mo-
tro, como conceito, arquitetura psíquica e física, construção e até vimento torna-me capaz de reconhecê-la como uma forma de arte

 
mesmo mesmo como um processo, desaparece. William Forsythe que expõe o anseio impossível de que esta alcance permanência

 
fala sobre essa condição: “A instituição teatral foi estripada e a ar- em qualquer campo de representação. Será precisamente o desejo
quitetura do teatro em si é politicamente incapacitante. Ela apenas impossível de permanência na representação o que motiva a per-
permite que o teatro novamente represente a si mesmo como uma formance de movimento a incorporar a multidisciplinaridade? Ou
tela rejeitada ocultando um orifício que abandonou seus conteú- será nossa falta de treino na interpretação da multidisciplinaridade
dos”.7 que faz com que esse tipo de performance pareça ao mesmo tempo
A performance de movimento contemporânea, especialmente tão alienígena e atraente? A atividade do dramaturgista, nesse con-
o trabalho de determinados coreógrafos e diretores que trabalha- texto, é confrontar as necessidades efervescentes de performar o
ram em sua maioria na Europa (William Forsythe, Pina Bausch, multivalente e fazê-lo ressoar de maneira simultânea para plateias
Jan Fabre, Maguy Marin, Tadeusz Kantor, Anne Teresa De Keers- como uma nova forma de percepção.
maeker, Saburo Teshigawara, Reinhild Hoffmann, Johann Kresnik Essas produções têm-me ensinado a repensar o papel do corpo,
da política e da teoria no contexto dos espaços de performance no
7 Este é um dos temas tratados em “Emissions: a discussion with William palco e fora dele. O trabalho da performance de movimento desses
Forsythe and Heidi Gilpin”. In: Critical Space, n. 10, 1993, p. 151–159, diretores e coreógrafos forçaram-me a reconsiderar os processos
que documenta um momento particular na trajetória do processo criativo em
e táticas da memória – pois é a visão da memória que permanece
Frankfurt e tenta tornar acessível a espectadores e leitores os tipos de
perguntas e questões em jogo para Forsythe tanto na performance quanto no quando a performance desaparece.
processo coreográfico.

– –
146 147
Se a dança é – e ela é, devidamente –
um objeto para os filósofos, ela não
deve estar na mão de filósofos, mas de
bailarinos; e o lugar do dramaturgista
não é sobre o trono que ele usurpa
atualmente, mas aos pés deste: é o
lugar do bufão, um bom lugar aliás, com
o qual os mais inteligentes saberão se
contentar.

trecho de: Antoine Pickels


Pensar o CALDAS ,
P u b l icad o com o
Le corps a ses raisons t ít u lo T h i n k i n g n o Pa u lo ;
o ne’ s t h o u g ht . I n :
(que le dramaturge ignore) GADELHA,
pensamen-
HANSEN , P il; CALL ISON ,
[Nouvelles de Danse: Dossier Danse et Dramaturgie. D a rc ey (O rg s .). D a n c e E r n e st o .
dram at u rg y : m od e s of Danç a e d ra-
n. 31. Bruxelas: Contredanse, 1997, p. 30.]
to d e n i n -
a g ency, aware ne s s and maturgi a[s].
en g ag e m e nt . L ond re s : S ã o Pa u l o :
Pa l g rave Macm illan, n ex u s, 20 1 6.

guém
2015.

––––––
M aa i k e
Bleeker

– –
148 149
O
Maaike Bleeker é professora PEnSar O qe é isso que os dramaturgistas fazem? Será que algum
P E n S a m E n tO d E
do Departamento de Estudos
ninguém deles nunca precisou enfrentar essa questão? Contem-
de Teatro da Universidade
de Utrecht. Estudou História
–––––– plando possíveis respostas, lembro-me das listas forneci-
da Arte, Estudos de Teatro e
MAAike BLeeker
das por antigos professores das atividades realizadas por um dra-
Filosofia na Universidade de maturgista: pesquisa de contexto, análise, observação de ensaios,
Amsterdam, onde também atuar como primeiro público, escrever textos de programas e solici-
concluiu o seu doutorado na tações de patrocínio etc. Embora essas listas possam, de fato, ofere-
 
Amsterdam School for Cultural
cer uma impressão inicial sobre os tipos de atividade com as quais
 
Analysis (ASCA), em 2002.
Desde 1991, trabalha como dramaturgistas geralmente se ocupam, elas não especificam a sua
dramaturgista para vários função no processo criativo. É importante salientar que “especifi-
encenadores, coreógrafos car” não implica argumentar em favor de um modo característico
e artistas visuais. É, ainda, ou singular de fazer dramaturgia; ao contrário, podemos supor que
presidente da Performance
existem tantas maneiras de fazê-la quanto existem dramaturgistas.
Studies International, Membro
do Conselho Consultivo No entanto, para examinarmos a função do dramaturgista no pro-
Internacional do Maska cesso criativo, em vez de considerarmos de forma particular como
(Liubliana), da Inflexions: cada um desempenharia sua função predeterminada, distinguimos
A Journal of Research- alguns aspectos recorrentes na prática da dramaturgia.
Creation (Montreal), membro Quando questionados sobre suas colaborações, a maioria de
do Conselho Consultivo
Internacional da Associação longa duração, diretores e coreógrafos geralmente descrevem seu
para o Estudo das Artes do dramaturgista como parceiro de luta, alguém que entende o modo
Presente (ASAP) e Presidente de pensar, de trabalhar, e que contribui, além disso, para o processo
do Conselho de Administração criativo a partir de sua expertise. Mesmo que esse processo envolva
do Instituto Holandês para algumas das atividades mencionadas acima (e geralmente inclui
Análise Cultural (NICA).

– – –
15030 151
itens dessa lista), elas não são assumidas como definitivas para o não o são, e o charme aceso entre o dramaturgista e o coreógrafo ou PENSAR
O PEN -
dramaturgista. Antes, o modo como este cumpre as atividades de- diretor, como parceiros no pensamento colaborativo, pode muito SAMENTO
pende do senso de conexão entre o coreógrafo/diretor e o dramatur- bem tomar a forma de um desafio. DE NIN -
GUÉM
gista. Essa conexão permite que as maneiras particulares de pensar O outro ponto de consciência diz respeito às implicações e com- ––––––
M A A IKE
e fazer de um dramaturgista inspirem modos de trabalho que vão plicações do processo de criação do material. Esta consciência surge B L EEKER
ao encontro das necessidades de um processo criativo particular de do insight do dramaturgista em relação à maneira como o material
um diretor ou coreógrafo. Em um texto anterior (bleeker, 2003), começa a ativar associações e convida a modos de olhar e interpre-
sugeri que podemos compreender a conexão entre dramaturgista e tar. É necessário, ainda, haver compreensão sobre como esses mo-
coreógrafo ou diretor em termos de amizade e pensamento. dos podem ser colocados em uso, ou seja, sobre como jogar ou rom-
Em O que é a filosofia?, Deleuze e Guattari (1994) apresentam per com eles; possuir familiaridade com um bom número de fer-
uma nova compreensão para o exercício do pensar, sugerindo que ramentas analíticas, bem como a habilidade para utilizá-las; e, por
o pensamento é um processo que transpira entre as pessoas, e não fim, um conhecimento geral amplo.
uma atividade individual. O pensamento começa a partir do que Com seu modo de olhar, o dramaturgista está buscando cone-
chamam de charme; uma faísca que se acende entre pessoas, fa- xões entre os elementos da criação e a rede multidimensional de re-
zendo com que estas tornem-se amigas. Essa amizade não é base- lações sincrônicas e diacrônicas a partir das quais esses elementos
ada no compartilhamento das mesmas ideias. É, ao contrário, pró- irão aparecer para o público. Então, o modo dramatúrgico de olhar
prio e emergente desse impulso de ter algo a dizer a alguém. Tais requer um compromisso de investigar como os elementos da per-

 
impulsos resultam não somente em pensamento, mas também em formance podem ser vistos e interpretados. Refiro-me aqui à forma

 
pensamentos que se movem. Argumentei que os processos criati- complexa pela qual eles são incorporados em contextos de associa-
vos podem ser considerados exemplos desse pensar colaborativo. ção e interpretação – que, por sua vez, agregam conexões a experi-
O que os dramaturgistas particularmente trazem para esse pen- ências feitas fora do evento da performance –, organizando poten-
samento colaborativo é uma reflexão que resulta de um olhar es- ciais leituras e significações às quais um espectador pode chegar.
pecífico para o processo em questão. No caso da dança, todos os Algumas dessas leituras, interpretações e associações talvez cor-
envolvidos engajam-se na mesma criação, ainda que atuem de ma- respondam àquilo que o criador imaginou, mas outras certamente
neiras distintas, advindas de práticas diversas e com objetivos di- serão imprevisíveis. Algumas associações podem até ser úteis, ati-
ferentes dentro do processo. O modo dramatúrgico de olhar pode var novas ideias e abrir novos horizontes, enquanto outras podem,
ser caracterizado por dois pontos de consciência, informados pe- de alguma maneira, obstruí-los. Evidentemente, o olhar dramatúr-
las complementares experiência e treinamento dos dramaturgistas. gico não é exclusividade do dramaturgista. Algumas vezes, o coreó-
O primeiro é a consciência do potencial emergente daquilo que está grafo ou diretor, bem como outros envolvidos no processo criativo,
sendo criado. Isso envolve compreender quais direções a criação também adotarão esse modo de olhar. Convidar um dramaturgista
pode potencialmente seguir. Essa compreensão está baseada na fa- para entrar no processo criativo significa dar espaço para um par-
miliaridade do dramaturgista com os processos criativos e com a ceiro adicional; um diálogo (ou multidiálogo) com um parceiro cuja
estruturação do trabalho, ambos históricos e contemporâneos. Isso contribuição, eu argumento, é pensar o pensamento de ninguém.
não significa que esses modelos devem ser copiados; geralmente,
– –
152 153
Essa proposta de abordagem da criação de dança ou perfor- Aqui, defendo que a ideia de pensamento de Deleuze e Guattari PENSAR
O PEN -
mance em termos de pensamento não pretende intelectualizar a cri- como acontecimento no entre é útil na fabricação do conceito desse SAMENTO
ação artística, mas argumentar em favor da reconceituação do pen- modo de pensar. Além disso, se pensar é algo que acontece entre DE NIN -
GUÉM
samento como um processo que acontece no e por meio da prática pessoas, isso significa também que pensar acontece através de algo ––––––
M A A IKE
material. Aqui, práticas atuais de criação de dança e performance outro. Isto é, pensar parece acontecer, emergir por entre algo que B L EEKER
encontram-se com novos desenvolvimentos na teoria e na filosofia se faz meio entre os envolvidos. Esse meio pode ser a linguagem,
da percepção, na ciência cognitiva, na neurociência e na filosofia, certamente, mas Deleuze e Guattari (1994) explicitamente cogitam
engajadas em tentar conceituar o pensamento para além da repre- que o pensamento é capaz de acontecer por outros meios que não a
sentação, em termos de uma prática material cujo procedimento é linguagem. Discutem como o pensamento pode ocorrer, por exem-
a encenação.1 plo, pela pintura, a escultura ou o filme (deleuze, 1986, 1989).2
Conceber dança e performance como processos do pensamento Dança e performance também podem ser consideradas disposi-
realizados na prática material é reconhecer uma tendência para con- tivos do pensamento; suas características típicas, como a forte aten-
ceber as criações não pelo que podem representar, mas por como ção ao movimento e a constante transformação, fazem delas objetos
podem encenar ideias formuladas na prática performativa. Tais de- particularmente interessantes de pesquisa para as tentativas atuais
senvolvimentos estão relacionados, de muitas maneiras, a uma com- de conceituar o pensamento em termos de prática material que pro-
preensão do trabalho artístico como pesquisa. cede pela encenação.
A seguir, a partir da noção de processo, elaboro a relação entre Processos colaborativos de criação como a dança e a perfor-

 
prática dramatúrgica e pensamento. Primeiro, entretanto, ofereço mance devem ser considerados como processos de pensamento que

 
alguns pontos de referência para o pensamento apresentado aqui, acontecem entre pessoas e entre pessoas e coisas. A questão, então,
pontos processuais para a conexão entre prática dramatúrgica e du- passa a ser como conceber o pensamento em relação a tais práticas
ração. Dramaturgistas não lidam com coisas, mas com emergências, do pensar. Se o ato de pensar não acontece na cabeça do pensador
e o tempo, como duração, integra essas emergências. Pensar por autônomo, mas, antes, entre e mediante as especificidades da lin-
meio dessas emergências exige engajar-se com elas enquanto acon- guagem, o que emerge desse processo (pensamento) não pode ser
tecem e como acontecem entre os vários colaboradores do processo. considerado como exclusivo de um pensador e nem tampouco in-
dependente do meio no qual se forma. Volto-me aqui à considera-
ção de Hubert Damisch (1994) sobre a pintura como modo de pen-
1 Devemos pensar na grande influência do trabalho de Alain Berthoz (entre
sar para argumentar em favor de uma compreensão do pensamento
outros, The brain’s sense of movement. Cambridge, MA: Harvard University
como um conjunto de relacionamentos materializados na criação
Press, 2000); Brian Rotman (Becoming besides ourselves: the alphabet, ghosts,
and distributed human being. Durham, Londres: Duke University Press, 2008);
(neste caso, a pintura) e reativados pelo observador. O pensamento,
Katherine Hayles (em, entre outros, How we think. Digital media and contem- nesse contexto, não é uma ideia representada na pintura, mas o con-
porary technogenesis. Chicago; Londres: University of Chicago Press, 2012), junto de relações entre os elementos da pintura e entre a pintura
Brian Massumi (Parables for the virtual: movement, affect, sensation); e
Alva Noë (Action in perception), discutidos nesse texto. No primeiro ca-
pítulo, Noë apresenta uma visão geral da emergência da abordagem ativa da 2 Deleuze e Guattari apresentam uma elaboração extensiva da arte como modo de

percepção. pensamento.

– –
154 155
e o observador na forma proposta pela criação. Por extensão, com- e seus desdobramentos – como resultado da maneira como os espec- PENSAR
O PEN -
preender esse pensamento não é decodificar o que está represen- tadores encenam os pensamentos que constituem a performance – SAMENTO
tado, mas captar o que está proposto pela encenação da lógica do formam o objeto do olhar dramatúrgico. DE NIN -
GUÉM
conjunto de relações propostas. ––––––

processo
M A A IKE
A dança ou performance compreendidas como produtos de tais B L EEKER
práticas colaborativas consistem em pensamentos materializados. A habilidade de pensar em termos de processo é crucial para
Esses pensamentos não são de um só indivíduo envolvido na cria- qualquer pessoa envolvida na criação. E não se dá – pelo menos
ção, mas do processo colaborativo. São pensamentos de ninguém, não inicialmente – porque é necessário tempo para fazer alguma
e como tais, precisamente, são preocupações do dramaturgista. Ao coisa. Nem todo fazer é criação. Por exemplo, fazer um objeto a par-
contrário dos outros participantes da criação coletiva da dança e tir de um projeto preexistente, na maioria dos casos, não é criação,
da performance, o envolvimento do dramaturgista no processo cri- mas a execução de um plano prévio. Nesse tipo de fazer, o tempo
ativo geralmente não começa a partir de um aspecto particular da é a trajetória projetada a partir do design para o objeto. O tempo
criação, como a dança, os figurinos, a iluminação e a trilha sonora. da criação, por outro lado, é a duração do desdobramento daquilo
Como o coreógrafo ou o diretor, o dramaturgista engaja-se com a que está por vir. Criar não trata do que alguma coisa é no agora, ou
totalidade. Entretanto, diferentemente desses, o dramaturgista não mesmo sobre o que não é ainda, mas do processo de transformação
o faz a partir da posição de um autor ou criador do trabalho, di- em alguma coisa que não chegou ainda. Ser criativo envolve preci-
rigindo o desenvolvimento da criação (em diálogo com outros) de samente essa habilidade de reconhecer tal potencial.
 
acordo com sua escolha. Antes, relaciona-se com todos esses aspec- Uma das primeiras coisas que devemos desaprender quando cri-
 
tos e com as relações entre eles, como aspectos da criação de outros. amos performances é a tendência de olhar para os ensaios como se
O exemplo de Damish sobre a perspectiva será examinado para fossem performances, comparando o material do ensaio com uma
ilustrar como pensar o pensamento como efeito dessa constelação obra imaginária já pronta. Ou seja, é um erro olhar para o trabalho
de relações não é uma questão de reconhecimento nem de decodi- de ensaio como se fosse uma versão de um projeto já existente. Em
ficação do que está representado; envolve, em vez disso, encenar a vez disso, criadores devem aprender a olhar o potencial daquilo que
lógica do que está se apresentando. Essa lógica e como ela conduz aparece, tornando-se – em uma semana, duas ou um mês – algo
o público em seu engajamento com a performance é, pois, o objeto que, no presente, ainda não se conhece e não se pode conhecer.
do olhar dramatúrgico. Esse olhar requer um modo de pensar que não é exterior ao mate-
Mais adiante sigo uma sugestão de Alva Noë, e proponho os jo- rial e que tenta moldá-lo de acordo com ideias preexistentes, mas
gos linguísticos de Wittgenstein como modelo para o engajamento que emerge por meio dele e da interação com suas possibilidades.
dos espectadores com a performance; ou seja, o engajamento de- Requer, assim, que se entre na lógica daquilo que emerge e que se
les com a performance como um complexo conjunto de relações mova com ela.
sempre em transformação. Entendidas dessa forma, performances
abrem espaços cognitivos de percepção que emergem da interação
entre o que elas propõem e as nossas habilidades de engajamento,
antecipação e compreensão. Finalmente, sugiro que essa interação
– –
156 157
pensar entre verdade, uma manifestação visual dos modos de pensar que emer- PENSAR
O PEN -
Para Deleuze e Guattari, a escrita é o meio no qual e pelo qual giram no começo do Renascimento. Desde então, estes se torna- SAMENTO

o pensamento colaborativo deles se formou. Seus livros em coauto- ram tão profundamente impregnados e, por conseguinte, naturali- DE NIN -
GUÉM

ria, incluindo O que é a filosofia?, são produtos de uma colaboração zados, que a perspectiva passou a ser geralmente compreendida me- ––––––
M A A IKE
que Deleuze descreveu da seguinte forma: “[…] não trabalhamos ramente como uma técnica pictórica de reprodução adequada das B L EEKER

juntos, trabalhamos entre os dois. […]. Não trabalhamos, negocia- representações do espaço.
mos. Nunca tivemos o mesmo ritmo. Estamos sempre em defasa- Entretanto, afirma Damish, para compreender como as pintu-
gem” (deleuze; parnet, 1998, p. 25). Nos livros resultantes de sua ras pensam é importante perceber que o que está sendo apresen-
colaboração, entretanto, as tais diferenças de ritmo e quaisquer ou- tado por uma pintura em perspectiva não é uma representação do
tras não são aparentes. Ainda que elas possam ter existido durante espaço tal como ele existe fora da pintura, mas uma proposta so-
o trabalho e o pensamento colaborativo – e que possam ter sido im- bre o espaço formulada neste suporte. Entender a proposição não
portantes para se chegar a seus textos –, não são evidenciadas ao é uma questão de reconhecer o que está sendo representado pela
final. imagem, mas de captar o que Damisch descreve como a força inte-
Juntos, esses dois pensadores independentes escreveram textos lectual da própria imagem. Isso significa apreender a lógica na pro-
por meio dos quais apresentam uma série de pensamentos que não posição da qual a imagem é meramente uma materialização parti-
são nem de Deleuze nem de Guattari. Eles são a materialização do cular. Esta proposição consiste na relação que se estabelece entre
pensamento colaborativo deles na e por meio da escrita. De modo si- os vários elementos na imagem, assim como entre a imagem e o ob-

 
milar, é possível dizer que o pensamento dos indivíduos envolvidos servador. Perceber a lógica dessas relações é compreender o pensa-

 
na criação colaborativa, de modo geral, materializa-se em pensa- mento sobre espaço representado pela pintura.
mentos que não pertencem a ninguém, individualmente. Criar coi- Tal lógica é parte do discurso apresentado ao observador pela
sas juntos significa produzir pensamentos que não existiriam sem pintura. É parte de como esta nos fala. Essa fala não é o ato do pin-
o pensar de todos os indivíduos envolvidos no processo criativo. tor como um indivíduo abordando um observador através da obra;
Uma vez criados, estes pensamentos existem independentemente antes, esse discurso é encenado pela pintura através da forma como
de cada um daqueles indivíduos, como consequência do trabalho a obra é construída e dos modos pelos quais essa construção atinge
materializado entre eles. o público. Apesar de as pinturas discutidas por Damisch serem (su-
Como podemos começar a conceber pensamentos como entida- postamente) criadas por autores individuais, seu argumento funci-
des autônomas materializadas através de um linguagem artística? O onaria igualmente bem para trabalhos criados por múltiplos auto-
que é interessante, aqui, é a consideração de Damisch (1994) acerca res. O que importa é a proposição oferecida pela lógica das relações
da perspectiva como um paradigma ou estrutura básica de modos entre os vários elementos que compõem a pintura. Ele escreve:
de pensar, e a pintura como um modo de explorar as implicações O aparato formal colocado pelo paradigma da perspectiva é equiva-
desses modos de pensar. A perspectiva, como Damisch argumenta lente ao de uma frase, na qual é destinado ao sujeito um lugar numa
durante todo seu livro, não é apenas uma técnica que representa o rede previamente estabelecida que lhe confere significado, enquanto
espaço tridimensional na tela plana. Para o autor, a pintura é, na simultaneamente abre a possibilidade de algo como uma afirmação na
pintura: como Wittgenstein escreveu, palavras são nada mais que pon-
– –
158 159
tos, enquanto proposições são flechas que carregam significado, ou É através da dêixis, então, que acessamos a linguagem e come- PENSAR
O PEN -
seja, direção (damisch, 1994, p. 446). çamos a participar do que Wittgenstein chama de jogos de lingua- SAMENTO

É importante que a comparação entre perspectiva na pintura gem (o que será discutido mais tarde nesse texto). DE NIN -
GUÉM

e uma proposição na linguagem não tenha por propósito entender Similarmente, Damisch, também referindo-se a Wittgenstein, ––––––
M A A IKE
aquela como um texto que pode ser decodificado por meio da in- afirma que a perspectiva na pintura apresenta-se para nós através B L EEKER

dicação daquilo que os elementos individuais da pintura represen- de uma série de relações, e que a possibilidade de captar a lógica
tam. Antes, a similaridade estrutural entre uma proposição na lin- do que nos é apresentado implica assumir posições que nela estão
guagem e a perspectiva na pintura apontadas por Damisch chama implícitas.
atenção para aspectos do funcionamento em ambas que são negli- Por analogia à consideração de Damisch sobre a pintura, po-
genciados em explicações sobre como a significação surge (na lin- demos pensar que coreografias e performances apresentam para o
guagem ou na pintura) em termos de representação. O que a pers- público algumas proposições compostas de conjuntos complexos
pectiva e a linguagem compartilham é que, em ambas, o sujeito de relações entre muitos elementos do trabalho. Essas proposições
torna-se um efeito da estrutura de relações organizadas por cada direcionam-se a nós como público; falam-nos, convidam-nos a se-
uma. A perspectiva guir com elas e a aceitar sua lógica. Como tais, engajam-nos ati-
vamente em relação ao pensamento que emergiu do processo cola-
[…] possui em comum com a linguagem o fato de que em si e por si
borativo do pensar através da dança e da performance e que, além
institui e constitui a si mesma sob os auspícios de um ponto, um fator
análogo ao ‘sujeito’ (ou ‘pessoa’) na linguagem, sempre posicionado
disso, foi materializado na coreografia ou performance apresentada.

 
em relação ao ‘aqui’ ou ‘lá’, obtendo todas as possibilidades de movi- Dada a condição da sua emergência, esse pensamento não pode ser

 
mento de uma posição para a outra que essa relação proporciona (1994, atribuído a um indivíduo, ele é pensamento de ninguém; no entanto,
p. 53). concerne a todos e, especialmente, ao dramaturgista.
Isso é chamado, em linguagem, de dêixis, ou referência deíctica,
que se refere ao aspecto da linguagem que estabelece relações entre consciência
pessoas, assim como entre pessoas e objetos, aqui e lá, cedo ou tarde. No trabalho dramatúrgico, a tentativa de pensar o pensamento
Dêixis, pois, é o que nos permite entrar na linguagem assumindo a de ninguém enquanto este se materializa na dança-por-vir envolve
posição de eu ou você, aqui ou ali. Permite que nos posicionemos dois aspectos da consciência: (1) uma consciência sobre como o
em relação ao que está expresso na linguagem ou vice-versa, isto é, que está sendo criado chega ao público e (2) uma consciência sobre
que situemos aquilo que é dito com relação a nós mesmos. Por essa como essa abordagem induz o público a pensar junto com a per-
razão, Émile Benveniste (a quem Damisch faz referência) considera formance – essencialmente, produzindo outro processo de pensar-
a dêixis – e não a referência – crucial para fazer a comunicação em -entre. Assim, a forma dramatúrgica do pensamento de ninguém re-
linguagem possível (damisch, 1994, p. 20).3 quer a compreensão de que o que pensamos ver e ouvir no palco
passa a existir como um resultado da interação entre a abordagem
presente na performance e a resposta do público. Essa interação
3 O texto no qual Damisch está se referindo é Problems in general linguistics
envolve mais do que a mera compreensão de significado daquilo
(1971), onde Benveniste destaca a importância da dêixis.

– –
160 161
que é apresentado e dito. Envolve nossos corpos, dando corpo, ati- Em movimento, um corpo nunca está simplesmente lá. O movi- PENSAR
O PEN -
vamente, à proposição que nos foi apresentada e alucinando sobre mento emerge como uma trajetória no espaço, ou como uma ação SAMENTO
aquilo que percebemos estar ali. O que percebemos é sempre mais executada, apenas depois do fato e como resultado das relações de DE NIN -
GUÉM
e menos do que aquilo que se apresenta. O olhar dramatúrgico en- transformação do corpo em relação a si mesmo. Em cada momento ––––––
M A A IKE
volve uma busca dessa interação como o resultado do modo pelo discreto não há trajetória, somente transição. B L EEKER
qual somos convidados a dar corpo às proposições que são feitas Criar uma performance de teatro ou dança, portanto, é ence-
através da performance. nar um conjunto de relações em constante transformação a partir
O caráter relacional radical das proposições apresentadas no das quais ela emerge. Mais que, digamos, uma pintura ou um texto
palco é específico da performance. O que quero dizer com a expres- escrito, as proposições que constituem uma dança ou uma perfor-
são relacional radical é que a performance é um objeto especial de mance apontam para a observação de Wittgenstein (1953) – refe-
percepção porque, de fato não é um objeto. A performance não é rida por Damisch, acima citada – que afirma que proposições são
uma coisa; existe somente como um conjunto dinâmico de relações. como flechas e possuem significação de uma maneira que está inti-
É a partir dessas relações que aquilo que normalmente é conside- mamente ligada ao fato de que possuem direção. E essa direcionali-
rado performance emerge. Por exemplo, como os atores sabem, per- dade só se torna significativa depois de uma ação individual, movi-
formar um conflito dramático entre duas pessoas não é performar mento ou encontro relacional. Massumi captura essa condição tem-
o conflito em si, mas duas trajetórias irreconciliáveis que, precisa- poral em termos de uma formação reversa. Refletindo sobre o para-
mente, por razão de suas naturezas contraditórias, estão fadadas a doxo da flecha de Zenão, escreve:

 
esbarrar uma na outra. O conflito é o que emerge quando esbarram Uma trajetória não é composta de posições. Não decompõe-se: é uma
 
uma na outra. O processo de criação da performance implica a or- unidade dinâmica. Essa continuidade de movimento é de uma ordem do
ganização dessas trajetórias e a exploração de seu potencial para real que não é mensurável, espaço divisível que pode ser confirmado
interação. como atravessado. Não para até que pare: quando atinge o alvo. Então,
Performances são conjuntos dinâmicos de relações que se trans- e só então, a flecha está em posição. É somente quando a flecha atinge
formam com o tempo: relações entre performers; performers e es- a marca que a sua trajetória real poderá ser será traçada. Os pontos
paço; performers e o público; performers e seus figurinos; e a lista ou posições realmente aparecem retrospectivamente, trabalhando para
continua. É possível dizer que esse conjunto de relações dinâmicas trás, a partir do final do movimento (2002, p. 6).
em transformação pode se estender até as relações entre os perfor- A formação reversa descreve como as trajetórias de movimento
mers e eles mesmos. Um corpo em movimento, observa Brian Mas- emergem a partir dos corpos em transição constante, ou como o
sumi, não coincide consigo mesmo. Um corpo em movimento conflito entre dois personagens se manifesta a partir do modo com o
[…] coincide com sua própria transição: sua própria variação. A gama qual esbarram um no outro (literal ou figurativamente). A formação
de variações em que pode estar envolvido não está presente em qual- reversa é situada. Acontece no momento em que a determinação
quer movimento dado, muito menos em qualquer posição que o movi- sociocultural informa o processo que emerge e torna-se parte de
mento atravesse. Em movimento, um corpo está numa relação imedi- como o conflito, ou a trajetória da flecha, surge para o observador.
ata e em desdobramento com seu próprio potencial não-presente para Nesse momento, uma trama de movimentos e relações forma-se na
variar (2002, p. 4).
– –
162 163
percepção e memória do observador. Essas tramas de percepções vés do uso. Jogando, aprendemos a compreender a linguagem, no PENSAR
O PEN -
passadas de movimentos participam na emergência que se cristaliza sentido de que aprendemos como é utilizada a linguagem e para SAMENTO
entre o mover e o perceber. que é utilizada. Ao participar do jogo, nossa experiência vai sendo DE NIN -
GUÉM
O movimento que está presentemente sendo percebido sempre reestruturada enquanto vamos aprendendo a antecipar e a respon- ––––––
M A A IKE
aparece para nós justaposto a tramas de movimentos vistos anteri- der às questões que nos são dirigidas. Jogos de linguagem, pois, B L EEKER
ormente; ele é informado pela nossa compreensão do movimento abrem-nos espaços intelectuais. Esses espaços não preexistem ao
como parte de nossos modos culturais específicos de pensar; uma momento em que entramos neles, mas emergem no uso da lingua-
compreensão determinada pelas capacidades cognitivas de percep- gem, por intermédio das formas pelas quais a linguagem possibilita
ção e habilidades que reunimos para que possamos nos envolver modos de engajamento e interação (noë, 2007, p. 123–125).
com o que está sendo apresentado. Como Alva Noë afirma, a partir Semelhantemente, Noë afirma que, quando vemos dança, con-
da perspectiva da filosofia da mente, “o mundo se mostra para nós templamos uma situação na qual podemos entrar e para a qual, de
em experiência somente de acordo com o modo como compreende- fato, somos convidados a entrar: “Quando vemos dança, vemos uma
mos, ou seja, conhecemos ou antecipamos o próprio mundo” (noë, situação na qual podemos, para a qual somos convidados, na qual
2007, p. 121). precisamos entrar” (noë, 2007, p. 125, grifo do autor) Esse convite
é lindamente encenado na famosa criação Artifact (1984), de Wil-
jogo liam Forsythe, na qual a personagem Mulher com Figurino Histó-
A afirmação de Noë de que o mundo se revela na experiência so- rico aborda o público diretamente, dizendo “deem um passo aden-

 
mente quando o compreendemos não é uma redução da experiência tro” e “bem-vindos ao que vocês imaginam ver”. Assistindo a Arti-

 
àquilo que pode ser decodificado e, portanto, conhecido, mas sim fact, os espectadores encontram-se literalmente numa situação em
uma expansão do que significa “conhecer” em termos de uma prá- que são convidados a adentrar o mundo do palco e engajar-se com o
tica incorporada, de engajamento com aquilo com que nos confron- que ali é apresentado. Através da verbalização do convite para “dar
tamos. Se o mundo se apresenta em experiência somente quando um passo adentro”, Artifact não somente conduz explicitamente o
o compreendemos, conhecemos ou antecipamos, isso também le- que geralmente está implícito e não dito, mas também destaca o ca-
vanta uma antiga questão filosófica, a saber: como podemos perce- ráter corporificado do engajamento do público na performance; co-
ber algo se necessitamos já conhecê-lo para percebê-lo? loca em primeiro plano o fato de que a percepção é um processo
Noë empenha-se em responder tal questionamento através da de construção de mundo que envolve vários sistemas perceptivos
ideia de jogos de linguagem de Wittgenstein, de 1953, para quem o simultaneamente.4
significado de uma palavra está no seu uso. Ele explica isso compa-
rando a linguagem ao jogo. O significado da linguagem não é uma 4 Tomo a noção dos sistemas perceptivos de J. J. Gibson, em The senses consi-

propriedade isolada das palavras em si, mas depende do contexto dered as perceptual systems. Nesse livro, Gibson desenvolve uma abordagem
da percepção sensorial na qual os sentidos não funcionam separadamente, mas
abrangente dos jogadores que as utilizam e do jogo no qual se uti- como sistemas perceptivos. Compreendidos desse modo, os sentidos não são
lizam. Conhecer ou compreender a linguagem envolve entrar no sensores passivos ou canais de qualidade sensorial, mas modos de atenção.
jogo, participar, e, assim, descobrir o significado das palavras atra- Além disso, compreendidos como sistemas perceptivos, não são sistemas mutu-
amente exclusivos ou separados para escuta, visão, toque, olfato. Ao contrá-

– –
164 165
Assim como os jogos de linguagem abrem espaços intelectu- dois ou três de uma vez só, e no inverno temos às vezes nada menos PENSAR
O PEN -
ais que emergem do nosso engajamento com a linguagem, a dança do que cinco noites juntas… para esquentar, naturalmente. SAMENTO
convida-nos a entrar em espaços que se apresentam como experiên- – Cinco noites são, então, mais quentes do que uma noite? – DE NIN -
GUÉM
cias somente a partir do nosso engajamento com o que está sendo aventurou-se Alice a perguntar. ––––––

apresentado. A forma como esses espaços aparecem vai depender – Cinco vezes mais quente, é claro. M A A IKE
B L EEKER
– Mas, pela mesma regra, deviam ser cinco vezes mais frias…
de nossa habilidade de engajamento, antecipação e compreensão.
– Exatamente! – gritou a Rainha Vermelha. – Cinco vezes mais
Finalmente, Artifact encena esse engajamento como um encon-
quentes e cinco vezes mais frias… tal como eu sou cinco vezes mais
tro lúdico que rompe as expectativas e nos desafia a jogar um jogo rica do que você e cinco vezes mais inteligente!
que, de certa forma, parece ser familiar, mas que não acontece ne- Alice suspirou e desistiu da discussão. “Parece exatamente uma adi-
cessariamente de acordo com as regras que conhecemos, como no vinhação sem resposta!”, pensou.
jogo de xadrez em que Alice se encontra envolvida em Through the
Tendo viajado através do espelho, Alice participa de um jogo
looking glass Alice através do espelho; (carroll, 1994, p. 151), cujas
que acontece fora do seu enquadramento comum de referência.
regras não são exatamente as esperadas, mas precisam ser desco-
Aqui, não somente o xadrez, mas a própria realidade é um jogo bem
bertas enquanto se joga:
diferente. Essas diferenças confrontam Alice com a trama de inteli-
– Não vamos discutir – disse a Rainha Branca em tom ansioso. – Qual gibilidade pela qual ela está acostumada a entender suas experiên-
é a causa do relâmpago? cias. Mesmo atrás do espelho, o xadrez (e, por extensão, a realidade)
– A causa do relâmpago – disse Alice em tom decidido, pois isso
não está exatamente de acordo com as regras tais como ela as co-
 
ela tinha certeza que sabia – é o trovão… não, não! – corrigiu-se apres-
nhece, regras estas que fornecem a Alice a perspectiva daquilo que
 
sadamente – eu queria dizer o contrário.
– É tarde para corrigir-se – disse a Rainha Vermelha. está acontecendo, uma posição a partir da qual ela deve interagir
– Uma vez que tenha dito qualquer coisa, é definitivo, e você tem com a situação. Similarmente, Artifact confronta seu público com
que aguentar as consequências. uma performance que evoca uma história de balé do século xix, em-
– Isso me faz lembrar… – disse a Rainha Branca, com os olhos bai- bora seja uma história em que as regras do jogo tenham sido retor-
xos, e cruzando e descruzando as mãos, nervosamente – que tivemos cidas para confrontar ludicamente o público com seus modos habi-
uma trovoada daquelas na terça-feira passada… isto é, numa das terças- tuais de se envolver com uma performance – modos que estão con-
-feiras da semana passada. dicionados pelas convenções do balé, do palco italiano e da perfor-
Alice ficou perplexa. – Em nosso país – observou – só temos um mance teatral em geral. Em Artifact, nossa familiaridade com essas
dia da semana de cada vez. convenções oferece um ponto de entrada, uma maneira de estabe-
A Rainha Vermelha comentou: – Mas que calendário pobre! Pois
lecer relações com a performance. Ao mesmo tempo, essa relação
aqui, na maior parte do tempo, os dias e as noites são em grupo de
é precisamente o objeto que se questiona e com o qual o jogo é es-
rio disso, eles interagem na constituição de um mundo que é visível, audível
tabelecido. Tal performance utiliza-se dos recursos do teatro para
e tocável ao mesmo tempo. A proposta de conceber os sentidos como sistemas expor e desafiar as proposições apresentadas pelas performances
perceptivos é parte da compreensão de um processo ativo de engajamento com mais convencionais, enquanto nos leva, simultaneamente, a repen-
o mundo, uma ideia a ser desenvolvida a partir do que viria a ser conhecido
sar ludicamente esses mesmos recursos.
como “abordagem ecológica da percepção”.

– –
166 167
Artifact é construído ao redor de palavras que são organizadas um resultado da interação entre o direcionamento apresentado pela PENSAR
O PEN -
em diagrama e impressas num programa. Na performance, pala- performance e a resposta do público. Em Artifact, esse direciona- SAMENTO
vras são usadas como ferramentas para desconstrução da lingua- mento é explicitado de um maneira divertida, sobretudo quando a DE NIN -
GUÉM
gem: a das palavras e a da multimídia, do palco. Em Artifact, essa Mulher com Figurino Histórico desafia o público a captar a lógica ––––––
M A A IKE
linguagem do palco é o que está em jogo. No programa, as palavras da proposição apresentada pela performance através de um envol- B L EEKER
são acompanhadas por definições de dicionários, como que para as- vimento multissensorial e complexo:
segurar seu significado. Durante a performance, são pronunciadas Boa noite. Lembram de mim? Tentem não esquecer do que estão vendo
pela Mulher com Figurino Histórico e por um homem de terno. Eles e vocês vão pensar o que ouço. Tentem não lembrar o que eu estou
usam as palavras de Artifact para produzir frases gramaticalmente fazendo e vou dizer o que vocês pensaram. Tentem não esquecer o que
corretas e utilizam essas falas para sugerir que as frases devem fa- estão ouvindo e vão ver o que penso. Tentem não lembrar o que estou
zer sentido em relação àquilo que está acontecendo no palco. dizendo e vou ouvir o que vocês fazem. Tentem não esquecer o que
O grau de relação das palavras com o que se vê no palco, en- estão fazendo e vão ouvir o que vocês dizem. Tentem não lembrar o
tretanto, é difícil de perceber. Os personagens investigam várias que eu estou vendo e vou ver o que vocês pensam. Entendem o que
combinações possíveis entre as palavras, como dadas no diagrama, quero dizer?
sendo usadas recorrentemente em diferentes ordens, ou repetindo
as mesmas estruturas sintáticas usando diferentes palavras. En- Referências
quanto a referência torna-se cada vez mais problemática, o dis- • artifact. Coreografia: William Forsythe. Música: Johann Sebas-
 
curso no palco se torna dêitico ao extremo. A performance, então, tian Bach, Eva Crossman-Hecht, Frankfurt, Alemanha: Ballett
 
parece provar o ponto de Benveniste discutido anteriormente: a Frankfurt. 5 de dezembro de 1984. Dança.
dêixis, e não a referência, é essencial para que a comunicação em
linguagem se dê. Mesmo que frequentemente seja difícil afirmar a • benveniste, Émile. Problems in general linguistics. Coral Gables:
que se referem as palavras no palco, o uso desses signos linguísti- University of Miami, 1971 [Edição brasileira: Problemas de linguís-
cos faz sentido como um direcionamento que convida à resposta, tica geral I. Campinas: Pontes, 1991].
ainda que não seja claro o que significam. Sentido e subjetividade • bleeker, Maaike. Dramaturgy as a mode of looking. Women &
aparecem através do jogo entre eu e você como posições produzi- performance: a journal of feminist theory, edição 26, n. 13.2, 2003.
das, enquanto funções de signos linguísticos, por meio da condu- • ______. Visuality in the theatre: the locus of looking. Basingstoke:
ção de um direcionamento através de sinais visuais; da direção das Palgrave Macmillan, 2008.
mãos e olhos; da coreografia dos corpos no espaço; e das constru-
ções de perspectiva e ponto de vista.5 • carroll, Lewis. Through the looking glass. Londres: Penguin Bo-
Artifact apresenta, então, uma análise autorreflexiva da perfor- oks, 1994 [Edição brasileira: Aventuras de Alice. São Paulo: Sum-
mance de dança como um conjunto dinâmico de relações em que o mus, 1980].
que pensamos que vemos e ouvimos no palco passa a existir como • damisch, Hubert. The origin of perspective. Cambridge, Mass.: mit
Press, 1994.
5 Para uma versão mais extensa dessa análise, ver Bleeker, 2008, capítulo 2.

– –
168 169
• deleuze, Gilles. Cinema 1. The movement-image. v. 1. Minneapo- PENSAR
O PEN -
lis, mn: University of Minnesota, 1986 [Edição brasileira: Cinema: SAMENTO
a imagem-movimento. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985]. DE NIN -
GUÉM
––––––
• ______. Cinema 2. The time-image. v. 2. Minneapolis, mn: Uni- M A A IKE
versity of Minnesota, 1989 [Edição brasileira: Cinema 2: imagem- B L EEKER

-tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, 2005].


• ______; guattari, Felix. What is philosophy? Nova York: Colum-
bia University Press, 1994 [Edição brasileira: O que é a filosofia?
São Paulo: Editora 34, 1992].
• ______; parnet, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998.
• gibson, James J. The senses considered as perceptual systems. Lon-
dres: George Allen & Unwin, 1968.
• massumi, Brian. Parables for the virtual: movement, affect, sensa-
tion. Durham, nc: Duke University Press, 2002.
• noë, Alva. Action in perception. Cambridge, Mass.: mit Press, 2004.
• ______. Making worlds available. In: gehm, S.; husemann, P.; von  
 
wilcke, K. Knowledge in motion. Perspectives on artistic and sci-
entific research in dance. Piscataway, nj: Transcript Verlag; Tran-
saction Publishers, 2007.
• wittgenstein, Ludwig. Philosophical investigations. Oxford:
Blackwell, 1953 [Edição brasileira: Investigações filosóficas. São
Paulo: Abril Cultural, 1984].

– –
170 171
Olhar
“E
BOUD I ER , Mario n et al. CALDAS ,
D e q uoi l a d ra mat urgi e Pau lo; u sou um olhar e uma leve saliência […]; um olhar
est -el l e l e nom? Pari s :
L’Harmat t an, 2 014. p.
GADELHA, um pouco deslocado em relação às diferentes ativida-
1 31 - 1 34 . Er n es t o.
D a nça e dra -
des concretas que se buscam doravante no palco dos
maturgia [s]. ensaios […]; um olhar crítico, mas aberto”1 . Muitos são os que, pro-
São Paulo: curando definir o dramaturgista, tais como Christian Biet e Chris-
nex us, 20 16 .
tophe Triau, começam por convocar a palavra “olhar”, sendo o dra-
maturgista, em primeiro lugar, aquele que observa um processo de
 criação, beneficiando-se de um recuo e de uma distância maior que
 os intérpretes. Esse olhar pode ser de natureza socrática, associado
a um processo maiêutico subjacente, nas palavras de Olivier Hes-
pel: para ele, com efeito, o dramaturgista “[…] é alguém que olha
outra pessoa criando alguma coisa e que tenta criar uma ligação
entre as etapas da criação”.2 Ele próprio pode ser portador de um
pensamento autônomo, como explica Charlotte Farcet:
O dramaturgista é um olhar, no sentido do olhar de um espírito. Ele é
um pensamento que se ativa, que analisa, descodifica, descasca, a partir
da sua sensibilidade, reflete no sentido do reflexo de um espelho — ou

1 BIET; Christian; TRIAU, Christophe. Le dramaturge. in Qu’est-ce que le

théâtre? Paris: Gallimard, 2005. p. 35–36. (Coleção Folio Essais).


2 HESPEL, Olivier apud CARRÉ, Alice. Postures et pratiques dramaturgiques. In:

Agôn, Laboratoire de recherche, Danse et dramaturgie, Dramaturgie et proces-


sus de création. Disponível em:<http://agon.ens-lyon.fr/index.php?id1̄
210>.
Acesso em: 17 jul. 2010.

– –
172 173
de uma superfície de água – a fim de reenviar ao encenador o que ele procurando sempre conservar a memória das mudanças. Enquanto olhar

vê.3 o grupo concentra-se no imediato, ele permite retomar as reflexões


De qualquer maneira, tal olhar está associado a uma certa dis- da equipe, tirá-la de suas obsessões e de seus impasses.
tância: ao mesmo tempo no exterior e no interior da criação, ele Frequentemente, esse olhar é orientado pelo chefe do projeto,
mantém suas distâncias com o objeto que se cria. Afastado dos de- que delega algumas tarefas ao dramaturgista. É assim, segundo Oli-
safios de ordens demasiadamente emocional ou pessoal, preserva- vier Hespel, que a coreógrafa Meg Stuart trabalha com Bart Van
ria, desse modo, uma suposta neutralidade. Den Eynde. Essa artista recusa o trabalho de consulta prévia com o
Espécie de vigia, o dramaturgista observa com recuo e cuida da dramaturgista; este último estará, então, presente em todos os en-
coerência do conjunto: funcionando como uma baliza, ele também saios para fazer emergir as linhas dramatúrgicas:
preserva o espetáculo das guinadas que o fariam desviar dos primei- Todos os dois estão a olhar, mas com objetivos diferentes. Neste ponto,
ros desejos, dos ângulos calculados. É, ainda, aquele que, graças à constitui-se uma dialética. Ele olha as interações, e isso, eventualmente,
sua distância de observador, pode detectar um acidente que reno- pode contar, significar. A coreógrafa olha mais a gestão do espaço, o
vará o sentido. Associado à aparição dos acasos, é um olhar lúcido, ritmo. […] Neste caso, não existe exatamente um olhar exterior, mas
capaz de ver o que excede do quadro. Yannic Mancel expressa-se dois olhares encarregados de funções diferentes.5
nesse sentido: Existem alguns casos onde o encenador, igualmente intérprete,
O olhar afiado do conselheiro artístico ou dramatúrgico está aí, de delega a outrem o papel de “olhar exterior”. Esta é uma prática re-
acordo com a bela expressão de Jacques Lassalle, para pós-racionalizar corrente no circo e na dança, onde os artistas são frequentemente
 
o inesperado e o imprevisto, o aleatório e os acidentes desse processo encenadores e intérpretes, onde um artista convidado para alguns
 
empírico. Ele está presente para pensar — tanto no sentido ótico como ensaios assume um papel dramatúrgico.
no intelectual — o impensado.4 O artista de circo Mathurin Bolze descreve essa posição que ele
Seu olhar tem de peculiar o fato de ser abrangente, de estender- ocupa regularmente:
-se sobre a totalidade do espetáculo. Esse ponto de vista panorâ- Esse projeto, eu não o concebi nem o alimentei na sua concepção pri-
mico lhe possibilita um campo de visão ideal, mais largo do que o meira. Eu olho um primeiro estado do trabalho que se deu muito bem
do encenador. O dramaturgista pode decompor seu olhar e passar sem mim até o presente momento. Frequentemente, ser somente o
à vontade do detalhe ao conjunto, deslocar-se na sala para obser- olhar exterior consiste em […] ‘fazer as costuras’. De acordo com o es-
var a partitura de cada praticante. O olhar do dramaturgista se de- tado de avanço das obras, podemos ajudar a escrever ou fazer emergir
novas sequências, limpar outras. Às vezes, trata-se de colocar em ques-
seja múltiplo, aberto e preserva a pluralidade, recusando o estabe-
lecimento de um ponto de vista único. Olhar igualmente demorado,

3 FARCET, Charlotte. H2O. In: COUTANT, Philippe. Du dramaturge. Nantes: Édi- 5 HESPEL, Olivier apud CARRÉ, Alice. Postures et pratiques dramaturgiques. In:

tions Joca Seria, 2008. p. 42. (Coleção Les carnets du grand T). Agôn, Laboratoire de recherche, Danse et dramaturgie, Dramaturgie et proces-
4 MANCEL, Yannic. Dramaturgie à la française: la cinquantaine décomplexée. In: sus de création. Disponível em:<http://agon.ens-lyon.fr/index.php?id=1210>.
L’Ère de la mise en scène, Théâtre aujourd’hui, n. 10, 2005, p. 18. Acesso em: 17 jul. 2010.

– –
174 175
tão escolhas de espaço, de dramaturgia na ordem das sequências, por dem ver, sentir, pensar, gostar ou desgostar”. Em consonância com olhar

exemplo, para invertê-las […]. O olhar exterior reinterroga.6 o Espectador emancipado9 de Jacques Rancière, ela preconiza: “[…]
Diferenças de grau intervêm, pois, na implicação do dramatur- confiarmos que os espectadores são mais ativos do que podemos
gista dentro do espetáculo. Sua posição de recolhimento ou de re- admitir”.
cuo parece, porém, característica da expressão “primeiro especta- Assim, ela se opõe a toda “[…] pressuposição paternalista de
dor” que frequentemente associamos a ele. Essa posição de inter- que o público não poderá compreender se não for adequadamente
mediário entre o artista e o público é desenvolvida por vários co- – dramaturgicamente – guiado”. Restringindo a atividade do drama-
reógrafos que veem o dramaturgista a garantia do equilíbrio entre turgista ao centro da criação e da sua equipe, Bojana Cvejić recusa-
o plano de leitura interno ao processo de criação e o plano externo -lhe um papel de antecipador das reações do público. Recusar esse
que se oferece ao público: papel de espectador-mor tende a afirmar o papel artístico do dra-
maturgista, fazer de seu olhar um eixo essencial à criação.
Numa criação, é preciso dar sentido à equipe, aos intérpretes, para que
Em torno desses debates, a questão da identidade do dramatur-
cada um possa moldar seu próprio processo de criação. Paralelamente,
é necessário zelar pela construção de um plano de leitura para os dife-
gista — como artista ou como intermediário entre a equipe e o pú-
rentes tipos de público aos quais iremos apresentar o espetáculo. […]. blico — é questionada novamente. Como esse trabalho dramatúr-
Eu acredito que é nesse lugar que o dramaturgista age, ele tem sempre gico nunca está definido claramente de antemão, é sempre a rela-
que manter a sua atenção na composição desses dois planos.7 ção entre a equipe e o dramaturgista que vai determinar a maneira
como esse olhar vai se pôr e o lugar que ele vai ocupar na criação.
Essa concepção do dramaturgista como primeiro espectador, ex-
posta por Elsa Decaudin nos encontros do festival de Uzès, é, no en-  
tanto, criticada, quando associa a dramaturgia à pedagogia. A dra-  
maturgista em dança Bojana Cvejić, no ensaio chamado O drama-
turgista ignorante8 , recusa a ideia segundo a qual “[…] o dramatur-
gista se coloca na posição professoral ou sacerdotal, daquele que
sabe melhor, de quem pode prever o que as pessoas da plateia po-
6 BOLZE, Mathurin. In: Dramaturgie du Cirque. Encontro apresentado por Aurélie

Coulon e Sylvain Diaz. Agôn. Le laboratoire, cirque et dramaturgie [revista


eletrônica]. Disponível em: <http://agon.ens-lyon.fr/index.php? id=1220>.
Acesso em: 22 set. 2010.
7 DECAUDIN, Elsa apud CARRÉ, Alice. Postures et pratiques dramaturgiques.

Agôn, Laboratoire de recherche, Danse et dramaturgie, Dramaturgie et proces-


sus de création. Disponível em: <http://agon.ens-lyon.fr/index.php?id=1210>.
Acesso em: 17 jul. 2010.
8 CVEJIĆ, Bojana. Le dramaturge ignorant. Agôn, Laboratoire de recherche, Danse

et dramaturgie. Disponível em: <http:// agon.ens-lyon.fr/index.php?id=1751>. 9 RANCIÈRE, Jacques. Le spectateur émancipé. Paris: La Fabrique éditions, 2008

Acesso em 13 jul. 2011 [N. do E.: Consultar o artigo O dramaturgista ignorante [N. do E.: edição brasileira: O espectador emancipado. São Paulo: Martins
na presente publicação (p. 91)]. Fontes, 2012].

– –
176 177
A atividade dramatúrgica nem sempre
envolve o ofício efetivo de um
dramaturgista; portanto, trato menos
da função do dramaturgista do que
da dramaturgia como uma atividade
que é própria ao processo artístico.
A dramaturgia ocupa-se com o
desenvolvimento de um terreno comum para
a produção de sentido, o que gostaria
de considerar como uma responsabilidade
comum a todos os colaboradores.
O p r o c es - CALDAS ,
P u b l icad o com o

Jeroen Peeters
t ít u lo L e s p roce s s us Pa u lo ;
trecho de: d ra m at urg iq ue . I n :
GADELHA,
so dra-
N o uvel l es d e D a n s e.
E r n e st o .
Heterogeneous Dramaturgies D o s sie r D ans e et
Danç a e d ra-
D ra m at urg ie . n. 3 1 .
[Maska, n. 131-132, 2010, p. 17.]
m atú r g i -
Br uxe las : C ont re d ans e , maturgi a[s].
1997 . S ã o Pa u l o :
n ex u s, 20 1 6.

co
––––––
Marianne
Va n
K e r k h ov e n

– –
178 179
Marianne Van Kerkhoven O PrOCESSO Até agora, eu trabalhei sobretudo como dramaturgista de teatro.
d r a m atú r g i C O
(1946-2013) foi, por décadas,
–––––– Minha experiência como dramaturgista de dança é consideravel-
uma das mais influentes
figuras no campo das
M A r i A n n e vA n mente restrita. Entre 1985 e 1990, colaborei nessa função com
artes performativas na Europa.
k e r k H ov e n
cinco produções consecutivas de Anne Teresa De Keersmaeker:
Ensaísta e dramaturgista, Bartok/Aantekeningen, Verkommenes Ufer/Medeamaterial/ Lands-
atuou junto a coreógrafos chaft mit Argonauten, Mikrokosmos, Ottone, Ottone e Stella. Par-
como Anne Teresa De tindo dessa experiência restrita com uma só coreógrafa, quero ten-
 
Keersmaeker, Jan Lauwers e
tar sublinhar algumas anotações no que concerne à noção de dra-
 
Jan Ritsema. Foi editora-chefe
do periódico Theaterschrift maturgia de dança hoje.
(1991-1995).
– 1.
“A ‘dramaturgia’ — como há pouco tempo a chamamos — está,
claramente, na base de toda criação artística, quer se trate de mon-
tar uma peça ou de dar um concerto. Nós lidamos o tempo todo
com dramaturgia, até quando nós não lidamos com ela. Desde que
se saiba no que consiste a dramaturgia, pode-se vê-la e encontrá-
-la em todos os lugares. É uma continuidade”. Jan Jorris Lamers, do
grupo de teatro de Amsterdam Maatschappij Discordia.

2.
“Desde que se saiba em que consiste a dramaturgia…”
Podemos lidar com dramaturgia há anos e ainda assim não ser-
mos capazes de lhe dar uma definição clara, de expressar o que ela
– – –
18036 181
representa exatamente. Se procurarmos num dicionário a palavra estruturados como uma “soma” de vários “números”; ele submeteu O PRO -
CESSO
“dramaturgia”, encontraremos algo como “as regras, a doutrina ou a virtuosidade às necessidades da obra na sua integralidade, come- DRAMA -
a teoria (ou a elaboração dessa teoria) da arte dramática”. Creio que çou a libertar a dança de sua escravidão em relação à música… A TÚRGICO
––––––
o trabalho de um dramaturgista não tem nada a ver com doutrina ideia de uma dramaturgia em dança provavelmente sempre existiu, M A RI A NNE
VA N KE -
ou teoria ou com aplicação de regras, pelo contrario; no trabalho mas é somente nas fases mais recentes da história da dança que ela RK H OVEN
dramatúrgico, não se trata de destilar e depois aplicar modelos que se tornou “uma prática consciente”.
adquirimos analisando toda uma série de exemplos práticos ou de
representações; é mais precisamente o inverso: é buscar um cami- 4.
nho pelo qual conseguimos “arrumar” e estruturar todo o material O tipo de dramaturgia que me é familiar nada tem a ver com “a
que aparece “sobre a mesa” ao trabalharmos numa produção, ten- dramaturgia do conceito”, que desde Brecht está muito em voga no
tando, sobretudo, “não refazer hoje o que fizemos ontem”. Eu pre- teatro alemão. Nesta filosofia de trabalho, um conceito é elaborado
firo então, essa definição extremamente simples da dramaturgia for- pelo dramaturgista em colaboração com o encenador, conceito de
mulada pelo dramaturgista francês falecido recentemente, conhece- uma interpretação do texto; esse trabalho se faz antes dos ensaios
dor de Brecht, Bernard Dort: “a dramaturgia: é uma consciência e começarem; todas as escolhas que se impõem ao longo do processo
uma prática”. de ensaio são submetidas a um teste de validade ou de credibili-
dade em relação a esse conceito: isso decide a rejeição ou aceitação
3. dessas escolhas. Sabemos antecipadamente onde queremos chegar;
Nas artes da cena no nosso país, o termo “dramaturgia” não   traçamos um caminho para alcançar esse resultado.
foi integrado por séculos. O primeiro dramaturgista remunerado   O tipo de dramaturgia com a qual me sinto ligada, e que ten-
fez sua aparição no teatro, na região da Flandres, em 1968; nesse tei aplicar tanto no teatro como na dança, tem um caráter de “pro-
momento, ainda não se fala de dramaturgia de dança. Eu não sei cesso”: escolhemos trabalhar com materiais de origens diversas
quando o dramaturgista ou o conselheiro literário ou artístico apa- (textos, movimentos, imagens de filmes, objetos, ideias etc.); o “ma-
receu no teatro francófono. Existem atualmente dramaturgistas de terial humano” (os atores/os bailarinos) é decididamente o mais im-
dança remunerados em Flandres, Bruxelas ou na Valônia? Pode-se, portante; a personalidade dos “performers”, mais do que suas capa-
sinceramente, duvidar disso. cidades técnicas, é considerada como fundamento da criação. O en-
A Alemanha tem provavelmente a mais longa tradição em ma- cenador ou o coreógrafo se lança no trabalho com esses materiais;
téria de dramaturgia. Em 1768, Lessing escrevia Die Hamburgis- durante o processo de ensaio, ele/ela observa como esses materiais
che Dramaturgie (Dramaturgia de Hamburgo) e, quase dois séculos se comportam e se desenvolvem; é somente no final desse processo
mais tarde, foi sobretudo pela prática de Bertolt Brecht que a noção que aparece lentamente um conceito, uma estrutura, uma forma
de “dramaturgia” integrou-se ao teatro alemão. mais ou menos definida; essa estrutura final não é conhecida de an-
No que diz respeito à dança, podemos talvez considerar o funda- temão.
dor do balé clássico, o mestre de balé francês Jean-Georges Noverre,
como o primeiro dramaturgista de dança: seus balés não eram mais

– –
182 183
5. eu me sentia enganada: eu nunca via na cena aquilo que tinha aca- O PRO -
CESSO
Existe uma diferença entre a dramaturgia de teatro e a drama- bado de ler. O momento no qual o príncipe e a princesa declara- DRAMA -

turgia de dança? A primeira parte geralmente de um texto, a se- vam seu amor era “estendido” através de um pas de deux inteiro. TÚRGICO
––––––

gunda de uma música; a primeira trabalha com palavras que “sig- Quando então acontecia o “eu te amo”? Eles dançavam juntos, fa- M A RI A NNE
VA N KE -
nificam”; a segunda com movimentos e sons dos quais só podemos ziam muitas coisas, mas o momento que eu esperava não existia. RK H OVEN

“suspeitar a significação”. Os materiais são diferentes, a história das O que eu procurava enquanto criança era a transformação literal
duas disciplinas é diferente e, no entanto, existem semelhanças en- da língua (da literatura) em movimento, em gestos (em dança). Não
tre o trabalho do dramaturgista no teatro e seu trabalho na dança. havia relação direta entre eles nem na cena nem na realidade. Essa
A dramaturgia tem sempre alguma coisa a ver com estruturas: experiência me convenceu muito cedo de que a dança não era o
trata-se de “controlar” o todo, de “pesar” a importância das partes, meio o mais adequado para “contar estórias”.
de trabalhar com a tensão entre as partes e o todo, de desenvolver Steve Paxton disse:
a relação entre os atores/bailarinos, entre os volumes, as disposi- A vida — minha vida — não é uma estória, ela não tem um começo e
ções no espaço, os ritmos, as escolhas dos momentos, os métodos fim interessantes. Ela continua e continua e continua. As pessoas que
etc.; resumindo, trata-se de composição. A dramaturgia é o que faz eu conheço na vida real e que contam estórias, muitas vezes mentem.
“respirar” o todo. Existe uma diferença entre a manipulação das va- Elas exageram: talvez essa seja a forma como uma estória é. Estórias
são uma forma de arte. Na vida real, eu não tenho aventuras.
riações (em música e em movimento) em A Mesa Verde de Kurt Jo-
oss (o motivo da “Morte” por exemplo) e a manipulação das vari- Desenvolver e contar histórias parece ser uma necessidade do ho-
 
ações (no texto) em Esperando Godot de Samuel Beckett (o “Então mem para controlar o mundo/a vida. As histórias se referem fre-
 
vamos/Vamos lá” — eles não se mexem, por exemplo)? Também na quentemente a mitos, a situações primitivas. Porém, como elas são
composição de um concerto — a escolha e a sequência das músicas recontadas e recontadas, nos aprisionam muitas vezes em clichês,
—, podemos falar de dramaturgia (por exemplo como os quartetos em estereótipos, numa causalidade inelutável, em estruturas de nar-
abrangem solos e duos; como os temas musicais contrastam ou con- ratividade e de desenlace. A dança possui uma grande qualidade de
cordam entre si). A dramaturgia encontra-se em todo lugar. abstração; uma estrutura pode ser portadora de emoção, de signifi-
cação, mas não no mesmo sentido que as palavras/a língua; a nar-
6. ratividade lhe escapa. Provavelmente, o balé do século xix tentava
No entanto, existem diferenças — evidentemente históricas justificar sua existência como arte conformando-se às formas nar-
também — entre a dramaturgia de dança e a de teatro. No teatro, rativas da literatura.
contam-se frequentemente histórias; muitas vezes, os textos de te-
atro têm um caráter narrativo: um desenrolar linear com um início,
um meio com complicações e um fim onde tudo se resolve. A dança 7.
conheceu todo um período no qual tentava ser narrativa. Quando Os anos 1980, nas artes do teatro, situavam-se sob o signo da
eu era pequena e me levavam numa apresentação de balé, eu lia “multidisciplinaridade”. Tanto nas produções de teatro quanto nas
apressadamente o resumo no libreto do programa; todas as vezes produções de dança, as fronteiras entre as disciplinas foram ultra-
– –
184 185
passadas: textos, movimentos, música, imagens de filmes, cenogra- numa relação intensificada entre a dança e a música. Fica claro que, O PRO -
CESSO
fia etc. tudo confluía, fecundava-se mutuamente. nesse momento, o dramaturgista de dança deve ser alguém muito DRAMA -
Hoje, constatamos que o teatro orienta-se novamente mais pelo qualificado em matéria de música. TÚRGICO
––––––
texto e que as apresentações de dança tendem a abraçar uma lingua- M A RI A NNE

8.
VA N KE -
gem de movimento puramente abstrata (existe, entre outros, uma RK H OVEN
volta à dança clássica). Mesmo que essa tendência à abstração seja “legível” na recente
Seria um reflexo conservador depois da explosão multidiscipli- obra de Anne Teresa De Keersmaeker, por exemplo, não podemos
nar dos anos 1980? Vemos que Anne Teresa De Keersmaeker e Jan dizer que a abordagem multidisciplinar no seu trabalho tenha de-
Fabre se aproximam do balé clássico, que muita gente do teatro fla- saparecido. Olhemos, por exemplo, a utilização do material textual
mengo se aproxima dos textos do repertório mundial. Seria a ex- ao longo da sua obra.
trema incerteza dos tempos em que vivemos que impulsiona os ar- Os primeiros textos aparecem em Elena’s Aria; a utilização que
tistas para a certeza de linguagens já existentes (os textos clássicos, a coreógrafa faz deles é reduzida à forma mais simples: as baila-
o vocabulário do balé clássico)? rinas colocam-se num canto sob uma lâmpada e leem seus tex-
Ou será que temos de fazer outra pergunta: seria esse o processo tos. Em Bartok/Aantekeningen, o material textual era um dos nu-
de uma geração inovadora nos anos 1980 que hoje, artisticamente merosos parâmetros utilizados: ele recebia um lugar preciso na
adulta, sente a necessidade de se definir conscientemente em rela- construção complexa e engendrava movimentos concretos e ges-
ção à herança artística, em relação à tradição e à história? tos (cf. o texto Lenz, de Georg Büchner). Até agora, Verkommenes
 
Thierry De Mey e Anne Teresa De Keersmaeker falam disso Ufer/Medeamaterial/Landschaf mit Argonauten é a única encenação
 
numa conversa publicada no Theaterschrift 9 — “Theater and Mu- de Anne Teresa De Keersmaeker: o texto de Heiner Müller foi o
sic”: Thierry De Mey: “E depois, a maneira como reagimos ante a ponto de partida estrutural e emocional dessa produção tanto por
tradição pode evoluir. No início, tínhamos mais tendência a algo sua música, como por sua materialidade, como por sua significa-
autônomo, firme, uma esfera de energia. Hoje, nós nos pergunta- ção. Em Ottone, Ottone, os próprios bailarinos construíam “frases
mos questões do tipo: o que é uma fuga? Qual é a estrutura de um de texto” em analogia às “frases de movimentos” que eles desen-
tema musical?” Anne Teresa De Keersmaeker: “É exatamente isso: volviam; no pano de fundo — pelas árias da ópera de Monteverdi
em ‘Rosas danst Rosas’, desenvolvi um certo número de estruturas L’Incoronazione di Poppea — toda uma história se desenrolava: o re-
sem dispor de um mínimo de conhecimento sobre as formas já usa- púdio de Octavia por Nero e a coroação de Poppea, seu novo amor,
das por outros. É como se eu descobrisse, inventasse tudo pela pri- como imperatriz. Pela fusão ou pela duplicação de personagens, ou
meira vez.” acrescentando personagens inexistentes em Monteverdi, Anne Te-
Uma questão que se coloca é se a abordagem de um idioma resa De Keersmaeker conseguia contar sua própria versão da histó-
clássico não vai aumentar a importância das capacidades técnicas ria. Em Stella, o texto Rashomon de Runosuke Akutagawa “dilatava-
dos bailarinos, diminuindo a força das suas personalidades cênicas. -se” sobre cenas inteiras; diálogos de A streetcar named desire (Um
A dança vai talvez perder uma parte de sua teatralidade, mas, em bonde chamado desejo), de Tennessee Williams, foram fundidos jun-
contrapartida, vai ganhar em qualidade abstrata, que se manifesta tos e deformados num monólogo semelhante a uma ladainha; da

– –
186 187
peça Stella, de Goethe, restaram somente algumas palavras desapa- O PRO -
CESSO
recendo em meio a gargalhadas. Em Erts, os mesmos diálogos de DRAMA -
Tennessee Williams foram utilizados no material filmado: as perso- TÚRGICO
––––––
nagens eram interpretadas pelos bailarinos que só víamos na tela. M A RI A NNE
VA N KE -
Em Mozart/Concert Arias, o texto desaparecia, digamos por assim RK H OVEN
dizer, na música; as árias eram cantadas em cena por três cantoras
enquanto os bailarinos “ilustravam” as “estórias cantadas”: os mo-
mentos de felicidade e de aflição no amor. Em Amor constante mas
alla de la muerte, o poema homônimo de Quevedo foi uma das fon-
tes inspiradoras mais importantes da obra; na coreografia, o poema
foi literalmente “traduzido” em linguagem de sinais. Em Woud, a
obra mais recente, um poema de crianças, Tippeke, está na base da
primeira parte do espetáculo, uma sequência filmada; o texto é dito
e dançado pela própria Anne Teresa De Keersmaeker. A terceira
parte de Woud é dançada sobre Verklärte Nacht, de Schönberg, ins-
pirada por um poema de Richard Dehmel, embora o texto não seja
dito nem dançado em cena. A última parte de Woud é dançada so-

 
bre uma canção de Richard Wagner, Im Treibhaus, cantada ao vivo.

 
Etc. É claro que a maneira como Anne Teresa De Keersmaeker in-
tegra os textos nas suas produções pode assumir as formas mais di-
versas. Poderíamos fazer o mesmo “inventário de formas” no que
diz respeito, por exemplo, às imagens de vídeo ou de filme.

9.
Eis algumas anotações relativas à dramaturgia de dança e de
teatro. Mesmo sendo difícil definir essa prática, para mim, em pri-
meiro lugar, é uma profissão que eu amo. No seu livro Le temps
scellé. Considérations en ce qui concerne l’art du cinéma, o cineasta
russo Andrei Tarkovski escrevia: “Quando eu falo da poesia, eu ja-
mais a considero como um gênero. A poesia é para mim uma visão
do mundo, uma relação particular com a realidade”. Talvez a drama-
turgia, quando bem conduzida, seja também uma forma de poesia,
uma maneira de abordar a realidade…

– –
188 189
...o que é a dramaturgia? A resposta não pode
ser senão múltipla, com diversas possibilidades,
caleidoscópica. É então necessário juntar o
inapreensível ao inestimável para constatar, uma
vez mais, que a resposta é impossível, uma vez que
a dramaturgia não é talvez nada além do pensamento
do teatro em marcha, pensamento sempre em vias
de se constituir – e eu dou a este “pensamento
do teatro” o duplo sentido que isso pode ter: o
teatro como objeto e sujeito do pensamento. Para
dizer de maneira mais precisa (e, ao mesmo tempo,
Drama- CALDAS ,
P u b l icad o com o t ít ulo
muito geral), parece-me que a dramaturgia existe A n x ious d ram at urgy. I n : Pa u lo ;
a partir do momento em que três termos ou três
Wo m en & P er fo r m a n c e:
GADELHA,
tu r g i a
a jo ur nal of fe m inis t
forças ou três polos se colocam em relação: a t h eo r y, Is s ue 2 6, 1 3 -2 , E r n e st o .
Danç a e d ra-
ação (da ação, qualquer que seja a noção que se
2003 .

ansiosa
maturgi a[s].
tenha disso, até sua transformação em movimento S ã o Pa u l o :
[...]), o teatro (de outro modo, eu diria que n ex u s, 20 1 6.
fazemos usos metafóricos, ou derivados, do termo) ––––––
e o pensamento. A dramaturgia seria a circulação
da energia que emana desses três polos. Sem M y r i am
ação, sem um princípio ativo, qualquer que seja
ele, não há dramaturgia possível. Sem o teatro, Va n
talvez faltasse dizer, sem uma cena (ao menos
virtual), também não haveria dramaturgia. Quanto Im s c h o ot
ao pensamento, constitui por sua vez um motor, o
que põe em movimento e ordena a ação, as ações –
as organiza, as dispõe – segundo uma certa ordem,
que se pode denominar composição; e o resultado
desta circulação de energia entre os três polos
(que se poderia denominar também a emoção, que
movimenta o pensamento). Não se trata de um
sistema – que parece não ser possível hoje em dia
– mas um esquema minimal, uma estrutura profunda,
perfeitamente abstrata, que me parece ter a
vantagem de fornecer uma base comum aos diferentes
sentidos do termo dramaturgia, notadamente aos
seus dois grandes sentidos.
Joseph Danan
– –
trecho
190de: 191

Mutações da dramaturgia: tentativa de enquadramento


(ou de desquadramento)
[Moringa. João Pessoa, v. 1. n. 1, jan. 2010, p. 119–120.]
Myriam Van Imschoot é d r a m atu r g i a adiante
graduada em Filologia anSiOSa
–––––– Por acaso eu vivo e trabalho na Bélgica, onde a figura do dra-
Germânica e especializada
em Estudos da Performance
M y r i A M vA n maturgista foi um co(f)ator importante na formação de um novo
i M s c H o ot
na Universidade de Leuven, “campo” cultural e paradigma estético nas artes performativas que
na Bélgica. Atuou em emergiu na década de 1980 e consolidou-se na década de 1990.
teoria, crítica e história da Atenta a esse contexto político-cultural, gostaria de sublinhar que
dança e colaborou, como
o debate sobre o dramaturgista precisa de uma historicização e uma
 
dramaturgista, com artistas
contextualização mais claras, para que seja possível avaliar o dra-
 
como Meg Stuart, Vera
Mantero e Benoît Lachambre. maturgista não apenas como colaborador artístico, mas também
Desde 2006, desenvolve seu como agente político. Mais que celebrá-lo como figura da “comple-
trabalho artístico em torno xidade”, percebo o dramaturgista como uma figura da “cumplici-
do uso da voz em obras dade” num espectro sistêmico mais amplo, o que me alinha com um
de vídeo, performance e
instalações sonoras. Foi uma debate crítico mais recente que repensa a anteriormente “aurática”
das fundadoras, em 2001, imagem do dramaturgista (meuleman, 1998; melens, 1998; vuyst,
do SARMA, um laboratório 1999; kerkhoven, 1999). Uma vez mais: meu compromisso aqui é
independente para pesquisa, também minha fundamentação.
publicação e estudos em Um dos obstáculos para definir o dramaturgista decorre da
dramaturgia que inclui um
banco de dados online com dificuldade de ver o resultado do seu trabalho, que literalmente
ensaios e antologias sobre dissolve-se na produção, funde-se e torna-se invisível. Para Mari-
dança e performance. anne Van Kerkhoven, uma das dramaturgistas fundadoras da cena
– das artes performativas da Europa nos anos 1980, é essa invisibi-
lidade que não somente caracteriza o trabalho do dramaturgista,

– – –
19240 193
mas também a figura do dramaturgista.1 O dramaturgista, escreve plícito da metáfora da “invisibilidade”. Porque, de fato, a representa- drama-
TURGIA
Kerkhoven, “[…] não tem que aparecer na foto”, permanece no es- ção do dramaturgista como “não retratável”, como aquele que “não ANSIOSA
curo. Ela aconselha: “Aquele que não pode, ou não pode mais, lidar aparece na foto”, faz dele um metamorfo difícil de situar e que pode, ––––––
M YRI A M
com esse aspecto servil – e contudo criativo – é melhor desistir” portanto, operar mais livremente nos bastidores, atrás da tela de um VA N I M S -
C H OOT
(1994, p. 144).2 complexo administrativo e de um sistema de produção mais amplos.
Com a imagem da invisibilidade, Marianne Van Kerkhoven pro- Percebo que essas observações de abertura sobre a invisibili-
paga uma ética: para ela, o dramaturgista é uma figura modesta – dade do dramaturgista são de alguma maneira estranhas, diante de
longe de ser um adulador, o dramaturgista ainda está a serviço do muitos eventos que recentemente começaram a colocar o drama-
artista, dando suporte à sua visão por meio de feedbacks ou de feed- turgista sob a luz dos holofotes. Durante a última década, a drama-
forwards. Infelizmente, as conotações morais do que basicamente turgia tem sido um tema recorrente nos numerosos simpósios, con-
é uma autodescrição do trabalho excepcional de Van Kerkhoven ferências, edições especiais de revistas, oficinas.3 Falar de drama-
como dramaturgista podem sobrepor-se a um aspecto político im- turgia compensa, literalmente; na verdade, é possível sustentar-se
viajando de conferência em conferência hoje em dia, é o que pa-
1 Uso “dramaturgista” como um termo generalizante para uma grande variedade rece. Mas, não obstante a enorme atenção crítica, até agora a ên-
de tipos. Na maior parte do texto, refiro-me ao dramaturgista criador, fase tem permanecido meramente no perfil artístico do dramatur-
isto é, um dramaturgista que oferece assistência à criação da nova peça. gista, em geral unicamente em relação a um coreógrafo ou diretor
Esse tipo de dramaturgista pode ser uma pessoa independente, contratada
pelo artista ou um dramaturgista residente, afiliado a uma organização
teatral (a figura autoral singular). O que permanece na penumbra

 
artística que oferece seus serviços ao artista. Na metade do texto, foco é que o dramaturgista, precisamente por sua “aura” artística, pode

 
nos dramaturgistas que não estão associados à criação da peça, mas oferecem servir muito bem como um agente em um processo de legitimação,
assistência no que diz respeito aos aspectos institucionais da organização validação e controle – um processo que vai bem além da estreita
artística. De modo geral, esse pode ser o trabalho de um dramaturgista
residente. Este dramaturgista residente à moda antiga é a pessoa que escreve
colaboração com o artista no processo artístico e inclui um leque
programas, seleciona textos, revisa traduções etc. Um tipo de dramaturgista muito mais abrangente de circuitos (organizacionais, políticos, dis-
mais recente oferece assistência à instituição, numa reflexão durante sua cursivos etc.).
trajetória e desenvolvimento. Especializações mais específicas podem ocorrer

tropos de ansiedade
também. Por exemplo, o dramaturgista pode ser nomeado curador da programação
da instituição ou pode fazer o papel de relações públicas.
2 Marianne Van Kerkhoven pertence à primeira geração de dramaturgistas belga.
Noções como “nova dramaturgia” e “dramaturgia aberta” pri-
Começou a trabalhar em 1968 para a Teatro kns. Sua nomeação, assim como a
de outros “dramaturgistas”, pode ser explicada por uma mudança na política
meiramente vieram à tona na Europa a partir da metade dos anos
cultural em que os teatros recebiam subsídios relativos às funções ocupadas
na instituição. Aparentemente, isso foi um estímulo para criar a nova função 3 O simpósio itinerante Conversations on Choreography fez do tema dança e

do dramaturgista (em consonância com os teatros alemães). Marianne Van dramaturgia um tópico central em Amsterdam (1999) e Barcelona (1999). Em
Kerkhoven desenvolveu sua produção de dramaturgia como uma afiliada ao ambas as ocasiões, aconteceram oficinas com dramaturgistas. Outros exemplos
centro Kaaitheater, onde ela ainda é dramaturgista residente. Por meio de recentes: um diálogo performado por Diane Theodores e Synne Behrndt na
suas dramaturgias para muitos artistas, sua escrita e trabalho editorial Manchester Metropolitan University (1999), o simpósio sobre dramaturgia
(a publicação de Theaterschrift, entre outros), ela tem sido fundamental na Concepts on the Edge of Chaos, organizado por GDI, em Zürich (2000), e
distribuição de ideias sobre nova dramaturgia. Conversaciones y Procesos, em Barcelona (2001).

– –
194 195
1980.4 Eram instrumentos descritivos para o aparecimento de uma O discurso sobre a nova dramaturgia (relacionado à dança ou drama-
TURGIA
nova “metodologia”, ou praxeologia, resultando numa nova esté- ao teatro) é em grande parte estruturado em torno de alguns tropos, ANSIOSA
tica que girava em torno da multidisciplinaridade, de uma pre- ou, para colocar de outro modo, ansiedades: a ansiedade genérica ––––––
M YRI A M
sença/ausência altamente fisicalizada do performer, e da polisse- (de onde vem o dramaturgista?), a ansiedade de definição (o que é VA N I M S -
C H OOT
mia. A nova dramaturgia desafiou fatores predeterminantes, tais um dramaturgista?) e uma ausência de ansiedade mais geral (o que
como o texto como pivô da significação e do “conceito” (ou uma é isso que nos falta e que necessita ser compensado pela presença do
moldura prefixada de interpretação) como o princípio estruturante dramaturgista?). O que, em retrospectiva, também se torna claro é
que dirige os ensaios. Em vez disso, convocou-se uma busca explo- que o que inicialmente eram tentativas descritivas de circunscrever
ratória, mais orientada pelo processo, de todos os tipos de materi- a práxis do dramaturgista ganhou um sentido prescritivo. Não se
ais e questões a partir dos quais a performance gradualmente emer- teria investido dinheiro na última década em simpósios e oficinas
gia. Uma segunda onda de atenção ao fenômeno da dramaturgia sobre dramaturgia se o dramaturgista não fosse considerado um
sucedeu-se quando o modelo dramatúrgico, basicamente uma fer- benefício, até mesmo uma obrigação.
ramenta teatral, expandiu-se para a cena da dança contemporânea É fato que a mensagem nesses simpósios é a de que cada pro-
no início dos anos 1990. Desde os primeiros exemplos de dramatur- dução cria seu próprio modelo colaborativo e sua equipe – com ou
gia no trabalho dos coreógrafos Pina Bausch, William Forsythe e sem o dramaturgista como uma figura separada, funcionalmente
Anne Teresa De Keersmaeker, a historicamente nova aliança entre diferenciada. Mas o tom aparentemente pluralista dessa mensagem
dança e dramaturgia vem afetando os coreógrafos.5 ignora, de alguma forma, as pressões político-culturais que têm pro-

 
movido o trabalho com um dramaturgista a um modo de produção

 
4 Um exemplo inicial é o colóquio New Dramaturgy, em 1987, em Amsterdam. Um
colaborativa fetichista, pelo menos na Europa. O que deve ser neces-
catalisador de atenção da crítica para a dramaturgia foi o Het Instituut voor sário agora é uma contranarrativa que traga uma ênfase diferente e
Nieuwe Dramaturgie (O Instituto para Nova Dramaturgia), fundado por Heidi
Gilpin, Rob List e Ineke Austen. A partir de 1989, o Instituto organizou
rearranje os tropos. Em vez de suturar a ansiedade geral com a cro-
uma série de seminários sobre a nova dramaturgia no contexto da Amsterdam nologia histórica padrão a partir da dramaturgia de Hamburgo de
Summer University. Desde o início havia uma abertura para a dança e para as Gotthold Ephraim Lessing, no século xviii, passando pela compre-
práticas de performance não verbais. O fato de que a tentativa de descrever
ensão brechtiana de dramaturgia como síntese entre teoria e prá-
os desenvolvimentos recentes no teatro estava ligada ao interesse na nova
dramaturgia ficou claro também no simpósio Context 01: Active Pooling New
tica e chegando até os “dramaturgistas conceituais” da década de
Theatre’s Word Perfect (agosto de 1993). O simpósio foi iniciado por um grupo 1970, precisamos de uma genealogia que investigue as condições
de estudos sobre dramaturgia e “[…] queria, a longo prazo, aproximar a arte e artísticas, político-culturais e econômicas que possibilitaram que
a ciência, a teoria e a prática” (KERKHOVEN, 1994, p. 10). Uma contribuição
crucial ao debate sobre dramaturgia foi realizada pela edição especial On
Dramaturgy, na publicação multilíngue Theaterschrift n. 5–6, 1994. Dramaturgy, em Amsterdam, já havia aberto suas portas para a inclusão da
5 Em 1979, Pina Bausch começou a trabalhar com o dramaturgista Raimund Hoghe, dança, com seminários orientados para questões relativas a esta. Entretanto,
agora diretor de teatro e performer. Heidi Gilpin trabalhou com William a atenção da crítica para a aliança entre a dramaturgia e a dança só se
Forsythe como sua dramaturgista de 1989 a 1996. A primeira vez que Forsythe tornou visível de 1990 em diante: a revista holandesa de dança Notes e a
trabalhou com um dramaturgista foi com David Levin para Impressing the revista de teatro Toneel Teatraal deram atenção a essa nova forma (BLOEMEN,
Czar, em 1988. Anne Teresa De Keersmaeker teve assistência da dramaturgista 1992; VELDMAN, 1991). Além disso, Scott DeLahunta escreveu sobre o tema para
Marianne Van Kerkhoven pela primeira vez em 1985. O The Institute for New o Dance Theatre Journal (2000). Veja mais exemplos na nota 3.

– –
196 197
a figura do dramaturgista emergisse.6 Em vez de acrescentar mais dos por correntes antimodernas. Além disso, longe de fornecer uma drama-
TURGIA
descrições para dramaturgia, que competem em perspicácia e cria- descrição global para o desenvolvimento da arte e dos seus sistemas, ANSIOSA
tividade em suas formulações, precisamos saber mais sobre o para- a ideia de modernização claramente aplica-se à cena belga das ar- ––––––
M YRI A M
digma estético subjacente que viabiliza as variedades da superfície. tes performativas, especialmente desde 1980, com o surgimento do VA N I M S -
C H OOT
No lugar de ver o dramaturgista como alguém que vai ao encon- que geralmente é chamado de Onda Belga. Artistas como Anne Te-
tro de uma deficiência de um artista desejoso de diálogo, podemos resa De Keersmaker, Jan Fabre, Wim Vandekeybus, Jan De Corte e
prestar mais atenção à maneira como essa deficiência é construída Jan Lauwers, entre outros, são alguns dos mais bem-sucedidos artis-
e atribuída aos artistas por aqueles que dizem: “O que você precisa tas dessa geração, que foi acompanhada pela formação de novas or-
é de um dramaturgista”. ganizações artísticas, tais como produtoras, festivais de dança, cen-
tros de arte e companhias de teatro e dança.8 A regulamentação go-
coesão e aderência vernamental desse – para usar o termo do sociólogo Pierre Bour-
dieu – “campo” finalmente aconteceu em 1993.9 Vamos ver o papel
A figura do dramaturgista é um sintoma de um processo mais
do dramaturgista nesse contexto.
amplo de modernização que se revela em termos de autonomização
A modernização artística pode ser compreendida como uma ten-
no nível artístico e racionalização no nível organizacional.7 Reco-
dência modernista em direção a uma (auto)compreensão das artes
nhecidamente, os processos citados anteriormente são acompanha-
em termos de autonomia artística e – o que é percebido como – con-
6 Acredita-se que Lessing (1729–1781) tenha sido o primeiro dramaturgista, sistência interna.10 Um exemplo do início dessa tendência pode ser

 
quando, em 1767, foi indicado para o National Theater de Hamburgo e começou encontrado no século xviii, com o primeiro dramaturgista, Lessing,

 
a desenvolver um novo repertório. Como crítico, atacou as unidades aris- o qual encomendou e selecionou novos textos de teatro com o ob-
totélicas e pleiteou a autonomia do artista para atuar livre de esquemas jetivo de chegar a um repertório mais sólido e apto, para além do
preexistentes. Além de crítico e dramaturgista, foi também um escritor de
teatro e poeta. Seu Hamburgische Dramaturgie (Dramaturgia de Hamburgo) é a
dogma das leis aristotélicas (unidades de tempo, espaço e ação).11 É
antologia inacabada de seus escritos sobre teatro. Em geral, a cronologia
da antiga dramaturgia se encerra nos anos 1970, com referência aos drama- 8 N. do E: O termo “organização artística” é utilizado como uma designação

turgistas conceituais que fizeram tal abordagem prevalecer em suas colabo- geral para os centros artísticos, teatros, casas de produção, companhias
rações com diretores teatrais. Essa prática posteriormente perdeu crédito (cuja estrutura é reconhecida pelo governo), constelações organizacionais
e o dramaturgista foi tratado com ironia, como uma espécie de cão policial ao redor do artista independente e organizações de festivais.
ou guardião do conceito. 9 Para uma útil análise e descrição da formação do campo da dança contemporânea
7 Mais um nível pode ser acrescentado aqui: o processo de especialização no desde 1980, cf. Gielen, 2000.
nível discursivo, que parcialmente reflete-se numa inclinação mais forte em 10 Esta é, assumidamente, uma versão sucinta. Eu, por exemplo, coloco entre

direção à teoria na arte e no discurso da arte, assim como na academização de parênteses as demandas modernistas de especificidade da linguagem artística
conhecimento nos programas de pós-graduação em departamentos universitários, por um motivo: a especificidade característica da linguagem não se aplica
cursos de verão, instituições de pesquisa etc. O alcance do artigo não me às artes performativas nos anos 1980, que celebrava a multidisciplinaridade
permite falar das imbricações entre dramaturgia e departamentos de estudos (termo usado então).
da performance. Além disso, não vou focar no interessante tema do efeito de 11 Marianne Van Kerkhoven destaca que, numa linha similar, o mestre de balé

legitimação dos textos ou palestras do dramaturgista sobre os artistas com Jean-Georges Noverre poderia ser chamado o primeiro dramaturgista em dança:
os quais ele/ela trabalhou. Esse segundo tema vem sendo trabalhado por Bart “[…] seus balés não eram mais estruturados como uma acumulação de rotinas,
Meuleman (1998). ele submetia o virtuosismo às necessidades do trabalho como um todo”. Ela

– –
198 199
um movimento duplo de distanciamento do arbitrário e das regras Em nome da clareza: não há nada de errado na tentativa de criar drama-
TURGIA
externas impostas; uma transferência de autoridade para o artista sentido a partir de um mundo disperso e chegar a “alguma coisa ‘co- ANSIOSA
e para a lógica interna da obra de arte como uma unidade integral esa’ ”. Mas, para argumentar, quero acrescentar que a percepção da ––––––
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e autônoma. Com alguma extrapolação, pode-se dizer que o drama- coerência interna de uma obra geralmente pressupõe sua aderên- VA N I M S -
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turgista é semelhante à figura (que aparece posteriormente) do di- cia a um sistema/cânone de arte. Essa leitura fica patente quando
retor teatral, que desde o século xix tem aumentado as demandas olhamos para alguns casos em que o dramaturgista foi claramente
por uma unidade de visão que é internamente motivada apenas por imposto por um produtor.
razões artísticas. No primeiro caso, uma década atrás, a coreógrafa portuguesa
A percepção do dramaturgista como uma figura de coerência Vera Mantero recebeu uma oferta de apoio à produção pelo pres-
e consistência parece, à primeira vista, ter se tornado menos proe- tigioso festival de dança Klapstuk e foi solicitada a trabalhar com
minente a partir da década de 1980. A “nova dramaturgia” é preci- um “dramaturgista do Norte” (quer dizer, do norte europeu).14 Na-
samente “nova” na medida em que busca distinguir-se daquilo que quele momento a dança portuguesa era um fenômeno recente, co-
eventualmente ainda se considerava como “a velha” (dramaturgia), meçando a construir seu caminho para um circuito de festivais in-
do uso demasiadamente rigoroso de conceitos como uma grade pre- ternacionais de dança já bem estabelecido. Acolhida por suas qua-
estabelecida para reger a práxis teatral desde sua concepção até a lidades distintas (ainda que fosse difícil identificá-las), foi também
sua recepção.12 Ao invés de engajar-se com um dispositivo de orga- convidada a ajustar-se à lógica do mercado e dos paradigmas de
nização geral, a nova dramaturgia alinha-se mais facilmente com a gosto já existentes. Um segundo exemplo leva-nos a Victoria, um

 
dita condição pós-moderna e seus tropos de implosão das grandes centro de produção belga aclamado por sua arte jovem, anárquica e

 
narrativas mestras (lyotard, 1979), caos, fragmentos e crenças dis- experimental, muitas vezes no limiar da cultura popular, flertando
seminadas. Mas, mesmo assim, o dramaturgista permanece sendo com a música pop, com o hip hop, com a moda e com a cultura da ju-
uma figura da coerência, e tenta encontrar novos conjuntos de sen- ventude. Um grupo de hip hop e dança de rua ficou, entretanto, cla-
tido. Ou, como o dramaturgista André Lepecki (1999) colocou na ramente desconfortável quando o dramaturgista residente foi “ofe-
ocasião da conferência Conversations on Choreography, em Amster- recido” a ele. Eles não tinham experiência de trabalho com um dra-
dam: “[Dramaturgia é] a atividade de organização imaginativa com maturgista e não estavam inclinados a começar a trabalhar com um.
o objetivo de comunicar; a garantia de que depois de um longo pro- Do ponto de vista do produtor, o trabalho jovem ou vulnerável pre-
cesso, haja ‘alguma coisa’ visível e coesa”.13 cisa de um bom contexto de apoio – financeiro, técnico e intelectual

também escreve: “A ideia de um dramaturgista na dança provavelmente sempre num todo consistente” (VELDMAN, 1991, p. 14). Fien Bloemen argumenta que
existiu, mas é somente nas fases mais recentes da história da dança que “[…] a nova dramaturgia busca o caos para dominá-lo” (1992, p. 22). Marianne
essa atividade tornou-se ‘uma prática consciente’.” (1997, p. 20). Van Kerkhoven afirma: “A dramaturgia tem sempre alguma coisa a ver com
12 Isso é argumentado também por Fien Bloemen (1992). A nova dramaturgia é, estruturas: trata-se de ‘controlar’ o todo” (1997, p. 21).
de fato, um corretivo, e leva a dramaturgia à sua filosofia básica. 14 O apresentador belga dispensou esse pedido. O que é relevante para nós,
13 Muitas referências à “coesão” podem ser encontradas em autodescrições. aqui, é que ele realmente fez sua proposta nesses termos. André Lepecki faz
O interesse de Heidi Gilpin na dança e na dramaturgia foi movido pela “[…] um relato mais completo sobre esse incidente no ensaio que está no mesmo
questão de como vetores de sentido que não palavras podem ser organizados volume em que esse texto foi publicado pela primeira vez.

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200 201
–, especialmente quando os jovens artistas, de alguma forma, não buição de dramaturgistas para o trabalho de Jan Fabre, Wim Van- drama-
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são familiarizados com a cena artística, seja por falta de experiência dekeybus, Anne Teresa De Keersmaeker, Guy Cassiers etc. ANSIOSA
ou por viver culturalmente às margens de uma cena artística. Mas Após as primeiras ondas de talento endógeno, produtores – tra- ––––––
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a linha entre a proposição e a imposição é difícil de ser traçada. E, balhando num campo ainda em expansão e necessitado de abaste- VA N I M S -
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novamente, podemos indagar se a orientação dramatúrgica nesses cimento –, tornaram-se mais efetivos em descobrir novos artistas
casos não visa, no final das contas, tornar mais fácil a transferência de outros países e em apoiar a produção de seus trabalhos. A ex-
da “alteridade” do trabalho, nesse caso percebida como “inexperi- pansão era visível, numa acelerada internacionalização e, posterior-
ência” e “caos”, para o ambiente artístico mais “refinado”. mente, na abertura da dança contemporânea “erudita” para uma pa-
Resumindo, nesses exemplos, o dramaturgista aparece como lheta cultural mais diversa (culturas popular, de rua, folclórica). En-
uma imposição dos produtores. Espera-se que o dramaturgista ga- quanto, por um lado, o sistema se abria, por outro, era colocado sob
ranta um “melhor” resultado ou diminua o risco de fracasso. Ele ou pressão, tensionado para regular o equilíbrio delicado entre seus la-
ela caracteriza uma figura de autoridade, mesmo que esteja a ser- dos externo e interno, tendo o dramaturgista como elo de ligação.
viço do artista, que é percebido como deslocado da cena artística
geograficamente (o português do sul), culturalmente (grupo de hip negócios e agitação
hop) ou experiencialmente (jovens com pouca bagagem artística).
A modernização organizacional das artes performativas resul-
O caos percebido por produtores em determinados trabalhos é, si-
tou, na Bélgica, num sistema das artes profissionalizado e subsidi-
multaneamente, um objeto de desejo e de temor, porque inclui o
ado, no qual as “funções intermediárias” (intermediárias: entre o ar-
 
fracasso como um resultado possível. O tropo do caos pode ser re-
tista e o público) ganharam mais peso. O aparato possibilita, supos-
 
visto aqui; o dramaturgista não está muito preparado para atar a fe-
tamente, que o artista se concentre naquilo em que ele ou ela são
rida do eu dividido à dispersa condição pós-moderna, mas sim de
bons: fazer arte. O gerente financeiro cuida das finanças, o diretor
atar aquilo que se desvia aos aparatos já existentes.15
de produção cuida dos aspectos práticos da produção, a assessoria
Novamente, um olhar mais distanciado pode ser útil. Os casos
de imprensa cuida da comunicação da peça, o contador etc.
de Vera Mantero e do grupo de hip hop estão situados no contexto
De acordo com a dimensão da organização, mais ou menos po-
dos anos 1990, no momento em que o modelo do dramaturgista já
sições são ocupadas para fazer a intermediação entre o trabalho do
tinha alcançado um certo prestígio por meio do Kaaitheater (com
artista e o acesso do público a este. Entretanto, com o passar do
a dramaturgista residente Marianne Van Kerkhoven) e pela contri-
tempo, percebe-se que o intermediário assumiu prioridade, fazendo
com que as organizações se tornassem autorreferentes e, eventual-
15 Hildegard De Vuyst, que foi dramaturgista para, entre outros, o coreógrafo mente, mais orientadas para si mesmas do que para os artistas. Em
Alain Platel, descreveu algumas das experiências negativas que ela enfrentou relação a isso, Rudi Laermans, sociólogo da arte belga, fala de uma
quando foi deixada por um produtor num processo de criação de pessoas
jovens. Ela sugeriu que, nessas ocasiões, o dinheiro gasto na dramaturgia
bifurcação entre um polo artístico e um “polo de negócios”, com
talvez fosse melhor investido dando uma outra oportunidade a esses jovens uma lacuna cada vez mais ampla entre eles devido às demandas de
artistas, se seu projeto tivesse falhado. Eles podem estar aprendendo mais internacionalização e de um estilo de governo intervencionista que
com a oportunidade de errar e tentar novamente do que trabalhando com alguém
com quem não têm nenhuma afinidade (1999, p. 66).

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202 203
regulariza suas trocas com as artes em termos meramente econô- diárias”, sejam elas absorvidas pelo contexto do marketing ou pelo drama-
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micos e administrativos de responsabilidade mútua e eficiência.16 contexto mais discursivo das “políticas”. Mais ainda: talvez o mo- ANSIOSA
Em Small diferences, big effects: on art, the market, and politics, delo supervisionista seja apenas o próximo passo lógico para aco- ––––––
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Rudi Laermans (2001c) propõe, junto ao cientista político alemão modar o sobrepeso do intermediário enquanto simultaneamente VA N I M S -
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Helmut Willke, “o estado supervisionista” como uma alternativa a fundamenta a sua razão de existir de maneira mais firme por meio
esse modelo intervencionista. O estado supervisionista busca mais de uma reorientação. É definitivamente questionável se essa ordem
reflexividade e autoanálise. Ele deseja manter o espaço de decisões está realmente aberta à negociação, na medida em não permite que
aberto, reativando-o para que as organizações não conduzam uma mais artistas ocupem o nexo discursivo na chamada “rede de atri-
trajetória cega guiada pela bússola da lógica interna do “mais e buições”.
maior”. Isso estimula os “coabitantes de campo” a analisar, obser- Infelizmente, o aumento de grupos de lobby e comissões de con-
var, comparar, fazer sugestões, delinear “forças-tarefa”. Resumindo, selhos políticos não aumentou a participação dos artistas no pro-
encoraja uma rede discursiva de “atividades atribuídas” a partir da cesso de tomada de decisão política. Apenas para dar um exemplo,
qual uma “descrição-contextual” (que não deve ser confundida com até hoje nenhum artista fez parte de uma comissão flamenga para
consensual) pode surgir, podendo, então, ser formalizada em pla- dança ou teatro. Os negócios talvez tenham se transformado em
nos políticos. Concluindo, Laermans vê dois modelos: um modelo agitação, num discurso sobre política para as artes mais inteligente,
bifurcado simplificado que separa os polos artístico e comercial, ar- variado e profundamente motivado, mas envolveram mais dinheiro
riscando subordinar o artístico à lógica comercial, e uma rede mais também, dinheiro que poderia ter sido diretamente dirigido aos ar-

 
complexa de atribuições discursivas que procura por uma negocia- tistas, mas que, em vez disso, hidratou as funções intermediárias.

 
ção quanto à substância e à remuneração da arte. Aqui a figura do dramaturgista é percebida com frequência
A análise perspicaz de Rudi Laerman é especulativa – propõe como um elemento de conexão, especialmente aqueles que estão
o modelo abstrato do estado supervisionista – e parcialmente des- em contato com o polo artístico e atuam em comissões, bancas, fó-
critiva – vê o modelo supervisionista já entrando em jogo com o runs públicos, institutos de pesquisa e similares. O espectro de atu-
aumento das comissões, conselhos e grupos lobistas no campo das ação polivalente do dramaturgista poderia assegurar uma circula-
artes performativas de Flandres. Apesar da clara distinção que faz ção mais livre entre artistas, produtores e elaboradores de políticas,
entre os dois modelos, ambos têm em comum o fato de serem sinto- como já ocorre nas organizações que contratam dramaturgistas que
mas da crescente expansão e da proliferação das funções “interme- participam tanto da organização quanto do processo de criação do
artista. Mas a conexão pode muito bem se dar entre os domínios
16 Rudi Laermans foi fundamental na propagação da teoria dos sistemas como de atuação e ao mesmo tempo manter a distância entre eles.
um instrumento explanatório na análise da cena artística. A teoria dos
Se dramaturgistas podem dar voz às questões artísticas, podem
sistemas, com Niklas Luhmann como o teórico principal, parte do princípio igualmente silenciar aqueles por quem falam. O dramaturgista é
de que a sociedade delineia sistemas autônomos que são estruturados ao redor uma figura do “entre” e, consequentemente, um outro “intermediá-
de diferentes grupos de valores. Cada sistema busca sua “autopoesis”, um
rio”; parte de uma cultura de “mediação” que desencoraja a partici-
estado independente e autorreferencial. A teoria dos sistemas oferece um
modelo para compreender processos de – entre outros – superespecialização.
Para aprofundamento, cf. Laermans, 2001a e 2001b.

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204 205
pação artística direta.17 É nessa linha que se torna possível compre- tras “funções” ou “trabalhos”. O que ele ou ela traz para o trabalho drama-
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ender um comentário de Lisa Nelson, vídeo-artista americana, ar- são questões; uma tentativa de refletir sobre as coisas para chegar ANSIOSA
tista de improvisação e coreógrafa, que definiu “a mania ‘europeia’ a uma lógica artisticamente motivada que fundamente as tomadas ––––––
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do dramaturgista” como a “[…] última invenção da Europa para cri- de decisão e as ações da organização. Certamente, a lógica de mer- VA N I M S -
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ação de empregos para pessoas que não são artistas; é um outro cado e a lógica dramatúrgica usam registros distintos, como pode-
método para arrastar mais dinheiro para o aparato de produção e mos notar, por exemplo, nos dossiês e formulários para solicitação
administração em vez de gastá-lo com os artistas”.18 de fomento, mas ambas as justificativas (do contador e do drama-
A mais nova ironia desse cenário admitidamente sombrio – aqui turgista) são similares na medida em que vão ao encontro das de-
me vejo forçar um pouco o tema – é que as organizações de arte mandas inquisitivas de legitimação do sistema de arte por meio da
não apenas tomam emprestado o discurso do “mercado” para justi- objetificação e racionalização.20
ficar suas ações, como Laermans afirma, mas uma hibridização in-
versa também se estabelece, na qual o aspecto comercial é reenqua- o dramatúrgico sem o dramaturgista
drado em termos artísticos. Isso pode ser discernido com a “drama- Para Bertold Brecht, o diretor teatral e o dramaturgista (que
turgização” das posições administrativas, como a de dramaturgista- nesse caso estava claramente alinhado com o teórico), eram duas
-curador, o dramaturgista relações públicas, e, de modo mais geral, metades dialéticas de um ser, assim como a arte e a realidade eram
o dramaturgista da casa. percebidas em diálogo permanente e sempre em transformação.
O problema, então, não é tanto que a organização seja o “ou- É seguindo essa ótica que o produtor teatral do coletivo Maatschap-
 
tro” do polo artístico, mas sim o fato de ela começar a perceber a si pij Discordia, Jan Joris Lamers, chama os performers de “cientistas”
 
mesma como uma “obra de arte”, um “processo” orgânico que ne- de uma “ciência performativa viva” (1994, p. 297, tradução nossa).
cessita de visão, criatividade e vigor. Ela está em permanente trans- Lamers vê a dramaturgia mais como “um diálogo continuado” entre
formação e, portanto, necessita de feedback, diagnóstico, redirecio- artistas do que um diálogo com um dramaturgista separadamente.
namento.19 O dramaturgista, nesse tipo de constelação, é como um Não precisam de dramaturgistas, uma vez que, idealmente, são to-
prefixo que encontra a sua substância por meio da afiliação com ou- dos dramaturgistas uns para os outros.
Entretanto, o aspecto dramatúrgico tem sido separado do
17 Nesse sentido, o Artists Meeting, em Viena (2001), que aconteceu no Tanz-
corpo do artista para tornar-se um “olhar externo”. André Lepecki
quartier, é memorável, por ter sido uma iniciativa de Jérôme Bel, Xavier
rebelou-se fortemente contra a redução ideológica do dramatur-
Le Roy, La Ribot e Christophe Wavelet destinada a examinar a política das
artes na Europa a partir da perspectiva dos artistas envolvidos.
gista a um olho, tendência sintomática de uma tradição de pensa-
18 A citação é de uma conversa informal depois de uma sessão do encontro mento que desde Descartes separou a mente do corpo e equiparou
Conversations on Choreography, em Barcelona, 1999.
19 Um empréstimo similar do discurso artístico pode ser visto em setores de 20 Talvez não tenha sido coincidência o fato de os dramaturgistas terem sido

desenvolvimento de produtos. Mesmo em títulos como Organization improvisa- chamados para se juntar às equipes administrativas no momento em que os
tion in new product development (1997) e Improvisation and information use centros artísticos de Flandres estavam vivendo o auge do que era aludido
in new product development (1995) são apenas dois exemplos da tendência ge- como uma “batalha de perfis”, como, aconteceu em STUK, e em Leuven. Os dra-
ral das organizações de colocar mais ênfase no processo, na indeterminação maturgistas não auxiliaram os artistas, mas eram os guerreiros do discurso
e complexidade, bem como na necessidade de uma abordagem criativa. na batalha por distinção, legitimação e autenticação.

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a mente ao óptico. Lepecki resiste à ideia do dramaturgista (o olho) planejada para ser um intensivo de três dias, no intuito de aumen- drama-
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como o lugar do poder e conhecimento colocado à disposição de tar o conhecimento sobre o fenômeno da luz e seu potencial para a ANSIOSA
um coreógrafo, o qual (se estendermos a metáfora) é percebido dança, particularmente, e para a arte de forma geral. Foi para nutrir ––––––
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como sendo todo corpo – um corpo cego e burro, esperando ser ilu- projetos futuros como também familiarizar os participantes com o VA N I M S -
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minado pela fala e pela visão. Numa descrição da sua própria prá- aspecto técnico e com a lógica do design de luz.
tica dramatúrgica, Lepecki gosta de reconfigurar o dramaturgista O curso intensivo teve a participação de um grupo central que
como o lugar do conhecimento desencarnado, fundindo o corpo do incluía, além de Charmatz e seus companheiros bailarinos, amigos
dramaturgista com o corpo do trabalho e “tornando-se um corpo artistas, um apresentador, um fotógrafo e um videomaker documen-
somático”.21 Da mesma forma, acredito fortemente que não é tanto tarista. Algumas vezes, o ateliê fechado abria as portas para sessões
de dramaturgistas que precisamos, mas sim de contextos dramatúr- públicas com grupos maiores. Eu gostei particularmente da ideia de
gicos nos quais artistas, acadêmicos, cientistas, iluminadores, mú- que um coreógrafo que nunca trabalha com um dramaturgista crie
sicos etc. possam estabelecer um diálogo continuado sobre o tra- ali a sua própria dramaturgia por meio dessas oficinas. Mais ainda,
balho, os conceitos que usam, as ideias que exploram, sem o filtro ele torna a dramaturgia pública e coletiva, já que todos os bailari-
de mediação “do” dramaturgista. Estou pensando em vários proje- nos compartilham mutuamente na troca de informações. A inicia-
tos que aconteceram nos últimos anos que acho particularmente tiva ecoa os interesses similares de Charmatz em estruturas cola-
desafiantes quanto a esse aspecto.22 borativas comunitárias em que artistas se reúnem e trocam perfor-
O coreógrafo francês Boris Charmatz iniciou uma oficina cha- mances, ideias, experiência, assim como aconteceu em Ouvrée – Ar-

 
mada Session em torno da relação entre dança e artes visuais, em tistes en Alpage, um evento de performance nos Alpes franceses em

 
Grenoble, em março de 1998; uma segunda Session sobre ilumina- Annecy, que incluiu, além de Charmatz, Steve Paxton, Benôit La-
ção aconteceu em dezembro de 1998, em Paris.23 O último, para o chambre, Jennifer Lacey, Barbara Manzetti e Xavier Le Roy, para
qual fui convidada, apresentava um minicurso sobre a física da luz nomear alguns.
com um técnico de iluminação, uma palestra sobre o trabalho de Os eventos de Charmatz alinham-se ao interesse atual em pro-
James Turell, uma apresentação de slides mostrando um estudo so- jetos de pesquisa desenvolvidos por artistas, em um formato que
bre o uso da luz nas artes visuais, discussões, aulas de Feldenkrais, não teve precedentes na década de 1980, quando o dramatúrgico
sessões de improvisação, sessões de trabalho prático com equipa- na dança foi confinado ao diálogo personificado entre o coreógrafo
mento de iluminação teatral e uma prática fotográfica. A oficina foi e seu/ sua dramaturgista, com poucas aberturas para uma equipe
mais ampla de performers. A distinção funcional entre coreógrafo
21 Paráfrase da fala de Lepecki em Barcelona, que aconteceu durante o encontro
e dramaturgista geralmente implica também a diferenciação de “ga-
Conversations on Choreography.
22 O interesse por pesquisa e intercâmbio é muito vívido na cena da dança eu- nho”, numa economia interdependente de demanda e apoio. Na ofi-
ropeia dos últimos anos, resultando em uma variedade de projetos e estra- cina intensiva, entretanto, a estrutura de “serviço” caiu por terra,
tégias de (não) performativos. No escopo deste artigo, vou restringir-me afinal todos participaram na investigação e todos aportaram suas
aos dois projetos dos quais participei.
23 Minha gratidão a Boris Charmatz pelo convite e a Angèle Le Grande, força habilidades ao processo. As variedades na transmissão de infor-
crucial em fazer dessa oficina um evento de sucesso. Sessões futuras estão mações – uma palestra convencional, uma apresentação de slides,
planejadas e vão lidar com “o árduo” e com “figurino”. aquecimentos – deram crédito para a diversidade de conhecimen-
– –
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tos (para além da divisão entre teoria e prática) e destacaram, ao a partitura (decisões gerais relativas à configuração, arranjo dos as- drama-
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mesmo tempo, as convenções formais da performance do conhe- sentos do público, ideias conceituais) eram tomadas de forma co- ANSIOSA
cimento. O fato de que o intensivo não foi diretamente orientado letiva, ainda que não unanimemente; havia um fluxo contínuo de ––––––
M YRI A M
para resultar num produto/performance (apesar de ter alimentado discussões. VA N I M S -
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projetos de alguns participantes posteriormente) deu ao todo um Curiosamente, Meg Stuart (uma das pessoas que tomou inicia-
espaço particular de respiro, um território comum mais relaxado e tiva para o acontecimento de Crash Landing e, em razão de sua noto-
compartilhado no qual os artistas podiam se encontrar. riedade, de alguma forma, líder do grupo) geralmente trabalha com
No ano seguinte (em outubro de 1999), fui convidada a partici- um dramaturgista nas suas próprias peças de “autoria singular”.24
par do CrashLanding@Moscow. Essa era a quinta edição do Crash Os Crash Landing são diferentes, posto que abrem a sua estrutura
Landing, um projeto de improvisação que começou em 1996 sob a de responsabilidade para um processo colaborativo de tomada de
curadoria tripartite de Meg Stuart, Christine De Smedt e David Her- decisão, sem a ajuda de um dramaturgista “indicado”. A natureza
nandez e que tinha por finalidade (re)investigar a performance de improvisacional do projeto requer que todos os participantes con-
improvisação num contexto colaborativo intermídia. As primeiras densem as habilidades de performance, composição e dramaturgia
edições em Leuven, Viena e Paris foram marcantes porque impulsi- no momento em que estão performando, não existindo tempo para
onaram a improvisação – um formato de performance pouco repre- sair e suprimir algum trecho, pedir conselho ou consultar uma se-
sentado na Europa até então – para o circuito de festivais e gran- gunda opinião. Numa entrevista, a dramaturgista Heidi Gilpin já
des espaços de apresentação, contribuindo para o (res)surgente in- havia mencionado como a nova dramaturgia era proposta, uma vez

 
teresse na prática, história e futuro da improvisação. As duas úl- que o texto tradicional passou a não ser mais considerado o ponto

 
timas edições de Crash Landing foram menores e mais engajadas de partida; em vez disso, as improvisações forneciam o material
com as comunidades locais de Lisboa e Moscou. inicial. Ainda mais quando a improvisação é levada para a perfor-
Como nas primeiras edições, o evento de Moscou teve a parti- mance, “[…] o papel do bailarino como um ‘instrumento treinado’
cipação de um grupo interdisciplinar central e um tema (“Memó- é preterido e substituído por um método de trabalho que encoraja
rias do Futuro”) como ponto de partida para pensamentos e traba- a contribuição dramatúrgica e composicional feita pelo bailarino”
lho. O grupo foi formado por artistas visuais, artistas de vídeo, um (veldman, 1991, p. 16).
artista da performance, músicos, bailarinos, figurinistas e eu. Não A habilidade dramatúrgica pode ser compreendida como uma
havia categoria para mim, e eu não estava querendo receber uma. competência em compor ações e ler seu potencial de significação
Temia a ideia de ser chamada de “dramaturgista”, e estava feliz por na urdidura do tecido da performance. A instantaneidade tempo-
isso não acontecer. Por que aconteceria? Novamente o contexto em ral da improvisação amplifica esse processo e faz com que a divi-
si era dramatúrgico. O grupo todo trabalhou por duas semanas com são do trabalho, quando todas as habilidades são necessárias no mo-
três performances públicas no período. A linha entre sessões priva- mento presente, seja inútil. Foi fascinante em Moscou que a questão
das e públicas, no entanto, foi difícil de ser delineada, uma vez que da divisão do trabalho tenha surgido também em relação aos back-
o modo e atmosfera da pesquisa foram sustentados durante todo o
processo. As performances foram compostas de materiais elabora- 24 Para um portrait de Meg Stuart e uma descrição de seu trabalho, cf. Ploebst

dos durante o dia e de improvisações mais abertas. Decisões sobre (2001).

– –
210 211
grounds especializados dos participantes. A questão nos fez ponde- • ______. Kleine Verschillen, Grote Gevolgen. Over Kunst, Markten drama-
TURGIA
rar se atuaríamos a partir das habilidades particulares de cada um Politiek. “Ruimten van Cultuur. Van de Straat over de Marktnaar ANSIOSA
ou se deixaríamos nossos campos de competência para nos encon- het Podium.” Leuven: Van Halewyck, 2001c. ––––––
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tramos no meio do caminho entre as disciplinas. Ambas as opções • lamers, Jan Joris. Een Gesprek data ltijd Doorloopt. Theaterschrift,
VA N I M S -
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foram colocadas em jogo. Bailarinos manipularam o som ou a câ- n. 5–6, p. 279–305, 1994.
mera, músicos e escritor dançaram, o fotógrafo integrou suas ações
de documentário à performance etc. O resultado dessas reversões • lyotard, Jean-François. La condition postmoderne: rapport sur
transgressivas foi que ampliou-se o sentido de que, mesmo quando le savoir. Paris: Ed. De Minuit, 1979 [Edição brasileira: O pós-
o indivíduo permanecia em sua especialidade, havia uma responsa- -moderno. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1986].
bilidade coletiva e ativa para cada um dos componentes. Convenci- • melens, Kurt. Bericht aan Bart Meuleman: cut the crap, act now!
-me de que o dramaturgista não é necessário para alcançar o drama- De Vlaamse Gids, n. 4, p. 48–50, 1998.
túrgico.25 • miner, Anne S.; bassoff, Paul; moorman, Christine. Organizati-
onal improvisation in new product development. Cambridge, ma:
Referências Marketing Science Institute, 1997.
• bloemen, Ren. Er zijn weer grote verhalen aan net ontstaan: over • moorman, Christine; miner, Anne S. Walking the tightrope: impro-
nieuwe of liever: open dramaturgie. Toneel Teatraal, n. 113, p. 22– visation and information use in new product development. Cam-
27, 1992. bridge, ma: Marketing Science Institute, 1995.
 
 
• delahunta, Scott. Dance dramaturgy: speculations and reflecti- • meueleman, Bart. Berichtaan de Dramaturg: Opkrassen! De Witte
ons. Dance Theatre Journal, v. 16, n. 1, p. 20–25, 2000. Raaf, 75:15, 1998.
• gielen, Pascal; laermans, Rudi. Flanders. Constructing identities:
the case of the flemish ‘Dance Wave’. In: grau, Andrée; jordan,
Stephanie (Eds.). Europe dancing: perspectives on theatre dance
and cultural identity. Eds. Andrée Grau e Stephanie Jordan. Lon-
dres: Routledge, 2000.
• laermans, Rudi. Communicatie zonder mensen: een systeemtheo-
retische inleiding in de sociologie. Amsterdam: Boom, 2001a.
• ______. Geld Maakt Vrij. Over Geld, Communicatie en Kunst.
“Ruimten van Cultuur. Van de Straat over de Marktnaar het Po-
dium.” Leuven: Van Halewyck, 2001b.
25 Minha gratidão a Marianne Van Kerkhoven, André Lepecki, Angèle Le Grande,

Scott DeLahunta, Alice Reagan, Tine Van Aerschot, Lisa Nelson e Heidi Gilpin
pela ajuda muito generosa na elaboração deste artigo.

– –
212 213
A
comparação pejorativa do dramaturgista a um “policial
Sentido CALDAS ,
BOUD I ER , Mario n et al.
D e q uoi l a d ra mat urgi e Pau lo;
est -el l e l e nom? Pari s :
GADELHA, do sentido” traz à tona o risco de sua autoridade ideológica
L’Harmat t an, 2 014. p.
1 35- 1 39. Er n es t o. excessiva em certos processos de criação, mas não inicia a
D a nça e dra -
maturgia [s].
questão do sentido que a dramaturgia carrega fundamentalmente
São Paulo: consigo. Interrogação e elaboração de motivos da obra, pensamento
nex us, 20 16 . em movimento, saber erudito ou ferramenta de composição, o tra-
balho dramatúrgico aborda, de fato, diferentes estados do sentido,

que dizem respeito tanto à direção quanto à significação e à sensação.

Assim, a dramaturgia poderia ser comparada ao sentido da orienta-
ção; um sentido tão próximo do saber quanto do sentir. Na drama-
turgia, pensa-se tanto na maneira de agenciar as diferentes sequên-
cias de um espetáculo quanto nos efeitos de sentido, significância
e emoção do caminho escolhido.
“Se não nos preocuparmos com a dramaturgia, a dramaturgia
tomará conta de nós. Nós produzimos significações, então é me-
lhor ter consciência disso e, se não as dominamos, que pelo me-
nos construamos seus agenciamentos”, afirma o encenador Laurent
Gutmann.1 Identificação e produção de significados da obra são in-
dissociáveis de sua estrutura. É, então, a priori, numa troca flexível
entre forma e significação que a dramaturgia persegue o sentido,

1 GUTMANN, Laurent. Ce que l’oeuvre ne dit pas. In: DANAN, Joseph (Ed.).

Dramaturgie au présent. Registres, n. 14, 2010, p. 31.

– –
214 215
exploração que se distingue da aplicação de um plano de leitura e não se pode dizer com palavras”.6 O dramaturgista Olivier Hespel7 sen-
tido
da exibição do sentido: conta que ele tenta desconstruir as tentativas de narração dos co-
Afirma, assim, a dramaturgista Marianne Van Kerkhoven:2 reógrafos com os quais ele trabalha e se recusa a criar personagens
Eu acredito que o trabalho de um dramaturgista não tem nada a ver para fazer emergir o sentido.
com uma doutrina ou uma teoria ou com a aplicação de regras, pelo “No fundo, a atenção do dramaturgista se concentra na narra-
contrário […]: consiste em buscar uma rota através da qual consegui- ção e na narrativa, mas além do sentido literário desses termos –
mos ‘arrumar’ e estruturar todo material que aparece ‘sobre a mesa’ é, aliás, por essa razão que o dramaturgista não é somente um sim-
trabalhando numa produção. ples conselheiro literário” 8 , afirma a dramarturgista Charlotte Far-
Situada no cruzamento das significações da obra e da maneira cet acerca da criação de Seuls (2008), de Wjdi Mouawad:
como ela as coloca em movimento3 , a dramaturgia se encarrega Ele não se interessa, de fato, somente pelo texto, mas também pela ce-
parcialmente da questão da narração, termo que, como o de ficção, nografia, as luzes, os figurinos, pelo universo sonoro que juntos com-
serve-lhe, às vezes, de sinônimo, reforçando, além disso, a confusão põem a língua do espetáculo. Ele se interessa pela história, sua estru-
entre as duas definições.4 tura, sua progressão, observando o encadeamento das sequências […].
Essa sinonímia aparece, de um lado, nas palavras daqueles que Para descobrir a trama justa.9
subordinam a questão do sentido àquela da narrativa, ou, de ou- Reflexão sobre o desenrolar espetacular para estabelecer redes
tro lado, com artistas da cena não dramática, no circo, por exem- ou circulações de sentido, a dramaturgia não os apreende necessa-
plo.5 Para as práticas que não fazem do texto seu ponto de partida, riamente pelo viés de uma organização narrativa.
 
elaborar uma história pode ser uma maneira de organizar a maté- Consciência do sentido do percurso do espetáculo, sem pres-
 
ria do palco e orientar sua significação; a fábula (no sentido brech- supor, de maneira coercitiva, nem razões nem objetivos deste per-
tiano) é, de fato, um princípio de organização significante. Mas o curso; todavia, o trabalho dramatúrgico se aproxima frequente-
contestador Michel Laubu du Turak insiste, por sua vez, na neces- mente de um trabalho de composição ou de montagem. Essa im-
sária dissociação entre dramaturgia e narração, a fim de pensar a bricação das significações e da estruturação é particularmente visí-
escrita de seu teatro não textual, visual e “bastardo”: “Eu escrevo vel no processo de criação coreográfica. Marianne Van Kerkhoven
espetáculos com pedaços de objetos, esboços, fragmentos de textos explica, por exemplo, que
também […]. Esses próprios objetos irão contar alguma coisa que

6 LAUBU, Michel. L’ombre cachée derrière l’objet. In: Agôn, Laboratoire de

recherche, Marionnettes et Dramaturgie. Disponível em: <http://agon.ens-


lyon.fr/index.php?id=1775>. Acesso em: 29 ago. 2011.
2 KERKHOVEN, Marianne Van. Le processus dramaturgique. in Danse et dramaturgie, 7 CARRÉ, Alice. Postures et pratiques dramaturgiques. In: Agôn, Laboratoire de

Nouvelles de danse, Bruxelas, n. 31, 1997, p. 19 [N. do E.: Consultar o artigo recherche, Danse et dramaturgie, Dramaturgie et processus de création. Dis-
“O processo dramatúrgico” na presente publicação (p. 179)]. ponível em: <agon.ens-lyon.fr/index.php?id=1210>. Acesso em: 17 jul. 2010.
3 N. do E.: Consultar verbete MOVIMENTO na página 130. 8 FARCET, Charlotte. h2O. In: COUNTANT, Philippe. Du dramaturge. Nantes: Édi-
4 N. do E.: Consultar verbete 1 e 2 DRAMATURGIAS, página 19. tions Joca Seria, 2008, p. 42. (Coleção Les Carnets du Grand T).
5 FLOCH, Yohann. Écrire pour le cirque. Stradda, n. 9, julho de 2008. 9 Id.

– –
216 217
[…] trata-se de ‘pesar’ a importância das partes, de trabalhar com a Na mesma perspectiva, Bart Van Den Eynde, dramaturgista, no- sen-
tido
tensão entre as partes e o todo, de desenvolver a relação entre os ato- tadamente da coreógrafa Meg Stuart, afirma que “[…] a dramatur-
res/dançarinos, entre os volumes, as disposições no espaço, os ritmos, gia está onipresente: não podemos deixar de nos questionarmos por
as escolhas dos momentos, os métodos etc.; resumindo, trata-se de que entramos, por que saímos, por que fazemos tal gesto quando
composição. A dramaturgia é o que faz respirar o todo.10 tudo é produto de uma escolha. Não existe nada no início. Sobre-
Segundo Roberto Fratini-Serafide, colaborador da coreógrafa tudo na dança. E isso com ou sem dramaturgista”.15 Mas se numa
Caterina Sagna, a dramaturgia consiste em “[…] juntar coisas he- cena exposta aos olhares interpretadores dos espectadores tudo
terogêneas para explorar, explicar as coisas, […] elaborar uma ar- significa, nem sempre tudo significa intencionalmente ou como a
madilha para capturar o sentido”.11 Antoine Pickels, por sua vez, equipe artística previu. O sentido emana da obra tanto quanto do
diverte-se em descrever o dramaturgista como um “montador de olhar que se lança sobre ela: a dramaturgia pode, então, consistir
quebra-cabeças”.12 num dimensionamento da abertura do sentido, reconhecimento e
Pelo fato de esse trabalho de agenciamento supor um olhar dis- distinção entre os momentos em que o unívoco é necessário e aque-
tanciado, o dramaturgista é frequentemente considerado como o les nos quais podem, ao contrário, reinar o imprevisto e o enigma.
primeiro espectador da obra, primeira testemunha de seus efeitos Dessa maneira, além do trabalho dramatúrgico de leitura, in-
de sentido, primeiro receptor da ação do sentido. terpretação, elaboração, exploração ou orientação do sentido, po-
Olho exterior, o dramaturgista ajuda na identificação e na elabo- demos até afirmar, como o faz Roberto Fratini-Serafide, que “[…] a
ração do sentido durante o processo de ensaio.13 Mathurin Bolze re- dramaturgia não é estruturação do sentido do espetáculo, mas es-

 
vela, por exemplo, que sua “assistente” Marion Floras faz dramatur- truturação do desejo”16 : é o que desperta no espectador o desejo de

 
gia, pois ela passa-lhe confiança, colocando palavras nas imagens ver para além do que está apresentado; o que coloca seus sentidos
que ele está fabricando sem saber exatamente o que elas contam.14 em alerta.

10 KERKHOVEN, Marianne Van. Le processus dramaturgique. op.cit., p. 21 [N. do

E.: Consultar o artigo “O processo dramatúrgico” na presente publicação,


p. 179].
11 FRATINI-SERAFIDE, Roberto. Dramaturgie de l’attente. Résonances – du regard

à l’oeuvre: autour de la réception en danse, comunicação apresentada durante


a jornada de estudos Biennale de la danse, sob a direção de Irène Filiberti
e Claudia Palazzolo, organizada pela Université Lumière — Lyon 2, 2 de
outubro de 2010.
12 PICKELS, Antoine. La dramaturgie travaille à sa propre disparition. Festival

de Uzès Danse et dramaturgie. Une danse en quête de sens, junho de 2009. 15 Bart Van Den Eynde em entrevista a Barbara Métais-Chastanier, realizada em

(Intervenção). Bruxelas em 11 de setembro de 2010.


13 N. do E.: Consultar verbete OLHAR na página 173. 16 FRATINI-SERAFIDE, Roberto. Dramaturgie de l’attente. Résonances – du regard
14 BOLZE, Mathurin. Dramaturgie du cirque. Encontro apresentado por Aurélie à l’oeuvre: autour de la réception en danse, comunicação apresentada durante
Coulon e Sylvain Diaz. In: Agôn. Le laboratoire, cirque et dramaturgie a jornada de estudos Biennale de la danse, sob a direção de Irène Filiberti
[revista eletrônica]. Disponível em: <agon.ens-lyon.fr/index.php?id=1220>. e Claudia Palazzolo, organizada pela Université Lumière – Lyon 2, 2 de
Acesso em: 22 set. 2010. outubro de 2010.

– –
218 219
Primeiramente, uma importante distinção
terminológica:
Dramaturgia pode ser definida como o
conjunto de técnicas/teorias que governam
a composição de um texto teatral.
Texto teatral não mais quer indicar o
texto dramático, literário, mas o texto
do espetáculo, o texto da performance.
Este é concebido como uma complexa rede
de diferentes tipos de signos, meios
expressivos ou ações, o que remonta à
etimologia da palavra “texto” que implica D r a m ato - CALDAS ,
Pa u lo ;
a ideia de textura, de algo tecido. GADELHA,
Dramaturgia pode agora ser definida como: lo g i a s da E r n e st o .
Danç a e d ra-
técnicas/teorias que governam a composição
d a n ça
maturgi a[s].
da performance-como-texto; é o conjunto S ã o Pa u l o :
de técnicas/teorias que governam a n ex u s, 20 1 6.
composição de signos/meios expressivos/ ––––––
ações que são tecidas para criar a textura
da performance, o texto da performance. Sa n d r a
trecho de: Marco De Marinis Meyer
Dramaturgy of the spectator
[The Drama Review: TDR, v. 31, n. 2, 1987, p. 100.]

– –
220 221
Doutora em Artes, d r a m atO LO g i a S ocorrências da dramaturgia do corpo qe dança no
Comunicação e Semiótica d a d a n ça brasil
––––––
(PUC-SP). Professora titular Há dez anos escrevi o texto “Elementos para a composição de
sAndrA Meyer
de Dança e Técnicas Corporais
do Curso de Licenciatura uma dramaturgia do corpo e da dança” para o livro Tubo de en-
em Teatro e do Programa de saio — experiências em dança e arte contemporânea (2006), ocasião
Pós-Graduação em Teatro em que abordei questões referentes à dimensão cinética e ao sen-
– Mestrado e Doutorado tido na dança. Vivíamos um momento em que a dramaturgia ga-
 
– do Centro de Artes da nhava fôlego na produção acadêmica e poética no Brasil, e a dança
 
Universidade do Estado de
Santa Catarina (Udesc). apresentava-se como um campo propício ao alargamento deste con-
– ceito. A ideia era a de que o corpo não operaria apenas no campo re-
presentacional, mas seria percebido e vivido pelo artista e pelo es-
pectador numa dimensão complexa, envolvendo uma perspectiva
cinética (não mimética) construída num estado de encontros, num
desenho de forças dos corpos em ação (meyer, 2006). Até então res-
trito às regras de composição do texto escrito no teatro1 , o con-
ceito de dramaturgia na segunda metade do século xx se entendeu
à cena para finalmente se entranhar no corpo do ator e do bailarino.

1 De acordo com Patrice Pavis (1999), a dramaturgia clássica busca os elementos

constitutivos da construção dramática de qualquer texto clássico: exposição,


nó, conflito, conclusão, epílogo etc. Examina exclusivamente o trabalho do
autor e a estrutura narrativa, sem ater-se à realização cênica. No seu
sentido mais recente, a dramaturgia tende a englobar texto e realização
cênica, constituindo escolhas estéticas e ideológicas.

– – –
22246 223
O lugar de emergência de sentido migrava do texto ao corpo, e a reformulando-se criticamente, a infiltração do termo dramaturgia DRA -
MATO -
dança reivindicava suas especificidades. As palavras de Rosa Her- no campo da dança permitiu a reincidência de problemas originá- LOGIAS
coles (2010, p. 199) enfatizam este aspecto: rios do campo do teatro, ou seja, o gênero drama e o ato de compor DA
DANÇA

Em primeira instância, dramaturgia será entendida como composição peças. A artista mineira Adriana Banana (2010, p. 176) elabora uma ––––––
S A NDR A
de ações. Considerando-se que o ambiente onde estas ações se configu- pergunta “que não quer calar”, ao discutir processos de semiose na M EYER

ram é o da dança, torna-se imperativo o reconhecimento dos distintos dança:


modos como as instruções que constituem o movimento são, singular- […] por que pegar emprestado um termo consolidado pela tradição tea-
mente, implementadas por cada corpo. Assim sendo, a denominação tral, dramaturgia-dramaturgo, quando o próprio coreógrafo em dança
dramaturgia da dança torna-se imprecisa, necessitando ser substituída já exerceria um papel de mediador da configuração organizativa neste
por dramaturgia do corpo que dança. processo de produção de significações, ou seja, de semiose, na dança?
Charlotte Dubay e Benoit Vreux (1997, p. 53) sintetizam a aborda- O dispositivo coreografia parecia não dar conta sozinho da dança
gem corporificada que orientou parte da produção em dança da pri- como campo expandido no início do novo milênio. Ao problema-
meira década dos anos 2000: “Em dança, a dramaturgia se centra no tizar a função do coreógrafo, a historiadora francesa Laurence
corpo, que ela designou como sendo o principal lugar de emergên- Louppe (1938–2012), em sua obra seminal A poética da dança con-
cia do sentido”. Paulo Paixão (2010, p. 206) destacaria igualmente o temporânea, publicada em 1997 na França, ao citar Nathalie Schul-
papel do corpo numa dramaturgia de dança, com destaque para a mann a propósito da poética de Josef Nadj, salienta que o traba-
produção brasileira: “[…] o material humano seria decididamente lho do coreógrafo seria o de “[…] propiciar encontros ou situações
 
o mais importante, considerado como fundamento da criação; o de grupo entre pessoas que trabalham a sua gestualidade de mo-
 
corpo, com sua lógica própria seria o que forneceria sentido para a dos diferentes” (2012, p. 224). Ao complementar o seu argumento
construção dramatúrgica”. acerca da composição coreográfica, Louppe introduz timidamente
O termo dramaturgia passa a ocupar o lugar até então central o termo dramaturgia, justificando-o na medida em que envolve
da coreografia e da composição, tão caras historicamente à dança, uma encenação, sem retomá-lo nos demais capítulos de seu livro.
por conta da expansão de perspectivas de criação e fruição e, con-
Trata-se do que alguns coreógrafos actuais preferem designar por ‘dra-
sequentemente, de outros entendimentos acerca do corpo, da co-
maturgia’, que implica a distribuição de estados de linhas de força ou
reografia e do papel do coreógrafo, com ênfase em processos e de tensão a partir de dados corporais homogêneos e heterogêneos, re-
modos colaborativos. Vale lembrar que coreografia deriva de dois conhecidos ou não como tal, mas ‘dados’, não retrabalhados com vista
termos gregos: choreia, que sintetiza o movimento e a vocalidade a uma globalidade orgânica (2012, p. 224).
presentes no coro grego, e grafia, ato da escrita, ou seja, trata-se
A proposta da revista belga Nouvelles de Danse no referenci-
primeiramente de uma escrita do movimento da dança no papel,
ado número temático Dossier Danse et Dramaturgie (Dossiê Dança
portanto textual, para posteriormente constituir-se propriamente
e Dramaturgia), publicado também em 1997 e totalmente dedicado
como a arte do corpo inscrito no espaço/tempo cênico no século
à dramaturgia, instaurava de vez e de forma contundente modos
xx (foster, 2011, p.16). Ainda que a dramaturgia teatral tenha
de pensar a provisoriedade e a processualidade da dramaturgia na
se expandido no século xx do texto para o espaço/tempo cênico,
dança, com significativa repercussão nas produções artística e aca-
– –
224 225
dêmica no Brasil. Uma das autoras, Marianne Van Kerkhoven, veio pudesse antecipar ou direcionar a percepção do espectador. O pe- DRA -
MATO -
a nomear de “nova dramaturgia” aquela em que o sentido, as in- rigo é o dramaturgo incorrer numa postura demasiado intervenci- LOGIAS
tenções, as formas da peça surgem durante o processo de trabalho onista, baseada num modo de relação de poder que Adrian Heath- DA
DANÇA
(profeta, 2015, p. 92). field (2010, p. 98), citando André Lepecki e Myriam Van Imschoot, ––––––
S A NDR A
De muitos modos, várias publicações na virada do milênio evi- nomeia como escópica. Para Adrian Heathfield (2010), a dramatur- M EYER
denciam o papel da dramaturgia do corpo, do movimento e da gia não pertence somente ao dramaturgo ou dramaturgista.
dança, bem como do dramaturgista2 , tais como em Hercoles (2006), No texto Una dramaturgia sin dramaturgo, o autor problema-
Meyer (2006), Greiner (2007), Soter (2010), Velloso (2010), Paixão tiza o papel do dramaturgista, inserindo-o num de jogo de relações
(2011) e Mundin (2014), enfatizado aqui o contexto brasileiro. No complexas para encarar a alteridade e estar à altura dos aconteci-
país, artistas da dança, abriam perspectivas de uma corporeidade mentos, sugerindo que cada ensaio é um evento singular. Nas prá-
própria, pelo desvio do passo coreográfico previamente instituído ticas que o autor analisa, não haveria a figura de alguém operando
por técnicas de dança codificadas e seus repertórios consolidados, por trás dos trabalhos, o que o aproximaria de papéis como o do di-
com proposições formativas/poéticas que levassem em conta as sin- retor ou do coreógrafo, contudo, cada uma das produções citadas6
gularidades que cada corpo possui para entender e ativar dança. manifesta-se esteticamente em acontecimentos dramatúrgicos per-
Por outro lado, processos criativos colaborativos e interdisciplina- cebidos e problematizados por todos os envolvidos no processo, e
res exigiam, em sua complexidade, a cooperação entre coreógrafos, que se convertem em “[…] um movimento de relações através de
dramaturgistas e bailarinos, vide a parceria entre a Cia Lia Rodri- uma constelação de perguntas, enfoques e respostas à questão que

 
gues e Silvia Soter (rj)3 e a colaboração entre a solista Vera Sala nos ocupa” (heathfield, 2010, p. 103). E os espectadores estariam

 
e Rosa Hercoles (SP). Outras atribuições surgem na busca por um fora e dentro, como cocriadores dos trabalhos e, portanto, seriam
viés colaborativo, algumas no limiar de processos acadêmicos, tais parte dos acontecimentos, e não simplesmente receptores dos senti-
como a orientação de projeto de pesquisa realizada por Fabiana Dul- dos. Para Heathfield (2010), o papel de um dramaturgo (o que enten-
tra no Grupo Cena 11 Cia de Dança (sc)4 e a colaboração teórica do demos como dramaturgista) não seria o de ajudar a dar sentido, seja
filósofo Charles Feitosa na interlocução com a poética de Micheline para o artista ou para o espectador; se acercaria mais de um analista
Torres (rj).5 ou parteiro, pois não há possessão sobre as ideias, somente a aten-
O dramaturgista como interlocutor ganha espaço, expondo a ção, o cuidado e a responsabilidade em relação às forças imanentes
problemática de sua atuação como “olho externo” a salvaguardar de cada proposição poética. Atentos ao assunto, alguns eventos de
processos de criação e seus desdobramentos de sentido, como se ele dança no Brasil nos anos 2000 incorporaram discussões em torno
da dramaturgia e do dramaturgista, culminando em propostas dife-
2 Uma das atividades do dramaturgista seria a de participar de processos de renciadas, tais como as pioneiras duas edições do Encontro das No-
criação junto ao diretor/coreógrafo, de provocar reflexões e questionamen- vas Dramaturgias do Corpo, realizadas em Curitiba (pr) em 2001 e
tos.
3 Vide o artigo “Um pé dentro e um pé fora: passos de uma dramaturg”, de
2003, respectivamente, idealizadas por Christine Greiner e organi-
Silvia Soter (2010).
4 No Projeto SKR – Procedimento 1 (2002). 6 And on the thousandth night, por Forced Entertainment, e Improvisación, de
5 Na obra Eu prometo, Isto é político (2010). Boris Charmatz.

– –
226 227
zadas por Marila Velloso; e Tecido Afetivo — Por uma dramaturgia Em um artigo sobre dramaturgia, Marilla Veloso (2010) chama DRA -
MATO -
do encontro, proposta por Andréa Bardawil e realizada em 2010 em atenção para a necessidade de o artista ampliar sua capacidade per- LOGIAS
Flecheiras (ce).7 Por meio de um viés colaborativo, Tecido Afetivo ceptiva para o que acontece em seu ambiente ou contexto, citando DA
DANÇA
promoveu o encontro de artistas e pesquisadores interessados em Lynda Gaudreau. Para a coreógrafa canadense, o artista seria al- ––––––
S A NDR A
pensar e mapear questões relativas à dramaturgia na produção em guém com a atribuição de desenvolver uma percepção de mundo, M EYER
dança, configurando-se como um marco conceitual no que se refere contudo não restrita à produção em dança, aos modelos e a ques-
a modos de organização de eventos e de abordagens voltadas à dra- tões desta enquanto linguagem (do corpo, do movimento, do sen-
maturgia na cena contemporânea. O subtítulo do evento evidencia tido), a fim de perceber os sensos comuns que vigoram no entorno
a ideia de que o encontro propicia a emergência de uma dramatur- relacional do artista.
gia, ou que a dramaturgia ocorre em relação.8 De agora em diante, Proponho que nos reportemos ao que insurge como potência e
a ideia de dramaturgia como relação acompanhará este ensaio. urgência na relação entre os partícipes de uma dada situação perfor-
mativa envolvendo artistas e públicos, para repensar o que se apre-
(des)dramaturgizar o corpo senta dramaturgicamente, uma vez que Van Kerkhoven (1997) nos
alerta que a dramaturgia se enuncia, mesmo que não nos ocupemos
Feito este breve relato sobre ocorrências da dramaturgia do
dela diretamente ou não a nomeemos como tal. Arriscaria especu-
corpo e da dança no contexto artístico e acadêmico no Brasil, gos-
lar sobre o esvaziamento do imperativo do sentido do/no corpo para
taria de apostar, neste ensaio, em um outro referencial, que aponta
o que emerge entre corpos. Como a dramaturgia da dança poderia
para o que escapa ao desejo do artista e do dramaturgista de “cons-
 
proteger-se de si mesma?
truir” sentido e de “fazer” dramaturgia no corpo, ao que excede do
 
Ainda que ao longo da história do teatro o termo dramaturgia
corpo do artista e suas qualidades investigativas como o principal
e seu radical drama tenha se constituído como um gênero literá-
lugar de emergência do sentido. Desviar o olhar de eixos recorren-
rio/teatral, o conceito remete, em sua etimologia, a uma dimensão
tes quando pensamos na noção de dramaturgia na dança: o drama-
acional (drama = em ação, do original grego spãua). Como repen-
turgista, o sentido, o corpo, o movimento. A ideia não é dizer que
sar uma dramaturgia que não esteja demasiadamente centrada no
o corpo não interessa mais como questão na dramaturgia, fato já
corpo do artista e emanada de sentidos? Tentei esboçar algo já no
incorporado, mas estender os processos de subjetivação que o atra-
ensaio “Tessituras em ação. 7 breves notas sobre dramaturgia: tecer
vessam, que dele escapam, que o constrangem, que passam ao lado
tramas sem dramas ou dramas sem tramas” (meyer, 2010), durante
ou ao largo dele, que o tornam invisível, que lhe dão visibilidade, e
o encontro Tecido Afetivo aqui citado. Ao ler “Derivas de um plano
não somente o que dele (o corpo) emana como proposição investi-
de composição em dança: o todo é menor do que as partes” (2016),
gativa através do movimento e da busca pelo sentido.
um texto/experimento dramatúrgico de Thereza Rocha, encontro o
movimento que há pouco esbocei, ou seja, o de buscar um bom ar-
7 Encontro presencial realizado de 7 a 12 de junho de 2010, na Praia de
gumento para ainda falar em dramaturgia, no exercício hercúleo
de extrair do drama a parte teatral textual e narrativa, restando so-
Flecheiras, Trairi, Ceará.
8 Para mais informações, consultar o documentário e catálogo Tecido Afetivo, mente as ações. Desta forma, se nos atermos ao aspecto acional
por uma dramaturgia do encontro (2010).

– –
228 229
(meyer, 2006, 2010; rocha, 2016), como e quando ações poderiam do que aí está a nos afetar: “Hoje, tudo é feito para conexão abso- DRA -
MATO -
ser agenciadoras de relações? luta, a mais saturada possível” (idem). Pergunto: como a arte pode LOGIAS
Se pensarmos a dramaturgia como algo processual (kerkkoven, (des)operar este processo de aceleramento? Que sentido teria ainda DA
DANÇA
1997), que se dá concretamente na experiência, pela intensidade dos em operarmos sob a instância do sentido em dança, diante de tama- ––––––
S A NDR A
encontros, pelos afetos entre os partícipes, evocaria aqui os bons nha saturação? Talvez um sentido como direção, que não faça Sen- M EYER
encontros, no sentido espinosista, que aumentam a potência da arte tido com “S”, mas um sentido menor, minoritário, com “s” minús-
em propiciar modos de existir e (re)existir. Trago a ideia de encontro culo, como comenta Thereza Rocha (2016, p. 219), que seja “[…] da
como uma ferida que se abre, pensamento articulado por Fernanda ordem da potência, do paradoxo, da abertura para séries possíveis,
Eugênio e João Fiadeiro (2012): produzidas pela emergência da diferença — uma espécie de empuxo
“Uma ferida que, de uma maneira tão delicada quanto brutal, alarga o do devir”, sempre disponível a outras composições. Em seu ensaio
possível e o pensável, sinalizando outros mundos e outros modos para Le processus dramaturgique (O processo dramatúrgico)11 , Kerkho-
se viver juntos, ao mesmo tempo que subtrai passado e futuro com a ven nos alerta sobre certas especificidades relacionadas aos senti-
sua emergência disruptiva”.9 dos (e significados), que na dança estão sob suspensão e suspeita:
Dramaturgia como encontro. O encontro, quando percebido “[…] a dança não é o meio mais adequado para se contar estórias”
como oferta, aceite e retribuição, pode possibilitar a emergência de (1997, p. 3), posto que o modelo narrativo do drama, nos moldes
um “[…] meio, um ambiente mínimo cuja duração se irá, aos pou- aristotélicos de começo, meio e fim, não encontra aderência pací-
cos, desenhando, marcando e inscrevendo como paisagem comum”. fica na dança. E isto o compositor de danças Jean-Georges Noverre

 
Como deixar acontecer relações dramatúrgicas ou dramaturgias em (1727–1810) perece ter percebido. Ele, que bem recentemente pas-

 
real ação — relação? Citando uma fala do filósofo Peter Pál Pelbart, sou a ser considerado por alguns pesquisadores como o primeiro
na entrevista intitulada “Tudo é feito para conexão absoluta, a mais dramaturgo da dança (teria de fato o sido?), posicionou-se contra as
saturada possível”, diria assim para começar: “[…] se vive hoje uma tratativas do drama aristotélico aplicadas à composição dos balés:
espécie de saturação em todos os sentidos” (pelbart, 2016).10 O […] O balé é filho do poema e não pode de modo algum ser constran-
autor discorre sobre a mobilização a que somos submetidos todo gido pelas regras estreitas do drama, por estes entraves que o enge-
o tempo – de imagens, palavras, sons, estímulos de toda ordem –, nho se impõe, que estreitam o espírito, comprimem a imaginação, des-
numa espécie de “[…] ‘turbocapitalismo’ que mobiliza o corpo, os troem totalmente a composição do balé, privando-o da variedade que
constitui seu encanto (noverre apud monteiro, 1998, p. 96–97).
sentidos, captura a atenção, preenche ao máximo os espaços men-
tais […] em seus ‘modos de controle, de plugagem, de monitora- É curioso constatar que, antes de Noverre, o padre jesuíta e
mento, de direcionamento” (idem). O mais difícil, para Pelbart, é compositor de danças Claude-François Ménestrier (1631–1705) su-
viver uma experiência de permita uma desplugagem e desconexão blinhara a superioridade mimética do gênero dança sobre as outras
artes, mas por outras vias, mais precisamente pelas qualidades ci-
9 Excerto da conferência-performance Secalharidade, de João Fiadeiro e Fer- néticas do movimento, que seriam os intérpretes mais fiéis da natu-
nanda Eugénio, no Culturgest, em junho 2012, relacionado ao projeto AND_LAb, reza das coisas e das paixões. Para ele, a dança teria uma dupla ca-
por eles articulado.
10 Entrevista à revista Continente, sem referência de paginação. 11 N. do E.: Consultar tradução na página 179 do presente livro.

– –
230 231
pacidade de imitar as ações (mais visíveis) e as afecções (mais inte- modos de estar junto, de acionar, de desdramatizar. No seu último DRA -
MATO -
riores) via movimento, questão que será retomada no final dos anos trabalho, Entre ver (2015), ela praticamente não está em cena; o pú- LOGIAS
1990 sob a perspectiva de uma dramaturgia do corpo. blico a vê num segundo em que a luz acende, para depois desapare- DA
DANÇA
cer. O palco permanece desconcertantemente vazio na maior parte ––––––
S A NDR A
(des)dramatizar para (des)mobilizar corpos do tempo, espaço aberto a percepções dos presentes, estimuladas M EYER
pelas falas em off da artista: “[…] porque não sei fazer para o pú-
De que corpos e de que danças falo ao (des)evocar o termo dra-
blico”.13 Se a noção de dramaturgia cabe aqui, ela não centraliza-se
maturgia? Uma recente produção contemporânea de dança no Bra-
no corpo da artista; o sentido que possa vir a emergir acontece na
sil endereça sua poética e estética de forma singular em uma pro-
relação com os seus interlocutores (e não para estes), num convite a
posição de encontros, recolocando questões outras ao problema da
suspender os regimes das corporeidades vigentes, considerando-se,
dramaturgia, outrora intensificada sobremaneira na presença do
ainda, que a ideia da dança como movimento dos corpos em cena
corpo e no movimento do intérprete. O que não implica, novamente
tem sido colocada em questão na contemporaneidade. Trata-se de
destaco, em abandono de uma investigação da corporeidade. Trata-
ativar outros dispositivos de interrupção, de suspensão, de desmo-
-se de ativar o que não cabe no indivíduo – no corpo e na investi-
bilização de modos já dados de captura do corpo, dos sentidos, da
gação do movimento dançado –, e que necessita reverberar no co-
atenção. O performer e diretor Janez Jansa, na entrevista intitulada
letivo.
From Dramaturgy to Dramaturgical (2010)14 , chama atenção para
Começaria por Finita (2013), o solo que a artista mineira Denise
os modos de composição da arte contemporânea, contrários à ideia
Stutz12 compôs depois da morte de sua mãe. Como descreve a ar-
 
de um fio condutor (aquele da dramaturgia dita clássica). A estru-
tista, “[…] ali está tudo o que me foi deixando sem chão às vezes, e
 
tura destas peças remonta a uma linha frequentemente interrom-
que também deixa sem chão as outras pessoas […] A minha histó-
pida: “Vemos que há buracos, que há pausas no meio, mas de al-
ria está no meu corpo, certas coisas ficaram como potência” (apud
guma forma a estrutura ainda se mantém. A questão é: o que real-
meyer, 2014). Contudo, o que no corpo é intensificado não está con-
mente sustenta esta estrutura?” (2010). Este é o primeiro ponto que
tido na artista, pois os modos como ela ativa presença e ausência
o autor sugere para pensarmos em dramaturgia na performance
(e não somente a sua e a de sua mãe, que ela evoca na obra, mas
contemporânea, na medida em que estes espaços vazios, ou ele-
da própria dança em sua ontologia) permitem que a situação dra-
mentos descontínuos na estrutura da performance, são locais de
matúrgica seja elaborada com os espectadores. Denise desmobiliza
convite à percepção, à doação de sentido15 , à ferida aberta, ao en-
a dança do corpo propriamente dito, recolocando-a no ambiente, e
contro inesperado. Marcelo Evelin16 , a seu modo, também desmobi-
descaptura a atenção sobre si para o encontro com outro. O solo
inicia com a pergunta: “Como é que eu posso me aproximar, como 13 idem.
14 Disponível em: <http://sarma.be/docs/2873>.
é que eu posso me relacionar?”, questão ética que redireciona os 15 A proposição deleuziana caberia aqui: “O sentido que é nunca princípio ou

origem, ele é produzido. Ele não é algo a ser descoberto, restaurado ou


12 Denise Stutz foi uma das fundadoras do Grupo Corpo. Fez parte da Lia re-empregado, mas algo a produzir por novas maquinações” (DELEUZE, 2000,
Rodrigues Cia de Danças como bailarina, professora e assistente de direção. p. 75).
A partir de 2003, começou a desenvolver seu próprio trabalho solo, com 16 Marcelo Evelin é coreógrafo, pesquisador e intérprete; vive e trabalha

destaque para: DeCor (2003), Finita (2013) e Entre Ver (2015). entre Amsterdam e Teresina. Em 1996, fundou sua empresa Evelin Demolition

– –
232 233
liza a dança esperada de cada corpo, colocando-o num movimento os meios de interação com as pessoas. Cesar analisa as relações en- DRA -
MATO -
de alteridade radical. Remeto à Batucada (2014)17 , uma intervenção tre arte e aspectos públicos na obra de Joseph Kosut19 , cujo argu- LOGIAS
político-poética que mobiliza uma dança-multidão. A experiência mento opera “[…] no compartilhar a responsabilidade de ativação DA
DANÇA
proposta por Evelin não é a de um indivíduo e suas qualidades cor- do trabalho com o espectador […] e abre diferentes caminhos que ––––––
S A NDR A
porais como centro (ao menos um centro fixo). Não há um investi- possibilitam a criação de um público e de uma esfera pública de dis- M EYER
mento de pesquisa de movimento verticalizada no corpo; importa cussão”. Esta ativação pode se dar dentro ou fora do espaço expo-
mais o quanto um corpo pode mover a si e a outros corpos poética- sitivo (ou espetacular, no caso das artes do corpo), “[…] o que im-
-ética-politicamente, visto que Batucada reúne cerca de 50 perfor- porta é o modo de relação que a proposta artística estabelece com
mers – profissionais e não profissionais – a partir de uma convoca- os espectadores”, o que Joseph Kosuth chama de “trabalhar direta-
tória pública por onde é apresentada. Muitos são os corpos (e des- mente com o mundo” na produção de sentido de um trabalho (apud
conhecidos) a articular uma comunidade que não é soma de indiví- cesar, 2009, p. 88, grifo nosso).
duos; cada qual justapõe sua possível heterotopia para o exercício
de olhar a diferença, mas que concomitantemente articulam um co- acionar intensivamente um mundo
mum. Os instrumentos da batucada desta ensurdecedora minicomu- Volto aqui a reacionar a coreografia em um modo relacional, dei-
nidade (ou massa)18 são latas e panelas, numa festa-protesto (não xando a ver as transformações do conceito em direção a aspectos
há como ignorar a multidão que vem saindo às ruas desde junho processuais comumente destacados na dramaturgia da dança. Na
de 2013). A multidão em Batucada (artistas e público) coengendra obra Always more than one: individuation’s dance, Erin Manning
 
uma política coreográfica que descentraliza a esfera do sentido do afirma que coreografar é um verbo, “[…] uma atividade de orga-
 
corpo para o (des)encontro entre corpos. No final de Batucada, para nizar relações entre corpos” (2013, p. 76). Coreografia é vista não
sair do espaço, a multidão que presencia a performance tem que se como um princípio de organização de corpos pré-constituídos, ou
misturar para encontrar as pequenas brechas entre os cerca de 50 uma prática realizada por um indivíduo para outro, mas uma eco-
corpos nus e exaustos deitados inertes ao chão. Para Evelin, o pú- logia emergente nas relações dos seres vivos entre si e com o am-
blico faz parte desta massa. E o artista? Se pensarmos que “artista é biente. Aproximando-se da filosofia de Gilbert Simondon, a autora
público”, no sentido atribuído por Vitor Cesar (2009), podemos nos descreve o corpo como um processo de individuação que experi-
aproximar de uma formulação crítica que envolve não somente a menta sua defasagem coletivamente. Coreografia seria um evento
Arte Pública realizada em espaços públicos da vida cotidiana, mas que se conecta com o “[…] meio relacional que excede o ser hu-
Inc. em Amsterdam. Em 2006, fundou o Núcleo do Dirceu, um coletivo de
mano ou em que o ser humano é mais ecologia do que indivíduo”
artistas e plataforma para pesquisa e desenvolvimento das artes cênicas (manning, 2013, p. 76). A dança que acontece no corpo não é só
contemporâneas, que coordenou até 2013, em Teresina, Piauí. do corpo. Nem o corpo nem a dança acontecem num a priori, e
17 Projeto contemplado com o Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2013, Batu-
sim como relação no mundo. Como aponta Francisco Gaspar Neto
cada foi concebido para o Kunsten Festivaldes Arts, realizado em Bruxelas
(Bélgica), onde aconteceu sua estreia internacional em maio de 2014.
18 No projeto anterior, De repente fica tudo preto de gente, Marcelo Evelin

parte da ideia de massa, por meio da leitura de Massa e poder (1995), de 19 O artista visual americano Joseph Kosuth é considerado um dos principais

Elias Canetti, no sentido de problematizar o viver junto. artistas no desenvolvimento da arte conceitual.

– –
234 235
(2016, p. 103), citando Simondon, o conhecimento não é nem a pri- tem leis fixas que podem ser totalmente definidas com antecedên- DRA -
MATO -
ori nem a posteriori, mas a praesenti; cia, pois toda produção faz seu próprio método de trabalho, como LOGIAS

[…] a relação entre o sujeito e o objeto não se estabelece a partir de for- pontua Marianne Van Kerkhoven (1994). A política cognitiva defi- DA
DANÇA
mas preexistentes no pensamento e coisas no mundo; ambos se criam nida por Kastrup (2014, p. 33) refere-se a um tipo de atitude ou de ––––––
S A NDR A
ao mesmo tempo, na relação, e não como substâncias que se põem a re- relação encarnada que se estabelece com o conhecimento, com o M EYER
lacionar posteriormente. Deste modo, não entramos em relação, mas mundo e consigo mesmo.
existimos em relação, a relação é o meio através do qual começamos a A dramaturgia entendida como política cognitiva pode propi-
existir e permanecemos na existência. ciar um exercício ético para não se perder de vista a vida que
Manning pensa a coreografia e o problema da ação como um emerge na composição de uma poética em dança. Uma dramaturgia
desdobrar-se em relação com o meio: “A coreografia torna-se um implicada com o que emana e imana nas relações. O sentido deixa
campo de expressão para o movimento quando o corpo torna-se um de ser fixado demasiado a priori para fluir no âmbito performativo,
participante intensivo com o meio ambiente ao invés de simples- envolvendo numa mesma aventura dramatológica múltiplos inter-
mente o instigador da ação”20 (2013, p. 101, tradução nossa). Ape- locutores. Os “corpos que dançam” estariam implicados, então, para
sar dos diferentes dispositivos e discursos operantes na história da provocar uma experiência, e não para manipular seus sentidos, pro-
dança, a coreografia e a dramaturgia na produção contemporânea piciando uma situação dramatúrgica que não se contenha apenas
aqui problematizada opera por uma ética do encontro entre artistas pelo corpo em movimento, mas pelas relações que o corpo pode
e seus públicos, em relações que oportunizam modos menos norma- mover. E não há prescrição prévia.

 
tivos de perceber/agir no mundo.
 
A dramaturgia só existe em relação e emerge nas tensões do en- Referências
contro entre as tantas coisas que a constitui na duração da expe-
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riência. Ainda que a cerquemos de todo modo querendo “produzir”
é semiose‼! Revista Sala Preta, ppgac em Artes Cênicas, usp, v.
sentido, a dramaturgia como relação não preexiste ao ato de conhe-
10, n. 1, p. 185–189, 2010. Disponível em: <revistasalapreta.com-
cimento, no sentido que as informações já estariam dadas e dispo-
.br/index.php/salapreta/issue/view/1>. Acesso em: 15 jul. 2016.
níveis no mundo anterior ao encontro entre sujeitos e mundo, con-
formando o que Virgínia Kastrup (2014) descreve como uma polí- • bardawil, Andréa (Org.). Tecido afetivo: por uma dramaturgia do
tica cognitiva realista. Uma dramaturgia do encontro se aproxima encontro. Fortaleza: Cia. da Arte Andanças, 2010.
de outra política cognitiva, a que propõe que o conhecimento se • cesar, Vitor. Artista é público. 2009. 136 f. Dissertação (Mestrado
dá em relação; o mundo e o agente de conhecimento produzem- em Artes) — Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de
-se mutuamente, propiciando a invenção concomitante do sujeito e Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
do mundo. Considerando ainda que, na prática artística, não exis-
• deleuze, Gilles. A lógica do sentido. São Paulo: Editora Perspectiva,
2000.
20 Choreography becomes a field for movement expression when the body becomes

an intensive participant with the evolving milieu rather than simply the
instigator of the action.

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– –
240 241
Essa conversa sobre “ver” me incomoda. Eu acredito
profundamente que a dramaturgia da dança implica
a reconfiguração de toda a anatomia, não apenas
dos olhos. Quando entro no estúdio para começar a
trabalhar em uma nova peça, a questão da anatomia
torna-se muito importante e bastante literal.
Falamos sobre o corpo do bailarino, o corpo do
coreógrafo, o corpo da peça. Mas o que é o corpo
do dramaturgista? Como o dramaturgista adapta seu
corpo à dinâmica do estúdio? Em primeiro lugar,
acho que o corpo do dramaturgista não é aquela
Da n ça , CALDAS ,
P u b l icad o com o t ít ulo
monstruosidade anatômica, o “olho exterior”. Creio D a n ce , d ram at urgy and Pa u lo ;
que é crucial dizer isso. O “olho exterior”,
d ra m at urg ical t hinking .
GADELHA,
drama-
I n : C o ntem p o ra r y
expressão que tão frequentemente descreve a posição T h eat re R ev i ew : O n E r n e st o .
Danç a e d ra-
do dramaturgista na dança (e, curiosamente, para
d ra m at urgy, v. 2 0 , n. 2 ,

tu r g i a
p . 18 5 -1 9 6, 2 0 1 0 . maturgi a[s].
mim, não é invocado tanto em outras dramaturgias) S ã o Pa u l o :
lembra-me Descartes antes de escrever suas n ex u s, 20 1 6.
Meditações, fazendo experimentos com os olhos de e o pen-
cadáveres e tentando entender a percepção através
de seus olhos mortos. Como se a percepção fosse s a m e n to
uma função destacável, independente do resto do
corpo, da mente, da alma e da paixão. Agora, você drama-
poderia me dizer: “A dança é uma forma de arte
baseada em imagens. Você deve confiar no olho”. tú r g i c o
E minha resposta, claro, seria, sim eu tenho que
engajar minha visão. Mas a questão é como eu quero ––––––
envolver os sentidos. Se eu entrar no estúdio e o
trabalho que está sendo feito naquele momento exige Sy n n e K .
uma crítica, ou uma expansão, do campo visual,
obviamente tenho que “entrar” com o olho. A questão Behrndt
é que eu posso reinventar este olho. Por exemplo,
eu posso fazê-lo ouvir. Ou eu o uso para lamber e
provar a cena. Então, para resumir: eu entro no
estúdio como dramaturgista fugindo do olho exterior.
Assim como os bailarinos e o coreógrafo, entro para
encontrar um (novo) corpo. Essa é a tarefa mais
importante do dramaturgista de dança – explorar
– constantemente possíveis manifestos sensoriais. –
242 243
trecho de: André Lepecki
[em debate transcrito por Scott deLahunta em Dance dramaturgy:
speculations and reflections; Dance Theatre Journal, v. 16, n.
1, 2000.]
Synne Behrndt é D a n ça , No ensaio Formando espaços críticos: questões da dramaturgia da per-
d r a m atu r g i a e
dramaturgista, pesquisadora,
o p e n sa m e n to formance de movimento (1997)1 , Heidi Gilpin abre uma discussão
ensaísta e professora de
Performing Arts na The
d r a m atú r g i c o sobre a relação entre dramaturgia e dança.2 Um dos pressupostos
University of Winchester. É
––––––
Sy n n e K . B e h r n d t
de Gilpin é de que a dança está se movendo cada vez mais em um
organizadora (juntamente campo multidisciplinar e que, portanto, é preciso considerar cuida-
com Cathy Turner) do livro dosamente os desafios da interpretação e percepção que são incor-
Dramaturgy and performance, porados pelas composições multidisciplinares onde o movimento

editado pela Palgrave
ou o corpo são os protagonistas.

Macmillan (2008).
– Ela sugere que as práticas de dança contemporânea exigem “[…]
reconhecimento e percepção mais gerais do movimento e mais es-
pecíficos dos corpos que movem”, e convocam uma compreensão
das abordagens não hierárquicas para a composição3 . Assim, Gilpin
afirma que enquanto o teatro dramático posiciona a peça ou texto
no centro “das estratégias interpretativas do público”, as práticas de
dança contemporânea geralmente aspiram por variadas “perspecti-
vas disciplinares – nenhuma das quais desempenhando hierarqui-
camente um papel central”.4 Gilpin segue mobilizando a dramatur-

1 N. do E.: Consultar tradução na página 139 do presente livro.


2 GILPIN, Heidi. Shaping critical spaces: issues in the dramaturgy of movement

performance. In: JONAS, Susan; PROEHL, Geoff; LUPU, Michael. Dramaturgy in


american theater. Orlando: Harcourt Brace College Publishers, 1997, p. 83–87.
3 Ibid., p. 86.
4 Ibid., p. 85.

– –
244 245
gia e o dramaturgista como termos e processos úteis que podem ar- Além disso, a dramaturgia está gradualmente encontrando seu DANÇA ,
drama-
ticular “[…] como essa qualidade multidisciplinar funciona no nível espaço em cursos no Reino Unido, em outros países europeus e na tu r g i a
da composição”.5 América do Norte. Estamos num ponto em que o discurso e a tradi- E O
PENSA -
O ensaio de Gilpin conduz, implícita e explicitamente, a alguns ção da dramaturgia da dança estão começando a alcançar um foco MENTO
DRAMA -
dos principais temas que continuam a permear e sustentar o dis- mais nítido e um resultado interessante do deslocamento da drama- TÚRGICO
curso emergente sobre a dramaturgia da dança. Por exemplo: a dra- turgia para a dança, ou seja, esse novo contexto tem oferecido uma ––––––
SYNNE K .
maturgia como um processo crítico que revela pulsões composicio- oportunidade para reavaliar as premissas clássicas, como as práti- B E H RNDT

nais e narrativas no trabalho; a dramaturgia como um processo que cas de trabalho com a dramaturgia herdadas do passado, o pensa-
se move entre prática e reflexão; e, finalmente, o papel do dramatur- mento dramatúrgico e, especialmente, o dramaturgista.
gista como facilitador dos processos reflexivos. O ensaio da autora Interessante notar que é a figura do dramaturgista que continua
também aborda uma questão mais ampla sobre a maneira como as a atrair a maior parte da polêmica e do debate. As observações da
performances de movimento contemporâneas pressionam particu- escritora e dramaturgista Myriam Van Imschoot provavelmente re-
larmente as estruturas de representação clássica e, portanto, convi- percutem naqueles que participaram de eventos internacionais so-
dam seu público a aceitá-las como proposições para “[…] uma nova bre dramaturgia, particularmente no Reino Unido:
forma de percepção”.6 Ela segue expressando alguma surpresa, já O discurso sobre a nova dramaturgia (relacionado à dança ou ao te-
que o “[…] processo de dramaturgia, especificamente para a perfor- atro) é em grande parte estruturado em torno de alguns tropos, ou,
mance de movimento, tenha sido amplamente negligenciado por para colocar de outro modo, ansiedades: a ansiedade genérica (de onde

 
críticos literários e teatrais”7 , uma opinião também expressa no con- vem o dramaturgista?), a ansiedade de definição (o que é um dramatur-

 
vite para o seminário Dance Lab: Dramaturgy, feito pela Tanz Plata- gista?).10
form, que destacou que “[…] o campo da dramaturgia da dança é di- Se tal ansiedade é comum aos contextos da dança e a outros (tea-
ficilmente abordado pela pesquisa e discurso acadêmicos”.8 Entre- trais e culturais) em que o conceito de dramaturgia é relativamente
tanto, na última década um discurso começou a ser formado atra- pouco familiar, pode-se dizer que levou a debates construtivos que
vés de simpósios, seminários, conferências, artigos, oficinas, treina- colaboraram para deslocar o foco da noção estática do “papel dra-
mentos, estudos de caso, relatos de colaboração entre dramaturgis- matúrgico” e do dramaturgista como uma figura de autoridade inte-
tas e coreógrafos, laboratórios, pesquisas de doutorado ou outros lectual na direção de modelos inclusivos e democráticos do drama-
projetos de pesquisa dedicados à disseminação da prática drama- turgista como um facilitador do pensamento dramatúrgico. Conse-
túrgica na dança.9 quentemente, o discurso emergente é dividido em diferentes ques-
5 Ibid., p. 87. É de se destacar que Gilpin não cria dicotomia entre texto e tões: por um lado, há um interesse em expandir e articular novas
movimento; além disso, ela vê paralelos fortes entre a dança contemporânea
e as formas de teatro que buscam desfazer a noção de texto dramático. ImpulsTanzWien (2007); Danseværket em Arhus (2003); The Witness as Dramaturg
6 Ibid., p. 87. (2008), organizado por Hancock 11 Kelly Live e Dance4 (Reino Unido), para
7 Ibid., p. 85. citar alguns.
8 Disponível em: <theaterhaus.com/tanzplattform2006>. Acesso em: 22 dez. 2009. 10 VAN IMSCHOOT, Myriam. Anxious dramaturgy. Women and Performance: A Journal
9 Conversations on Choreography em Amsterdam (março de 1999) e Barcelona of Feminist Theory, v. 6, n.13, p. 58 [N. do E.: Consultar tradução na
(novembro de 1999); seminários de dramaturgias e sessões de treinamento no página 191 do presente livro].

– –
246 247
definições e processos; por outro, há também uma discussão mais É de se destacar, de acordo com Bojana Bauer, que a noção DANÇA ,
drama-
crítica sobre as expectativas, valores e motivos que cercam o dra- constituir-se pela prática tem chamado a atenção para a natureza cir- tu r g i a
maturgista no contexto mais abrangente das instituições e das hie- cunstancial e experimental da dramaturgia e da existência de tan- E O
PENSA -
rarquias nas produções. tas diferentes dramaturgias quanto processos.14 MENTO
DRAMA -
A dificuldade de definir “o dramaturgista” não tem que causar Essa sugestão de que a dramaturgia ou a prática dramatúrgica TÚRGICO
ansiedade; ao contrário, as tentativas de definição para esse papel e deveria ser vista como flexível, circunstancial e dialógica não é ex- ––––––
SYNNE K .
função poderiam gerar novas possibilidades e rearticulações. A dra- clusiva para a dança. Dramaturgistas trabalhando no teatro tam- B E H RNDT

maturgia raramente é um elemento pressuposto na dança, donde bém têm investigado diferentes concepções de dramaturgia e, pos-
a colaboração entre Raimund Hoghe, Pina Bausch e o Wuppertal teriormente, tomado-a como uma noção flexível que não está conec-
Tanztheater, entre 1980 e 1989, seja geralmente citada como um dos tada a um método ou estrutura particular, ou, ainda, a um conjunto
primeiros exemplos de um dramaturgista no campo.11 Se a ausên- prescrito de ferramentas. As entrevistas com dramaturgistas con-
cia de pontos de referência histórica específicos da dança algumas temporâneos atestam que há muitas maneiras de definir um papel
vezes tem causado confusão, tem também facilitado uma rearticula- e de participar de um processo; hoje, dramaturgistas trabalhando
ção e redefinição da prática dramatúrgica de acordo com os proces- no teatro podem estar – e já estão – igualmente engajados em fa-
sos práticos contemporâneos da produção em dança. Como a dra- zer novas descobertas sobre o texto e sua dramaturgia, dentro e
maturgista e teórica da dança Bojana Bauer sugere, a dramaturgia por meio do processo. O dramaturgista tornou-se um participante
na dança está atualmente articulada através da experiência prática; ativo no processo. Por exemplo, em uma entrevista em 1977, o dra-

 
por isso o discurso consiste, em grande parte, em “[…] descrições maturgista alemão Hermann Beil aponta para uma prática mais ori-

 
do que a dramaturgia vem a ser nos diferentes processos de traba- entada pelo processo e dramaturgicamente aberta, ao afirmar que
lho ou nas diferentes peças”.12 Essa ênfase nas questões práticas, o dramaturgista contemporâneo deve adotar “[…] um método para
através das quais os dramaturgistas e colaboradores descobrem a jogar, ver, escutar e compreender o que o diretor, os figurinistas,
natureza da prática dramatúrgica pelo processo e diálogo, tem de- cenógrafos, iluminadores e atores estão pensando, para mover-se
safiado a ideia de dramaturgia como um modelo rígido ou método entre seus imaginários. […]. Ele tem que aprender juntamente com
universal que se aplica ao trabalho.13 todos”.15 Entretanto, é interessante que a migração do termo e da
prática para a dança – além de inventiva – tenha trazido as discus-
sões sobre o dramaturgista no processo para um foco ainda mais
11 Van Imschoot escreve que, durante o período entre 1980 e 1990, muita atenção
definido.
foi dedicada à dramaturgia na Holanda e na Bélgica, com dramaturgistas
Mas se a migração da dramaturgia para a dança chamou o de-
exercendo importantes papéis no “novo ‘campo’ cultural” e no paradigma
estético nas artes performativas (op.cit., p. 57).
bate sobre como podemos começar a rearticular a dramaturgia e o
12 Correspondência por e-mail com Bojana Bauer, 17 de novembro 2008.
13 Mogens Rukow propõe que a dramaturgia não deveria ser compreendida em termos 9, 2001. Disponível em: <ekkofilm.dk/interviews15id=17>. Acesso em: 22 out.
de modelos predeterminados, mas sim que os novos modelos dramatúrgicos e 2009.
estruturas podem ser melhor desenvolvidos quando estamos atentos às regras, 14 Correspondência por e-mail com Bojana Bauer, 17 de novembro de 2008.

energias e dinâmicas que surgem no próprio processo de criação. Entrevista 15 STUMM, Reinhard. Dramaturgy in Stuttgart: an interview with Hermann Beil.

em dinamarquês com Claus Christensen em “Den skandaløse Fortælling”, Ekko, In: CARDULLO, Bert. What is dramaturgy? Nova York: Peter Lang, 1995. p. 51.

– –
248 249
dramaturgista, é antes de tudo a natureza mutante da dança que dança tornam-se mais pronunciadas e fundamentadas. Essa cone- DANÇA ,
drama-
traz, talvez inadvertidamente, a dramaturgia para a dança. xão com o discurso produz uma grande variedade de novas aborda- tu r g i a
gens na dança e pressiona as concepções clássicas de coreografia, E O
PENSA -
uma prática discursiva e crítica – a entrada da drama- colocando em primeiro plano o conteúdo e o debate crítico acerca MENTO

turgia na dança do trabalho.


DRAMA -
TÚRGICO

Enquanto a noção da dramaturgia da dança que emerge atra- Pode-se dizer que coreógrafos e artistas da dança ficaram cada ––––––
SYNNE K .
vés da prática sugere uma concepção fluida do processo dramatúr- vez mais interessados em fundamentar leituras críticas e interpre- B E H RNDT

gico, podemos também usar “dramaturgia” como termo abreviativo tações do corpo, do movimento, da coreografia, da dança e dos mo-
para processos críticos, discursivos e interpretativos, como também dos com que são circunscritos e representados na própria prática.
ocorre no teatro. Podemos também, como Gilpin, desenvolver a dra- Por exemplo, ainda que esses coreógrafos e companhias produzam
maturgia como um conceito abrangente16 , que se refere a processos material muito diferente entre si, o que vincula o trabalho de Alain
discursivos, analíticos e reflexivos. Do mesmo modo, a sugestão de Platel, Sidi Larbi Cherkaoui, Les Ballets C de la B, Wim Vandekeybus
Marianne Van Kerkhoven é de que a prática dramatúrgica no tea- e Ultima Vez, Willie Dorner, Vera Mantero, Meg Stuart e Damaged
tro e na dança não diferem; sempre lidam com uma busca por um Goods, Jan Lauwers e Needcompany, Jan Fabre e algumas produções
sentido de “[…] como trabalhar com o material, seja qual for sua da Rosas e Anne Teresa De Keersmaeker é o engajamento com um
origem – visual, musical, textual, fílmica, filosófica”.17 complexo de estruturas narrativas multidisciplinares, temáticas, in-
A dramaturgia apareceu na dança no momento em que a cisão vestigações conceituais e emocionais, assim como um interesse ex-

 
entre dança e teatro estava dissolvendo-se e quando, como Bojana plícito em política e conteúdo.

 
Bauer coloca, a dança estava passando por uma radical “[…] mu- Por isso, Van Kerkhoven sugere que, em alguma medida, a dra-
dança de materiais, referências e modos de identificação”. Sua colo- maturgia também marca a distinção — ou “cisão” — entre, de um
cação ecoa na observação de Betina Milz de que a discussão sobre lado, a dança teatro conceitual e europeia e, de outro, as chamadas
processos dramatúrgicos surge no momento em que a dança come- práticas de dança pura,19 apesar de seguir lembrando que não é pre-
çou a configurar-se como um trabalho artístico complexo, que con- ciso expor essa cisão exageradamente.
vida a pensar sobre o próprio termo “dança” em si.18 Van Kerkho- Bauer postula que esse interesse pela dramaturgia também
ven concorda e destaca que a dramaturgia e o dramaturgista refle- marca um momento em que o discurso crítico foi absorvido pelo
tem um momento em que investigações teóricas e conceituais na processo, o que vê como uma desestabilização da “[…] relação de
poder entre a criação sensível e o discurso (geralmente, o discurso
16 Niels Lehmann (Institute for Dramaturgy, Arhus University) usou a expres- dos críticos de dança)”.20 Uma interpretação para isso seria que os
são “desenvolver a dramaturgia como um conceito ou termo abrangente” numa
coreógrafos, bem como os bailarinos, apropriaram-se do discurso
entrevista com Synne K. Behrndt. Arhus, agosto de 2005.
17 KERKHOVEN, Marianne Van. Looking without pencil in hand. Theaterschrift. 19 KERKHOVEN, Marianne Van. … As long as we keep track of the law of our

On dramaturgy. n. 5–6, p. 142, 1994. own growth: thoughts on ten years of parts. In: DE BELDER, Steven; VAN
18 MILZ, Bettina. Conglomerates: dance dramaturgy and dramaturgy of the body. ROMPANY, Theo (Eds.). P.A.R.T.S. – Documenting ten years of contemporary
International Research Workshop – Dramaturgy as Applied Knowledge, Tel Aviv dance education. Bruxelas: parts, 2006. p. 11.
University, 27 a 29 de maio, 2008, p. 2. 20 Correspondência por e-mail com Bojana Bauer, em 17 de novembro de 2008.

– –
250 251
e procuraram reconfigurar os processos tradicionais de produção Esse movimento em direção à independência ocorre — um pouco DANÇA ,
drama-
e se engajar diretamente com a política e a dramaturgia da sua paradoxalmente — ao se conceber o corpo e a coreografia como um tu r g i a
própria arte. texto crítico. José A. Sánchez e Isabel de Naverán observam: E O
PENSA -
A decisão de Pina Bausch de envolver os bailarinos na criação Por muitos anos, a dança foi um meio de colocar a escrita da palavra
MENTO
DRAMA -
da dramaturgia da performance, pedindo que respondessem a per- e da música em imagens por intermédio do corpo. Apenas quando a TÚRGICO
guntas em vez de coreografar para seus corpos, marca uma escolha dança começou a ser concebida como escrita, apenas quando ao corpo
––––––
SYNNE K .
dramatúrgica crucial em que, por um lado, como aponta André Le- em movimento foi dada a potencialidade de discurso é que foi possível B E H RNDT

pecki, redefine o material coreográfico em que “[…] o movimento falar da dança como uma forma autônoma de arte.24
não é mais o ponto de partida composicional”21 , e, por outro lado, os Como Bettina Milz destaca, o trabalho de Xavier Le Roy, La Ri-
dançarinos tornaram-se cocriadores do trabalho e de seu conteúdo bot e William Forsythe, para citar três profissionais muito distin-
dramatúrgico. Isso significa que as narrativas, dinâmicas e imaginá- tos, postula o corpo como “um território de pesquisa”25 , uma noção
rios dos bailarinos e do projeto informam a construção da drama- que torna possível falar do corpo como uma dramaturgia em si. Por
turgia, o que também marca um deslocamento distinto em direção exemplo, na abordagem que Elena Fernández faz de Michel Fou-
ao engajamento com a política, como investigações sobre gênero, cault, o corpo é visto como “[…] um sistema de significados cons-
hierarquias de poder, identidade e relações humanas. Há resíduos truídos social e culturalmente”.26 O corpo não é um recipiente neu-
dessa abordagem em muitas práticas na Europa, notáveis no cole- tro de “pura” (não) expressão abstrata; é preciso considerá-lo como
tivo flamengo Les Ballets C de la B, em que o conteúdo é informado uma proposição dramatúrgica que é simultaneamente inscrita e per-
 
pela pluralidade de corpos, políticas, histórias, nacionalidades dos formativa.27
 
seus bailarinos. Por exemplo, Hildegard De Vuyst destaca que “[…] Do mesmo modo, os conceitos de coreografia e dança podem
o elenco é a dramaturgia da produção” no trabalho de Alain Platel.22 ser investigados nos seus próprios conteúdos dramatúrgicos; por
Van Kerkhoven chega a sugerir que há uma correlação entre exemplo, podemos ver os trabalhos de Jérôme Bel e Thomas Leh-
a atenção à dramaturgia na dança e a emergência da dança como men como atos de desconstrução, adaptação e rearranjo da propo-
uma forma independente de arte, prática e disciplina.23 Se seguir-
mos esse argumento, como também com o argumento sobre a rela- 24 SÁNCHEZ, José A.; NAVERÁN, Isabel de. Body and photography. Carion: Journal
ção entre a dança e o discurso, poderemos chegar a uma reavalia- of Dance Studies, 11, p. 237).
ção da associação entre a dramaturgia e o texto (ou a textualidade). 25 MILZ, op.cit., p. 2.
26 FERNÁNDEZ, M. Elena Úbeda. Resisting coercive policies of the body: trans-

-objects, prosthesis and other body-buildings. Carion: Journal of Dance


21 LEPECKI, André. Concept and presence: the contemporary european dance scene. Studies, 12 (Edição especial: Body and Architecture, p. 209, 2009).
In: CARTER, Alexandra (Ed.). Rethinking dance history: a reader. Londres: 27 Rui Horta descreve sua procura por uma forma que incorpore seu conteúdo:

Routledge, 2004. p. 173. “Como posso falar de AIDS e fazer um arabesque ou um développé? Como
22 Hildegard de Vuyst citada em An Van Dienderen. In: JANSSENS, Jo- posso falar da falta de comunicação, solidão, intolerância – e apresentar
ris; SMITS, Katrien. Tracks: artistic practice in a diverse soci- infinitos estereótipos, movimentos tecnicamente tradicionais e uma estética
ety. Bruxelas: Vlaams Theater Instituut, 2007. p. 67. Disponível em: do entretenimento? Isso revela a mente falando sobre um assunto e o corpo
<en.vti.be/booklet.tracks.pdf>. Acesso em: 21 set. 2009. falando o contrário”. The critical distance dance theatre journal, 3.3,
23 KERKHOVEN, 2006, p. 11. p. 15, 1997.

– –
252 253
sição tradicional de que dança, coreografia e movimento dizem res- É possível argumentar que o engajamento com o processo dra- DANÇA ,
drama-
peito a organizar passos, criar dança ou mesmo mover. Lepecki ar- matúrgico, portanto, demonstra o interesse de alguns coreógrafos tu r g i a
gumenta que o trabalho de Jérôme Bel destila a coreografia até che- e bailarinos em refletir sobre a sua própria prática e processo. Do E O
PENSA -
gar nos seus elementos mais básicos, e que se ocupa de “[…] cada ponto de vista do dramaturgista Yoni Prior, trata-se de estimular os MENTO
DRAMA -
um desses elementos exagerando-os, subvertendo-os, destruindo- coreógrafos a “romper com as ‘coreoestruturas’. ”, integrando pro- TÚRGICO
-os, complicando-os”.28 Aqui, encontramos uma forma plana de dra- cessos diferentes e chegando a “novas combinações de material”.32 ––––––
SYNNE K .
maturgia que desafia as expectativas de que dança tenha a ver com Entretanto, para retornar à questão de Bojana Bauer acerca da dra- B E H RNDT

um corpo que se move no espaço e no tempo. Indiscutivelmente, maturgia como um processo em que o discurso crítico é absorvido
o corpo frequentemente o faz no trabalho de Jérôme Bel: mas é pela prática, a atenção aos processos dramatúrgicos acontece de
andando, ficando de pé, sentando, observando e sendo observado. modo a facilitar um engajamento conceitual em nome de todos os
Essa manobra poderia ser interpretada como circunscrição drama- colaboradores. Um exemplo que ilustra o modo com que os bailari-
túrgica radical do conceito de coreografia. É também nesse contexto nos assumem um interesse ativo na dramaturgia da peça é dado por
que a interpretação de Fernández sobre o balé e o corpo no balé po- Ruth Ben-Tovim, que foi dramaturgista em Broken Chords, da Vin-
deria ser entendida como uma leitura dramatúrgica.29 Ela escreve: cent Dance Theatre. Ela nota que as observações dramatúrgicas ofe-
[…] o balé é um tipo de jogo disciplinar que parece corrigir atitudes receram aos bailarinos uma camada adicional de sentido e os ajuda-
incorretas e, através de repressão e decoro, eliminar a sensualidade do ram a compreender “o mundo que eles estavam criando no palco”.33
comportamento gestual do corpo. Através do jogo da dança, que exige Do ponto de vista de um coreógrafo, David Gordon observa que fi-

 
fidelidade estrita às regras, inculca-se [sic] a aceitação da disciplina cou interessado num processo reflexivo quando entrou em contato

 
corporal e das boas maneiras a cada repetição das regras.30 com os métodos de trabalho teatrais: esse tipo de prática
É importante dizer que a perspectiva dramatúrgica não precisa “[…] informou o processo de trabalho de uma maneira que eu nunca
conduzir a uma postura desconstrutiva, e que a consequência não tinha experimentado antes como coreógrafo […]; essa experiência re-
é que a dramaturgia tenha tornado a dança melhor; o ponto é que a configurou meu processo quando retornei para meu estúdio com meus
atenção explícita à dramaturgia facilitou uma mudança de atitudes próprios bailarinos”.34
em relação a processo e abordagem. Garry Stewart, diretor artístico
do Australian Dance Theatre, observa: “Antes os coreógrafos eram
talvez mais preguiçosos (conceitualmente)”, um “[…] resquício do
balé em que se pode ouvir a música, olhar a imagem e daí criar”.31 32 ECKERSALL, Peter. Towards an expanded dramaturgical practice: a report on

dramaturgy cultural interventional project. Theatre Research International,


28 LEPEKI, André. Exhausting dance: performance and the politics of movement. v. 31, n. 3, p. 291, 2006.
Londres: Routledge, 2006. p. 46–47. 33 TURNER, Cathy; BEHRNDT, Synne (Orgs.). Dramaturgy and performance. Basings-
29 Allsopp e Lepecki oferecem uma leitura crítica similar da coreografia no toke: Palgrave Macmillan. p. 165, 2008.
editorial para Performance Research: On choreography, v. 3, n. 1, p. 3, 2008. 34 Diálogo entre Val Bourne, David Gordon e Ain Gordon em: BUTTERWORTH, Jo;
30 FERNÁNDÉZ, Úbeda. Resisting coercive policies, p. 212. POPAT, Sita (Eds.). Ruthless and rigorous: editing dance, the art 36 science
31 Citado em RICHARDSON, Sally. Dramaturgical dance. Dance Australia, 149, of nurturing dancemakers. Bretton Hall: Centre for Dance and Theatre Studies,
p. 47, abr./mai. 2007. 1999. p. 257.

– –
254 255
o dramaturgista e o pensamento dramatúrgico mar a contribuição do artista visual Christian Boltanski para o Le DANÇA ,
drama-
Ao esclarecer, de alguma maneira, os processos dramatúrgicos, Saut de l’ange, de Dominique Bagouet, como dramatúrgica, pois que tu r g i a

as discussões sobre a dramaturgia da dança têm também animado as observações e ideias de Boltanski tiveram consequências drama- E O
PENSA -

o debate sobre o papel que neles ocupa o dramaturgista. Os deba- túrgicas profundas para a peça. MENTO
DRAMA -
tes têm, geralmente, procurado distinguir mais claramente “drama- Guy Cools observa que a dramaturgia é parte natural de uma di- TÚRGICO

turgia”, “dramaturgista” e “pensamento dramatúrgico”, e, ao fazê- nâmica de grupo e de um processo criativo, e que em todo grupo de ––––––
SYNNE K .

-lo, expõem o caráter complexo de sua combinação. Por exemplo, pessoas há sempre uma que “[…] age como uma caixa de ressonân- B E H RNDT

Jean-Marc Adolphe observa que a suposição comum de que a dra- cia e dá feedback”37 , e Sally Richardson, em sua pesquisa na Aus-
maturgia diz respeito a reivindicações autoritárias de um sentido trália, conclui que a sensibilidade dramatúrgica, se assim se prefe-
imposto de fora parece baseada na visão de que a dramaturgia (isto rir, pode ser encontrada em muitos colaboradores diferentes num
é, o dramaturgista) é o “guardião do Graal”.35 processo de trabalho.38 Sucede que, em alguns processos, um com-
Indiscutivelmente, essa visão — que não é incomum — de que o positor ou um diretor de ensaio pode ser considerado o dramatur-
dramaturgista é um guardião ou mesmo uma forma de autoridade gista,39 e que esse movimento em direção à democratização da dra-
externa encontra sua gênese nas práticas (tradicionais) de traba- maturgia, em que ela é considerada como um processo que pertence
lho que são hierárquicas por sua configuração e ligadas frequente- a todos, permeia muitos dos debates sobre a dramaturgia da dança.
mente a práticas institucionais onde o dramaturgista é o promotor Se para alguns, como Van Imschoot40 , essa democratização
de um conceito predeterminado. Ademais, a compreensão equivo- pode (e deveria?) significar o fim do dramaturgista, para outros,

 
cada de que o dramaturgista “faz” a dramaturgia, combinada com como Bauer ou Milz41 , colaborou para rearticular a presença dra-

 
a suspeita de que o processo da dramaturgia refere-se a uma impo- matúrgica no processo, ajudando a desfazer a visão do dramatur-
sição de sentido e narrativa representacionais, bem como a um jul- gista como um “papel” fixo ou mesmo uma “função” que aplica
gamento corretivo, até certo ponto sustentaram alguns dos debates ferramentas prescritas ao trabalho. A analogia comum entre o dra-
sobre dança e dramaturgia. maturgista e o mecânico que conserta um carro42 , ou um “olhar
Adolphe não entra na discussão a respeito do dramaturgista per exterior” que mantém uma distância objetiva do trabalho, tem re-
se, e evita o debate quanto ao dramaturgista ter uma função especi- cebido, portanto, a devida atenção crítica. Como foi mencionado, o
alizada; em vez disso, acena para a noção de pensamento dramatúr- dramaturgista, ou a pessoa com esse título, é relativamente novo na
gico como algo que pode ser proporcionado de inúmeros modos e
por diferentes colaboradores. Ele postula uma noção de contribui-
ção dramatúrgica mais inclusiva, ao constatar que John Cage e Jas- 37 DE VUYST, Hildergard et al. (Eds.). Conversation with Guy Cools, em Les

per Johns são indiscutivelmente “[…] conselheiros dramáticos de Ballets C de la B. Tilt: Lannoo, 2006. p. 216.
38 RICHARDSON, op.cit., p. 45–46.
Merce Cunningham”.36 Da mesma forma, propõe que é possível to- 39 COOLS, Guy apud ROPER, Nicola. Dramaturgy in dance: part two. Juice Magazine,

julho/agosto de 2005, v. 4, n.9, p. 4.


35 ADOLPHE, Jean-Marc. Dramaturgy of movement: a plea for a dramaturgy of 40 VAN IMSCHOOT, op.cit., p. 62.

perception. Ballett International, n. 6, p. 27, 1998. 41 MILZ, op.cit., p. 3.


36 Ibid., p. 27. 42 CARDULLO, op.cit., p. 23.

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256 257
dança, o que tem apresentado uma oportunidade para descobrir e talvez uma suspensão da solução mais fácil, ao mesmo tempo em DANÇA ,
drama-
explorar novas concepções da presença dramatúrgica no processo. que, como observa Stuart, mantém-se uma imagem complexa dos tu r g i a
Bauer comenta de forma otimista que a dança poderia ser uma acontecimentos e do todo.45 Poderia-se dizer, aliás, que a natureza E O
PENSA -
oportunidade para “revisitar o papel do dramaturgista”43 , e Mils frequentemente muito colaborativa e fluida da dança contemporâ- MENTO
DRAMA -
pergunta se a dança poderia ser vista como uma oportunidade para nea e dos processos de invenção, em que os bailarinos e os outros TÚRGICO
estabelecer novas formas de prática dramatúrgica que romperiam colaboradores são igualmente responsáveis por desenvolver a dra- ––––––
SYNNE K .
com a ideia do “dramaturgista” como o único intelectual no pro- maturgia, requerem uma presença dramatúrgica capaz de facilitar B E H RNDT

cesso.44 É interessante a proposição de que a dança possa oferecer o pensamento dramatúrgico entre todos no processo.
uma oportunidade para alterar a visão de que o dramaturgista pre- A discussão sobre um “novo” dramaturgista torna-se clara
enche uma “função” “performada” “executada” ou “assumida” por quando consideramos o modo como o dramaturgista (teatral) tem
alguém. É possível dizer que as tentativas para articular um “novo” sido associado, historicamente, a um tipo peculiar de poder e auto-
dramaturgista são sustentadas por uma urgência em decentralizar ridade. Essa associação deve-se, em parte, à suposta reivindicação
as hierarquias de trabalho no processo, assim como por um desejo do dramaturgista por objetividade, conhecimento, uma perspectiva
de humanizar e desfazer a noção de “dramaturgista” como um tipo universal do público e dos processos clássicos de trabalho, em que
de máquina de produção de sentido, impondo decisões externas e o dramaturgista é o responsável por assegurar que um conceito pre-
predeterminadas sobre o significado do trabalho. estabelecido seja implementado e seguido. Mesmo que o discurso e
Uma das razões para isso é que o dramaturgista passou a estar a prática tenham se deslocado, já há algum tempo, para além dessa

 
muito mais envolvido no real processo de fazer e conceber. Os pro- noção do dramaturgista como acadêmico ou “teórico” da sala de

 
cessos de dança frequentemente não têm uma arquitetura ou estru- ensaio, é possível argumentar que, historicamente, a dramaturgia
tura pressuposta desde o princípio, e a dramaturgia é, portanto, for- foi comumente acionada como um tipo de “conceito principal” que
mada e desenvolvida conforme os desdobramentos do processo e do explica e racionaliza o processo.
trabalho. A elaboração da dramaturgia durante o processo faz com É significativo que o valor do dramaturgista, por assim dizer, te-
que o dramaturgista se envolva de uma maneira mais íntima, pró- nha sido frequentemente creditado à sua posição de um “olho exte-
xima e colaborativa com o processo e o trabalho. A coreógrafa Meg rior” que pode produzir uma leitura objetiva do trabalho e chegar à
Stuart comenta que insiste para que o dramaturgista esteja sempre conclusão sobre o que funciona, por que funciona e como funciona.
presente nos ensaios, para levar ideias e guiar o processo e os co- Por exemplo, pode-se tomar a argumentação de G. E. Lessing so-
laboradores com perguntas construtivas. Marque-se que Stuart ob- bre a leitura de Shakespeare, em seu Hamburg dramaturgy46 , como
serva que o dramaturgista pode “duvidar” melhor que todos no pro- uma tentativa de criar regras sobre a interpretação certa e errada,
cesso. A noção de que o dramaturgista pode criar um espaço para ou ainda, para citar um exemplo recente, a problemática sugestão
dúvida parece uma proposição muito instigante, por apontar um
aprofundamento na investigação que não é sobre correções, mas 45 JEZ, Jedrt. Distance ‘corrupts’ and establishes intimacy: an interview with

Meg Stuart. 3xt. Tidsskrift for theory ogteater, n. 9–10, p. 12, 2002.
43 Correspondência por e-mail com Bojana Bauer em 17 de novembro de 2008. 46 LESSING, Gotthold Ephraim. Hamburg dramaturgy. Nova York: Dover Publicati-
44 MILZ, op.cit., p. 3. ons, 1962.

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258 259
do diretor Toby Wilsher de que a dramaturgia pode trazer objeti- que essa categorização contribuiu para a oposição, ou talvez dicotomia, DANÇA ,
drama-
vidade e uma “[…] compreensão científica para um processo ‘plás- entre “o artístico e o intelectual”.50 tu r g i a
tico’ ”.47 Essa adesão problemática a um livro de regras ecoa na entrevista
E O
PENSA -
Esse tipo de narrativa, talvez involuntária no caso de Wilsher, com Hermann Beil, anteriormente citada. Beil dá a entender que,
MENTO
DRAMA -
pode colocar o dramaturgista no papel do intelectual articulado, “nos velhos tempos”, seu trabalho dramatúrgico era formular con- TÚRGICO
que de modo similar ao acadêmico estende seu conhecimento, sua ceitos que dessem unidade ao trabalho e que o diretor pudesse efeti-
––––––
SYNNE K .
teoria e seu insight para explicar e dar conta de uma interpretação e var, processo a que chama “[…] busca pela prova de que estamos se- B E H RNDT

argumento coerentes. Mas há problemas com essa associação: Ma- guindo um conceito de unidade”.51 Se levarmos essa ideia ao seu li-
aike Bleeker observa que a noção de prática dramatúrgica ofere- mite, torna-se fascinante observar que essa dramaturgia e esse dra-
ceu, num primeiro momento, uma oportunidade positiva para tra- maturgista da “velha escola” colocam este último como, simultane-
zer “reflexão intelectual” para a prática, mas também foi frequente- amente, o criador e o criado das regras fixas: então ambos, processo
mente “[…] associada a um intelectualismo imposto ao teatro ou à e dramaturgista, são aprisionados em um mecanismo em que se al-
dança”.48 cança o resultado desejado, eliminando acaso, coincidência e risco
Como exposto anteriormente, essas conotações negativas estão do desconhecido.
ligadas ao modo como o dramaturgista historicamente passou a ser Para expandir a ideia de conceito-mestre (e mestria do conceito),
visto: “o protetor” de um conceito (geralmente baseado numa peça podemos tomar emprestada a articulação de Jacques Rancière sobre
escrita) que foi trabalhado antes dos ensaios. De acordo com isso, os o mestre como alguém que interrompe com o “processo do tatear
 
ensaios de fato tratam, portanto, de colocar decisões em prática, e o incerto”: o mestre, afirma, “[…] rejeita esse tatear explicando todos
 
papel do dramaturgista — pois isso se torna um papel — é garantir os itens em ordem, do mais simples ao mais complexo”.52 Para o
que o processo se oriente por seu objetivo. Bleeker afirma que esse praticante, isso equivale a eliminar o potencial das descobertas pre-
papel como “protetor do objetivo final” produziu uma reputação sente no processo. Além do mais, o dramaturgista é geralmente co-
problemática, na qual a dramaturgia e o dramaturgista tornam-se locado na função daquele que vê e sente o que o público vê e sente;
“[…] associados a conceitos pré-determinados que têm que ser preen- consequentemente, o dramaturgista é descrito muitas vezes como
chidos, a regras que têm que ser impostas ao material artístico, a pres- “público na sala de ensaio”, olhar corretivo, segundo par de olhos,
crições que têm que ser levadas adiante — ou, para colocar de forma terceiro olho. Se fizer sentido prático, ou se for mesmo útil falar de
mais simples, a limitações impostas à liberdade artística”.49 Ela sugere alguém que pode oferecer uma perspectiva diferente sobre o traba-
lho, há de se perguntar se a noção de olho exterior não reitera uma
relação de poder em que o dramaturgista é visto como uma porta
47 WILSHER, Toby. Outside eye. In: DANIEL, John (Ed.). Dramaturgy: a user’s

guide, Total Theatre. Londres: Central School of Speech and Drama, 1999. 50 Ibid.

p. 30. 51 STUMM, Reinhardt. Dramaturgy in Stuttgart: an interview with Hermann Beil”.


48 BLEEKER, Maaike. Dramaturgy as a mode of looking. Women and performance: a In: CARDULO, op.cit., p. 51.
journal of feminist theory. On dramaturgy, 2003, p. 164. 52 RANCIÈRE, Jacques. The emancipated spectator. ArtForum, 45.7, março de 2007,
49 Ibid., p. 164. p. 275.

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260 261
de entrada para a percepção do público e como alguém cuja pers- dade, o que contribui para uma situação de trabalho muito peculiar DANÇA ,
drama-
pectiva é, portanto, mais “objetiva” e de mais autoridade. que pauta o dramaturgista no papel de censor, um agente com po- tu r g i a
É do dramaturgista como possível agente e forma de “[…] legi- deres conferidos que está a serviço de um específico propósito po- E O
PENSA -
timação, validação e, até mesmo, mecanismo de controle na hierar- lítico, artístico e estético e que pode julgar. Essa é uma situação ex- MENTO
DRAMA -
quia de uma produção” que trata o artigo Dramaturgia ansiosa, de trema, mas destaca os problemas que surgem quando o dramatur- TÚRGICO
Myriam Van Imschoot. Ela própria é dramaturgista, e suas críticas gista é visto como uma função ou papel; um mediador ou interme- ––––––
SYNNE K .
não são dirigidas ao trabalho do dramaturgista ou suas boas inten- diário que é trazido como uma caixa de ferramentas para consertar B E H RNDT

sões per se; ela está interessada, antes, em deslocar o foco das dis- e remediar o trabalho.
cussões e definições de dramaturgia que “[…] competem em perspi- É nesse ponto que podemos perguntar se o dramaturgista tam-
cácia e formulações criativas”53 e orientar-se para as questões que bém tem um papel político a desempenhar ao circunscrever para-
surgem quando o dramaturgista entra num processo por imposição, digmas dominantes de interpretação, o assumido papel de “guar-
a fim de preencher alguma falta percebida no trabalho dos artis- dião do Graal” ou “protetor do objetivo final” que vigia o trabalho
tas54 ; está interessada, ademais, nos modos pelos quais o dramatur- através de uma grade predeterminada e lentes conformadas a um
gista pode tornar-se uma ferramenta de poder e controle. Ela utiliza propósito e uma série de valores particulares. A solução de Van Ims-
o frequentemente citado exemplo da coreógrafa portuguesa Vera choot – dizer que dramaturgistas não são necessários – talvez re-
Mantero, informada por produtores que, para receber patrocínio, flita o grau de exaustão a que se chegou com essa discussão; aqui
ela “[…] teria que trabalhar com um ‘dramaturgista do Norte’. ”.55 não fica inteiramente claro como a abolição dos dramaturgistas ou

 
A demanda por um dramaturgista naturalmente levanta ques- do cargo de “dramaturgista” pode resolver as questões às quais se

 
tões como: para o que o dramaturgista é necessário? De que pro- refere. Sua discussão acertadamente convida dramaturgistas a con-
pósitos específicos ele é porta-voz? Se examinarmos a dramatur- siderarem a política da sua prática, mas, conforme supõe, esse “[…]
gia das curiosas ressalvas dos produtores, vamos encontrar uma sé- processo de legitimação, validação ou controle vai muito além da co-
rie de valores hierárquicos e divisões socioculturais problemáticos. laboração estreita com o artista no processo artístico”57 , e envolve
Como observa Lepecki, “[…] uma variedade muito mais abrangente de circuitos (organiza-
[…] essa solicitação cria fronteiras, define campos e projeta corpos com cionais, políticos, discursivos etc.)”.58 .
contornos muito familiares: o sulista como irresponsável, incontrolá- Podemos ir além e aplicar essa discussão ao agenciamento ar-
vel, perigoso em termos de investimento econômico, enquanto a razão, tístico no contexto mais abrangente da máquina de produção? Em
a responsabilidade e o controle definem a parte norte da Europa.56 sua discussão sobre práticas curatoriais, Mårten Spångberg observa
Nesse caso, o dramaturgista é imposto ao artista como uma que muitas decisões de programação estão relacionadas à conven-
forma de mecanismo racional e responsável de controle de quali- ção e/ou à economia, e propõe que — uma vez que a promoção e a
publicidade de festivais na maioria das vezes focam nos “bons e ve-
53 VAN IMSCHOOT, op.cit., p. 58.
lhos sucessos” e nos coreógrafos estabelecidos —, pode-se concluir
54 Ibid.
55 LEPECKI, André. The body in difference. FAMA, v. 1, n. 1, p. 12, 2000. 57 VAN IMSCHOOT, op.cit., p. 58.
56 Ibid., p. 12. 58 Ibid.

– –
262 263
que, fundamentalmente, festivais existem para sobreviver, mais do tigador de possibilidades junto a outros colaboradores. Isso sugere DANÇA ,
drama-
que para fazer a diferença. Spångberg não o lamenta; na verdade, uma interpretação da dramaturgia como um processo (com o dra- tu r g i a
pede por mais honestidade sobre a maneira como “se joga o jogo”.59 maturgista como um facilitador potencial), no qual o sentido é cri- E O
PENSA -
ado simultaneamente com e através da criação do material, em vez MENTO
DRAMA -
o corpo dramatúrgico em processo de precedê-lo e dirigi-lo. TÚRGICO
Como Milz sugere, o pensamento dramatúrgico, a teoria, a re- ––––––
Alguns eventos recentes estiveram menos ocupados em tentar SYNNE K .
flexão e a conceituação são algo construído por todos no processo, B E H RNDT
definir ou fixar a natureza da dramaturgia ou do dramaturgista; a
e não propriedade de uma só pessoa.62 A atividade dramatúrgica
intenção tem sido de expandir essas noções e engajar-se com a polí-
trata de abrir possibilidades para uma compreensão coletiva, faci-
tica da dramaturgia em termos muito diferentes. O evento The Wit-
litar o pensamento dramatúrgico, assim como arriscar dar nome e
ness as Dramaturg60 não categorizou o dramaturgista como uma
forma ao material emergente. Ela afirma:
função ou papel prescritos; os organizadores buscaram explorar um
potencial crítico e criativo fundamentado na presença de um “ou- O dramaturgista deveria ser aquele que arrisca [descrever] o que
tro”, uma “testemunha”, ou uma “presença dramatúrgica” na sala de ele/ela vê, tropeçar, saltar, pular no fundo, colocando em palavras o
ensaio. Esse é um exemplo de como as práticas de dança interpre- que mal se conseguiu perceber, o que ainda não foi nomeado. Como
traduzimos, descrevemos, não re-(a)presentamos o corpo, as conexões
taram de modo mais abrangente a noção de prática dramatúrgica;
entre corpos, entre os corpos do público? Isso poderia ser o trabalho do
indiscutivelmente, o evento inverteu questões ligadas “ao corpo do
dramaturgista, testemunhar e arriscar apresentar uma proposta e uma
dramaturgista” no estúdio de ensaio, ao perguntar o que seria esse tradução. O dramaturgista não deveria estar preparado para encontrar
corpo dramatúrgico, ou presença, no espaço. Esse evento também   coisas que ele/ela não entende e ajudar na busca das potências?63
tentou rearticular o dramaturgista como uma presença que poderia   De modo similar, poderíamos tomar a interpretação que a dra-
estimular processos de reflexão e imaginação do artista. Poderia-se
dizer que o evento lidava com a presença dramatúrgica como uma maturgista Bojana Cvejić faz de Rancière como uma proposta para
colaboração comprometida, noção também encontrada na proposta uma concepção do dramaturgista como alguém que cria condições
de André Lepecki de que o dramaturgista não deveria ser perce- para o trabalho e o processo. Em The ignorant mentor 64 , ela assinala
bido como o olho exterior ou observador distanciado. Ele/ela é cúm- que o papel do mestre não é ensinar ou saber as respostas, mas aju-
plice, testemunha imersa e implicada, muito próxima ao processo, dar a “[…] reconhecer e desdobrar o lugar ou o momento onde o
de modo a fazer as perguntas certas e encontrar soluções de dentro trabalho fica quente, quando começa a mover como se por si pró-
dele.61 Ademais, sem um modelo que possa antecipar as decisões prio, convidando a um sentimento de mundo a descobrir ali, uma
dramatúrgicas, o dramaturgista pode ser pensado como um inves-
59 SPÅNGBERG, Mårten. What is the meaning of contemporary?. In: DOMINGENZ,

Juan; naverán, Isabel de (Eds.). In: Presentable. Madri: La Casa Encendida,


2007. p. 143–145. 62 MILZ, op.cit., p. 3.
60 Seminário organizado por Richard Hancock, Traci Kelly e Martin Del Amo em 63 Ibid, p. 7.

associação com Dance4, Live Art Development Agency em 25 de outubro de 2008. 64 N. do E.: Edição brasileira: O mestre ignorante: cinco lições sobre a
61 TURNER; BEHRNDT, op.cit., p. 157. emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007.

– –
264 265
sensação de testar os limites do que se pode perceber, imaginar e movimento”.66 Se essa parece uma tarefa difícil, já que o movimento DANÇA ,
drama-
articular”. 65 em si é um conceito complexo e tem sido desconstruído pela prática tu r g i a
Seria ilusório considerar que a dramaturgia e os processos dra- e discurso contemporâneos, o comentário de Adolphe lembra que E O
PENSA -
matúrgicos pertencem exclusivamente a alguns tipos particulares a discussão sobre dramaturgia e dança desafiou a antiga noção da MENTO
DRAMA -
de práticas de dança; entretanto, a evidência é de que a atenção mais dramaturgia ligada à escrita de roteiros, a procedimentos literários TÚRGICO
formalizada quanto à dramaturgia (geralmente sob a forma de um ou, até mesmo, a estruturas aristotélicas. É interessante considerar ––––––
SYNNE K .
dramaturgista) têm se ligado a práticas de dança que buscam incor- o modo como a dança, junto a outras disciplinas e contextos, pode B E H RNDT

porar investigações conceituais e discursos críticos na prática. Por- inspirar uma história da dramaturgia alternativa e mais expandida,
tanto, a atenção à dramaturgia na dança marca um momento em e uma prática dramatúrgica distinta de uma trajetória tradicional–
que conceitos na sua prática estão se expandindo e em que a cisão se ainda viável – de Aristóteles, passando por Lessing e chegando
entre dança e teatro começa a dissolver. Mesmo que eu tenha su- até Brecht. A sugestão de Arnold Aronson de que “[…] os fatores
gerido anteriormente que o aparecimento do dramaturgista ocor- fundamentais dos desdobramentos dramatúrgicos foram a percep-
reu na dança enquanto se tornava uma disciplina independente, ção e a compreensão do tempo e do espaço”67 poderia, por exem-
poderia-se dizer também que quando a dança explorou suas pró- plo, inspirar um tipo diferente de “história” que liberaria a drama-
prias fronteiras e suas interseções com o teatro, isso também enco- turgia e a prática dramatúrgica de estarem associadas a uma tradi-
rajou o interesse pela figura do dramaturgista. ção específica. A migração da dramaturgia para a dança, portanto,
Para concluir, as discussões sobre o novo dramaturgista e sua é também um convite para esboçar uma trajetória mais interdisci-

 
relação com o processo artístico foram intensificadas a partir da in- plinar de uma dramaturgia não ligada somente a uma disciplina ou

 
trodução do dramaturgista na dança, no planejamento e em novos ideologia.
contextos culturais (como no teatro do Reino Unido). Essas discus-
sões não são exclusivas de um contexto e, certamente, não são ex-
clusivas da dança. Ao contrário, o teatro também deslocou a no-
ção do dramaturgista como mantenedor de um conceito predeter-
minado. O desenvolvimento das novas formas de dramaturgia e de
processos de trabalho dramatúrgicos não é específico de uma disci-
plina; as novas abordagens de colaboração, processo, modos de pro-
dução e materiais trouxeram a natureza contextual e circunstancial
da dramaturgia para um nítido foco.
Finalmente, Jean-Marc Adolphe pondera sobre a possibilidade
de uma “[…] dramaturgia da dança genuinamente conectada com
66 ADOLPHE, Jean-Marc. Dramaturgy of movement. Ballett International/ Tanz

Aktuell. n. 6, 1998, p. 27.


65 CVEJIĆ, Bojana. The ignorant mentor. In: DE BELDER, Steven; VAN ROMPANY, 67 ARONSON, Arnold. Looking into the abyss: essays on scenography. Michigan:

Theo (Eds.). P.A.R.T.S. p. 69, 2006. University of Michigan Press, 2005. p. 72.

– –
266 267
A dramaturgia é uma profissão limitada.
O dramaturgista deve ser capaz de lidar
com a solidão; ele não tem domicílio fixo;
não pertence a lugar nenhum. O trabalho
que faz dissolve-se na produção, torna-
se invisível. Ele sempre compartilha das
frustrações e, no entanto, não tem que
aparecer na foto. O dramaturgista não é
(talvez não propriamente ou não ainda) um
artista. Aquele que não pode, ou não pode
mais, lidar com esse aspecto servil – e
D e r i va s d e CALDAS ,
P u b l icad o no liv ro
contudo criativo – é melhor desistir. XAV I ER , Jus s ara; Pa u lo ;
M E YER , S and ra;
GADELHA,
trecho de: Marianne Van Kerkhoven TORRES, Ve ra.
( O rg s .). Tu b o d e um plano E r n e st o .
e ns a i o : com p os ição Danç a e d ra-
Looking without pencil in the hand
de compo-
[ I nte rs e çõe s + maturgi a[s].
[Theaterschrift: On dramaturgy. 1994, n. 5–6, p. 144.] I nter ve nçõe s ]. S ã o Pa u l o :
F l o r ianóp olis : Ins tit uto n ex u s, 20 1 6.

s i ção e m
M eye r Filho, 2 0 1 6.

d a n ça :
o to d o é
menor do
que a soma
d e s uas
pa rt e s
––––––
Th e r e z a
R o c ha
– –
268 269
Pesquisadora, diretora de d E r i va S d E 22 de outubro de 2015. Desço no aeroporto de Fortaleza. No desem-
um PLanO dE
espetáculos e dramaturgista
C O m P O S i çãO E m barque, um enorme contingente de pessoas, pouco usual, chegando
de processos de criação.
Doutora em Artes Cênicas
d a n ça : de muitos lugares em diversos voos. Na lateral da longa e inevitável
pela UNIRIO. Professora dos
o to d o é m e n o r
do que a soma de
via expressa a caminho de casa, avisto um grande outdoor que se
cursos de graduação em dança s uas pa rt es destaca no escuro da noite, tanto pelo holofote escandaloso que o
da Universidade Federal –––––– ilumina de fora, como pela mensagem que supostamente o acende
tHerezA rocHA
do Ceará, onde coordena o de dentro: Festival de Esperança – evento de evangelização cristã
 
grupo de pesquisa QUINTAL:
acontecendo entre 22 e 25 de outubro, durante o qual milhares de
 
dança, pensamento, outras
dramaturgias e regimes de pessoas se reuniriam na Arena Castelão1 junto aos “1500 e 1900
dizibilidade. Autora do livro pastores e líderes de Igrejas Evangélicas de Fortaleza e também de
O que é dança contemporânea? municípios cearenses. […] Lideranças de igrejas como Assembleia
(Conexões Criativas, 2016), e de Deus, Batista, Presbiteriana, Quadrangular e igrejas independen-
co-autora de Diálogo/dança
tes já confirmaram presença”, dizia o site do grandioso e grandilo-
(SENAC, 2012), junto com
Marcia Tiburi. quente evento.
– O carro segue veloz, a caravana passa, e o outdoor se apaga no
percurso que dele se distancia. Mas não desaparece da minha lem-
brança. Penso na conversa organizada para o dia seguinte2 , da qual
participarei junto com o coreógrafo Marcelo Evelin, tendo como
1 Arena Castelão ou Castelão é o apelido do Estádio Governador Plácido Castelo,

o maior da cidade de Fortaleza, que comporta um total de 63.903 pessoas. As


fotos presentes no site do evento mostram casa lotada durante a programação.
2 Programação intitulada Mostra o seu que eu mostro o meu: o que quer e o

que pode essa tal dramaturgia no corpo? integrante do projeto Amarrações


Estéticas, organizada pelo Porto Iracema das Artes: Escola de Formação e

– – –
27054 271
tema a dramaturgia no/do corpo. Não posso furtar-me de pensar totalidade, sem todo, sem estrutura de coesão dados pela autoria. DERI VAS
DE UM
acerca das relações entre as dramaturgias em dança e a comunidade Pensamento em composição. Um pouco para fazer dizer aquilo que PLANO
que vem, um dos motes de minha recente interseção no projeto Tubo o intitula: o todo é menor do que a soma de suas partes. Não se trata DE COM -
POSI -
de Ensaio: Composição [Interseções + Intervenções] realizado em aqui de defender uma hipótese, mas de deixar a hipótese aconte- ÇÃO EM
DANÇA :
Florianópolis. cer ou de fazer passar, assim intransitivo, como sugerem Deleuze e O TODO
Lembro-me, ali ainda no trajeto, de outra ocasião bastante aná- Guattari (1992). É MENOR
DO QUE
loga, ocorrida nos idos de 2010, quando chegava a Fortaleza para Tanto outrora como agora (de que agora estamos falando?), não A SOMA
DE SUAS
participar de uma programação também no dia subsequente, no posso furtar-me da excelente oportunidade de começar a conversa PARTES
caso uma palestra a ser proferida na cidade da qual ainda não era com Evelin e esta aqui a partir da narrativa do acontecido na noite ––––––
thereza
moradora, e, no mesmo percurso de saída do aeroporto, dar-me no anterior ao dia 23 de outubro de 2015, e com a frase: r o c ha

engarrafamento com um caminhão à frente cujo para-choque carre- Há três fabulações possíveis em torno do fim: esperança, utopia
gava intrigante inscrição. “Aquilo que não me mata, só me fortalece. e heterotopia.
Sorrio matreira e penso: — Que coisa mais engraçada, essa terra
* * *
é nietzschiana até em traseira de caminhão…” (rocha, 2014, p. 28).
Tanto agora como outrora: “Colho os acontecimentos – pequenos O início desta busca, o espaço vazio, território inseguro, sem
incidentes da cidade como citações […]. Ready-mades. Senhas.” (ibi- meta, sem direção.
dem). Estes trechos compunham o início do texto da palestra de Raimund Hoghe
 
2010 que se tornaria ensaio publicado, e aqui citado, alguns anos

 
mais tarde. * * *
E, com o passar dos anos, uma mania acabou se tornando modo
de composição de pensamento: um pensamento em (estado ou con- Para frente, o pior.
dição de) composição – compor como texto uma estese do suposto Samuel Beckett
objeto do qual ele tenta se acercar. No caso deste texto, compor uma * * *
dramaturgia (do conceito) da própria dramaturgia (em dança) da
qual ele tenta se aproximar. Senhas, citações, fragmentos de texto, Há́ um lirismo absurdo que sobe do chão depois que o mundo
cifras aparecem e desaparecem, tecendo uma espécie de constela- acabou.
ção ou, para traze-la ainda mais próxima e afetuosa, uma escrita-
-pensamento feita por cintilações sutis, um pouco inspirada nos * * *
vaga-lumes erráticos e eróticos de Didi-Huberman/Pasolini (2011).
Talvez seja próprio dizer da dança que ela fabula composições
E é exatamente por isso que este texto assim permanecerá, uma
da comunidade por vir. Precipitada nos interstícios da composição,
escrita lacunar feita de apontamentos para futuras inscrições, sem
há, uma noção de povo implicada/fabulada e as correspondentes
hipóteses espaço-temporais dos modos como este povo vive junto,
Criação do Ceará e realizada no cena 15: Centro de Narrativas Audiovisuais,
melhor dizendo, faz junto.
em 23 de outubro de 2015.

– –
272 273
Cabe dizer que a dança em suas fabulações não simplesmente * * * DERI VAS
DE UM
reflete os caminhos e descaminhos da comunidade por vir, mas cria PLANO
uma via de mão dupla uma vez que, vindo a público, age também O que vem é o qualquer e o qualquer é irreparável. É irrepará- DE COM -

neste porvir. Fabular, no caso, não é representar, tampouco produzir, vel porque é qualquer: nenhuma melhora é possível ou almejada. POSI -
ÇÃO EM

é supor. E é também compor. E, assim, é de uma reciprocidade dança Depois desse dia é tão somente depois desse dia. DANÇA :
O TODO
e história que estamos falando. É o próprio corpo que pergunta à * * * É MENOR
DO QUE
sua época: por que e para que ponho-me a dançar? Neste sentido, A SOMA
Nada há mais instrutivo, a este respeito, do que o modo como DE SUAS
poderíamos dizer que, ao longo da história, o povo vai ao teatro
Espinosa pensa o comum. […] O que é comum não pode em ne- PARTES
para fabular seus possíveis, no caso da dança, seus possíveis espaço- ––––––
nhum caso constituir a essência de uma coisa singular. Decisiva é, thereza
-temporais. r o c ha
aqui, a ideia de uma comunidade inessencial, de uma conformidade
A questão que se coloca é o quanto de colonização do futuro está
que não diz de modo nenhum respeito a uma essência. […] A indi-
implicada na noção de porvir que ali se fabula/exerce. Do mesmo
ferença do comum e do próprio, do gênero e da espécie, da essência
modo, cabe perguntar à noção de possível ali implicada acerca de
e do acidente constitui o qualquer.
seus limites.
(agamben, 1993, p. 22, 23)
* * * * * *

Não se trata de ir além. A conexão dessas “simples práticas” com modos de discurso,
 
formas de vida, ideias do pensamento e figuras da comunidade […]
 
* * *
implica abandonar a pobre dramaturgia do fim e do retorno, que
não cessa de ocupar o terreno da arte, da política e de todo objeto
Estar aquém e permanecer aquém, é isto também o menor.
de pensamento.
* * * (rancière, 2009, p. 14, grifo meu)
* * *
Não estamos a falar de um impossível (impoder) que seria pró-
prio da utopia. Não a utopia, mas a heterotopia. A utopia é o não Cabe aqui uma pergunta que não quer calar: por que motivos a
lugar, aquilo que não tem lugar. A heterotopia tem lugar, instaura palavra “dramaturgia”, que contém “drama” na sua constituição, in-
lugar outro no lugar. Não no sentido de substituição, revolução, su- teressa tanto a fazeres que mantém com a cena pouca ou nenhuma
plantação, mas no sentido de coabitação do impossível (impoder) familiaridade? Usa-se dramaturgia hoje para nomear fazeres no ci-
no possível daquele lugar. nema expandido, nas artes visuais, na performance, nos desfiles de
moda, até nas fotos que compõem entre si o perfil de alguém nas re-
* * *
des sociais. Também para nomear algo que se passa no pensamento
Não existe devir majoritário. Só existe devir minoritário. quando este se deixa transversalizar pelo tempo: uma dramaturgia
(deleuze; guattari, 1995, p. 52) do conceito (rocha, 2012). Ainda, e mais importante, para referir-se
aos modos como fabulamos futuro em nossas práticas.
– –
274 275
* * * dará para que vejamos nesta mimesis corporal uma cinesis3 corpo- DERI VAS
DE UM
ral: a potência de uma dramaturgia do corpo tomada como lingua- PLANO
O tempo pensa na dança. gem autônoma em relação ao logos discursivo, capaz de organizar- DE COM -
POSI -

* * * -se por si, “compondo uma espécie de narrativa cinética, e menos ÇÃO EM
DANÇA :
mimética, diferenciada daquela dada pelo plano dramatúrgico da O TODO

Muito embora a etimologia da palavra drama, em grego, seja linguagem verbal ou escrita”. (meyer, 2006, p. 46). Nesta suposição, É MENOR
DO QUE
ação, ao longo da história das artes cênicas, drama tornou-se sinô- os acontecimentos permanecem em estado de não acontecidos e o A SOMA
DE SUAS
nimo de um gênero literário específico comportando uma tipologia sentido, grafado corretamente com “s” minúsculo, um sentido ainda PARTES

de texto em diálogo que se destina à representação cênica. O drama e sempre em estado sensível. Acontecimentos não efetivados e sen- ––––––
thereza
constitui, entre seus acontecimentos, a consecução de uma ação tido sensível permanecem ainda e sempre em estado (ou condição) r o c ha

(uma história) através da imitação de ações de indivíduos. Conse- de composição, sempre disponíveis a novas ou outras composições.
cução, no caso, liga-se inevitavelmente ao verbo conseguir e tam- Um sentido menor.
bém a uma espécie de linha imaginária e consequente que conecta * * *
os acontecimentos da história entre si através de uma lógica cau-
sal e crônico-temporal. É uma espécie de fio de sentido que é sen- O genial Rosencrantz e Guildenstern estão mortos4 de Tom Stop-
tido quando os acontecimentos consecutivos (sucessivos), me per- pard anuncia as distopia e ucronia chaves de sua composição já no
doem o neologismo, consecutem, quero dizer, dão uns nos outros, título, proveniente de uma fala presente na cena final de Hamlet
 
como se o que ocorre, o que vai ocorrendo, fosse inevitável. O fio de quando uma personagem anuncia a única possibilidade creditada
 
sentido é sentido quando os acontecimentos fazem sentido, e vice- aos dois, uma vez mortos, de se reunirem aos seis personagens prin-
-versa. E na reiteração aí concernida, a palavra seria mais adequa- cipais da peça, todos mortos àquela altura: através da palavra.
damente grafada como “S” maiúsculo: um sentido que faz Sentido E é mais ou menos o estranho território da palavra que es-
– um sentido maior. sas duas figuras, com acento claramente beckettiano, habitarão du-
Neste contexto dramático, a ação é uma inferência, uma dedu- rante toda a peça de Stoppard: um espaço de beirada nas abas da
ção; algo que se sente e que não estando presente se presentifica trama principal. Perdidos, sem função e sem razão, ros e guil, como
no entanto. A ação age mas nem por isso aparece agindo como tal. são grafados ao logo do texto, interrogam-se todo o tempo e execu-
Claro que no drama estamos falando da ação como um logos organi- tam ações sem destino, por elas não encontrarem consecução na-
zacional, extrínseco, que a comanda de fora e cuja presença tanto as- quilo que está acontecendo alhures e ali tão perto durante a ação
sediou o pensamento de Jacques Derrida acerca da escrita. Mesmo de Hamlet.
assim, façamos um exercício de extrair do drama toda a parte tex-
3 Cinesis desde sempre entendida como a flexão entre cinese, o que é próprio
tual – tanto as palavras dos diálogos quanto o compromisso com
a constituição de uma história no palco – e nesta espécie de teatro do movimento, com a estese, o que é próprio das artes, e que no contexto
contemporâneo de criação não se restringe à sensação do belo. Aviso escrito,
mudo restarão tão somente as ações, os acontecimentos. Não tar- aviso lido.
4 Depois de anos de espera, o texto de 1966 finalmente ganhou tradução oficial

para o português e foi lançado pela Companhia das Letras (2011).

– –
276 277
Seguindo sofisticados rigores da composição absurda, os com- Com efeito, a “geofilosofia” tem como prioridade ímpar, inevitá- DERI VAS
DE UM
parsas encontram razão no paradoxo: são protagonistas secundá- vel, o que estou a chamar de “Est-ético”, […] o caráter estético, e em PLANO
rios de um texto cuja ação é a rigor impossível. Cumprem assim a si político, da relação de nossos corpos com seus territórios e com a DE COM -
POSI -
única função que lhes cabe, a de personagens menores e/ou de ban- terra, que explicita e faz emergir o problema da política compreen- ÇÃO EM
DANÇA :
lieue (banidos; de periferia), habitantes nowhere ou elsewhere. Eles dida como construção do espaço da arte do viver juntos. […] A ética O TODO
não têm certeza de nada, sequer de suas próprias identidades que da estética, o acontecimento, a “Est-Ética”, pois, consiste, entre ou- É MENOR
DO QUE
ora são trocadas, ora indagadas e mesmo reafirmadas pelos pró- tras, a exigir da vida mais ainda do que ela se compraz a nos ofer- A SOMA
DE SUAS
prios. Não sabem de onde vieram, nem para onde vão e menos, tar; exigir da vida o acontecimento que nos transtorna, joga-nos ao PARTES
muito menos, qual o sentido. Em meio a esta genial arquitetura não solo, e sugere que a queda é um trampolim para um salto maior. ––––––
thereza
dramática, mesmo imersos no nonsense reinante, um vira-se para o […] r o c ha

outro suspicious e diz: “Há uma lógica em curso”. De certo modo, tem-se que criar zonas de legitimidade, para
além do oficial, das vontades de políticos profissionais… Trata-se,
* * *
em última instância, de encarar a invenção como modo de traçar
Conhecida desde o século xii, a palavra banlieue, […] no começo seus caminhos entre suas impossibilidades. É neste sentido que a
do século xix, passa a ter conotações depreciativas, humilhantes, arte resiste. O fato de ser brasileiro ou africano; italiano ou francês
beirando o racismo social, que perdura hoje ainda, em muitos paí- não pode me levar a tudo tolerar, a tudo aceitar, a ficar assentado
ses – no Brasil, por exemplo. Na França há cerca de quinhentas pe- ou de cócoras como uma galinha, atitude tão criticada pelo poeta

 
riferias, chamadas hoje, de territórios sensíveis, e que são objeto de Rimbaud, em sua visão lúcida dos prisioneiros de uma identidade

 
uma convenção entre municipalidades, estados e regiões. Três mi- prótese que tanto “salva” quanto “mata”…
lhões de pessoas são concernidas. No Brasil, fala-se hoje de 60 mi- (lins, 2014, p. 43–47)
lhões de brasileiros sobrevivendo em favelas, periferias ou territó- * * *
rios sensíveis.
O espaço periférico das grandes aglomerações é visto, ao longo O facto de onde deve partir todo o discurso sobre a ética é o
da história, como um lugar em que vive uma população geográfica de que o homem não é nem terá de ser ou de realizar nenhuma
próxima, que congrega atitudes provincianas ou campesinas, defini- essência, nenhuma vocação histórica ou espiritual, nenhum destino
das como “atrasadas”, ou “subdesenvolvidas”, de origem “duvidosa” biológico. É a única razão por que algo como uma ética pode existir:
e que não vibra com o ritmo da pólis…, mas antes com um gosto pois é evidente que se o homem fosse ou tivesse de ser esta ou
pouco “refinado” dos desvalidos. Algo semelhante ao que hoje se aquela substância, este ou aquele destino, não existiria nenhuma
chama “Brega” ou “Cultura do Pobre”. experiência ética possível, haveria apenas deveres a realizar.
[…]

– –
278 279
Isto não significa, todavia, que o homem não seja nem deva ser Diálogos sobre o fim do mundo. DERI VAS
DE UM
alguma coisa, que ele seja simplesmente entregue ao nada e possa, PLANO
* * *
portanto, decidir ser ou não ser à sua vontade, atribuir a si ou não DE COM -
POSI -
atribuir este ou aquele destino (niilismo e decisionismo encontram- Como poderá a natureza sobreviver ao cumprimento de sua
ÇÃO EM
DANÇA :
-se neste ponto). Há, de facto, algo que o homem é e tem de ser, mas causa final? O TODO
este algo não é uma essência, não é propriamente uma coisa: é o (agamben, 1993, p. 36)
É MENOR
DO QUE
simples facto da sua própria existência como possibilidade ou potência. A SOMA

Mas é justamente por isso que tudo se complica, que a ética se torna * * * DE SUAS
PARTES
efectiva. ––––––

(agamben, 1993, p. 38, grifo do autor) Apropriar-se das transformações históricas da natureza hu- thereza
r o c ha
mana que o capitalismo quer confinar no espectáculo, fazer com
* * * que imagem e corpo se penetrem mutuamente no espaço em que
não possam mais ser separados e obter assim, forjado nele, o corpo
A arma nuclear é uma prova de que aconteceu alguma coisa qualquer […] – tal é o bem que a humanidade deve saber arran-
com a humanidade, na medida em que ela se tornou incapaz de car à mercadoria no declínio. A publicidade e a pornografia, que
imaginar o que é capaz de fazer. É uma situação antiutópica. O que a acompanham ao túmulo como carpideiras, são as inconscientes
é um utopista? Um utopista é uma pessoa que consegue imaginar parteiras deste novo corpo da humanidade.
um mundo melhor, mas não consegue fazer, não conhece os meios (agamben, 1993, p. 43)
nem sabe como. E nós estamos virando o contrário. Nós somos ca-  
 
pazes tecnicamente de fazer coisas que não somos nem capazes de * * *
imaginar. A gente sabe fazer a bomba atômica, mas não sabe pen-
Pornotopia.
sar a bomba atômica.
(viveiros de castro, 2014, p. 4–5) * * *
* * * As heteroropias são como que contraespaços.
(foucault, 2013, p. 20)
São inúteis todos os esforços feitos para fugir ao horror do pre-
sente na nostalgia por um passado ainda intacto, ou por meio do * * *
esquecimento antecipado em vista de um futuro melhor.
(arendt apud duarte, 2003, p. 68, tradução dele) A dramaturgia supõe um insistir sobre a obra. A obra – a futura
obra sobre a qual nada se sabe (única noção de obra que interessa)
* * * – tem suas próprias estruturas cujas regras guiam as escolhas. Pro-
curar então esse rigor de deambulação.
Entre o passado e o futuro, de que tempo fala o corpo que dança? Sem dimensão de futuro.
* * * * * *
– –
280 281
A contemporaneidade da ação e do movimento. O sentido é o Imaginemos uma tapeçaria contemporânea. Ela comporta fios DERI VAS
DE UM
da preservação da contemporaneidade do sentido. Estamos falando de linho, seda, algodão, lã, de cores variadas. Para conhecê-la, se- PLANO
sim de um plano de imanência na composição em dança. ria interessante conhecer as leis e princípios relativos a cada uma DE COM -
POSI -
dessas espécies de fio. Contudo, a soma dos conhecimentos sobre ÇÃO EM
* * * DANÇA :
cada tipo de fio que compõe a tapeçaria é insuficiente para conhecer O TODO

É uma busca que parece caminhar por si. Uma busca sem objeto. essa nova realidade que é o tecido (ou seja, as qualidades e proprie- É MENOR
DO QUE

Sempre gostei de pensar a composição por aí, como algo cujo sen- dades dessa tessitura). É também incapaz de nos auxiliar no conhe- A SOMA
DE SUAS
tido se anuncia por si e da qual o artista é agente mas não é autor, cimento de sua forma e configuração. A primeira etapa da comple- PARTES

pois maneja o sentido sem contudo controlar-lhe o rumo. xidade indica que conhecimentos simples não ajudam a conhecer ––––––
thereza
as propriedades do conjunto. Trata-se de uma constatação banal, r o c ha

* * * que no entanto tem consequências não banais: a tapeçaria é mais


do que a soma dos fios que a constituem. O todo é mais do que a
Acredito que a própria matéria de trabalho tem um dizer, um soma de suas partes. A segunda etapa da complexidade revela que
fio de sentido que a composição vai apontando, puxando, guiando o fato de existir uma tapeçaria faz com que as qualidades desse ou
per se. E basta um pouco de familiaridade com o ato de compor daquele fio não possam, todas elas, expressar-se em sua plenitude,
para entender que já não seria adequado chamar de fio de sentido o pois estão inibidas ou virtualizadas. Assim, o todo é menor do que
que nele se busca constituir/perceber. O investimento em um fio de a soma de suas partes. A terceira etapa da complexidade é a mais
sentido poderia levar perigosamente a reduzir o trabalho de criação
 
difícil de entender por nossa estrutura mental. Ela diz que o todo é
dramatúrgica à escrita de uma linha de ação (dramática).
 
ao mesmo tempo maior e menor do que a soma de suas partes.
* * * (morin, 1990, p. 123)
* * *
Não é drama, não é disso que se trata.
* * * Os acontecimentos de dança se ligam uns aos outros em uma
malha, uma tessitura, que os sustentando é ao mesmo tempo por
Não é cena, não é disso que se trata. eles sustentada (produzida), afinal são os próprios acontecimentos
que conformam a malha do tecido entre si. Não há anterioridade ou
* * * sequencialidade, mas compossibilidade.
O movimento de dança, entendido aqui como acontecimento,
vale então no contexto no qual se insere e pelo plano de composi-
ção ao qual pertence e o qual conforma. É precisamente esta corres-
pondência que fabrica o tipo de sentido que importa aqui. Quando
o plano de composição se constitui é o mesmo quando (correlativa
e não sequencialmente) o sensível produz sentido. Um sentido, por-
tanto, imanente.
– –
282 283
* * * Exatamente porque o conceito de dramaturgia não está dado, DERI VAS
DE UM
dado o conceito ainda estar se fabricando, que ela interessa tanto PLANO
É sim uma dramaturgia, mas uma dramaturgia sem drama. As- aos fazeres compositivos em dança. Talvez ela nomeie um fazer que DE COM -
POSI -
sim, o sentido que interessa neste fazer só poderia ser corretamente permanecerá sempre aquém de sua própria definição e captura. Na ÇÃO EM

grafado com “s” minúsculo, um sentido menor, da ordem da potên- dramaturgia, um fazer menor, minoritário.
DANÇA :
O TODO
cia, do paradoxo, da abertura para séries possíveis, produzidas pela É MENOR

emergência da diferença –uma espécie de empuxo de devir. O sen- * * * DO QUE


A SOMA
tido é uma pulsação e um rumor. Podemos ouvi-lo com o corpo. DE SUAS
Minha suposição é que só podemos começar a falar sobre a PARTES
––––––
* * * dramaturgia em dança […] quando aceitarmos que ela não é uma thereza
r o c ha
necessidade, que um(a) dramaturgista de dança não é necessário/a.
A composição é sempre menor pois não é quebra-cabeças. Em vez de estabelecer uma definição normativa, gostaria aqui de
Há sempre algo que se ausenta no cômputo. explorar funções, papéis e atividades relacionados à dramaturgia
É uma soma de perdas. como experimento, quando o/a dramaturgista torna-se o suple-
* * * mento constitutivo de um modo experimental de criação — um(a)
co-criador(a) de um problema.
Dramaturgismo (cvejić, 2010, p. 1, minha tradução)

 
* * * * * *

Explicitação da construção de um sentido, narrativa conceitual   Dramaturgia não é plano de ligação entre partes.
que se manifesta […] artisticamente por meio de diversos elemen- Dramaturgia não é roteirização.
tos que constituem uma dada manifestação artística. […] Como a * * *
função surgiu na Alemanha, usamos inicialmente no Brasil, a par-
tir da década de 1980, o termo Dramaturg. A palavra foi criada para Dramaturgia como máquina desejante.
denominar o iniciador da linhagem, Gotthold Ephraim Lessing, que
desempenhou esta tarefa no Teatro Nacional de Hamburgo entre * * *
1767 e 1769. Só a partir da década de 1990 a palavra dramaturgista
Nas máquinas desejantes tudo funciona ao mesmo tempo, mas
começou a ser utilizada na imprensa e, aos poucos, nas fichas téc-
nos hiatos e nas rupturas, nas panes e nas falhas, nas intermitências
nicas dos espetáculos.
e nos curtos-circuitos, nas distâncias e nos despedaçamentos, numa
(saadi, 2010, p. 101–102)
soma que nunca reúne suas partes em um todo.
* * * (deleuze; guattari, 2004, p. 50)
* * *

– –
284 285
Aliás falar de Máquina Desejante me lembra um caso curioso de Raimund Hoghe é emblemático, pelo acompanhamento feito a DERI VAS
DE UM
ocorrido comigo durante a montagem de meu último trabalho que Pina Bausch durante muitos anos na montagem dos espetáculos. PLANO
se chama Máquina de Dançar 5 . Em data próxima à de sua abertura Seja na dança, ou no teatro, o/a dramaturgista põe-se como tarefa DE COM -
POSI -
a público, revisávamos o texto do release de imprensa quando, no perguntar-se, no decurso do tempo de montagem de um trabalho, ÇÃO EM
DANÇA :
retorno deste ao assessor constante de correções, recebo um e-mail acerca do sentido, do tecido de sentido, que ali se fabrica. O TODO
com a pergunta curiosa acerca dos motivos pelos quais eu havia Pode ladear o diretor ou o coreógrafo, em uma relação nem sem- É MENOR
DO QUE
modificado o termo “dramaturga” para “dramaturgista”, nomeando pre pacífica, (quase nunca, eu diria) propondo perguntas, fazendo A SOMA
DE SUAS
a minha função artística. A questão é boa, se levarmos em consi- anotações, trazendo material referencial (leituras, obras de outrem PARTES
deração que na ficha técnica eu assinava o crédito “Dramaturgia”. etc.), com o objetivo de criar um espaço de interlocução acerca da ––––––
thereza
Interessante que esta palavra caiba tão bem aos fazeres dramatúr- tessitura da obra, agindo portanto em sua poética. No dramatur- r o c ha

gicos em dança enquanto o termo “dramaturgo/a”, quando se trata gismo: um fazer de beirada que não pertence à obra tampouco deixa
de nomear a pessoa que faz a dramaturgia, seja tão incômodo. de pertencer-lhe de todo.
Dramaturgismo e dramaturgista são palavras não existentes no Em alguns contextos, o dramaturgista é considerado um crítico
dicionário da língua portuguesa e nomeiam uma atividade que, nas avant la lettre, uma espécie de crítica avançada ou antes da hora,
artes cênicas, difere daquela do dramaturgo. O contraste entre os agindo em uma área muito estranha que se estabelece precisamente
termos Dramatiker e Dramaturg no alemão, língua de onde pro- entre o presente do fazer privado de criação e a sua (futura) vida pú-
vém esta diferenciação, interessa aqui, sendo Dramatiker o autor blica. O/a dramaturgista trabalha antecipadamente no porvir a pú-

 
do texto teatral que antecede a encenação (dramaturgo/a, no portu- blico da suposta obra, ou trabalho, procedimento etc. – os nomes

 
guês) e Dramaturg, traduzido tardiamente para a nossa língua como se multiplicam a depender do tipo de contrato que se deseja estabe-
dramaturgista, sendo a pessoa que acompanha o processo de cria- lecer com as pessoas e da própria natureza daquele fazer em espe-
ção e atua na tessitura dramatúrgica (e não dramática, cabe a res- cífico (cada fazer inaugura seus próprios termos) – sem entretanto
salva) do trabalho. Apesar de já existente nos dicionários especiali- catequizar a sua posteridade. Nunca é tarde para lembrar: o espec-
zados, o termo dramaturgismo não comporta um consenso acerca tador vai ver o que o espectador vai ver. Ponto. É mais ou menos
do rol de atividades nem do território conceitual circunscritos pela como vivo repetindo por aí, e aqui mais uma vez: No lugar da car-
palavra, dependendo, para isso, da natureza do projeto artístico ao tilha, a partilha.
qual se associa ou pelo qual se veja convocado. * * *
Na dança, o emprego do termo é tardio e aparece especial-
mente no ambiente da dança contemporânea internacional. O caso A minha posição seria a de me opor ferozmente a uma estultícia
deste tipo, ao pressuposto paternalista de que o público não vai
5 Quase-instalação de dança criada em colaboração com a intérprete-criadora
entender se não for corretamente — dramaturgicamente – guiado.
Maria Alice Poppe, comemorando 20 anos de nossa parceria de trabalho, em (cvejić, 2010, p. 2, minha tradução)
exposição/apresentação no SESC Pompeia (SP), em 2016, e no Espaço Cultural
Municipal Sérgio Porto/RJ, em 2014. Máquina de Dançar opera nas iniciais * * *
MD e na cifra “md p| md” a conversa não declarada com o conceito da dupla
Deleuze & Guattari e também com Marcel Duchamp. Dramaturgia não é dispositivo.
– –
286 287
* * * A dança fabula composições de comunidade, mas não necessa- DERI VAS
DE UM
riamente da comunidade que vem, a depender, para tanto, se o seu PLANO
Ouvindo o rumor que se deixa sentir dos estrondos muito ao plano de composição fabula o vir-a-ser do comum ou o seu qual- DE COM -
POSI -
longe das plataformas continentais do saber. Elas se chocam lá, e quer. ÇÃO EM

aqui ressoam ondas de composição. Gramatura do devir. DANÇA :


O TODO
* * * É MENOR
* * * DO QUE
A SOMA
Por uma dança menor. DE SUAS
Parafraseando Samuel Beckett, PARTES

mas não para dele discordar: * * * ––––––


thereza
Para frente, o menor. r o c ha
Talvez seja próprio dizer da dança menor que ela fabula compo-
E se é menor já não é para frente que se vai.
sições da comunidade que vem.
* * *
* * *
O que vem é o qualquer.
Minoria e maioria não se opõem apenas de uma maneira quan-
* * * titativa. Maioria implica uma constante como um metro-padrão em
relação ao qual ela é avaliada. Suponhamos que a constante ou
 
Modos de composição em dança passíveis de fabular a comuni- metro seja homem-branco-masculino-adulto-habitante de cidades-
 
dade que vem, procedimento político e ético, uma vez que fabula -falante de uma língua padrão-europeu-heterossexual […]. É evi-
junto os modos de existência comum de um povo que falta. dente que “o homem” tem a maioria, mesmo se é menos numeroso
* * * que os mosquitos, as crianças, as mulheres, os negros, os campone-
ses, os homossexuais… etc. É porque ele aparece duas vezes, uma
Inventar um povo que falta. vez na constante, uma vez na variável de onde se extrai a constante.
A maioria supõe um estado de poder e de dominação, e não o con-
* * * trário.
(deleuze; guattari, 1995, p. 52)
Na festa barata de um multiculturalismo cansado que mais pa-
rece propaganda de refrigerante, andar sobre o risco de um audaci- * * *
oso fio de navalha do mundial sem totalidade pode tornar-se con-
tramarca, ou contradispositivo se assim o quisermos, deste nosso Uma minoria não tem modelo, nem padrão, está, em construção
rico e turbulento tempo. contínua, em processo.

* * * * * *

– –
288 289
Há um devir revolucionário que não é a mesma coisa que o fu- Os devires são geografias, orientações, direções, entradas e saí- DERI VAS
DE UM
turo da revolução. das. PLANO
(deleuze; parnet, 1998, p. 10) (deleuze; parnet, 1998, p. 10) DE COM -
POSI -
ÇÃO EM
* * * * * * DANÇA :
O TODO
É MENOR
A alma é uma utopia do corpo. A dança menor, uma heterotopia. A dramaturgia é uma fabulação sobre o sentido. Há, portanto, DO QUE
A SOMA
nela uma fabulação do que está por vir. Assim, poderia dizer que há DE SUAS
* * *
na dramaturgia uma utopia. Mas prefiro não. PARTES
––––––
thereza
A dramaturgia tem lugar, metafórica e concretamente, quando * * * r o c ha
há essa descoincidência entre o bailarino e a sua dança. Entre o
“mim” e a “minha dança” abre-se uma rachadura, uma fresta, abrem- Neste contexto, a dramaturgia pode ser entendida como drama-
-se várias nervuras. Um eu menor: impessoal. turgismo: um fazer de interstício; um tecido de mediação; uma es-
crita de processo de criação.
* * *
* * *
À hipócrita ficção da insubstituibilidade do indivíduo, que na
nossa cultura serve apenas para garantir a sua universal represen- Dramaturgismo | Dramaturgia:
 
tatividade, [opor] uma substituibilidade incondicionada, sem repre- flagrar no espaço-tempo ali formante uma poética nascente.
 
sentante nem representação possível, uma comunidade absoluta-
* * *
mente não representável.
(agamben, 1993, p. 26–27, acréscimo meu) O plano de composição nunca está dado de antemão e nele po-
* * * demos entrar por qualquer porta. Por onde então começar a compo-
sição? Uma vez começada, como continuar? O que escolher? Quais
Devir é jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um são os critérios que permitem dirimir entre um movimento signi-
modelo, seja ele de justiça ou de verdade. Não há um termo de onde ficativo e outro não significativo para a composição, esta ainda e
se parte, nem um ao qual se chega ou se deva chegar. Tampouco dois sempre uma virtualidade? Ao escolher entre o que reter e o que dis-
termos que se trocam. A questão “o que você está se tornando?” é pensar, antes ainda, ao notar em meio ao emaranhado de movimen-
particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se torna, o que tos, na atualidade nascente do gesto, um que parece comparecer à
ele se torna muda tanto quanto ele próprio. constituição de sentido que vai se constituir no trabalho, como sabê-
(deleuze; parnet, 1998, p. 10) -lo? Os problemas filosóficos relacionados à imanência parecem es-
tar todos enunciados nestas perguntas. Plano de imanência: Plano
* * *
de composição.
* * *
– –
290 291
Dramaturgia vale tanto para o/a dramaturgo/a quanto para o/a * * * DERI VAS
DE UM
dramaturgista, o mesmo não acontece com dramaturgismo que pa- PLANO
rece nomear exclusivamente o que faz o/a dramaturgista. Por isso, O pequeno deslocamento não diz respeito ao estado das coisas, DE COM -
POSI -
às vezes é indiferente utilizar uma ou outra palavras, às vezes não. mas ao seu sentido e aos seus limites. Não tem lugar nas coisas, mas ÇÃO EM

Há diferenças que fazem diferença. Deixar esta distinção operar seu na sua periferia, no espaço entre as coisas e elas próprias. DANÇA :
O TODO
jogo no texto. (agamben, 1993, p. 45) É MENOR
DO QUE
A SOMA
* * * * * * DE SUAS
PARTES
––––––
Num espetáculo, o saber conceitual e o estético estabelecem O espaço não é um palco que pode estar cheio ou vazio, no qual thereza

pontes entre si; o dramaturgista colabora nessa construção, apon- as coisas entram e saem. O espaço não é algo separado das coisas r o c ha

tando para ela, sem ser, no entanto, o único responsável por essa que existem, é apenas um aspecto das relações que existem entre
operação. Penso sempre que as imagens das boias que flutuam, in- elas.
dicando que ali há redes lançadas em águas profundas, serve para (smolin, 2001, documento eletrônico, minha tradução)
nos fazer considerar o dramaturgista como alguém que chama a
* * *
atenção, por dever de ofício, para a pergunta o que é?, integrando-
-se, entretanto, no processo do como se faz. O espaço não é um palco onde fatos acontecem, tampouco
(saadi, 2010, p. 124) uma caixa-preta onde informações são armazenadas. É, simultane-
* * *   amente, conteúdo e contingente, sendo resultado das relações que
  o materializam. Portanto, um processo constante e indissolúvel de
As conversas do entorno de uma obra constituem tecido e escu- interações entre sistemas de objetos e sistemas de ações.
tam o rumor grave das empatias que os procedimentos de compo- (santos, 1996, p. 10)
sição mantêm entre si, sempre em tensão, nos interstícios do texto.
* * *
Gramatura do devir.
* * * Uma dança que não se define apenas pelo movimento, mas pela
capacidade de ver no palco um campo de batalha, de pensamento
A graça reside em descobrir o meio de fazer no meio do fazer. e de reflexão sobre os limites da percepção do próprio corpo como
* * * matéria política no sentido mais nobre do termo: o da inscrição num
espaço público.
Não há mais uma aposta de que a forma devidamente arranjada (costa, 2013, documento eletrônico)
seja capaz de promover o experimento que está em jogo neste fazer. * * *
Procurar ambiência. Será que a noção de circunstância ajuda nesta
busca? Uma circunstância estético-social de criação. É de uma ética
também que se trata.
– –
292 293
Em geral a heterotopia tem como regra justapor em um lugar O presente é justamente o que se ausenta no acontecimento. DERI VAS
DE UM
real vários espaços que, normalmente, seriam ou deveriam ser in- E o acontecimento: a própria teoria do devir. O sentido aqui é sem- PLANO
compatíveis. pre de mão dupla: o devir como a própria teoria do acontecimento, DE COM -
POSI -
(foucault, 2013, p. 24) uma vez que na iminência do acontecimento é a diferença interna ÇÃO EM
DANÇA :
do tempo que de fato acontece. Isso esclarece a confusão entre acon- O TODO
* * *
tecimento e acontecido. É MENOR
DO QUE

Não procuramos estudar a forma, mas os processos que as Graças à sua diferença interna, o acontecimento ensina ao A SOMA
DE SUAS
(trans)formam. tempo sua natureza – a imanência. Um devir imanente à sua pró- PARTES

(jacqes, 2001, p. 15) pria diferença desapega-se definitivamente da irreversível conti- ––––––
thereza
nuidade e de sua representação como tempo que irrevogavelmente r o c ha

* * * flui arrastando tudo o que há correnteza adiante.


São múltiplas as temporalidades e elas se atravessam umas às
Gostaria de pensar o sentido como uma sucessão não sucessiva, outras. O tempo pensa na dança quando o movimento se dá sob
não subsequente, tampouco consequente. Um tremular e uma força a condição do corpo imanente ao tempo do devir, ou seja, tanto o
forte. tempo quanto o corpo, em diferença em relação a si.
* * * * * *

 
Desnaturalizar o tempo. Desnaturalizar o espaço. Espaço e Meu corpo está de fato, sempre em outro lugar.
 
tempo não são instâncias dadas antes do fazer e que o propiciam, (foucault, 2013, p. 14)
ambos se fundam no fazer, naquele fazer. É aquele fazer que pede
o espaço-tempo que lhe corresponde, e a utopia ou a heterotopia * * *
nele fabuladas.
Ocorre que as heterotopias são frequentemente ligadas a recor-
* * * tes singulares do tempo. São parentes, se quisermos, das heterocro-
nias.
Como fabricar um tempo que não é percurso? Como fabricar (foucault, 2013, p. 25)
um tempo que não é decurso?
* * *
* * *
A passagem da potência ao acto, da forma comum à singulari-
Duração contínua de presentes não sucessivos. Nada ali evolui. dade, não é um acontecimento cumprido de uma vez por todas, mas
* * * uma série infinita de oscilações modais.
(agamben, 1993, p. 23)
* * *
– –
294 295
Laurence Louppe (2004, p. 23) relembra o comentário de Domi- * * * DERI VAS
DE UM
nique Dupuy acerca da Introdução ao curso de poética de Paul Va- PLANO
léry (1937), quando o coreógrafo evoca certa escuta poética do mo- Agora sem licença nenhuma, simples assim: o devir não vem a DE COM -
POSI -
vimento como “un événement qui est un avènement”, um evento ser, pois se ele viesse a ser deixaria necessariamente de devir. Ne- ÇÃO EM

(événement) que é advento (avènement); uma escuta do movimento nhum projeto, propósito, programa, objetivo, estudo dos fim ou da DANÇA :
O TODO
que busca no evento o seu advento, no que acontece o seu aconte- finalidade. Nenhuma te(le)ologia. No devir não há futuro. É MENOR
DO QUE
cer. * * *
A SOMA
DE SUAS
Todas as tentativas são válidas quando a tarefa de dizer o devir PARTES
(devenir) impõe-se, para longe da lógica predicativa que o trairia e O todo é menor do que a soma de suas partes. Incutir minoridade
––––––
thereza
da sua rápida captura como vir-a-ser ou tornar-se. Eu arriscaria um inassertiva original de Aristóteles (“O todo é maior do que a soma r o c ha

neologismo em francês, intraduzível para o português, na tentativa de suas partes”) e precipitar na metafísica um devir sem vir-a-ser,
de dizer o devir como événir. que a esboroa por dentro.
* * * * * *
Buscar no que acontece o seu acontecer. É isso também fazer Performativo do texto no texto, fazer operar estes conceitos: te-
dramaturgia. cer uma dramaturgia.
Dramaturgia: conceito operativo.
 
* * *

 
* * *
Agamben (1993) chama a atenção para a etimologia, no latim,
da palavra qualquer. Simplificadamente, trata-se de um qual que Depois de nossas considerações acerca da imanência, o plano
quer, um qual-quer: o “o qual”, este qual que se dá como tal, que de composição já pode ser plenamente chamado de plano de sen-
não terá vir-a-ser a cumprir de uma essência que o antecede, está tido. Nele, elementos heteróclitos são apresentados, entremeados e
investido da potência da vontade; ele deseja. autorreferidos de modo a constituir um todo sem totalidade. Da sus-
* * * picious lógica em curso, restou tão somente a suspeita.
* * *
Se pedirmos licença e empréstimo ao portentoso pensamento
de Gilles Deleuze, talvez possamos afirmar o qualquer, como a ra-
zão, ou mais apropriadamente como a figura do devir, figura ne-
cessariamente afigurativa, uma vez que este processo não resulta;
não resulta senão no relançamento do próprio processo. Nele “não
é o término que é buscado […] mas sim o próprio devir, ou seja, as
condições de um relançamento da produção desejante ou da expe-
rimentação” (zourabichvili, 2004, p. 18).
– –
296 297
Não haveria melhor definição de método para o que aqui se es- Imanência, uma dança. DERI VAS
DE UM
creveu: menos o drama que o grama (derrida, 2008), entre o rastro PLANO
* * *
(indecisão, rachadura) e a logia, uma dramaturgia assumidamente DE COM -
POSI -
suja, borrada, inconclusa, torta, que não pressupõe um mundo de Não se trata de aprender uma unicidade, mas de apreender a
ÇÃO EM
DANÇA :
acontecimentos supostamente organizados diante do próprio olhar, qualqueridade. O TODO
mas entende que os acontecimentos competem entre si pelo olhar. É MENOR
DO QUE
Esta éouma medida de honestidade. Mas não só. Ela é também po- * * * A SOMA
DE SUAS
lítica. Éiuma escrita que enfatiza, ao invés de escamotear, o caráter PARTES
ficcional deste texto, e porque não de todos, tecidos na experiência A minha amiga e filósofa Luiza Poppe Taborda, aos quatro anos ––––––
thereza
do (i)mundo (do) vivido. de idade, refere-se ao que vem, seja ele qual for, na conta que for, r o c ha
quer para referir-se ao amanhã, ou ao mês que vem, mesmo ao ano
* * * que vem, abstração por ela desconhecida e responsável pela inteli-
gência da formulação, dizendo: “Depois desse dia”. Há em sua pro-
A tábua de escrever escreve-se por si ou, antes, escreve a sua
núncia uma noção de porvir, mas nela o porvir não foi colonizado
própria passividade […] um escrivão não deixa simplesmente de
(ainda) pela noção de futuro.
escrever, mas prefere não, […] não escreve outra coisa do que a sua
potência de não escrever. * * *
(agamben, 1993, p. 35)
 
Não quero perder-me em meandros filosóficos. Mas grande
* * *
 
parte dos moçambicanos (e imagino dos angolanos) lida com cate-
gorias de tempo bem diversas daquela que norteia uma empresa de
Permanecer neste estado. Estado de/em composição.
seguros. Para essas culturas, o futuro não só não tem nome como a
Estado sempre aquém da composição.
sua nomeação é interdita. Na maior parte das línguas moçambica-
* * * nas há palavra para dizer “amanhã” — no sentido literal do dia se-
guinte (monguana, mundjuku, mudzuko). Mas não há equivalente
Elementos para uma cartografia da grupalidade. para o termo “futuro”, nomeando o tempo por inaugurar. […] An-
* * * tever o futuro é uma heresia, uma visita não autorizada.
(couto, 2011, p. 124)
Juntos, uma delimitação de campo (de possíveis) em que o que * * *
se entende como dança não seja exterminador de futuros.
* * * Pessimismo alegre.
* * *
Partimos já de um objeto (de dança) tornado rarefeito
* * * A felicidade não, a alegria.
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302 303
No presente, a dramaturgia puramente
literária ou linear é raramente encontrada
em dança ou teatro. A dramaturgia, hoje,
é geralmente uma questão de resolver
quebra-cabeças, aprender a lidar com
a complexidade. Essa administração da
complexidade exige um investimento de
todos os sentidos e, mais especialmente,
uma firme confiança nas vias da intuição.

trecho de: Marianne Van Kerkhoven


Looking without pencil in the hand
[Theaterschrift: On dramaturgy. 1994, n. 5-6, p. 146.]

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Este livro tem seu texto composto
na família tipográfica Walbaum e foi
impresso no verão de 2016 em São Paulo.
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