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Introdução — Alguma coisa lá no fundo, Rodrigo Lacerda
Nota do editor
PRIMEIROS CONTOS
Estações tempestuosas
O cabelo
Os a cionados
Possêidon e companhia
Maçãs vermelhas e lustrosas
VOCÊ PODERIA FICAR QUIETA, POR FAVOR?
Gordo
Vizinhos
A ideia
Eles não são seu marido
Você é médico?
O pai
Ninguém falou nada
Sessenta acres
O que tem no Alasca?
Escola noturna
Cobradores
O que você está fazendo em San Francisco?
A mulher do estudante
Ponha-se no meu lugar
Jerry, Molly e Sam
Por quê, querido?
Os patos
O que acha disso?
Bicicletas, músculos, cigarros
São milhas de verdade?
Sinais
Você poderia car quieta, por favor?
DO QUE ESTAMOS FALANDO QUANDO FALAMOS DE AMOR
Penas
A casa do Chef
Preservação
O compartimento
Uma coisinha boa
Vitaminas
Cuidado
De onde estou ligando
O trem
Febre
A rédea
Catedral
CONTOS RECOLHIDOS
entre nós, a repercussão que merecia. Mesmo quando veio ao Brasil, em 1984,
suas palestras não chamaram muita atenção. Várias razões contribuíram para
isso, sobretudo o fato de seus livros terem sido publicados por aqui sem o
devido estardalhaço e em número insu ciente. Agora, 21 anos após sua morte,
a publicação deste volume de Contos põe as coisas em seu lugar.
O presente lançamento representa ainda um segundo e importante avanço.
Quando um escritor é especialista em contos, não é raro que o simples esforço
de elencar sua bibliogra a se transforme num pesadelo. Algumas histórias já
publicadas reaparecem junto a outras inéditas, num livro com novo título;
outras são reescritas e publicadas com outros títulos; antologias com títulos
novos e nenhum material inédito circulam à vontade; contos surgem em
miscelâneas, misturados a textos de outra natureza; suas histórias aparecem,
nas mais diferentes combinações, em edições independentes, que por isso
mesmo às vezes são citadas nas bibliogra as, outras não etc. Em se tratando
da obra de Carver, todas as opções acima são verdadeiras. Com o agravante de
que, na Inglaterra, a língua é a mesma, mas as edições não seguiram o título
americano, enganando muitas das bibliogra as disponíveis. É um privilégio
para o leitor brasileiro, portanto, nalmente enxergar com maior clareza, em
ordem cronológica, a produção essencial de Raymond Carver.
A seção inicial deste volume, “Primeiros contos”, reúne cinco histórias
escritas entre 1960 e 1967. São elas: “Estações tempestuosas” (1960-61); “O
cabelo” (1963); “Os a cionados” (1963); “Possêidon e companhia” (1963);
“Maçãs vermelhas e lustrosas” (1967). Em seguida, temos seus dois primeiros
livros publicados em circuito pro ssional: Você poderia car quieta, por favor?, de
1976, e Do que estamos falando quando falamos de amor, de 1981. Mais adiante,
vêm os contos incluídos em Fogos, de abril de 1983, uma miscelânea de cção,
poesia e ensaística. Chegamos então à sua obra-prima, Catedral, que saiu em
setembro do mesmo ano de 1983. Por m, na seção “Contos recolhidos”,
temos cinco histórias dos anos 1980, que permaneceram inéditas em livro até
2001: “Me telefone se precisar” e “O que você quer ver?” são do início da
década, e as demais estavam sendo nalizadas poucos meses antes da morte
do escritor.
Raymond Carver era taxativo ao dizer que os lhos foram a principal
in uência em sua produção literária. Não é uma frase para ser tomada
levianamente. Em 1958, recém-completados seus vinte anos, Carver já era pai
de duas crianças e enfrentava imensas di culdades nanceiras. Sua mulher,
Maryann Burk (1940-), era ainda mais jovem e pro ssionalmente
despreparada. Para enfrentar a situação, Carver teve todos os tipos de
subemprego que se possa imaginar. Foi zelador, faxineiro, rapaz de entrega,
frentista, entre outras coisas, e o mesmo caminho seguiu sua mulher,
trabalhando como garçonete, vendedora porta a porta etc. Entre 1958 e
meados de 1967, o casal viu-se inclusive obrigado a mudar de cidade algumas
vezes, sempre indo atrás de algum dinheiro extra.
Com o apoio da esposa, que sempre o incentivou a perseguir o desejo de ser
escritor, em 1957 Carver matriculara-se no ciclo básico da faculdade, mas, com
a vida que tinha e as sucessivas mudanças, levaria seis anos e três universidades
diferentes até se formar em estudos literários, no ano de 1963. O curso
universitário acidentado foi o primeiro impacto direto que os lhos tiveram
em sua carreira. O segundo foi que, sem tempo para escrever, Carver
começou compondo peças curtas, ao m das quais conseguia chegar mais
rapidamente. O fato de ter se especializado em contos e poemas, portanto,
não foi um acaso.
Na segunda universidade em que se matriculou, e onde estudou de 1958 a
1960, a Chico State College, na Califórnia, Carver teve um jovem professor
chamado John Gardner (1933-82), que logo se tornaria famoso como autor dos
célebres manuais para jovens escritores On Becoming a Novelist [Como se tornar
um romancista] e The Art of Fiction [A arte da cção]. Proveniente de uma
família na qual ninguém passara da metade do ensino fundamental, era
inevitável que Carver se impressionasse com ele. Foi sob a orientação de
Gardner que começou a escrever, e foi Gardner o primeiro a ler e comentar
detalhadamente seus contos, aconselhando-o a, quando chegasse a hora,
valorizar as revistas literárias como veículos preferenciais de publicação. Além
disso, emprestava sua sala na universidade para que o jovem aluno, nos nais
de semana, fugisse da agitada vida doméstica e escrevesse. Com ele Carver
aprendeu a revisar incessantemente o que produzia, a estruturar suas
narrativas, a escolher minuciosamente as palavras, a eliminar os excessos
retóricos e, por m, a analisar os signi cados mais profundos de suas histórias.
Ainda graças a sua orientação, Carver teve contato com os clássicos da
literatura e com os dois escritores que, de lados opostos, eram os pilares do
modernismo literário americano: Ernest Hemingway e William Faulkner.
Mais do que tudo isso, segundo Carver, o jovem orientador ensinou-lhe a
ética essencial do ofício: “Gardner estava convicto de que, se a história
estivesse ‘borrada’ devido à insensibilidade, ao descuido ou ao
sentimentalismo do autor, ela sofreria imenso prejuízo. Mas havia coisa ainda
pior, algo que deveria ser evitado a qualquer custo: se as palavras e os
sentimentos fossem desonestos, se o autor estivesse ngindo ou escrevendo
sobre coisas que não fossem realmente importantes para ele e nas quais não
acreditasse, então ninguém daria a mínima para o que escrevia”.
Em junho de 1960, contratado por uma serraria para trabalhar na função
que aprendera com o pai, a de a ador de serras, Carver mudou-se novamente
e transferiu-se para a Humboldt State College, onde outro professor, Richard
C. Day, continuou o trabalho de orientação iniciado por Gardner. Lá Carver
fundaria uma revista, Selection, e nela publicaria seu primeiro conto, “Estações
tempestuosas”. De lá sairia formado em 1963.
Gardner e Day guiaram as leituras de Carver e estimularam seu ímpeto de
experimentação, ainda irregular e muitas vezes à sombra dos grandes autores.
O próprio “Estações tempestuosas” possui uma típica dicção faulkneriana,
com solene abundância descritiva e liberdades na relação tempo-espaço. “O
pai” é uma espécie de fábula kaf kiana contemporânea, que já acena com o
talento de Carver para os diálogos. “Os a cionados” é uma paródia
desconstrutiva, em que a arena, supostamente lugar de touradas, torna-se
palco de um rito sacri cial. “Possêidon e companhia” é um erte com o
classicismo. “Maçãs vermelhas e lustrosas”, uma fantasia livre. Hemingway, é
claro, foi outro modelo submetido a testes, e pelo menos uma de suas frases
famosas cou marcada a ferro e fogo na mente de Carver: “Prosa é
arquitetura, não decoração de interiores, e o barroco está acabado”.
De todos os escritores que marcaram sua sensibilidade, Tchekhov foi aquele
no qual se espelhou até o m da vida. Muitas das características estilísticas do
mestre russo reaparecem, em outro cenário e em outro tempo, nos contos de
Carver. Entre elas, a forma contida e objetiva da narrativa, às vezes destituída
de um enredo evidente, pedindo ao leitor que avance sem saber aonde irá
chegar, e o caráter prosaico dos elementos que trazem aos personagens
grandes revelações morais, frequentemente assinaladas por epifanias
negativas, isto é, que não dizem exatamente o que estão revelando, mas
ressoam como um “trovão distante”.
Em seu texto “Sobre o ato de escrever”, Carver elenca seus mandamentos
como escritor: 1) não tentar sempre dominar o assunto, permitir-se a
perplexidade; 2) precisão fundamental no discurso; 3) nunca usar truques; 4)
saber valorizar os pontos- nais; 5) escrever um pouco todo dia, sem esperança
ou desalento. Tchekhov, numa carta de maio de 1886, antes elencara os dele, e
as semelhanças com os de Carver são evidentes: 1) não incluir efusões
sociopolíticas; 2) objetividade do começo ao m; 3) ser verdadeiro na descrição
das personagens e das coisas; 4) extrema brevidade; 5) audácia e originalidade
— evitar clichês; 6) ter um coração generoso.
Carver escreveu ensaios e poemas que dialogam até explicitamente com
Tchekhov e, entre os contos aqui reunidos, um dos muitos que recebem um
evidente in uxo do autor russo é “Os patos”. Se Hemingway o havia atraído
pelo texto enxuto, preciso e bem-estruturado, Tchekhov lhe dava um “coração
generoso”, que se permitia a perplexidade e a doçura.
“O cabelo” é apontada como a primeira história mais próxima do futuro
Carver. Fala de um jovem cuja identidade é ameaçada por uma irritação
aparentemente inofensiva. Há nessa narrativa um lirismo angustiado que logo
se tornaria característico do escritor.
O ano de 1967 foi crucial para Carver. Seu conto “Você poderia car quieta,
por favor?” foi incluído entre os melhores do ano nos Estados Unidos e seu
primeiro livro de poemas começou a circular. Enquanto suas histórias
continuaram a ser publicadas em revistas alternativas, ele conseguiu seu
primeiro emprego “de colarinho branco”, como editor de textos numa editora
de livros didáticos, em Palo Alto, na Califórnia.
Sua produção, como não poderia deixar de ser, reagiu ao novo cenário.
Personagens desacostumadas a um mundo de maior so sticação aparecem no
conto “Sinais”, por exemplo, enquanto “O que acha disso?” fala da di culdade
de retornar a uma vida longe dos grandes centros. É também nessa época que
se consolidam os principais temas de sua obra, ou aquilo que ele preferia
chamar de suas “obsessões”: 1) os momentos em que os papéis sociais de suas
personagens são abalados; 2) as relações familiares e conjugais; 3) o mistério
e/ou a ameaça embutida nos eventos cotidianos.
Em se tratando de temas como esses, equilibrar emotividade e objetividade
foi sempre sua grande preocupação. Nessa época, já sem a supervisão de
Gardner e Day, cabia a ele próprio enxugar seu texto, eliminando eventuais
excessos de sentimentalismo. Com isso, dizia Carver, uma mudança começou
a ocorrer: “Durante esse período, alguma coisa aconteceu na minha escrita,
com a minha escrita. Ela desceu ao subterrâneo e depois emergiu outra vez,
banhada por uma nova luz aos meus olhos. Eu estava começando a desbastar,
até car só na imagem, depois até a gura em si”.
Em 1970, somando o dinheiro de um prêmio ganho com um de seus contos,
o fundo de garantia que recebeu quando seu posto como editor foi extinto e o
salário-desemprego, Carver pôde pela primeira vez na vida passar nove meses
apenas escrevendo. Nesse período, produziu quase metade dos contos que
compõem o livro Você poderia car quieta, por favor?.
Havia entretanto alguns obstáculos para que sua obra pudesse deslanchar.
No que tange a um amplo reconhecimento da crítica, o problema estava no
fato de que a vertente mais forte da vanguarda literária da época propunha-se
a abandonar o registro realista, considerado ultrapassado, e a perseguir
experimentações formalistas. Para Carver, no entanto, a grande literatura
deveria permanecer “conectada à vida, enfatizadora e transformadora da
vida”, el ao que ele próprio chamava de “os elementos básicos da narrativa
fora de moda: enredo, personagem e ação”.
Uma segunda vertente, ainda no campo da vanguarda, era a dos escritores
beats. Entre eles e Carver, porém, havia fortes diferenças de atitude em relação
ao trabalho literário. Os beats vangloriavam-se de sua escrita automática,
despojada de re namentos de linguagem, obtida num uxo direto, quase
inconsciente e algumas vezes motivada pelas drogas, que dispensava o
incessante aprimoramento formal. Nada disso se a nava com os padrões
absorvidos por Carver nas aulas de redação criativa. Seriam necessárias
décadas de distanciamento até os estudiosos constatarem que o uxo livre dos
beats era, na verdade, também um efeito construído. Muito antes disso, porém,
Carver assumidamente se tornou um autor cioso da estrutura de suas
histórias, e a seu modo um estilista, de vocabulário despojado à primeira
análise, mas que elaborava o ritmo de cada frase, o tom de cada palavra.
Do outro lado da cena literária, o sucesso comercial de sua produção
esbarrava na resistência aos livros de contos. O romance continuava sendo a
modalidade ccional mais consumida pelas editoras de ampla circulação e pelo
grande público.
Um passo crucial para romper essas barreiras começara a ser dado ainda em
1967, quando Carver conheceu um vizinho em Palo Alto, chamado Gordon
Lish (1934-), seu colega no ramo das editoras didáticas. Em 1969, Lish aceitaria
o posto de editor de cção na prestigiosa revista Esquire. Finalmente, em 1971,
contrariando sua preferência por revistas literárias alternativas, Carver pela
primeira vez submeteu a Lish, com vista à publicação, uma de suas histórias,
“Vizinhos”.
O incentivo descompromissado de Lish ao processo de amadurecimento e
enxugamento pelo qual passavam os contos de Carver deu então lugar a uma
relação de parceria entre autor e editor, que viria a aprofundar esse mesmo
processo. Em “Vizinhos”, o resultado do trabalho a quatro mãos é uma
estrutura mais rme e um estilo mais polido. Sobre essa narrativa, Carver
diria: “É um conto altamente estilizado, antes de qualquer coisa, e é isso que
dá a ele o seu valor.” Diante de Lish, Carver sentia-se um aprendiz, e dava ao
editor ampla liberdade de intervenção em seus textos, como ca evidente
numa carta de 1971: “Sobre aquilo que você disse há muito tempo, ‘a coisa em
É
si é o que importa’. É verdade, no m das contas. […] Então, pisa fundo […].
Se eu não concordar, dou um sinal qualquer, nunca tema”.
Em parte graças a Lish, a literatura de Carver ganharia um tom lacônico e
seco, que ertava com o que os críticos chamavam de “minimalismo” literário.
Mas esse processo de enxugamento formal vinha de longe, e era orgânico ao
seu desenvolvimento como escritor, e não uma simples imposição externa.
Durante a década de 1970, Lish publicou, editando, as histórias de Carver na
Esquire, e foi também o intermediário e o editor de seus dois primeiros livros
lançados por grandes editoras de Nova York, que elevaram sua carreira a um
novo patamar.
Lish entendeu profundamente o universo ccional de Carver. É dele, por
exemplo, a expressão “caipiras de shopping center”, que caracteriza muito
bem uma vasta galeria das personagens do escritor. Se a trajetória da geração
de seus pais — imigrantes de origem rural que atravessaram com extrema
di culdade a Grande Depressão e a adaptação forçada ao meio urbano — bem
caberia num romance de John Steinbeck, a da classe média baixa da geração
seguinte se desenhava em um novo cenário e exigia uma nova forma de
apresentação.
Uma vez terminados seus meses de escritor em tempo integral, Carver
voltou a trabalhar, agora como professor de redação criativa na Universidade
da Califórnia. A partir da Esquire, outras revistas de grande circulação
interessaram-se por seus contos, como a Harper’s Bazaar, que publicou
“Gordo” em 1971 e, mais tarde, a The New Yorker, da qual se tornaria um
colaborador frequente. As revistas literárias, é claro, absorviam cada vez mais
histórias suas. Em 1972 ele recebeu uma bolsa da Universidade de Stanford e
foi professor-visitante de redação criativa na Universidade de Berkeley; em
1973 foi contratado como professor na prestigiosa O cina Literária de Iowa; e
durante um curto período, em 1974, acumulou os trabalhos em Iowa com
funções equivalentes na Universidade de Santa Barbara.
Aparentemente, a vida tinha tudo para melhorar. No entanto, durante esses
primeiros anos de relativa tranquilidade nanceira e projeção pro ssional,
Carver perdeu o controle sobre seu maior vício: a bebida. Havia anos bebia
pesadamente, e sempre fora um fumante compulsivo, mas nunca como nesse
período. Segundo Maryann, sua mulher, a bebida se tornou um problema
“quando ele começou a dar aulas (…) Ficar diante de uma turma de alunos, ou
de um grupo de pessoas, era apavorante para ele. Ia contra sua natureza,
embora tenha cado muito bom nisso”. Essa foi uma fase de desintegração
familiar e dissipação etílica, que o escritor posteriormente apelidaria de “Bad
Raymond Days”. Ele vivia longe de casa, em hotéis, deslocando-se entre os
dois empregos, e a responsabilidade familiar precocemente assumida
continuava cobrando seu preço. Tudo isso acabou fazendo-o perder ambos os
empregos em 1974. Os Carver foram novamente à falência. Desempregado, o
escritor mudou-se com a família para Cupertino, na Califórnia, e até 1976
escreveu muito pouco.
A amizade e a parceria com Lish foram das poucas coisas a continuarem
estáveis durante aqueles anos. Em 1974, Lish apresentara à editora McGraw-
Hill, de Nova York, a primeira reunião de contos de Carver. O escritor,
agradecido, novamente aceitou sua intervenção nos textos, como ca patente
numa carta de novembro daquele ano: “Sobre as edições necessárias em
algumas histórias, diga-me quais e eu vou atrás dela, ou delas. Diga-me quais
são. Ou eu deixo nas suas mãos e você me diz o que acha que deve ser feito
nela ou ‘nelas’”. Os dois põem-se a retrabalhar os contos, o que fariam pelos
próximos dois anos. As interferências de Lish existiram, rmes, e não houve,
então, nenhum con ito na parceria. Em 1977, Carver escreveu ao editor:
“Você, meu amigo, é o meu conceito de um leitor ideal, sempre foi, sempre,
isto é, será para sempre”.
Os anos de 1976 e 1977 foram mesmo contraditórios. Enquanto Carver, sem
dinheiro, vendia sua casa em Cupertino e ia morar sozinho na ignota
McKinleyville, na Califórnia, separando-se da mulher e dos lhos, a editora
McGraw-Hill publicava Você poderia car quieta, por favor?. Enquanto ele
obtinha, em alguma medida, o tão sonhado sucesso e fazia cada vez mais
amigos no meio literário, era internado quatro vezes por alcoolismo agudo
entre outubro de 1976 e janeiro do ano seguinte.
No entanto, 1977 é o marco de uma grande virada em sua vida. Como
escritor, naquele ano Carver abalou o mito editorial de que o grande público
não gostava de contos (iria derrubá-lo de vez no livro seguinte) e recebeu uma
indicação para o National Book Award. A crítica de ponta se rendeu a seu
talento, talvez porque a fachada “minimalista” dos contos, na qual Lish tinha
grande responsabilidade, o tenha ajudado a quebrar a resistência das
vanguardas, ou talvez porque as tendências literárias mais nitidamente
vanguardistas, àquela altura dos anos 1970, já tivessem perdido o grande
impulso da década anterior.
Em sua vida particular, no dia 2 de junho de 1977, Carver decidiu parar de
beber e, para surpresa geral, inclusive sua própria, conseguiu fazê-lo. “Eu acho
que eu só queria viver”, diria ele mais tarde. O escritor relembrava esse
momento como o ponto em que teve início a sua “segunda vida”, a sua
“viagem rio acima”, numa alusão aos salmões que desde criança adorava
pescar. Para culminar a maré positiva, em novembro, num ciclo de palestras
sobre literatura, no Texas, Carver conheceu a poetisa Tess Gallagher (1943-),
no prenúncio de uma relação amorosa que se estenderia do ano seguinte,
quando ele e a primeira esposa separaram-se de nitivamente, até o m de sua
vida.
Carver não cava muito confortável no papel de escritor minimalista, mas
tinha plena con ança em Gordon Lish, e o sucesso do primeiro livro parecia
comprovar a melhora dos contos após as intervenções do editor. Em 1977 Lish
deixou a Esquire e foi trabalhar na célebre editora Alfred Knopf. Sem demora,
assinou com Carver o contrato para um segundo livro. O escritor, na época,
continuava dando aulas de redação criativa e publicando contos aqui e ali. Suas
novas histórias re etiam o período difícil que havia passado, como por
exemplo “Por que não dançam?”, de 1978, na qual um homem
presumivelmente abandonado por sua mulher põe todos os seus pertences à
venda, despertando a curiosidade e a descon ança de um jovem casal.
Em 1980, Lish começou a editar os contos para o segundo livro. A essa
altura, Carver e Tess já mantinham uma união estável e ele fora contratado
pela Universidade de Syracuse, onde ela também lecionava redação criativa.
Numa carta escrita em maio daquele ano, novamente Carver deu plenos
poderes ao editor: “Pelo amor de Deus, não hesite em ‘mandar o lápis’ nas
histórias, se você puder melhorá-las; e, se alguém pode, é você”.
Os dois estavam nesses termos quando Lish fez uma primeira edição dos
contos selecionados. Após redatilografá-los, enviou uma cópia a Carver, mas,
na que manteve consigo, fez ainda uma segunda edição, mais rigorosa do que
nunca. O conto “O banho”, por exemplo, caiu de vinte páginas para oito. Lish,
em média, enxugou as histórias em 40%, e ainda mudou o título de várias
delas.
Quando recebeu a segunda edição de Lish, pela primeira vez desde 1967 o
escritor considerou excessiva a interferência do amigo. Na carta que lhe
enviou em julho daquele ano, Carver pedia que a versão publicada fosse a da
primeira edição, e não a segunda. Caso contrário, humildemente, disse estar
disposto a devolver o adiantamento recebido e ter o contrato anulado. Ele
invocou a ligação direta entre os contos e suas experiências recentes, dizendo
que seria uma humilhação amputá-los daquela forma, sob o risco de destruir
sua autoestima perante si próprio e perante os amigos escritores que já os
tinham lido, com as piores consequências para um alcoólatra recém-
recuperado. Além disso, não se pode subestimar o fato de Carver estar
lecionando sobre técnicas de cção há anos, e de ter ganhado, com a vida
estabilizada, maior con ança em seu próprio julgamento. Por m, casara-se
com uma escritora, que naturalmente se tornara a primeira leitora de tudo o
que ele escrevia, e uma opinião pelo menos tão importante para ele quanto a
de Lish.
Apesar da crise, Lish contava ainda com a gratidão de Carver: “Toda essa
vida nova que eu tenho, muitos dos amigos que eu tenho agora, esse trabalho
aqui ao norte, tudo, eu devo a você. […] Achei que a sua edição, especialmente
na primeira versão, foi brilhante”.
Desde o início da carreira, Carver precisara de editores que o ajudassem a
conter uma veia bastante emocional, quase melodramática, em sua prosa de
cção. Na obra poética, que talvez tenha cado mais imune à ação dos
editores, tal característica aparece nitidamente. Gardner havia sido o primeiro,
mas agora a sensibilidade racional e minimalista de Lish promovia uma
radicalização do processo. No entanto, fora longe demais, e a absoluta assepsia
formal imposta aos contos implicava, aos olhos de Carver, uma assepsia
emocional, uma ruptura com o “coração generoso” tchekhoviano.
Autor e editor entraram num acordo. A segunda edição de Lish prevaleceria,
mas com algumas restaurações exigidas por Carver. Em 10 de julho, o escritor
devolveu ao amigo a cópia do livro: “Você vai ver que as mudanças que eu
sugiro são bem pequenas, mas eu as considero signi cativas e todas elas
podem ser encontradas na primeira versão editada que você me mandou”. E
quatro dias depois, em outra carta, enfatizou: “Eu quero aquele toque de
beleza e mistério que elas têm agora, mas não quero perder de vista, perder
contato, com as pequenas conexões humanas que eu vi na primeira versão
editada que você me mandou”.
O título Do que estamos falando quando falamos de amor foi dado por Gordon
Lish ao novo livro de Carver, o segundo a sair por uma grande editora, em
abril de 1981. A crítica não mediu elogios. Deu ao escritor a reputação de
“mestre completo” e colocou seus contos na categoria de “fábulas para uma
geração”. Os elogios, no entanto, vinham acompanhados do temível rótulo de
“minimalista” e louvavam sua obra por características que, a seu ver, eram
pseudovirtudes, quando diziam que ela era “economicamente clara como um
quinto de Sminorff gelada”.
A poetisa Tess Gallagher, na condição de esposa e grande parceira literária
de Raymond nos seus últimos dez anos de vida, registrou a ambiguidade da
situação vivida pelo marido e pôs em dúvida o quanto o acordo assentado
entre Carver e Lish havia de fato sido um acordo: “O que você faria se o seu
livro fosse um sucesso, mas você não quisesse explicar para o público que ele
havia sido empurrado pela sua garganta abaixo? […] Ray tinha que ir até o m.
Não havia como ele repudiar o livro”.
Não há por que duvidar quando ela diz que sempre foi um desejo de Carver
ver o livro restaurado e relançado. Desejo esse, aliás, que Gallagher conseguiu
realizar postumamente, ao estimular e autorizar a publicação de Iniciantes
(Companhia das Letras, 2009). Não obstante, também é verdade que: 1) a
in uência de Lish não se restringe a esse livro, está entranhada no conjunto da
obra de Carver; 2) nem que fosse por força de contrato, dos dezessete contos
de Do que estamos falando quando falamos de amor, vários continuaram sendo
republicados em antologias com os cortes do editor, enraizando-se
de nitivamente no corpus da obra de Carver; 3) mesmo em dois livros
organizados pelo próprio Carver — a miscelânea Fogos, de 1983, e a antologia-
testamento Where I’m Calling From [De onde estou chamando], publicada
poucos meses antes de sua morte —, alguns contos foram publicados
conforme a edição de Lish, enquanto em outros casos as mudanças nos textos
nem sempre visam restaurá-los ao que eram antes da intervenção do editor,
são apenas mudanças; 4) o “toque de beleza e mistério” que Lish dava aos
textos era algo que Carver apreciava, indo ao encontro da tão valorizada
“perplexidade” das personagens diante da vida.
Por tudo isso, parece injusta a corrente da crítica que põe em dúvida o coe‐
ciente autoral da primeira versão de Do que estamos falando quando falamos de
amor. A gratidão de Carver ao aporte estético de Lish sobreviveu àquele único
atrito, e ela é um indício claro de quanto essa polêmica era, no grande plano,
estranha e descabida ao escritor. Afora o melhor entendimento de seu
percurso literário, que caminhara naturalmente para a contenção, a simples
leitura comparativa das duas versões do livro, por imensas que sejam as
diferenças textuais, permite ao leitor identi car a marca emocional de Carver
na base de tudo, como alguma coisa lá no fundo que é indissociável do
verdadeiro criador e de seus contos, estejam eles em sua versão abreviada ou
longa.
Em meio ao contraditório, resta uma única certeza ao leitor brasileiro: o
lançamento de Iniciantes, com os textos restaurados, não invalida em absoluto
a versão incluída neste volume de Contos, que é a editada por Lish.
Apesar de todos os problemas, Carver e Lish continuaram amigos e
assinaram contrato para um novo livro, que o escritor deveria entregar em
novembro de 1982, para ser lançado no correr de 1983.
Antes disso, porém, em abril de 1983, sairia Fogos, pela editora independente
Capra Press. Nesse livro de miscelânea, entre poemas e textos de não cção, o
escritor incluiu algumas histórias que já prenunciavam as transformações por
que estava passando. Carver agora descartava a absoluta economia como
critério de qualidade e justi cava esse redirecionamento ao dizer que: “Indo
mais longe naquela direção, eu chegaria a um beco sem saída.” Caso se zesse
um diagrama da trajetória estilística/emocional da literatura de Carver, essa
representação deveria estar dividida em três momentos, reproduzindo a forma
de uma ampulheta, que começa com a base larga, passa por um severo
estreitamento, e, em seguida, se alarga novamente.
Essa última fase é marcada pela valorização e explicitação dos vínculos
emocionais que movem as personagens. Talvez o melhor exemplo disso seja o
conto “Tanta água tão perto de casa”, que, após ser publicado com cortes no
livro de 1981, reaparece aqui com modi cações. Nele, quatro amigos vão
pescar em um local remoto e lá encontram, boiando na beira do rio, o cadáver
de uma jovem assassinada. Voltar imediatamente para avisar a polícia,
entretanto, signi caria desistir da excursão tão aguardada e, considerando que
a garota já estava morta, os amigos decidem deixar o cadáver na água,
limitando-se a amarrá-lo pelo pulso a uma das árvores à beira d’água, assim
evitando que boiasse para longe e ganhando tempo para terminar a pescaria.
Quando voltam e a notícia do assassinato se espalha, a mulher de um deles,
que narra a história, não consegue aceitar a frieza do marido e seus amigos
perante a tragédia. A jovem assassinada, aos olhos da narradora, de certa
forma torna-se, em sua absoluta desproteção, mais viva que os quatro
homens, insensíveis e capazes de diluir em racionalizações o respeito devido a
um semelhante.
Enquanto Fogos chegava às livrarias, a parceria com Lish para o livro
seguinte já funcionava numa outra dinâmica, imposta por Carver. De acordo
com ela, a liberdade de intervenção do editor seria restrita e a integridade dos
textos, preservada, como ca dito numa carta de agosto de 1982: “Uma coisa é
certa: as histórias desse livro serão mais ‘cheias’ que as dos livros anteriores. E
isso, pelo amor de Deus, é para o bem. Não sou o mesmo escritor que eu era.
[…] Entenda que não estou dizendo, ou remotamente pensando, que essas
histórias novas, ou feitas de um ano para cá, estão acima de crítica, ou que não
precisarão de edição. Não é verdade. Não é verdade em nenhum dos casos.
Você está tão próximo de mim, e do meu trabalho, que não estaria mais
próximo se fosse meu irmão de sangue. […] Acho que estou querendo dizer
que vamos ter de trabalhar muito juntos nesse livro — o livro mais importante
de todos para mim”.
Pelo que se depreende das cartas, o novo equilíbrio de forças funcionou
paci camente. Lish foi cerimonioso nas mudanças. Sem dúvida que tamanha
adaptação pode ter sido mais tortuosa e contraditória do que as aparências
indicam. Sabe-se que, após esse livro, Lish e Carver acabaram se distanciando
um do outro. Apesar disso, o esforço do escritor pela manutenção da amizade
é evidente. De certa forma, o novo livro, Catedral, lançado em setembro de
1983, ajudaria a desfazer a falsa polêmica autoral sobre o livro anterior. O
talento de Carver havia atingido um equilíbrio próprio entre a expansão
emocional e a elegância estilística.
Já no conto “Penas”, que abre o livro, o escritor demonstra estar em pleno
domínio de seus recursos. O enredo não podia ser mais enxuto: um homem
vai com a esposa visitar um colega de trabalho, que também é casado e tem
um lho pequeno. Contudo, um estranhamento percorre a narrativa, gerado
pela ação conjunta de elementos que a princípio não têm qualquer relação
entre si: o animal de estimação dos amigos, um pavão, o aspecto horrível do
bebê e o molde da arcada dentária da an triã, que ca exposto em cima da
televisão. A ligação entre tais elementos não é esclarecida ao longo da história,
em mais uma das ambiguidades típicas de Carver, mas eles pairam sobre o
diálogo dos casais e ganham força simbólica, gerando uma alta voltagem
emocional e tendo um impacto indelével e misterioso no futuro da relação
entre o narrador e sua mulher. Aqui, contenção e emoção convivem
perfeitamente tanto na estrutura quanto no desenvolvimento.
A crítica mais uma vez adorou o livro, e um escritor especializado em
contos vendeu tanto quanto um romancista. Claro que o rótulo de
“minimalista” não deixou de aparecer, em algumas resenhas e reportagens,
porém agora desautorizado por qualquer leitura mais perspicaz. Catedral
acabaria indicado para o Pulitzer e para o National Critics Circle Award.
Mas havia ainda outra diferença entre o livro de 1981 e o de 1983: se as
antigas histórias eram sobre alcoólatras, pessoas com problemas nanceiros e
casamentos arruinados, muitas das novas narrativas falavam de vidas sendo
reconstruídas, de pessoas se reencontrando ou da força positiva gerada pelo
contato com os outros. A explicitação desses vínculos emocionais positivos,
anunciada nos contos de Fogos, é generalizada nesse novo livro, com destaque
para “Catedral” e “Uma coisinha boa”, que, não por acaso, Carver dizia serem
seus contos preferidos.
Os anos 1980 foram de grande felicidade no plano pessoal e pro ssional. Em
1983, Carver conquistou de nitiva estabilidade nanceira ao receber uma
bolsa inde nidamente renovável da American Academy and Institute of Arts,
que lhe concederia 35 mil dólares anuais por cinco anos, com a única condição
de que ele não tivesse nenhum outro vínculo empregatício, o que o levou a
pedir demissão da Universidade de Syracuse e dedicar-se apenas à literatura.
Em 1984, Carver e Tess mudaram-se para uma casa em Port Angeles, no
estado de Washington, onde o escritor retomou sua paixão pela pescaria,
enquanto produzia contos e, sobretudo, poemas. Paralelamente, sua obra
conquistava reconhecimento internacional.
Em setembro de 1987, contudo, o tabagismo nunca abandonado cobrou seu
preço. Vítima de um câncer, Carver teve o pulmão esquerdo quase
inteiramente removido. Em março de 1988, a doença reapareceu, agora no
cérebro, sendo tratada com radioterapia. Ainda em maio, Carver foi
empossado na American Academy and Institute of Arts and Letters,
colocando-se para sempre entre os grandes nomes da literatura americana. O
câncer no pulmão ressurgiu, porém, selando a sorte do escritor. Já em clima de
despedida, Carver e Tess formalizaram sua união no dia 17 de junho.
Raymond Carver morreu na manhã do dia 2 de agosto.
Treze anos depois, em 2001, Tess Gallagher publicou Me telefone se precisar,
livro que, entre ensaios e textos memorialísticos, trazia contos ainda não
incluídos em seus livros ou mesmo inéditos, que aqui aparecem divididos, em
obediência à ordem cronológica, nas seções “Primeiros contos” e “Contos
recolhidos”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Carver, Raymond. Will You Be Quiet, Please? Nova York, McGraw-Hill, 1976.
______. What Are We Talking About When We Talk About Love. Nova York,
Alfred Knopf, 1981.
______. Fires: Essays, Poems, Stories. Santa Barbara, Capra Press, 1983.
______. Cathedral. Nova York, Vintage Books, 1989.
______. Where I’m Calling From. Nova York, Vintage Books, 1989.
______. Short Cuts. Nova York, Vintage Books, 1993.
______. All of Us: The Collected Poems. Nova York, Vintage Books, 2000.
______. Call If You Need Me. Nova York, Vintage Books, 2001.
______. Iniciantes. São Paulo, Companhia das Letras, 2009.
OUTRAS FONTES, ENTREVISTAS E SITES
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Yearbook: 1988. Ed. J. M. Brook. Detroit, Gale Research, 1989, pp. 199-213.
Stull, William L. e Carroll, Maureen P. (orgs.) Remembering Ray: A Composite
Biography of Raymond Carver. Santa Barbara, Capra Press, 1993.
Stull, William L. e Carroll, Maureen P. (orgs.) Tell It All. Roma, Leconte, 2005.
Halpert, Sam. Raymond Carver: An Oral Biography. Iowa City, University of Iowa
Press, 1995.
Burk Carver, Maryann. What It Used to Be Like: A Portrait of My Marriage to
Raymond Carver. Nova York, St. Martin’s Press, 2006.
Bruce Gentry, Marshall e Stull, William L. (orgs.) Conversations with Raymond
Carver. Jackson, University Press of Mississippi, 1990.
Macfarlane, Robert. “Back to the source”, in: The Guardian, Londres, 9 de abril
de 2005.
Hashimoto, Hiromi. “Trying to Understand Raymond Carver’s Revisions”,
in: Tokai English Review, No 5, Tóquio, dezembro de 1995, pp. 113-147.
Trechos da correspondência entre Raymond Carver e Gordon Lish, de 1969
a 1983, in: The New Yorker, 24 de dezembro de 2007.
Grimal, Claude. “L’Histoire ne descend pas des nuages”, in: Europe, 733,
Paris, maio de 1990, pp. 72-79.
Pozzo, Silvia Del. “Sono quasi il loro papa”, in: Panorama, Milão, março de
1986, p. 95.
http://www.carversite.com/
http://www.whitman.edu/english/carver/carver.cgi
A chuva mete medo. O topo das montanhas do outro lado do vale já está
encoberto pela densa neblina cinzenta. Nuvens negras e velozes, com
seus rolos e cúpulas, estão vindo dos montes, descem para o vale e passam
sobre os campos e os terrenos baldios na frente do edifício de apartamentos.
Se Farrel solta a imaginação, consegue ver as nuvens como cavalos negros de
crinas brancas e amejantes e, virando para trás, devagar, inexoravelmente,
carruagens negras, aqui e ali com um cocheiro de penacho branco na cabeça.
Agora ele fecha a porta de tela e vê sua mulher descer a escada devagar. Ao
chegar embaixo, ela vira para ele e sorri, e ele abre a porta de tela e acena com
a mão. Pouco depois ela sai. Ele volta para o quarto, senta na grande poltrona
de couro embaixo do abajur de metal e apoia os braços ao longo das laterais
da poltrona.
Está um pouco mais escuro no quarto quando Iris sai do banho envolta num
roupão folgado e branco. Ela puxa o banco debaixo da penteadeira e senta
diante do espelho. Com a mão direita, pega uma escova de plástico branca, o
cabo enfeitado com uma imitação de pérolas, e começa a pentear o cabelo em
movimentos longos, abrangentes, ritmados, a escova descendo ao longo de
seu cabelo com um ligeiro chiado. Ela segura o cabelo sobre um ombro com a
mão esquerda, enquanto faz movimentos extensos, abrangentes e ritmados
com a mão direita.
***
Ela para e acende o interruptor de luz acima do espelho. Farrel pega uma
revista grossa de fotogra as na bancada ao lado da poltrona e estende a mão a
m de acender o abajur, tateando por trás do quebra-luz, semelhante a um
pergaminho, em busca do interruptor. A luz ca a sessenta centímetros do seu
ombro direito e o abajur marrom estala quando seus dedos tocam nele.
Está escuro lá fora e o ar tem um cheiro de chuva. Iris pergunta se ele não
vai fechar a janela. Ele olha para a janela, agora um espelho, vê a si mesmo e,
por trás, Iris sentada à penteadeira, olhando para ele, e um outro Farrel, mais
escuro, tando uma outra janela ao lado de Iris. Ele ainda precisa telefonar
para Frank e con rmar a caçada que planejaram fazer na manhã seguinte. Ele
vira as páginas. Iris tira a escova do cabelo e bate com ela na beirada da
penteadeira.
“Lew”, diz ela. “Sabia que estou grávida?”
Sob a luz da lâmpada, as páginas lustrosas estão abertas numa foto sombrea‐
da de página dupla, de um cenário de catástrofe, um terremoto em algum
lugar do Oriente Médio. Há cinco homens quase gordos, vestindo calças
largas, brancas, parados diante de uma casa desmoronada. Um deles, na certa
o líder, usa um chapéu branco e sujo, inclinado sobre um olho, o que dá ao
homem um aspecto misterioso e malévolo. Está olhando de lado para a
câmera, enquanto aponta para um rio ou um braço de mar, no lado mais
remoto do entulho, para além da montanha de destroços. Farrel fecha a revista
e deixa que ela escorregue do seu colo quando ca de pé. Apaga a luz e então,
antes de seguir para o banheiro, pergunta: “O que você vai fazer?”. As palavras
são secas, apressadas, como folhas velhas nos cantos escuros do quarto e, no
mesmo instante em que as palavras saem, Farrel tem a sensação de que a
pergunta já foi feita por outra pessoa, muito tempo atrás. Ele se vira e vai para
o banheiro.
O banheiro está com o cheiro de Iris; um odor quente, úmido, ligeiramente
pegajoso; talco Primavera Nova e água de colônia Idílio do Rei. A toalha de Iris
está jogada atrás da privada. Na pia, ela derramou talco. Agora o talco está
molhado, pastoso, e formou um círculo amarelo em volta das bordas brancas
da pia. Ele esfrega, lava e a água leva o talco pelo ralo.
Ele está fazendo a barba. Virando a cabeça, dá para ver a sala. Iris está
sentada de per l no banco diante da velha penteadeira. Ele põe de lado a
navalha e lava o rosto, em seguida pega outra vez a navalha. Nesse instante,
ouve os primeiros pingos de chuva baterem no telhado...
Depois de algum tempo, ele apaga a luz acima da penteadeira, senta de
novo na grande poltrona de couro e ca escutando a chuva. A chuva cai em
rajadas curtas, palpitantes, de encontro à sua janela. O palpitar suave das asas
de um passarinho branco.
Sua irmã percebeu. Ela guarda o passarinho numa caixa, joga umas ores
para ele por cima da caixa, às vezes balança a caixa para que os dois escutem o
passarinho batendo as asas de encontro às laterais da caixa, até que, certa
manhã, ela mostra a ele, estende as mãos com a caixa na direção dele, não tem
mais nenhum bater de asas lá dentro. Só um barulho mole, áspero que o
passarinho faz na hora em que ela inclina a caixa de um lado para o outro.
Quando ela lhe dá a caixa para ele se desfazer daquilo, ele joga a caixa e seu
conteúdo no rio, nem quer abri-la, porque ela começou a car com um cheiro
gozado. A caixa de papelão tem quarenta e cinco centímetros de
comprimento, quinze de largura e dez de profundidade, e ele tem certeza de
que é uma caixa de biscoitos Floco de Neve, porque era isso o que ela usava
para guardar os primeiros passarinhos.
Ele sai correndo pela margem lamacenta do rio, seguindo a caixinha. É um
barco fúnebre e o rio barrento é o Nilo, e logo vai desaguar no oceano, mas
antes disso o barco vai se incendiar, o passarinho branco vai sair voando para
algum lugar nos campos do seu pai, onde ele vai encontrar e caçar o
passarinho no meio de um capinzal alto e verde, com ovos e tudo. Ele corre
pela margem, as moitas chicoteiam sua calça, um ramo chega a bater em sua
orelha, e a caixa ainda não pegou fogo. Ele arranca umas pedras da margem e
começa a jogar no barco. E aí começa a chover; pingos enormes,
tempestuosos, que borrifam lama e explodem na água, varrendo o rio de uma
margem a outra.
Agora já faz horas que Farrel está deitado na cama, quanto tempo ele não
sabe. De vez em quando se erguia apoiado num ombro, com cuidado para não
acordar sua mulher, espiava na mesinha de cabeceira dela, tentando avistar o
despertador. Estava virado só um pouco na direção dele e, se erguendo sobre
um ombro como estava fazendo, tomando o maior cuidado possível, só podia
ver que os ponteiros amarelos marcavam três e quinze ou duas e quarenta e
cinco. Lá fora, a chuva batia de encontro à janela. Ele se virou e deitou de
costas, as pernas bem abertas embaixo do lençol mal tocavam o pé esquerdo
da sua mulher, enquanto ele escutava o relógio na mesinha de cabeceira.
En ou-se embaixo da colcha outra vez e depois, como estava quente demais e
suas mãos suavam, empurrou para trás as cobertas sufocantes, retorcendo os
dedos no lençol, amassando o tecido entre os dedos e apertando-o na palma
das mãos, até ter a sensação de que as mãos estavam secas.
Lá fora, a chuva caía em nuvens, erguendo-se em ondas contra a débil
luminosidade amarela, como uma multidão de minúsculos insetos amarelos
que atacassem furiosamente a janela em rajadas e ondulações. Ele se virou e
começou lentamente a se aproximar de Lorraine, até que as costas lisas dela
tocaram em seu peito. Por um momento, ele a segurou com delicadeza, com
cuidado, a mão pousada na concavidade da barriga de Lorraine, os dedos dele
deslizaram por baixo da faixa elástica de sua calcinha e a ponta dos dedos mal
tocou os pelos duros, feito escova, mais abaixo. Então uma sensação estranha,
como entrar num banho quente e sentir-se criança outra vez, com as
recordações voltando numa torrente. Retirou a mão e afastou-se, saiu da cama
e andou até a janela, onde a água escorria.
Lá fora, havia uma vasta e estranha noite de sonho. A luz do poste de rua,
um lúgubre obelisco marcado por cicatrizes que se erguia no meio da chuva
com uma débil luz amarela na extremidade. Na base do poste, a rua estava
negra, lustrosa. A escuridão girava e pressionava as margens da luz. Ele não
conseguia enxergar os outros apartamentos e por um instante foi como se
estivessem destruídos, tal como as casas da foto que ele estava vendo horas
antes. A chuva aparecia e desaparecia na janela, como um véu escuro se
abrindo e fechando. Lá embaixo, a chuva inundava o meio- o. Inclinando-se
um pouco mais, até poder sentir na testa as correntes frias de ar que
penetravam por baixo da janela, via sua respiração formar uma névoa. Tinha
lido em algum lugar, e se lembrava de ter visto uma foto certa vez,
possivelmente na revista National Geographic, em que grupos de pessoas de
pele morena estavam parados em volta de suas cabanas vendo o sol nascer
encoberto pela geada. A legenda dizia que eles acreditavam que se podia ver a
alma na própria respiração e explicava que eles estavam cuspindo e soprando
na palma das mãos, oferecendo a alma a Deus. Sua respiração desaparecia
enquanto ele estava olhando, até que só restou um pequenino círculo, um
ponto, e depois nada. Deu as costas para a janela e foi até suas coisas.
Remexeu no armário em busca de suas botas impermeáveis, as mãos
apalparam as mangas de todos os casacos, até ele achar o impermeável liso de
borracha. Foi até a gaveta pegar meias e ceroulas, em seguida pegou a calça e a
camisa e levou a braçada de roupas pelo corredor até a cozinha, antes de
acender a luz. Vestiu-se e calçou as botas antes de começar o café. Bem que
gostaria de acender a luz da varanda para o Frank, mas por algum motivo isso
não parecia direito, com Iris deitada lá dentro na cama. Enquanto o café coava
fez sanduíches, e quando o café terminou ele encheu uma garrafa térmica,
pegou uma xícara no guarda-louça, encheu e sentou-se perto da janela, de
onde podia ver a rua. Fumou, bebeu o café e ouviu o relógio do fogão apitar.
Um pouco de café entornou sobre a xícara e gotas marrons escorreram
devagar pelas laterais até a mesa. Esfregou os dedos no círculo molhado sobre
o tampo áspero da mesa.
Ele está sentado à escrivaninha no quarto da irmã. Está sentado na cadeira
de espaldar reto diante de um grosso dicionário, os pés enroscados embaixo do
assento da cadeira, os saltos dos sapatos enganchados na trave que une os pés
da cadeira. Quando ele se inclina e se apoia pesadamente sobre a mesa, um
dos pés dela ca em falso, sem tocar o chão, de modo que ele precisou en ar
uma revista embaixo do pé da mesa. Está fazendo um desenho do vale onde
mora. No início, pretendia fazer um desenho que havia num dos livros
escolares da sua irmã, mas, depois de usar três folhas de papel e não ter
acertado a mão, resolveu desenhar o seu vale e a sua casa. De vez em quando
ele para de desenhar e esfrega os dedos na superfície áspera da mesa.
Lá fora, o ar de abril ainda está úmido e frio, a friagem que chega depois da
chuva da tarde. A terra, as árvores e as montanhas estão verdes, e a neblina
está em toda parte, sobe das gamelas no curral, do poço que seu pai construiu
e da campina, em colunas vagarosas, em forma de caneta, e também sobe do
rio e alcança as montanhas como uma fumaça. Ele pode ouvir o pai gritando
para um dos homens e ouve o homem praguejar e responder com gritos. Põe
o lápis de desenho na mesa e desliza da cadeira para o chão. Lá embaixo, na
frente da casa de defumação, avista o pai trabalhando com o defumador. Aos
pés dele, há um rolo de uma corda marrom e o pai está batendo e puxando na
barra do defumador, tentando sacudir aquilo para fora e para longe do celeiro.
Tem na cabeça um boné de lã marrom do Exército e a gola manchada do seu
jaleco de couro está virada, deixando à mostra o forro branco sujo. Após um
golpe nal do defumador, ele se vira de frente para os homens. Dois deles,
canadenses grandes, de cara vermelha, de chapéus de anela sebosos,
arrastam a ovelha na direção de seu pai. Seus punhos estão cerrados e
afundados na lã e um deles tem o braço enrolado em volta das patas dianteiras
da ovelha. Eles seguem na direção do celeiro, meio arrastando a ovelha, meio
obrigando a ovelha a andar sobre as pernas traseiras, como numa dança louca.
O pai grita outra vez e eles seguram a ovelha contra a parede do celeiro, um
deles monta a cavalo sobre a ovelha, força a cabeça do animal para trás e para
cima, na direção da janela. As narinas da ovelha são fendas escuras, com
pequenos letes de muco que escorrem para dentro da boca. Os olhos
ancestrais e vidrados tam o homem por um momento, antes de ela tentar
balir, mas o que sai é um guincho penetrante, na hora em que o pai corta a
cabeça da ovelha com um golpe de faca largo e rápido. O sangue esguicha nas
mãos do homem antes que ele tenha tempo de retirá-las. Em poucos
momentos, eles levantam a ovelha no defumador. Ele pode ouvir o enjoativo
ruído metálico do defumador na hora em que o pai levanta a ovelha mais alto
ainda. Os homens agora estão suando, mas continuam com seus jalecos
fechados até em cima.
A partir de um ponto logo abaixo da garganta aberta, seu pai abre o peito e
a barriga da ovelha, enquanto os homens pegam as facas menores e começam
a cortar a pele do animal e separá-la das pernas. Os intestinos cinzentos
deslizam de dentro da barriga fumegante, caem e se amontoam no chão num
rolo compacto. Seu pai resmunga e, com uma pá, joga os intestinos da ovelha
dentro de uma caixa, enquanto fala alguma coisa sobre um urso. Os homens
de cara vermelha riem. Ele ouve a correntinha tilintar no banheiro e depois a
água jorrar na descarga da privada. Um instante depois ele se vira para a porta
ao ouvir o som de passos que se aproximam. Sua irmã entra no quarto, seu
corpo ligeiramente fumegante. Por um momento ca imóvel na porta com a
toalha em volta do cabelo, uma mão segura as pontas da toalha juntas, a outra
mão está na maçaneta. Seus seios são redondos e têm um aspecto liso, os
mamilos parecem o cabinho da delicada fruta de porcelana que ca na mesa
da sala. Ela solta a toalha, que desliza para baixo, esbarra no pescoço, toca nos
seios e vai cair embolada a seus pés. Ela sorri, lentamente põe a mão sobre a
boca e fecha a porta com um puxão. Ele se vira de novo para a janela, os dedos
do pé se contraem dentro do sapato.
Farrel estava sentado à mesa bebericando seu café, fumando de novo com o
estômago vazio. Ouviu um carro na rua, levantou-se depressa da cadeira e foi
até a janela da varanda para ver. O carro entrou na rua em segunda e depois
reduziu na frente de sua casa, dobrando a esquina com cuidado, a água se
encrespando na altura dos eixos, mesmo assim o carro foi em frente. Ele
sentou-se à mesa outra vez e escutou o relógio elétrico do fogão apitar. Seus
dedos se contraíram em torno da xícara. Então viu as luzes. Elas vieram
oscilando rua abaixo, saindo da escuridão; duas luzes de alerta estavam xadas
na estreita parte frontal do carro, próximas uma da outra, a chuva branca e
pesada caía diante das luzes, batendo com força na rua à frente. A chuva
jorrava numa torrente pela rua, diminuía um pouco mais adiante e depois
cava mais calma, já bem perto da janela.
Ele recolheu suas coisas e depois foi para a varanda. Iris estava lá, estendida
debaixo de um monte confuso de colchas pesadas. Mesmo no momento em
que ele procurava um motivo para a ação, como se de algum modo estivesse
separado de si mesmo, agachado do outro lado da cama dela, observando a si
mesmo fazer aquilo, e ao mesmo tempo sabendo que estava acabado, moveu-
se na direção da cama de Iris. Irresistivelmente, curvou-se sobre o vulto de Iris,
como se ele pairasse suspenso, livre de todos os sentidos, exceto do olfato, e
ele inalou profundamente em busca do aroma fugaz do corpo de Iris, curvou-
se até seu rosto car junto às cobertas e ele experimentar o cheiro outra vez,
só por um instante, e depois o cheiro se foi. Ele recuou, lembrou-se da sua
arma, fechou a porta às suas costas. A chuva chicoteava seu rosto. Ele se sentiu
quase atordoado, com os dedos fechados em torno da arma e segurando no
corrimão para se rmar. Por um minuto, olhando da varanda para a calçada
preta e arrepiada, foi como se estivesse sozinho numa ponte em algum lugar, e
de novo veio a sensação, como na noite anterior, de que aquilo já havia
acontecido, sabendo na mesma hora que aquilo iria se repetir, assim como de
algum modo ele sabia disso também agora. “Meu Deus!” A chuva açoitava seu
rosto, escorria pelo nariz e pelos lábios. Frank buzinou de leve duas vezes e
Farrel desceu com cuidado os degraus molhados e escorregadios da entrada da
casa em direção ao carro.
“Chuvarada das boas, caramba!”, disse Frank. Homem grande, com um
casaco acolchoado e grosso, zíper fechado até o queixo e um boné marrom de
pala em forma de bico de pato que lhe dava o aspecto de um implacável juiz
de beisebol. Ajeitou as coisas no banco de trás para que Farrel pudesse pôr as
suas coisas ali.
A água corria de encontro às sarjetas, recuava junto aos bueiros nas esquinas
e de vez em quando eles viam pontos onde a água havia transbordado acima
do meio- o, inundando algum jardim. Seguiram pela rua até o m e depois
dobraram à direita numa rua que iria levá-los à estrada principal.
“Isso vai nos atrasar um pouco, mas, puxa vida, pense só naqueles gansos!”
Mais uma vez Farrel soltou a imaginação e visualizou os gansos, os fez
surgir daquele momento único em que até a neblina ca congelada sobre as
pedras e o ar está tão escuro que poderia muito bem ser meia-noite, no nal
da tarde, quando eles começavam a caçar. Os gansos vêm por cima do
barranco, voam baixo, selvagens e silenciosos, saem de repente de dentro da
neblina, como espectros, num zunido de asas por cima de sua cabeça, e ele
pula e tenta escolher o mais próximo, ao mesmo tempo que empurra para a
frente a trava de segurança de sua espingarda, mas ela está emperrada, e seu
dedo endurecido, coberto pela luva, ca enganchado na guarda do gatilho,
enquanto tenta puxar o gatilho travado. Todos os gansos passam por ele,
voam para fora da neblina por trás do barranco e acima de sua cabeça.
Grandes leiras de gansos gritando para ele. Foi assim que aconteceu três anos
antes.
Ele observava os campos encharcados descerem por baixo da luz de seus
faróis, depois sumirem ao lado e atrás do carro. Os limpadores de para-brisa
guinchavam enquanto iam e voltavam.
Iris puxa o cabelo e com a mão esquerda o faz descer por cima do ombro
enquanto a outra mão manuseia a escova. De modo ritmado, a escova faz o
movimento abrangente ao longo do comprimento de seu cabelo com um leve
chiado. A escova sobe ligeiro de novo para a lateral da cabeça e repete o
movimento e o chiado. Ela acabou de contar a ele que está grávida.
Lorraine foi tomar banho. Ele ainda precisa telefonar para Frank e
con rmar a caçada. A foto lustrosa da revista que está segurando no colo está
aberta na mesma imagem de uma catástrofe. Um dos homens na foto,
obviamente o líder, aponta uma massa de água que se estende para além do
cenário da catástrofe.
“O que é que você vai fazer?” Ele se vira e vai para o banheiro. A toalha dela
está jogada atrás da privada e o banheiro tem cheiro de talco Nova Primavera
e de água de colônia Idílio do Rei. Há um círculo amarelado e pastoso de talco
na pia, que ele tem de esfregar com água antes de fazer a barba. Pela porta,
consegue ver a sala onde ela está sentada penteando o cabelo. Depois de lavar
e enxugar o rosto, logo depois de pegar de novo a navalha, os primeiros pingos
de chuva golpeiam o telhado.
Ele olhou para o relógio no painel do carro, mas ele estava parado.
“Que horas são?”
“Não dê atenção a esse relógio”, disse Frank, erguendo o polegar do volante
a m de indicar o grande e cintilante relógio amarelo que sobressaía no painel
de instrumentos. “Parou. São seis e meia. A sua mulher por acaso disse que
você precisava estar em casa determinada hora?” Sorriu.
Farrel disse que não com a cabeça, mas Frank não podia ver isso. “Não. Eu
só quei imaginando que horas seriam.” Acendeu um cigarro e recostou-se
pesadamente no banco enquanto via a chuva cair com força sob a luz dos
faróis do carro e espirrar contra o vidro.
Estão saindo de Yakima de carro para pegar Iris. Começou a chover quando
chegaram à estrada do rio Columbia e, na hora em que atravessaram
Arlington, a chuva já era torrencial.
É como passar por um túnel comprido e em declive acentuado, e eles
descem em alta velocidade pela estrada negra com árvores densas e
emaranhadas bem perto, acima da cabeça deles, e a água desaba em cascatas
sobre a dianteira do carro. O braço de Lorraine se estende no encosto do
banco do carro, sua mão repousa de leve no ombro esquerdo dele. Lorraine
está sentada tão perto que ele sente seu seio esquerdo subindo e descendo
junto com a respiração. Ela tentou sintonizar alguma coisa no rádio, mas há
muita estática.
“Ela pode ajeitar um cantinho na varanda para dormir e guardar suas
coisas”, diz Farrel sem tirar os olhos da estrada. “Vai ser por pouco tempo.”
Inclinando-se um pouco para a frente, Lorraine se volta para ele e coloca a
mão livre em sua coxa. Com a mão esquerda, Lorraine aperta o ombro dele
com os dedos e depois vira a cabeça em sua direção. Após um intervalo diz:
“Você é todo meu, Lew. Detesto dividir você com qualquer pessoa mesmo que
seja por pouco tempo. E mesmo que seja só a sua irmã”.
A chuva amaina aos poucos e quase sempre não há árvore acima da cabeça
deles. A certa altura, Farrel vê a lua, um crescente pontudo, amarelo, perfeito,
que reluz entre a névoa das nuvens cinzentas. Saem da oresta, a estrada faz
uma curva e eles seguem para dentro de um vale que se abre para um rio mais
abaixo. Parou de chover e o céu é um tapete preto polvilhado de estrelas
cintilantes.
“Por quanto tempo ela vai car?”, pergunta Lorraine.
“Uns meses. Três no máximo. Vai abrir uma vaga para ela trabalhar em
Seattle antes do Natal.” A viagem deixou seu estômago um pouco enjoado.
Acende um cigarro. A fumaça cinzenta ui de seu nariz e é imediatamente
tragada através do quebra-vento.
O cigarro começou a grudar na ponta da língua, ele abriu um pouco a janela
e jogou fora o cigarro. Frank fez a curva, saiu da estrada principal e pegou
uma pista de asfalto escorregadio que ia dar no rio. Agora estavam nos campos
de trigo, grandes plantações de trigo ceifadas estendendo-se na direção dos
morros vagamente delineados ao longe e interrompidas de vez em quando
por um campo lamacento, com aspecto de terra revirada, que rebrilhava com
pequenos bolsões de água. No ano seguinte o trigo ia brotar e no verão o trigo
já estaria crescido, batendo na cintura de um homem, chiando e oscilando
quando o vento soprasse.
“É uma vergonha”, disse Frank, “toda essa terra sem um grão durante
metade do tempo, enquanto metade das pessoas no mundo passa fome.”
Balançou a cabeça. “Se o governo casse com as mãos longe da fazenda, a
gente estaria muito, mas muito melhor mesmo.”
O asfalto terminava numa trilha de buracos e sulcos, e o carro sacudia na
pista mole, esburacada e preta que se estendia feito uma avenida comprida
rumo às montanhas.
“Alguma vez você já viu eles fazerem a colheita, Lew?”
“Não.”
A manhã cou cinzenta. Enquanto olhava, Farrel viu os campos de restolho
se transformarem numa imitação de amarelo. Através da janela observava o
céu, onde nuvens cinzentas deslizavam em blocos maciços e revoltos. “A chuva
está indo embora.”
Chegaram ao pé das montanhas onde os campos terminavam, depois
zeram uma curva e seguiram junto à margem dos campos, acompanhando
as montanhas, até chegarem à boca do cânion. Mais abaixo, bem no fundo do
cânion salpicado de pedras, estendia-se o rio, a outra margem encoberta por
uma barreira de neblina.
“Parou de chover”, disse Farrel.
Frank levou o carro para trás até uma ravina pequena e rochosa e disse que
ali era um bom lugar. Farrel pegou sua espingarda e inclinou-a sobre o para-
lama traseiro antes de pegar a bolsa de munição e um casaco extra. Em
seguida ergueu o saco de papel com os sanduíches e sua mão se fechou com
força em torno da garrafa térmica morna e sólida. Afastaram-se do carro sem
conversar e seguiram ao longo da beira do penhasco antes de começar a
descida rumo a um dos pequenos vales que iam dar no cânion. Por todo lado,
a terra estava salpicada aqui e ali de pedras pontudas, além de uma mata negra
e encharcada.
A terra afundava sob os pés, sugava as botas para baixo a cada passo e emitia
um som de sucção quando ele as desprendia da terra. Segurava a bolsa de
munição na mão direita, balançando-a como uma tipoia, deixava que pendesse
pela correia, segura em sua mão. A brisa úmida que vinha do rio soprava
contra seu rosto. As laterais dos barrancos baixos que davam para o rio mais
adiante tinham sulcos profundos e reentrâncias na rocha, criando saliências
semelhantes a mesas, marcando a linha da altura em que a água batia milhares
de anos atrás. Pilhas de troncos brancos e nus e incontáveis pedaços de
madeira utuante jaziam amontoados na beira como montes de ossos
carregados para o despenhadeiro por algum pássaro gigante. Farrel tentava se
lembrar de que lado vieram os gansos três anos antes. Parou na beira de um
morro, exatamente no local onde se formava uma ladeira para o cânion, e
encostou a espingarda numa pedra. Puxou os arbustos, juntou as pedras que
estavam por perto e caminhou na direção do rio a m de pegar alguns pedaços
de madeira utuante para construir um esconderijo.
Sentou-se em cima da capa de chuva com as costas apoiadas num arbusto
duro, os joelhos dobrados na altura do queixo, enquanto observava o céu
embranquecer e depois azular um pouco e as nuvens correrem com o vento.
Gansos faziam alarido em algum lugar dentro da neblina do outro lado do rio.
Ele repousou, fumou e observou a fumaça esvoaçar de sua boca. Esperou pelo
sol.
São quatro da tarde. O sol acabou de ir para trás das nuvens cinzentas do
nal da tarde, deixando uma meia-sombra ofuscada que recai sobre o carro e o
acompanha enquanto ele contorna o veículo para abrir a porta para a sua
mulher. Os dois se beijam.
Iris e ele vão voltar para ela dali a exatamente uma hora e quarenta e cinco
minutos. Vão passar pela casa de ferragens e depois pela mercearia. Vão voltar
para ela às cinco e quarenta e cinco. Ele desliza de novo para trás do volante e
logo depois, vendo que tem uma chance, entra no uxo do trânsito. No
caminho da saída da cidade, tem de parar o carro e esperar todos os semáforos
vermelhos abrirem, por m vira à esquerda para pegar uma via secundária,
pisa no acelerador com tanta força que os dois são impelidos um pouco para
trás no encosto dos bancos. São quatro e vinte. Na bifurcação, viram para a
pista de asfalto, com pomares dos dois lados da estrada. Por cima do topo das
árvores, os morros baixos e marrons e, mais além, as montanhas negro-
azuladas coroadas de branco. Vindas das leiras de árvores mais próximas,
sombras que enegrecem os acostamentos avançam rastejando pelo asfalto na
frente do carro. Caixas novas estão amontoadas em pilhas brancas no nal de
cada leira de árvores nos pomares, e há escadas encostadas nas árvores ou
afundadas entre os galhos, algumas apoiadas em suas bifurcações. Ele reduz a
velocidade do carro e para no acostamento da pista bem perto de uma árvore,
de modo que basta Iris abrir a porta para alcançar o galho. Na hora em que ela
o solta, o galho raspa na porta. As maçãs são pesadas e amarelas e um suco
doce esguicha em seus dentes no instante em que ele morde uma delas.
A estrada de asfalto termina e eles seguem por uma estrada de terra, coberta
de pó, que sobe pela beira dos morros, onde os pomares acabam. Mas ele
ainda pode ir além, pegando a estradinha que ladeia o canal de irrigação. O
canal agora está vazio e as margens íngremes e poeirentas estão secas e
crestadas. Ele deixou o carro na segunda marcha. A estrada está mais íngreme,
dirigir é mais difícil e mais vagaroso. Ele para o carro embaixo de um pinheiro
perto de uma comporta onde o canal desce dos morros e desliza para formar
um açude circular de cimento. Iris põe a mão no colo dele. Está quase escuro.
O vento está soprando no carro e ele chega a ouvir o alto das árvores ranger.
Sai do carro para acender um cigarro enquanto caminha até a beira do
morro de onde se avista o vale. O vento cou mais forte; o ar está mais frio. O
capim é esparso sob seus pés e há poucas ores. O cigarro traça um arco
vermelho, curto e rodopiante, na hora em que cai girando na direção do vale.
São seis horas.
O frio estava cruel. O entorpecimento dos dedos dos pés, o frio escalava
lentamente suas panturrilhas e se alojava embaixo dos joelhos. Seus dedos
também, duros e frios, muito embora estivessem en ados nos bolsos. Farrel
esperava o sol. As nuvens enormes acima do rio viraram, romperam-se, suas
formas se refaziam e se desfaziam enquanto ele observava. A princípio, mal se
deu conta da linha negra contra as nuvens mais baixas. Quando ela avançou e
se tornou mais visível, pensou que fossem mosquitos, bem pertinho de seu
esconderijo, e depois foi um longínquo rasgo escuro entre a nuvem e o céu
que se moveu para mais perto enquanto ele olhava. A linha virou-se na sua
direção e se estendeu acima dos morros mais abaixo. Ele estava entusiasmado
mas calmo, o coração batia em seus ouvidos, o instigava a correr, todavia seus
movimentos eram lentos e ponderados, como se pedras pesadas estivessem
amarradas em suas pernas. Levantou-se um pouco sobre os joelhos até seu
rosto encostar na parede de mato e virou os olhos para o chão. As pernas
tremeram e ele pressionou os joelhos contra a terra mole. De repente as
pernas caram entorpecidas, ele moveu a mão e empurrou-a para dentro da
terra, até cobrir os dedos, surpreso com o calor do solo. Então, o suave alarido
dos gansos acima de sua cabeça e o pesado e sibilante bater de asas. Seus dedos
se contraíram em torno do gatilho. Os gritos rápidos, rascantes; o acentuado
impulso para cima, numa altura de três metros, quando ele os avistou. Farrel
agora estava de pé, apontando para um ganso e depois para outro, depois se
voltava ligeiro outra vez para um ganso mais próximo, o seguia na mira
enquanto o ganso avançava e passava por cima de sua cabeça em direção ao
rio. Atirou uma vez, duas vezes, e os gansos continuavam a voar, berrando,
dividiam-se e saíam do seu alcance, suas formas baixas fundindo-se nos
morros ondulantes. Deu mais um tiro antes de se ajoelhar dentro do seu
esconderijo outra vez. Em algum ponto no morro atrás dele, e um pouco à
esquerda, ouviu Frank atirando, os ecos repercutiam pelo cânion abaixo como
estalos agudos de chicote. Sentiu-se confuso ao ver mais gansos que vinham
do rio, estendendo-se por cima dos morros baixos e se alçando acima do
cânion e dos campos mais além. Recarregou cuidadosamente a espingarda,
empurrou para dentro da culatra os cartuchos número dois, verdes e com
ranhuras, encaixou um deles na câmara com um barulho oco e estalado. No
entanto era melhor ter seis balas do que três. Rapidamente soltou o pino que
abria a parte de baixo do cano da espingarda, tirou a mola em espiral, soltou o
pino de madeira e pôs no bolso. Ouviu Frank atirar de novo e de repente
passou um bando que ele nem tinha visto. Enquanto observava, avistou mais
três que vinham mais baixo e pelo lado. Esperou até que estivessem na mesma
linha que ele, girando pela encosta do morro a uns trinta metros de distância,
as cabeças balançando devagar, ritmadamente, da direita para a esquerda,
olhos negros e brilhantes. Ergueu-se apoiado sobre um joelho na hora em que
estavam passando, mandou uma boa carga de chumbo em cima dos gansos,
disparando um segundo antes de eles se alvoroçarem. O ganso mais próximo
encolheu-se e mergulhou para o chão em linha reta. Atirou de novo quando os
gansos faziam a volta, viu um ganso parar como se tivesse trombado com um
muro, cou esvoaçando contra o muro na tentativa de passar por cima dele
antes de desabar numa lenta espiral, a cabeça virada para baixo, as asas caídas.
Ele esvaziou a espingarda no terceiro ganso, no momento em que ele
provavelmente já estava fora de alcance, viu-o deter a arrancada ao quinto tiro,
sua cauda sacudia com força, voltada para baixo, mas as asas continuaram a
bater. Por um longo intervalo, ele viu o ganso voar cada vez mais perto do
chão, antes de sumir num dos cânions.
Farrel pôs os dois gansos de costas dentro do seu esconderijo e acariciou a
parte inferior de seus corpos, lisa e branca. Eram gansos canadenses,
grasnadores. Depois disso, não importava muito que os gansos que tinham
fugido voassem alto demais ou fossem para algum lugar mais abaixo do rio.
Ele cou sentado, apoiado no arbusto, e fumou, enquanto via o céu girar
acima de sua cabeça. Algum tempo depois, talvez no início da tarde, ele pegou
no sono.
Quando acordou, ele estava rígido, gelado, suando, e o sol tinha ido
embora. O céu era uma cortina cinzenta e cada vez mais densa. Ouvia em
algum lugar os gansos berrando e se afastando, deixavam ecos estranhos,
agudos, pelos vales, mas tudo o que ele conseguia ver eram morros molhados,
negros, que terminavam numa neblina no lugar onde devia car o rio.
Esfregou a mão na cara e começou a tremer. Levantou-se. Podia ver a neblina
rolando cânion acima e sobre os morros, fechando e cercando a terra, e sentiu
o hálito do ar frio e úmido à sua volta, tocando em sua testa, suas faces e seus
lábios. Abriu uma passagem para sair do esconderijo e começou a correr
morro acima.
Ficou parado fora do carro e buzinou num toque contínuo até que Frank
veio correndo e puxou o braço dele da janela.
“O que é que deu em você? Ficou doido ou o quê?”
“Preciso ir para casa, estou dizendo!”
“Meu Deus! Puxa vida, meu Deus do Céu! Então entre de uma vez!”
Ficaram calados daí em diante, até saírem do campo de trigo, exceto por
Farrel ter perguntado duas vezes que horas eram. Frank segurava um charuto
entre os dentes, nunca afastava os olhos da estrada. Quando chegaram às
primeiras faixas de neblina em movimento, ele acendeu os faróis do carro.
Depois que pegaram a estrada principal, a neblina subiu e estendeu-se numa
camada escura em algum ponto acima do carro e os primeiros pingos de
chuva começaram a bater no para-brisa. A certa altura, três gansos passaram
voando na frente dos faróis do carro e pousaram numa poça ao lado da
estrada. Farrel piscou os olhos.
“Você viu isso?”, perguntou Frank.
Farrel fez que sim com a cabeça.
“Como é que está se sentindo agora?”
“Tudo bem.”
“Pegou algum ganso?”
Farrel esfregou uma palma da mão na outra, entrelaçou os dedos, por m
baixou-as cruzadas sobre o colo. “Não, acho que não.”
“Que pena. Ouvi você atirar.” Moveu o charuto para o outro lado da boca e
tentou soltar baforadas, mas ele tinha esfriado. Mascou a ponta do charuto por
um momento, depois colocou no cinzeiro e lançou um olhar para Farrel.
“Claro que não é da minha conta nem nada, mas se você por acaso está
preocupado com alguma coisa em casa... Meu conselho é não levar esse
negócio a sério demais. Você vai ter uma vida longa. Não tem cabelos brancos
feito eu.” Tossiu, tossiu. “Eu entendo, eu também era desse mesmo jeito.
Lembro que...”
Farrel está sentado na grande poltrona de couro embaixo da luminária de
metal vendo Iris pentear o cabelo. Segura no colo a revista cujas páginas
lustrosas estão abertas na imagem de uma catástrofe, um terremoto em algum
lugar do Oriente Médio. A não ser pela pequena luz acima da penteadeira, o
quarto está escuro. A escova se mexe ligeira por seu cabelo em movimentos
ritmados, longos e abrangentes, emitindo um leve chiado no quarto. Ele ainda
precisa telefonar para Frank e con rmar a caçada na manhã seguinte. Um ar
frio, úmido, entra pela janela de trás. Ela bate de leve a escova na beirada da
penteadeira. “Lew”, diz ela. “Sabia que estou grávida?”
O cheiro dela no banheiro o deixa enjoado. A toalha dela está jogada atrás
da privada. Ela derramou talco dentro da pia. Agora o talco está molhado e
pastoso e forma um círculo amarelo, grosso, em volta das bordas brancas. Ele
esfrega, lava e o talco escorre pelo ralo.
Ele está fazendo a barba. Virando a cabeça, dá para ver a sala. Iris está
sentada de per l no banco diante da velha penteadeira. Está penteando o
cabelo. Ele baixa a navalha e lava o rosto, depois pega a navalha outra vez.
Nesse instante, ouve os primeiros pingos de chuva baterem no telhado...
Ele a leva até a varanda, vira seu rosto para a parede e a cobre. Volta ao
banheiro, lava as mãos e en a a toalha pesada, encharcada de sangue no cesto
de roupa suja. Depois de um tempo, apaga a luz acima da penteadeira e senta
de novo na poltrona junto à janela, ouvindo a chuva.
Frank riu. “Então, no nal não foi nada, nadinha mesmo. A gente acabou se
entendendo e seguiu em frente numa boa depois disso. Ah, de vez em quando
tem aquelas briguinhas de sempre, mas quando ela lembra quem é que dá as
cartas em casa tudo volta a car numa boa.” Deu um tapinha amistoso no
joelho de Farrel.
Seguiram de carro para os arredores da cidade, passaram pela longa leira
de motéis com seus letreiros de neon vermelhos luminosos e piscantes,
passaram pelas lanchonetes com vidros fumês, os carros amontoados na
porta, e passaram pelas lojinhas que estariam fechadas e escuras até a manhã
seguinte. Frank virou à direita no semáforo seguinte, depois à esquerda, e
então entraram na rua de Farrel. Frank estacionou atrás de um carro preto e
branco com as palavras ESCRITÓRIO DO XERIFEescritas em letras brancas e
pequenas na tampa do porta-malas. Sob a luz dos faróis do carro deles, viram
outro vidro instalado no carro, com uma tela de arame em volta,
transformando o banco de trás numa cela. O vapor subia do capô do carro
deles e se misturava com a chuva.
“Vai ver estão atrás de você, Lew.” Frank começou a abrir a porta, depois
deu uma risadinha. “Quem sabe descobriram que você estava caçando sem
licença. Vamos lá, eu mesmo vou dedurar você.”
“Não. Vá para casa, Frank. Está tudo certo. Vai car tudo certo. Espere só
um instante, deixe eu sair do carro!”
“Caramba, você está mesmo achando que eles estão atrás de você! Espere
aí, não vai esquecer a sua espingarda.” Baixou o vidro da janela e entregou a
espingarda a Farrel. “Parece que a chuva não vai parar nunca mais. A gente se
fala depois.”
“Tá legal.”
No primeiro andar, todas as luzes de seu apartamento estavam acesas e
vultos indistintos estavam parados junto às janelas, como que congelados,
olhando para baixo através da chuva. Farrel cou parado atrás do carro do
xerife, apoiado na traseira lisa e molhada em forma de rabo de peixe. A chuva
caía sobre sua cabeça descoberta e descia por baixo do colarinho. Frank
avançou de carro alguns metros rua acima e parou, olhando para trás. Farrel,
apoiado no rabo de peixe do carro do xerife, estava um pouco cambaleante,
enquanto a chuva na e impenetrável desabava à sua volta. A água da sarjeta
passava por cima de seus pés, rodopiava e borbulhava num grande
rodamoinho a caminho do bueiro da esquina, afundando depressa para o
centro da terra.
O cabelo
E le não viu nada, apenas de uma hora para outra o vento cou mais forte
e uma neblina vinda do mar soprou direto em seu rosto, pegando-o de
surpresa. Estava sonhando outra vez. Usando os cotovelos, se aproximou mais
um pouco da beirada que dava para a praia e levantou o rosto na direção do
mar. O vento golpeou seus olhos, provocando lágrimas. Lá embaixo os outros
meninos brincavam de guerra, mas suas vozes soavam diluídas e distantes e
ele tentava não escutar. Por cima das vozes vinham os guinchos das gaivotas,
lá onde o mar se chocava com estrondo de encontro às pedras abaixo do
templo. O templo de Possêidon. Deitou-se de novo de barriga para baixo e
virou o rosto um pouco para um lado, esperando.
Às suas costas, o sol deslizava, descia, e um arrepio percorreu suas pernas e
ombros. Esta noite ele ia car enrolado em seu cobertor lembrando aqueles
poucos minutos de um tempo sentido, de um dia que se apaga. Era diferente
de car na caverna da Náiade no alto das montanhas, alguém segurando sua
mão debaixo da água que escoava sem parar de uma fenda na rocha. Tinha
cado escorrendo por sabe lá quanto tempo, pelo que diziam. Diferente
também de andar dentro d’água com as ondas batendo nos joelhos, sentindo o
impulso estranho. Também foi uma ocasião especial, mas não era a mesma
coisa. Eles iam contar a ele sobre isso, sobre quando caminhar dentro da água
e quando car longe da praia. Mas isso era bem próprio dele, e toda tarde ele
cava deitado de barriga para baixo no mar e esperava a mudança, a arrepiante
passagem do tempo por suas costas.
A plenos pulmões, saboreando o sal do mar nos lábios enquanto o fazia,
declamou alguns versos ao vento, versos novos que tinha ouvido na noite
anterior. Algumas palavras de que gostava, ele enrolava seguidas vezes dentro
da boca. Lá embaixo, ouviu Aias maldizer outro menino e invocar um dos
deuses. Era verdade aquilo que os homens falavam dos deuses? Ele se
lembrava de todas as canções que tinha ouvido, de todas as histórias
transmitidas de geração em geração, recitadas à noite em volta da fogueira,
bem como de todos os relatos de fatos testemunhados. No entanto tinha
ouvido alguns homens falarem dos deuses com desrespeito, e até com
descrença, portanto era difícil saber em que acreditar. Um dia ele iria embora
dali e descobriria sozinho. Ia subir as montanhas e ir até a Eritreia, aonde
chegavam os navios dos mercadores. Quem sabe poderia embarcar em um
deles e ir para onde quer que o navio estivesse indo, aqueles lugares de que os
homens falavam?
Lá embaixo, as vozes estavam mais altas e um dos meninos gritava
convulsivamente devido ao fragor dos bastões ao se chocarem contra os
escudos. Ele se ergueu apoiado nos joelhos, a m de escutar melhor, e oscilou
ofuscado, zonzo com a lembrança, com a ideia, enquanto o vento do
anoitecer levava para o alto as vozes iradas. Podia ouvir Aquiles gritando mais
alto que todos enquanto os dois grupos corriam de um lado para o outro pela
praia. Então chamaram o nome dele mesmo e ele se deitou rapidamente para
se manter fora de vista. Mais perto, sua irmã chamou outra vez. Passos agora
atrás dele, e ele se sentou de repente, descoberto.
“Aí está você!”, disse ela. “Tive que andar por todo lado para achar você! Por
que não foi para casa? Você nunca faz o que precisa fazer.” Ela se aproximou.
“Me dê a sua mão!”
Sentiu as mãos dela pegarem as suas e começarem a puxá-lo. “Não!”, disse
ele, sacudindo-se. Libertou-se com um safanão e, com a vareta que às vezes
chamava de Lança, começou a descer pela trilha.
“Depois você vai ver só, homenzinho que se acha muito grande”, disse ela.
“Sua hora está chegando. Mamãe falou.”
Maçãs vermelhas e lustrosas
B ill e Arlene Miller eram um casal feliz. Mas de vez em quando tinham a
sensação de que só eles, no seu círculo de conhecidos, haviam sido, de
certo modo, deixados para trás. Bill continuou fazendo seus trabalhos de
contabilidade, enquanto Arlene trabalhava como secretária. Às vezes
conversavam sobre isso, sobretudo em comparação com a vida de seus
vizinhos, Harriet e Jim Stone. Os Miller tinham a impressão de que os Stone
levavam uma vida mais rica e mais animada. Os Stone viviam saindo para
jantar, davam festas em casa ou viajavam para várias partes do país por causa
do trabalho de Jim.
Os Stone moravam em frente aos Miller. Jim era representante comercial de
uma empresa de peças mecânicas e muitas vezes conseguia conciliar viagens
de negócios com viagens de lazer, e naquela ocasião os Stone iam car dez
dias fora, primeiro em Cheyenne, depois em St. Louis, visitando parentes. Na
ausência deles, os Miller iam cuidar do apartamento dos Stone, dar comida
para a gatinha Kitty e regar as plantas.
Bill e Jim apertaram as mãos junto ao carro. Harriet e Arlene seguraram os
cotovelos uma da outra e se beijaram de leve nos lábios.
“Divirtam-se”, disse Bill para Harriet.
“Pode deixar”, disse Harriet. “Vocês também.”
Arlene fez que sim com a cabeça.
Jim piscou para ela. “Tchau, Arlene. Cuide bem do velho.”
“Pode deixar”, respondeu Arlene.
“Divirtam-se”, disse Bill.
“Claro”, respondeu Jim, apertando de leve o braço de Bill. “E mais uma vez
obrigado a vocês dois.”
Os Stone acenaram com a mão enquanto o carro partia e os Miller
acenaram em resposta.
“Puxa, eu gostaria de estar no lugar deles”, disse Bill.
“Quem sabe, a gente consiga usar as férias”, disse Arlene. Pegou o braço
dele e colocou em volta da sua cintura, enquanto subiam a escada para o
apartamento.
Depois do jantar, Arlene falou: “Não esqueça, Kitty come carne de fígado na
primeira noite”. Ela cou parada na porta da cozinha segurando a toalha de
mesa feita à mão que Harriet havia trazido para ela de Santa Fé no ano
anterior.
Bill respirou bem fundo quando entrou no apartamento dos Stone. O ar já
estava pesado e vagamente adocicado. O relógio com o desenho dos raios do
sol em cima da televisão marcava oito e meia. Ele se lembrou do dia em que
Harriet chegou com aquele relógio, como ela atravessou o corredor do prédio
para mostrar o relógio para Arlene, com o estojo de metal aninhado nos
braços e falando com o relógio através do papel de seda como se ele fosse um
bebê.
Kitty esfregou a cara nos chinelos dele e depois virou para o lado, mas logo
deu um salto assim que Bill foi para a cozinha e pegou uma das latas
empilhadas na pia reluzente. Deixou a gata beliscando sua comida e foi ao
banheiro. Olhou-se no espelho, depois fechou os olhos e depois olhou de
novo. Abriu o armário de remédios. Achou um frasco de comprimidos, leu o
rótulo — Harriet Stone. Um por dia como recomendado — e en ou no bolso.
Voltou à cozinha, pegou uma jarra de água e retornou à sala. Terminou de
regar as plantas, colocou a jarra no tapete e abriu o armário de bebidas.
Procurou a garrafa de Chivas Regal na parte de trás. Tomou dois goles na
garrafa, enxugou os lábios na manga e repôs a garrafa dentro do armário.
Kitty dormia no sofá. Ele apagou as luzes, fechou a porta devagar e veri cou
se estava mesmo fechada. Teve a sensação de que havia deixado alguma coisa
para trás.
“Por que você demorou?”, perguntou Arlene. Estava sentada em cima das
pernas dobradas, vendo televisão.
“Nada. Fiquei brincando com Kitty”, disse ele, se aproximou dela e tocou
seus seios.
“Vamos para a cama, meu bem”, disse ele.
No dia seguinte, Bill só fez dez minutos dos vinte minutos reservados para o
intervalo da tarde e saiu às quinze para as cinco. Parou o carro no
estacionamento bem na hora em que Arlene descia do ônibus. Esperou ela
entrar no edifício e depois subiu correndo a escada para apanhá-la na hora em
que estava saindo do elevador.
“Bill! Puxa, você me assustou. Chegou cedo”, disse.
Ele encolheu os ombros. “Eu não tinha nada para fazer no trabalho”, disse.
Arlene deixou Bill usar sua chave para abrir a porta. Bill olhou a porta do
lado oposto do corredor antes de entrar atrás de Arlene.
“Vamos para a cama”, disse ele.
“Agora?” Ela riu. “O que deu em você?”
“Nada. Tire a roupa.” Ele foi agarrando Arlene de qualquer jeito e ela disse:
“Puxa vida, Bill”.
Ele desa velou seu cinto.
Mais tarde pediram comida chinesa e, quando a comida chegou, comeram
cheios de fome, sem falar, e caram ouvindo discos.
“Não vamos esquecer de dar comida para a Kitty”, disse ela.
“Eu estava pensando na mesma coisa”, disse ele. “Vou lá agora mesmo.”
Escolheu uma lata de carne de peixe para a gata, depois encheu a jarra e foi
regar as plantas. Quando voltou à cozinha, a gata estava arranhando sua caixa.
Olhou xo para ele antes de se voltar de novo para a palha que estofava sua
caixa. Bill abriu todos os armários e examinou as comidas enlatadas, os cereais,
os pacotes de mantimentos, as bebidas e as taças de vinho, a louça, as panelas e
os potes. Abriu a geladeira. Sentiu um cheiro de aipo, pegou dois pedaços de
queijo cheddar e cou mastigando uma maçã enquanto foi andando para o
quarto. A cama parecia enorme, com uma colcha branca e felpuda que pendia
em franjas até o chão. Abriu uma gaveta da mesinha de cabeceira, achou um
maço de cigarros pela metade e en ou no bolso. Depois foi até o guarda-roupa
e estava abrindo a porta quando ouviu baterem na porta da frente.
Parou junto ao banheiro e deu a descarga a caminho da entrada.
“Por que você está demorando tanto?”, perguntou Arlene. “Você está aqui
há mais de uma hora.”
“É mesmo?”, disse ele.
“É, sim”, disse ela.
“Precisei ir ao banheiro”, disse ele.
“Você tem o seu banheiro”, disse ela.
“Não deu para esperar”, disse ele.
Naquela noite zeram amor outra vez.
De manhã Bill pediu que Arlene ligasse para o trabalho e dissesse que ele
não podia ir. Bill tomou banho, se vestiu e tomou um café da manhã ligeiro.
Tentou começar a ler um livro. Saiu para dar uma caminhada e sentiu-se
melhor. Mas depois de um tempo, com as mãos ainda nos bolsos, voltou ao
apartamento. Parou na porta dos Stone na esperança de quem sabe ouvir a
gata se movimentando. Depois entrou pela porta da sua casa e foi até a
cozinha pegar a chave.
Lá dentro parecia mais frio do que o seu apartamento, e mais escuro
também. Imaginou se as plantas não teriam alguma relação com a
temperatura do ar. Olhou para fora, pela janela, e depois passou devagar por
todos os cômodos, re etindo cuidadosamente sobre tudo aquilo em que seus
olhos batiam, um objeto de cada vez. Viu cinzeiros, peças de mobília,
utensílios de cozinha, o relógio. Viu tudo. Por m entrou no quarto e a gata
apareceu junto a seus pés. Fez um carinho nela, levou-a para o banheiro e
fechou a porta.
Deitou na cama e cou olhando para o teto. Ficou deitado por um tempo de
olhos fechados e depois en ou a mão por baixo do cinto. Tentou lembrar que
dia era. Tentou lembrar quando os Stone voltariam e depois se perguntou se
um dia iriam mesmo voltar. Não conseguia se lembrar do rosto deles nem da
maneira como falavam e se vestiam. Deu um suspiro e, com esforço, rolou
para fora da cama a m de se debruçar sobre a cômoda e se olhar no espelho.
Abriu o armário e escolheu uma camisa havaiana. Procurou, até encontrar,
uma bermuda muito bem passada e pendurada por cima de uma calça de sarja
marrom. Deixou suas roupas caírem e en ou-se na bermuda e na camisa.
Olhou-se no espelho outra vez. Foi até a sala, serviu-se de mais uma dose de
bebida e tomou uns goles no caminho de volta para o quarto. Vestiu uma
camisa azul, um terno escuro, uma gravata azul e branca, sapatos pretos de
bico largo. O copo estava vazio, então ele foi tomar outra dose.
No quarto outra vez, sentou numa cadeira, cruzou as pernas e sorriu
enquanto se observava no espelho. O telefone tocou duas vezes e depois
silenciou. Terminou sua bebida e tirou o terno. Vasculhou as gavetas de cima
até achar uma calcinha e um sutiã. En ou-se na calcinha e colocou o sutiã,
depois deu outra olhada no armário em busca de mais roupas. Vestiu uma saia
xadrez, preta e branca, e tentou fechar o zíper. Vestiu uma blusa vinho de
abotoar na frente. Avaliou os sapatos, mas percebeu que não iam caber. Por
um bom tempo, cou olhando pela janela da sala, por trás da cortina. Depois
voltou ao quarto e pôs tudo no lugar.
Bill não estava com fome. Arlene também não comeu muito. Olharam um
para o outro com ar tímido e sorriram. Ela se levantou da mesa, veri cou se a
chave estava na estante e depois lavou os pratos depressa.
Ele cou parado na porta da cozinha, fumou um cigarro e cou olhando
Arlene pegar a chave.
“Fique aí bem à vontade enquanto eu vou ao outro apartamento”, disse ela.
“Leia o jornal, faça qualquer coisa.” Ela fechou os dedos em volta da chave.
Ela disse que ele parecia cansado.
Bill tentou se concentrar nas notícias. Leu o jornal e ligou a tevê. Por m,
acabou indo para o corredor de serviço e foi até o outro apartamento. A porta
estava trancada.
“Sou eu, você ainda está aí dentro, meu bem?”, perguntou.
Depois de um intervalo, a fechadura abriu, Arlene saiu e trancou a porta.
“Fiquei tanto tempo assim?”, disse ela.
“Pois é, cou”, disse ele.
“Foi mesmo?”, disse ela. “Acho que quei brincando com a Kitty.”
Ele a observou com atenção e ela desviou os olhos, a mão ainda pousada na
maçaneta.
“É engraçado”, disse ela. “Sabe... a gente entrar na casa de outra pessoa
desse jeito.”
Ele fez que sim com a cabeça, tirou a mão dela da maçaneta e conduziu-a
para a porta deles. Os dois entraram no apartamento.
“É engraçado mesmo”, disse ele.
Notou um o branco preso nas costas do suéter dela, e seu rosto bem
vermelho. Começou a beijá-la no pescoço, no cabelo e ela se virou e o beijou
também.
“Ah, droga”, disse ela. “Droga, droga”, falou cantarolando com jeito de
menina, enquanto batia as mãos uma na outra. “Acabei de lembrar. Na
verdade fui lá fazer uma coisa e acabei esquecendo. Não dei comida para a
Kitty nem reguei as plantas.” Olhou para ele. “Não é uma tremenda
estupidez?”
“Não acho”, disse ele. “Só um minuto. Vou pegar meus cigarros e volto lá
com você.”
Ela esperou até ele fechar e trancar a porta do apartamento, depois pegou o
braço dele no músculo e disse: “Acho melhor te contar. Achei umas fotos”.
Ele parou no meio do corredor de serviço. “Que tipo de fotos?”
“Você mesmo pode ver”, respondeu, olhando para ele.
“Não brinca.” Ele sorriu. “Onde é que estão?”
“Numa gaveta”, disse ela.
“Não brinca”, disse ele.
Então ela falou: “Talvez eles não voltem mais”, e na mesma hora cou
chocada com as próprias palavras.
“Pode acontecer”, disse ele. “Tudo pode acontecer.”
“Ou quem sabe eles voltem e...”, mas ela não terminou.
Percorreram de mãos dadas o curto caminho pelo corredor de serviço e,
quando ele falou, ela mal conseguiu ouvir sua voz.
“A chave”, disse ele. “Me dê a chave.”
“O quê?”, disse ela. “Você está com a chave.”
“Meu Deus”, disse ele. “Deixei a chave lá dentro.”
Tentou girar a maçaneta. Estava trancada. Depois ela tentou girar a
maçaneta. Não abria. Os lábios dela estavam entreabertos e sua respiração
ofegante, ansiosa. Ele abriu os braços e ela se aninhou neles.
“Não se preocupe”, disse ele no ouvido dela. “Por favor, não se preocupe.”
Ficaram ali parados. Abraçaram-se. Recostaram-se na porta como que para
se proteger de algum vento e se apoiaram um no outro.
A ideia
É
“É tarde”, disse ele, e a soltou, virando-se de modo brusco. “Você foi muito
gentil. Mas preciso ir, senhora Holt. Obrigado pelo chá.”
“Vai vir aqui outra vez, não vai, Arnold?”, perguntou ela.
Ele balançou a cabeça negativamente.
Ela o seguiu até a porta, e ali ele estendeu a mão para ela. Ele podia ouvir a
televisão. Arnold teve certeza de que o volume tinha sido aumentado.
Lembrou-se então da outra criança — o menino. Onde ele estava?
Ela segurou a mão de Arnold, ergueu-a depressa até os lábios. “Você não
deve me esquecer, Arnold.”
“Não vou esquecer”, disse ele. “Clara. Clara Holt”, disse.
“Nossa conversa foi boa”, disse ela. Retirou alguma coisa da gola do paletó
de Arnold, um o de cabelo ou um pedaço de linha. “Estou muito feliz por
você ter vindo e tenho certeza de que vai voltar.” Arnold olhou para ela com
atenção, mas o olhar de Clara estava ausente, como se tentasse se lembrar de
alguma coisa. “Agora... boa noite, Arnold”, disse ela, e em seguida fechou a
porta, quase prendendo o sobretudo dele.
“Estranho”, disse ele enquanto começava a descer a escada. Respirou bem
fundo quando chegou à calçada e fez uma pausa para olhar de novo o prédio.
Mas não conseguiu identi car qual varanda era a dela. O homem grande, de
agasalho, aproximou-se um pouco da amurada e continuou olhando para ele.
Arnold começou a andar, as mãos en adas nos bolsos do paletó. Quando
chegou em casa, o telefone estava tocando. Ficou parado no meio da sala, com
a chave entre os dedos, até a campainha do telefone parar de tocar. Depois,
com ternura, colocou a mão no peito e, através das camadas de roupas, sentiu
as batidas do coração. Depois de algum tempo, foi para o seu quarto.
Quase na mesma hora, o telefone recomeçou a tocar e dessa vez ele
atendeu. “Arnold. Arnold Breit falando”, disse.
“Arnold?” Puxa, como você está formal esta noite!”, disse sua mulher com
uma voz forte, provocadora. “Estou telefonando desde as nove da noite. Você
saiu para se divertir um pouco, Arnold?”
Ele cou em silêncio e analisou a voz de sua mulher.
“Está ouvindo, Arnold?”, perguntou ela. “Você está diferente.”
O pai
O bebê estava deitado num berço junto à cama, de touca branca e pijama.
O berço tinha sido pintado havia pouco tempo, estava enfeitado com
tas azuis e forrado com acolchoados azuis. As três irmãs pequenas, a mãe,
que tinha acabado de levantar da cama e ainda não havia acordado
completamente, e a avó estavam todas paradas em volta do bebê, observando
a criança que olhava para elas e às vezes levantava o punho até a boca. O bebê
não sorria nem dava risada, mas de vez em quando piscava os olhos e agitava a
língua entre os lábios entreabertos quando uma das meninas mexia em seu
queixo.
O pai estava na cozinha e ouvia como elas brincavam com o bebê.
“Quem é que você ama, neném?”, disse Phyllis e fez cosquinhas em seu
queixo.
“Ele ama todos nós”, disse Phyllis, “mas gosta mais do papai, porque o papai
também é um menino!”
“Mas com quem é que ele se parece, com quem é que ele se parece?”, gritou
Alice, e todas se aproximaram mais do berço para ver com quem o bebê se
parecia.
“Tem olhos bonitos”, disse Carol.
“Todos os bebês têm olhos bonitos”, disse Phyllis.
“Tem os lábios do pai”, disse a avó. “Veja só esses... lábios.”
“Não sei...”, disse a mãe. “Acho que não.”
“E o nariz! O nariz!”, gritou Alice.
“O que é que tem o nariz?”, perguntou a mãe.
“Parece o nariz de alguém que eu conheço”, respondeu a menina.
“Não, eu não sei”, disse a mãe. “Acho que não.”
“Esses lábios...”, sussurrou a mãe. “Esses dedinhos...”, disse ela, buscando a
mão do bebê e abrindo seus dedos.
“Com quem o neném se parece?”
“Não parece ninguém”, disse Phyllis. E chegaram ainda mais perto.
“Eu sei! Eu sei!”, disse Carol. “Ele parece o papai!” E aí elas olharam o bebê
com mais atenção.
“Mas com quem o papai se parece?”, perguntou Phyllis.
“Com quem o papai se parece?”, repetiu Alice, e todas ao mesmo tempo
olharam na direção da cozinha, onde o pai estava sentado à mesa, de costas
para elas.
“Puxa, com ninguém!”, disse Phyllis e começou a chorar um pouco.
“Psiu”, disse a avó. Ela olhou para o lado e depois para o bebê outra vez.
“O papai não parece ninguém!”, disse Alice.
“Mas ele tem que parecer com alguém”, disse Phyllis, esfregando os olhos
com uma das tas. E todas, menos a avó, olharam para o pai, sentado à mesa.
Ele tinha se virado na cadeira e seu rosto estava branco e sem expressão
nenhuma.
Ninguém falou nada
E u podia ouvi-los na cozinha. Não dava para ouvir o que diziam, mas
estavam discutindo. Aí houve um silêncio e ela começou a chorar.
Cutuquei George com o cotovelo. Achei que ele ia acordar e falar alguma
coisa para eles, que assim iam se sentir culpados e parar com a briga. Mas
George é um babaca. Começou a berrar e a dar chutes.
“Pare de me furar com o cotovelo, seu sacana”, disse ele. “Vou contar tudo
pra eles!”
“Seu bundão retardado”, falei. “Não dá para usar a cabeça pelo menos uma
vez na vida? Eles estão brigando e a mamãe está chorando. Escute só.”
Ele cou ouvindo com a cabeça no travesseiro. “Não me interessa”, disse
ele, se virou para a parede e voltou a dormir. George é um tremendo babaca.
Depois ouvi o papai sair para pegar o ônibus. Bateu com força a porta da
frente. Ela tinha me dito que ele estava querendo desmanchar a família. Eu
não quis escutar.
Depois de um tempo, ela veio nos chamar para ir à escola. Sua voz parecia
gozada — sei lá. Falei que estava doente, com dor de barriga. Era a primeira
semana de outubro e eu ainda não tinha perdido nenhum dia de aula, por isso
o que ela podia dizer? Olhou para mim, mas parecia estar pensando em outra
coisa. George estava acordado e escutava. Dava para ver que estava acordado
pelo jeito como ele se mexia na cama. Estava esperando para ver o que ia
acontecer e depois tentar a sua jogada.
“Tudo bem.” Ela balançou a cabeça. “Sei lá. Fique em casa então. Mas nada
de ver televisão, lembre-se disso.”
George logo se levantou. “Também estou doente”, disse. “Estou com dor de
cabeça. Ele cou me chutando e me dando cotovelada a noite inteira. Não
consegui dormir nada.”
“Agora chega!”, disse ela. “Você vai para a escola, George! Não vai car em
casa brigando com o seu irmão o dia inteiro. Agora trate de se levantar e
trocar de roupa. Estou falando sério. Não estou a m de mais uma briga esta
manhã.”
George esperou até ela sair do quarto. Depois levantou e cou no pé da
cama. “Seu sacana”, disse, e puxou com força todas as cobertas que estavam
em cima de mim. E fugiu para o banheiro.
“Vou matar você”, falei, mas não tão alto que ela pudesse ouvir.
Fiquei na cama até o George ir para a escola. Quando ela começou a se
arrumar para ir trabalhar, perguntei se não podia fazer a minha cama no sofá.
Falei que eu queria estudar. Em cima da mesinha de centro estavam os livros
de Edgar Rice Burroughs que eu tinha ganhado de aniversário e também meus
livros de estudos sociais. Mas eu não estava a m de ler. Queria que ela fosse
embora para eu ver televisão.
Ela deu a descarga no banheiro.
Eu não conseguia mais esperar. Liguei a televisão sem som. Fui até a
cozinha, onde ela havia deixado seu maço de cigarros, e tirei três. Pus no
guarda-louça, voltei para o sofá e comecei a ler A princesa de Marte. Ela saiu,
deu uma olhada na televisão, mas não disse nada. Eu estava com o livro
aberto. Ela ajeitou o cabelo com a mão na frente do espelho e depois entrou
na cozinha. Quando saiu da cozinha, olhei de novo para o livro.
“Estou atrasada. Até logo, meu anjo.” Ela não ia me chamar a atenção por
causa da tevê. Na noite anterior tinha dito que não sabia mais o que era sair
para o trabalho sem uma briga antes.
“Não cozinhe nada. Não precisa acender o fogão para nada. Tem atum na
geladeira, se sentir fome.” Olhou bem para mim. “Mas se você está com dor
de barriga, é melhor nem comer nada. De todo modo, não precisa acender o
fogão. Ouviu? Tome o remédio, meu anjo, e espero que de noite sua barriga já
esteja melhor. Talvez de noite todo mundo esteja se sentindo melhor.”
Ficou parada na porta e virou a maçaneta. Olhou como se quisesse dizer
mais alguma coisa. Estava de blusa branca, cinturão preto e saia preta. Às
vezes chamava aquela roupa de seu equipamento, outras vezes de seu
uniforme. Que eu me lembre, aquela roupa estava sempre pendurada no
armário, pendurada no varal, sendo lavada à mão de noite ou sendo passada a
ferro na cozinha.
Ela trabalhava de quarta-feira a domingo.
“Tchau, mãe.”
Esperei que ela ligasse o carro e esquentasse o motor. Fiquei ouvindo o
carro sair pela rua. Então me levantei, aumentei o volume e fui pegar os
cigarros. Fumei um e bati punheta enquanto via um programa sobre médicos
e enfermeiras. Depois mudei de canal. Depois desliguei a televisão. Não estava
mais com vontade de ver.
Terminei de ler o capítulo em que Tars Tarkas se apaixona por uma mulher
verde e vê que, na manhã seguinte, ela teve a cabeça cortada pelo cunhado
ciumento. Era mais ou menos a quinta vez que eu lia aquilo. Depois fui para o
quarto dela e quei olhando por ali. Não estava atrás de nada em especial, a
não ser camisinhas outra vez, mas por mais que eu procurasse por todo canto
não achei nenhuma. Uma vez achei um pote de vaselina no fundo de uma
gaveta. Sabia que devia ter alguma coisa a ver com aquilo, mas não sabia o
quê. Examinei o rótulo na esperança de que ele me revelasse alguma coisa,
uma descrição do que as pessoas faziam, ou então de como se aplicava a
vaselina, coisa assim. Mas não tinha nada. Puro gel de petróleo, era o que estava
escrito no rótulo da frente. Mas bastava ler aquilo para car de pau duro. Um
excelente coadjuvante no trato com crianças, dizia atrás. Tentei fazer a ligação
entre trato com crianças — balanços, escorregadores, caixas de areia, trepa-
trepas — e o que acontecia entre os dois na cama. Eu já tinha aberto aquele
pote diversas vezes, cheirado, olhado lá dentro para ver quanto ele tinha sido
usado desde a última vez. Dessa vez não dei muita bola para o Puro gel de
petróleo. Quer dizer, tudo o que eu z foi ver se o pote ainda estava no mesmo
lugar. Olhei algumas gavetas sem muita esperança de achar alguma coisa.
Espiei embaixo da cama. Nada. Espiei dentro de um pote no armário onde
eles guardavam dinheiro para o mercado. Não havia nenhum trocado, só uma
nota de cinco e uma de um. Eles iam dar pela falta se eu pegasse. Depois
pensei em trocar de roupa e dar uma volta no Riacho das Bétulas. A
temporada das trutas ainda ia car aberta por mais ou menos uma semana,
mas quase todo mundo tinha desistido de pescar. Todo mundo agora estava à
toa, só esperando a abertura da temporada de caça aos cervos e faisões.
Peguei minhas roupas velhas. Vesti meias de lã por cima das meias de todo
dia e amarrei com cuidado o cadarço das botas. Preparei dois sanduíches de
atum e uns sanduíches de bolacha com uma camada dupla de manteiga de
amendoim. Enchi meu cantil, prendi na cintura a faca de caça e o cantil.
Quando eu estava saindo pela porta, resolvi deixar um bilhete. Aí escrevi:
“Melhorei e fui ao Riacho das Bétulas. Volto logo. R. 3h15”. Isso aconteceu há
quatro horas. E uns quinze minutos antes do George chegar da escola. Antes
de eu sair, comi um sanduíche e tomei um copo de leite.
O dia estava bonito. Era outono. Mas ainda não fazia frio; só esfriava à noite.
À noite fogueiras eram acesas para espantar insetos nos pomares e a gente
acordava de manhã com um círculo preto de cinzas em volta do nariz. Mas
ninguém reclamava. Diziam que aquelas fogueiras impediam que as peras
congelassem, por isso não tinha problema.
Para chegar ao Riacho das Bétulas, a gente vai até o m da nossa rua, onde
ela cruza com a Décima Sexta Avenida. A gente vira à esquerda na Décima
Sexta, sobe o morro, passa pelo cemitério e desce para a Lennox, onde tem
um restaurante chinês. Daquele cruzamento dá para ver o aeroporto, e o
Riacho das Bétulas ca logo abaixo do aeroporto. A Décima Sexta vira View
Road no cruzamento. A gente segue pela View por um tempo até chegar a
uma ponte. Tem pomares dos dois lados da estrada. Às vezes, quando a gente
vai pelos pomares, vê faisões correndo entre as leiras de árvores, mas não se
pode caçar ali porque a gente pode levar um tiro de um grego chamado
Matsos. Acho que dá ao todo uns quarenta minutos de caminhada.
Eu já estava no meio do caminho na Décima Sexta, quando uma mulher
num carro vermelho parou à minha frente no acostamento. Ela baixou o vidro
do lado do passageiro e perguntou se eu não queria uma carona. Era magra e
tinha umas espinhazinhas em volta da boca. O cabelo era alto e enrolado. Mas
ela era bem gostosa. Usava um suéter marrom com uns peitos bonitos por
dentro.
“Matando aula?”
“Pois é.”
“Quer uma carona?”
Fiz que sim com a cabeça.
“Entre. Estou meio apressada.”
Pus a vara de pescar e o molinete no banco de trás. Tinha uma porção de
saquinhos de compras da mercearia do Mel’s no chão do carro, junto ao banco
de trás. Tentei pensar em alguma coisa para dizer.
“Estou indo pescar”, falei. Tirei meu boné, puxei o cantil para o lado, de
modo que eu pudesse me sentar, e me acomodei perto da janela.
“Puxa, eu jamais poderia imaginar.” Ela deu uma risada. Pegou a estrada de
novo. “Aonde você está indo? Ao Riacho das Bétulas?”
Fiz que sim com a cabeça mais uma vez. Olhei para dentro do meu boné.
Meu tio tinha comprado o boné para mim em Seattle, quando foi assistir a
uma partida de hóquei. Eu não conseguia imaginar mais nada para dizer.
Olhei pela janela e chupei as bochechas por dentro da boca. A gente sempre
imagina que vai pegar carona com uma mulher assim. A gente sabe que a
mulher vai car a m da gente, que ela vai levar a gente para casa com ela e
deixar que a gente trepe com ela pela casa inteira. Comecei a car de pau duro
pensando naquilo. Empurrei o boné para cima do meu colo, fechei os olhos e
tentei pensar em beisebol.
“Vivo dizendo que um dia desses ainda vou aprender a pescar”, disse ela.
“Dizem que é muito relaxante. Sou uma pessoa nervosa.”
Abri os olhos. Tínhamos parado no cruzamento. Eu queria perguntar: Você
está mesmo ocupada? Não quer começar a aprender agora de manhã? Mas eu estava
com medo de olhar para ela.
“Aqui já ajuda você? Vou ter que virar ali. Desculpe a minha pressa hoje”,
disse.
“Tudo bem. Aqui está ótimo.” Tirei minhas coisas do carro. Depois coloquei
o boné na cabeça e tirei de novo, quando falei: “Até logo. Obrigado. Quem
sabe no verão que vem...”, mas não consegui terminar.
“Você está falando de eu aprender a pescar? Claro.” Ela acenou com dois
dedos, como as mulheres costumam fazer.
Comecei a andar, pensando nas coisas que eu deveria ter dito. Consegui
pensar numa porção de coisas. O que havia de errado comigo? Cortei o ar com
um golpe da vara de pescar e gritei duas ou três vezes. O que eu deveria ter
falado logo de cara para tomar uma decisão era perguntar se a gente não
poderia almoçar juntos. Não tinha ninguém em casa. De repente nós dois
estamos no meu quarto embaixo das cobertas. Ela me pergunta se pode car
de suéter e eu respondo que por mim tudo bem. Ela também ca de calcinha.
Tudo bem, digo. Não me importo.
Um monomotor Piper Cub passou por cima da minha cabeça num voo
rasante, preparando-se para aterrissar. Eu estava a poucos metros da ponte.
Dava para ouvir a água correndo. Desci depressa o barranco, abri o zíper e
disparei um esguicho a uma distância de um metro e meio por cima do riacho.
Deve ter sido um recorde. Levei um tempo comendo o outro sanduíche e as
bolachas com manteiga de amendoim. Bebi metade da água do cantil. Eu já
estava pronto para pescar.
Fiquei pensando por onde começar. Fazia três anos que eu pescava ali, desde
que a gente tinha se mudado. Papai levava a mim e ao George no carro e
cava esperando por nós, fumando, pondo isca em nossos anzóis, preparando
linhas novas se a nossa se rompesse. Sempre começávamos na ponte e íamos
descendo, e sempre pescávamos alguma coisa. De vez em quando, no início da
temporada, pescávamos o máximo a que tínhamos direito. Preparei linha e
anzol e tentei uns arremessos, primeiro embaixo da ponte.
De vez em quando eu jogava o anzol junto à margem ou então atrás de uma
pedra grande. Mas não aconteceu nada. Num lugar onde a água estava parada
e o fundo estava cheio de folhas amarelas, olhei bem e vi uns lagostins
rastejando lá embaixo, com suas tenazes feias e grandes levantadas. Umas
codornas voaram de repente de um amontoado de moitas. Quando joguei um
pedaço de pau, um faisão pulou cacarejando a uns três metros de mim e eu
quase larguei a vara.
O riacho corria lento e não era muito largo. Eu podia andar dentro dele
quase todo sem que a água ultrapassasse as minhas botas. Atravessei um pasto
cheio de pegadas de vacas e cheguei a um lugar onde a água jorrava de um
cano grande. Eu sabia que havia um remanso embaixo do cano, por isso tomei
cuidado. Fiquei de joelhos quando cheguei perto o bastante para jogar o anzol
e a linha. Mal a linha bateu na água, senti uma sgada, mas acabei perdendo o
peixe. Senti o peixe se embolar com a isca. Depois ele foi embora e a linha
voltou de um jato na minha direção. Pus outra ova de salmão no anzol e tentei
mais alguns arremessos. Mas eu já sabia que estava azarado.
Subi no barranco da margem e passei por baixo de uma cerca onde tinha um
poste com uma placa de NÃO ENTRE . Uma das pistas de manobra do aeroporto
começava ali. Parei para olhar umas ores que cresciam nas rachaduras da
pista. Dava para ver os lugares onde os pneus batiam na pista e deixavam
marcas oleosas de derrapagem perto das ores. Alcancei de novo o riacho, do
outro lado, e fui pescando pela margem, até chegar ao remanso. Pensei que
era o mais longe que eu deveria ir. Quando eu tinha ido lá na primeira vez, há
três anos, a água passava numa torrente e alcançava o alto das margens. A
corrente era tão forte que não consegui pescar. Agora o riacho estava com
uma profundidade de mais ou menos um metro e oitenta. A água borbulhava
e ondulava naquela pequena correnteza na entrada do poço onde mal se
conseguia enxergar o fundo. Um pouco mais abaixo, o fundo subia numa
rampa e a água se tornava rasa outra vez, como se não tivesse acontecido nada
antes. Na última vez em que estive lá, peguei dois peixes de uns vinte e cinco
centímetros e deixei escapar um outro que parecia duas vezes maior — uma
truta-arco-íris, disse papai, quando contei a ele. Papai disse que essas trutas
sobem durante a cheia no início da primavera, mas que a maioria volta para o
rio antes de a água baixar.
Pus mais dois pesos na linha e apertei o nó com os dentes. Depois coloquei
uma ova de salmão fresca no anzol e joguei a linha num lugar onde a água
subia por uma saliência e depois entrava no poço. Deixei a corrente levar a
isca. Dava para sentir as chumbadas esbarrando nas pedras, umas batidas
diferentes do que as que a gente sente quando o peixe está mordendo. Aí a
linha se esticou e a corrente carregou a ova de salmão, deixando a isca visível
na ponta do poço.
Me senti um babaca por ter ido tão longe à toa. Então juntei tudo quanto é
tipo de linha e z outro arremesso. Deixei a vara de pescar presa num galho e
acendi o penúltimo cigarro. Olhei para o vale e comecei a pensar na tal
mulher. Fomos para sua casa porque ela queria que eu ajudasse a carregar os
sacos de compras da mercearia. O marido estava em outro país. Toquei nela e
a mulher começou a tremer toda. Comecei a dar beijos de língua na mulher,
nós dois no sofá, e aí ela pediu licença para ir ao banheiro. Fui atrás. Fiquei
olhando enquanto ela baixava a calcinha e sentava no vaso. Eu estava de pau
duro e ela acenou para mim com a mão. Na hora em que eu abri o zíper, ouvi
um barulho na água do riacho. Olhei e vi a ponta da minha vara de pescar
sacudindo.
Ele não era muito grande e não lutou muito. Mas quei brincando com ele
o mais que pude. Ele virou de lado e deixou a correnteza puxar seu corpo para
baixo. Eu não sabia que peixe era. Tinha um jeito estranho. Estiquei a linha e
levantei o peixe para a margem e para a grama, onde ele começou a se
debater. Era uma truta. Mas verde. Nunca tinha visto uma truta assim. Suas
laterais eram verdes, com pintas pretas de truta, cabeça esverdeada e uma
espécie de barriga verde. Tinha cor de musgo, aquela cor verde. Era como se
ela tivesse cado embrulhada no musgo durante muito tempo e a cor tivesse
passado para o corpo todo. Era gorda e quei imaginando por que será que
ela não tinha lutado por mais tempo. Achei que talvez estivesse meio doente.
Fiquei olhando para o peixe mais um pouco e depois acabei com o sofrimento
dele.
Catei um pouco de capim, coloquei dentro do cesto e ajeitei o peixe lá no
fundo, em cima do capim.
Joguei a linha mais algumas vezes e depois calculei que já deviam ser umas
duas ou três da tarde. Achei melhor começar a voltar para a ponte. Pensei em
pescar mais um pouco embaixo da ponte antes de voltar para casa. E resolvi
que ia esperar até de noite para pensar de novo na mulher. Mas logo depois
quei de pau duro pensando em como eu ia car de pau duro à noite. Depois
pensei que era melhor eu parar de fazer aquilo tantas vezes. Um mês antes,
num sábado em que todo mundo tinha saído, eu tinha pego a Bíblia e jurado e
prometido nunca mais fazer isso. Mas acabei esporrando na Bíblia e o
juramento e a promessa duraram apenas um dia ou dois, até eu me ver
sozinho outra vez.
Não pesquei nada na volta. Quando cheguei à ponte, vi uma bicicleta no
meio da grama. Olhei e vi um garoto mais ou menos do tamanho do George
correndo pela margem. Fui para lá também. Então ele se virou e correu na
minha direção, olhando para a água.
“Ei, o que foi?”, berrei. “Qual é o problema?” Acho que ele não escutou. Vi
sua vara de pescar e sua bolsa jogadas na margem e baixei meu equipamento
ali. Corri para onde ele estava. O garoto parecia um rato, sei lá. Quer dizer, era
dentuço, tinha braços magricelas, e a camisa de manga comprida esfarrapada
era pequena demais para ele.
“Puxa, juro que tem um peixe aí que é o maior que eu já vi na vida”, disse.
“Depressa! Olhe! Olhe lá! Ele está ali!”
Olhei para onde ele apontava e meu coração deu um pulo.
Tinha o comprimento do meu braço.
“Puxa, caramba, olhe só pra ele!”, disse o garoto.
Eu quei olhando. O peixe estava descansando numa sombra embaixo de
um galho que pendia perto da água. “Minha nossa”, falei para o peixe, “de
onde foi que você saiu?”
“O que a gente vai fazer?”, perguntou o garoto. “Eu queria estar com a
minha espingarda aqui.”
“Vamos pegar esse peixe”, falei. “Caramba, olhe só pra ele! Vamos mandar
ele pra corredeira.”
“Então você quer me ajudar? Vamos trabalhar juntos!”, disse o garoto.
O peixe grande tinha sido levado rio abaixo por uma curta distância e cou
ali parado, mexendo as barbatanas devagar, na água limpa.
“Tá legal, o que a gente vai fazer?”, perguntou o garoto.
“Posso subir por ali e descer até o riacho e espantar o peixe”, falei. “Você ca
parado na corredeira e quando ele tentar passar você mete um pontapé nele.
Dê um jeito de jogar ele pra cima da margem, faça qualquer coisa. Depois
segure bem o peixe e aguente rme.”
“Tá legal. Ah, merda. Olhe ele lá! Olhe, está indo embora! Para onde ele está
indo?”, berrou o garoto.
Vi o peixe se mexer riacho acima outra vez e parar perto da margem. “Não
está indo a lugar nenhum. Não tem nenhum lugar para ele ir. Está vendo? Ele
está morrendo de medo. Sabe que a gente está aqui. Ele só está rodando de lá
pra cá, procurando um lugar para ir. Olhe lá, parou de novo. Não pode ir a
lugar nenhum. Ele sabe disso. Sabe que a gente vai agarrar ele. Sabe que está
ferrado. Vou lá enxotar o peixe para baixo. Quando ele tentar passar, você
pega ele.”
“Eu queria estar com a minha espingarda aqui”, disse o garoto. “A gente ia
acabar com a raça dele de uma vez”, disse o garoto.
Subi um pouco, depois comecei a andar pelo riacho com água nas canelas.
Enquanto eu avançava, olhava para a frente. De repente o peixe se afastou
rápido da margem, virou bem na minha frente num grande redemoinho
barrento e saiu rebolando em alta velocidade rio abaixo.
“Lá vai ele!”, berrei. “Ei, ei, ei! Lá vai ele!” Mas o peixe deu uma guinada
antes de chegar à corredeira e voltou de novo. Bati com os pés na água e gritei
e o peixe virou de novo. “Ele está indo para aí! Pegue ele! Pegue! Lá vai ele!”
Mas o idiota retardado estava com um porrete na mão, o babaca, e quando
o peixe chegou à corredeira o garoto quis acertar com o porrete, em vez de
tentar dar um pontapé no lho da puta, como devia ter feito. O peixe deu uma
virada, enlouqueceu, disparou de lado pela água rasa. Foi o que ele fez. O
idiota do babaca do garoto tentou acertar uma cacetada no peixe e acabou
caindo de bunda na água.
Veio se arrastando para a margem todo encharcado. “Acertei nele!”, berrou
o garoto. “Acho que ele cou ferido também. Cheguei a pôr as mãos nele, mas
não deu pra segurar.”
“Você não conseguiu nada!” Eu estava até sem fôlego. Estava feliz porque o
garoto tinha caído. “Você não chegou nem perto dele, seu babaca. O que você
estava fazendo com aquele porrete? Precisava era ter chutado o peixe. Agora
ele já deve estar a um quilômetro daqui.” Tentei cuspir. Balancei a cabeça. “Sei
lá. A gente ainda não conseguiu pegar dessa vez. Pode ser que a gente nunca
mais pegue esse peixe”, falei.
“Droga, eu acertei nele!”, gritou o garoto. “Você não viu? Acertei bem em
cima dele e também cheguei a pôr as mãos nele. Você estava perto? Aliás, que
peixe era aquele?” Olhou para mim. A água escorria de suas calças e corria por
cima dos sapatos.
Não falei mais nada, mas quei pensando naquilo. Encolhi os ombros.
“Bom, tá legal. Achei que ele já era nosso. Vamos pegar o peixe dessa vez. E
agora nada de besteira, nem minha nem sua”, falei.
Descemos pelo riacho com água nas canelas. Tinha água dentro das minhas
botas, mas o garoto estava molhado até o pescoço. Apertava seus dentes
dentuços em cima do lábio para eles não carem batendo de frio.
O peixe não estava na água depois da corredeira e também não
conseguimos ver o peixe no trecho seguinte do riacho. Olhamos um para o
outro e começamos a car preocupados, achando que ele talvez tivesse ido
mais longe pela correnteza e chegado a um dos remansos mais fundos. Mas aí
o desgraçado se remexeu perto da margem, na verdade chegou a espirrar lama
com as batidas do rabo, e depois se mandou de novo. Passou por outra
corredeira, o rabo grande apontado para fora da água. Vi o peixe se aproximar
da margem e car ali parado, com o rabo meio fora d’água, mexendo as
barbatanas bem devagar, só o bastante para não ser levado pela correnteza.
“Viu só ele?”, falei. O garoto olhou. Segurei seu braço e apontei com o dedo
dele. “Bem ali. Tudo bem, agora preste atenção. Vou descer naquela
correntezazinha ali, entre as margens. Está vendo de onde estou falando? Você
espera aqui até eu dar o sinal. Aí você desce pra lá. Tá legal? E dessa vez não
deixe ele escapar de você se ele for para trás.”
“Tá legal”, disse o garoto, e mexeu no lábio com aqueles dentões. “Dessa
vez a gente vai pegar ele”, disse o garoto com uma expressão fria e terrível.
Subi pela margem e depois desci mais adiante, tomando todo o cuidado para
não fazer barulho. Deslizei pela margem e fui andando de novo dentro do
riacho com água nas canelas. Mas não consegui ver o grande lho da puta, e
meu coração estremeceu. Achei que ele podia ter ido embora. Era só descer
um pouco mais e o peixe ia alcançar um dos remansos fundos. Ali a gente
nunca ia conseguir pegar nada.
“Ele ainda está lá?”, berrei. Prendi o fôlego.
O garoto acenou com a mão.
“Pronto!”, berrei de novo.
“Lá vai ele!”, gritou o garoto em resposta.
Minhas mãos tremeram. O riacho tinha mais ou menos um metro de
largura ali e corria entre margens lamacentas. A água estava rasa mas rápida.
O garoto andava rio abaixo agora, com água nos joelhos, jogando pedrinhas
na frente, batendo na água e gritando.
“Lá vai ele!” O garoto abanou os braços. Então eu vi o peixe; estava vindo
bem na minha direção. Quando ele me viu, tentou desviar, mas era tarde
demais. Fiquei de joelhos, com os braços abertos embaixo da água fria.
Apanhei o peixe com as mãos e os braços, fui levantando, levantando, joguei-o
fora d’água e nós dois caímos na margem. Fiquei segurando o peixe contra a
minha camisa, ele se debatia e se revirava, até que consegui pôr as mãos na
laterais do seu corpo escorregadio e nas guelras. Deslizei a mão para cima,
encaixei os dedos na sua boca e segurei a mandíbula. Eu sabia que o tinha
pegado. Ele ainda estava se debatendo e não era fácil segurar, mas eu estava
com ele bem preso e não ia deixar escapar.
“Pegamos! Pegamos!”, berrava o garoto, espalhando água para todo lado.
“Pegamos, puxa vida! Ele não é incrível? Olhe só pra ele! Caramba, me deixe
segurar”, berrou o garoto.
“Primeiro a gente precisa matar o peixe”, falei. Levei a outra mão um pouco
abaixo da garganta dele. Empurrei a cabeça para trás, com toda a força que eu
tinha, tomando cuidado com seus dentes, e senti uma coisa dura se
esmigalhando. Ele teve um tremor longo e vagaroso e depois cou parado.
Pus o peixe estirado na margem e camos olhando para ele. Tinha pelo menos
sessenta centímetros de comprimento, era estranhamente magro, mas maior
do que qualquer peixe que eu já havia apanhado. Segurei sua mandíbula outra
vez.
“Ei”, disse o garoto, mas não falou mais nada quando viu o que eu ia fazer.
Lavei o sangue e estendi o peixe de novo na margem.
“Eu queria muito mostrar o peixe ao meu pai”, disse o garoto.
Estávamos molhados e trêmulos. Olhamos para ele, camos tocando nele.
Abrimos à força sua boca enorme e raspamos de leve os dedos nas suas leiras
de dentes. As laterais do corpo estavam feridas, com vergões esbranquiçados
do tamanho de moedas de vinte e cinco centavos, e também meio inchadas.
Havia cortes na cabeça, em volta dos olhos e no focinho, onde acho que ele se
chocou nas pedras quando se debateu. Mas ele era muito, muito magrinho
para o seu comprimento, e também mal conseguíamos ver a faixa cor-de-rosa
que descia por suas laterais, e tinha a barriga cinzenta e lisa, em vez de branca
e dura, como deveria ser. Mas achei aquele peixe uma coisa incrível.
“Acho melhor a gente ir embora logo”, falei. Olhei as nuvens acima dos
morros onde o sol tinha baixado. “É melhor eu ir para casa.”
“Acho que sim. Eu também. Estou cando gelado”, disse o garoto. “Ei,
quero carregar o peixe”, disse o garoto.
“Vamos pegar uma vara. Vamos en ar na boca dele e aí nós dois carregamos
juntos”, sugeri.
O garoto arranjou uma vara. En amos nas guelras e empurramos até o
peixe car no meio da vara. Depois cada um pegou numa ponta e começamos
a fazer o caminho de volta, olhando para o peixe que balançava na vara.
“O que é que a gente vai fazer com ele?”, perguntou o garoto.
“Sei lá”, falei. “Acho que fui eu que peguei”, disse.
“Nós dois pegamos. Além do mais, eu vi primeiro.”
“Isso é verdade”, falei. “Bom, você quer tirar o peixe no cara e coroa ou o
quê?” Apalpei o bolso com a mão livre, mas eu não tinha nenhuma moeda. E
o que eu ia fazer se perdesse?
De todo modo, o garoto falou: “Não, não vamos tirar no cara ou coroa”.
Falei: “Tá legal. Por mim, tudo bem”. Olhei para o garoto, o cabelo em pé,
lábios cinzentos. Eu poderia dar uma surra nele se a gente chegasse a esse
ponto. Mas eu não queria brigar.
Chegamos ao lugar onde tínhamos deixado nossas coisas, pegamos nosso
equipamento com uma mão, e nenhum dos dois largou a sua ponta da vara
com o peixe. Depois fomos andando para onde estava a bicicleta dele. Segurei
a vara bem rme, caso o garoto tentasse alguma coisa.
Aí tive uma ideia. “A gente podia dividir o peixe meio a meio”, sugeri.
“Como assim?”, perguntou o garoto, enquanto seus dentes recomeçavam a
bater. Senti que ele apertou com mais força a vara onde o peixe estava preso.
“Vamos dividir ao meio. Tenho uma faca. A gente corta em dois e cada um
leva metade. Não sei, mas acho que a gente podia fazer isso.”
Ele cou puxando um punhado do seu cabelo e olhou para o peixe. “Você
vai usar essa faca?”
“Você tem outra?”, perguntei.
O garoto balançou a cabeça.
“Então pronto”, falei.
Puxei a vara e estendi o peixe na grama ao lado da bicicleta do garoto.
Peguei a faca. Um avião manobrou na pista enquanto eu media com uma
linha de pesca. “Bem aqui?”, perguntei. O garoto fez que sim com a cabeça. O
avião roncou forte, avançou pela pista a toda a velocidade e decolou bem
acima da nossa cabeça. Comecei a cortar o peixe. Cheguei nas tripas, virei-o
para baixo e derramei tudo para fora. Continuei cortando até só ter uma tira
de pele prendendo as duas partes do peixe. Peguei as duas metades, torci nas
mãos e rompi o peixe em dois.
Entreguei ao garoto a metade do rabo.
“Não”, disse ele, balançando a cabeça. “Quero a outra metade.”
Falei: “É tudo a mesma coisa! Escute aqui, agora chega, senão vou acabar
me irritando”.
“Não me importa”, disse o garoto. “Se é tudo a mesma coisa, eu levo
aquela. É a mesma coisa, não é?”
“É tudo a mesma coisa, sim”, falei. “Mas acho que vou car com esta
metade aqui. Fui eu que cortei.”
“Eu quero essa metade”, disse o garoto. “Fui eu que vi o peixe primeiro.”
“E de quem é a faca que a gente usou?”, perguntei.
“Eu não quero o rabo”, disse o garoto.
Olhei em volta. Não havia carros na estrada nem ninguém mais pescando.
Tinha um avião com o motor ligado, roncando, e o sol estava se pondo. Eu
estava morrendo de frio. O garoto tremia muito, à espera.
“Tive uma ideia”, falei. Abri o cesto e mostrei a truta para ele. “Está vendo?
É verde. É a única truta verde que eu já vi. Então um ca com a metade da
cabeça e o outro leva a truta verde e metade do rabo. Não é justo assim?”
O garoto olhou para a truta verde, tirou do cesto e segurou-a na mão.
Avaliou as metades do peixe.
“Acho que é, sim”, disse. “Tá legal, acho que está certo. Você leva essa
metade aí. Na minha tem mais carne.”
“Não me importo”, falei. “Vou lavar bem o peixe. Para que lado você
mora?”, perguntei.
“Na avenida Arthur.” Ele pôs a truta verde e a sua metade do peixe dentro
de uma bolsa de lona suja. “Por quê?”
“Onde é que ca isso? Não é lá pelas bandas do campo de beisebol?”,
perguntei.
“É, sim, mas eu te perguntei por quê.” Ele parecia apavorado.
“Eu também moro lá perto”, falei. “Achei que eu podia ir de carona na
bicicleta, controlando o guidão. A gente podia revezar nos pedais. Estou com
um cigarro que a gente podia fumar, se não estiver molhado.”
Mas o garoto só falou: “Eu estou morrendo de frio”.
Lavei minha metade do peixe no riacho. Segurei a cabeça grande embaixo
da água e abri a boca do bicho. A corrente de água entrou pela boca e saiu pela
outra ponta do que havia sobrado do peixe.
“Eu estou morrendo de frio”, disse o garoto.
Vi George andando de bicicleta na outra ponta da rua. Ele não me viu. Dei a
volta em direção aos fundos, a m de descalçar as botas. Tirei do ombro a alça
do cesto para poder levantar a tampa e me preparar para entrar em casa todo
sorridente.
Ouvi as vozes deles e olhei pela janela. Estavam sentados à mesa. Tinha
fumaça na cozinha toda. Vi que ela estava subindo de uma panela no fogo.
Mas nenhum dos dois prestava a menor atenção.
“O que eu estou dizendo a você é a mais pura verdade”, disse ele. “O que é
que as crianças sabem? Você vai ver.”
Ela disse: “Eu não vou ver nada. Se eu achasse isso, eu iria preferir que eles
morressem logo”.
Ele disse: “O que é que há com você? É melhor tomar cuidado com o que
fala!”.
Ela começou a chorar. Esmagou um cigarro no cinzeiro e se levantou.
“Edna, sabia que aquela panela está queimando?”, disse ele.
Ela olhou para a panela. Empurrou a cadeira para trás, segurou a panela
pelo cabo e jogou-a com toda a força contra a parede acima da pia.
Ele disse: “Você cou maluca? Olhe só o que você fez!”. Pegou um pano de
prato e começou a limpar o que tinha espirrado da panela.
Abri a porta dos fundos. Comecei a sorrir. Falei: “Vocês não vão nem
acreditar no que eu pesquei no Riacho das Bétulas. Olhem só. Olhem aqui.
Olhem só isto aqui. Olhem só o que eu peguei”.
Minhas pernas tremiam. Eu mal conseguia me aguentar de pé. Estendi o
cesto para ela e, depois de um tempo, ela olhou dentro do cesto. “Ah, ah, meu
Deus! O que é isso? Uma cobra! O que é isso? Por favor, por favor, leve isso
embora daqui antes que eu vomite.”
“Leve isso embora daqui!”, gritou ele. “Não ouviu o que ela falou? Leve isso
embora daqui já!”, gritou ele.
Falei: “Mas olhe só, pai. Olhe só o que é”.
Ele disse: “Não quero ver nada”.
Falei: “É uma truta-arco-íris tamanho gigante, lá do Riacho das Bétulas.
Olhe! Não é incrível? É um monstro! Fiquei caçando a truta para cima e para
baixo no riacho feito um louco!”. Minha voz tinha endoidado. Mas eu não
conseguia parar. “Tinha uma outra também”, me apressei logo em contar.
“Uma verde. Juro! Era verde, sim! Você já viu uma truta verde?”
Ele olhou dentro do cesto e cou de boca aberta.
Gritou: “Leve essa porcaria daqui! O que é que você tem nessa cabeça a nal?
Tire essa porcaria da cozinha agora mesmo e jogue logo no lixo!”.
Fui para os fundos da casa. Olhei no cesto. O que estava lá dentro parecia
prateado sob a luz da varanda. O que estava lá dentro enchia o espaço do
cesto.
Puxei para fora. Fiquei segurando no ar. Fiquei segurando aquela metade.
Sessenta acres
O telefonema tinha ocorrido uma hora antes, enquanto eles comiam. Dois
homens estavam caçando no trecho de Lee Waite do riacho Toppenish,
abaixo da ponte, na estrada Cowiche. Era a terceira ou quarta vez naquele
inverno que alguém ia caçar ali, Joseph Águia disse para Lee Waite. Joseph
Águia era um índio velho que morava no seu lote da reserva natural do
governo, num lugarzinho na estrada Cowiche, com um rádio que ele escutava
dia e noite e um telefone para o caso de car doente. Lee Waite gostaria que o
índio velho não o aborrecesse por causa daquela terra, preferia que Joseph
Águia zesse qualquer outra coisa a respeito daquilo, o que quisesse, menos
telefonar para ele.
Na varanda, Lee Waite pôs o peso numa perna só e mordeu um apo de
carne que estava entre os dentes. Era um homem magro e miúdo, de rosto
magro e cabelo comprido e preto. Se não fosse o telefonema, teria dormido
um pouco naquela tarde. Franziu as sobrancelhas e vestiu o casaco sem a
menor pressa; a nal, quando chegasse lá, eles já teriam mesmo fugido. Em
geral era assim que acontecia. Os caçadores que vinham de Toppenish ou de
Yakima podiam andar de carro pelas estradas da reserva como todo mundo; só
não tinham permissão para caçar. Mas eles atravessavam aqueles seus
desocupados e irresistíveis sessenta acres de terra, talvez duas, três vezes, e
depois, se não tivessem medo, paravam o carro fora da estrada, atrás das
árvores, e avançavam rápido pelos campos de cevada e de aveia silvestre, que
batia nos joelhos, e desciam até o riacho — talvez pegassem uns patos, talvez
não, mas no breve tempo que cavam ali sempre davam uma porção de tiros
antes de ir embora. Joseph Águia, aleijado, estava em casa e os via muitas
vezes. Pelo menos era o que ele dizia para Lee Waite.
Limpou os dentes com a língua e espreitou com olhos estreitos a penumbra
daquele m de tarde de inverno. Não estava com medo; não era isso, disse a si
mesmo. A questão era que não queria saber de encrenca, só isso.
A varanda, pequena e construída pouco antes da guerra, estava quase toda
escura. A única janela de vidro fora derrubada fazia anos e Waite tinha
pregado um saco de beterrabas no vão da janela. O saco, grosso e gelado,
estava pendurado junto ao armário e se mexia de leve quando o ar frio que
vinha de fora entrava pelas beiradas. As paredes estavam atulhadas de cangas e
arreios e, num lado, acima da janela, havia uma série de ferramentas manuais
enferrujadas. Deu uma última varrida nos dentes com a língua, atarraxou a
lâmpada no bocal acima dele e abriu o armário. Tirou lá de trás a velha
espingarda de cano duplo e meteu a mão na caixa que estava no alto da
estante para pegar um punhado de balas. As pontas de metal das balas estavam
frias e ele as rolou para lá e para cá na mão antes de jogá-las num bolso do
velho casaco que estava usando.
“Não vai carregar a espingarda, papai?”, perguntou o menino Benny atrás
dele.
Waite se virou e viu Benny e o pequeno Jack parados na porta da cozinha.
Desde a hora do telefonema, os dois tinham cado atrás dele — queriam saber
se daquela vez ele ia atirar em alguém. Aquilo o incomodava, crianças falando
daquele jeito, como se fossem gostar se aquilo acontecesse, e agora os dois
estavam ali parados na porta, deixando o ar frio entrar na casa toda e olhando
a arma grande em seu braço.
“Voltem para dentro dessa casa, que é o lugar de vocês”, disse ele.
Os dois deixaram a porta aberta e correram de volta para onde estavam sua
mãe e Nina, e seguiram adiante, para o quarto. Ele podia ver Nina à mesa
tentando convencer o bebê a engolir uns bocados de sua papinha, mas a
criança jogava o corpo para trás e sacudia a cabeça. Nina ergueu os olhos,
tentou sorrir.
Waite entrou na cozinha, fechou a porta e cou ali encostado. Ela estava
morta de cansaço, ele via isso muito bem. O lábio de Nina exibia uma faixa de
gotinhas brilhantes e, enquanto ele observava, ela parou a m de puxar para
trás o cabelo caído sobre a testa. Ergueu os olhos para ele de novo, depois
voltou a olhar o bebê. Nunca tinha cado tão incomodada com uma gravidez.
Das outras vezes, ela mal conseguia car parada, vivia levantando de um salto
e zanzando para lá e para cá, mesmo quando não havia o que fazer a não ser
cozinhar e costurar. Ele apalpou com os dedos a pele mole em volta do
pescoço e lançou um olhar disfarçado a sua mãe, que desde a refeição
cochilava numa poltrona perto da estufa. Sua mãe olhou para ele com os
olhos semicerrados e assentiu com a cabeça. Tinha setenta anos e estava toda
encolhida, mas o cabelo ainda era preto feito um corvo e escorria por cima dos
ombros em duas tranças compridas e justas. Lee Waite tinha certeza de que
havia alguma coisa de errado com ela, porque às vezes passava dois dias
inteiros sem falar nada, apenas sentada no quarto ao lado, perto da janela,
olhando para o vale. Quando ela fazia isso, ele chegava a ter calafrios e não
sabia mais o que seus pequenos sinais, gestos e silêncios podiam signi car.
“Por que não fala alguma coisa?”, perguntou ele, balançando a cabeça.
“Como vou saber o que você quer dizer, mãe, se você não fala?” Waite a tou
durante um instante, via como ela puxava as pontas das tranças e esperou que
falasse alguma coisa. Depois soltou um resmungo, passou bem na frente dela,
pegou seu chapéu pendurado num prego e saiu.
Estava frio. Uns quatro ou cinco centímetros de neve granulada de três dias
recobria tudo, deixava o chão desnivelado e dava um aspecto meio engraçado
às leiras nuas das estacas de plantar feijão, na frente da casa. O cachorro saiu
de baixo da casa raspando as patas na terra assim que ouviu o barulho da porta
e correu para o caminhão sem olhar para trás. “Venha cá!”, Waite chamou,
com uma voz forte que ondulou no ar rarefeito.
Inclinou-se e segurou o focinho gelado e seco do cachorro. “Dessa vez é
melhor você car aqui. Pois é, pois é.” Repuxou as orelhas do cão para trás e
para a frente e olhou em volta. Não conseguia ver os Montes Status do outro
lado do vale por causa das nuvens pesadas e baixas, só via a planície ondulada
dos campos de beterraba — brancos, a não ser pelos pontos pretos aqui e ali,
onde a neve não havia se acumulado. Havia uma casa à vista — a de Charley
Treadwell, bem distante dali —, mas não tinha nenhuma luz acesa, pelo que
dava para ver. Não havia nenhum barulho em lugar nenhum, só o teto baixo
formado por nuvens pesadas fazendo pressão sobre tudo. Ele chegou a pensar
que tinha um vento, mas estava tudo parado.
“Trate de car aqui. Ouviu bem?”
Começou a seguir em direção ao caminhão, desejando não precisar ir. Na
noite anterior, tinha sonhado outra vez — o quê, ele não conseguia lembrar
—, mas estava com uma sensação incômoda desde a hora em que acordou.
Dirigiu em marcha lenta até o portão, desceu do caminhão e abriu o ferrolho.
Já não criava cavalos, mas era um hábito que tinha adquirido, manter o portão
trancado.
Estrada abaixo, a motoniveladora vinha raspando o chão em sua direção, a
pá guinchava estridente toda vez que o ferro batia no cascalho congelado. Ele
não tinha a menor pressa e esperou longos minutos até a motoniveladora
subir. Um dos homens na cabine da máquina debruçou-se para fora com um
cigarro na mão e acenou na hora em que passaram por ele. Mas Waite olhou
para o outro lado. Depois que eles passaram, reconduziu o caminhão até a
estrada. Lançou um olhar à casa de Charley Treadwell, quando passou por lá,
mas ainda não havia luz nenhuma e o carro não estava lá. Lembrou-se que
Charley lhe contara dias antes que tivera uma briga com um garoto que tinha
pulado sua cerca à tarde para ir caçar numa lagoa de patos logo depois do
estábulo. Os patos iam até lá todas as tardes, disse Charley. Os patos con avam
nele, disse Charley, como se isso tivesse alguma importância. Charley saiu
correndo do estábulo, onde estava ordenhando as vacas, abanou os braços e
gritou, e o garoto lhe apontou a arma. Se eu pudesse arrancar aquela
espingarda das mãos dele, disse Charley, olhando com dureza para Waite com
seu único olho sadio e balançando a cabeça bem devagar. Waite se agitou um
pouco no banco do caminhão. Ele não queria saber de encrencas como aquela.
Torcia para que as pessoas que tivessem ido lá, fossem quem fossem, já
tivessem ido embora quando ele chegasse, como havia acontecido outras
vezes.
Seguindo pela esquerda, passou por Forte Simcoe, as cumeeiras pintadas de
branco dos prédios velhos erguidas por trás da paliçada reconstruída. Os
portões estavam abertos e Lee Waite viu carros estacionados em volta, no lado
de dentro, e algumas pessoas de casaco, andando. Ele nunca se deu ao trabalho
de parar. Uma vez a professora levou todas as crianças para lá — uma excursão
pelo campo, ela chamou assim —, mas Waite cou em casa naquele dia.
Baixou o vidro da janela e tossiu para limpar um pigarro e escarrou junto ao
portão quando passou ali.
Virou na Lateral B e depois chegou à casa de Joseph Águia — todas as luzes
acesas, até a luz da varanda. Waite seguiu adiante, desceu até o lugar onde
começava a estrada Cowiche, saiu do caminhão e escutou. Tinha começado a
achar que eles haviam ido embora e que ele poderia dar meia-volta e se afastar,
quando ouviu tiros abafados, ao longe, vindo através dos campos. Esperou um
pouco, depois pegou um trapo, deu a volta pelo caminhão e tentou limpar um
pouco da neve e do gelo nas beiradas da janela. Antes de entrar no caminhão
sacudiu a neve dos sapatos com um pontapé no ar, dirigiu mais um pouco em
frente até conseguir ver a ponte, depois procurou as marcas que saíam da
estrada e entravam sob as árvores, onde sabia que ia encontrar o carro deles.
Parou atrás do sedã cinzento e desligou o motor.
Ficou sentado no caminhão e esperou, fazendo o pedal do freio chiar,
enquanto baixava e levantava o pé e ouvia os tiros deles de vez em quando.
Depois de alguns minutos, não conseguiu mais car parado e saiu, andou
devagar e deu a volta até a frente do caminhão. Fazia cinco anos que não ia lá
para nada. Encostou-se no para-lamas e olhou a vastidão. Não conseguia
entender como todo aquele tempo tinha ido embora.
Lembrava-se do tempo em que era pequeno e queria crescer. Ia até ali
muitas vezes naquela época, e fazia armadilhas naquele trecho do riacho para
pegar ratos almiscarados e preparar iscas noturnas para pescar trutas. Waite
olhou em volta, mexeu os pés dentro do sapato. Tudo aquilo tinha ocorrido
muito tempo antes. Quando estava crescendo, ouvia o pai dizer que queria
reservar aquela terra para os três lhos. Mas os dois irmãos foram
assassinados. Lee Waite era o único e cou com a terra, toda ela.
Ele se lembrava: mortes. Primeiro Jimmy. Lembrava de ter acordado com as
tremendas batidas na porta — escuro, cheiro de resina de madeira no fogão,
um automóvel lá fora de faróis acesos e motor ligado e uma voz meio rachada
que vinha de um alto-falante dentro do carro. O pai dele abriu a porta de um
tranco e o vulto enorme de um homem de chapéu de vaqueiro e com uma
arma — um delegado — encheu a porta inteira. Waite? Seu lho Jimmy levou
uma facada num baile em Wapato. Todo mundo saiu no caminhão e Lee cou
sozinho em casa. Passou o resto da noite agachado junto ao fogão à lenha,
vendo as sombras pularem pela parede. Mais tarde, quando tinha doze anos,
veio um outro, um outro delegado, e só disse que era melhor irem com ele.
Waite se afastou do caminhão e andou alguns metros até a beira do campo.
Agora as coisas estavam diferentes, era só essa a questão. Ele tinha trinta e dois
anos e Benny e Little Jack estavam crescendo. E ainda havia o bebê. Waite
balançou a cabeça. Fechou a mão em volta de uma haste alta de asclépia.
Estalou a haste e olhou para cima quando ouviu o grasnar de patos no alto.
Limpou a mão na calça e por um momento seguiu os patos com os olhos, viu-
os abrir as asas ao mesmo tempo e dar uma volta em torno do riacho. Depois
eles dispararam. Viu três patos caírem antes mesmo de ouvir os tiros. Waite se
virou de forma brusca e voltou ao caminhão.
Pegou sua espingarda, tomou cuidado para não bater a porta. Entrou na
área das árvores. Estava quase escuro. Ele tossiu uma vez e depois cou
parado com os lábios bem juntos.
Eles vinham pisando com força entre as moitas, dois deles. Então, gingando
e fazendo a cerca guinchar, vieram para o campo, esmagando a neve com seus
passos. Estavam ofegantes na hora em que se aproximaram do carro.
“Minha nossa, tem um caminhão lá”, disse um deles e largou os patos que
estava carregando.
Era uma voz de garoto. Estava com um casaco de caça pesado e, nos bolsos
de fora, Waite percebeu vagamente um enorme recheio de patos.
“Quer fazer o favor de car calmo?” O outro garoto parou, esticou o
pescoço e levantou bem a cabeça, tentando enxergar. “Depressa! Não tem
ninguém lá dentro. Vamos entrar logo no carro!”
Sem se mexer, tentando manter a voz rme, Waite disse: “Parem aí.
Ponham as armas no chão”. Saiu de trás das árvores e olhou de frente para
eles, levantou e baixou o cano da espingarda. “Tirem esses casacos agora e
esvaziem tudo.”
“Ah, meu Deus, minha nossa!”, disse um deles.
O outro não falou nada, mas tirou o casaco e começou a puxar os patos para
fora, ainda olhando em volta.
Waite abriu a porta do carro deles, meteu um braço dentro do carro e
apalpou, até achar o botão dos faróis da frente. Os garotos puseram uma mão
na frente do rosto a m de proteger os olhos, depois deram as costas para a luz
dos faróis.
“De quem vocês acham que são estas terras?”, perguntou Waite. “Que
história é essa de dar tiros nos patos da minha propriedade?”
Um dos garotos se virou com cautela, a mão ainda na frente dos olhos. “O
que você vai fazer?”
“O que você acha que eu vou fazer?”, perguntou Waite. Sua voz soou
estranha até mesmo para ele, leve, sem substância. Podia ouvir os patos
pousando no riacho, tagarelando com os outros patos, ainda no ar. “O que
você acha que eu vou fazer com vocês?”, perguntou. “O que vocês fariam se
pegassem uns garotos invadindo as terras de vocês?”
“Se eles pedissem desculpa e se fosse a primeira vez, eu deixaria que fossem
embora”, respondeu o garoto.
“Eu também, senhor, se eles pedissem desculpa”, disse o outro garoto.
“Fariam isso, é? Mas acham mesmo que isso ia adiantar?” Waite sabia que
estava só ganhando tempo.
Eles não responderam. Ficaram parados sob o clarão dos faróis e depois
viraram de costas outra vez.
“Como vou saber se vocês já não estiveram aqui?”, disse Waite. “E as outras
vezes que eu tive de vir para cá e não achei quem estava caçando?”
“Palavra de honra, senhor, a gente nunca esteve aqui. A gente só estava
passando de carro. Pelo amor de Deus”, soluçou o garoto.
“É a pura verdade”, disse o outro garoto. “Todo mundo pode cometer um
erro na vida.”
Já estava escuro e uma garoa na descia na frente da luz dos faróis. Waite
levantou a gola do casaco e olhou rme para os garotos. De lá de baixo, no
riacho, o grasnido estridente de um ganso subiu até ele. Waite olhou em volta
para o aspecto espantoso das árvores e depois para os garotos de novo.
“Pode ser”, disse, e movimentou os pés. Sabia que ia deixar os garotos irem
embora num minuto. Não havia muita coisa que pudesse fazer além disso.
Estava expulsando os garotos de suas terras; era o que importava. “Mas qual é
o nome de vocês? Qual é o seu nome? Você. Esse carro é seu ou não é? Qual é
o seu nome?”
“Bob Roberts”, respondeu o garoto depressa e olhou de lado para o outro.
“Williams, senhor”, disse o outro garoto. “Bill Williams, senhor.”
Waite estava disposto a levar em conta que eram só garotos, que mentiam
para ele porque estavam com medo. Continuavam parados, de costas para ele,
e Waite continuava parado, olhando os dois.
“Vocês estão mentindo!”, disse, e cou chocado consigo mesmo. “Por que
estão mentindo para mim? Vocês entram nas minhas terras, atiram nos meus
patos e depois ainda mentem na minha cara!” Apoiou a espingarda na porta
aberta do carro para rmar o cano. Podia ouvir os ramos roçando uns nos
Á
outros no alto das árvores. Pensou em Joseph Águia sentado em sua casa, de
luz acesa, escutando o rádio.
“Tá legal, tá legal”, disse Waite. “Mentirosos! Fiquem aí paradinhos, seus
mentirosos.” Andando tenso, deu a volta no caminhão, tirou um saco velho de
beterraba, sacudiu o saco para abri-lo e mandou os garotos colocarem todos
os patos lá dentro. Quando estava parado, esperando, seus joelhos começaram
a tremer inexplicavelmente.
“Vamos lá, andem, vamos logo! Vão!”
Deu um passo atrás quando eles avançaram na direção do carro. “Vou dar ré
para a estrada. Vocês dão ré junto comigo.”
“Sim, senhor”, disse um dos garotos, enquanto se esgueirava atrás do
volante. “Mas e se essa carroça não quiser pegar? Talvez a bateria tenha
descarregado. Ela já não estava lá essas coisas.”
“Sei lá”, disse Waite. Olhou em volta. “Acho que aí vou ter de empurrar o
carro de vocês.”
O garoto apagou os faróis, pisou fundo no acelerador e deu a partida. O
motor girou meio devagar, mas pegou, e o garoto manteve o pé bem fundo
no pedal e acelerou o motor antes de acender os faróis outra vez. Waite
examinou o rosto pálido e frio dos garotos, que olhavam para ele à espera de
um sinal.
Waite jogou o saco cheio de patos dentro do seu caminhão e empurrou a
espingarda de cano duplo atravessada no banco. Entrou e deu ré em direção à
estrada, com cuidado. Esperou os garotos saírem do desvio, depois os seguiu
até a Lateral B e parou, de motor ligado, enquanto via as lanternas traseiras do
carro deles sumirem na direção de Toppenish. Havia enxotado os dois de suas
terras. Era o que importava. No entanto, não conseguia entender por que
estava com a sensação de que havia acontecido algo crucial, um fracasso.
Mas não tinha acontecido nada.
Áreas de neblina haviam subido do vale. Quando parou para abrir o portão,
ele não conseguia enxergar grande coisa na direção da casa de Charley, só uma
vaga luz acesa na varanda, que Waite não se recordava de ter visto ali à tarde.
O cachorro esperava deitado de barriga para baixo perto do estábulo,
levantou-se com um pulo e começou a farejar os patos quando Waite tirou o
saco de cima dos ombros e seguiu em direção à casa. Parou na varanda tempo
su ciente para se livrar da espingarda. Os patos, ele deixou no chão ao lado do
armário. No dia seguinte ou depois ele jogaria os patos fora.
“Lee?”, chamou Nina.
Waite tirou o chapéu, afrouxou a lâmpada e, antes de a porta abrir, cou
parado um instante na escuridão silenciosa.
Nina estava na mesa da cozinha, a caixinha de costura ao lado, em outra
cadeira. Ela segurava um pedaço de brim na mão. Duas ou três camisas dele
estavam sobre a mesa, junto com uma tesoura. Ele encheu um copo de água
na bica e, numa prateleira acima da pia, pegou uma das pedras coloridas que
seus lhos viviam trazendo para casa. Também havia uma pinha seca ali e
umas folhas de bordo do verão, grandes e iguais a folhas de papel. Olhou na
despensa. Mas estava sem fome. Em seguida andou até a porta e encostou-se
no batente.
Era uma casa pequena. Não tinha nenhum lugar para ir.
Nos fundos, num único quarto, dormiam todas as crianças e num quarto
mais afastado desse dormiam Waite, Nina e a mãe dele, embora às vezes, no
verão, Waite e Nina dormissem do lado de fora. Nunca havia um lugar para ir.
Sua mãe ainda estava sentada ao lado do fogão, agora com um cobertor sobre
os joelhos e os olhinhos miúdos abertos, olhando para ele.
“Os meninos queriam car acordados até você voltar”, disse Nina. “Mas eu
disse que você tinha falado que eles deviam ir para a cama.”
“Certo, isso mesmo”, disse ele. “Deviam mesmo ir para a cama.”
“Fiquei com medo”, disse ela.
“Medo?” Ele tentou aparentar surpresa. “Você teve medo, mamãe?”
A velha não respondeu. Seus dedos remexiam nas beiradas do cobertor,
franzindo e puxando, se cobrindo por causa da corrente de ar.
“Como você está se sentindo, Nina? Está melhor esta noite? Ele puxou uma
cadeira e sentou-se junto à mesa.
Sua mulher fez que sim com a cabeça. Ele não falou mais nada, apenas
olhou para baixo e começou a riscar a mesa com a unha do polegar.
“Você pegou quem estava lá?”, perguntou ela.
“Eram dois garotos”, disse ele. “Deixei que fossem embora.”
“Você fez o que era certo”, disse Nina.
Olhou para o fogão, na direção de sua mãe. Mas ela não fez nenhum gesto,
só cou olhando xo para ele com os olhos pretos.
“Não sei”, disse ele. Tentou re etir sobre o assunto, mas, fosse lá o que
fosse, já parecia ter acontecido muito tempo antes. “Era melhor que eu tivesse
metido mais medo naqueles garotos, acho.” Olhou para Nina. “Minha terra”,
acrescentou. “Eu podia ter matado os dois.”
“Matar quem?”, perguntou sua mãe.
“Dois garotos lá nas terras da Cowiche Road. Os que o Joseph Águia avisou
que estavam lá caçando.”
De onde ele estava, podia ver os dedos da mãe se remexendo no colo,
seguindo o desenho saliente da bainha do cobertor. Waite se inclinou sobre o
fogão com a intenção de falar mais alguma coisa. Mas não sabia o quê.
Andou devagar até a mesa e sentou-se outra vez. Então se deu conta de que
ainda estava de casaco e levantou-se, levou um tempo desabotoando o casaco
e depois colocou-o atravessado sobre a mesa. Empurrou a cadeira até car
bem perto dos joelhos da sua mulher, cruzou os braços com o corpo meio
torto e segurou as mangas da camisa entre os dedos.
“Eu estava pensando que talvez pudesse alugar aquelas terras lá para clubes
de caça. Do jeito que estão, não trazem nenhum benefício para a gente. Não
é? Se a casa da gente fosse lá ou se a terra fosse aqui na nossa frente, aí a
história seria outra, não é?”
No silêncio ele só ouvia a lenha estalando no fogão. Pôs as mãos espalmadas
sobre a mesa e sentiu a pulsação mais forte nos braços. “Posso alugar para um
desses clubes de caçadores de patos em Toppenish. Ou em Yakima. Qualquer
um deles iria car bem contente de pôr as mãos numa terra como essa, bem
na rota da migração dos patos. É uma das melhores terras no vale para caçar...
Se de algum jeito eu pudesse tirar algum proveito dessas terras, iria ser bem
diferente.” Sua voz foi cando baixa, arrastada.
Nina se mexeu na cadeira. Falou: “Se você acha que deve fazer isso, faça. O
que você zer está bem. Eu não sei”.
“Eu também não sei”, disse ele. Seus olhos percorreram o chão, subiram ao
chegar à sua mãe e se detiveram outra vez no arpão de caçar salmão.
Levantou-se balançando a cabeça. Quando andou na direção do quarto
pequeno, a velha curvou a cabeça e apoiou a bochecha no espaldar da cadeira,
as pálpebras se estreitaram e o seguiram. Ele ergueu o braço, tirou o arpão e o
monte de redes da estante lascada e deu a volta por trás da cadeira da mãe.
Olhou a cabecinha escura e o xale marrom de lã que, suavemente, tomava a
forma dos ombros curvados da mãe. Virou o arpão nas mãos e começou a
desembolar a rede.
“Quanto você acha que poderia ganhar?”, perguntou Nina.
Ele sabia que não sabia. Aquilo até o deixou um pouco confuso. Remexeu
na rede, depois colocou o arpão de volta na estante. Lá fora, um galho raspou
na casa fazendo um som áspero.
“Lee?”
Ele não tinha certeza. Precisaria perguntar por aí. Mike Chuck havia
alugado trinta acres no outono anterior por quinhentos dólares. Jerome
Shinpa alugava uma parte de suas terras todos os anos, mas Waite nunca tinha
perguntado quanto ele cobrava.
“Talvez uns mil dólares”, disse.
“Mil dólares?”, disse ela.
Waite fez que sim com a cabeça, sentiu alívio com o espanto dela. “Pode ser.
Talvez mais. Preciso ver. Preciso perguntar a alguém quanto é.” Era um
bocado de dinheiro. Tentou pensar em como seria ter mil dólares. Fechou os
olhos e tentou pensar.
“Não é a mesma coisa que vender a terra, não é?”, perguntou Nina. “Se você
alugar a terra para eles, quer dizer que a terra continua sendo sua, não é?”
“É, sim, continua sendo minha terra!” Foi na direção dela e se debruçou por
cima da mesa. “Você não sabe a diferença, Nina? Eles não podem comprar terra
na reserva. Não sabe disso? Vou alugar a terra para eles usarem por um
tempo.”
“Sei”, disse ela. Olhou para o chão e segurou uma das mangas das camisas
de Waite. “Eles vão ter de devolver a terra para você? Ainda vai pertencer a
você?”
“Você não entende?”, disse ele. Segurou a beirada da mesa. “É um aluguel!”
“O que a mamãe vai dizer?”, perguntou Nina. “Será que não tem
problema?”
Os dois olharam para a velha. Mas os olhos dela estavam fechados e ela
parecia estar dormindo.
“Mil dólares”, disse Nina e balançou a cabeça.
Mil dólares. Talvez mais. Ele não sabia. Mas mesmo que fossem mil dólares!
Waite não sabia como tratar do assunto, se avisava as pessoas que tinha terras
para alugar. Naquele ano já era muito tarde — mas ele podia começar a
perguntar por aí na primavera. Cruzou os braços e tentou pensar. As pernas
começaram a tremer e ele se apoiou na parede. Ficou ali parado e depois
deixou seu peso ir descendo devagar pela parede, até car de cócoras.
“É só um aluguel”, disse ele.
Olhou para o chão. Parecia inclinar-se na direção dele; parecia se mexer.
Waite fechou os olhos e colocou as mãos sobre as orelhas a m de se
equilibrar. Depois pensou em pôr as mãos em concha para que soasse aquele
rugido, como vento uivando dentro de uma concha.
O que tem no Alasca?
J ack saiu do trabalho às três da tarde. Deixou a estação e foi de carro até
uma loja de sapatos perto de seu apartamento. Pôs o pé em cima do
banquinho e deixou o vendedor desamarrar o cadarço de sua bota.
“Uma coisa confortável”, disse Jack. “Para usar com roupa esporte.”
“Tenho algo aqui”, disse o vendedor.
Trouxe três pares de sapato e Jack disse que ia levar o bege-claro, que
deixava seus pés livres e exíveis. Pagou ao vendedor e pôs a caixa com sua
bota debaixo do braço. Olhava para baixo, para os sapatos novos, enquanto
andava. A caminho de casa, tinha a sensação de que os pés se moviam com
liberdade ao passar de um pedal ao outro.
“Comprou um sapato novo?”, perguntou Mary. “Deixe eu ver.”
“Gostou?”, disse Jack.
“Não gosto da cor, mas aposto que é bem confortável. Você estava
precisando mesmo de um sapato novo.”
Ele olhou para o sapato outra vez. “Preciso tomar banho”, disse.
“Vamos jantar mais cedo hoje”, disse ela. “Helen e Carl nos convidaram
para ir à casa deles. Helen deu a Carl um narguilé de presente de aniversário e
estão ansiosos para experimentar.” Mary olhou para ele. “Você pode ir?”
“A que horas?”
“Lá pelas sete.”
“Tudo bem”, disse ele.
Ela olhou o sapato dele outra vez e chupou as bochechas. “Vá tomar seu
banho”, disse.
Jack abriu a água e tirou o sapato e as roupas. Ficou deitado na banheira por
um tempo e depois usou uma escova para limpar o óleo lubri cante que havia
se entranhado embaixo das unhas. Deixou as mãos tombarem, depois
levantou-as até os olhos.
Ela abriu a porta do banheiro. “Trouxe uma cerveja”, disse. O vapor rodava
em volta dela e saía para a sala.
“Vou terminar num minuto”, disse ele. Tomou um pouco de cerveja.
Ela cou sentada na beirada da banheira e colocou a mão na coxa dele. “O
soldado de volta da guerra”, disse.
“De volta da guerra”, disse ele.
Ela passou a mão nos pelos molhados da coxa dele. Em seguida bateu uma
mão contra a outra. “Olhe, tenho uma coisa para contar! Tive uma entrevista
hoje e acho que vão me oferecer um trabalho... em Fairbanks.”
“No Alasca?”, disse ele.
Ela fez que sim com a cabeça. “O que você acha?”
“Eu sempre quis ir para o Alasca. Está com cara de que é coisa certa?”
Ela fez que sim com a cabeça outra vez. “Gostaram de mim. Disseram que
vão me procurar na semana que vem.”
“Que ótimo. Me dê uma toalha, por favor. Vou sair.”
“Vou pôr a mesa”, disse ela.
As pontas dos dedos das mãos e dos pés dele estavam pálidas e enrugadas.
Enxugou-se devagar, vestiu roupas limpas e depois calçou o sapato novo.
Penteou o cabelo e foi para a cozinha. Tomou outra cerveja enquanto punha o
jantar na mesa.
“A gente cou de levar um refrigerante e alguma coisa para beliscar”, disse
ela. “Vamos ter que passar no mercado.”
“Refrigerante e coisinhas para beliscar. Ótimo”, disse ele.
Quando terminaram de comer, ele a ajudou a tirar a mesa. Depois pegaram
o carro e foram até o mercado, compraram refrigerantes, batatas fritas,
salgadinhos de milho e bolachas salgadas com sabor de cebola. Na caixa, ele
ainda acrescentou um punhado de barrinhas de chocolate com amêndoas.
“Oba”, disse ela quando viu as barrinhas.
Voltaram para casa, estacionaram, depois foram a pé até o prédio de Helen
e Carl, no m do quarteirão.
Helen abriu a porta. Jack pôs a sacola na mesa da sala. Mary sentou-se na
cadeira de balanço e cheirou o ar.
“Estamos atrasados”, disse. “Eles começaram sem a gente, Jack.”
Helen riu. “Fumamos um quando Carl chegou. Mas ainda não acendemos o
narguilé. A gente queria que vocês estivessem aqui.” Estava parada no meio da
sala e olhava para eles sorrindo. “Vamos ver o que tem nessa sacola aí”, disse
ela. “Ah, puxa! Caramba, acho que vou comer um desses salgadinhos de milho
agora mesmo. Não querem um também?”
“Acabamos de jantar”, disse Jack. “Daqui a pouco a gente come.” A água
tinha parado de correr e Jack ouviu Carl assobiando no banheiro.
“Temos picolés e chocolates”, disse Helen. Estava de pé junto à mesa e
en ou a mão no saco de batata frita. “Se o Carl algum dia sair daquele
chuveiro, vai preparar o narguilé.” Abriu o pacote de bolachas salgadas e
colocou uma na boca. “Puxa, são muito boas mesmo”, disse.
“Não sei o que Emily Post* diria de você”, disse Mary.
Helen riu. Balançou a cabeça.
Carl saiu do banheiro. “Oi para todo mundo. Oi, Jack. O que há de tão
engraçado?” perguntou, sorrindo. “Eu estava ouvindo as risadas de vocês.”
“Estávamos rindo da Helen”, disse Jack.
“Ela é engraçada”, disse Carl. “Olhe só quanta guloseima! Ei, não querem
tomar um refrigerante? Vou preparar o narguilé.”
“Vou tomar um copo”, disse Mary. “E você, Jack?”
“Também quero”, disse Jack.
“Hoje o Jack está meio pra baixo”, disse Mary.
“Por que está dizendo isso?”, perguntou Jack. Olhou para ela. “Está
querendo gozar da minha cara?”
“Eu só estava brincando”, disse Mary. Aproximou-se dele e sentou ao lado
de Jack no sofá. “Eu só estava brincando, querido.”
“Ei, Jack, não que assim, não”, disse Carl. “Vou mostrar a vocês o que eu
ganhei de aniversário. Helen, abra um desses refrigerantes enquanto eu
preparo e acendo o narguilé. Estou morrendo de sede.”
Helen levou as batatas fritas e os salgadinhos de milho até a mesinha de
centro. Então trouxe o refrigerante e quatro copos.
“Isso aqui já está virando uma festa”, disse Mary.
“Tenho de passar fome o dia todo, senão acabo engordando cinco quilos por
semana”, disse Helen.
“Eu sei exatamente o que você quer dizer”, disse Mary.
Carl saiu do quarto com o narguilé.
“O que você acha disso?”, disse ele a Jack. Colocou o narguilé na mesa de
centro.
“É mesmo incrível”, disse Jack. Levantou o narguilé e olhou para ele.
“Chamam de hookah”, disse Helen. “Era como o chamavam no lugar onde
comprei. É um modelo pequeno, mas dá conta do recado.” Riu.
“Onde foi que você comprou?”, perguntou Mary.
“O quê? Naquela lojinha na rua Quatro, sabe?”, disse Helen.
“Claro. Sei, sim”, disse Mary. “Preciso ir lá um dia desses”, disse Mary.
Cruzou as mãos e olhou para Carl.
“Como é que funciona?”, perguntou Jack.
“A gente põe o fumo aqui”, disse Carl. “E acende aqui. Depois inala por este
negócio aqui e a fumaça é ltrada pela água. Deixa um gosto bom e dá o
maior barato.”
“Eu gostaria de dar um de presente ao Jack no Natal”, disse Mary. Olhou
para Jack, sorriu e tocou em seu braço.
“Eu gostaria de ter um”, disse Jack. Esticou as pernas e olhou seu sapato sob
a luz.
“Pronto, experimente”, disse Carl, soltando uma linha na de fumaça e
passando o tubo para Jack. “Veja se está bom.”
Jack deu uma tragada no tubo, prendeu a fumaça e passou o tubo para
Helen.
“A Mary primeiro”, disse Helen. “Eu vou depois da Mary. Vocês que
chegaram agora têm de recuperar o tempo perdido.”
“Não vou discutir”, disse Mary. Pôs a ponta do tubo na boca, tragou
depressa, duas vezes, e Jack olhou as bolhas que ela fazia na água.
“É bom mesmo”, disse Mary. Passou o tubo para Helen.
“A gente estreou o narguilé ontem à noite”, disse Helen e riu bem alto.
“Ela ainda estava muito doida quando acordou hoje de manhã, junto com as
crianças, na hora de irem para a escola”, disse Carl, e riu. Observou Helen
tragar de novo pelo tubo.
“Como vão as crianças?”, perguntou Mary.
“Vão bem”, disse Carl e colocou a ponta do tubo na boca. Jack tomou um
gole do refrigerante e observou as bolhas dentro do narguilé. Pensou nas
bolhas que sobem do capacete de um escafandrista. Imaginou uma lagoa e
cardumes de peixes incríveis.
Carl passou o tubo adiante.
Jack se levantou e se espreguiçou.
“Aonde você vai, querido?”, perguntou Mary.
“A lugar nenhum”, disse Jack. Sentou-se, balançou a cabeça e sorriu. “Minha
nossa.”
Helen riu.
“Qual é a graça?”, perguntou Jack depois de um bom tempo.
“Puxa, não sei”, disse Helen. Esfregou os olhos e riu outra vez, e Mary e
Carl riram.
Depois de algum tempo, Carl desatarraxou a tampa do reservatório de água
e soprou em um dos tubos. “Às vezes entope.”
“O que você quis dizer quando falou que eu estava meio pra baixo hoje?”,
Jack perguntou a Mary.
“O quê?”, disse Mary.
Jack olhou-a e piscou. “Você falou que eu estava meio pra baixo hoje. O que
levou você a falar isso?”
“Agora não me lembro mais, só sei que é isso mesmo”, disse ela. “Mas, por
favor, não leve a mal, está bem?”
“Certo”, disse Jack. “Só estou dizendo que não sei por que você falou isso.
Se eu não estiver pra baixo, basta você dizer uma coisa dessa para me deixar
pra baixo mesmo.”
“Se o sapato couber no seu pé...”, disse Mary. Apoiou-se no braço do sofá e
riu até as lágrimas.
“O que é que foi?”, perguntou Carl. Olhou para Jack e depois para Mary.
“Perdi essa”, disse Carl.
“Eu devia ter feito um patezinho para a gente comer junto com esses
petiscos”, disse Helen.
“Não tem outra garrafa desse refrigerante?”, perguntou Carl.
“A gente comprou duas garrafas”, disse Jack.
“Já bebemos as duas?”, perguntou Carl.
“Bebemos alguma?”, perguntou Helen, e riu. “Não, só abri uma. Acho que
só abri uma. Não me lembro de ter aberto mais de uma”, disse Helen, e riu.
Jack passou o tubo a Mary. Ela pegou a mão dele e conduziu o tubo para
dentro de sua boca. Jack cou vendo a fumaça escorrer dos lábios de Mary
muito tempo depois.
“Que tal um pouco de refrigerante?”, perguntou Carl.
Mary e Helen riram.
“O que é que tem o refrigerante?”, perguntou Mary.
“Bom, achei que a gente ia tomar um copo”, disse Carl. Olhou para Mary e
sorriu.
Mary e Helen riram.
“Qual é a graça?”, perguntou Carl. Olhou para Helen e depois para Mary.
Balançou a cabeça. “Não estou entendendo qual é a de vocês”, disse.
“Pode ser que a gente tenha de ir para o Alasca”, disse Jack.
“Alasca?”, disse Carl. “O que é que tem no Alasca? O que vocês vão fazer lá?”
“Eu queria que a gente fosse para algum lugar”, disse Helen.
“O que tem de ruim aqui?”, perguntou Carl. “O que é que vocês vão fazer lá
no Alasca? Estou falando sério. Eu quero saber.”
Jack pôs uma batata frita na boca e tomou um gole de refrigerante. “Eu não
sei. O que foi que você perguntou mesmo?”
Depois de um minuto, Carl disse: “O que tem no Alasca?”.
“Sei lá”, disse Jack. “Pergunte para a Mary. A Mary é que sabe. Mary, o que é
que eu vou fazer lá naquelas bandas? Quem sabe posso plantar aqueles
repolhos gigantes de que você me falou...”
“Ou abóboras”, disse Helen. “Plantar abóboras.”
“Você vai car rico”, disse Carl. “Embarque as abóboras para cá lá pela
época do Dia das Bruxas. Aposto que você vai virar o maior distribuidor.”
“Carl vai ser o seu distribuidor”, disse Helen.
“Certo”, disse Carl. “A gente vai car rico.”
“Ficar rico”, disse Mary.
Depois de algum tempo, Carl levantou. “Sei o que ia cair muito bem agora...
um gole de refrigerante”, disse Carl.
Mary e Helen riram.
“Podem rir à vontade”, disse Carl sorrindo. “Quem quer um pouco
também?”
“Um pouco do quê?”, perguntou Mary.
“Um pouco de refrigerante”, respondeu Carl.
“Você se levantou como se fosse fazer um discurso”, disse Mary.
“Nem pensei nisso”, disse Carl. Balançou a cabeça e riu. Sentou-se. “Esse
bagulho é bom mesmo”, disse.
“A gente devia ter arranjado mais”, disse Helen.
“Mais o quê?”, perguntou Mary.
“Mais dinheiro”, disse Carl.
“Não, dinheiro não”, disse Jack.
“Será que eu vi umas barrinhas de chocolate com amêndoas na sacola do
mercado?”, perguntou Helen.
“Comprei umas, sim”, disse Jack. “Na última hora, vi as barrinhas dando
sopa na prateleira.”
“Essas barrinhas de chocolate com amêndoas são muito boas”, disse Carl.
“São cremosinhas”, disse Mary. “Derretem na boca da gente.”
“Tem chocolates e picolés, se alguém estiver a m”, disse Carl.
Mary falou: “Eu queria um picolé. Você está indo para a cozinha?”.
“Estou, e também vou trazer refrigerante”, disse Carl. “Acabei de lembrar.
Vocês não querem um copo?”
“Traga logo tudo de uma vez e a gente resolve aqui”, disse Helen. “Os
chocolates também.”
“Talvez fosse melhor trazer a cozinha inteira de uma vez”, disse Carl.
“Quando a gente morava na cidade”, disse Mary, “diziam que dava para ver
quem tinha curtido um barato à noite só de olhar a cozinha de manhã.
Quando a gente morava na cidade, a nossa cozinha era bem pequena”, disse.
“A gente também tinha uma cozinha bem pequena”, disse Jack.
“Vou dar uma olhada no que eu consigo”, disse Carl.
“Vou com você”, disse Mary.
Jack observou os dois indo para a cozinha. Recostou-se nas almofadas e
cou olhando os dois andando. Depois inclinou-se para a frente bem devagar.
Estreitou as pálpebras e viu Carl levantar o braço em direção a uma prateleira
no guarda-louça. Viu Mary se aproximar de Carl por trás e colocar os braços
em volta da cintura dele.
“Vocês estão falando sério?”, perguntou Helen.
“Muito sério”, disse Jack.
“Sobre essa história de Alasca.”
Jack olhou bem para ela.
“Achei que você tinha dito alguma coisa”, disse Helen.
Carl e Mary voltaram. Carl trazia um saco grande de chocolates M&M e uma
garrafa de refrigerante. Mary chupou um picolé de laranja.
“Alguém quer um sanduíche?”, perguntou Helen. “A gente tem coisas para
fazer sanduíches.”
“Não é engraçado?”, disse Mary. “Você começa com a sobremesa e depois
passa para o prato principal.”
“É engraçado”, disse Jack.
“Você está sendo sarcástico, meu bem?”, perguntou Mary.
“Quem quer refrigerante?”, perguntou Carl. “Vai sair uma rodada de
refrigerante para todo mundo.”
Jack levantou o copo e Carl o encheu até a boca. Jack depositou o copo na
mesinha de centro, mas quando estendeu a mão para pegar o refrigerante
derrubou o copo, e o refrigerante caiu em cima do seu sapato.
“Droga”, disse Jack. “Só me faltava essa. Derramei bem no sapato.”
“Helen, tem uma toalha por aí? Traga uma toalha para o Jack”, disse Carl.
“O sapato é novo”, disse Mary. “Ele acabou de comprar.”
“Parece confortável”, disse Helen muito tempo depois, e entregou uma toa‐
lha para Jack.
“Foi o que eu falei pra ele”, disse Mary.
Jack tirou o sapato e o limpou com a toalha.
“Estragou”, disse. “O refrigerante não vai sair mais.”
Mary, Carl e Helen riram.
“Isso me lembra uma coisa que li no jornal”, disse Helen. Pôs o dedo na
ponta do nariz e estreitou os olhos. “Não estou conseguindo lembrar o que é”,
disse.
Jack calçou o sapato outra vez. Pôs os pés embaixo da luz da lâmpada e
olhou os pés juntos.
“O que foi que você leu?”, perguntou Carl.
“O quê?”, disse Helen.
“Você falou que leu uma coisa no jornal”, disse Carl.
Helen riu. “Eu estava pensando no Alasca e lembrei que acharam um
homem pré-histórico dentro de um bloco de gelo. Alguma coisa me fez
lembrar disso.”
“Não foi no Alasca”, disse Carl.
“Pode não ter sido, mas me lembrei disso”, falou Helen.
“Mas o que é que tem no Alasca, gente?”, perguntou Carl.
“Não tem nada no Alasca”, respondeu Jack.
“Ele está meio pra baixo hoje”, disse Mary.
“O que é que vocês vão fazer lá no Alasca?”, perguntou Carl.
“Não tem nada para fazer no Alasca”, disse Jack. Pôs os pés embaixo da
mesinha de centro. Depois moveu os pés outra vez para baixo da luz. “Alguém
quer um sapato novo?”, perguntou.
“Que barulho é esse?”, perguntou Helen.
Ficaram escutando. Alguma coisa estava arranhando a porta.
“Deve ser a Cindy”, disse Carl. “É melhor deixar ela entrar.”
“Já que você vai levantar, me traga um picolé”, pediu Helen. Jogou a cabeça
para trás e riu.
“Eu também quero, querido”, disse Mary. “O que foi que eu disse? Quis
dizer Carl”, disse Mary. “Desculpe. Pensei que estava falando com o Jack.”
“Picolés pra todo mundo”, disse Carl. “Quer um picolé também, Jack?”
“O quê?”
“Quer um picolé de laranja?”
“Um de laranja pra mim”, disse Jack.
“Saindo quatro picolés”, disse Carl.
Dali a pouco ele voltou com os picolés e entregou para todos. Sentou-se e
ouviram de novo o barulho na porta.
“Sabia que eu estava esquecendo alguma coisa”, disse Carl. Levantou-se e
abriu a porta da frente.
“Minha nossa”, disse. “Que coisa incrível. Acho que a Cindy foi jantar fora
esta noite. Ei, pessoal, vejam só isto.”
A gata entrou com um camundongo na sala, parou, olhou para eles, depois
levou o camundongo pelo corredor.
“Vocês viram o que eu acabei de ver?”, disse Mary. “Será que estou tendo
alucinações?”
Carl acendeu a luz do corredor. A gata carregou o camundongo pelo
corredor e entrou no banheiro.
“Ela está comendo aquele rato”, disse Carl.
“Acho que não quero que ela coma um rato no meu banheiro”, disse Helen.
“Faça ela sair de lá. Tem coisas das crianças lá dentro.”
“Ela não vai sair”, disse Carl.
“Mas e o rato?”, disse Mary.
“Que diabo”, disse Carl. “Cindy precisa aprender a caçar, se a gente vai
mesmo para o Alasca. Cindy precisa aprender a caçar.”
“Alasca?”, disse Helen. “Que história é essa de Alasca?”
“Não me pergunte”, disse Carl. Ficou parado perto da porta do banheiro e
observou a gata. “Mary e Jack disseram que vão para o Alasca. Cindy precisa
aprender a caçar.”
Mary apoiou o queixo nas mãos e olhou para o corredor.
“Ela está comendo o rato”, disse Carl.
Helen comeu o último salgadinho de milho. “Já falei pra ele que não quero
saber da Cindy comendo um rato dentro do meu banheiro. Carl?”, disse
Helen.
“O quê?”
“Tire essa gata do banheiro, já falei”, disse Helen.
“Pelo amor de Deus”, disse Carl.
“Olhem”, disse Mary. “Argh. A gata nojenta está vindo para cá”, disse Mary.
“O que ela está fazendo?”, perguntou Jack.
A gata arrastou o camundongo para baixo da mesinha de centro. Deitou
embaixo da mesa e cou lambendo o camundongo. Manteve-o seguro sob as
patas e cou lambendo devagar, da cabeça ao rabo.
“A gata está doidona mesmo”, disse Carl.
“Dá até um arrepio na gente”, disse Mary.
“A natureza é assim mesmo”, disse Carl.
“Vejam os olhos dela”, disse Mary. “Vejam só como ela olha pra gente. Está
muito doida, pode crer.”
Carl foi até o sofá e sentou ao lado de Mary. Mary chegou mais perto de Jack
para dar espaço a Carl. Pôs a mão no joelho de Jack.
Ficaram vendo a gata comer o camundongo.
“Vocês não dão comida pra essa gata, não?”, Mary perguntou a Helen.
Helen riu.
“Prontos pra fumar mais um?”, perguntou Carl.
“A gente tem que ir embora”, disse Jack.
“Por que toda essa pressa?”, disse Carl.
“Fiquem um pouco mais”, pediu Helen. “Vocês não precisam ir embora já.”
Jack olhou para Mary, que estava olhando para Carl. Carl olhava xo para
alguma coisa no tapete perto do seu pé.
Helen deu uma mordida no chocolate em sua mão.
“Pre ro os da embalagem verde”, disse Helen.
“Eu preciso trabalhar de manhã”, disse Jack.
“Ele está mesmo muito pra baixo hoje”, disse Mary. “Vocês querem ver um
cara pra baixo? Pois esse é um cara pra baixo.”
“Vamos indo?”, Jack disse para Mary.
“Alguém quer leite?”, perguntou Carl. “Tem um bocado de leite aí.”
“Já estou entupida de refrigerante”, disse Mary.
“Refrigerante não tem mais”, disse Carl.
Helen riu. Fechou os olhos, depois abriu e depois riu outra vez.
“A gente precisa ir”, disse Jack. Depois de algum tempo se levantou e disse:
“A gente veio de casaco? Acho que não trouxemos casacos”.
“O quê? Acho que não trouxemos casacos, não”, disse Mary. Ficou sentada.
“É melhor a gente ir”, disse Jack.
“Eles precisam ir embora”, disse Helen.
Jack pôs as mãos nas axilas de Mary e levantou-a do sofá.
“Até logo para vocês, pessoal”, disse Mary. Abraçou Jack. “Estou tão cheia
que mal consigo me mexer”, disse Mary.
Helen riu.
“Helen vive achando um motivo para rir”, disse Carl, e sorriu. “Do que é
que você está rindo, Helen?”
“Sei lá. Alguma coisa que a Mary falou”, disse Helen.
“O que foi que eu disse?”, perguntou Mary.
“Não lembro”, disse Helen.
“A gente tem que ir”, disse Jack.
“Tchau”, disse Carl. “Vão devagar.”
Mary tentou rir.
“Vamos”, disse Jack.
“Boa noite pra todo mundo”, disse Carl. “Boa noite, Jack”, Jack ouviu Carl
dizer muito, muito devagar.
Lá fora, Mary segurou no braço de Jack e foi andando de cabeça baixa.
Seguiram bem devagar pela calçada. Ele escutava os sons ásperos dos sapatos
de Mary. Ouviu os latidos fortes e bem marcados de um cachorro e por cima
disso o rumor do trânsito ao longe.
Mary levantou a cabeça. “Quando a gente chegar em casa, Jack, quero que
você trepe comigo, converse comigo, me divirta. Me faça rir, Jack. Preciso que
você me divirta esta noite.” Apertou o braço dele com mais força.
Jack sentia o sapato úmido. Destrancou a porta e acendeu a luz.
“Venha para a cama”, disse ela.
“Já vou”, disse ele.
Foi à cozinha e bebeu dois copos de água. Apagou a luz da sala e avançou
tateando a parede até chegar ao quarto.
“Jack!”, ela berrou. “Jack!”
“Minha nossa, estou aqui, pronto!”, disse ele. “Estou tentando acender a
luz.”
Achou a luz e ela sentou na cama. Os olhos dela brilhavam. Jack puxou o
pino do despertador e começou a tirar a roupa. Seus joelhos tremiam.
“Tem mais alguma coisa aí pra gente fumar?”, perguntou ela.
“Não temos nada”, disse ele.
“Então me prepare um drinque. A gente tem bebida em casa. Não vá me
dizer que a gente também não tem nada pra beber”, disse ela.
“Só um pouco de cerveja.”
Um olhou para o outro.
“Vou tomar a cerveja”, disse Mary.
“Quer mesmo tomar cerveja?”
Ela fez que sim com a cabeça bem devagar e mordeu o lábio.
Jack voltou com a cerveja. Mary estava sentada com o travesseiro em cima
do colo. Ele estendeu uma latinha de cerveja para ela, depois rastejou para
cima da cama e puxou as cobertas.
“Esqueci de tomar a pílula”, disse Mary.
“O quê?”
“Esqueci a pílula.”
Ele saiu da cama e voltou com a pílula. Mary abriu os olhos e Jack colocou a
pílula na ponta da língua que ela pôs para fora. Mary engoliu um pouco de
cerveja junto com a pílula e ele voltou para a cama.
“Segure isto aqui. Não consigo car de olhos abertos”, disse ela.
Jack colocou a latinha no chão, depois deitou de lado e olhou xo para o
corredor escuro. Ela passou o braço por cima das costelas de Jack e seus dedos
roçaram o peito dele.
“O que tem no Alasca?”, perguntou ela.
Ele se virou de bruços e se afastou devagar para a beirada do seu lado da
cama. Num instante ela estava roncando.
Na hora em que ele ia apagar a luz do abajur, achou ter visto alguma coisa
no corredor. Ficou olhando e achou que tinha visto dois olhos miúdos de
novo. Seu coração bateu com força. Ele piscou e continuou olhando xo para
lá. Inclinou-se à procura de alguma coisa para jogar. Pegou um pé do sapato.
Sentou-se na cama e segurou o sapato com as mãos. Ouviu Mary roncando e
cerrou os dentes. Esperou. Esperou que aquilo se mexesse outra vez, que
zesse o menor ruído.
Escola noturna
I sto aqui não tem nada a ver comigo. É sobre um casal de jovens com três
lhos que bem no início do verão passado se mudou para uma casa que
cava no meu itinerário. Pensei neles outra vez quando peguei o jornal no
domingo passado e vi uma foto de um jovem que tinha sido preso em San
Francisco por matar sua mulher e o namorado dela com um bastão de
beisebol. Não era o mesmo homem, claro, mas havia alguma semelhança por
causa da barba. Só que a situação era parecida demais para que eu não
pensasse no assunto.
Henry Robson é o nome. Sou carteiro, funcionário público federal, desde
1947. Vivi no oeste minha vida toda, exceto os três anos em que estive no
Exército durante a guerra. Estou divorciado há vinte anos, tenho dois lhos
que quase não vi durante todo esse tempo. Não sou um homem frívolo, nem,
na minha opinião, um homem sério. Minha convicção é de que um homem
deve ser um pouco das duas coisas hoje em dia. Acredito também no valor do
trabalho — quanto mais árduo, melhor. Um homem que não está trabalhando
tem tempo demais nas mãos, tempo demais para car pensando em si mesmo
e em seus problemas.
Estou convencido de que este era, em parte, o problema com o jovem que
morava aqui — não trabalhar. Mas a culpa também é um pouco dela. Da
mulher. Ela incentivava isso.
Beatniks, acho que vocês teriam chamado assim se tivessem visto. O
homem tinha uma barba pontuda e castanha e parecia estar precisando de
uma boa refeição e de fumar um charuto depois. A mulher era bonita, com o
cabelo comprido e escuro e o corpo em forma, isso não se pode negar. Mas é
chato para mim ser obrigado a dizer que ela não era uma boa esposa nem uma
boa mãe. Era pintora. O rapaz, eu não sei o que ele fazia — na certa alguma
coisa no mesmo ramo. Nenhum dos dois trabalhava. Mas pagavam o aluguel
e, de algum jeito, iam se virando — pelo menos durante o verão.
A primeira vez que vi os dois foi num sábado de manhã, lá pelas onze, onze
e quinze. Eu já havia percorrido dois terços do meu itinerário quando virei no
quarteirão deles e notei um Ford sedã 56 parado no jardim, com um grande
trailer de mudança preso à traseira. Só há três casas na rua Pine e a deles era a
última; as outras eram dos Murchison, que estavam em Arcata fazia pouco
menos de um ano, e dos Grant, que estavam aqui fazia dois anos. Murchison
trabalhava em Simpson Redwood e Gene Grant era cozinheiro no turno da
manhã no restaurante Denny’s. Tinha essas duas, depois um lote vazio, depois
a casa na ponta, que tinha sido dos Cole.
O rapaz estava do lado de fora de casa, no jardim, atrás do trailer, e ela saía
pela porta da frente naquele momento, com um cigarro na boca, uma calça de
brim branca bem apertada e uma camiseta branca, de homem. Ela parou ao
me ver e cou me observando descer pela calçada. Retardei o passo quando
cheguei à altura da caixa de correio deles e z um cumprimento com a cabeça
na direção dela.
“Já estão se instalando na casa nova?”, perguntei.
“Ainda vai demorar um pouco”, ela respondeu e tirou um punhado de
cabelo da frente da testa, enquanto continuava a fumar.
“Isso é bom”, falei. “Bem-vindos a Arcata.”
Me senti meio sem graça depois de dizer isso. Não sei por quê, mas sempre
notei que me sentia meio sem graça nas poucas vezes em que cava perto
daquela mulher. Foi uma das coisas que ajudaram a não vê-la com bons olhos
no início.
Ela me dirigiu um sorriso morno e comecei a ir embora, quando o rapaz —
seu nome era Marston — deu a volta por trás do trailer carregando uma
grande caixa de papelão com brinquedos. Bom, Arcata não é nem uma cidade
pequena nem uma cidade grande, se bem que acho que é preciso reconhecer
que está mais para pequena do que para grande. Arcata não é o m do
mundo, de jeito nenhum, mas a maioria das pessoas que moram aqui ou
trabalha nas serrarias ou tem alguma coisa a ver com a indústria da pesca, ou
então trabalha numa daquelas lojas do centro. Por aqui, as pessoas não estão
acostumadas a ver homens barbados — ou homens que não trabalham, por
falar nisso.
“Oi”, falei. Estendi a mão quando ele colocou a caixa de papelão em cima
do para-lama da frente. “Meu nome é Henry Robinson. Vocês acabaram de
chegar, não é?”
“Ontem à tarde”, disse ele.
“Que viagem! Levamos catorze horas só para vir de San Francisco”, disse a
mulher lá da varanda. “Arrastando essa droga de trailer.”
“Puxa vida”, disse e balancei a cabeça. “San Francisco? Eu estive em San
Francisco há pouco tempo, deixe eu ver, foi em abril ou março.”
“Você foi para lá, é?”, disse ela. “O que você fez em San Francisco?”
“Ah, na verdade nada. Desço até lá uma ou duas vezes por ano. Dou um
pulo no Cais dos Pescadores e vejo uma partida dos Giants. Só isso.”
Houve uma pequena pausa e Marston cou remexendo alguma coisa na
grama com o dedo do pé. Fiz menção de ir embora. Os garotos escolheram
aquele momento para sair em disparada pela porta da frente, berrando e
chorando, na direção da extremidade da varanda. Quando aquela porta de tela
bateu com força, pensei que Marston ia explodir de raiva. Mas a mulher cou
parada, de braços cruzados, fria feito um pepino, nem piscou o olho. Ele não
parecia nem um pouco bem. Fazia movimentos bruscos, rápidos, toda vez que
ia fazer alguma coisa. E seus olhos — eles pousavam na gente, depois vagavam
não se sabe para onde e depois pousavam na gente outra vez.
Tinha aqueles três pirralhos, duas menininhas de cabelo cacheado de uns
quatro ou cinco anos e um garotinho miúdo, sempre colado nelas.
“Que gracinhas”, falei. “Bom, agora preciso ir. Acho que vão querer trocar o
nome na caixa de correio.”
“Claro”, disse ele. “Claro. Vou cuidar disso daqui a um ou dois dias. Mas na
verdade a gente não está esperando receber nenhuma correspondência por um
tempo, ainda.”
“Nunca se sabe”, falei. “Nunca se sabe o que vai aparecer dentro dessa bolsa
velha de correio. Não custa estar preparado.” Comecei a ir embora. “Aliás, se
você quiser um emprego nas serrarias, posso dar o nome de uma pessoa para
você procurar em Simpson Redwood. Um amigo meu é capataz lá. Na certa
ele vai ter alguma coisa para você...” Calei o bico, ao notar que ele não parecia
nem um pouco interessado.
“Não, obrigado”, disse ele.
“Ele não está procurando emprego”, interferiu a mulher.
“Bem, então até logo.”
“Até logo”, disse Marston.
Ela não disse mais nenhuma palavra.
Isso foi num sábado, como eu disse, um dia antes do Dia dos Veteranos de
Guerra. Enforcamos a segunda-feira e só voltei a passar pela casa deles na
terça-feira. Não posso dizer que quei surpreso ao ver o trailer de mudança
ainda no jardim, mas o que me surpreendeu foi ver que ele ainda não tinha
sido descarregado. Eu diria que um quarto da mudança havia sido levado para
a varanda — uma cadeira estofada, uma cadeira de cozinha cromada e uma
caixa grande de papelão cheia de roupas, com as tampas de cima abertas para
os lados. Outra quarta parte da mudança devia ter sido levada para dentro de
casa, e o resto da tralha continuava dentro do trailer. Os garotos batiam nas
laterais do trailer com pedaços de pau enquanto entravam e saíam pela porta
de trás. A mãe e o pai não estavam à vista.
Na quinta-feira, vi o rapaz no jardim outra vez e o lembrei de que era bom
trocar o nome da caixa de correio.
“É uma coisa que tenho de arranjar um tempo para fazer”, disse ele.
“Não tem pressa”, falei. “Há muita coisa para resolver quando a gente se
muda de cidade. As pessoas que moravam aqui antes, os Cole, foram embora
dois dias antes de vocês chegarem. Ele foi trabalhar em Eureka. No
Departamento de Caça e Pesca.”
Marston afagou a barba e olhou para o lado, como se estivesse pensando em
outra coisa.
“Depois a gente se vê”, falei.
“Até logo”, disse ele.
Bem, para encurtar a conversa, ele nunca trocou o nome da caixa de correio.
Um tempinho depois eu levei uma correspondência àquele endereço e ele me
disse algo do tipo: “Marston? Sim, é pra gente, Marston... Preciso trocar o
nome na caixa de correio um dia desses. Vou pegar uma lata de tinta e pintar
por cima do outro nome... Cole”, e o tempo todo seus olhos cavam voando
sem rumo de um lado para o outro. Depois me olhou mais ou menos com o
canto dos olhos e balançou o queixo de leve uma ou duas vezes. Mas ele nunca
trocou o nome da caixa de correio e, depois de um tempo, deixei pra lá e
esqueci o assunto.
A gente ouve boatos. Em diferentes ocasiões, ouvi dizer que ele era um ex-
presidiário em condicional que veio para Arcata a m de se livrar do ambiente
insalubre de San Francisco. Segundo essa história, a mulher era sua esposa,
mas nenhum dos lhos era dele. Outra história dizia que ele havia cometido
um crime e estava se escondendo aqui. Mas pouca gente punha fé nessa
versão. Ele simplesmente não parecia o tipo de sujeito que faria algo de fato
criminoso. A história em que a maior parte do pessoal parecia acreditar, ou pelo
menos a história que mais circulava, era a mais terrível de todas. A mulher era
viciada em drogas, é o que dizia essa história, e o marido a tinha trazido para
cá a m de ajudá-la a se livrar do vício. Como prova, a visita de Sallie Wilson
era sempre mencionada — Sallie Wilson, do serviço social. Ela foi à casa deles
uma tarde e depois disse, em tom sério, que tinha alguma coisa meio estranha
neles — na mulher em especial. Num momento a mulher estava sentada,
escutando as palavras de Sallie — cheia de atenção, ao que parecia — e no
instante seguinte levantava, com a Sallie ainda falando, e começava a trabalhar
na sua pintura, como se a Sallie nem estivesse lá. E também o jeito como ela
beijava e fazia carinho nos lhos, para depois, de uma hora para outra,
começar a berrar com eles sem nenhum motivo aparente. Isso sem falar no
jeito como os olhos dela cavam quando a gente chegava perto, disse Sallie.
Mas Sallie Wilson andava xeretando e metendo o bedelho em tudo havia
muitos anos, sob o disfarce de assistente social.
“Nunca se sabe”, eu dizia quando alguém puxava o assunto. “Quem é que
pode saber? Vai ver ele vai começar a trabalhar agora.”
De qualquer forma, o que me parecia era que os dois tinham alguma
encrenca lá em San Francisco, um problema sei lá de que natureza, e
resolveram car bem longe dele. Embora fosse difícil dizer por que acabaram
escolhendo Arcata para morar, pois com toda a certeza não tinham vindo em
busca de trabalho.
***
Nas primeiras poucas semanas, não havia nenhuma correspondência de que
se pudesse falar, a não ser algumas circulares da Sears, da Western Auto e
outras parecidas. Aí começaram a chegar umas cartas, talvez uma ou duas por
semana. Às vezes eu via um deles do lado de fora da casa quando eu passava,
às vezes não. Mas as crianças estavam sempre lá, corriam para fora e para
dentro da casa ou brincavam no terreno vazio ao lado. Claro, nunca havia sido
uma casa-modelo, mas depois que eles se mudaram para lá a erva daninha
brotou à vontade e a grama que havia se tornou amarelada e morreu. Isso é
uma coisa que dá raiva de ver. Eu soube que o velho Jessup foi uma ou duas
vezes pedir que jogassem água nas plantas, mas eles alegaram que não tinham
dinheiro para comprar uma mangueira. Assim ele deixou uma mangueira com
eles. Depois vi as crianças brincando com a mangueira pelo terreno, e isso foi
o m daquela história. Por duas vezes, vi um pequeno carro esporte branco
parado na frente da casa, um carro que não tinha vindo de nenhum lugar por
aqui.
Só uma vez tive um contato mais direto com a mulher. Havia uma carta
com tarifa postal a cobrar do destinatário e fui até a porta da casa com ela.
Uma das menininhas me deixou entrar e foi correndo chamar a mãe. A casa
estava atulhada de uma mixórdia de móveis velhos e com roupas
simplesmente jogadas para tudo quanto era lado. Mas não era o que se podia
chamar de uma casa suja. Talvez também não fosse limpa, mas suja também
não era. Um sofá velho e uma poltrona cavam junto a uma das paredes da
sala. Abaixo da janela, havia uma estante de livros feita de tijolos e tábuas,
entupida de livrinhos em brochura. Num canto, uma pilha de pinturas viradas
de costas e, num lado, uma outra pintura sobre um cavalete, coberta por um
lençol.
Pus minha bolsa de carteiro no outro ombro e aguentei rme, mas comecei
a ter vontade de pagar eu mesmo a tarifa de entrega do correio. Dei uma
espiada na direção do cavalete enquanto esperava, e estava prestes a me
esgueirar até lá e levantar o lençol, quando ouvi passos.
“Em que posso ajudar?”, disse ela, aparecendo no corredor com um ar nem
um pouco amistoso.
Toquei o dedo na pala do meu boné e disse: “Tem uma carta aqui com a
tarifa a cobrar do destinatário, com a sua licença”.
“Deixe eu ver. De quem é? Puxa, é do Jer! Aquele doido! Mandar uma carta
sem selo pra gente. Lee!”, gritou ela. “Chegou uma carta do Jerry!” Marston
entrou, mas ele não parecia muito contente. Eu me apoiei num pé e depois no
outro, só esperando.
“Vou pagar”, disse ela, “já que é do velho Jerry. Tome aqui. Agora até logo.”
E as coisas continuaram desse jeito — quer dizer, de qualquer jeito. Não
chego a dizer que as pessoas por aqui se habituaram a eles — não eram o tipo
de gente com que você se acostuma de verdade. Mas depois de um tempo
ninguém mais parecia prestar muita atenção neles. Podiam car olhando a
barba dele se o vissem empurrando um carrinho de compras em Safeway, mas
só isso. Ninguém ouviu mais nenhuma história.
Então, um dia eles sumiram. Em duas direções diferentes. Depois quei
sabendo que na semana anterior a mulher tinha ido embora com outra pessoa
— um homem — e que depois de alguns dias o rapaz levou os lhos para a
casa da mãe dele, lá em Redding. Durante seis dias corridos, desde a quinta-
feira até a quarta-feira seguinte, a correspondência deles cou na caixa do
correio. Todas as persianas estavam fechadas e ninguém sabia ao certo se eles
tinham dado no pé para sempre ou não. Mas naquela quarta-feira vi o Ford
parado no jardim outra vez, todas as persianas ainda estavam fechadas, mas a
correspondência tinha sido recolhida.
Do dia seguinte em diante, ele passou a car parado junto à caixa do correio
à minha espera todos os dias, para receber a correspondência, ou então
sentado na escadinha da varanda fumando um cigarro, à minha espera, era
fácil perceber. Quando me via chegando, levantava, esfregava os fundilhos da
calça e vinha andando até a caixa do correio. Se acontecia de eu ter alguma
correspondência, notava que ele dava uma olhada no remetente antes mesmo
de eu lhe entregar a carta. Raramente nos falávamos, apenas fazíamos um
cumprimento com a cabeça, se calhasse de os nossos olhos se encontrarem, o
que não acontecia muitas vezes. Mas ele estava sofrendo — qualquer um podia
ver isso — e eu gostaria de ajudar o rapaz de algum jeito, se pudesse. Mas não
sabia bem o que dizer.
Numa manhã, mais ou menos uma semana depois do seu regresso, vi o
rapaz andando de um lado para o outro na frente da caixa de correio, as mãos
en adas nos bolsos traseiros da calça, e aí resolvi falar alguma coisa. O que
era, eu ainda não sabia, mas com certeza eu ia dizer alguma coisa. Ele estava
de costas para mim enquanto eu vinha subindo pela calçada. Quando me
aproximei, ele se virou de repente, e seu rosto tinha uma expressão que fez as
palavras congelarem em minha boca. Parei onde eu estava, com a
correspondência dele na mão. O rapaz deu dois passos na minha direção e
então entreguei-lhe a carta sem dar um pio. O rapaz olhou xo para ela, como
se estivesse desnorteado.
“Locatário”, disse.
Era uma circular de Los Angeles anunciando um plano de seguro hospitalar.
Eu já tinha entregado pelo menos umas setenta e cinco iguais naquela manhã.
Ele a dobrou ao meio e voltou para dentro da casa.
No dia seguinte, lá estava ele lá fora, do mesmo jeito de sempre. Trazia sua
velha expressão no rosto, mas parecia mais controlado do que no dia anterior.
Naquele dia pressenti que eu sabia o que ele tanto esperava ali. Descobri o que
era de manhã na agência de correio, na hora em que eu organizava a
correspondência em maços. Era um envelope comum, branco, endereçado
com uma letra manuscrita de mulher que tomava quase todo o espaço do
envelope. Tinha um carimbo de correio de Portland, e a indicação do
remetente mostrava as iniciais J. D. e o endereço de uma rua em Portland.
“Bom dia”, eu disse, entregando a carta.
O rapaz tomou-a de mim sem dizer uma palavra e cou completamente
pálido. Cambaleou um instante e depois começou a voltar para casa, erguendo
a carta contra a luz.
Gritei atrás dele: “Ela não vale nada, garoto. Vi assim que pus os olhos nela.
Por que não tira ela da cabeça? Por que não vai trabalhar e esquece? O que é
que você tem contra o trabalho? Foi o trabalho, trabalhar dia e noite, que me
fez esquecer, quando estive na mesma situação em que a sua e tinha uma
guerra lá nas bandas onde eu andava...”.
Depois disso ele não cou mais esperando fora de casa e só permaneceu por
lá mais cinco dias. Porém, cheguei a ver o rapaz de relance todos os dias, à
minha espera do mesmo jeito, só que parado por trás da janela e me olhando
através da cortina. Ele só saía depois que eu tinha passado; aí eu ouvia o
barulho da porta de tela. Se eu olhava para trás, ele parecia afobado para
chegar logo à caixa de correio.
Na última vez que vi o rapaz, ele estava parado junto à janela e parecia
calmo e em paz. As cortinas estavam meio fechadas, todas as persianas
estavam abertas, e na ocasião achei que ele arrumava suas coisas para ir
embora. Mas pela expressão em seu rosto logo vi que daquela vez ele não
estava me esperando. Olhava além de mim, acima de mim, parecia olhar por
cima dos telhados e das árvores, para o sul. Ele continuou parado, olhando
daquele jeito, mesmo depois que deixei a casa para trás e segui adiante pela
calçada. Olhei para trás. Pude ver o rapaz ainda parado junto à janela. A
sensação foi tão forte que tive de me virar e olhar também na direção para
onde ele olhava. Mas, como vocês podem adivinhar, nada vi senão as mesmas
velhas árvores, as montanhas e o céu de sempre.
No dia seguinte ele tinha ido embora. Não deixou endereço. Às vezes
aparece uma ou outra correspondência para ele, para a mulher dele, ou para
os dois. Se é coisa de primeira classe, a gente segura por um dia, depois manda
de volta para o lugar de onde veio. Não vem muita coisa. E eu não ligo. De
qualquer forma é só trabalho, e sempre co satisfeito de ter trabalho.
A mulher do estudante
E le estava lendo para ela umas coisas de Rilke, poeta que ele admirava,
quando ela pegou no sono com a cabeça no travesseiro dele. Ele gostava
de ler em voz alta e lia bem — uma voz ressonante e segura, ora com um
timbre grave e sombrio, ora mais alta, ora vibrante. Nunca desviava os olhos
da página quando lia, e só parava para esticar o braço na direção da mesinha
de cabeceira e pegar um cigarro. Era uma voz envolvente que a arrastou para
um sonho de caravanas que partiam de cidades cercadas por muralhas e
homens barbados vestidos em túnicas. Ela ouviu sua leitura durante alguns
minutos, depois fechou os olhos e apagou.
Ele continuou lendo em voz alta. Os lhos estavam dormindo havia horas e
lá fora de vez em quando os pneus de um carro deslizavam pelo asfalto
molhado. Depois de um tempo, ele baixou o livro e virou-se na cama para
alcançar o interruptor do abajur. Ela abriu os olhos de repente, como que
assustada, e piscou duas ou três vezes. As pálpebras dela pareciam a ele
estranhamente escuras e carnudas enquanto baixavam e subiam por cima dos
olhos vidrados e xos. Ele olhou bem para ela.
“Você está sonhando?”, perguntou ele.
Ela fez que sim com a cabeça, levantou a mão e tocou os dedos nos rolinhos
de plástico nos dois lados da cabeça. No dia seguinte seria sexta-feira, dia em
que ela tomava conta de todas as crianças de quatro a sete anos no
condomínio do edifício Woodlawn. Ele continuou olhando para ela, apoiado
no cotovelo, ao mesmo tempo que, com a mão livre, tentava segurar o livro
dobrado ao meio, na costura. A pele do rosto dela era lisa e as bochechas
proeminentes; às vezes ela insistia em dizer às amigas que as maçãs de seu
rosto vinham do seu pai, que tinha um quarto de sangue da tribo dos índios
nez perce.
Então: “Faz um sanduichezinho para mim ou alguma coisa, Mike. Com
manteiga, alface e sal no pão”.
Ele não fez nada e não disse nada, porque queria dormir. Mas quando abriu
os olhos ela ainda estava acordada, olhando para ele.
“Não está conseguindo dormir, Nan?”, perguntou ele em tom bem solene.
“Já é tarde.”
“Eu gostaria de comer alguma coisa antes”, respondeu ela. “Minhas pernas e
meus braços estão doendo não sei por quê. E estou com fome.”
Ele resmungou de modo extravagante ao rolar para fora da cama.
Fez um sanduíche para ela e trouxe num pires. Ela estava sentada na cama e
sorriu quando ele entrou no quarto, depois ajeitou um travesseiro atrás das
costas dela enquanto ela pegava o pires. Ele achou que ela estava com um jeito
de paciente de hospital naquela camisola branca.
“Que sonhozinho mais engraçado eu tive.”
“O que você estava sonhando?”, perguntou ele, se en ando na cama e
virando de costas para ela. Ficou olhando a mesinha de cabeceira, esperando.
Depois fechou os olhos lentamente.
“Você quer mesmo ouvir?”, perguntou ela.
“Claro.”
Ela se acomodou mais confortavelmente no travesseiro e tirou uma migalha
de pão dos lábios.
“Bem. Parecia um desses sonhos bem compridos mesmo, sabe? Com todo
tipo de relações acontecendo, mas não consigo lembrar tudo agora. Estava
bem claro na hora em que acordei, mas agora está começando a se apagar. Há
quanto tempo estou acordada, Mike? Na verdade, acho que não importa
muito. De todo jeito, acho que aconteceu que a gente estava passando a noite
em algum lugar. Não sei onde as crianças estavam, éramos só nós dois em
algum hotelzinho ou coisa parecida. Ficava num lago que não era familiar.
Havia outro casal, de pessoas mais velhas, e eles queriam levar a gente para
passear no barco a motor deles.” Ela riu ao lembrar e inclinou-se para a frente,
se afastando do travesseiro. “Depois disso lembro que a gente estava no
atracadouro do barco. Só que aconteceu de ter apenas um lugar no barco,
uma espécie de banquinho na parte da frente, e só dava para três pessoas. Eu e
você começamos a discutir sobre quem ia se sacri car e car todo espremido
na popa no barco. Você dizia que era você e eu dizia que era eu. Mas fui eu
que acabei me espremendo na parte de trás do barco. Era tão estreito que
minhas pernas doíam e tive medo de que a água entrasse pelos lados do barco.
Aí acordei.”
“Que sonho”, ele conseguiu falar e, sonolento, sentiu que devia dizer mais
alguma coisa. “Lembra da Bonnie Travis? A mulher do Fred Travis? A Bonnie
tinha sonhos coloridos, é o que ela dizia.”
Ela olhou para o sanduíche em sua mão e deu uma mordida. Depois de
engolir, passou a língua por trás dos lábios e equilibrou o pires no colo,
enquanto esticava a mão para trás e ajeitava o travesseiro. Depois sorriu e
recostou-se de novo no travesseiro.
“Lembra aquela vez em que passamos a noite em Tilton River, Mike?
Quando você pescou aquele peixe grandão no outro dia de manhã, lembra?”
Pôs a mão no ombro dele. “Não lembra?”, perguntou.
Ela lembrava. Depois de car os últimos anos quase sem pensar naquilo, a
lembrança tinha começado a voltar. Foi um ou dois meses depois de se casa‐
rem e tinham saído para passar um m de semana fora. Estavam sentados
junto a uma fogueirazinha naquela noite, puseram uma melancia na água
gelada do rio e ela havia fritado presunto com ovos e feijão enlatado para o
jantar, e na manhã seguinte fez panquecas com presunto e ovos na mesma
frigideira enegrecida. Ela queimou a frigideira nas duas vezes em que fez
comida e não conseguiram de jeito nenhum ferver a água para o café, mas foi
um dos melhores momentos da vida deles. Lembrava que ele também tinha
lido para ela naquela noite: Elizabeth Browning e alguns poemas do Rubayat.
Havia tantos cobertores em cima deles que ela mal conseguia mexer os pés
debaixo de todo aquele peso. Na manhã seguinte, ele sgou uma truta grande
e as pessoas chegaram a parar os carros na beira da estrada do outro lado do
rio só para vê-lo com o peixe.
“E então? Lembra ou não lembra?”, ela perguntou, dando um tapinha em
seu ombro. “Mike?”
“Lembro”, disse ele. Virou um pouco para o lado, abriu os olhos. Ele não
lembrava muito bem, pensou. O que lembrava era que tinha sempre o cabelo
penteado com todo o cuidado e umas ideias desenxabidas sobre a vida e a arte,
e agora não queria se lembrar disso.
“Faz muito tempo isso tudo, Nan”, disse ele.
“A gente tinha acabado de terminar o ensino médio. Você nem tinha
começado a faculdade”, disse ela.
Ele esperou e depois se ergueu um pouco, apoiado no braço, e virou a
cabeça para olhá-la por cima do ombro. “Já terminou aquele sanduíche, Nan?”
Ela ainda estava sentada na cama.
Ela fez que sim com a cabeça e lhe deu o pires.
“Vou apagar a luz”, disse ele.
“Se você quiser”, disse ela.
Depois ele se afundou na cama outra vez e esticou os pés, até eles tocarem
os pés dela. Ficou quieto um instante e em seguida tentou relaxar.
“Mike, você não está dormindo, está?”
“Não”, disse ele. “Nem de longe.”
“Bem, então escute, não durma antes de mim”, disse ela. “Não quero
acordar sozinha.”
Ele não respondeu, mas chegou um pouquinho mais para perto dela.
Quando ela pôs o braço em cima dele e espalmou a mão sobre seu peito, ele
segurou os dedos dela e apertou de leve. Mas pouco depois sua mão tombou
na cama e ele deu um suspiro.
“Mike? Querido? Eu queria que você esfregasse minhas pernas. Minhas
pernas estão doendo”, disse ela.
“Puxa”, disse ele. “Eu estava num sono profundo.”
“Bem, eu queria que você esfregasse minhas pernas e conversasse comigo.
Meus ombros também estão doendo. Mas especialmente as pernas.”
Ele se virou e começou a esfregar as pernas dela, depois pegou no sono
outra vez, com as mãos no quadril dela.
“Mike?”
“O que é, Nan? Me diga o que é.”
“Queria que você me esfregasse toda”, disse ela, deitando-se de costas.
“Minhas pernas e meus braços estão doendo hoje.” Ergueu os joelhos para
formar uma torre com as cobertas.
Ele abriu os olhos por um instante, no escuro, e depois fechou. “Dores de
crescimento, é?”
“Ah, meu Deus, é sim”, disse ela, remexendo os dedos dos pés, feliz por tê-lo
arrancado do sono. “Quando eu tinha dez, onze anos, já era tão grande como
agora. Você devia ter visto só como eu era! Eu cresci tão depressa naquela
época que minhas pernas e meus braços doíam o tempo todo. Com você
não?”
“Comigo não o quê?”
“Nunca sentiu que estava crescendo?”
“Não que eu me lembre”, disse ele.
A nal ele se ergueu um pouco, apoiado no cotovelo, riscou um fósforo e
olhou o relógio. Virou o travesseiro para o lado mais fresco e deitou de novo.
Ela disse: “Você está dormindo, Mike. Eu queria que você conversasse”.
“Tá legal”, disse ele sem se mexer.
“Só me abrace e me faça dormir. Não consigo dormir”, disse ela.
Ele se virou e pôs o braço por cima do ombro dela, enquanto ela virava de
lado e cava de cara para a parede.
“Mike?”
Ele bateu de leve no pé dela com os dedos do pé.
“Por que não me diz quais são todas as coisas de que você gosta e também
as coisas de que não gosta?”
“Agora não estou lembrando de nenhuma”, disse ele. “Me diga você, se
quiser”, disse ele.
“Só se você prometer que depois vai contar para mim. Promete?”
Ele bateu de leve no pé dela outra vez.
“Bem...”, disse ela e virou-se de costas, satisfeita. “Eu gosto de comidas boas,
bifes e batatas coradas, coisas assim. Gosto de livros bons e de revistas boas,
gosto de andar de trem à noite e gostei das vezes em que viajei de avião.” Ela
parou. “Claro, nada disso está na ordem de preferência. Mas gosto disso, sim,
andar de avião. Tem um momento, quando a gente sai do chão, que dá a
sensação de que tudo o que vai acontecer é bom.” Pôs a perna meio
atravessada sobre a canela dele. “Gosto de car acordada até tarde da noite e
de car na cama até tarde no dia seguinte. Eu gostaria que a gente pudesse
fazer isso todo dia, e não só de vez em quando. E também gosto de sexo.
Gosto de ser tocada de vez em quando, numa hora em que eu não estou
esperando. Gosto de ir ao cinema e tomar cerveja com os amigos depois do
lme. Gosto de ter amigos. Gosto muito de Janice Hendricks. Gostaria de ir
dançar pelo menos uma vez por semana. Gostaria de usar roupas bonitas o
tempo todo. Gostaria de poder comprar roupas bonitas para as crianças toda
vez que elas precisassem, sem ter de car esperando. Agora mesmo a Laurie
está precisando de uma roupinha nova para a Páscoa. E eu gostaria de arranjar
um terninho novo ou alguma coisa desse tipo para o Gary. Ele já está crescido.
Eu também gostaria que você tivesse um terno novo. Claro que você precisa
mais de um terno do que ele. E eu também gostaria que a gente tivesse uma
casa própria. Gostaria de parar de viver mudando de casa todo ano, ou de dois
em dois anos. Acima de tudo”, disse ela, “gostaria que nós dois levássemos
uma vida boa e direita, sem precisarmos viver o tempo todo preocupados com
dinheiro, contas e coisas assim. Você está dormindo”, disse.
“Não estou, não”, disse ele.
“Não consigo pensar em mais nada. Agora é a sua vez. Me diga do que você
gostaria.”
“Não sei. Uma porção de coisas”, resmungou.
“Bem, então me diga. A gente só está conversando, não é?”
“Eu queria que você me deixasse sossegado, Nan.” Virou-se para o seu lado
da cama outra vez e deixou o braço pender pela beirada. Ela também virou e
apertou-se nele.
“Mike?”
“Meu Deus”, disse ele. E depois: “Tudo bem. Deixe eu esticar as pernas um
instante, depois eu acordo”.
Dali a pouco ela disse: “Mike? Você está dormindo?”. Ela sacudiu o ombro
dele delicadamente, mas não obteve resposta. Ficou deitada por um tempo,
toda encostada no corpo dele, tentando dormir. No início cou quieta, sem se
mexer, grudada nele e respirando bem de leve, de modo bem ritmado. Mas
não conseguia dormir.
Tentou não escutar a respiração dele, só que aquilo começou a incomodá-la.
Tinha um som vindo de dentro do nariz dele quando ele respirava. Ela tentou
controlar a própria respiração de modo a inspirar e expirar no mesmo ritmo
que ele. Não adiantou. O barulhinho no nariz dele estragava tudo. Também
havia um chiado broso no peito dele. Ela se virou outra vez e aninhou o
quadril junto ao quadril dele, esticou o braço até a beirada e, com cuidado,
encostou os dedos na parede fria. As cobertas tinham embolado no pé da cama
e ela sentia uma corrente de ar quando mexia as pernas. Ouviu duas pessoas
subindo a escada rumo ao apartamento vizinho. Alguém soltou uma
gargalhada gutural antes de abrir a porta. Depois ela ouviu uma cadeira
arrastar no chão. Virou-se de novo. Deram a descarga no banheiro do vizinho,
e depois deram a descarga outra vez. Ela se virou de novo, cou de costas
dessa vez, e tentou relaxar. Lembrou-se de uma reportagem que tinha lido
uma vez numa revista: se todos os ossos, os músculos e as articulações do
corpo pudessem se combinar num relaxamento perfeito, era quase seguro que
o sono viria. Respirou fundo, fechou os olhos e cou totalmente parada, os
braços retos ao lado do corpo. Tentou relaxar. Tentou imaginar as pernas
suspensas, mergulhadas em alguma coisa parecida com uma névoa na. Virou
de barriga para baixo. Fechou os olhos, depois abriu. Pensou nos dedos da
mão meio curvados, pousados no lençol na frente dos seus lábios. Levantou
um dedo e baixou até o lençol. Tocou o polegar na aliança de casamento no
seu dedo anelar. Virou de lado e depois de costas outra vez. Depois começou a
sentir medo e, num momento irracional de ansiedade, rezou para pegar no
sono.
Por favor, Deus, me faça dormir.
Tentou dormir.
“Mike”, sussurrou.
Não houve resposta.
Ouviu um dos lhos se virar na cama e esbarrar na parede no quarto ao
lado. Ficou escutando com toda a atenção, mas não houve nenhum outro
barulho. Ela pôs a mão embaixo do seio esquerdo e sentiu as batidas do
coração subindo por dentro dos dedos. Virou de barriga para baixo e começou
a chorar, a cabeça fora do travesseiro, a boca no lençol. Ela chorou. Depois se
levantou pelo pé da cama.
Lavou o rosto e as mãos no banheiro. Escovou os dentes. Escovou os dentes
e olhou para a sua cara no espelho. Na sala, aumentou a calefação. Depois
sentou-se à mesa da cozinha, levantando os pés por baixo da camisola. Chorou
outra vez. Acendeu um cigarro do maço que estava na mesa. Depois de um
tempo, voltou ao quarto e pegou o roupão.
Foi dar uma olhada nos lhos. Puxou o cobertor sobre os ombros do
menino. Voltou à sala e sentou-se na poltrona. Folheou uma revista e tentou
ler de novo. Olhou com atenção as fotos e depois tentou ler de novo. De vez
em quando passava um carro na rua e ela erguia os olhos para lá. Toda vez
que passava um carro, ela parava, escutava, esperando. E depois voltava a
olhar a revista. Tinha uma pilha de revistas na estante junto à poltrona. Ela
folheou todas.
Quando começou a clarear lá fora, ela levantou. Andou até a janela. O céu
sem nuvens acima dos morros começava a car branco. As árvores e a la de
prédios de dois andares do outro lado da rua começavam a ganhar forma,
enquanto ela observava. O céu se tornou mais branco, a luz se expandiu
depressa por trás dos morros. Exceto nas vezes em que cou acordada junto
com um dos lhos (o que ela não contava, porque então nunca olhava para
fora, apenas corria de volta para a cama ou para a cozinha), tinha visto poucas
alvoradas na vida, e mesmo assim só quando era pequena. Sabia que nenhum
nascer do sol fora como aquele. Nem nos lmes que viu, nem nos livros que
leu, ela tinha visto um nascer do sol tão terrível como aquele.
Esperou e depois foi até a porta, destrancou-a e saiu para a varanda. Fechou
bem o roupão até o pescoço. O ar estava úmido e frio. Aos poucos, as coisas
iam se tornando visíveis. Deixou que seus olhos vissem tudo, até se prenderem
na luz vermelha e cintilante acima da torre de rádio no alto do morro em
frente.
Ela atravessou o apartamento na penumbra, de volta a seu quarto. Ele
estava embolado no meio da cama, as cobertas amontoadas sobre os ombros,
a cabeça meio en ada embaixo do travesseiro. Parecia desesperado no seu
sono pesado, os braços esparramados no lado dela na cama, o maxilar fechado
com força. Enquanto ela olhava, o quarto foi cando muito claro e os lençóis
sem brilho foram se tornando brutalmente brancos diante de seus olhos.
Ela molhou os lábios fazendo um barulho pegajoso e se ajoelhou. Estendeu
as mãos sobre a cama.
“Deus”, disse ela. “Deus, o senhor pode nos ajudar, Deus?”, disse ela.
Ponha-se no meu lugar
F iquei muito surpresa com sua carta perguntando sobre meu lho. Como
o senhor soube que eu estava aqui? Mudei para cá faz alguns anos, logo
depois que a história começou. Ninguém por aqui sabe quem eu sou, mesmo
assim eu tenho medo. É por ele que tenho medo. Quando vejo o jornal,
balanço a cabeça e co pensando. Leio o que escrevem sobre ele e me
pergunto se esse homem é de fato meu lho, se ele está mesmo fazendo essas
coisas.
Ele era um bom menino, exceto por suas explosões de raiva e por não
conseguir falar a verdade. Não sei dizer a você qual a razão disso. Começou
num verão, nos feriados de 4 de Julho, quando ele tinha mais ou menos quinze
anos. Nossa gata Trudy sumiu e cou fora de casa a noite toda e o dia seguinte
inteiro. A sra. Cooper, que morava nos fundos, veio me contar na outra noite
que Trudy tinha entrado se arrastando no seu quintal naquela tarde, e morreu.
Trudy estava toda cortada, ela disse, mas reconheceu que era Trudy. O sr.
Cooper enterrou o corpo.
Cortada?, perguntei. Como assim, cortada?
O sr. Cooper viu dois meninos no terreno baldio en ando bombinhas nas
orelhas de Trudy e no seu, bem, a senhora sabe o quê. Ele tentou pegar os
garotos, mas eles fugiram correndo.
Quem, quem seria capaz de fazer uma coisa dessas? Ele não viu quem era?
Ele não conhecia o outro menino, mas um correu nessa direção. O sr. Coop‐
er achou que era o seu lho.
Balancei a cabeça. Não, não é possível, ele não faria uma coisa dessas, ele
amava a Trudy, Trudy faz parte da família há anos, não, não era o meu lho.
Naquela noite contei a ele sobre a Trudy e ele se fez de surpreso e chocado e
disse que a gente devia oferecer uma recompensa. Bateu um texto na máquina
de escrever e prometeu colar no mural da escola. Mas na hora em que estava
indo para o quarto naquela noite ele disse: Não leve isso tão a sério, mãe, ela
era velha, pela idade dos gatos já tinha sessenta e cinco ou setenta anos, viveu
muito.
Ele começou a trabalhar à tarde e aos sábados, como estoquista no
Hartley’s. Uma amiga minha que trabalhava lá, Betty Wilks, me falou de uma
vaga e disse que ia indicar o meu lho. Falei sobre isso com ele naquela noite e
ele disse: Que bom, é difícil um jovem arranjar emprego.
Na noite em que ele ia receber seu primeiro salário, preparei seu prato
favorito e tinha posto tudo na mesa quando ele chegou em casa. Aí está o
homem da casa, falei, e lhe dei um abraço. Estou tão orgulhosa, quanto foi
que você recebeu, querido? Oitenta dólares, disse ele. Fiquei espantadíssima.
Que maravilha, querido, nem consigo acreditar. Estou morrendo de fome,
disse ele, vamos comer.
Eu estava feliz, mas não conseguia entender, era mais do que eu ganhava.
Quando fui lavar as roupas, achei o contracheque da Hartley’s no bolso
dele, e era de vinte e oito dólares, e ele tinha dito oitenta. Por que ele não
contou a verdade? Eu não conseguia entender.
Eu perguntava a ele: Aonde você foi na noite passada, querido? Fui a um
show, ele respondia. Depois eu descobria que ele tinha ido à aula de dança ou
cado até tarde rodando de carro com alguém. Eu pensava que diferença
podia fazer, por que ele não me conta a verdade e pronto, não existe motivo
para mentir para a mãe.
Recordo uma vez em que ele devia ir ao campo com uma excursão da escola
e eu perguntei: O que foi que você viu na sua excursão pelo campo, querido?
Ele encolheu os ombros e disse formações do solo, rochas vulcânicas, cinzas,
mostraram pra gente um lugar onde havia um lago enorme um milhão de
anos atrás, agora é tudo deserto. Ele me olhava nos olhos e continuava a falar.
Depois recebi uma carta da escola no dia seguinte pedindo uma autorização
para uma excursão pelo campo, perguntavam se eu dava permissão para ele ir.
Quase no nal do seu último ano, ele comprou um carro e vivia fora de
casa. Eu andava sempre preocupada com as suas notas, mas ele só ria de mim.
O senhor sabe que ele era um ótimo aluno, o senhor tem de saber disso, se
sabe tanto sobre ele. Depois ele comprou uma espingarda e uma faca de caça.
Eu detestava ver aquelas coisas dentro de casa e falei com ele. Ele riu,
sempre tinha uma risada para dar para a gente. Disse que ia guardar a
espingarda e a faca na mala do carro, disse que lá cariam mesmo mais à mão.
Num sábado à noite, ele não voltou para casa. Fiquei preocupada e num
estado lamentável. Por volta das dez horas da manhã seguinte, ele chegou e
me pediu que preparasse seu café da manhã, disse que tinha cado com a
maior fome depois de caçar, disse que lamentava ter passado a noite fora de
casa, disse que tinham andado muito tempo de carro para conseguir chegar ao
tal lugar. Me pareceu esquisito. Ele estava nervoso.
Aonde você foi?
Até Wenas. Demos uns tiros.
Com quem você foi, querido?
Fred.
Fred?
Ele me olhou xamente e não falei mais nada.
No domingo seguinte, entrei no seu quarto na ponta dos pés para pegar as
chaves do carro. Ele tinha prometido trazer algumas coisas para o café da
manhã quando voltasse do trabalho, na noite anterior, e achei que ele podia
ter deixado as coisas dentro do carro. Vi seu sapato novo meio en ado
embaixo da cama e coberto de lama e areia. Ele abriu os olhos.
Querido, o que foi que aconteceu com seu sapato? Olhe só como está o seu
sapato.
O carro cou sem gasolina, tive de andar para ir atrás de combustível. Ele se
sentou na cama. Por que está tão interessada?
Sou sua mãe.
Enquanto ele estava no chuveiro, peguei as chaves e fui até o carro. Abri a
mala. Não achei as comidas. Vi a espingarda em cima de uma colcha e
também a faca, vi uma camisa dele embolada, sacudi e vi que estava cheia de
sangue. Estava molhada. Larguei a camisa. Fechei a mala do carro, voltei para
a casa, vi meu lho olhando pela janela e ele veio abrir a porta.
Esqueci de te contar, disse ele, tive um sangramento muito forte no nariz,
não sei se dá para lavar a camisa, é melhor jogar fora. Ele sorriu.
Dias depois, perguntei como ele estava indo no trabalho. Tudo bem, disse
ele, tinha recebido um aumento. Mas encontrei Betty Wilks na rua e ela
contou que todos na Hartley’s estavam com muita pena por ele ter largado o
emprego, gostavam muito dele lá, disse a Betty Wilks.
Duas noites depois, eu estava na cama sem conseguir dormir, olhando para
o teto. Ouvi o carro dele parar na frente de casa, ouvi quando ele pôs a chave
na fechadura, atravessou a cozinha, seguiu pelo corredor até o seu quarto,
entrou e fechou a porta. Levantei. Vi a luz acesa por baixo da sua porta, bati,
empurrei a porta e disse: Você não quer uma xícara de chá, querido?, não
estou conseguindo dormir. Ele estava curvado diante da cômoda, fechou uma
gaveta com força e se virou para mim: Sai daqui, gritou, sai daqui, estou de
saco cheio de você me espionando o tempo todo, berrou. Fui para o meu
quarto e chorei até pegar no sono. Naquela noite, ele partiu meu coração.
Na manhã seguinte, ele acordou e saiu antes que eu pudesse falar com ele,
mas para mim isso não tinha importância. Dali em diante eu ia passar a tratá-
lo como um inquilino, a menos que ele quisesse melhorar seus modos
comigo: eu estava no meu limite. Ele teria de pedir desculpas se quisesse que
nós fôssemos mais do que dois estranhos morando debaixo do mesmo teto.
Quando cheguei em casa naquele m de tarde, ele já tinha feito o jantar.
Como vai?, disse, e pegou o meu casaco. Como foi o seu dia?
Respondi: Não dormi direito na noite passada, querido. Prometi a mim
mesma que não ia tocar no assunto e não estou querendo que você se sinta
culpado, mas não estou habituada a ver meu lho falando comigo daquele
jeito.
Quero te mostrar uma coisa, disse ele, e me mostrou o trabalho que estava
escrevendo para a aula de educação cívica. Acho que era sobre as relações
entre o Congresso e a Suprema Corte. (Ia ser a sua monogra a de m de
curso, que lhe daria um prêmio na formatura!) Tentei ler e então resolvi,
aquela era a hora. Querido, eu queria ter uma conversa com você, é difícil
criar um lho do jeito como as coisas andam hoje em dia, é especialmente
difícil quando a gente não tem um pai em casa, nenhum homem a quem
recorrer quando precisa. Agora você já é quase um adulto, mas ainda sou
responsável por você e sinto que tenho direito a algum respeito e
consideração, e tenho tentado ser justa e honesta com você. Quero a verdade,
querido, é tudo o que tenho pedido de você, a verdade. Querido, respirei
fundo, imagine que você tem um lho e quando você pergunta alguma coisa
para ele, qualquer coisa, onde ele esteve ou aonde ele vai, o que ele anda
fazendo da vida, qualquer coisa, ele nunca, nem uma vez sequer, diz a
verdade? Um lho que, se você pergunta Está chovendo?, vai responder Não,
está fazendo um belo sol, e acho que vai rir consigo mesmo e achar que você é
velho demais ou burro demais para perceber que as roupas dele estão
molhadas. Por que ele está mentindo?, você se pergunta, o que ele ganha com
isso é uma coisa que não compreendo. Continuo a me perguntar por quê, mas
não tenho resposta. Por quê, querido?
Ele não disse nada, continuou me olhando xo, depois andou, cou bem do
meu lado e disse: Vou mostrar para você. Ajoelhe, é o que eu digo, que de
joelhos, é o que digo, disse ele, essa é a primeira razão.
Corri para o meu quarto e tranquei a porta. Ele foi embora naquela noite,
levou suas coisas, o que ele quis, e foi embora. Acredite ou não, nunca mais o
vi. Eu o vi na formatura, mas tinha uma porção de gente em volta. Fiquei
sentada na plateia, vi na hora em que ele recebeu o diploma e ganhou um
prêmio por sua monogra a de m de curso, depois ouvi quando fez um
discurso e bati palmas junto com todos na plateia.
Depois fui para casa.
Nunca mais o vi. Ah, claro, eu o vi na tevê e vi suas fotos no jornal.
Soube que entrou para os fuzileiros navais e depois alguém veio me contar
que tinha saído dos fuzileiros e ido para a faculdade no Leste, e depois se
casou com aquela garota e se meteu na política. Comecei a ver o nome dele
nos jornais. Descobri um endereço e lhe escrevi. Escrevia sempre uma carta
para ele, com alguns meses de intervalo entre uma e outra, nunca recebi
nenhuma resposta. Candidatou-se a governador e foi eleito, e agora é famoso.
Foi aí que comecei a car preocupada.
Fui criando todos esses receios, quei com medo, parei de escrever para ele,
é claro, e passei a desejar que ele achasse que eu tinha morrido. Me mudei
para cá. Arranjei um telefone que não consta do catálogo. E depois precisei
mudar de nome. Se você é um homem poderoso e quer encontrar alguém,
acaba encontrando, não é tão difícil assim.
Eu devia estar orgulhosa, mas tenho medo. Semana passada vi um carro na
rua com um homem lá dentro e sei que ele estava me observando. Voltei
direto para casa e tranquei a porta. Uns dias atrás o telefone tocou sem parar,
eu estava deitada. Peguei o fone, mas não tinha ninguém na linha.
Estou velha. Sou a mãe dele. Devia ser a mulher mais orgulhosa do mundo,
mas só sinto medo.
Obrigada por escrever. Queria que alguém soubesse. Estou muito
envergonhada.
Também queria perguntar como foi que conseguiu meu nome e soube para
onde escrever. Vivo rezando para que ninguém saiba de mim. Mas você soube.
Por quê? Por favor, me diga por quê.
Atenciosamente,
Os patos
T odo o otimismo que havia colorido a sua partida da cidade agora tinha
sumido, tinha evaporado no entardecer do primeiro dia, enquanto os
dois seguiam de carro para o Norte, através dos bosques escuros de sequoias.
Agora, as pastagens que iam passando, as vacas, as casas de fazenda isoladas na
região oeste de Washington pareciam não ter nada a lhe oferecer, nada daquilo
que ele queria de fato. Estava esperando uma coisa diferente. Continuou
dirigindo o carro com uma crescente sensação de desamparo e de afronta.
Manteve a velocidade em cinquenta quilômetros por hora, o máximo que a
estrada permitia. O suor não saía de sua testa e de cima do lábio superior, e
havia no ar e em volta deles um cheiro forte de trevo que dava uma leve
tontura. O terreno começou a mudar; a estrada desceu de repente, atravessou
um aqueduto, subiu de novo, depois o asfalto acabou e ele segurava o carro
numa estrada rural de terra batida, enquanto um espantoso rastro de poeira ia
subindo atrás deles. Quando passaram pelas ruínas de uma casa antiga
incendiada, en ada no meio de uns pés de bordo, Emily tirou os óculos
escuros e inclinou-se para a frente, observando.
“Aqui é a velha casa dos Owen”, disse ela. “Ele e o papai eram amigos. Tinha
um alambique no sótão e uma grande equipe de cavalos de tração que
costumava concorrer em todas as feiras. Morreu com o apêndice supurado
quando eu tinha uns dez anos. A casa pegou fogo um ano depois, no Natal.
Eles se mudaram para Bremeron depois disso.”
“Foi mesmo?”, disse ele. “No Natal.” E depois: “Aqui eu viro à direita ou à
esquerda? Emily? Direita ou esquerda?”.
“Esquerda”, disse ela. “Esquerda.”
Ela voltou a pôr os óculos escuros, só para tirar logo depois. “Siga por esta
estrada, Harry, até chegar a um outro cruzamento. Aí dobre à direita. Fica
logo depois.” Ela fumava sem parar, um cigarro após o outro, cou em
silêncio olhando para os campos vazios, para os bosques isolados de pinheiros
e para uma ou outra casa maltratada pelo tempo.
Ele reduziu a marcha, dobrou à direita. A estrada começou a descer aos
poucos para um vale com algumas árvores. Ao longe — o Canadá, ele
calculou — podia-se ver uma cadeia de montanhas e, atrás dela, outra cadeia
de montanhas, mais escura e ainda mais alta.
“Tem uma estradinha”, disse ela, “no fundo. É aquela estrada.”
Ele virou com cuidado e seguiu devagar pela estrada de terra cortada por
sulcos, à espera do primeiro sinal da casa. Emily estava sentada bem perto
dele, nervosa, ele percebeu, fumando outra vez, também à espera da primeira
visão da casa. Ele piscava os olhos enquanto ramos baixos e emaranhados
batiam no para-brisa. Ela se inclinou de leve para a frente e tocou na perna
dele com a mão. “É agora”, disse. Harry reduziu a velocidade até quase parar,
passou por uma pequena poça de água limpa formada por um riacho que saía
do capim alto à sua esquerda, depois avançou no meio de uma massa de
arbustos que roçava no carro todo à medida que a estradinha ia subindo. “Aí
está ela”, disse Emily, tirando a mão da perna dele.
Depois do primeiro olhar perturbador, ele manteve os olhos na estrada.
Olhou para a casa outra vez, depois que havia parado o carro perto da porta
da frente. Em seguida passou a língua nos lábios, virou-se para ela e tentou
sorrir.
“Bem, chegamos”, disse.
Emily olhava para ele, e não para a casa, nem um pouco.
Harry sempre havia morado em cidades — San Francisco nos últimos três
anos e, antes disso, Los Angeles, Chicago e Nova York. Mas por muito tempo
teve vontade de ir morar no campo, em alguma região rural. De início não
tinha muito claro aonde gostaria de ir; só sabia que queria sair da cidade e
tentar recomeçar a vida. Uma vida mais simples, era isso que passava pela sua
cabeça, só o essencial, dizia. Tinha trinta e dois anos e, de certo modo, era um
escritor, mas também era ator e músico. Tocava saxofone, atuava de vez em
quando na companhia Atores de Bay City e estava escrevendo seu primeiro
romance. Estava escrevendo o romance desde a época em que morava em
Nova York. Numa tarde sombria de domingo, em março, quando ele falou
mais uma vez sobre uma mudança, sobre uma vida mais honesta em algum
lugar no campo, ela mencionou, a princípio de brincadeira, a casa abandonada
de seu pai na região noroeste de Washington.
“Meu Deus”, disse Harry. “Você não ia car chateada de ir para lá? Um lugar
assim tosco? Morar no campo desse jeito?”
“Nasci lá”, disse ela, rindo. “Lembra? Morei no campo. Não tem problema.
Tem até suas vantagens. Eu podia morar lá outra vez. Mas quanto a você eu
não sei, Harry. Não sei se seria bom para você.”
Ela cou olhando para ele, agora séria. Ultimamente, Harry sentia que ela
estava sempre olhando para ele.
“Você não vai car chateada?”, perguntou ele. “De abandonar as coisas
aqui?”
“Não tenho muito para abandonar, não é, Harry?” Ela deu de ombros. “Mas
também não vou car incentivando essa ideia, Harry.”
“Você poderia pintar lá?”, perguntou ele.
“Posso pintar em qualquer lugar”, disse ela. “E lá tem o Bellingham”, disse.
“Tem uma faculdade lá. E também tem Vancouver ou Seattle.” Ela continuou
olhando para ele. Estava sentada num banco, diante de um retrato sombrio e
inacabado de um homem e uma mulher, e rolava dois pincéis na mão, para a
frente e para trás.
Aquilo tinha acontecido três meses antes. Haviam conversado sobre o
assunto várias vezes e agora estavam lá.
Ele deu umas pancadinhas na parede perto da porta da frente. “Sólido. Uma
fundação sólida. Se tem fundações sólidas, isso é o mais importante.” Evitava
o olhar dela. Era astuta e podia perceber alguma coisa nos olhos dele.
“Eu te avisei para não esperar grande coisa”, disse Emily.
“Foi, sim, avisou mesmo. Lembro bem”, disse Harry, ainda sem olhar para
ela. Deu mais umas pancadinhas na madeira nua com o nó dos dedos e se
aproximou de Emily. Ele estava de mangas arregaçadas por causa do calor
úmido da tarde, vestia calça de brim branco e calçava sandálias. “Sossegado,
não é?”
“Muito diferente lá da cidade.”
“Puxa, é mesmo... Bem bonito, também, aqui.” Harry tentou sorrir. “Está
precisando de um trato, só isso. Um pouco de trabalho. Vai ser uma boa casa,
se a gente quiser car. Pelo menos os vizinhos não vão nos incomodar.”
“Quando eu era pequena, a gente tinha vizinhos”, disse ela. “A gente
precisava ir de carro para encontrar os vizinhos, mas eram vizinhos.”
A porta abriu meio torta. A dobradiça de cima estava frouxa: coisa à toa,
avaliou Harry. Passaram devagar de um cômodo para o outro. Ele tentou
disfarçar a decepção. Bateu duas vezes com a mão na parede e disse: “Sólido”.
Ou então: “Não fazem mais casas assim hoje em dia. A gente pode fazer muita
coisa numa casa como esta”.
Ela parou na frente de um quarto grande e respirou fundo.
“Era o seu?”
Ela balançou a cabeça negativamente.
“E a gente pode conseguir a mobília necessária com a tia Elsie?”
“Sim, tudo o que a gente precisar”, disse ela. “Quer dizer, se é isso mesmo
que a gente quer, car aqui. Não estou pressionando. Não é tarde demais para
desistir. Não perdemos nada.”
Na cozinha, encontraram um fogão a lenha e um colchão encostado numa
parede. Na sala outra vez, ele olhou em volta e disse: “Eu pensei que tivesse
uma lareira”.
“Eu nunca disse que tinha uma lareira.”
“Por alguma razão, tive a impressão de que havia uma... Nada de tomadas
também”, falou ele depois de uma pausa. Em seguida: “Não tem eletricidade”.
“Nem banheiro”, disse ela.
Harry molhou os lábios. “Bem”, disse, dando as costas para examinar algo
num canto, “acho que a gente podia instalar uma banheira e tudo num desses
quartos e arranjar alguém para instalar as tubulações. Mas a eletricidade é
outra história, não é? Quer dizer, vamos deixar para resolver tudo isso quando
chegar a hora. Uma coisa de cada vez, certo? Não acha? Não vamos... não
vamos deixar que nada disso nos desanime, certo?”
“Eu só queria que você casse calado”, disse ela.
Virou-se e saiu.
***
Ele desceu a escadinha da porta aos pulos um minuto depois, respirou bem
fundo e os dois acenderam cigarros. Um bando de corvos alçou voo no m do
pasto e foi voando devagar e em silêncio para dentro da mata. Os dois
caminharam na direção da cocheira, detendo-se para examinar as macieiras
maltratadas pelo tempo. Harry partiu um dos galhinhos ressecados, virou-o
nas mãos para um lado e para o outro, enquanto ela cava parada atrás dele
fumando um cigarro. Era uma paisagem tranquila, mais ou menos atraente, e
ele achou agradável sentir que algo permanente, de fato permanente, podia
pertencer a ele. Foi tomado por uma repentina afeição por aquele pequeno
pomar.
“Vamos fazer isso dar frutos de novo”, disse. “Só precisa de água e de algum
cuidado, a nal.” Podia ver a si mesmo saindo da casa com um cesto de vime e
colhendo maçãs grandes e vermelhas, ainda molhadas pelo orvalho da manhã,
e compreendeu que a ideia o atraía.
Sentiu-se um pouco animado quando se aproximaram da cocheira.
Observou rapidamente as antigas placas de licença pregadas na porta. Verdes,
amarelas, brancas, placas do estado de Washington, agora enferrujadas, 1922-
23-24-25-26-27-28-29-34-36-37-40-41-1949; observou as datas como se aquela
sequência pudesse lhe revelar um código. Deslocou a tranca de madeira e
puxou e empurrou a porta pesada, até ela abrir. O ar lá dentro cheirava a
coisas sem uso. Mas Harry não achou o cheiro desagradável.
“Chove muito aqui no inverno”, disse ela. “Não me lembro de ter visto um
dia tão quente assim em junho.” O sol cravava seus raios com força através das
fendas do telhado. “Uma vez papai caçou um cervo fora da temporada de
caça. Eu tinha mais ou menos... sei lá... uns oito ou nove anos.” Virou-se para
Harry quando ele parou junto à porta a m de observar uns arreios antigos
pendurados num prego. “Papai estava aqui na cocheira com o cervo quando o
scal de caça entrou no jardim. Estava escuro. Mamãe mandou eu descer até
aqui para avisar o papai, e o scal de caça, um homem grandalhão e
corpulento, de chapéu, veio atrás de mim. Papai estava com um lampião,
tinha acabado de descer do sótão. Ele e o scal conversaram alguns minutos.
O cervo estava pendurado ali, mas o scal de caça não falou nada. Ofereceu a
papai um pouco de tabaco para mascar, mas papai recusou — ele jamais
gostou daquilo e nunca iria aceitar, nem naquela situação. Aí o scal de caça
deu um puxão na minha orelha e saiu. Mas agora eu não estou a m de pensar
em nada disso”, acrescentou depressa. “Faz anos que não penso nessas coisas.
Não quero fazer comparações”, disse Emily. “Não”, disse. Recuou um passo,
balançando a cabeça. “Não vou chorar. Sei que parece melodramático e pura
bobagem, e peço desculpas por parecer melodramática e boba. Mas a verdade,
Harry...” Ela balançou a cabeça de novo. “Não sei. Talvez tenha sido um erro
voltar para cá. Estou notando que você está decepcionado.”
“Você não sabe”, disse ele.
“Não, é isso mesmo, eu não sei”, disse Emily. “E me desculpe, sinceramente,
não estou querendo in uenciar você a fazer nada. Mas acho que você não está
a m de car. Não é?”
Ele deu de ombros.
Pegou um cigarro. Ela tomou o cigarro dele e segurou-o, à espera de um
fósforo, à espera de que os olhos de Harry encontrassem os seus por cima do
fósforo.
“Quando eu era pequena”, prosseguiu Emily, “queria trabalhar no circo
quando crescesse. Não queria ser enfermeira ou professora. Nem pintora. Eu
não queria ser pintora naquele época. Queria ser Emily Horner, a Equilibrista
da Corda Bamba. Era uma coisa importante para mim. Eu treinava aqui na
cocheira, andando em cima das vigas do telhado. Aquela viga grande ali em
cima, andei sobre ela centenas de vezes.” Começou a falar mais alguma coisa,
mas soltou uma baforada do cigarro, jogou-o no chão e apagou-o debaixo do
calcanhar, calcando o cigarro com cuidado para dentro da terra.
Fora da cocheira, ela ouviu um passarinho cantando e depois ouviu o
barulho de algo correndo por cima das tábuas do sótão. Passou por Harry, saiu
para a luz do dia e seguiu devagar no meio do capim espesso, rumo à casa.
“O que vamos fazer, Emily?”, perguntou Harry atrás dela.
Ela parou e Harry foi se postar ao lado dela.
“Continuar vivos”, disse ela. Em seguida, balançou a cabeça e sorriu de leve.
Tocou no braço dele. “Minha nossa, acho que a gente chegou a um impasse,
não é? Mas não tenho mais nada para dizer, Harry.”
“A gente precisa decidir”, disse ele, sem saber na verdade o que queria dizer.
“Você decide, Harry, se ainda não decidiu. A decisão é sua. Estou pronta
para voltar agora mesmo, se for melhor para você. A gente ca na casa da tia
Elsie um ou dois dias e depois vai embora. Está certo? Mas me dê um cigarro.
Vou dar um pulo lá na casa.”
Ele se aproximou dela e achou que podiam se abraçar. Ele estava com
vontade. Mas ela não se mexeu; apenas olhou xo para ele e assim Harry
tocou no nariz de Emily com a ponta do dedo indicador e disse: “A gente se vê
daqui a pouco”.
Ficou observando Emily ir. Olhou o relógio de pulso, virou-se e caminhou
devagar pelo pasto rumo à mata. O capim chegava até os joelhos. Pouco
depois de entrar na mata, à medida que o capim começou a rarear, achou uma
espécie de trilha. Esfregou o alto do nariz sob os óculos escuros, olhou para
trás, em direção à casa e à cocheira, e seguiu em frente, devagar. Uma nuvem
de mosquitos se movia junto com sua cabeça enquanto ele caminhava. Parou
a m de acender um cigarro. Abanou a mão para espantar os mosquitos.
Olhou para trás outra vez, mas agora não conseguiu avistar a casa nem a
cocheira. Ficou parado fumando, começando a sentir o silêncio que repousava
no capim, nas árvores e nas sombras mais além, por trás das árvores. Não era
aquilo o que ele tanto desejava? Continuou a andar, em busca de um local para
sentar.
Acendeu outro cigarro e sentou encostado numa árvore. Pegou uns
gravetos na terra mole entre as pernas. Fumou. Lembrou-se de um livro de
peças de teatro de Ghelderode que estava em cima de outras coisas no banco
de trás do carro e depois de algumas cidadezinhas por onde tinham passado de
carro naquela manhã — Ferndale, Lynden, Custer, Nooksack. De repente,
lembrou-se do colchão na cozinha. Percebeu que o colchão lhe dava medo.
Tentou imaginar Emily andando em cima da viga grande no alto da cocheira.
Mas isso também lhe dava medo. Fumou. Sentia-se na verdade muito
tranquilo, no nal das contas. Não ia car ali, sabia disso, mas saber disso
agora não o incomodava. Estava satisfeito por se conhecer tão bem. Ele caria
bem, concluiu. Tinha só trinta e dois anos. Não era tão velho. Por ora, estava
num impasse. Podia admitir isso. A nal, ponderou, a vida era assim mesmo,
não era? Jogou fora o cigarro. Dali a pouco, acendeu outro.
Quando estava contornando o canto da casa, viu Emily dando uma
cambalhota acrobática em pleno ar. Ela pousou no chão com um ligeiro
baque, um pouco agachada, e então viu Harry.
“Ei!”, gritou ela, sorrindo com um ar importante.
Ergueu-se na ponta dos pés, os braços abertos para cima da cabeça e depois
impulsionou o corpo para a frente. Deu mais duas cambalhotas no ar como
aquela, enquanto Harry olhava, e depois gritou: “Que tal isto?”. Baixou o
corpo, apoiou-se nas mãos e, equilibrando-se de cabeça para baixo, pernas
para cima, começou um movimento hesitante e cambaleante na direção de
Harry. O rosto vermelho, a blusa caída até o queixo, as pernas balançando
doidamente no ar, ela foi avançando para junto dele. “Já decidiu?”, perguntou
ela, quase sem fôlego.
Ele fez que sim com a cabeça.
“E então?”, disse ela. Deixou o corpo baixar sobre os ombros e rolou de
costas no chão, cobrindo o rosto com um braço para proteger os olhos do sol,
como que para deixar os seios à mostra de propósito.
Ela disse: “Harry”.
Ele estava pegando um cigarro para acender com o último fósforo quando
suas mãos começaram a tremer. O fósforo apagou e ele cou parado,
segurando a caixa de fósforos vazia e o cigarro, tando a vastidão de árvores
no nal do pasto radiante.
“Harry, a gente precisa amar um ao outro”, disse ela. “A gente só vai precisar
amar um ao outro”, disse.
Bicicletas, músculos, cigarros
F azia dois dias que Evan Hamilton tinha parado de fumar e lhe parecia que
tudo que havia pensado e falado naqueles dois dias tinha a ver com
cigarros. Olhou suas mãos sob a luz da cozinha. Cheirou os dedos e os nós dos
dedos.
“Dá para sentir o cheiro”, disse.
“Eu sei. É como se estivesse suando para fora da gente”, disse Ann
Hamilton. “Três dias depois que parei de fumar, eu ainda sentia o cheiro de
cigarro em mim. Até na hora que eu saía do banho. Era nojento.” Ela estava
colocando os pratos na mesa para o jantar. “Desculpe, querido. Sei o que você
está passando. Se serve de consolo, o segundo dia é sempre o mais difícil. O
terceiro também é difícil, claro, mas daí em diante dá para a gente levar, o pior
já cou pra trás. Mas estou tão contente por você estar levando a sério a
intenção de largar o cigarro, nem tenho como te dizer.” Tocou no braço dele.
“Agora, se zer o favor de chamar o Roger, já podemos comer.”
Hamilton abriu a porta da frente. Já havia escurecido. Estavam em início de
novembro e os dias eram curtos e frios. Um menino mais velho, que ele nunca
tinha visto, estava sentado numa bicicleta pequena, bem equipada, na entrada
do jardim. O menino, inclinado para a frente, um pouco adiante do selim,
tocava a calçada com a pontinha dos pés e assim mantinha o corpo ereto.
“O senhor é o senhor Hamilton?”, perguntou o menino.
“Sim, sou eu”, disse Hamilton. “O que é? É o Roger?”
“Acho que o Roger está lá em casa falando com a minha mãe. O Kip está lá e
o outro garoto, chamado Gary Berman. A questão é a bicicleta do meu irmão.
Não sei direito”, disse o menino, mexendo no punho do guidão. “Mas minha
mãe pediu para eu vir aqui e chamar você. O pai ou a mãe do Roger.”
“Mas ele está bem?”, perguntou Hamilton. “Sim, claro, vou já com você.”
Entrou em casa para calçar o sapato.
“Você achou o Roger?”, perguntou Ann Hamilton.
“Ele se meteu em alguma confusão”, respondeu Hamilton. “Sobre uma
bicicleta. Um menino, não peguei o nome dele, está lá fora. Quer que um de
nós volte com ele até a sua casa.”
“Ele está bem?”, perguntou Ann Hamilton e tirou o avental.
“Claro, ele está bem.” Hamilton olhou para ela e balançou a cabeça. “Parece
que é só uma espécie de desentendimento de crianças, e a mãe do menino está
se metendo na história.”
“Quer que eu vá também?”, perguntou Ann Hamilton.
Ele pensou um minuto. “Sim, eu gostaria que você fosse, mas eu mesmo
vou. Segure esse jantar até a gente voltar. Acho que não vamos demorar.”
“Não gosto que ele que fora de casa quando já está escuro”, disse Ann
Hamilton. “Não gosto.”
O menino estava montado em sua bicicleta e mexia com a mão no freio.
“Onde ca?”, perguntou Hamilton quando chegaram à calçada.
“Lá no beco Arbuckle”, respondeu o menino, e quando Hamilton olhou
para ele, o menino acrescentou: “Não é longe. Uns dois quarteirões daqui”.
“Qual foi o problema?”, perguntou Hamilton.
“Não sei direito. Não entendi tudo, não. Ele, o Kip e o tal de Gary Berman
parece que usaram a bicicleta do meu irmão enquanto a gente estava de férias
e acho que estragaram a bicicleta. De propósito. Mas eu não sei. Pelo menos é
o que estão falando. Meu irmão não consegue mais achar a bicicleta e eles é
que pegaram por último, o Kip e o Roger. Minha mãe está tentando descobrir
onde ela foi parar.”
“Conheço o Kip”, disse Hamilton. “Quem é esse outro garoto?”
“Gary Berman. Acho que é novo no bairro. O pai dele também vai pra lá
quando chegar em casa.”
Viraram a esquina. O menino ia empurrando a bicicleta, só um pouco à
frente. Hamilton viu um pomar e depois dobraram outra esquina, que foi dar
numa rua sem saída. Não sabia da existência daquela rua e tinha certeza de
que não ia reconhecer nenhuma das pessoas que moravam ali. Olhou em volta
para aquelas casas que lhe eram estranhas e cou chocado com o alcance da
vida particular de seu lho.
O menino virou na entrada do jardim de uma casa, desceu da bicicleta e
encostou-a na parede. Quando o menino abriu a porta da frente, Hamilton o
seguiu através da sala e entrou na cozinha, onde viu o lho sentado ao lado de
uma mesa, junto com Kip Hollister e um outro garoto. Hamilton olhou bem
para Roger e depois se virou para a mulher corpulenta, de cabelo escuro, na
cabeceira da mesa.
“O senhor é o pai do Roger?”, perguntou a mulher.
“Sou, meu nome é Evan Hamilton. Boa noite.”
“Sou a senhora Miller, mãe do Gilbert”, disse ela. “Desculpe eu pedir que
viessem até aqui, mas estamos com um problema.”
Hamilton sentou-se numa cadeira na outra ponta da mesa e olhou em volta.
Um garoto de nove ou dez anos, o garoto cuja bicicleta tinha sumido, supôs
Hamilton, estava sentado ao lado da mulher. Outro garoto, de mais ou menos
uns catorze anos, estava sentado em cima da pia, as pernas balançando no ar, e
olhava para outro menino, que estava falando ao telefone. Sorrindo com
timidez a algo que tinham acabado de lhe dizer ao telefone, o garoto estendeu
o braço sobre a pia com um cigarro. Hamilton ouviu o barulho do cigarro se
apagando dentro de um copo de água. O garoto que o havia acompanhado
pela rua encostou-se na geladeira e cruzou o braços.
“Você trouxe um dos pais do Kip?”, perguntou a mulher ao menino.
“A irmã dele disse que tinham ido fazer compras. Fui à casa do Gary Berman
e o pai dele vai vir pra cá daqui a pouco. Deixei o endereço.”
“Senhor Hamilton”, disse a mulher, “vou contar ao senhor o que foi que
aconteceu. Estávamos de férias no mês passado e o Kip quis pegar a bicicleta
do Gilbert emprestada para que o Roger ajudasse na entrega dos jornais. Acho
que a bicicleta do Roger estava com o pneu furado ou algo assim. Pois bem,
aconteceu que...”
“O Gary estava me estrangulando, pai”, disse Roger.
“O quê?”, disse Hamilton, olhando para o lho com cuidado.
“Ele estava me estrangulando. Estou com as marcas.” Seu lho baixou a
gola da camiseta para mostrar o pescoço.
“Eles estavam lá na garagem”, continuou a mulher. “Eu não sabia o que
estavam fazendo, até que o meu lho mais velho, o Curt, foi dar uma olhada.”
“Foi ele que começou!”, disse Gary Berman para Hamilton. “Ele me
chamou de babaca.” Gary Berman olhou na direção da porta da frente.
“Pessoal, acho que a minha bicicleta custa uns sessenta dólares”, disse o
garoto chamado Gilbert. “Podem ir me pagando.”
“Fique fora disso, Gilbert”, disse a mulher.
Hamilton respirou fundo. “Prossiga”, disse.
“Pois bem, o Kip e o Roger usaram a bicicleta do Gilbert para ajudar o Kip a
entregar os jornais e depois os dois, com o Gary também, pelo que dizem, se
revezaram em rolar a bicicleta.”
“O que a senhora quer dizer com ‘rolar a bicicleta’?”, perguntou Hamilton.
“Rolar”, disse a mulher. “Soltar a bicicleta rua abaixo com um empurrão e
deixar a bicicleta rolar. Então, veja só, e eles acabaram de admitir isso há
alguns minutos, o Kip e o Roger levaram a bicicleta para a escola e a jogaram
contra a trave de um gol.”
“É verdade, Roger?”, perguntou Hamilton, olhando de novo para o lho.
“Uma parte é verdade, pai”, disse Roger, olhando para baixo e esfregando o
dedo na mesa. “Mas a gente só rolou a bicicleta uma vez. O Kip, depois o Gary
e depois eu.”
“Uma vez já é demais”, disse Hamilton. “Uma vez já é mais do que se pode
admitir, Roger. Estou surpreso e decepcionado com você. E com você
também, Kip”, disse Hamilton.
“Mas, veja bem”, disse a mulher. “Alguém aqui esta noite está de conversa
ada, ou não está contando tudo o que sabe, porque o fato é que a bicicleta
continua sumida.”
Os garotos mais velhos na cozinha riram e brincaram com o garoto que
continuava falando ao telefone.
“A gente não sabe onde a bicicleta está, senhora Miller”, disse o garoto
chamado Kip. “Já falamos pra senhora. A última vez que a gente viu a bicicleta
foi quando eu e o Roger levamos ela pra minha casa depois de termos levado
ela pra escola. Quer dizer, foi a penúltima vez. A última vez mesmo foi
quando eu trouxe a bicicleta de volta pra cá na manhã seguinte e deixei lá atrás
da casa.” Balançou a cabeça. “A gente não sabe onde ela está”, disse o garoto.
“Sessenta dólares”, disse o garoto chamado Gilbert ao garoto chamado Kip.
“Podem me pagar parcelado, cinco dólares por semana.”
“Gilbert, estou avisando você”, disse a mulher. “O senhor está vendo, eles
alegam”, continuou a mulher, agora com as sobrancelhas franzidas, “que ela
sumiu daqui, de trás da casa. Mas como acreditar neles, quando não têm se
mostrado lá muito verdadeiros esta noite?”
“A gente contou a verdade”, disse Roger. “Tudo.”
Gilbert recostou-se em sua cadeira e balançou a cabeça para o lho de
Hamilton.
A campainha tocou e o garoto sentado na pia desceu com um pulo e foi
para a sala.
Um homem de ombros rijos, com cabelo cortado à escovinha e olhos
cinzentos e penetrantes, entrou na cozinha sem dizer nada. Lançou um olhar
à mulher e foi para trás da cadeira de Gary Berman.
“O senhor deve ser o senhor Berman, não é?”, perguntou a mulher. “Prazer
em conhecê-lo. Sou a mãe de Gilbert e este é o senhor Hamilton, pai do
Roger.”
O homem inclinou a cabeça na direção de Hamilton, mas não estendeu a
mão.
“O que é que está acontecendo?”, perguntou Berman a seu lho.
Os garotos sentados à mesa começaram a falar todos ao mesmo tempo.
“Calem a boca!”, disse Berman. “Estou falando com o Gary. Vai chegar a vez
de vocês.”
O garoto começou o seu relato sobre o caso. O pai escutou com atenção, de
vez em quando estreitava os olhos a m de observar os outros dois garotos.
Quando Gary Berman terminou, a mulher disse: “Eu gostaria de chegar ao
fundo dessa questão. Não estou acusando nenhum deles, entende, senhor
Hamilton, senhor Berman — eu só queria chegar ao fundo dessa história
toda”. Olhou com rmeza para Roger e para Kip, que estavam balançando a
cabeça para Gary Berman.
“Não é verdade, Gary”, disse Roger.
“Papai, posso falar com o senhor em particular?”, disse Gary Berman.
“Vamos lá”, disse o homem, e foram para a sala.
Hamilton observou os dois saindo. Teve a sensação de que devia detê-los,
devia impedir aquela conversa em segredo. As palmas das mãos estavam
molhadas e ele en ou a mão no bolso para pegar um cigarro. Em seguida,
com a respiração pesada, passou as costas da mão embaixo do nariz e disse:
“Roger, você sabe mais alguma coisa sobre essa história, alguma coisa além do
que já contou? Sabe onde está a bicicleta do Gilbert?”.
“Não, eu não sei”, disse o garoto. “Juro.”
“Quando foi que viu a bicicleta pela última vez?”, perguntou Hamilton.
“Quando a gente trouxe ela da escola para casa e deixou na casa do Kip.”
“Kip”, disse Hamilton. “Você sabe onde a bicicleta está agora?”
“Juro que também não sei”, respondeu o garoto. “Trouxe ela de volta para
cá na manhã seguinte, depois que a gente trouxe ela da escola, e deixei atrás da
garagem.”
“Pensei que você tinha dito que deixou atrás da casa”, falou a mulher,
rápida.
“Eu quis dizer da casa! É o que eu quis dizer”, falou o garoto.
“Vocês voltaram pra cá algum dia para andar na bicicleta?”, perguntou ela,
inclinando-se para a frente.
“Não, eu não”, respondeu Kip.
“Kip?”, disse ela.
“Eu não! Eu não sei onde ela está!”, gritou o garoto.
A mulher levantou os ombros e deixou-os cair de novo. “Como é que a
gente vai saber em quê ou em quem acreditar?”, disse a Hamilton. “Só sei que
o Gilbert cou sem bicicleta.”
Gary Berman e o pai voltaram para a cozinha.
“Foi ideia do Roger rolar a bicicleta”, disse Gary Berman.
“Foi ideia sua!”, disse Roger, saindo da cadeira. “Você é que quis! Depois
quis levar para o pomar e depenar a bicicleta!”
“Cale a boca!”, disse Berman para Roger. “Você só pode falar quando
alguém falar com você, meu jovem, antes não. Gary, deixe eu cuidar disso —
imagine, ser obrigado a sair de casa e perder a noite por causa de uma dupla
de baderneiros! Bem, se algum dos dois”, disse Berman olhando para Kip e
para Roger, “sabe onde está a bicicleta do garoto, estou avisando para começar
a falar logo.”
“Acho que o senhor está agindo de modo inadequado”, disse Hamilton.
“O quê?”, disse Berman com a testa franzida. “Pois eu acho que era melhor
o senhor cuidar da sua vida!”
“Vamos, Roger”, disse Hamilton, pondo-se de pé. “Kip, você vem agora ou
ca?” Virou-se para a mulher. “Não sei o que mais podemos fazer nesta noite.
Vou conversar melhor com o Roger sobre essa história, mas se há uma
questão de indenização acho que, como o Roger ajudou a dani car a bicicleta,
ele pode pagar um terço, se for esse mesmo o caso.”
“Não sei o que dizer”, retrucou a mulher, acompanhando Hamilton pela
sala. “Vou falar com o pai do Gilbert — ele está fora da cidade agora. Vamos
ver. Na certa é uma dessas coisas que acontecem mesmo, mas vou falar com o
pai dele.”
Hamilton afastou-se de lado, para que os meninos pudessem seguir na sua
frente até a varanda, e, atrás dele, ouviu Gary Berman dizer: “Ele me chamou
de babaca, papai”.
“Chamou? Ele chamou?”, Hamilton ouviu Berman dizer. “Ora, ele é que é
um babaca. Tem cara de babaca.”
Hamilton virou-se e disse: “Acho que o senhor se portou de modo muito
inadequado esta noite, senhor Berman. O senhor devia se controlar”.
“E eu já falei que é melhor o senhor não meter o nariz onde não é
chamado!”, disse Berman.
“Vá para casa, Roger”, disse Hamilton, umedecendo os lábios. “Estou
falando sério”, disse. “Vá logo!” Roger e Kip foram para a calçada. Hamilton
cou parado na porta e olhou para Berman, que vinha atravessando a sala,
junto com o lho.
“Senhor Hamilton”, a mulher começou a falar, nervosa, mas não concluiu.
“O que é que o senhor está querendo?”, disse Berman para ele. “Vá embora,
saia do meu caminho!” Berman empurrou o ombro de Hamilton, que
escorregou da varanda e caiu numas moitas de espinhos, que estalaram. Ele
nem conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo. Saiu das moitas e
investiu para cima do homem, que estava parado na varanda. Os dois
desabaram no gramado. Rolaram na grama, Hamilton golpeou as costas de
Berman, cou em cima dele e, com os joelhos, prendeu seus braços no chão.
Segurou Berman pelo colarinho e começou a bater sua cabeça na grama
enquanto a mulher gritava: “Meu Deus do céu, alguém segure esses homens!
Pelo amor de Deus, alguém vá chamar a polícia!”.
Hamilton parou.
Berman olhou para ele e disse: “Saia de cima de mim”.
“Vocês estão bem?”, perguntou a mulher aos dois, quando se separaram.
“Pelo amor de Deus”, disse. Olhou para os homens, que caram de pé, um
pouco afastados um do outro, dando-se as costas, a respiração ofegante. Os
garotos mais velhos tinham se aglomerado na varanda para assistir; agora que
havia terminado, estavam esperando, olhavam para os homens, e depois
começaram a brincar de dar socos e golpes de boxe uns nos outros, nos braços
e nas costelas.
“Meninos, voltem já para dentro”, disse a mulher. “Nunca imaginei que
fosse ver isso”, disse e colocou a mão sobre o peito.
Hamilton estava suando e seus pulmões arderam quando tentou respirar
fundo. Havia uma bola de alguma coisa em sua garganta, de modo que, por
um instante, não conseguiu engolir. Começou a andar, o lho e o garoto
chamado Kip foram junto, cada um de um lado. Ouviu as portas do carro
baterem, o motor ser ligado. A luz dos faróis deslizaram à sua frente enquanto
ele caminhava.
Roger soluçou uma vez e Hamilton passou o braço no ombro do menino.
“É melhor eu ir para casa”, disse Kip e começou a chorar. “Meu pai vai me
procurar”, e o garoto saiu correndo.
“Desculpe”, disse Hamilton. “Desculpe ter feito você ver uma coisa dessas”,
disse Hamilton para o lho.
Continuaram andando e, quando chegaram ao quarteirão deles, Hamilton
retirou o braço.
“E o que ia acontecer se ele tivesse pegado uma faca, pai? Ou uma pedra?”
“Ele não faria uma coisa dessas”, disse Hamilton.
“Mas e se zesse?”, perguntou o lho.
“É difícil saber o que as pessoas vão fazer quando cam enfurecidas”, disse
Hamilton.
Começaram a andar na calçada que ia dar na porta de sua casa. Seu coração
cou abalado quando viu as janelas acesas.
“Deixe eu apalpar seus músculos”, disse o lho.
“Agora não”, disse Hamilton. “Agora trate de entrar, coma o seu jantar e vá
depressa para a cama. Diga a sua mãe que eu estou bem e que vou car aqui
na varanda alguns minutos.”
O menino passou o peso do corpo de um pé para o outro e olhou bem para
o pai, depois correu em direção à casa e começou a gritar: “Mãe! Mãe!”.
Ele sentou na varanda, encostou-se na parede da garagem e esticou as
pernas. O suor na testa havia secado. Sentia-se pegajoso por baixo da roupa.
Uma vez Hamilton tinha visto seu pai — um homem pálido, que falava
devagar, ombros curvados — metido numa situação como aquela. Foi uma
briga feia e os dois homens saíram machucados. Aconteceu num bar. O outro
homem era um lavrador. Hamilton amava o pai e podia recordar muitas coisas
dele. Mas agora estava se lembrando da única vez em que ele brigou, como se
aquilo fosse um retrato completo do homem.
Ainda estava sentado na varanda quando sua mulher apareceu.
“Meu Deus”, disse ela e segurou a cabeça do marido entre as mãos. “Entre,
tome um banho, coma alguma coisa e depois me conte o que aconteceu. A
comida ainda está quente. O Roger foi para a cama.”
Mas ele ouviu o lho chamando.
“Ainda está acordado”, disse ela.
“Já vou”, disse Hamilton. “Aí quem sabe a gente podia tomar um drinque.”
Ela assentiu com a cabeça. “Ainda não consigo acreditar nisso.”
Hamilton foi até o quarto do menino e sentou-se ao pé da cama.
“Já é bem tarde e você continua acordado, portanto vim só dizer boa-noite”,
disse Hamilton.
“Boa noite”, disse o menino, com as mãos atrás do pescoço, os cotovelos
apontados para fora.
Estava de pijama, tinha um cheiro fresco e quente, que Hamilton inalava
profundamente. Fez um carinho de leve no lho, com a mão, por cima do
cobertor.
“Agora trate de tomar juízo. Fique longe daquela parte do bairro, e não
quero nunca mais ouvir falar que você estragou uma bicicleta ou nenhum
outro objeto de quem quer que seja. Está claro?”, disse Hamilton
O menino fez que sim com a cabeça. Tirou as mãos de trás do pescoço e
começou a mexer em alguma coisa na coberta.
“Muito bem”, disse Hamilton. “Vou dar boa-noite.”
Moveu-se para beijar o lho, mas o garoto começou a falar.
“Pai, o vovô era forte que nem você? Quando ele tinha a sua idade, quer
dizer, sabe, e você...”
“E eu tinha nove anos? É isso o que quer dizer? Sim, acho que era”, disse
Hamilton.
“Eu quase não consigo me lembrar dele”, disse o menino. “Não quero
esquecer nem ele nem nada, sabe? Entende o que estou dizendo, pai?”
Como Hamilton não respondeu de pronto, o garoto prosseguiu. “Quando
você era pequeno, era que nem é comigo e com você? Você gostava mais dele
do que eu? Ou era a mesma coisa?” O menino falou depressa, de modo
abrupto. Mexeu os pés embaixo do cobertor e olhou para o lado. Como
Hamilton continuou sem responder, o menino falou: “Ele fumava? Acho que
me lembro de um cachimbo ou uma coisa assim”.
“Ele começou a fumar cachimbo antes de morrer, é verdade”, disse
Hamilton. “Tinha fumado cigarro muito tempo antes, depois cou deprimido
com alguma coisa e acabou parando, mas depois mudou de marca e voltou a
fumar. Vou lhe mostrar uma coisa”, disse Hamilton. “Cheire as costas da
minha mão.”
O menino pegou a mão do pai, cheirou e disse: “Acho que não estou
sentindo cheiro de nada, pai. O que é?”.
Hamilton cheirou a mão e depois os dedos. “Agora também não estou
sentindo cheiro de nada”, disse. “Estava aqui antes, mas não tem mais.” Vai ver
que o medo tirou o cheiro de mim, pensou. “Queria mostrar uma coisa a
você, mas já é tarde agora. É melhor você dormir”, disse Hamilton.
O menino rolou para o lado e viu seu pai andar até a porta, pôr a mão no
interruptor. Então o menino falou: “Pai? Você vai achar que eu sou muito
maluco, mas eu bem que gostaria de conhecer você quando era pequeno.
Quer dizer, assim da minha idade agora. Não sei como falar isso, mas eu me
sinto meio solitário. É como... como se eu sentisse falta de você já agora,
quando paro para pensar. É muito maluco, isso, não é? Agora, por favor, deixe
a porta aberta”.
Hamilton deixou a porta aberta, mas depois pensou melhor e fechou-a até a
metade.
São milhas de verdade?
O fato é que o carro tem de ser vendido às pressas e Leo manda Toni
cuidar do assunto. Toni é esperta e tem personalidade. Ela vendia
enciclopédias para crianças de porta em porta. Conseguiu fazer Leo comprar,
apesar de ele não ter lhos. Depois Leo a chamou para sair e o encontro
acabou levando a isso. O negócio tem de ser em dinheiro e tem de ser fechado
nesta noite. Amanhã, alguém que eles conhecem pode mandar penhorar o
carro. Segunda-feira vão estar diante de um juiz, vão responder ao processo
em liberdade — mas a intimação para eles chegou ontem, quando seu
advogado deu entrada numa petição solicitando um acordo. A audiência na
segunda-feira não é preocupante, disse o advogado. Iam fazer algumas
perguntas, eles assinariam alguns documentos, e pronto. Mas venda o carro
conversível, disse ele — hoje, nesta noite. Podem car com o carrinho menor, o
carro do Leo, esse não tem problema. Mas se forem ao tribunal com aquele
carro grande e conversível a Justiça vai tomar o carro na hora e acabou-se.
Toni se veste. São quatro da tarde. Leo está preocupado porque as agências
podem fechar. Mas Toni demora para se vestir. Põe uma blusa nova, cor de
vinho, punhos largos e rendados, o conjuntinho novo de duas peças, sapato
novo de salto alto. Transfere suas coisas da bolsa de palha para a bolsa nova, de
couro envernizado. Observa a bolsinha de maquiagem feita de pele de lagarto
e a coloca também dentro da bolsa. Toni está fazendo o cabelo e maquiando o
rosto há duas horas. Leo está de pé na porta do quarto e bate de leve com os
nós dos dedos nos lábios, enquanto olha.
“Você está me deixando nervosa”, diz ela. “Preferia que não casse aí
parado”, diz. “E então, como é que eu estou?”
“Está bonita”, diz ele. “Está fantástica. Eu compraria um carro de você na
mesma hora.”
“Só que você não tem dinheiro”, diz ela enquanto espia no espelho. Ajeita o
cabelo, franze as sobrancelhas. “E o seu crédito é um horror. Você não é
nada”, diz ela. “Brincadeira”, diz, e olha para ele no espelho. “Não que sério”,
diz ela. “Tem de ser feito, portanto vou fazer. Se você for, consegue no
máximo trezentos, quatrocentos, nós dois sabemos disso. Querido, se você for,
vai ter sorte se não tiver de pagar para eles carem com o carro.” Dá um
último toque no cabelo, passa batom nos lábios, seca o batom com um
paninho. Dá as costas para o espelho e apanha a bolsa. “Vou ter de jantar fora
ou algo assim, já contei isso a você, é assim que eles trabalham, conheço essa
gente. Mas não se preocupe, vou me sair bem dessa história”, diz ela. “Vou dar
um jeito.”
“Puxa”, diz Leo. “Você precisava mesmo dizer isso?”
Ela olha bem rme para ele. “Me deseje sorte”, diz.
“Boa sorte”, diz ele. “Está com a calcinha cor-de-rosa?”
Ela faz que sim com a cabeça. Ele a segue pela casa, uma mulher alta com o
busto pequeno e alto, coxas e quadris largos. Ele cutuca uma espinha no
pescoço. “Tem certeza?”, diz. “Veri que bem. Você precisa levar a calcinha
cor-de-rosa.”
“Estou com a calcinha cor-de-rosa”, diz ela.
“Veri que.”
Ela começa a dizer alguma coisa, mas em vez disso olha para si mesma na
janela da frente e depois balança a cabeça.
“Pelo menos telefone”, diz ele. “Me conte como as coisas estão andando.”
“Vou ligar”, diz ela. “Beije, beije. Aqui”, diz, e aponta para o canto da boca.
“Com cuidado”, diz ela.
Ele segura a porta aberta para ela. “Aonde é que você vai tentar primeiro?”,
pergunta. Ela passa por ele e vai até a varanda.
Ernest Williams olha do outro lado da rua. De bermuda, a barriga grande
pendurada, olha para Leo e Toni enquanto rega suas begônias com a
mangueira. Uma vez, no último inverno, durante as férias, quando Toni foi
visitar a mãe de Leo junto com as crianças, Leo trouxe uma mulher para casa.
Às nove horas da manhã seguinte, um sábado frio e nevoento, Leo levou a
mulher até o carro e surpreendeu Ernest Williams na calçada, com um jornal
na mão. A neblina correu no vento, Ernest Williams olhou bem, depois bateu
com o jornal na perna, com força.
Leo se lembra daquela batida de jornal, arqueia os ombros, diz: “Você tem
algum lugar em mente para ir primeiro?”.
“Vou só seguir a la”, diz ela. “Começo pela primeira agência, depois vou
seguindo pela ordem.”
“Comece com novecentos”, diz ele. “Depois vá abaixando. Novecentos é
pouco, mesmo para um negócio em dinheiro.”
“Sei por onde começar”, diz ela.
Ernest Williams vira a mangueira na direção deles. Olha para os dois por
trás do borrifo da água. Leo sente o ímpeto de gritar uma con ssão.
“É só para con rmar”, diz.
“Tá legal, tá legal”, diz ela. “Estou indo.”
Trata-se do carro dela, que eles chamam de o carro, o que torna tudo ainda
pior. Compraram o carro zero quilômetro no verão de três anos antes. Ela
queria ter alguma coisa para fazer depois que os lhos começaram a ir para a
escola e então voltou ao trabalho de vendedora. Ele trabalhava seis dias por
semana na fábrica de bra de vidro. Por um tempo, não sabiam como gastar o
dinheiro. Então puseram mil dólares no conversível e duplicaram e triplicaram
os pagamentos, até que no intervalo de um ano terminaram de pagar o carro.
Mais cedo, enquanto ela se vestia, ele tirou o macaco e o estepe da mala do
carro e retirou do porta-luvas os lápis, os fósforos e os cupons de desconto que
havia juntado nas lojas. Depois lavou o carro e passou o aspirador de pó. O
capô vermelho e os para-choques estão brilhando.
“Boa sorte”, diz ele e toca no cotovelo de Toni.
Ela faz que sim com a cabeça. Ele vê que Toni já está longe, já está
negociando.
“As coisas vão ser diferentes!”, diz para Toni quando ela chega à entrada da
garagem. “Vamos começar na segunda-feira. Falando sério.”
Ernest Williams olha para eles, vira a cabeça e cospe. Ela entra no carro e
acende um cigarro.
“Neste mesmo horário, daqui a uma semana!”, diz Leo outra vez. “Tudo
isto já será uma história antiga!”
Ele acena enquanto ela dá ré até a rua. Ela muda a marcha e parte para a
frente. Acelera e os pneus cantam de leve no asfalto.
Na cozinha, Leo serve-se de uma dose de uísque e leva a bebida ao quintal.
Os lhos estão com a mãe dele. Três dias antes havia chegado uma carta, o
nome dele escrito a lápis na parte de fora do envelope sujo, a única carta em
todo aquele verão que não cobrava o pagamento integral de nada. A gente
está se divertindo, dizia a carta. A gente gosta da vovó. A gente tem um
cachorro novo chamado Mr. Six. Ele é legal. A gente adora ele. Até logo.
Leo vai buscar outro drinque. Acrescenta gelo e vê que sua mão está
tremendo. Mantém a mão erguida acima da pia. Olha a mão por um tempo,
baixa o copo e estende a outra mão. Então levanta o copo e volta para se
sentar na escadinha da varanda. Lembra quando era garoto e seu pai indicou
uma casa bonita, uma casa branca e alta, rodeada por macieiras e por uma
cerca branca e alta. “É a casa do Finch”, disse o pai com admiração. “Esteve à
beira da bancarrota pelo menos duas vezes. Olhe só aquela casa.” Mas a
bancarrota é uma empresa que vai abaixo por completo, executivos cortam os
pulsos e se atiram das janelas, milhares de homens no olho da rua.
Leo e Toni ainda têm os móveis. Leo e Toni têm os móveis e Toni e os lhos
têm as roupas. Essas coisas estão a salvo. O quê mais? As bicicletas das
crianças, mas ele as mandou para a casa da mãe, por precaução. O ar-
condicionado portátil e os eletrodomésticos, máquinas de lavar e de secar
novas, os caminhões vieram pegar tudo aquilo semanas antes. O que mais eles
tinham? Uma coisinha aqui, outra ali, nada de especial, bagulhos que caram
surrados ou se quebraram muito tempo antes. Mas naquela época havia umas
festas grandes, viagens boas. Para Reno e Tahoe, a cento e vinte quilômetros
por hora, com o teto do carro arriado e o rádio tocando. Comida, esse era um
dos itens mais importantes. Eles se esbaldavam com a comida. Ele calcula em
milhares de dólares a despesa só com produtos de luxo. Toni ia ao mercado e
pegava tudo o que via. “Eu fui obrigada a viver sem tudo isso quando era
pequena”, dizia ela. “Meus lhos não vão ter de passar sem isso”, como se ele
estivesse insistindo em que os lhos tinham de se privar daquilo. Toni se
associa a todos os clubes de livro. “Quando eu era pequena, nunca tínhamos
livros em casa”, diz, enquanto rasga o papel de embrulho dos pesados pacotes
que chegam pelo correio. Eles se liam aos clubes de discos para ter o que
tocar no equipamento estéreo novo. Associam-se a tudo. Compram até uma
cadela terrier com pedigree chamada Ginger. Ele pagou duzentos dólares pelo
bicho e uma semana depois viu a cachorra atropelada na rua. Os dois
compram tudo o que querem. Se não podem pagar, põem na conta. Assinam
promissórias.
A camiseta de Leo está molhada; sente o suor escorrendo pelas axilas. Senta-
se na escadinha da entrada com o copo vazio na mão e vê as sombras
cobrirem o jardim. Se espreguiça, esfrega o rosto. Escuta o barulho do trânsito
na rodovia e pensa se deve ir ao porão, subir no tanque e se enforcar com o
cinto. Percebe que está com vontade de morrer.
Lá dentro, ele se serve de um drinque grande, liga a tevê e prepara alguma
coisa para comer. Senta à mesa com bolachas e pimenta e assiste a alguma
coisa na tevê sobre um detetive cego. Limpa a mesa. Lava a panela e a tigela,
enxuga e guarda, depois se permite uma olhada no relógio.
Já passa das nove da noite. Já faz cinco horas que ela saiu.
Ele se serve de uísque, acrescenta água, leva o drinque até a sala. Senta no
sofá, mas se dá conta de que os ombros estão tão tensos que não deixam ele se
reclinar para trás. Olha a tela da tevê, bebe aos golinhos e dali a pouco vai
preparar outro drinque. Senta de novo. Começa um programa de notícias —
são dez horas — e ele diz: “Meu Deus, a nal, o que foi que deu errado?”, vai
para a cozinha e volta com mais uísque. Senta, fecha os olhos e abre quando
ouve o telefone tocar.
“Eu queria ligar”, diz ela.
“Onde você está?”, pergunta ele. Ouve música de piano e sente uma
pontada no coração.
“Não sei”, diz ela. “Num bar. Estamos tomando um drinque, depois vamos
a outro lugar para jantar. Estou com o gerente de vendas. Ele é meio grosso,
mas é boa gente. Ele comprou o carro. Agora preciso desligar. Estava indo
para o banheiro e vi o telefone.”
“Alguém comprou o carro?”, pergunta Leo. Pela janela da cozinha, olha para
o lugar onde ela sempre estaciona o carro.
“Eu já falei”, diz ela. “Agora preciso desligar.”
“Espere, espere um minuto, pelo amor de Deus”, diz ele. “Alguém comprou
o carro ou não?”
“Ele tinha pegado o talão de cheques quando eu saí”, diz ela. “Agora tenho
de desligar. Preciso ir ao banheiro.”
“Espere!”, grita ele. A linha ca muda. Ele ouve o ruído de discar. “Meu
Deus”, diz ele, parado de pé com o fone na mão.
Fica rodando pela cozinha e volta à sala. Senta. Levanta. No banheiro,
escova os dentes com todo o cuidado. Depois usa o o dental. Lava o rosto e
volta à cozinha. Olha o relógio e pega um copo limpo de um conjunto de
copos que têm cartas de baralho pintadas no vidro. Enche o copo de gelo. Fica
olhando por um tempo para o copo, que coloca dentro da pia.
Senta na ponta do sofá, estica as pernas e apoia os pés na outra ponta do
sofá. Olha a tela da tevê, se dá conta de que não consegue entender o que as
pessoas estão falando. Vira o copo vazio na mão e pensa em morder a borda
de vidro até quebrar. Estremece por um momento e pensa em ir para a cama,
embora saiba que vai sonhar com uma mulher grande, de cabelos cinzentos.
No sonho, ele está sempre debruçado na direção do chão, amarrando o
cadarço dos sapatos. Quando se levanta, ela olha para ele e ele se curva para
amarrar os cadarços outra vez. Olha para a mão. Fica de punho cerrado
enquanto está olhando. O telefone toca.
“Onde você está, querida?”, diz ele devagar, em tom gentil.
“Estamos num restaurante”, diz ela, com voz forte, clara.
“Em que restaurante, querida?”, diz ele. Encosta a palma da mãos nos olhos
e aperta.
“Algum lugar no centro”, diz ela. “Acho que o New Jimmy’s. Me desculpe”,
diz ela para alguém no restaurante, “aqui é o New Jimmy’s? É o New Jimmy’s,
sim, Leo”, diz para ele. “Está tudo bem, já estamos quase terminando, depois
ele vai me levar para casa.”
“Querida?”, diz ele. Segura o fone colado à orelha e se balança para a frente
e para trás, de olhos fechados. “Querida?”
“Preciso desligar”, diz ela. “Eu queria telefonar. Aliás, adivinha quanto foi?”
“Querida”, diz ele.
“Seiscentos e vinte e cinco”, diz ela. “Estou com o dinheiro dentro da bolsa.
Ele diz que não tem mercado para conversíveis. Acho que a gente nasceu
mesmo com sorte”, diz ela e ri. “Contei tudo pra ele. Acho que foi preciso.”
“Querida”, diz Leo.
“O que foi?” diz ela.
“Por favor, querida”, diz Leo.
“Ele falou que é solidário com a minha situação”, diz ela. “Mas ele falaria
qualquer coisa.” Ela ri de novo. “Disse que preferiria ser classi cado como la‐
drão ou estuprador a ser classi cado como um falido. Mas até que ele é
bastante gentil”, diz ela.
“Venha para casa”, diz Leo. “Pegue um táxi e venha para casa.”
“Não posso”, diz ela. “Já falei, estamos no meio do jantar.”
“Vou aí buscar você”, diz ele.
“Não”, diz ela. “Já falei que estamos terminando. Escute, isso faz parte do
trato. Eles querem tudo a que têm direito. Mas não se preocupe, já vamos sair
daqui logo. Vou estar em casa daqui a pouco.” Ela desliga.
Poucos minutos depois, Leo telefona para o restaurante New Jimmy’s. Um
homem atende. “O New Jimmy’s está fechado esta noite.”
“Eu queria falar com a minha mulher”, diz Leo.
“Ela trabalha aqui?”, pergunta o homem. “Quem é ela?”
“É uma cliente”, diz Leo. “Está com alguém. Um homem de negócios.”
“Eu a conheço?”, pergunta o homem. “Como ela se chama?”
“Acho que você não conhece”, diz Leo. “Não tem importância”, diz. “Está
tudo bem. Acho que ela está chegando.”
“Obrigado por ligar para o New Jimmy’s”, diz o homem.
Leo vai correndo até a janela. Um carro que ele não conhece diminui a
velocidade bem em frente da casa, depois parte rápido. Ele espera. Duas, três
horas depois, o telefone toca outra vez. Não tem ninguém do outro lado
quando ele pega o fone. Só o sinal de discar.
“Estou aqui!”, grita Leo para o fone.
Perto do raiar do dia ele ouve passos na varanda. Levanta do sofá. O
televisor zumbe, a tela brilha. Ele abre a porta. Ao entrar, ela esbarra na
parede. Sorri. Tem o rosto inchado, como se tivesse dormido sob o efeito de
sedativos. Movimenta os lábios, se abaixa muito e oscila o corpo quando ele
cerra o punho.
“Vá em frente”, diz ela com voz pastosa. Fica de pé, oscilando. Então faz um
ruído e ataca, agarra a camisa dele, rasga a parte da frente. “Falido!”, diz ela.
Torce o corpo, agarra e rasga a camiseta de baixo de Leo na altura do pescoço.
“Seu lho da puta”, diz, cravando as unhas.
Ele aperta os pulsos de Toni, depois solta, recua, olha em volta, em busca de
algo pesado. Ela tropeça a caminho do quarto. “Falido!”, sussurra. Leo ouve
Toni cair na cama e roncar.
Ele espera um tempo, depois joga água no rosto e vai para o quarto. Acende
as luzes, olha para ela e começa a tirar as roupas de Toni. Empurra e puxa o
corpo dela enquanto vai tirando suas roupas. Ela fala alguma coisa em seu
sono e mexe a mão. Ele tira a calcinha dela, a examina com atenção sob a luz e
joga num canto. Puxa as cobertas e envolve Toni nua. Depois abre a bolsa.
Está lendo o que está escrito no cheque quando ouve o barulho do carro na
entrada.
Olha através da cortina da frente e vê o conversível na entrada, o motor
girando suave, os faróis acesos, e ele fecha e abre os olhos. Vê um homem alto
dar a volta pela frente do carro e vir até a varanda. O homem coloca alguma
coisa na varanda e volta para o carro. Veste um terno branco de linho.
Leo acende a luz da varanda e abre a porta com cuidado. A bolsinha de
maquiagem de Toni está no último degrau da escadinha. O homem olha para
Leo, por trás da dianteira do carro, em seguida entra no carro de novo e solta
o freio de mão.
“Espere!”, diz Leo e começa a descer a escadinha. O homem freia o carro,
enquanto Leo anda na frente dos faróis. O carro range contra a pressão do
freio. Leo tenta juntar as duas partes de sua camisa, tenta embolar tudo por
baixo da cintura da calça.
“O que é que você quer?”, diz o homem. “Olhe”, diz o homem, “preciso ir
embora. Está tudo certo. Eu compro e vendo carros, certo? A senhora deixou
a maquiagem. É uma mulher na, muito re nada. O que é?”
Leo debruça na porta e olha para o homem lá dentro. O homem tira as
mãos do volante e volta a colocá-las ali. Engrena a marcha a ré e o carro anda
um pouco para trás.
“Quero contar para você”, diz Leo e umedece os lábios.
A luz no quarto de Ernest Williams acende. A persiana levanta.
Leo sacode a cabeça, ajeita a camisa outra vez. Se afasta do carro. “Segunda-
feira”, diz.
“Segunda-feira”, diz o homem e ca à espera de algum movimento súbito.
Leo faz que sim com a cabeça, devagar.
“Bem, boa noite”, diz o homem e tosse. “Fique calmo, está certo? Segunda-
feira, combinado. Então até lá.” Tira o pé do freio, pisa no freio de novo,
depois de recuar um ou dois metros. “Ei, uma pergunta. Aqui entre nós, essas
milhas marcadas aqui no velocímetro são de verdade?” O homem espera,
depois tosse de leve. “Tudo bem, olhe, não tem mesmo importância”, diz.
“Preciso ir. Fique calmo.” Dá ré em direção à rua, arranca depressa e dobra a
esquina sem parar.
Leo ajeita a camisa e volta para casa. Tranca a porta da frente e veri ca a
fechadura. Depois vai para o quarto, tranca a porta e puxa as cobertas. Olha
para ela antes de apagar as luzes. Tira a roupa, dobra-a com cuidado no chão e
vai para a cama, ao lado dela. Fica deitado de costas por um tempo e puxa os
pelos da barriga, pensando. Olha para a porta do quarto, agora com a silhueta
desenhada pela luz fraca que vem de fora. Logo depois estende a mão e toca o
quadril de Toni. Ela não se mexe. Ele vira de lado e põe a mão no quadril de
Toni. Corre os dedos por seu quadril e sente as marcas das estrias na pele. São
como estradas e ele segue seu traçado sobre a pele de Toni. Fica passeando
com os dedos de um lado para o outro nas estrias, primeiro uma, depois outra.
As estrias percorrem todos os cantos da carne dela, dúzias, talvez centenas.
Leo se lembra de como acordou na manhã seguinte ao dia em que eles
compraram o carro e o viu na entrada da garagem, reluzindo ao sol.
Sinais
É
“Viu o terno que ele estava vestindo?”, disse Wayne. “É raro ver um terno
que nem esse. É um terno de trezentos dólares.” Pegou o seu cardápio. Depois
de um instante, disse: “Bem, o que você vai pedir?”.
“Não sei”, disse ela. “Ainda não decidi. O que você vai pedir?”
“Não sei”, disse ele. “Também não decidi.”
“Que tal um desses pratos franceses, Wayne? Ou que tal este? Olhe, aqui do
lado.” Apontou o dedo para orientá-lo e então estreitou os olhos para Wayne,
enquanto ele tentava entender em que língua o nome do prato estava escrito,
contraía os lábios, franzia as sobrancelhas e balançava a cabeça.
“Não sei”, disse ele. “Eu gostaria de saber o que estou pedindo. Acontece
que eu não entendo.”
O garçom voltou com um bloco e um lápis e falou algo que Wayne não
conseguiu entender direito.
“A gente ainda não escolheu”, disse Wayne. Ele balançou a cabeça enquanto
o garçom continuava parado junto à mesa. “Faço um sinal quando a gente
tiver decidido.”
“Acho que vou pedir só um lé mesmo. Você pede o que quiser”, disse para
Caroline quando o garçom se afastou. Ele fechou o cardápio e levantou sua
taça. Por cima das vozes contidas que vinham das outras mesas, Wayne ouviu
um trinado de pássaro que vinha do aviário. Viu que Aldo cumprimentou um
grupo de quatro pessoas, bateu um papo ligeiro com eles, enquanto sorria,
assentia com a cabeça e os conduzia para outra mesa.
“A gente bem que podia ter pegado uma mesa melhor”, disse Wayne. “Em
vez desta bem aqui no meio, onde todo mundo ca passando toda hora e vê a
gente comendo. A gente podia ter cado numa mesa junto à parede. Ou então
lá na frente, perto do chafariz.”
“Acho que vou pedir tournedos”, disse Caroline.
Ela continuou olhando o cardápio. Ele tirou um cigarro do maço, acendeu e
depois olhou em volta para os outros clientes que estavam jantando. Caroline
continuava olhando o cardápio.
“Bom, pelo amor de Deus, se é isso que você vai pedir, feche o cardápio pra
gente poder fazer o pedido.” Wayne levantou o braço para o garçom, que
estava fazendo hora perto dos fundos, falando com outro garçom.
“Não tem mais nada para fazer senão jogar conversa fora com outros
garçons”, disse Wayne.
“Ele vem vindo”, disse Caroline.
“Pois não, senhor?” O garçom era um homem com marcas de varíola na
cara, de terno preto folgado e gravata-borboleta preta.
“... E nós vamos querer uma garrafa de champanhe, acho. Uma garrafa
pequena. Alguma coisa, sabe, assim, doméstica”, disse Wayne.
“Sim, senhor”, disse o garçom.
“E a gente quer isso bem depressa. Antes da salada ou dos tira-gostos”, disse
Wayne.
“Ah, mas traga logo os tira-gostos”, disse Caroline. “Por favor.”
“Sim, madame”, disse o garçom.
“Esses caras são um bando de dissimulados”, disse Wayne. “Lembra daquele
cara chamado Bruno, que trabalhava no escritório durante a semana e era
garçom nos nais de semana? Fred pegou o sujeito roubando no caixa de
pequenas despesas. A gente mandou o sujeito embora.”
“Vamos conversar sobre coisas mais agradáveis”, disse Caroline.
“Claro, está certo”, disse Wayne.
O garçom serviu um pouco de champanhe na taça de Wayne e Wayne
pegou a taça, provou e disse: “Tudo bem, esse vai servir perfeitamente”. Em
seguida, falou: “À sua saúde, meu bem”, e levantou a taça bem alto. “Feliz
aniversário.”
Tocaram as taças uma na outra.
“Eu gosto de champanhe”, disse Caroline.
“Eu gosto de champanhe”, disse Wayne.
“A gente podia pedir uma garrafa de Lancer”, disse Caroline.
“Bem, por que você não falou nada, se era o que queria?”, disse Wayne.
“Não sei”, disse Caroline. “Na hora não pensei. Mas isso está bom de todo
jeito.”
“Não conheço muita coisa sobre champanhe. Não me importo de admitir,
não sou lá nenhum... connoisseur. Não me importo de admitir que não passo
de um sujeito sem cultura.” Ele riu e tentou captar o olhar dela, mas ela estava
muito ocupada escolhendo uma azeitona no prato de tira-gostos. “Bem
diferente desse grupo com quem você anda saindo ultimamente. Mas se você
queria pedir um Lancer”, prosseguiu ele, “devia ter pedido um Lancer.”
“Ah, cale a boca!”, disse ela. “Não pode falar de outra coisa?” Ergueu os
olhos para Wayne e ele teve de desviar o olhar. Ele mexeu os pés embaixo da
mesa.
Ele disse: “Não quer um mais pouco de champanhe, querida?”.
“Sim, quero, obrigada”, respondeu ela em voz baixa.
“À nossa saúde”, disse ele.
“À nossa, querido”, disse ela.
Olharam xamente um para o outro enquanto bebiam.
“A gente devia fazer isso mais vezes”, disse ele.
Ela fez que sim com a cabeça.
“É bom sair de casa de vez em quando. Vou fazer um esforço, se você quiser
mesmo.”
Ela pegou um aipo. “Depende de você.”
“Não é verdade.” Não sou quem... quem...”
“Quem o quê?”, perguntou ela.
“Não me importa o que você faz”, disse ele, baixando os olhos.
“É verdade?”
“Não sei por que falei isso.”
O garçom trouxe a sopa, levou a garrafa e as taças de vinho e encheu de
novo seus cálices com água.
“Podia me trazer uma colher de sopa?”, pediu Wayne.
“O quê, senhor?”
“Uma colher de sopa”, repetiu Wayne.
O garçom pareceu surpreso e depois perplexo. Olhou em volta para as
outras mesas. Wayne fez com a mão um movimento de pegar colheradas da
sua sopa. Aldo surgiu junto à mesa.
“Está tudo bem? Alguma coisa errada?”
“Parece que não tem colher de sopa para o meu marido”, disse Caroline.
“Desculpe o incômodo”, disse ela.
“Claro. Une cuiller, s’il vous plaît”, disse Aldo ao garçom, com voz serena.
Lançou um olhar para Wayne e em seguida explicou a Caroline. “É a primeira
noite de Paul. Ele fala pouco inglês, mesmo assim tenho certeza de que os
senhores vão concordar que ele é um excelente garçom. O rapaz que serviu a
mesa esqueceu de pôr a colher.” Aldo sorriu. “Sem dúvida isso pegou Paul de
surpresa.”
“É um lugar lindo aqui”, disse Caroline.
“Obrigado”, disse Aldo. “Estou encantado por vocês terem vindo.
Gostariam de ver a adega de vinhos e as salas de jantar privativas?”
“Sim, muito”, disse Caroline.
“Vou pedir que alguém mostre a vocês, depois que terminarem de jantar”,
disse Aldo.
“Vai ser um grande prazer”, disse Caroline.
Aldo curvou-se ligeiramente e lançou de novo um olhar a Wayne. “Espero
que apreciem o jantar”, disse.
“Que palhaço”, disse Wayne.
“Quem?”, perguntou ela. “De quem você está falando?”, disse ela, baixando
a colher na mesa.
“O garçom”, respondeu Wayne. “O garçom. O mais novo e o mais idiota de
todos os garçons do restaurante, e a gente foi pegar logo ele.”
“Tome a sua sopa”, disse ela. “Não se irrite.”
Wayne acendeu um cigarro. O garçom trouxe as saladas e levou as tigelas de
sopa.
Quando começaram a comer o prato principal, Wayne disse: “Bem, o que é
que você acha? Ainda há uma chance pra gente ou não?” Ele olhou para baixo
e arrumou o guardanapo no colo.
“Pode ser que sim”, disse ela. “Há sempre uma chance.”
“Não me venha com esse papo furado”, disse ele. “Dê uma resposta direta
pelo menos uma vez na vida, só pra variar.”
“Não que agressivo comigo”, disse ela.
“Estou só perguntando”, disse ele. “Me dê uma resposta direta”, pediu.
Ela falou: “Quer alguma coisa assinada com sangue?”.
Ele disse: “Até que não seria má ideia”.
Ela disse: “Pois escute aqui! Dei a você os melhores anos da minha vida. Os
melhores anos da minha vida!”.
“Os melhores anos da sua vida?”, disse ele.
“Tenho trinta e seis anos”, disse ela. “Faço trinta e sete esta noite. Hoje,
neste momento, neste minuto, não tenho condições de dizer o que vou fazer.
Preciso ver melhor”, disse ela.
“Não me interessa o que você faz”, disse ele.
“É mesmo verdade?”, disse ela.
Ele largou o garfo e jogou o guardanapo na mesa com força.
“Já terminou?”, perguntou ela com ar amigável. “Vamos tomar café e comer
a sobremesa. Vamos pedir uma sobremesa gostosa. Uma coisa boa de
verdade.”
Ela comeu tudo o que tinha no prato.
“Dois cafés”, disse Wayne ao garçom. Olhou para ela e depois para o
garçom outra vez. “O que vocês têm de sobremesa?”, perguntou.
“Senhor?”, disse o garçom.
“Sobremesa!”, disse Wayne.
O garçom olhou para Caroline e depois para Wayne.
“Deixe a sobremesa pra lá”, disse ela. “Não vamos comer sobremesa
nenhuma.”
“Musse de chocolate”, disse o garçom. “Sorvete de laranja”, disse o garçom.
Sorriu, deixando à mostra os dentes ruins. “Senhor?”
“E também não quero nenhum passeio guiado pelo restaurante”, disse
Wayne quando o garçom se afastou.
Quando os dois se levantaram da mesa, Wayne deixou uma nota de um
dólar perto da xícara de café. Caroline pegou dois dólares dentro da sua bolsa,
alisou as notas e colocou-as ao lado da nota de um dólar, as três notas caram
em linha, uma ao lado da outra.
Ela esperou com Wayne enquanto ele pagava a conta. Com o canto dos
olhos, Wayne podia ver Aldo parado perto da porta jogando sementes para os
pássaros no aviário. Aldo olhou na direção deles, sorriu e continuou a espalhar
sementes, que escorriam entre seus dedos, enquanto os pássaros vinham catá-
las junto a seus pés. Então, num gesto brusco, esfregou as mãos uma na outra
e começou a andar na direção de Wayne, que virou o rosto para o outro lado e
se virou de costas, devagar, mas de forma bastante signi cativa, quando Aldo
se aproximou. Porém, na hora em que Wayne olhou para trás, viu Aldo pegar
a mão estendida de Caroline, viu Aldo juntar os calcanhares com elegância,
viu Aldo beijar o pulso de Caroline.
“Madame apreciou o jantar?”, perguntou Aldo.
“Estava maravilhoso”, disse Caroline.
“A senhora vai voltar de vez em quando?”, perguntou Aldo.
“Vou”, disse Caroline. “Sempre que puder. Na próxima vez, gostaria de ter
sua permissão para dar uma olhada no restaurante, mas desta vez precisamos
ir embora.”
“Cara senhora”, disse Aldo. “Tenho uma coisa para a senhora. Um
momento, por favor.” Pegou um vaso numa mesa perto da porta e, com um
gesto gracioso, apanhou uma rosa de caule comprido.
“Para a cara senhora”, disse Aldo. “Mas tome cuidado, por favor. Os
espinhos. Uma senhora muito adorável”, disse a Wayne, sorriu para ele e
virou-se para cumprimentar outro casal.
Caroline cou parada.
“Vamos embora daqui”, disse Wayne.
“Está vendo só como ele devia mesmo ser amigo da Lana Turner?”, disse
Caroline. Segurou a rosa e girou-a entre os dedos.
“Boa noite!”, disse ela para Aldo, de costas.
Mas Aldo estava ocupado, escolhendo outra rosa.
“Pois eu acho que ele nunca chegou a conhecer Lana Turner”, disse Wayne.
Você poderia car quieta, por favor?
I.
Q uando tinha dezoito anos e foi morar sozinho pela primeira vez, Ralph
Wyman recebeu do pai, diretor da escola elementar de Jefferson e
solista de trompete da banda auxiliar do Clube dos Alces de Weaverville, o
conselho de que a vida era uma coisa muito séria, uma jornada que exigia
força e determinação de um jovem que estava apenas dando seus primeiros
passos, uma incumbência árdua, todo mundo sabia disso, mas que mesmo
assim era compensadora, o pai de Ralph Wyman acreditava, e assim lhe disse.
Mas na faculdade os objetivos de Ralph eram nebulosos. Pensou que queria
ser médico, e pensou que queria ser advogado, e fez cursos preparatórios de
medicina, e cursos de história da jurisprudência e de legislação comercial,
antes de chegar à conclusão de que não tinha nem o distanciamento
emocional necessário para a medicina nem a capacidade de leitura prolongada
e atenta exigida pelo direito, sobretudo quando tais leituras podiam tratar de
propriedade e de herança. Embora continuasse a ter aulas aqui e ali no campo
das ciências e dos negócios, Ralph também tinha aulas de loso a e literatura
e sentia-se à beira de algum tipo de descoberta colossal a respeito de si mesmo.
Mas ela nunca chegava. Foi durante esse período — a sua maré mais baixa,
como se referiria a isso tempos depois — que Ralph achou que quase teve um
colapso nervoso; estava liado a uma agremiação de estudantes na faculdade e
se embriagava todas as noites. Bebia tanto que ganhou fama e era chamado de
“Jackson”, em homenagem ao garçom do bar The Keg.
Então, no terceiro ano da faculdade, Ralph caiu sob a in uência de um
professor especialmente persuasivo. Dr. Maxwell era o seu nome; Ralph nunca
mais o esqueceria. Era um homem simpático, elegante, de quarenta e poucos
anos, maneiras re nadas e um ligeiro sotaque sulista na voz. Havia se formado
em Vanderbilt, tinha estudado na Europa e mais tarde teve algo a ver com
uma ou duas revistas literárias no leste do país. Quase do dia para a noite, diria
Ralph tempos depois, resolveu optar pela carreira de professor. Parou de beber
tanto, começou a meter a cara nos estudos, e no intervalo de um ano foi eleito
para a Ômega Psi, a associação nacional de jornalismo; tornou-se membro do
Clube Inglês; foi convidado a levar seu violoncelo, que ele não tocava fazia três
anos, e se incorporar a um grupo estudantil de música de câmara em
formação; e chegou a concorrer com sucesso à vaga de secretário da turma do
último ano da faculdade. Foi então que conheceu Marian Ross — uma garota
graciosamente pálida e esguia que sentou ao seu lado numa aula sobre
Chaucer.
Marian Ross tinha cabelos compridos, gostava de vestir suéteres de gola rolê
e andava sempre com uma bolsa de couro balançando ao ombro, presa por
uma alça comprida. Os olhos eram grandes e pareciam captar tudo num só
relance. Ralph gostava de sair com Marian Ross. Iam ao The Keg e a uns
poucos lugares aonde todo mundo ia, mas nunca deixaram que o fato de
saírem juntos nem o noivado que veio depois, no verão seguinte, interferissem
nos seus estudos. Eram estudantes compenetrados e mais tarde os pais de
ambos deram sua aprovação para o namoro. Ralph e Marian deram suas aulas
de licenciatura no mesmo colégio secundário em Chico, na primavera, e
apresentaram seus trabalhos nais juntos, em junho. Casaram-se na Igreja
Episcopal de St. James duas semanas depois.
Ficaram de mãos dadas na noite anterior ao casamento e se
comprometeram a preservar para sempre o entusiasmo e o mistério do
casamento.
Na lua de mel, viajaram para Guadalajara e, enquanto os dois curtiam a
visita das igrejas decadentes e dos museus mal iluminados, as tardes que
passavam fazendo compras e explorando o mercado, Ralph estava estarrecido
com a miséria e com a lascívia descarada que via à sua volta e cou ansioso
para retornar à segurança da Califórnia. Mas a imagem de que iria se lembrar
para sempre e que o perturbava mais do que qualquer outra coisa nada tinha a
ver com o México. Foi no nal de uma tarde, quase noite, e Marian estava
apoiada nos braços, debruçada na balaustrada com ornatos de ferro na casita
que eles tinham alugado, quando Ralph veio chegando, subindo pela estrada
poeirenta. O cabelo dela era comprido e pendia para a frente, por cima dos
ombros, e ela estava olhando para longe, além dele, para alguma coisa a
distância. Estava de blusa branca, lenço vermelho e brilhante no pescoço, e
dava para ver seus seios pressionando o tecido branco. Ele vinha com uma
garrafa de um vinho escuro debaixo do braço, sem rótulo, e toda aquela
situação trouxe à mente de Ralph alguma coisa saída de um lme, um
momento fortemente dramático, no qual Marian se encaixava, mas ele não.
Antes de irem para a lua de mel, aceitaram propostas de emprego num
colégio secundário em Eureka, cidade da região madeireira no norte do
estado. Depois de um ano, quando já tinha certeza de que o colégio e a cidade
eram exatamente o que desejavam para se estabelecer, deram entrada numa
casa no distrito de Fire Hill. Sem pensar de fato no assunto, Ralph sentia que
ele e Marian se compreendiam mutuamente com perfeição — pelo menos tão
bem quanto era possível entre duas pessoas. Além do mais, Ralph sentia que
compreendia a si mesmo — o que podia fazer, o que não podia fazer, e que
rumo devia tomar, conforme a avaliação prudente que fazia de si mesmo.
Seus dois lhos, Dorothea e Robert, tinham agora cinco e quatro anos de
idade. Alguns meses depois de Robert nascer, Marian recebeu a proposta de
um emprego de professora de francês e inglês numa faculdade de dois anos na
periferia da cidade, e Ralph cou no colégio secundário. Eles se consideravam
um casal feliz, com uma única mancha em seu casamento, e mesmo assim era
algo situado num passado distante, dois anos antes daquele inverno. Era uma
coisa sobre a qual eles nunca haviam conversado. Mas Ralph pensava naquilo
às vezes — de fato, estava pronto a admitir que pensava naquilo com uma
frequência cada vez maior. Mais e mais, as imagens fantasmagóricas se
projetavam diante de seus olhos, alguns detalhes impensáveis. Pois ele havia
en ado na cabeça que a sua mulher o havia traído uma vez com um homem
chamado Mitchell Anderson.
Mas agora era noite de domingo, em novembro, os lhos estavam
dormindo, Ralph estava com sono, sentado no sofá, corrigindo provas, e podia
ouvir o rádio tocando baixinho na cozinha, onde Marian passava roupa, e ele
se sentia imensamente feliz. Fixou o olhar por um pouco mais de tempo nas
folhas de papel a sua frente, depois juntou-as todas e apagou a luz.
“Terminou, amor?”, perguntou Marian com um sorriso quando ele
apareceu na porta da cozinha. Estava sentada num banco alto com o ferro de
passar roupa colocado de pé, como se ela já estivesse a sua espera.
“Ainda não, que droga”, disse ele, com uma careta exagerada, e jogou as
folhas de papel em cima da mesa da cozinha.
Ela riu — radiante, simpática — e levantou o rosto para receber um beijo, e
ele lhe deu um beijinho na bochecha. Puxou uma cadeira e sentou-se junto à
mesa, inclinando-se para trás, apoiado nas pernas, e olhou para ela. Marian
sorriu de novo e depois baixou os olhos.
“Já estou quase dormindo”, disse ele.
“Café?”, perguntou ela, estendendo o braço e pondo as costas da mão na
cafeteira.
Ele fez que não com a cabeça.
Ela pegou o cigarro aceso que tinha deixado no cinzeiro, fumou enquanto
olhava o chão e depois o colocou de novo no cinzeiro. Olhou para Ralph e
uma expressão afetuosa passou por seu rosto. Era alta e esguia, de seios
bonitos, quadris estreitos e olhos grandes e lindos.
“Às vezes você ainda ca pensando naquela festa?”, perguntou ela, olhando
para ele.
Ele cou aturdido, se mexeu na cadeira e falou: “Que festa? Você está
falando daquela de dois ou três anos atrás?”.
Ela fez que sim com a cabeça.
Ele esperou e, como ela não comentou mais nada, falou: “O que é que tem
a festa? Agora que você tocou no assunto, o que é que tem a festa?”. E depois:
“Ele deu um beijo em você naquela noite, a nal, não foi? Quer dizer, eu sabia
que ele fez isso. Tentou beijar você, não foi?”.
“Eu só estava pensando e te perguntei, foi só isso”, disse ela. “Às vezes eu
penso naquilo”, disse ela.
“E aí, ele tentou, não foi? Vamos, diga, Marian”, disse ele.
“Você ainda pensa naquela noite?”, perguntou ela.
Ele disse: “Na verdade, não. Faz muito tempo, não faz? Três ou quatro anos.
Agora você pode me contar”. “Você está falando com o velho Jackson de
sempre, lembra?” E os dois riram de repente juntos, e de repente ela falou:
“Sim”. Ela disse: “Ele me deu uns beijos”. Sorriu.
Ele sabia que devia sorrir também, mas não conseguiu. Disse: “Antes você
me falou que não tinha acontecido nada. Disse que ele só pôs o braço em volta
de você enquanto estava dirigindo o carro. E então, o que foi que aconteceu?”.
“Por que você foi fazer isso?”, ela estava falando com ar sonhador. “Onde você esteve
a noite inteira?”, ele berrava, parado diante dela, as pernas bambas, o punho cerrado e
recuado, pronto para bater de novo. Então ela disse: “Não z nada. Por que está me
batendo?”, perguntou.
“Como foi que a gente começou esta conversa?”, disse ela.
“Você é que tocou no assunto”, disse ele.
Ela balançou a cabeça. “Não sei o que me fez pensar naquilo.” Mordeu o
lábio superior e olhou xo para o chão. Depois aprumou os ombros e olhou
para cima. “Se você me guardar essa tábua de passar, amor, preparo uma
bebida quente pra nós. Um rum com manteiga. Que tal?”
“Ótimo”, disse ele.
Ela foi até a sala, acendeu a luz e curvou-se para pegar uma revista que
estava no chão. Ralph observou os quadris de Marian por baixo da saia de lã
xadrez. Ela se moveu diante da janela e cou parada, olhando as luzes da rua.
Alisou a saia com a palma da mão, num movimento para baixo, depois
começou a en ar a blusa para dentro da cintura da saia. Ele se perguntou se
ela não estaria se perguntando se ele estava olhando para ela.
Depois que guardou a tábua de passar roupa, de pé, no seu cantinho na
varanda, Ralph sentou de novo e, quando ela entrou na sala, ele falou: “Bem, e
o que mais aconteceu entre você e o Mitchell Anderson naquela noite?”.
“Nada”, disse ela. “Eu estava pensando em outra coisa.”
“No quê?”
“Nas crianças, no vestido que eu queria dar para Dorothea na Páscoa que
vem. E também na aula que vou dar amanhã. Estava pensando nos alunos e se
dou ou não dou um pouco de Rimbaud”, e riu. “Foi sem querer que rimei, é
verdade, Ralph, e é verdade também que não aconteceu mais nada. Lamento
muito ter tocado no assunto.”
“Tudo bem”, disse ele.
Levantou-se, recostou-se na parede do lado da geladeira e observou Marian
pôr colheres de açúcar em duas xícaras e depois despejar o rum. A água no
fogão estava começando a ferver.
“Escute, querida, agora você já entrou mesmo nesse assunto”, disse ele, “e
aconteceu quatro anos atrás, por isso não consigo pensar em nenhum motivo
pra que a gente não possa falar disso agora, se quisermos. Não é?”
Ela disse: “Na verdade, não existe nada para conversar”.
Ele disse: “Eu gostaria de saber”.
Ela disse: “Saber o quê?”.
“O que mais ele fez além de beijar você? Somos adultos. Faz anos que não
vemos os Anderson e na certa nunca mais vamos encontrá-los, e a nal isso
aconteceu há muito tempo, logo que razão pode haver para que a gente não
converse sobre isso?” Ralph cou um pouco surpreso com o tom racional de
sua voz. Sentou-se e cou olhando para a toalha de mesa, depois ergueu os
olhos e olhou de novo para Marian. “E então?”, disse ele.
“Bem”, disse ela, com um sorriso malicioso, inclinando a cabeça para o lado,
com um ar juvenil, enquanto lembrava. “Não, Ralph, de verdade. Pre ro não
falar disso, de verdade.”
“Pelo amor de Deus, Marian! Agora estou falando sério”, disse ele, e de
repente percebeu que estava falando sério.
Ela apagou o fogo que esquentava a água e colocou a mão sobre o banco;
em seguida sentou, enganchando os saltos do sapato na trave de baixo do
banco. Inclinou-se para a frente, apoiando os braços cruzados sobre os joelhos,
enquanto os seios pressionavam a blusa. Fisgou com os dedos alguma coisa na
saia e depois ergueu os olhos.
“Você lembra que a Emily já tinha ido embora para casa com os Beatty e
por algum motivo o Mitchell cou para trás. Naquela noite ele parecia meio
estranho, para dizer o mínimo. Sei lá, vai ver que os dois estavam meio
brigados, ele e a Emily, sei lá. E havia você e eu, os Franklin, e o Mitchell
Anderson continuava lá. Todos nós estávamos meio embriagados. Não sei
direito como aconteceu, Ralph, mas de repente o Mitchell e eu nos vimos
sozinhos na cozinha, por um minuto, e não tinha mais uísque, só uma parte de
uma garrafa daquele vinho branco que a gente levou. Devia ser quase uma
hora, porque o Mitchell falou: ‘Se a gente for bem ligeiro, ainda consegue
chegar lá antes que a loja de bebidas feche’. Você sabe como ele era capaz de
ser teatral quando queria, não é? Gesticulação, meneios de corpo, expressões
faciais... De todo modo, ele estava muito espirituoso com aquela situação. Pelo
menos assim pareceu na ocasião. E muito embriagado também, devo
acrescentar. E eu também, aliás. Foi um impulso, Ralph. Não sei por que z
aquilo, não me pergunte, mas quando ele disse vamos lá, eu concordei. Fomos
para os fundos, onde o carro dele estava estacionado. Fomos do jeito... que a
gente estava... nem chegamos a pegar os casacos no armário, a gente pensou
que ia car fora só alguns minutos. Não sei o que a gente pensou, eu pensei,
não sei por que eu fui, Ralph. Foi um impulso, é só o que posso dizer. Foi um
impulso errado.” Fez uma pausa. “Foi meu erro naquela noite, Ralph, e eu
lamento. Eu não deveria ter feito nada semelhante, eu sei disso.”
“Meu Deus!” A exclamação escapou de sua boca. “Mas você foi sempre
assim, Marian!” E reconheceu na mesma hora que havia acabado de proferir
uma verdade nova e profunda.
A mente de Ralph se encheu com um enxame de acusações e ele tentou se
concentrar em uma em particular. Olhou para baixo, para as próprias mãos, e
percebeu que elas estavam com a mesma sensação sem vida que tinham na
hora em que ele viu Marian na sacada. Pegou o lápis vermelho que usava para
corrigir provas e dar notas, que estava em cima da mesa, e depois baixou-o de
novo.
“Estou escutando”, disse.
“Escutando o quê?”, disse ela. “Você está praguejando e cando angustiado,
Ralph. Por nada... nada, querido!... Não há nada mais”, disse ela.
“Continue”, disse ele.
Ela disse: “Qual é o problema com a gente, a nal? Sabe dizer como foi que
isso começou? Porque eu não sei como foi que começou”.
Ele disse: “Continue, Marian”.
“Isso é tudo, Ralph”, disse ela. “Já contei pra você. Fomos dar uma volta de
carro. Conversamos. Ele me beijou. Eu até agora não entendo como a gente
pode ter cado fora durante três horas, ou seja lá quanto tempo você disse que
foi.”
“Me conte, Marian”, disse ele, e sabia que havia mais coisas e sabia que ele
sempre tinha sabido. Teve a sensação de um rebuliço no estômago e depois
falou: “Não. Se você não quer me contar, tudo bem. Na verdade, acho que
logo eu ia deixar tudo no pé que está mesmo”, disse ele. Por um segundo,
pensou que poderia estar em outro lugar naquela noite, fazendo alguma outra
coisa, que estaria num lugar bem calmo, se não tivesse se casado.
“Ralph”, disse ela, “você não vai car zangado, vai? Ralph? A gente está só
conversando. Você não vai car zangado, vai?” Marian passou para uma
cadeira junto à mesa.
Ele disse: “Não vou”.
Ela disse: “Promete?”.
Ele disse: “Prometo”.
Marian acendeu um cigarro. De repente, ele teve uma grande vontade de
ver os lhos, de acordá-los, tirá-los da cama, pesados e se mexendo em seu
sono, e equilibrar cada um deles sobre um joelho, sacudi-los até acordarem.
Voltou toda a atenção para uma das pequeninas carruagens negras sobre a
toalha de mesa. Quatro cavalinhos brancos empinados puxavam cada
carruagem negra e a gura que guiava os cavalos tinha os braços erguidos e
usava cartola, havia malas amarradas em cima da carruagem, algo semelhante
a um lampião a querosene pendia do lado e parecia que ele escutava tudo
como se o som viesse de dentro da carruagem negra.
“... Fomos direto para a loja de bebidas e quei esperando no carro até ele
voltar. Trazia um saco na mão e, na outra mão, uma dessas sacolas plásticas.
Ele cambaleou um pouco até entrar no carro. Eu não tinha notado que ele
estava tão bêbado assim, até que recomeçou a dirigir. Notei o jeito como ele
dirigia. Era muito devagar. Estava todo curvado sobre o volante. Olhos xos à
frente. A gente falava de uma porção de coisas que não faziam o menor
sentido. Não consigo me lembrar. Falamos sobre Nietzsche. Strindberg. Ele
estava dirigindo a peça Senhorita Júlia para o segundo semestre. E aí se falou
alguma coisa sobre Norman Mailer ter dado uma facada no peito de sua
mulher. Aí ele parou o carro um instante no meio da rua. E nós dois tomamos
um gole no gargalo da garrafa. Ele disse que detestava me imaginar levando
uma facada no peito. Falou que ele gostaria de beijar meu peito. Tirou o carro
do meio da rua. Colocou a cabeça no meu colo...”
Ela se apressava e ele continuava sentado com as mãos cruzadas sobre a
mesa e olhava xo para os lábios de Marian. Os olhos de Ralph saltavam pela
cozinha — fogão, porta-guardanapos, fogão, guarda-louça, torradeira, de volta
aos lábios dela, de volta à carruagem sobre a toalha de mesa. Sentiu um desejo
peculiar por ela comichar em sua virilha e depois sentiu o balanço ritmado da
carruagem e quis dizer pare e depois ouviu Marian dizer: “Ele disse que tal se a
gente desse uma rapidinha?”. E depois ela estava dizendo: “Foi culpa minha.
Eu sou a culpada. Ele disse que deixava a decisão por minha conta, eu podia
fazer o que quisesse”.
Ralph fechou os olhos. Balançou a cabeça, tentou criar possibilidades, tirar
outras conclusões. Na verdade, se perguntava se conseguiria reconstituir
aquela noite de dois anos atrás e imaginou-se entrando na cozinha na hora em
que os dois estavam na porta, ouvia a si mesmo dizendo para ela com voz
sentida: ah, não, não, você não vai sair de jeito nenhum com esse Mitchell
Anderson! O sujeito está bêbado, é um motorista ruim demais, e você agora
precisa ir para a cama para levantar amanhã cedo junto com Dorothea e
Robert, e pare! Tem de parar!
Ralph abriu os olhos. Ela estava com a mão erguida sobre o rosto, chorando
ruidosamente.
“Por que fez isso, Marian?”, perguntou ele.
Ela balançou a cabeça sem erguer os olhos.
Então de repente ele soube! Sua mente deu um tranco. Por um minuto,
tudo o que conseguiu fazer foi olhar de um jeito estúpido para as próprias
mãos. Ele sabia! Sua mente rugia com tamanha descoberta.
“Meu Deus! Não! Marian! Meu Deus!”, disse ele, recuando da mesa com um
pulo. “Meu Deus! Não, Marian!
“Não, não”, disse ela, e jogou a cabeça para trás.
“Você deixou ele transar!”, gritou Ralph.
“Não, não”, repetiu ela.
“Você deixou ele transar! Dar uma rapidinha! Não deixou? Não deixou? Uma
rapidinha! Não foi isso o que ele falou? Me responda!”, berrou Ralph. “Ele
gozou dentro de você? Você deixou ele gozar dentro de você quando estava
dando uma rapidinha?”
“Escute, me escute, Ralph”, choramingou ela, “juro que ele não fez isso. Ele
não gozou. Ele não gozou dentro de mim.” Ela se balançou na cadeira, para
um lado e para o outro.
“Ah, meu Deus! Sua desgraçada!”, esbravejou Ralph.
“Meu Deus!”, disse ela, levantando-se com as mãos estendidas. “Será que
camos malucos, Ralph? Será que perdemos a razão? Ralph? Me perdoe,
Ralph. Perdoe...”
“Não me toque! Se afaste de mim!”, berrou ele. Não parava de berrar.
Ela começou a arquejar, em seu pavor. Tentou se pôr na frente dele, mas
Ralph a segurou pelo ombro e lhe deu um empurrão para o lado.
“Me perdoe, Ralph! Por favor. Ralph!”, gritou ela.
II.
Ele precisou parar e se encostar no carro antes de continuar. Dois casais com
roupas de noite vinham descendo pela calçada na direção dele, e um dos
homens contava uma história em voz bem alta. Os outros já estavam rindo.
Ralph se afastou do carro com um movimento brusco e atravessou a rua. Em
poucos minutos chegou ao Blake’s, aonde às vezes ia à tarde tomar uma
cerveja com Dick Koenig antes de ir pegar os lhos no jardim de infância.
Estava escuro lá dentro. Velas ardiam en adas no gargalo de garrafas
compridas sobre as mesas junto à parede. Ralph entreviu vultos de homens e
mulheres conversando, as cabeças muito próximas. Um dos casais, perto da
porta, parou de conversar e ergueu os olhos para ele. Um lustre em forma de
caixa girava pendurado no teto e atirava al netes de luz em redor. Dois
homens estavam sentados na ponta do balcão e a silhueta escura de um
homem debruçava-se sobre um toca-discos automático, num canto, as mãos
espalmadas dos dois lados do vidro. Aquele homem vai pôr alguma coisa para
tocar, pensou Ralph, como se zesse uma descoberta importante, e cou
parado no meio do soalho, olhando o homem.
“Ralph! Senhor Wyman, ei, senhor!”
Ele olhou para trás. Era David Parks que o chamava atrás do balcão. Ralph
foi até lá, encostou-se pesadamente no balcão antes de escorregar o corpo para
cima de um banco.
“Quer que eu tire um chope, senhor Wyman?” Parks estava com um copo
na mão, sorria. Ralph fez que sim com a cabeça, observou Parks encher o
copo, observou Parks segurar o copo inclinado embaixo da torneira e ir aos
poucos pondo o copo reto, à medida que ia enchendo.
“Como vão as coisas, senhor Wyman?” Parks apoiou o pé numa prateleira
um pouco mais alta, embaixo do balcão. “Quem é que vai ganhar o jogo da
semana que vem, senhor Wyman?” Ralph balançou a cabeça, levou a cerveja
aos lábios. Parks tossiu de leve. “Vou pagar uma para o senhor, senhor
Wyman. Essa é por minha conta.” Baixou o pé no chão, fez que sim com a
cabeça, com ar rme, e meteu a mão no bolso por baixo do avental. “Tome.
Eu tenho aqui”, disse Ralph e pegou algumas moedas, examinou-as na palma
da mão. Uma moeda de vinte e cinco centavos, outra de cinco centavos, duas
de dez centavos, duas de um centavo. Contou as moedas como se houvesse
nelas um código a ser decifrado. Deixou a moeda de vinte e cinco centavos no
balcão e se levantou, enquanto empurrava os trocados de volta para dentro do
bolso. O homem continuava na frente do toca-discos automático, as mãos
ainda espalmadas dos dois lados.
Lá fora, Ralph virou-se de um lado e de outro, tentando decidir o que fazer.
Seu coração dava pulos como se ele estivesse correndo. A porta abriu às suas
costas e um homem e uma mulher saíram. Ralph abriu caminho para eles, os
dois entraram num carro estacionado junto ao meio- o e Ralph viu a mulher
jogar o cabelo para trás quando entrou no carro. Ele nunca tinha visto nada
tão assustador.
Caminhou até o m do quarteirão, atravessou a rua e percorreu mais um
quarteirão antes de resolver seguir para o centro. Caminhava apressado, os
punhos cerrados dentro dos bolsos, o sapato estalava na calçada. Piscava os
olhos o tempo todo e achava incrível ele morar ali. Balançou a cabeça.
Gostaria de se sentar um tempo em algum lugar e pensar no assunto, mas
sabia que não podia parar, não podia pensar naquilo. Lembrou de um homem
que viu certa vez na beira da calçada, em Arcata, um velho de barba grande e
gorro de lã marrom que se limitava a car sentado no meio- o, os braços
en ados entre as pernas. E então Ralph pensou: Marian! Dorothea! Robert!
Impossível. Tentou imaginar como tudo aquilo iria lhe parecer dali a vinte
anos. Mas não conseguia imaginar nada. E então imaginou que apanhava de
surpresa um bilhetinho passado entre seus alunos e que dizia Vamos dar uma
rapidinha? E aí não conseguiu mais pensar. Sentiu-se profundamente
indiferente. Depois pensou em Marian. Pensou em Marian tal como a tinha
visto pouco antes, o rosto todo enrugado. Depois, Marian no chão, sangue nos
dentes: “Por que bateu em mim?”. Depois Marian en ando a mão embaixo do
vestido para soltar sua liga! Depois Marian levantando o vestido, enquanto se
curvava para trás! Depois Marian excitada, Marian gritando Vai! Vai! Vai!
Ele parou. Achou que ia vomitar. Chegou perto do meio- o. Continuou
engolindo, ergueu os olhos quando passou um carro cheio de adolescentes aos
berros e deu uma buzinada comprida para ele, com sua buzina musical. Sim,
havia um grande mal pressionando o mundo, pensou ele, e bastava um
pequeno escorregão, uma pequenina brecha.
Chegou à rua Dois, a parte do centro da cidade que as pessoas chamavam de
“Rua Dois”. Começava ali em Shelton, embaixo do poste de iluminação onde
as antigas casas de cômodos terminavam, e se estendia por quatro ou cinco
quarteirões, descendo até o cais, onde barcos de pesca atracavam. Ralph tinha
ido lá uma vez, seis anos antes, num sebo, para folhear livros velhos nas
prateleiras empoeiradas. Havia uma loja de bebidas do outro lado da rua e,
por trás da porta de vidro, ele viu um homem parado lá dentro olhando um
jornal.
Uma sineta tilintou acima da porta. Ralph quase chorou ao ouvir aquele
som. Comprou cigarro e saiu de novo, continuou seguindo a rua, olhando as
vitrines, algumas com cartazes pregados: dançarinas, o Circo Shrine que tinha
vindo e ido embora no verão passado, uma eleição — Fred C. Walter para
vereador. Umas das vitrines para onde ele olhou tinha pias e conexões de cano
espalhadas em volta de uma mesa, e também isso trouxe lágrimas a seus
olhos. Ralph chegou à academia de ginástica Vic Tanney, onde viu luzes
escapando por baixo das cortinas fechadas na frente de uma vitrine grande e
ouviu o som de água espirrando na piscina lá dentro e o eco de vozes muito
alegres que gritavam umas para as outras dentro d’água. Agora havia mais
iluminação, que vinha de bares e cafés dos dois lados da rua, e mais gente,
grupos de três ou quatro, mas de vez em quando um homem sozinho ou uma
mulher sozinha, de calça vistosa, passavam andando ligeiro. Ralph parou na
frente de uma vitrine e olhou para uns negros que jogavam sinuca, a fumaça
pairava em volta da luz acesa acima da mesa. Um dos homens, passando giz
em seu taco, de chapéu, cigarro na boca, falou algo com outro homem e
ambos sorriram, e depois o primeiro homem olhou concentrado para as bolas
e se debruçou sobre a mesa.
Ralph parou na frente da Jim’s Oyster House. Ele nunca tinha estado ali,
nunca tinha estado em nenhum daqueles lugares. Acima da porta, o nome
aparecia escrito com lâmpadas amarelas: JIM’S OYSTER HOUSE . Acima, presa a
uma grade de ferro, havia uma concha enorme de marisco desenhada em luz
neon, com as pernas de um homem espetadas para fora. O tronco estava
oculto dentro da concha e as pernas brilhavam vermelhas, acendiam e
apagavam, subiam e baixavam, de modo que pareciam estar dando chutes no
ar. Ralph acendeu mais um cigarro na ponta do cigarro que já tinha fumado e
abriu a porta com um empurrão.
Estava lotado, as pessoas se espremiam na pista de dança, enlaçadas nos
braços umas das outras, em posição de espera, aguardando que a banda
recomeçasse a tocar. Ralph abriu caminho até o balcão do bar e no trajeto
uma mulher bêbada tentou agarrar a ponta de seu casaco. Não havia assentos
vagos e ele teve de car de pé na ponta do balcão, entre um policial da Guarda
Costeira e um homem enrugado de calça de brim. No espelho, Ralph viu os
homens da banda se levantando da mesa onde estavam sentados. Vestiam
camisas brancas e calças folgadas escuras, com gravatinhas feitas de tas
vermelhas em volta do pescoço. Havia uma lareira com chamas a gás por trás
de uma pilha de lenha de metal e o palco da banda cava ao lado. Um dos
músicos beliscava as cordas da sua guitarra elétrica e falou alguma coisa para
os outros com um sorriso malandro. A banda começou a tocar.
Ralph ergueu seu copo e esvaziou-o. Ouviu uma mulher falar, zangada, do
outro lado do balcão: “Pois bem, isso ainda vai acabar em confusão, é só o que
tenho a dizer”. Os músicos terminaram o primeiro número e começaram
outro. Um dos homens, o baixista, foi ao microfone e começou a cantar. Mas
Ralph não conseguia entender as palavras. Quando a banda fez outra pausa
para descansar, Ralph olhou em volta à procura do banheiro. Conseguiu ouvir
o barulho de portas abrindo e fechando na outra extremidade do bar e seguiu
naquela direção. Cambaleava um pouco e sabia que agora estava embriagado.
No alto de uma porta, havia um par de chifres de veado. Viu um homem
entrar e viu outro homem segurar a porta e sair. Lá dentro, numa la, entre
outros três homens, ele se viu olhando para um par de coxas abertas e uma
vulva, desenhadas na parede acima de uma máquina de vender pentes de
bolso. Embaixo, estava rabiscado ME COMA , e mais acima alguém tinha
acrescentado Betty M. Come — RA52275. O homem na sua frente andou e
Ralph deu um passo adiante, com o coração apertado sob o peso de Betty. Por
m conseguiu chegar ao urinol e urinou. Foi o estalo de um raio. Suspirou,
inclinou-se para a frente e deixou a cabeça repousar na parede. Ah, Betty,
pensou Ralph. Sua vida tinha mudado, ele queria muito entender. Será que
havia outros homens, ele se perguntou meio zonzo, capazes de olhar para um
fato em sua vida e perceber naquilo as minúsculas engrenagens da catástrofe
que, dali para a frente, conduziria sua vida por um rumo muito diferente?
Ficou parado mais um tempo e depois olhou para baixo: tinha urinado nos
dedos. Foi até a pia, abriu a água sobre as mãos depois de resolver que não ia
usar o sabonete sujo. Quando estava desenrolando a toalha, pôs o rosto bem
perto do espelho embutido e olhou os próprios olhos. Um rosto: nada fora do
comum. Tocou no espelho e depois se afastou quando um homem tentou
chegar à beira da pia onde ele estava.
Quando saiu pela porta, percebeu outra porta na outra ponta do corredor.
Foi até lá e através do vidro da porta viu quatro jogadores de baralho sentados
em redor de uma mesa de feltro verde. Ralph teve a impressão de que lá
dentro era imensamente tranquilo e repousante, os movimentos vagarosos
dos homens eram suaves e carregados de signi cação. Ralph encostou o rosto
no vidro e cou olhando, até perceber que os homens estavam olhando para
ele.
De volta ao balcão, havia um oreio de guitarras e as pessoas começaram a
bater palmas e a assobiar. Uma mulher gorda e de meia-idade, num vestido de
noite branco, recebia ajuda para subir ao palco. Ela tentava recuar a toda hora,
mas Ralph viu que era apenas brincadeira e, por m, ela acabou aceitando o
microfone e fez uma pequena mesura para a plateia. As pessoas assobiaram e
bateram com os pés no chão. De repente Ralph se deu conta de que nada
poderia salvá-lo, a não ser estar no mesmo cômodo onde estavam os jogadores
de cartas, concentrados na partida. Sacou sua carteira, mantendo as mãos
erguidas acima das bordas, enquanto olhava o conteúdo para ver quanto
dinheiro tinha. Às suas costas, a mulher começou a cantar com uma voz grave
e sonolenta.
O homem que dava as cartas ergueu os olhos.
“Resolveu juntar-se a nós?”, disse ele, observando Ralph dos pés à cabeça
num correr de olhos, e conferindo a mesa outra vez. Os outros ergueram os
olhos por um instante e depois se voltaram de novo para as cartas que
deslizavam sobre o feltro da mesa. Os homens pegaram suas cartas e o
homem sentado de costas para Ralph respirou pelo nariz com força, virou-se
na cadeira e olhou de modo penetrante.
“Benny, traga mais uma cadeira!”, pediu o carteador a um velho que estava
varrendo embaixo de uma mesa que tinha por cima dela cadeiras viradas de
pernas para o ar. O carteador era um homem grande; usava camisa branca,
aberta no colarinho, mangas dobradas uma vez para cima, a m de deixar
expostos os antebraços cheios de pelos pretos e crespos. Ralph respirou fundo.
“Quer alguma coisa para beber?”, perguntou Benny, enquanto levava uma
cadeira até a mesa.
Ralph deu um dólar ao velho e arrancou o casaco. O velho pegou o casaco e
pendurou junto à porta quando saiu. Dois homens deslocaram suas cadeiras
um pouco para o lado e Ralph se sentou na frente do carteador.
“Como andam as coisas?”, perguntou o carteador para Ralph, sem levantar
os olhos.
“Tudo bem”, disse Ralph.
O carteador falou de modo gentil, mas ainda sem erguer os olhos: “O
mínimo ou cinco cartas. A mesa aposta, limite de cinco dólares a cada
aumento de aposta”.
Ralph fez que sim com a cabeça e quando a rodada terminou comprou
quinze dólares em chas. Olhou as cartas sendo disparadas em redor da mesa,
pegou as suas como tinha visto seu pai fazer, deslizando cada carta para baixo
do cantinho da outra carta, à medida que as cartas iam batendo na sua frente.
Ergueu os olhos uma vez e viu o rosto dos outros jogadores. Imaginou se
aquilo já não teria acontecido uma vez com algum deles.
Em meia hora ele tinha ganhado duas rodadas e, sem contar a pequena
pilha de chas na sua frente, calculou que ainda devia ter quinze ou até vinte
dólares. Pagou mais um drinque com uma cha e de repente se deu conta de
que, naquela noite, ele havia percorrido um longo caminho, um longo
caminho na sua vida. Jackson, pensou ele. Ele podia ser Jackson.
“Você vai continuar ou vai parar?”, perguntou um homem. “Clyde, qual é o
lance, pelo amor de Deus?”, falou para o carteador.
“Três dólares”, disse o carteador.
“Eu topo”, disse Ralph. “Eu topo.” Colocou três chas na mesa.
O carteador ergueu os olhos e depois se voltou para suas cartas. “Você quer
mesmo movimento, não é? Se é assim, a gente podia ir para a minha casa
terminar a partida”, disse o carteador.
“Não, está bem assim”, disse Ralph. “Chega de movimento por esta noite.
Nesta noite eu quei sabendo que a minha mulher andou aprontando com
outro cara há dois anos. Só descobri hoje, nesta noite.” Tossiu de leve.
Um homem baixou suas cartas e acendeu o cigarro. Olhou xamente para
Ralph enquanto soltava uma baforada, depois sacudiu o fósforo no ar e pegou
as cartas outra vez. O carteador ergueu os olhos, mãos abertas pousadas na
mesa, o cabelo preto muito crespo nas mãos morenas.
“Você trabalha aqui no centro?”, perguntou para Ralph.
“Moro aqui”, disse Ralph. Sentiu-se exaurido, esplendidamente vazio.
“Vamos jogar ou não vamos?”, perguntou um homem. “Clyde?”
“Fique frio aí”, disse o carteador.
“Essa não”, disse o homem em voz baixa.
“O que foi que você descobriu hoje à noite?”, perguntou o carteador.
“Minha mulher”, disse Ralph. “Eu descobri.”
No beco, ele pegou sua carteira de novo, deixou os dedos contarem as notas
que haviam sobrado: dois dólares — e achou que ainda tinha também uns
trocados no bolso. O bastante para comer alguma coisa. Mas não estava com
fome e encostou-se cambaleante na parede do prédio, tentando raciocinar. Um
carro entrou no beco, parou, recuou e fez o caminho de volta. Ralph começou
a andar. Refez o mesmo trajeto que havia percorrido. Mantinha-se próximo
aos prédios, fora do caminho dos grupos ruidosos de homens e mulheres que
se derramavam pela calçada, em ambas as direções. Ouviu uma mulher de
casaco comprido falar para o homem com quem estava: “Não é nada disso,
Bruce. Você não entende”.
Ralph parou quando chegou à loja de bebidas. Dentro, seguiu até o balcão e
observou as longas leiras de garrafas bem-arrumadas. Comprou uma garrafa
pequena de rum e mais alguns cigarros. As palmeiras no rótulo da garrafa, as
folhas grandes e pendentes, com a lagoa ao fundo, tinham atraído sua atenção,
e então ele se deu conta: rum! E achou que ia desmaiar. O vendedor, um
careca magro de suspensórios, pôs a garrafa dentro de um saco de papel, fez
tilintar a máquina registradora e piscou o olho. “Conseguiu descolar alguma
coisa esta noite?”, perguntou.
Lá fora, Ralph começou a descer na direção do cais; achou que gostaria de
ver a água com o re exo das luzes na superfície. Pensou em como o dr.
Maxwell iria encarar uma coisa dessa e, enquanto andava, en ou a mão no
saco de papel, rompeu o lacre da garrafa pequena e parou junto a uma porta
para tomar um gole bem longo e achou que o dr. Maxwell caria sentado,
muito elegante, na beira d’água. Atravessou uns trilhos velhos de bonde e
virou numa rua mais escura. Já dava para ouvir as ondas batendo por baixo do
cais e então ouviu alguém se movendo atrás dele. Um negro pequeno, de
jaqueta de couro, apareceu na sua frente e disse: “Espere aí um instante, cara”.
Ralph tentou desviar. O homem falou: “Caramba, moleque, isto aqui é o meu
território que você está invadindo!”. Antes que Ralph pudesse fugir, o negro
lhe deu um murro com força na barriga, e quando Ralph soltou um gemido e
tentou cair, o homem lhe deu uma pancada no nariz com a mão aberta e
jogou-o contra a parede, onde ele caiu sentado com uma perna dobrada
embaixo do corpo, e estava tentando encontrar um jeito de se levantar quando
o negro lhe deu um tapa na cara e o derrubou esparramado na calçada.
III.
Ele manteve os olhos xos num ponto e os viu, dúzias deles, rodando e
disparando, logo abaixo do céu nublado, aves marinhas, pássaros que vinham
do oceano e voltavam para lá naquela hora da manhã. A rua estava preta com
a neblina que continuava descendo, e ele precisou tomar cuidado para não
pisar nos caracóis que rastejavam pela calçada molhada. Um carro de faróis
baixos reduziu a velocidade ao passar. Um outro carro passou. Depois outro.
Ele olhou: trabalhadores das serrarias, sussurrou para si. Era segunda-feira de
manhã. Dobrou uma esquina, passou pelo Blake’s: persianas abaixadas,
garrafas vazias de pé, como sentinelas, junto à porta. Estava frio. Ele
caminhava o mais depressa que conseguia, cruzava os braços de vez em
quando e esfregava os ombros. Por m, chegou em casa, luz da varanda acesa,
janela apagada. Atravessou o gramado e deu a volta pelos fundos. Girou a
maçaneta, a porta abriu silenciosamente e a casa estava em silêncio. O banco
alto estava ao lado da pia. Lá estava a mesa em torno da qual os dois tinham se
sentado. Ele tinha se levantado do sofá, vindo para a cozinha e sentado. O que
mais havia feito? Não tinha feito mais nada. Olhou o relógio acima do fogão.
De onde estava, dava para ver a sala de jantar, a mesa com a toalha rendada, o
enfeite de centro de mesa feito de vidro grosso, com amingos vermelhos de
asas abertas, e as cortinas abertas atrás da mesa. Será que ela havia cado na
janela, olhando, à espera dele? Pisou no tapete da sala. O casaco dela estava
jogado no sofá e, na luz fraca, ele conseguiu distinguir um cinzeiro grande
cheio de guimbas de cigarro dela. Reparou no catálogo telefônico aberto sobre
a mesinha de centro, quando passou. Parou na porta parcialmente aberta que
dava para o quarto deles. Tudo parecia aberto para ele. Por um momento,
resistiu ao desejo de olhar lá dentro e vê-la, e depois, com o dedo, empurrou a
porta e abriu-a um pouco mais. Ela estava dormindo, a cabeça fora do
travesseiro, virada para a parede, o cabelo preto com o lençol ao fundo, as
cobertas emboladas em volta dos ombros, as cobertas puxadas do pé da cama.
Ela estava de lado, seu corpo secreto dobrado na altura dos quadris. Ele olhou
xamente. A nal de contas, o que ele devia fazer? Pegar suas coisas e ir
embora? Ir para um hotel? Tomar certas providências? Como um homem
devia agir naquelas circunstâncias? Ele entendia que era preciso fazer certas
coisas. Não entendia que coisas deviam ser feitas agora. A casa estava muito
calma.
Na cozinha, deixou a cabeça baixar sobre os braços quando se sentou à
mesa. Não sabia o que fazer. Não só agora, pensou, não só naquele caso, não
só a respeito daquilo, hoje e amanhã, mas todos os dias da vida. Então ouviu a
movimentação dos lhos. Levantou a cabeça e os ombros e tentou sorrir
quando os dois entraram na cozinha.
“Papai, papai”, disseram e correram para ele com seus corpinhos.
“Conte uma história pra gente, pai”, pediu o lho, subindo em seu colo.
“Ele não pode contar uma história”, disse a lha. “É cedo demais para
contar uma história. Não é, pai?”
“O que é isso na sua cara, pai?”, perguntou o lho, apontando.
“Deixe eu ver!”, disse a lha. “Deixe eu ver, pai.”
“Coitado do papai”, disse o lho.
“O que foi que você fez na cara, papai?”, perguntou a lha.
“Não é nada”, disse Ralph. “Está tudo bem, meu anjo. Agora vamos descer,
Robert. Estou ouvindo a sua mãe.”
Ralph foi depressa para o banheiro e trancou a porta.
“Seu pai está aqui?”, ele ouviu Marian perguntar. “Onde ele está, no
banheiro? Ralph?”
“Mamãe, mamãe!”, gritou a lha. “A cara do papai está machucada!”
“Ralph!” Ela girou a maçaneta. “Ralph, me deixe ver, por favor, querido.
Ralph? Por favor, me deixe entrar, querido. Quero ver você. Ralph? Por favor!”
“Vá embora, Marian.”
Ela disse: “Não posso ir embora. Por favor, Ralph, abra a porta só um
minuto, querido. Só quero ver você. Ralph. Ralph? As crianças disseram que
você se machucou. O que aconteceu, querido? Ralph?”.
Ele disse: “Vá embora”.
Ela disse: “Ralph, abra, por favor”.
Ele disse: “Você poderia car quieta, por favor?”.
Ele a ouviu esperando junto à porta, viu a maçaneta girar outra vez e depois
a ouviu cuidando das crianças, preparando o café da manhã das crianças,
tentando responder às perguntas dos lhos. Ralph cou se olhando no espelho
durante muito tempo. Fez caretas. Experimentou muitas expressões. Depois
desistiu. Deu as costas para o espelho e sentou na beirada da banheira,
começou a desamarrar o cadarço dos sapatos. Ficou ali sentado com um
sapato na mão e olhou para os veleiros que abriam caminho no vasto mar azul
da cortina de plástico do chuveiro. Pensou nas pequeninas carruagens negras
na toalha de mesa e quase gritou Pare!. Desabotoou a camisa, curvou-se sobre
a banheira com um suspiro e colocou a tampa no ralo. Abriu a água quente e
logo depois o vapor subiu.
Ficou de pé, nu, sobre os ladrilhos, antes de entrar na água. Segurou entre
os dedos a carne ácida por cima das costelas. Examinou seu rosto outra vez
no espelho embaçado. Teve uma ponta de medo quando Marian chamou seu
nome.
“Ralph. As crianças estão brincando no quarto. Liguei para Von Williams e
disse que você não ia trabalhar hoje, e eu também vou car em casa.” Depois,
falou: “Tem um café da manhã gostoso pronto no forno para você, querido,
quando terminar seu banho. Ralph?”.
“Você poderia car quieta, por favor?”, disse ele.
Ficou na banheira até ouvir Marian no quarto com as crianças. Estava
vestindo os lhos, perguntando se não queriam ir brincar com Warren e Roy.
Ele atravessou a casa e entrou em seu quarto, onde fechou a porta. Olhou para
a cama antes de se deitar. Ficou deitado de costas, olhos cravados no teto. Ele
tinha se levantado do sofá, entrado na cozinha, tinha... sentado. Fechou os
olhos com força e virou-se de lado quando Marian entrou no quarto. Ela tirou
o roupão e sentou na cama. Pôs a mão sob as cobertas e começou a acariciar a
parte de baixo das costas dele.
“Ralph”, disse.
Ele cou tenso ao sentir os dedos dela, depois relaxou um pouco. Era mais
fácil relaxar um pouco. A mão dela moveu-se por cima do quadril dele e por
cima da barriga, e agora ela apertava o corpo contra o dele, movia-se para
cima dele e mexia para a frente e para trás, em cima dele. Ele se segurou o
máximo que conseguiu, pensou mais tarde. E então virou-se para ela. Virou-se
e cou se virando no que poderia ser um sono maravilhoso, e ainda estava se
virando, deslumbrado com as mudanças impensáveis que sentia em
movimento dentro dele.
DO QUE ESTAMOS FALANDO
J á vi muita coisa. Eu estava indo para a casa da minha mãe passar umas
noites lá. Mas, assim que cheguei no alto da escadinha da varanda, olhei e vi
que ela estava no sofá beijando um homem. Era verão. A porta estava aberta.
A televisão estava ligada. Isso foi uma das coisas que eu vi.
Minha mãe tem sessenta e cinco anos. Ela participa de um clube de solteiras.
Mesmo assim, foi duro. Fiquei parado com a mão no corrimão e vi o homem
beijar a minha mãe. Ela correspondia ao beijo e a tevê estava ligada.
A situação está melhor agora. Mas naquela época em que minha mãe
andava aprontando, eu estava sem emprego. Meus lhos estavam doidos e
minha mulher estava doida. Ela também andava aprontando. O cara com
quem ela andava metida era um engenheiro aeroespacial desempregado que
ela havia conhecido nos Alcoólicos Anônimos. Ele também era doido.
O nome dele era Ross e tinha seis lhos. Mancava por causa de um tiro que
levou da primeira mulher.
Não sei o que todos nós tínhamos na cabeça naquela época.
A segunda mulher desse cara veio e foi embora, mas foi a primeira mulher
que deu um tiro nele, porque ele não pagava direito a pensão. Agora estou de
bem com ele. Ross. Que nome! Mas naquela época era diferente. Naquele
tempo, cheguei a falar em armas. Eu falava para a minha mulher: “Acho que
vou arranjar uma Smith and Wesson”. Mas nunca z isso.
Ross era um cara pequeno. Mas não muito pequeno. Tinha bigode e andava
sempre de suéter de abotoar.
Uma vez sua mulher número um o mandou para a prisão. A segunda fez a
mesma coisa. Eu soube pela minha lha que a minha mulher pagou a ança.
Minha lha Melody achou aquilo tão errado quanto eu. A ança. Não que ela
estivesse pensando em mim. Ela não estava nem aí pra nenhum de nós dois,
nem pra mim nem pra mãe dela. A questão é que havia um sério problema de
caixa e se uma parte fosse para o Ross sobraria menos para a Melody. Por isso
o Ross entrou na lista negra de Melody. Além do mais, ela não gostava dos
lhos dele nem do fato de ele ter tido tantos lhos. Mas de forma geral
Melody dizia que o Ross era bacana.
Uma vez ele até leu o futuro na mão dela.
Esse tal de Ross passava o tempo consertando coisas, agora que ele não
tinha mais um emprego xo. Mas eu tinha visto a casa dele por fora. Era uma
imundície só. Lixo por todo lado. Dois Plymouths depenados no jardim.
Na primeira fase da história entre os dois, minha mulher explicou que ele
colecionava carros antigos. Foram essas as palavras dela, “carros antigos”. Mas
aqueles carros não passavam de carcaças.
Eu tinha o telefone dele. Sr. Conserta-Tudo.
Mas tínhamos coisas em comum, Ross e eu, além da mesma mulher. Por
exemplo, ele não conseguia consertar a televisão quando o aparelho pirava e a
gente perdia a imagem. Eu também não conseguia consertar. A gente tinha o
som, mas nada de imagem. Se a gente quisesse o noticiário, precisava sentar
em volta da tela e car ouvindo.
Ross e Myrna se conheceram quando Myrna estava tentando se manter
sóbria. Ela ia às reuniões, eu calculo, três ou quatro vezes por semana. Eu
mesmo andei entrando e saindo daquelas reuniões. Mas quando Myrna
conheceu Ross eu estava fora e andava bebendo um litro por dia. Myrna ia às
reuniões e depois à casa do Sr. Conserta-Tudo cozinhar e fazer a faxina para
ele. Nesse aspecto, os lhos dele não ajudavam nem um pouco. Ninguém
levantava um dedo na casa do Sr. Conserta-Tudo, a não ser minha mulher,
quando estava lá.
***
Não faz muito tempo que tudo isso aconteceu, uns três anos mais ou
menos. Naquela época não era fácil.
Deixei minha mãe com o tal sujeito no sofá e quei rodando de carro por
um tempo. Quando cheguei em casa, Myrna me fez um café. Ela foi para a
cozinha fazer o café enquanto quei esperando até ouvir a água correr pela
torneira. Aí meti a mão embaixo da almofada do sofá para pegar a garrafa.
Acho que Myrna talvez amasse mesmo o tal sujeito. Mas, por seu lado, ele
também tinha um caso paralelo — uma garota de vinte e dois anos chamada
Beverly. O Sr. Conserta-Tudo não se saía nada mal para um sujeito baixinho
que usava um suéter de abotoar.
Tinha trinta e poucos anos quando começou a ir para o buraco. Perdeu o
emprego e caiu de boca na garrafa. Eu gozava da cara dele quando tinha uma
chance. Mas não gozo mais da cara dele.
Que Deus abençoe e conserve o Sr. Conserta-Tudo.
Ele contou a Melody que tinha trabalhado nos foguetes que foram para a
Lua. Contou à minha lha que era amigo íntimo dos astronautas. Contou que
ia apresentar a ela os astronautas no dia em que eles viessem à cidade.
Montaram lá um aparato supermoderno, no centro aeroespacial onde o Sr.
Conserta-Tudo trabalhava. Eu vi. Cafeterias chiques, salas de jantar para
executivos, um monte de coisas assim, máquinas de café expresso Mr. Coffee
em todos os escritórios.
Mr. Coffee e o Sr. Conserta-Tudo.
Myrna diz que ele se interessava por astrologia, auras, I Ching — essa
história toda. Não duvido que o tal do Ross fosse um cara bem inteligente e
interessante, como a maioria dos nossos ex-amigos. Falei para Myrna que eu
tinha certeza de que ela não se interessaria por ele se não fosse assim.
Meu pai morreu dormindo, bêbado, oito anos atrás. Era meio-dia de uma
sexta-feira e ele tinha cinquenta e quatro anos. Chegou em casa, do seu
trabalho na serraria, tirou umas salsichas do congelador para o seu café da
manhã e abriu uma garrafa de burbom Four Roses.
Minha mãe estava lá, na mesma mesa da cozinha. Estava tentando escrever
uma carta para a sua irmã em Little Rock. Por m, meu pai se levantou e foi
dormir. Minha mãe disse que ele nunca dava boa-noite para ela. Mas era de
manhã, é claro.
“Minha querida”, falei para Myrna na noite em que ela veio para casa.
“Vamos car aqui nos abraçando um tempo e depois você vai lá e faz um
jantar bem gostoso pra gente.”
Myrna disse: “Lave as mãos”.
Coreto
“Ela era vendedora de produtos Stanley. Uma mulher pequena, pés e mãos
pequenos e cabelo preto feito carvão. Não era a coisa mais linda do mundo.
Mas tinha um jeito bonito. Estava com trinta anos e tinha lhos. Mas era uma
mulher decente, não importa o que tenha acontecido.
“Sua mãe vivia comprando coisas com ela, uma vassoura ou um esfregão,
algum tipo de recheio de torta. Você sabe como é a sua mãe. Era um sábado,
eu estava em casa. Sua mãe tinha ido não sei aonde. Não sei onde ela estava.
Não estava no trabalho. Eu estava na sala, lendo o jornal e tomando uma
xícara de café, quando bateram na porta e era aquela mulher pequena. Sally
Wain. Disse que tinha algumas coisas para a sra. Palmer. ‘Eu sou o senhor
Palmer’, falei. ‘A senhora Palmer não está no momento.’ Pedi que ela entrasse
um pouco, sabe como é, disse que eu pagaria pelos produtos. Ela cou sem
saber se devia entrar ou não. Ficou ali parada, segurando sua sacolinha de
papel e o recibo.
“‘Me dê aqui, eu co com isso’, falei. ‘Por que não entra e senta um pouco
até eu ver se acho o dinheiro?’
“‘Tudo bem’, disse ela. ‘Pode car me devendo. Posso passar mais tarde.
Tenho uma porção de visitas para fazer. Tudo bem.’ Ela sorriu para me deixar
ciente de que estava mesmo tudo bem, entende?
“‘Não, não’, falei. ‘Eu tenho o dinheiro aqui. Pre ro pagar de uma vez. É
uma viagem a menos para você fazer, e não quero car com mais uma dívida.
Entre’, falei, e abri a porta de tela. Não era educado deixar ela plantada do lado
de fora.”
Meu pai tossiu e pegou um dos meus cigarros. A mulher no balcão do bar
deu uma risada. Olhei para ela e depois li de novo o que estava escrito no
cinzeiro.
“Ela entrou e depois falei: ‘Só um momento, por favor’, e fui para o quarto
procurar a minha carteira. Olhei no gaveteiro todo, mas não consegui achar.
Achei algum dinheiro trocado e fósforos, e o meu pente, mas não consegui
achar a minha carteira. Sua mãe tinha feito faxina de manhã, entende? Aí
voltei para a sala e disse: ‘Bem, vou ver se ainda acho algum dinheiro em
algum outro lugar’.
“‘Por favor, não se incomode’, disse ela.
“‘Não é nada’, respondi. ‘Preciso mesmo achar a minha carteira. Fique à
vontade.’
“‘Eu estou bem’, disse ela.
“‘Escute’, falei, ‘você soube daquele grande assalto lá no Leste? Eu estava
lendo agora mesmo.’
“‘Vi na televisão na noite passada’, disse ela.
“‘Eles conseguiram escapar?’, perguntei.
“‘Foram muito espertos’, disse ela.
“‘O crime perfeito’, falei.
“‘Não é muita gente que consegue’, disse ela.
“Eu não sabia mais o que dizer. Ficamos parados olhando um para o outro.
Virei-me e fui até a varanda, procurei as minhas calças no cesto de roupa suja,
onde imaginei que sua mãe tivesse jogado minhas roupas. Encontrei a carteira
no bolso de trás, voltei para a sala e perguntei quanto eu devia.
“Eram três ou quatro dólares, e paguei a ela. Depois, não sei por quê,
perguntei o que ela faria com o dinheiro, se tivesse toda a grana que os tais
assaltantes tinham roubado.
“Ela riu bem alto e mostrou os dentes.
“Não sei o que deu em mim naquela hora, Les. Cinquenta e cinco anos.
Filhos já crescidos. Já era para eu ter mais juízo. Aquela mulher não tinha nem
metade da minha idade, e lhos ainda na escola primária. Vendia produtos
Stanley no horário em que eles estavam na escola só para ocupar o seu tempo.
Claro, com aquilo ela ganhava um dinheiro extra, mas o que interessava
mesmo era se manter ocupada. Ela não precisava trabalhar. Eles tinham o
su ciente para viver. O marido dela, o Larry, era motorista da transportadora
Consolidated. Ganhava bem. Caminhoneiro, sabe como é.”
Meu pai parou e enxugou o rosto.
“Todo mundo pode cometer um erro. Eu entendo”, falei.
Ele balançou a cabeça.
“Ela tinha dois lhos, Hank e Freddy. Um ano de diferença. Ela me mostrou
umas fotos. Pois é, ela riu quando falei aquilo sobre o dinheiro, disse que na
certa ia parar de vender produtos Stanley e que eles iam se mudar para Dago e
comprar uma casa lá. Tinha parentes em Dago.”
Acendi outro cigarro. Olhei para o meu relógio de pulso. O garçom
levantou as sobrancelhas e eu levantei meu copo.
“Pois é, agora ela estava sentada no sofá e perguntou se eu tinha um cigarro.
Disse que havia deixado os cigarros na outra bolsa e que não havia fumado
nada desde que saíra de casa. Disse que detestava comprar cigarros naquelas
máquinas, quando tinha um pacote inteiro em casa. Dei-lhe um cigarro e
segurei um fósforo para ela. Mas confesso a você, Les, meus dedos tremiam.”
Ele parou e cou observando as garrafas por um minuto. A mulher no
balcão que tinha dado uma risada estava com os braços enlaçados nos braços
dos dois homens, um de cada lado.
***
“Depois disso, as coisas estão meio vagas na minha cabeça. Lembro que
perguntei se ela queria café. Ela disse que talvez ainda tivesse tempo para uma
xícara. Fui à cozinha e esperei o café car quente. Vou lhe dizer uma coisa,
Les, juro por Deus, eu nunca enganei sua mãe com outra mulher durante
todo o tempo em que fomos marido e mulher. Nenhuma vez. Houve ocasiões
em que achei que gostaria de fazer isso e tive a oportunidade. Digo a você,
Les, você não conhece sua mãe como eu conheço.”
Falei: “Não precisa dizer mais nada sobre esse assunto”.
“Levei o café para ela, e ela já tinha tirado o casaco nessa altura. Sentei na
outra ponta do sofá e passamos a falar coisas mais pessoais. Ela disse que tinha
dois lhos na escola Roosevelt e que o Larry era motorista de caminhão e às
vezes cava uma ou duas semanas fora de casa. Subia até Seattle ou descia até
Los Angeles, ou então ia para Phoenix, no Arizona. Estava sempre fora.
Contou que conheceu o Larry quando os dois estavam no ensino médio. Disse
que sentia orgulho de ter frequentado o colégio até o m e ter se formado.
Pouco depois ela riu de alguma coisa que eu disse. Uma coisa que talvez
pudesse ser entendida de duas maneiras. Então ela perguntou se eu conhecia a
piada do vendedor de sapatos viajante que visitou uma viúva. Nós dois rimos
da piada e depois lhe contei outra um pouco pior. Ela soltou uma boa risada
com aquela anedota e fumou outro cigarro. Uma coisa foi levando a outra, foi
o que aconteceu, entende?
“Bem, aí eu a beijei. Pus a cabeça dela para trás no sofá e beijei, e senti a
língua dela vir correndo para dentro da minha boca. Entende o que estou
dizendo? Um homem pode levar a vida inteira obedecendo todas as regras, e
aí de repente já não importa mais nada. A sorte dele vai embora, entende?
“Mas tudo acabou rapidinho. E depois ela disse: ‘Você deve estar pensando
que eu sou uma prostituta ou alguma coisa assim’, e depois simplesmente foi
embora.
“Eu estava muito excitado, entende? Ajeitei o sofá e revirei as almofadas.
Dobrei todos os jornais e até lavei as xícaras que a gente tinha usado. Lavei a
cafeteira. O tempo todo eu pensava em como é que eu ia encarar sua mãe. Eu
estava apavorado.
“Pois bem, foi assim que começou. Sua mãe e eu continuamos numa boa,
do mesmo jeito que antes. Mas passei a me encontrar com aquela mulher
regularmente.”
A mulher que estava na outra ponta do balcão levantou do seu banco. Deu
uns passos na direção do centro do salão e começou a dançar. Sacudia a cabeça
para um lado e para o outro e estalava os dedos. O barman parou de misturar
os drinques. A mulher levantou os braços acima da cabeça e se mexeu num
pequeno círculo no meio do salão. Mas aí ela parou de fazer aquilo e o barman
retomou seu trabalho.
“Viu só isso?”, perguntou meu pai.
Mas não falei nada.
“Foi assim que aconteceu”, disse ele. “Larry tinha aquela agenda cheia e
acabei indo lá todas as noites que eu podia. Dizia para a sua mãe que ia aqui
ou ali.”
Tirou os óculos e fechou os olhos. “Não contei isso para ninguém.”
Não havia nada para eu dizer. Olhei lá fora, para a pista de pouso, e depois
para o meu relógio de pulso.
“Escute!”, disse ele. “A que horas sai o seu avião? Você pode pegar outro?
Deixe eu pagar mais um drinque pra gente, Les. Peça mais dois pra nós. Vou
ser mais rápido. Vou terminar num minuto. Escute”, disse.
“Ela tinha um retrato dele no quarto, junto da cama. No começo aquilo me
incomodou, ver o retrato dele bem ali e tudo. Mas depois de um tempo me
acostumei. Olhe só como a gente se acostuma com as coisas.” Balançou a
cabeça. “É difícil acreditar. Bem, tudo acabou mal. Você sabe disso. Você sabe
tudo sobre isso.”
“Só sei o que você me contou”, falei.
“Vou explicar, Les. Vou contar para você qual é a coisa mais importante
nessa história toda. Veja, existem coisas. Coisas mais importantes do que sua
mãe me deixar. Agora escute, escute bem. Uma vez a gente estava na cama.
Devia ser mais ou menos a hora do almoço. A gente estava só deitado,
conversando, eu estava meio que cochilando, entende? Era aquela situação
gozada em que a gente cochila e sonha, sabe? Mas ao mesmo tempo eu estava
dizendo a mim mesmo que era melhor lembrar que dali a pouco eu precisava
levantar e ir embora. Pois foi numa situação assim que um carro parou na
entrada da garagem, alguém saiu do carro e bateu a porta.
“‘Meu Deus’, ela gritou. ‘É o Larry!’
“Devo ter enlouquecido. Lembro de pensar que se eu saísse correndo pela
porta dos fundos ele ia me segurar pelo pescoço e me espremer contra a cerca
grande do quintal e quem sabe me matar. Sally fazia um barulho engraçado.
Como se estivesse sem ar. Estava de roupão, mas aberto, e ela estava na
cozinha balançando a cabeça. Tudo isso acontecia ao mesmo tempo, entende?
Então lá estava eu, quase pelado, com as roupas na mão, e o Larry abrindo a
porta da frente. Pois bem, pulei. Pulei direto pela vidraça da janela da frente
mesmo, pulei em cheio no vidro.”
“Você fugiu?”, perguntei. “Ele não foi atrás de você?”
Meu pai me olhou como se eu estivesse doido. Ficou contemplando seu
copo vazio. Olhei meu relógio de pulso, tenso. Estava com uma ligeira dor
atrás dos olhos.
Falei: “Acho melhor eu ir lá pra fora daqui a pouco”. Passei a mão pelo
queixo e ajeitei o colarinho. “Ela ainda está em Redding, essa tal mulher?”
“Você não entende mesmo nada, não é?”, disse meu pai. “Você não entende
nada de nada. Você não sabe de nada, a não ser vender livros.”
Estava quase na hora de ir embora.
“Ah, meu Deus, desculpe”, disse ele. “O homem se desmantelou, foi isso
que aconteceu. Se jogou no chão e chorou. Ela cou na cozinha. Ficou lá
chorando. Ela se ajoelhou e rezou para Deus, em alto e bom som, para que o
homem ouvisse.”
Meu pai começou a falar mais alguma coisa. Mas, em vez de continuar,
balançou a cabeça. Talvez quisesse me dizer alguma coisa.
Mas aí falou: “Não, você precisa pegar o avião”.
Ajudei-o a vestir o casaco e começamos a sair dali, eu o guiava com minha
mão em seu cotovelo.
“Vou pôr você num táxi”, falei.
Ele disse: “Vou ver você partir”.
“Tudo bem”, falei. “Da próxima vez, quem sabe?”
Apertamos a mão. Foi a última vez que o vi. Na viagem para Chicago,
lembrei que tinha deixado no bar o saco com os presentes dele. Não importa.
Mary não precisava de doces, biscoitos de amêndoa nem nada.
Isso aconteceu no ano passado. Agora ela precisa menos ainda.
O banho
M eu marido come com apetite. Mas não acho que ele esteja mesmo com
fome. Mastiga, os braços em cima da mesa, e ca olhando alguma
coisa do outro lado da sala. Olha para mim e olha de novo para longe. Limpa a
boca no guardanapo. Encolhe os ombros e continua a comer.
“Por que você ca me olhando?”, diz ele. “O que foi?” diz, e pousa o garfo
na mesa.
“Eu estava olhando?”, digo, e balanço a cabeça.
O telefone toca.
“Não atenda”, diz ele.
“Pode ser sua mãe”, digo.
“Vá ver”, diz ele.
Tiro o fone do gancho, co escutando. Meu marido para de comer.
“Não falei?”, diz ele quando eu desligo. Começa a comer de novo. Depois
joga o guardanapo em cima do prato. Diz: “Droga, por que as pessoas não vão
cuidar da sua própria vida? Me diga o que foi que eu z de errado, eu quero
saber! Eu não era o único homem lá. A gente conversou muito sobre o
assunto e todos nós decidimos juntos. A gente não podia simplesmente voltar.
A gente estava a oito quilômetros do carro. Não quero que você que me
julgando. Está ouvindo?”
“Você é que sabe”, digo.
Ele diz: “O que é que eu sei, Claire? Me diga o que é que eu tenho de saber.
Não sei de nada, a não ser uma coisa”. Ele me dirige o que imagina ser um
olhar signi cativo. “Ela estava morta”, diz. “E eu lamento tanto quanto
qualquer outra pessoa. Mas ela estava morta.”
“Essa é a questão”, digo.
Ele ergue as mãos. Empurra a cadeira para longe da mesa. Pega os cigarros
e vai para os fundos com uma lata de cerveja. Vejo que ele senta na cadeira do
jardim e pega o jornal outra vez.
Seu nome está lá na primeira página. Junto com o nome de seus amigos.
Fecho os olhos e me seguro na pia. Depois estendo o braço e empurro com
força o escorredor de louça, jogando os pratos no chão.
Ele nem se mexe. Sei que ouviu. Levanta a cabeça como se ainda estivesse
ouvindo. Mas a não ser por isso ele nem se mexe. Nem se vira.
Ele, Gordon Johnson, Mel Dorn e Vern Williams, todos eles jogam pôquer,
boliche e pescam. Pescam juntos toda primavera e todo início de verão, antes
que as visitas dos parentes atrapalhem. São homens decentes, pais de família,
homens dedicados ao seu trabalho. Têm lhos e lhas que vão à escola com o
nosso lho, Dean.
Na última sexta-feira, esses pais de família foram até o rio Naches. Deixaram
o carro nas montanhas e caminharam até o local onde queriam pescar.
Levaram sacos de dormir, comida, baralho, uísque.
Viram a garota antes de montarem o acampamento. Mel Dorn a encontrou.
Estava sem roupa. Estava enroscada no meio de uns galhos baixos que
pendiam rente à água.
Chamou os outros e eles foram ver. Conversaram sobre o que fazer. Um dos
homens — meu Stuart não fala quem foi — disse que eles deviam voltar na
mesma hora. Os outros caram remexendo a areia com o sapato e disseram
que não pensavam da mesma forma. Alegaram cansaço, o fato de já ser muito
tarde e que a garota não ia mesmo para lugar nenhum.
Por m, foram em frente e montaram o acampamento. Fizeram uma
fogueira e beberam seu uísque. Quando a lua subiu, conversaram sobre a
garota. Alguém disse que deviam evitar que o corpo fosse levado pela água.
Pegaram suas lanternas e voltaram ao rio. Um dos homens — pode ter sido o
Stuart — entrou na água e pegou a garota. Segurou-a pelos dedos e puxou-a
para a margem. Pegou uma linha de náilon, amarrou ao pulso da garota e
depois deu um laço com a outra ponta em volta de uma árvore.
Na manhã seguinte, prepararam o café da manhã, tomaram café e beberam
uísque, e depois cada um foi para um lado pescar. Naquela noite cozinharam
peixe, cozinharam batatas, beberam café, beberam uísque, depois levaram os
apetrechos de cozinhar e de comer até o rio mais abaixo e lavaram tudo no
lugar onde a garota estava.
Jogaram baralho mais tarde. Talvez tenham jogado até não conseguirem
mais enxergar as cartas. Vern Williams foi dormir. Mas os outros caram
contando histórias sórdidas. Gordon Johnson disse que a truta que haviam
pescado estava dura por causa do frio terrível da água.
Na manhã seguinte, acordaram tarde, beberam uísque, pescaram um pouco,
desmontaram as barracas, enrolaram os sacos de dormir, juntaram suas
tralhas e partiram a pé. Dirigiram até encontrar um telefone. Foi Stuart quem
fez o telefonema, enquanto os outros caram em volta, debaixo do sol,
ouvindo. Ele deu o nome de todos eles ao delegado. Não tinham nada a
esconder. Não estavam envergonhados. Disseram que iam esperar até alguém
chegar para dar alguma orientação e tomar o depoimento deles.
Eu estava dormindo quando ele chegou em casa. Mas acordei quando o
ouvi na cozinha. Dei com ele encostado na geladeira, com uma lata de cerveja
na mão. Pôs os braços pesados em volta de mim e esfregou suas mãos grandes
nas minhas costas. Na cama, pôs as mãos em mim outra vez e depois esperou,
como se estivesse pensando em outra coisa. Virei e abri as pernas. Depois,
acho que ele cou acordado.
Naquela manhã ele levantou antes que eu tivesse tido tempo de sair da
cama. Para ver se havia alguma coisa sobre o assunto no jornal, imagino.
O telefone começou a tocar logo depois das oito.
“Vá para o inferno!”, ouvi meu marido gritar.
O telefone tocou de novo.
“Não tenho nada a acrescentar ao que já disse ao delegado!”
Bateu com força o fone no gancho.
“O que está acontecendo?”, perguntei.
Foi aí que ele me contou o que acabei de contar a vocês.
Tirei depressa os pratos sujos da mesa e fui para fora. Ele está deitado de
costas na grama, o jornal e a lata de cerveja perto da mão.
“Stuart, a gente pode dar uma volta de carro?”, pergunto.
Ele se vira e me olha. “Vamos comprar cerveja”, diz. Fica de pé e toca no
meu quadril quando passa por mim. “Me dê só um minuto”, diz ele.
A gente anda de carro pela cidade sem falar nada. Ele para num mercado à
beira da estrada a m de comprar cerveja. Reparo numa grande pilha de
jornais logo depois da porta. No alto da escadinha da entrada, uma mulher
gorda de vestido estampado segura um palito doce de alcaçuz para uma
garotinha. Depois, atravessamos o riacho Everson e entramos num parque
reservado para piqueniques. O riacho corre por baixo da ponte e deságua num
poço grande algumas centenas de metros adiante. Dá para ver os homens lá.
Dá para ver que estão pescando.
Tanta água tão perto de casa.
Digo: “Por que vocês tinham que viajar tantos quilômetros?”.
“Não me irrite”, diz ele.
Sentamos num banco sob o sol. Ele abre latas de cerveja para nós. Diz:
“Relaxe, Claire”.
“Eles disseram que eram inocentes. Disseram que eram malucos.”
Ele diz: “Quem?”. Ele diz: “Do que você está falando?”.
“Dos irmãos Maddox. Eles mataram uma garota chamada Arlene Hubly na
cidade onde fui criada. Cortaram a cabeça dela e jogaram o corpo no rio Cle
Elum. Aconteceu quando eu era pequena.”
“Você vai acabar me irritando”, diz ele.
Olho o riacho. Eu estou bem ali, de olhos abertos, de bruços, contemplando
o musgo no fundo, morta.
“Não sei qual é o problema com você”, diz ele a caminho de casa. “Está me
deixando mais irritado a cada minuto que passa.”
Não há nada que eu possa dizer a ele.
Ele tenta se concentrar na estrada. Mas não para de olhar no retrovisor.
Ele sabe.
***
Stuart acha que está me deixando dormir até mais tarde esta manhã. Mas eu
já estava acordada muito antes de o despertador tocar. Fiquei pensando,
deitada do outro lado da cama, longe de suas pernas peludas.
Ele despacha o Dean para a escola, depois faz a barba, troca de roupa e vai
trabalhar. Por duas vezes olha dentro do quarto e tosse de leve. Mas continuo
de olhos fechados.
Na cozinha, acho um bilhete dele. Está assinado “Com amor”.
Fico sentada no canto onde a gente toma café da manhã, bebo café e deixo
um círculo de café no bilhete. Olho o jornal e viro as páginas para a frente e
para trás em cima da mesa. Então puxo o jornal para perto e leio o que está
escrito. O corpo foi identi cado, a família reclamou o corpo. Mas foi preciso
fazer uns exames, colocar umas coisas dentro dele, cortar, pesar, medir,
colocar os pedaços dentro do couro de novo e costurar tudo no lugar.
Fico ali sentada por um bom tempo segurando o jornal e pensando. Depois
telefono para marcar hora no cabeleireiro.
Sento embaixo do secador com uma revista no colo e deixo Marnie fazer
minhas unhas.
“Amanhã vou a um enterro”, digo.
“Lamento saber disso”, diz Marnie.
“Foi um assassinato”, digo.
“É o pior tipo que tem”, diz Marnie.
“Não éramos muito próximas”, digo. “Mas sabe como é.”
“A gente vai deixar você bem-arrumada”, diz Marnie.
Naquela noite, faço minha cama no sofá e de manhã acordo antes dele.
Preparo o café enquanto ele faz a barba.
Ele aparece na porta da cozinha, uma toalha por cima do ombro nu,
pensativo.
“Já passei o café”, digo. “Os ovos vão car prontos num minuto.”
Acordo Dean e nós três comemos. Toda vez que Stuart olha para mim,
pergunto ao Dean se ele quer mais leite, mais torradas etc.
“Vou telefonar para você hoje”, diz Stuart quando abre a porta.
Digo: “Acho que não vou estar em casa hoje”.
“Tudo bem”, diz ele. “Está certo.”
Visto-me com cuidado. Experimento um chapéu e me olho no espelho.
Escrevo um bilhete para o Dean.
Querido, mamãe tem que fazer umas coisas à tarde, mas vou voltar depois. Fique
dentro de casa ou no quintal até que um de nós chegue.
Com amor, mamãe.
Olho para a palavra “amor” e depois a sublinho. Aí vejo a expressão tem que
fazer. Será que é assim mesmo que se diz?
Saio de carro e passo por uma região de fazendas, atravesso plantações de
aveia e beterraba, passo também por pomares de macieiras e rebanhos
pastando nos campos. Depois tudo se modi ca, as fazendas mais parecem
barracões do que casas, e os pomares mais parecem depósitos de madeira.
Depois montanhas e, à direita, lá embaixo, às vezes avisto o rio Naches.
Uma caminhonete verde vem crescendo atrás de mim, e ela ca atrás de
mim por muitos quilômetros. Toda vez reduzo a velocidade na hora errada, na
esperança de que ela me ultrapasse. Depois acelero. Mas também na hora
errada. Seguro o volante com força, até meus dedos doerem.
Num longo trecho livre, ela me ultrapassa. Mas ca emparelhada comigo
por algum tempo, um homem de cabelo bem curto e de camisa azul de
trabalho. Olhamos um para o outro. Então ele acena, buzina e segue em
frente.
Reduzo a velocidade e acho um lugar. Paro o carro e desligo o motor. Dá
para ouvir o rio lá embaixo das árvores. Depois ouço a caminhonete voltando.
Tranco as portas e levanto os vidros.
“Você está bem?”, pergunta o homem. Bate de leve no vidro. “Você está
bem?” Apoia os braços na porta e aproxima o rosto da janela.
Olho bem para ele. Não consigo pensar no que fazer.
“Está tudo bem aí dentro com você? Por que está trancada desse jeito?”
Faço que sim com a cabeça.
“Abaixe o vidro.” Ele balança a cabeça, olha para a estrada e depois de novo
para mim. “Abaixe o vidro agora.”
“Por favor”, digo. “Preciso ir.”
“Abra a porta”, diz ele como se não estivesse ouvindo. “Você vai sufocar aí
dentro.”
Olha para os meus peitos, as minhas pernas. Percebo muito bem que é isso
que ele está fazendo.
“Ei, doçura”, diz ele. “Só estou querendo ajudar.”
O caixão está fechado e coberto por pétalas de ores. O órgão começa a
tocar no instante em que sento numa cadeira. As pessoas vão entrando e
encontrando suas cadeiras. Tem um rapaz de calça boca de sino e camisa
amarela de manga curta. Uma porta se abre e a família entra em grupo e vai
para um local protegido por uma cortina, mais no canto. As cadeiras rangem
enquanto todos se acomodam. De imediato, um homem louro e gentil, de
terno escuro, se levanta e pede que baixemos a cabeça. Faz uma prece por nós,
os vivos, e quando termina faz uma prece pela alma da falecida.
Junto com os outros, passo diante do caixão. Em seguida, vou até a porta e
saio para a luz da tarde. Tem uma mulher que desce mancando a escadinha à
minha frente. Na calçada, ela olha em volta. “Bem, ele foi preso”, diz. “Se é
que serve de consolo. Foi preso hoje de manhã. Ouvi no rádio antes de vir
para cá. Um rapaz aqui mesmo da cidade.”
Seguimos juntas pela calçada quente. As pessoas estão ligando os carros.
Estendo a mão e me apoio num parquímetro. Capôs reluzentes e para-lamas
reluzentes. Minha cabeça gira.
Digo: “Eles têm amigos, esses assassinos. Nunca se sabe”.
“Eu conhecia essa menina desde criança”, diz a mulher. “Ela ia muito à
minha casa, eu fazia biscoitos e ela cava comendo na frente da televisão.”
Quando volto para casa, Stuart está sentado à mesa com uma dose de
uísque à sua frente. Por um instante louco, acho que alguma coisa aconteceu
com o Dean.
“Onde é que ele está?”, pergunto. “Cadê o Dean?”
“Lá fora”, diz meu marido.
Ele esvazia o copo e se levanta. Diz: “Acho que sei do que você precisa”.
Estende um braço em torno da minha cintura e, com a outra mão, começa
a desabotoar meu casaco e depois os botões da minha blusa.
“Uma coisa de cada vez”, diz ele.
Fala mais alguma coisa. Mas não preciso ouvir. Não consigo ouvir nada,
com tanta água caindo.
“Isso mesmo”, digo, eu mesma terminando de me desabotoar. “Rápido,
antes que o Dean volte.”
A terceira coisa que matou meu pai
V ou contar a vocês o que foi que deu cabo do meu pai. A terceira coisa foi
o Mudinho, o Mudinho ter morrido. A primeira foi Pearl Harbor. E a
segunda foi mudar-se para a fazenda do meu avô perto de Wenatchee. Foi lá
que meu pai terminou seus dias, se bem que eles provavelmente já tinham
terminado antes disso.
Meu pai pôs a culpa da morte do Mudinho na mulher do Mudinho. Depois
pôs a culpa nos peixes. No nal pôs a culpa em si mesmo — porque foi ele
quem mostrou ao Mudinho, na parte de trás da revista Rio e Campo, o anúncio
de percas pretas vivas, embarcadas para qualquer ponto dos Estados Unidos.
Foi depois de receber os peixes que o Mudinho passou a agir de modo
estranho. Os peixes modi caram totalmente a personalidade do Mudinho. Foi
o que meu pai falou.
Eu nunca soube o nome verdadeiro do Mudinho. Se alguém sabia, nunca
ouvi ninguém dizer. Então ele era o Mudinho e é como Mudinho que eu me
lembro dele. Era um homem pequeno e enrugado, careca, baixo, mas de
braços e pernas muito fortes. Quando sorria, o que era raro, os lábios se
dobravam para trás, por cima dos dentes quebrados e marrons. Isso lhe dava
uma expressão de astúcia. Seus olhos úmidos cavam cravados na boca da
gente quando a gente falava — e, se a gente não estivesse falando, os olhos
dele iam para algum outro lugar esquisito do corpo da gente.
Não acho que fosse surdo de verdade. Pelo menos, não tão surdo quanto
ngia ser. Mas é certo que não podia falar. Disso não há dúvida.
Surdo ou não, Mudinho era um operário como qualquer outro na serraria
desde a década de 1920. Era a Companhia Madeireira Cascade em Yakima,
Washington. Nos anos em que o conheci, Mudinho trabalhava como faxineiro.
E durante todos aqueles anos nunca o vi vestindo uma roupa diferente. Quer
dizer, chapéu de feltro, camisa de trabalho cáqui, paletó de jeans sobre um
macacão. Nos bolsos de cima, levava rolos de toalhas de papel, pois um de
seus serviços era limpar e reabastecer os banheiros. Isso dava um certo
trabalho para ele, pois era comum os homens saírem de noite, depois do seu
turno, com um ou dois rolos escondidos nas marmitas.
Mudinho levava uma lanterna, embora trabalhasse de dia. Também levava
chaves inglesas, alicates, chaves de fenda, ta isolante, as mesmas coisas que os
encarregados da manutenção das máquinas levavam. Então isso fazia o pessoal
zombar do Mudinho, pois além de ele ser daquele jeito ainda carregava aquela
tralha o tempo todo. Carl Lowe, Ted Slade, Johnny Wait, esses eram os piores
gozadores de todos os que gozavam do Mudinho. Mas o Mudinho sempre
levava na esportiva. Acho que já tinha se acostumado.
Meu pai nunca cava de gozação com o Mudinho. Pelo menos não que eu
soubesse. Papai era um homem grande, de ombros fortes, cabelo bem curto,
papada e uma senhora barriga. O Mudinho cava sempre olhando para a
barriga dele. Ia até a seção de limagem onde meu pai trabalhava, sentava num
banco e cava olhando a barriga do meu pai, enquanto ele usava a grande
roda de esmeril para a ar as serras.
O Mudinho tinha uma casa tão boa quanto a de qualquer outro.
Era um troço coberto com papel revestido de piche perto do rio, a uns oito
ou nove quilômetros da cidade. Uns oitocentos metros atrás da casa, no m de
um pasto, havia uma grande cascalheira que o Estado havia escavado na época
em que andaram pavimentando as estradas por aquelas bandas. Três buracos
de bom tamanho tinham sido abertos, e no correr dos anos eles se encheram
de água. Pouco a pouco, os três poços se juntaram e formaram um só.
Era fundo. Tinha um aspecto escuro.
O Mudinho tinha uma casa e também uma esposa. Era uma mulher alguns
anos mais jovem do que ele, e diziam que vivia saindo com mexicanos. Papai
dizia que eram fofoqueiros que espalhavam essas histórias, gente como Lowe,
Wait e Slade.
Ela era uma mulher pequena e parruda, de olhinhos brilhantes. Na primeira
vez que a vi, reparei logo nos olhos. Foi num dia que eu estava com Pete
Jensen, estávamos de bicicleta e paramos na casa do Mudinho para pedir um
copo-d’água.
Quando ela abriu a porta, eu disse que era lho de Del Fraser. Falei: “Ele
trabalha com...”. E aí me dei conta. “A senhora sabe, o seu marido. A gente
estava andando de bicicleta e achou que podia pedir um pouco de água.”
“Esperem um pouco aí”, disse ela.
Voltou com uma canequinha de lata, com água, em cada mão. Bebi a minha
de um só gole.
Mas ela não me ofereceu mais. Ficou olhando para a gente sem dizer nada.
Quando zemos menção de subir de novo em nossas bicicletas, ela se
aproximou da beira da varanda.
“Se vocês, garotos, estivessem de carro agora, eu podia dar uma voltinha
com vocês.”
Sorriu. Os dentes dela pareciam grandes demais para a boca.
“Vamos embora”, disse Pete, e fomos.
Não havia muitos lugares para pescar percas na nossa região do estado. No
geral, havia truta-arco-íris, algumas trutas pintadas e umas trutas Dolly Varden
em alguns rios da parte alta das montanhas, e trutas prateadas no lago Azul e
no lago Rimrock. Era só isso, na maioria dos casos, a não ser pelos
movimentos migratórios de salmões e de outras trutas em alguns rios no nal
do outono. Mas se você fosse mesmo pescador aquilo já era o bastante para
car bem ocupado. Ninguém pescava percas. Uma porção de gente que eu
conhecia nunca tinha visto uma perca, a não ser em fotogra as. Mas meu pai
tinha visto muitas percas quando era garoto no Arkansas e na Geórgia, e tinha
muita esperança de pescar as percas do Mudinho, já que o Mudinho era seu
amigo.
No dia em que os peixes chegaram, eu tinha ido nadar no poço da cidade.
Lembro que fui para casa e saí de novo para pegar as percas, pois o papai ia dar
uma mãozinha ao Mudinho — três tanques vindos de Baton Rouge, na
Louisiana, pelo correio.
Fomos na caminhonete do Mudinho, papai, eu e o Mudinho.
Aqueles tanques na verdade eram uns barris, os três encaixotados em ripas
de pinho. Estavam de pé, na sombra, na parte externa dos fundos do armazém
de cargas da ferrovia, e meu pai e o Mudinho tiveram de juntar forças para
levantar cada caixote e pôr na caminhonete.
O Mudinho dirigiu com muito cuidado ao cruzar a cidade e prosseguiu com
o mesmo cuidado até chegar à sua casa. Atravessou o jardim direto, sem parar.
Foi descendo até car bem perto do poço. Naquela altura, já estava quase
escuro e assim ele manteve os faróis acesos, pegou um martelo e um pé de
cabra embaixo do banco e depois os dois arrastaram os caixotes para perto da
água e começaram a abrir um por um.
Por dentro, cada barril estava envolto em sacos de aniagem e havia furinhos
do tamanho de moedas de cinco centavos na tampa. Levantaram a tampa e o
Mudinho dirigiu o facho da lanterna para dentro do barril.
Parecia que tinha um milhão de lhotinhos de percas mexendo as
barbatanas lá dentro. Era a coisa mais estranha de ver, todas aquelas coisinhas
vivas, tão ativas lá dentro, feito um pequeno oceano que tivesse chegado de
trem.
O Mudinho empurrou o barril até a beira da água e derramou seu
conteúdo. Pegou a lanterna e acendeu, apontada para o poço. Mas agora não
havia mais nada para ver. Dava para ouvir os sapos coaxando, mas sapos
coaxando a gente ouvia todo dia na hora de escurecer.
“Deixe que eu levo os outros barris”, disse meu pai, e estendeu o braço para
pegar o martelo que estava no macacão do Mudinho. Mas o Mudinho recuou
e balançou a cabeça.
Ele mesmo desmontou os outros dois caixotes, deixando manchas escuras
de sangue nas ripas em que feriu a mão durante o trabalho.
Depois dessa noite, o Mudinho cou diferente.
O Mudinho não deixava mais ninguém chegar perto do poço. Pôs uma cerca
em volta do pasto inteiro e depois cercou o poço com arame farpado
eletri cado. Diziam que aquela cerca tinha levado embora todo o dinheiro que
ele havia economizado.
Claro, meu pai não quis ter mais nada a ver com o Mudinho depois daquilo.
Depois que o Mudinho o pôs para fora. Não que ele tenha impedido meu pai
de pescar, vejam bem, porque as percas ainda eram só uns hotinhos de nada.
Mas ele impediu meu pai até de se aproximar do poço para dar uma olhada.
Certa noite, dois anos depois, quando meu pai estava trabalhando até tarde
e eu fui levar comida para ele junto com uma garrafa de chá gelado, o
encontrei conversando com Syd Glover, o encarregado da manutenção das
máquinas. Assim que entrei, ouvi papai falando: “Parece até que o palerma se
casou com os peixes dele, pela maneira como se comporta”.
“Pelo que eu ouço dizer”, falou Syd, “seria melhor pôr aquela cerca em volta
da casa dele.”
Então meu pai me viu, e vi como ele fez um sinal para Syd Glover com os
olhos.
Mas um mês depois meu pai conseguiu convencer o Mudinho. O que fez foi
o seguinte: disse que era preciso eliminar as percas mais fracas para que o
ambiente casse melhor para o resto das percas. O Mudinho cou parado,
puxando a ponta da orelha, olhando para o chão. Papai disse: É isso aí, e era
melhor ele tratar de fazer aquilo no dia seguinte, porque tinha de ser feito
mesmo. Na verdade o Mudinho nunca chegou a dizer que sim. Nunca chegou
a dizer que não, e só isso. O que fez foi car puxando a ponta da orelha mais
um pouco.
Quando papai chegou em casa naquele dia, eu estava pronto e à espera. Já
tinha pegado suas velhas iscas de perca e estava testando os anzóis triplos com
o dedo.
“Está pronto?”, ele me perguntou enquanto saía do carro com um pulo.
“Vou ao banheiro e você vai pondo tudo dentro do carro. Pode dirigir até lá,
se quiser.”
Arrumei tudo no banco de trás e estava experimentando o volante quando
ele voltou com seu chapéu de pesca e comendo uma fatia de bolo com as
mãos.
Mamãe cou na porta olhando. Era uma mulher de pele bonita, cabelo
louro puxado para trás num coque apertado e preso por baixo por um grampo
feito com uma imitação de diamante. Fico imaginando se ela chegou a se
divertir naqueles bons tempos e o que é que ela fazia da vida, na verdade.
Soltei o freio de mão. Mamãe cou olhando até eu engrenar a primeira e
depois, ainda sem sorrir, voltou para dentro de casa.
Fazia uma tarde bonita. Deixamos a janela toda aberta para que o ar
entrasse. Cruzamos a ponte Moxee e viramos em direção ao leste, para a
estrada Slater. Campos de alfafa se estendiam dos dois lados, e além deles
cavam os milharais.
Papai estava com a mão fora da janela. Deixava o vento empurrar a mão
para trás. Estava agitado, eu podia ver.
Não demorou e a gente já estava parando o carro na casa do Mudinho. Ele
saiu da casa com o chapéu na cabeça. Sua mulher estava olhando pela janela.
“Já está com a frigideira pronta?”, gritou papai para o Mudinho, mas ele se
limitou a car parado, observando o carro. “Ei, Mudinho!”, gritou papai. “Ei,
Mudinho, cadê a sua vara?”
O Mudinho sacudiu a cabeça para trás e para a frente. Moveu o peso do
corpo de uma perna para a outra, olhou para o chão e depois para nós. Sua
língua estava pousada sobre o lábio inferior e ele começou a futucar a terra
com o pé.
Pus nos ombros o cesto de pescaria. Entreguei a papai sua vara de pescar e
peguei a minha.
“Prontos para ir?”, perguntou papai. “Ei, Mudinho, estamos prontos?”
O Mudinho tirou o chapéu e, com a mesma mão, esfregou o pulso em cima
da cabeça. Virou-se de modo abrupto e nós o seguimos através do pasto
esponjoso. A cada seis metros mais ou menos, uma narceja voava de um tufo
de capim mais alto na beirada dos sulcos antigos.
No m do pasto, o solo se inclinava de leve, cava seco e pedregoso, moitas
de urtiga e arbustos de carvalho apareciam aqui e ali. Viramos para a direita,
seguindo uma antiga trilha marcada por pneus de carros, atravessamos um
campo de asclépias que batiam na cintura, as vagens secas no alto dos talos
chacoalhavam ferozes quando abríamos caminho. Logo avistei o brilho da
água por cima do ombro do Mudinho e ouvi papai gritar: “Ah, meu Deus, olhe
só isso!”.
Mas o Mudinho reduziu o passo e cou levantando a mão a toda hora,
empurrando o chapéu para trás e para a frente sobre a cabeça, e depois cou
parado.
Papai falou: “E aí, o que você acha, Mudinho? Qualquer lugar serve? Por
onde você acha que a gente devia começar?”.
O Mudinho molhou o lábio inferior.
“Mas o que é que há com você, Mudinho?”, disse papai. “Este poço é seu,
não é?”
O Mudinho olhou para baixo e tirou uma formiga que estava em seu
macacão.
“Puxa, caramba”, disse papai, soltando um bufo. Tirou o relógio do pulso.
“Se você ainda está de acordo, é melhor a gente começar antes que que
escuro demais.”
O Mudinho en ou as mãos bem fundo nos bolsos e virou-se de novo para o
poço. Começou a andar outra vez. Fomos atrás. Agora dava para ver o poço
inteiro, a água ondulava com os peixes que subiam à tona. Toda hora uma
perca dava um pulo para fora e mergulhava com um espirro de água.
“Minha nossa”, ouvi meu pai dizer.
Chegamos ao poço num local mais aberto, uma espécie de praia de
cascalho.
Papai se aproximou de mim e cou de cócoras. Também quei. Ele estava
espiando dentro da água à nossa frente e, quando olhei, vi o que havia atraído
sua atenção.
“Meu Deus do Céu”, sussurrou ele.
Um cardume de percas estava passando, vinte, trinta, nenhuma com menos
de um quilo. Davam uma guinada para trás e depois voltavam, tão espremidas
umas nas outras que pareciam estar se chocando. Dava para ver seus olhos
grandes, de pálpebras pesadas, olhando para nós enquanto passavam.
Disparavam de novo para longe e depois voltavam.
Elas estavam pedindo para ser pescadas. Não fazia a menor diferença a gente
car de cócoras ou de pé. Os peixes não estavam dando a mínima para a
gente. Vou dizer uma coisa, era uma visão para nunca mais esquecer.
Ficamos ali parados por um tempo, vendo os cardumes de percas passar
com toda a inocência, cuidando da sua vida, enquanto o Mudinho puxava os
dedos o tempo todo e olhava em volta como se esperasse que alguém
aparecesse. Em todo o poço, as percas subiam para tocar o nariz na superfície
ou dar um pulo sobre a água e mergulhar de novo, ou então vinham à
superfície para nadar com suas nadadeiras dorsais fora d’água.
Papai fez um sinal e nos levantamos para lançar os anzóis. Vou dizer uma
coisa, eu estava trêmulo de tão nervoso. Mal consegui soltar a isca do punho
de cortiça da minha vara. Foi na hora que eu estava tentando pegar os anzóis
que senti o Mudinho segurar meu ombro com seus dedos grandes. Olhei e,
em resposta, o Mudinho acenou para o papai com o queixo. Estava bem claro
o que ele queria, nada mais do que uma vara.
Papai tirou o chapéu e depois colocou-o de novo na cabeça e veio para onde
eu estava.
“Você começa, Jack”, disse ele. “Está tudo certo, lho... agora é com você.”
Olhei para o Mudinho um segundo antes de jogar meu anzol. O rosto dele
tinha se enrijecido e havia um o no de saliva em seu queixo.
“Puxe com força o bandido quando ele morder”, disse papai. “Os sacanas
têm umas bocas duras que nem maçaneta de porta.”
Soltei a trava do molinete e joguei o braço bem para trás. Mandei o anzol a
uns bons doze metros de distância. A água já estava borbulhando antes mesmo
de eu ter tempo de puxar um pouco a linha para tirar a folga.
“Puxe!”, gritou papai. “Dê um bom puxão nesse sacana! Puxe pra valer!”
Puxei para trás, com força, duas vezes. Eu tinha pegado o peixe, claro. A
vara curvou-se para a frente e sacudiu para trás e para a frente. Papai
continuava gritando e dizendo o que eu tinha de fazer.
“Deixe ele se afastar um pouco, deixe ir! Deixe ele correr! Dá mais linha
para ele! Agora enrole! Enrole! Não, deixe ele ir mais! Opa! Você vai ver só!”
A perca dançou em volta do poço. Toda vez que chegava à superfície da
água, balançava a cabeça com tanta força que dava para ouvir a isca
chacoalhar. E depois a perca ia embora de novo. Mas aos poucos fui cansando
a perca e a fui trazendo para perto. A perca parecia enorme, uns três quilos
talvez. Estava de lado, vencida, boca aberta, as guelras se mexendo. Eu estava
com os joelhos tão enfraquecidos que mal me aguentava de pé. Mas segurei a
vara no alto, a linha esticada.
Papai entrou na água e foi pegar a perca com a água acima dos sapatos. Mas,
quando estendeu a mão para pegar o peixe, o Mudinho começou a falar
nervoso, soltando perdigotos, balançando a cabeça, abanando os braços.
“Puxa, que diabo está acontecendo com você agora, Mudinho? O garoto
pegou a maior perca que já vi na vida e, por Deus, ele não vai soltar agora!”
O Mudinho continuou falando e gesticulando na direção do poço.
“Não vou deixar o peixe do garoto escapar. Está me ouvindo, Mudinho?
Trate de arranjar outra coisa para pensar se acha que vou fazer isso.”
O Mudinho estendeu a mão para pegar minha linha. Enquanto isso, a perca
tinha recuperado um pouco de força. Ela se virou e recomeçou a nadar. Gritei
e aí perdi a cabeça e baixei a trava do molinete e comecei a enrolar a linha. A
perca deu uma última e desesperada arrancada.
Foi o que bastou: a linha rompeu. Quase caí de costas no chão.
“Vamos, Jack”, disse papai, e vi que ele estava pegando sua vara. “Vamos
embora, vamos deixar esse palerma desgraçado, antes que eu quebre a cara
dele.”
Naquele ano, em fevereiro, houve uma enchente no rio.
Tinha nevado bastante nas primeiras semanas de dezembro e o tempo
esfriara muito antes do Natal. A terra congelou. A neve cou onde estava. Mas
no nal de janeiro bateu o vento Chinook. Acordei um dia de manhã e ouvi a
casa sendo fustigada pelo vento e o murmúrio incessante de água escorrendo
do telhado.
O vento soprou durante cinco dias e no terceiro dia o rio começou a subir.
“Já passou de quatro metros e meio”, disse meu pai certa noite, enquanto lia
o jornal. “Isso é um metro a mais do que o necessário para haver inundação. O
velho Mudinho vai perder os seus queridinhos.”
Eu queria ir à ponte Moxee para ver em que altura a água estava passando.
Mas meu pai não deixou. Disse que uma inundação não era coisa para se car
vendo.
Dois dias depois, o rio cou ondulado e em seguida a água começou a
baixar.
Orin Marshall, Danny Owens e eu, uma semana depois, fomos de bicicleta
até a casa do Mudinho um dia de manhã. Estacionamos nossas bicicletas e
atravessamos a pé o pasto que margeava a propriedade do Mudinho.
Era um dia úmido, tempestuoso, de nuvens escuras e volumosas, que
corriam depressa pelo céu. O solo estava encharcado e toda hora pisávamos
em poças no meio do capim espesso. Danny estava aprendendo a falar
palavrões e enchia o ar com os melhores que arranjava toda vez que afundava
o sapato numa poça d’água. Dava para ver o rio muito cheio no m do pasto.
A água ainda estava alta e fora do leito, ondulando em volta de troncos de
árvore e comendo as beiradas de terra. Adiante, mais no meio, a corrente se
movia com força e depressa e de vez em quando passava um arbusto boiando,
ou uma árvore com seus galhos apontando para fora da água.
Nos aproximamos da cerca do Mudinho e encontramos uma vaca
enganchada no arame farpado. Estava toda inchada e tinha a pele brilhosa e
cinzenta. Foi a primeira coisa morta, de qualquer tamanho, que eu vi na vida.
Lembro que Orin pegou um pedaço de pau e tocou nos olhos abertos.
Seguimos pela cerca na direção do rio, mais abaixo. Estávamos com medo
de chegar perto do arame porque a gente achava que ainda podia estar
eletri cado. Mas na beirada do que parecia um canal profundo a cerca
terminava. O solo simplesmente havia afundado na água, naquele ponto, e a
cerca tinha ido junto.
Atravessamos e seguimos o novo canal que cortava bem no meio as terras
do Mudinho e rumava direto para o seu poço, desaguando nele na diagonal e
abrindo à força um desaguadouro do outro lado, e que depois seguia
serpenteando até se juntar ao rio mais ao longe.
Não havia dúvida de que a maior parte dos peixes do Mudinho tinha sido
levada embora. Mas os que não tinham sido levados estavam livres para ir e
vir.
Então avistei o Mudinho. Me deu medo ver o Mudinho. Fui para junto dos
outros e todos descemos de volta.
O Mudinho estava do outro lado do poço, perto do lugar onde a água saía
numa torrente. Ele estava lá parado e mais nada, o homem mais triste que eu
já vi.
“Mas eu tenho muita pena mesmo do Mudinho”, disse meu pai no jantar
algumas semanas depois. “Claro, foi o pobre coitado que causou sua própria
desgraça. Mesmo assim a gente não consegue deixar de car triste por ele.”
Papai contou também que George Laycock tinha visto a mulher do
Mudinho sentada no Sportsman Club com um mexicano grandalhão.
“E isso não é nem metade da história...”
Mamãe ergueu para ele um olhar penetrante e depois olhou para mim. Mas
apenas continuei a comer como se não tivesse ouvido nada.
Papai disse: “Deixe para lá, Bea, o menino já está bem crescido!”.
Ele havia mudado muito, o Mudinho. Nunca mais cou junto dos outros
homens, ao menos quando podia evitar. Ninguém tinha mais vontade de fazer
gozação com ele, não depois que o Mudinho correu atrás de Carl Lowe com
um sarrafo de cinco por dez, logo depois que o Carl, na corrida, jogou o
chapéu do Mudinho no chão com um tapinha. Mas o pior foi que agora o
Mudinho andava faltando ao trabalho um ou dois dias por semana, em média,
e começou a correr o boato de que ia ser mandado embora.
“O cara está perdendo a cabeça”, disse papai. “Vai pirar de vez se não prestar
atenção.”
Então, numa tarde de domingo, pouco antes do meu aniversário, eu e papai
estávamos fazendo uma limpeza na garagem. Era um dia quente, com uma
aragem. Dava para ver a poeira pairando no ar. Mamãe foi à porta dos fundos
e disse: “Del, telefone para você. Acho que é o Vern”.
Segui papai até dentro de casa para me lavar. Quando ele terminou de falar,
baixou o fone no gancho e se virou para nós.
“É o Mudinho”, disse. “Matou a mulher com um martelo e se afogou. Vern
acabou de saber da história na cidade.”
Quando chegamos lá, tinha carros estacionados por todo lado. O portão
para o pasto estava aberto e se podia ver as marcas de pneus na direção do
poço.
A porta de tela estava escancarada e segura por uma caixa, e lá estava um
homem magro, de cara marcada pela varíola, calça larga e camisa esporte e
com um coldre a tiracolo. Olhou para o papai e para mim quando saímos do
carro.
“Eu era amigo dele”, papai disse ao homem.
O homem balançou a cabeça. “Não me interessa quem você é. Trate de cair
fora, a menos que tenha alguma coisa para fazer aqui.”
“Já acharam ele?”, perguntou papai.
“Estão dragando”, disse o homem e ajeitou o encaixe da arma no coldre.
“A gente pode ir até lá? Eu conhecia ele muito bem.”
O homem disse: “O risco é seu. Eles vão enxotar você de lá, depois não diga
que não avisei”.
Atravessamos o pasto, indo em grande parte pelo mesmo caminho que
tínhamos seguido no dia em que tentamos pescar. Havia botes a motor
rodando pelo poço, apos de fumaça do escapamento dos motores pairavam
acima da água. Dava para ver onde a enchente tinha cortado o solo e
carregado árvores e pedras. Havia homens de uniforme nos dois botes
andando de um lado para o outro, um homem no leme e o outro manuseando
a corda e os ganchos.
Um ambulância aguardava na praia de cascalho onde a gente havia se
instalado para jogar nosso anzol para as percas do Mudinho. Dois homens de
branco estavam recostados na traseira da ambulância fumando cigarros.
Um dos botes a motor desligou o motor. Todos olhamos para lá. O homem
na traseira se levantou e começou a içar sua corda. Depois de um tempo, um
braço saiu da água. Parecia que o gancho tinha agarrado o Mudinho de lado.
O braço voltou a descer e depois saiu da água outra vez, junto com uma
espécie de trouxa.
Não é ele, pensei. É alguma outra coisa que está lá embaixo há muitos anos.
O homem na parte da frente do bote se inclinou para trás e juntos os dois
homens puxaram a coisa gotejante para dentro do bote.
Olhei para o papai. A cara dele tinha um aspecto engraçado.
“Mulheres”, disse ele. “É nisso que dá se meter com o tipo errado de
mulher, Jack.”
Mas não acho que papai acreditasse naquilo de verdade. Acho que ele
apenas não sabia quem culpar ou o que dizer.
Eu tive a impressão de que dali para a frente tudo começou a dar errado
para o meu pai. Tal como o Mudinho, ele nunca mais foi o mesmo. Aquele
braço que saiu da água e voltou a afundar parecia estar fazendo uma
despedida dos bons tempos e uma saudação aos tempos ruins. Porque não
foram nada mais que isso todos os anos que vieram depois que o Mudinho se
afogou naquela água escura.
É isso que acontece quando morre um amigo da gente? Má sorte para os
companheiros que ele deixa para trás?
Mas, como eu disse, Pearl Harbor e ter de se mudar para a casa do pai dele
também não zeram nenhum bem ao meu pai.
Uma conversa séria
O carro de Vera estava lá, nenhum outro, e Burt deu graças a Deus por
isso. Parou seu carro na entrada, ao lado da torta que ele havia deixado
cair na noite anterior. Ela ainda estava lá, a fôrma de alumínio de cabeça para
baixo, uma auréola de abóbora esparramada na calçada. Foi um dia depois do
Natal.
Ele tinha vindo visitar sua mulher e os lhos no dia de Natal. Vera o
prevenira. Explicou-lhe a situação. Disse que ele precisava ir embora às seis
horas, porque o amigo dela ia vir com os lhos para jantar.
Eles tinham se sentado na sala e aberto com ar solene os presentes que Burt
havia trazido. Abriram os pacotes dele enquanto os outros pacotes de papel de
seda colorido continuavam empilhados embaixo da árvore de Natal à espera
das seis horas.
Ele olhou os lhos abrirem seus presentes, esperou enquanto Vera
desamarrava a ta do seu presente. Viu Vera abrir o papel, levantar a tampa e
tirar o suéter de caxemira.
“É bonito”, disse ela. “Obrigada, Burt.”
“Experimente”, disse a lha.
“Vista”, disse o lho.
Burt olhou para o lho, agradecido pelo apoio.
Ela experimentou. Foi ao banheiro e voltou com o suéter.
“É bonito”, disse ela.
“Fica bonito em você”, disse Burt, e sentiu o peito inchar.
Ele abriu seus presentes. De Vera, um vale-presente da loja de artigos
masculinos Sondheim’s. Da lha, um conjunto de pente e escova. Do lho,
uma caneta esferográ ca.
Vera serviu refrigerantes e eles conversaram um pouco. Mas o que mais
zeram foi car olhando para a árvore. Então a lha se levantou e começou a
arrumar a mesa da sala de jantar e o lho foi para o seu quarto.
Mas Burt gostava de estar ali. Gostava de car na frente da lareira, um copo
na mão, sua casa, seu lar.
Então Vera foi para a cozinha.
De vez em quando a lha entrava na sala de jantar com alguma coisa para
pôr na mesa. Burt a observava. Observou-a dobrar os guardanapos de linho
em volta das taças de vinho. Observou-a colocar uma jarra comprida no
centro da mesa. Observou-a en ar uma or na jarra, fazendo isso com todo o
cuidado.
Um pequeno bastão de cera e serragem ardia na grelha da lareira. Uma
caixa de papelão com outros cinco bastões iguais àquele estava a postos ao pé
da lareira. Ele se levantou do sofá e pôs todos os bastões na lareira de uma vez.
Ficou olhando até todos pegarem fogo. Depois terminou de beber seu
refrigerante e foi até a porta que dava para o pátio. No caminho, viu as tortas
per ladas no aparador. Empilhou-as nos braços, as seis tortas, uma para cada
dez vezes que ela o havia traído.
Na entrada de carros, no escuro, ele deixou uma torta cair enquanto tentava
abrir a porta.
A porta da frente estava sempre trancada desde a noite em que sua chave
tinha quebrado dentro do tambor. Ele foi para os fundos. Havia uma grinalda
de ores na porta do pátio. Bateu de leve com os dedos no vidro. Vera estava
de roupão de banho. Olhou para ele ali fora e franziu a sobrancelha. Abriu um
pouco a porta.
Burt disse: “Quero pedir desculpas a você pela noite passada. Quero pedir
desculpas às crianças também”.
Vera disse: “Elas não estão em casa”.
Ficou parada na porta e ele cou parado no pátio, perto do lodendro.
Retirou um apo preso na manga.
Ela disse: “Não vou mais tolerar isso. Você tentou pôr fogo na casa”.
“Não z isso.”
“Fez sim. Todo mundo aqui é testemunha.”
Ele disse: “Posso entrar e conversar sobre isso?”.
Ela fechou bem o roupão em torno do pescoço e recuou para dentro.
Ela disse: “Eu preciso ir a um lugar daqui a uma hora”.
Ele olhou em volta. A árvore piscava. Havia uma pilha de caixas reluzentes
embrulhadas com papel de seda na ponta do sofá. A carcaça de um peru
assado jazia sobre uma travessa no centro da mesa da sala de jantar, os restos
de pele sobre uma camada de salsa, como um ninho asqueroso. Um cone de
cinzas enchia a lareira. Havia umas latas de refrigerante vazias ali dentro
também. Uma trilha de manchas de fumaça subia pelos tijolos até o consolo
da lareira, onde a madeira que delimitava os tijolos estava preta e chamuscada.
Ele deu meia-volta e retornou à cozinha.
Disse: “A que horas seu amigo foi embora ontem à noite?”.
Ela disse: “Se você vai começar com essa história, pode ir embora agora
mesmo”.
Ele puxou uma cadeira e sentou-se diante da mesa da cozinha, em frente do
cinzeiro grande. Fechou e abriu os olhos. Empurrou as cortinas de lado e
olhou o quintal lá fora. Viu uma bicicleta sem a roda da frente, de cabeça para
baixo. Viu o capim crescido ao longo da cerca feita de sequoia.
Ela abriu a torneira para encher uma panela de água. “Lembra o Dia de
Ação de Graças?”, disse ela. “Daquela vez eu falei que ia ser o último feriado
em que você ia estragar nossa festa. Comer bacon e ovos em vez de peru às
dez da noite.”
“Eu sei”, disse ele. “Já pedi desculpas.”
“Pedir desculpas é pouco.”
A chama do fogão se apagou de novo. Ela foi para perto do fogão e tentou
reacender o fogo embaixo da panela com água.
“Não vá se queimar”, disse ele. “Não vá tacar fogo na sua roupa.”
Pensou no roupão dela pegando fogo, ele pulando da mesa, jogando Vera no
chão e rolando com ela para o lado até chegar à sala, onde a cobriria com seu
corpo. Ou será que devia correr até o quarto a m de pegar uma toalha?
“Vera?”
Ela olhou para ele.
“Não tem alguma coisa para beber? Eu bem que gostaria de tomar um
drinque esta manhã.”
“Tem um pouco de vodca no congelador.”
“Quando foi que você começou a guardar vodca no congelador?”
“Não pergunte.”
“Está certo”, disse ele. “Não vou perguntar.”
Ele pegou a vodca e pôs um pouco numa xícara que achou na pia.
“Você vai beber assim desse jeito, numa xícara?”, disse ela. “Meu Deus, Burt.
A nal, sobre o que é que você quer conversar? Já disse que preciso ir a um
lugar. Tenho aula de auta a uma hora.”
“Ainda está tendo aula de auta?”
“Foi o que acabei de falar. O que é? Me diga o que você tem em mente de
uma vez, porque preciso me aprontar.”
“Eu queria dizer que lamento muito.”
Ela disse: “Você já falou isso”.
Ele disse: “Se você tiver um pouco de suco, eu podia misturar com a vodca”.
Ela abriu a geladeira e remexeu nas coisas lá dentro.
“Tem suco de maçã”, disse ela.
“Serve”, disse ele.
“Vou ao banheiro”, disse ela.
Ele bebeu a xícara de vodca com suco de maçã. Acendeu um cigarro e jogou
o fósforo no cinzeiro grande que sempre cava na mesa da cozinha. Ficou
observando as guimbas de cigarro dentro dele. Algumas eram da marca que
Vera fumava e outras não. Algumas tinham até uma cor de lavanda. Ele se
levantou e derramou tudo embaixo da pia.
O cinzeiro na verdade não era um cinzeiro. Era um prato grande de barro
que eles tinham comprado de um ceramista barbado no centro comercial de
Santa Clara. Ele lavou o cinzeiro e enxugou. Colocou de volta na mesa. E
então apagou seu cigarro no cinzeiro.
A água no fogão começou a borbulhar na hora em que o telefone começou
a tocar.
Ele ouviu a mulher abrir a porta do banheiro e chamá-lo do outro lado da
sala. “Atenda o telefone aí! Estou entrando no chuveiro.”
O telefone da cozinha estava na bancada da pia, num canto atrás da fôrma
de assar. Ele empurrou a fôrma de assar para o lado e apanhou o fone.
“O Charlie está aí?”, disse a voz.
“Não”, respondeu Burt.
“Está bem”, disse a voz.
Enquanto ele estava fazendo café, o telefone tocou de novo.
“Charlie?”
“É engano”, disse Burt.
Dessa vez deixou o fone fora do gancho.
Vera voltou para a cozinha de jeans, com um suéter e escovando o cabelo.
Com uma colher, ele pôs o café instantâneo nas xícaras de água quente e
depois espirrou um pouco de vodca em sua xícara. Levou as xícaras até a
mesa.
Ela apanhou o fone e escutou. Disse: “O que é isto? Quem era no telefone?”.
“Ninguém”, disse ele. “Quem é que fuma cigarros coloridos?”
“Eu.”
“Não sabia que você fazia isso.”
“Pois é, eu faço.”
Ela se sentou de frente para ele e tomou seu café. Os dois fumaram e
usaram o cinzeiro.
Havia coisas que ele queria dizer, coisas dolorosas, coisas consoladoras,
coisas assim.
“Estou fumando três maços por dia”, disse Vera. “Quer dizer, se você quer
mesmo saber como andam as coisas por aqui.”
“Meu Deus”, disse Burt.
Vera fez que sim com a cabeça.
“Não vim aqui para ouvir isso”, disse ele.
“Então você veio aqui ouvir o quê? Queria ouvir que a casa tinha pegado
fogo?”
“Vera”, disse ele. “É Natal. Por isso eu vim.”
“É o dia depois do Natal”, disse ela. “O Natal já veio e foi embora”, disse.
“Não quero ver nenhum outro nunca mais.”
“E quanto a mim?”, disse ele. “Você acha que morro de amores por essas
festas?”
O telefone tocou de novo. Burt apanhou o fone.
“É alguém querendo falar com um tal de Charlie”, disse.
“O quê?”
“Charlie”, disse Burt.
Vera pegou o fone. Ficou de costas para ele enquanto falava. Depois se virou
e disse: “Vou atender este telefonema no quarto. Então, por favor, ponha o
telefone no gancho depois que eu atender lá, está bem? Dá para perceber se
você estiver ouvindo, portanto desligue quando eu disser”.
Ele pegou o fone. Ela saiu da cozinha. Ele segurou o fone junto à orelha e
escutou. Não ouviu nada. Então ouviu um homem tossir de leve. Depois
ouviu Vera pegar o outro fone. Ela gritou: “Tudo bem, Burt! Agora desligue
aí, Burt!”.
Ele baixou o fone e cou parado olhando o aparelho. Abriu a gaveta do
faqueiro e remexeu nas coisas lá dentro. Abriu outra gaveta. Olhou dentro da
pia. Foi para a sala de jantar e pegou a faca de trinchar. Segurou a faca debaixo
da água quente até a gordura soltar e escorrer. Limpou a lâmina na sua
manga. Foi até o telefone, dobrou o o em dois e serrou sem a menor
di culdade. Examinou as pontas do o. Em seguida empurrou o telefone de
volta ao seu lugar, no canto atrás da fôrma de assar.
Ela entrou na cozinha. Disse: “O telefone cou mudo. Você fez alguma coisa
no telefone?”. Olhou para o aparelho e depois levantou-o da bancada da pia.
“Seu lho da puta!”, berrou ela. E berrou: “Fora, fora, desapareça daqui!”.
Ela estava brandindo o telefone na direção dele. “Já chega! Vou pedir uma
ordem de prisão contra você, é isso o que vou pedir!”
O fone fez um tlim quando ela o jogou com força na bancada da pia.
“Vou na casa do vizinho chamar a polícia se você não sair daqui agora
mesmo!”
Ele pegou o cinzeiro. Segurou pela borda. Fez uma pose de atleta se
preparando para lançar um disco.
“Por favor”, disse ela. “É o nosso cinzeiro.”
Ele saiu pela porta do pátio. Não tinha certeza, mas achava que havia
provado alguma coisa. Tinha esperança de ter deixado uma coisa clara. A coisa
era que os dois precisavam ter uma conversa séria em breve. Havia certas
coisas que precisavam ser conversadas, coisas importantes que tinham de ser
discutidas. Eles iriam conversar outra vez. Quem sabe depois que as festas de
m de ano passassem e as coisas voltassem ao normal. Ele diria a ela que a
porcaria do cinzeiro era a porcaria de um prato, por exemplo.
Ele contornou a torta caída na entrada da garagem e voltou para dentro do
carro. Ligou o motor e deu marcha a ré. Estava difícil dirigir, até que ele
largou o cinzeiro.
A calma
E la está em Milão para passar o Natal e quer saber como eram as coisas
quando ela era criança.
Me conte, diz ela. Me conte como era quando eu era criança. Ela toma um
golinho de Strega, espera, olha bem para ele.
É uma garota esguia, bacana, atraente, uma sobrevivente dos pés à cabeça.
Isso foi há muito tempo. Vinte anos atrás, diz ele.
Você consegue se lembrar, diz ela. Vamos lá.
O que você quer ouvir?, pergunta ele. O que mais eu posso lhe contar? Eu
podia contar uma coisa que aconteceu quando você era bebê. Tem a ver com
você, diz ele. Mas só um pouco.
Me conte, diz ela. Mas primeiro prepare mais uma dose para nós, assim você
não vai precisar parar a história no meio.
Ele volta da cozinha com as bebidas, se acomoda em sua poltrona, começa.
Eles eram crianças quando se casaram, mas estavam loucamente
apaixonados, o rapaz de dezoito anos e a garota de dezessete. Não demorou
muito e tiveram uma lha.
O bebê nasceu no m de novembro durante uma onda de frio que acabou
coincidindo com o auge da temporada de caça às aves aquáticas. O rapaz
adorava caçar, entende? Isso tem a ver com a história.
O rapaz e a garota, marido e mulher, pai e mãe, moravam num
apartamento pequeno embaixo do consultório de um dentista. Toda noite
faziam faxina no consultório do dentista no andar de cima em troca do aluguel
e das contas de luz, gás e água. No verão, cabia a eles cuidar do gramado e das
ores. No inverno, o rapaz retirava a neve da calçada com a pá e espalhava sal
grosso. Está me acompanhando? Está formando uma ideia do quadro?
Estou sim, diz ela.
É bom, diz ele. Então um dia o dentista descobriu que os dois estavam
usando as folhas de papel timbrado do consultório para sua correspondência
pessoal. Mas isso é outra história.
Ele se levanta da cadeira e olha pela janela. Vê as telhas dos telhados e a neve
que cai sem parar sobre elas.
Conte a história, diz ela.
Os dois jovens estavam muito apaixonados. Além disso, tinham grandes
ambições. Viviam falando das coisas que iam fazer e dos lugares que iam
conhecer.
Agora o rapaz e a garota dormiam no quarto e o bebê dormia na sala.
Digamos que o bebê tinha uns três meses e apenas estava começando a dormir
a noite inteira sem acordar.
Naquela noite de sábado, depois de terminar seu trabalho no andar de cima,
o rapaz cou no consultório do dentista e telefonou para um velho amigo de
caçadas de seu pai.
Carl, disse ele quando o homem atendeu o telefone, acredite se quiser,
agora sou pai.
Meus parabéns, disse Carl. Como vai sua mulher?
Vai bem, Carl. Estamos todos bem.
Isso é bom, disse Carl. Fico contente em saber. Mas, se você está
telefonando porque quer ir caçar, vou lhe dizer uma coisa. Os gansos estão
voando para lá feito loucos. Acho que nunca vi tanto ganso assim . Peguei
cinco hoje. Vou voltar lá amanhã de manhã, portanto venha comigo se quiser.
Quero sim, disse o rapaz.
O rapaz desligou o telefone e foi para o andar de baixo contar à garota. Ela
cou olhando ele arrumar suas coisas. O casaco de caça, a bolsa de munição,
botas, meias, boné de caçador, ceroula comprida, a espingarda de repetição.
A que horas você vai voltar?, perguntou a garota.
Talvez lá pelo meio-dia, disse o rapaz. Mas pode ser que eu só volte às seis.
Seria tarde demais?
Não, está bem, disse ela. Eu e o bebê caremos bem. Pode ir e se divirta.
Quando você voltar, a gente troca a roupa do bebê e vai visitar a Sally.
O rapaz falou: Acho uma boa ideia.
Sally era irmã da garota. Ela era sensacional. Não sei se você já viu fotos
dela. O rapaz estava um pouco apaixonado pela Sally, assim como também
estava um pouco apaixonado por Betsy, outra irmã da garota. O rapaz dizia
para a garota: Se a gente não fosse casado, eu até podia car a m da Sally.
E que tal a Betsy?, perguntava a garota. Detesto admitir, mas na verdade
tenho a impressão de que ela é mais bonita do que eu e do que a Sally. E a
Betsy?
A Betsy também, costumava dizer o rapaz.
Depois do jantar, ele acendeu o aquecedor e ajudou a garota a dar banho no
bebê. O rapaz mais uma vez se encantou com o bebê, que tinha um pouco das
suas feições e um pouco das feições da garota. Pôs talco no corpinho. Pôs talco
entre os dedos das mãos e dos pés.
Ele esvaziou a banheira do bebê na pia e foi para o primeiro andar ver como
estava o céu. Estava nublado e fazia frio. A grama, o que restava dela, parecia
lona, dura e cinzenta sob a luz que vinha da rua.
A neve se amontoava junto à calçada. Um carro passou. Ele ouviu o barulho
de areia debaixo dos pneus. Ficou imaginando como ia ser no dia seguinte, os
gansos cortando o ar acima de sua cabeça, a espingarda pesando no ombro.
Então trancou a porta e desceu.
Na cama, eles tentaram ler. Mas os dois pegaram no sono, primeiro ela, que
deixou a revista afundar na colcha.
Foram os gritos do bebê que acordaram o rapaz.
A luz estava acesa lá fora e a garota estava de pé ao lado do berço,
embalando a criança nos braços. Ela pôs o bebê no berço, apagou a luz e
voltou para a cama.
Ele ouviu o bebê chorar. Dessa vez a garota cou onde estava. O bebê
chorou em espasmos e parou. O rapaz cou escutando, depois cochilou. Mas
os gritos do bebê acordaram o rapaz de novo. A luz da sala estava acesa. Ele
sentou na cama e acendeu a luz.
Não sei qual é o problema, disse a garota, andando de um lado para o outro
com o bebê nos braços. Já troquei a roupa dela, dei comida, mas ela continua
chorando. Estou tão cansada que tenho até medo de deixar ela cair.
Volte para a cama, disse o rapaz. Deixe que eu seguro ela um pouco.
Levantou-se e pegou o bebê, e a garota foi se deitar de novo.
É só car balançando ela um pouco nos braços, disse a garota lá do quarto.
Talvez ela durma outra vez.
O rapaz sentou no sofá e cou segurando o bebê. Balançou a criança no
colo até os olhos dela fecharem, enquanto os olhos dele também iam
fechando. Levantou-se com cuidado e pôs o bebê de volta no berço.
Eram quinze para as quatro da manhã, o que lhe dava ainda quarenta e
cinco minutos. Ele se arrastou até a cama e apagou. Porém, alguns minutos
depois o bebê recomeçou a chorar, e dessa vez os dois se levantaram.
O rapaz fez uma coisa terrível. Soltou um palavrão.
Pelo amor de Deus, o que há com você?, a garota disse a ele. Vai ver ela está
doente ou com alguma coisa. Talvez a gente não devesse ter dado banho nela.
O rapaz pegou o bebê. O bebê deu chutes no ar e sorriu.
Olhe só, disse o rapaz, estou achando que não há nada de errado com ela.
Como é que você sabe?, perguntou a garota. Vamos, me dê ela aqui. Eu sei
que preciso dar alguma coisa para ela, só não sei o que é.
A garota colocou o bebê no berço outra vez. O rapaz e a garota caram
olhando para o bebê, e o bebê começou a chorar.
A garota pegou o bebê. Neném, neném, disse a garota com lágrimas nos
olhos.
Deve ser alguma coisa na barriga, disse o rapaz.
A garota não respondeu. Continuou embalando a criança, sem prestar
atenção ao rapaz.
O rapaz esperou. Foi até a cozinha e pôs água no fogo para fazer um café.
Vestiu sua ceroula de lã por cima do calção e da camiseta, abotoou e depois
vestiu suas roupas.
O que você está fazendo?, perguntou a garota.
Estou indo caçar, respondeu o rapaz.
Acho que você não devia ir, disse ela. Não quero que você me deixe aqui
sozinha com ela desse jeito.
O Carl está contando comigo para caçar, disse o rapaz. A gente já
combinou.
Pouco me importa o que você e o Carl combinaram, disse a garota. E pouco
me importa o Carl também. Nem conheço o Carl.
Você já esteve com o Carl. Você conhece ele, disse o rapaz. Como pode
dizer que não conhece?
A questão não é essa, e você sabe muito bem, retrucou a garota.
Então qual é a questão?, perguntou o rapaz. A questão é que eu já tinha
combinado tudo.
A garota disse: Eu sou a sua mulher. Essa é a sua lha. Ela está doente ou
tem alguma coisa. Olhe só para ela. Por que ela está chorando desse jeito?
Eu sei que você é minha mulher, disse o rapaz.
A garota começou a chorar. Pôs o bebê de volta no berço. Mas o bebê
recomeçou a chorar. A garota enxugou os olhos na manga da camisola e
pegou o bebê.
O rapaz amarrou o cadarço das botas. Vestiu a camisa, o suéter, o casaco. Na
cozinha a chaleira apitou no fogão.
Você vai ter de escolher, disse a garota. Ou o Carl ou nós. Estou falando
sério.
O que você quer dizer?, perguntou o rapaz.
Você ouviu muito bem o que eu disse, falou a garota. Se você quer ter uma
família, vai ter que escolher.
Os dois caram se encarando. Então o rapaz pegou seu equipamento de
caça e foi para fora. Ligou o carro. Deu a volta em torno dele, raspando com
esforço o gelo depositado nas janelas.
Desligou o motor e cou um tempo sentado. Depois saiu e voltou para
dentro de casa.
A luz da sala estava acesa. A garota estava dormindo na cama. O bebê
dormia ao lado dela.
O rapaz tirou as botas. Depois se desfez de todo o resto. De meias e ceroula
comprida, sentou no sofá e cou lendo o jornal de domingo.
A garota e o bebê continuavam dormindo. Depois de algum tempo, o rapaz
foi para a cozinha e começou a fritar um pedaço de bacon.
A garota saiu de roupão e pôs os braços em volta do rapaz.
Ei, disse o rapaz.
Me desculpe, disse a garota.
Está tudo bem, disse o rapaz.
Eu não queria criar tanta confusão.
Foi culpa minha, disse ele.
Fique aí sentado, disse a garota. Que tal um waffle para acompanhar esse
bacon?
Acho ótimo, disse o rapaz.
Ela tirou o bacon da frigideira e preparou a massa do waffle. Ele cou
sentado à mesa, observando a garota se movimentar pela cozinha.
Ela pôs um prato na frente dele com o bacon e o waffle. Ele passou manteiga
e acrescentou melado. Mas, quando estava começando a cortar, o prato virou
em cima do seu colo.
Não acredito, disse ele, pulando da mesa.
Se você visse sua cara agora, disse a garota.
O rapaz baixou os olhos e se olhou, tudo derramado nas suas roupas de
baixo.
Eu estava morrendo de fome, disse ele, balançando a cabeça.
Você estava morrendo de fome mesmo, disse ela, rindo.
Ele tirou a ceroula de lã e jogou-a na porta do banheiro. Depois abriu os
braços e a garota foi ao encontro dele.
Não vamos brigar nunca mais, disse ela.
O rapaz disse: Não vamos.
Ele se levanta da cadeira e enche de novo os dois copos.
Pois é, diz ele. Fim da história. Reconheço que ela não é grande coisa.
Eu quei bem interessada, diz ela.
Ele encolhe os ombros e vai até a janela com seu drinque. Está escuro mas
ainda neva.
As coisas mudam, diz ele. Não sei como é que mudam. Mas mudam sem
que a gente perceba e sem a gente querer que mudem.
Sim, é verdade, só que... Mas ela não termina a frase que começou.
Ela muda de assunto. No re exo da janela, ele a vê examinando as unhas.
Depois ela ergue a cabeça. Em tom animado, pergunta se ele a nal não vai
mostrar a cidade para ela.
Ele diz: Ponha suas botas e vamos lá.
Mas ca parado junto à janela, recordando. Eles tinham rido. Tinham se
recostado um no outro e rido até as lágrimas, enquanto tudo o mais — o frio e
o lugar aonde ele estava indo naquele frio — cava lá fora, pelo menos por um
tempo.
Do que estamos falando quando falamos de
amor
A mulher de L. D., Maxine, disse para ele ir embora na noite em que ela
chegou do trabalho e deu com L. D. embriagado de novo e maltratando
Rae, a lha deles de quinze anos. L. D. e Rae estavam à mesa da cozinha,
discutindo. Maxine nem teve tempo de se desfazer da bolsa ou tirar o casaco.
Rae disse: “Conte para ele, mãe. Conte para ele aquilo de que a gente estava
falando”.
L. D. girou o copo na mão, mas não bebeu. Maxine o tava de modo ferino
e perturbador.
“Não meta o nariz em assuntos de que você não sabe nada”, disse L. D.
“Não posso levar a sério alguém que passa o dia inteiro lendo revistas de
astrologia.”
“Isso não tem nada a ver com astrologia”, disse Rae. “Não precisa me
insultar.”
Quanto a Rae, fazia várias semanas que ela não ia ao colégio. Falava que
ninguém podia obrigá-la a ir. Maxine dizia que aquilo era mais uma tragédia
numa longa série de tragédias banais.
“Por que vocês dois não calam a boca?”, disse Maxine. “Meu Deus, já estou
com dor de cabeça.”
“Conte para ele, mamãe”, disse Rae. “Conte para ele que está tudo dentro
da cabeça dele. Qualquer um que saiba qualquer coisa sobre o assunto vai
explicar para você que é assim!”
“E a diabetes?”, disse
L. D. “E a epilepsia? O cérebro pode controlar isso?”
Levantou o copo bem debaixo dos olhos de Maxine e terminou sua bebida.
“Diabetes também”, respondeu Rae. “Epilepsia. Tudo! O cérebro é o órgão
mais poderoso do corpo, para a sua informação.”
Ela pegou os cigarros do pai e acendeu um.
“E o câncer? Que tal o câncer?”, perguntou .L. D
Achou que agora tinha pegado a lha de jeito. Olhou para Maxine.
“Não sei como foi que a gente começou essa história”, disse L. . para
D
Maxine.
“O câncer”, disse Rae e balançou a cabeça diante da ingenuidade do pai. “O
câncer também. O câncer começa no cérebro.”
“Isso é loucura!”, disse L. . Bateu na mesa com a mão espalmada. O
D
cinzeiro chegou a pular. O copo dele tombou de lado e rolou para longe.
“Você está doida, Rae! Sabia?”
“Cale a boca!”, disse Maxine.
Desabotoou o casaco e pôs a bolsa em cima da bancada da pia. Olhou para
L. D. e disse: “ ., eu estou cheia. A Rae também. Assim como todo mundo
L. D
que conhece você. Andei pensando muito sobre isso. Quero que você vá
embora daqui. Nesta noite. Neste minuto. Agora. Suma daqui agora mesmo”.
L. D . não tinha a menor intenção de ir a parte alguma. Seu olhar passou de
Maxine para um vidro de picles que estava em cima da mesa desde a hora do
almoço. Pegou o vidro e jogou-o através da janela da cozinha.
Rae pulou da cadeira. “Meu Deus! Ele está doido!”
Ficou parada ao lado da mãe. Arquejava com inspirações curtas pela boca.
“Chame a polícia”, disse Maxine. “Ele é violento. Saia da cozinha antes que
ele machuque você. Chame a polícia”, disse Maxine.
Começaram a recuar para sair da cozinha.
“Estou indo embora”, disse . “Tudo bem, estou indo embora neste
L. D
minuto”, disse ele. “Para mim não tem coisa melhor. Vocês duas estão
malucas mesmo. Isto aqui é uma casa de doidos. Tem uma outra vida lá fora.
Acreditem, isto aqui não é nenhum piquenique, é uma casa de doidos.”
Podia sentir no rosto a aragem que vinha do buraco na janela.
“É para lá que eu estou indo”, disse ele. “Lá para fora” falou e apontou com
a mão.
“Ótimo”, disse Maxine.
“Tudo bem, estou indo embora”, disse .
L. D
Bateu a mão com força na mesa. Chutou sua cadeira para trás. Levantou-se.
“Vocês não vão me ver nunca mais”, disse .
L. D
E la está em Milão para passar o Natal e quer saber como eram as coisas
quando ela era criança. É sempre isso que acontece nas raras ocasiões em
que ele a encontra.
Me conte, diz ela. Me conte como era naquela época. Ela toma um golinho
de Strega, espera, olha bem para ele.
É uma garota esguia, bacana, atraente, uma sobrevivente dos pés à cabeça.
Isso foi há muito tempo. Vinte anos atrás, diz ele. Estão no apartamento
dele, na via Fabroni, perto dos jardins Cascina.
Você consegue se lembrar, diz ela. Vamos lá, me conte.
O que você quer ouvir?, pergunta ele. O que eu posso lhe contar? Eu podia
contar uma coisa que aconteceu quando você era bebê. Tem a ver com você,
diz ele, mas só um pouco.
Me conte, diz ela. Mas primeiro traga mais uma bebida para a gente, assim
você não vai precisar interromper a história no meio.
Ele volta da cozinha com as bebidas, se acomoda em sua poltrona, começa.
Eles eram crianças quando se casaram, mas estavam loucamente
apaixonados, o rapaz de dezoito anos e a namorada de dezessete. Não
demorou muito e tiveram uma lha.
O bebê nasceu no m de novembro durante uma onda rigorosa de frio que
acabou coincidindo com o auge da temporada de caça às aves aquáticas
naquela região do país. O rapaz adorava caçar, entende, isso tem a ver com a
história.
O rapaz e a garota, agora marido e mulher, pai e mãe, moravam num
apartamento de três cômodos embaixo do consultório de um dentista. Toda
noite faziam faxina no consultório no andar de cima em troca do seu aluguel e
das contas de luz, gás e água. No verão, cabia a eles cuidar do gramado e das
ores e no inverno o rapaz retirava a neve da calçada com a pá e espalhava sal
grosso pelo calçamento. Os dois jovens, como eu dizia, estavam muito
apaixonados. Além disso, tinham grandes ambições e eram uns tremendos
sonhadores. Viviam falando das coisas que iam fazer e dos lugares que iam
conhecer.
Ele se levanta da cadeira e olha pela janela por um instante, por cima da
cumeeira dos telhados, para a neve que cai sem parar sob a luz do m de
tarde.
Conte a história, diz ela.
O rapaz e a garota dormiam no quarto e o bebê dormia num berço que
cava na sala. Veja bem, o bebê tinha umas três semanas nessa época e apenas
estava começando a dormir a noite inteira sem acordar.
Num sábado à noite, depois de terminar seu trabalho no andar de cima, o
rapaz entrou no consultório particular do dentista, sentou, pôs os pés em cima
da escrivaninha e telefonou para Carl Sutherland, um velho amigo de seu pai,
de pescarias e caçadas.
Carl, disse ele quando o homem atendeu o telefone. Agora sou pai. A gente
teve um bebê, uma menina.
Meus parabéns, rapaz, disse Carl. Como vai sua mulher?
Vai bem, Carl. O bebê também, disse o rapaz. Estamos todos bem.
Isso é bom, disse Carl. Fico contente em saber. Bom, então mande meus
cumprimentos a sua mulher. Se você está telefonando porque quer ir caçar,
vou lhe dizer uma coisa. Os gansos estão voando para lá feito loucos. Acho
que nunca vi tanto ganso assim na vida, e estou metido nisso há anos. Só hoje
matei cinco. Dois de manhã e três de tarde. Vou voltar lá amanhã de manhã e
se você quiser pode ir comigo.
Quero sim, disse o rapaz. Foi por isso que liguei.
Então apareça aqui às cinco e meia em ponto e a gente vai, disse Carl. Traga
bastante munição. A gente vai dar muito tiro mesmo. Vejo você amanhã de
manhã.
O rapaz gostava de Carl Sutherland. Tinha sido amigo do pai dele, que já
havia morrido. Depois da morte do pai, talvez na tentativa de preencher uma
perda que os dois sentiam, o rapaz e Sutherland começaram a sair juntos para
caçar. Sutherland era um homem corpulento que estava cando careca,
morava sozinho e não era de jogar conversa fora. Quando estavam juntos, às
vezes o rapaz se sentia desconfortável e se perguntava se não tinha falado
alguma coisa errada, porque não estava habituado a car na companhia de
pessoas que se mantinham caladas por um longo tempo. Mas, quando falava, o
velho costumava ser bastante taxativo, e o rapaz muitas vezes não concordava
com as opiniões dele. No entanto o homem tinha uma rudeza e uma astúcia
de homem do campo de que o rapaz gostava e que até admirava.
O rapaz desligou o telefone e foi para o andar de baixo contar à garota. Ela
cou olhando ele arrumar suas coisas. O casaco de caça, a bolsa de munição,
botas, meias, boné de caçador, ceroula comprida, a espingarda de repetição.
A que horas você vai voltar?, perguntou a garota.
Talvez lá pelo meio-dia, disse ele. Mas pode ser que eu não chegue antes das
cinco ou seis horas. Acha muito tarde?
Não, está bem, disse ela. A gente se vira. Pode ir e se divirta. Você merece.
Quem sabe amanhã à noite a gente não arruma a Catherine e vai fazer uma
visita à Sally?
Claro, parece uma boa ideia, disse ele. Vamos deixar combinado então.
Sally era irmã da garota. Era dez anos mais velha. O rapaz estava um pouco
apaixonado por ela, assim como também estava um pouco apaixonado por
Betsy, outra irmã da garota. Uma vez ele disse à garota: Se a gente não fosse
casado, eu podia até car a m da Sally.
E que tal a Betsy?, perguntou a garota. Detesto admitir, mas na verdade
tenho a impressão de que ela é mais bonita do que eu e do que a Sally. O que
você acha dela?
A Betsy também, respondeu o rapaz, e riu. Mas não do mesmo jeito que eu
podia car a m da Sally. Tem alguma coisa na Sally que é capaz de seduzir a
gente. Não, acho que, se eu fosse obrigado a escolher, ia preferir a Sally à
Betsy.
Mas quem é que você ama de verdade?, perguntou a garota. Quem é que
você ama mais no mundo todo? Quem é a sua mulher?
Você é a minha mulher, respondeu o rapaz.
E nós dois vamos nos amar sempre? perguntou a garota, que estava
adorando aquela conversa, o rapaz podia ver perfeitamente isso.
Sempre, respondeu ele. E vamos car sempre juntos. Somos que nem os
gansos do Canadá, disse ele, pegando a primeira comparação que lhe veio à
cabeça, pois os gansos andavam o tempo todo no seu pensamento naqueles
dias. Os gansos só se casam uma vez na vida. Escolhem um par ainda bem
jovens e cam juntos para sempre. Se um dos dois morre, por exemplo, o
outro nunca se casa de novo. Vai viver sozinho em algum canto ou até
continua vivendo com o seu bando, mas ca solteiro e sozinho no meio dos
outros gansos.
Isso é triste, disse a garota. É mais triste para o ganso viver desse jeito, acho,
sozinho e ao mesmo tempo junto com todos os outros gansos, do que ir viver
longe e sozinho em algum canto.
É triste, disse o rapaz. Mas a natureza é assim.
Você alguma vez já matou um desses gansos casados?, perguntou ela. Você
sabe o que eu quero dizer.
O rapaz fez que sim com a cabeça. Disse: Duas ou três vezes atirei num
ganso e depois de um ou dois minutos vi outro ganso abandonar o resto do
bando e começar a voar em círculos e gritar, chamando o ganso que estava
caído na terra.
E você atirou nele também? perguntou, preocupada.
Quando pude, atirei, respondeu. Às vezes eu errava.
E isso não deixava você incomodado?, perguntou ela.
Nunca, disse ele. A gente não consegue pensar nisso na hora que está
caçando. Olhe, eu adoro tudo o que diz respeito aos gansos. Adoro car lá só
olhando para eles, mesmo quando não estou caçando. Mas na vida há todo
tipo de contradição. A gente não pode car pensando nas contradições.
Depois do jantar ele ligou o aquecedor e ajudou a garota a dar banho no
bebê. O rapaz mais uma vez se encantou com o bebê, que tinha um pouco das
suas feições, os olhos e a boca, e um pouco das feições da garota, o queixo e o
nariz. Pôs talco no corpinho e também entre os dedos dos pés e das mãos. Viu
a garota pôr a fralda no bebê e vestir o pijaminha.
Ele esvaziou a banheira do bebê no boxe do chuveiro e depois foi para o
primeiro andar. Lá fora estava frio e nublado. Sua respiração formava um
vapor no ar. A grama, o que restava dela, parecia lona, estava dura e cinzenta
sob a luz que vinha da rua. A neve se amontoava junto à calçada. Um carro
passou e ele ouviu a areia sendo triturada debaixo dos pneus. Ficou
imaginando como ia ser no dia seguinte, os gansos se agitando acima de sua
cabeça, a espingarda pesando no ombro.
Então trancou a porta e desceu.
Na cama eles tentaram ler, mas os dois pegaram no sono, primeiro ela, que
deixou a revista afundar na colcha. Os olhos do rapaz se fecharam, mas ele
levantou, veri cou o alarme e apagou a luz do abajur.
Acordou com os gritos do bebê. A luz estava acesa na sala. Viu a garota de
pé ao lado do berço, embalando a criança nos braços. Um minuto depois, ela
pôs o bebê no berço, apagou a luz e voltou para a cama.
Eram duas da manhã e o rapaz pegou no sono outra vez.
Os gritos do bebê o acordaram de novo. Dessa vez a garota continuou a
dormir. O bebê chorou em espasmos durante alguns minutos e depois parou.
O rapaz cou escutando e aí começou a cochilar.
Abriu os olhos. A luz da sala estava acesa. Ele sentou na cama e acendeu a
luz.
Não sei qual é o problema, disse a garota, andando de um lado para o outro
com o bebê nos braços. Já troquei a roupa e dei um pouco mais de comida
para ela. Mas ela continua chorando. Ela não quer parar de chorar de jeito
nenhum. Estou tão cansada que tenho até medo de deixar ela cair.
Volte para a cama, disse o rapaz. Deixe que eu seguro ela um pouco.
Levantou-se e pegou o bebê, enquanto a garota foi se deitar.
É só car balançando ela um pouco nos braços, disse a garota lá do quarto.
Talvez ela durma outra vez.
O rapaz sentou no sofá e cou segurando o bebê. Balançou a criança no
colo até os olhos dela fecharem. Os olhos dele também estavam quase
fechando. Levantou-se com cuidado e pôs o bebê de volta no berço.
Eram quinze para as quatro da manhã, e ele ainda tinha quarenta e cinco
minutos para dormir. Ele se arrastou até a cama.
Porém, alguns minutos depois o bebê recomeçou a chorar. Dessa vez os dois
se levantaram e o rapaz soltou um palavrão.
Pelo amor de Deus, o que há com você?, a garota disse a ele. Vai ver ela está
doente ou com alguma coisa. Talvez a gente não devesse ter dado banho nela.
O rapaz pegou o bebê. O bebê deu chutes no ar e cou quieto. Olhe só,
disse o rapaz. Estou achando que não há nada de errado com ela.
Como é que você sabe?, perguntou a garota. Vamos, me dê ela aqui. Eu sei
que preciso dar alguma coisa para ela, só que não sei o que eu devo dar.
Depois que se passaram alguns minutos e o bebê não voltou a chorar, a
garota colocou o bebê no berço outra vez. O rapaz e a garota caram olhando
para o bebê e depois olharam um para o outro quando o bebê abriu os olhos e
começou a chorar.
A garota pegou o bebê. Neném, neném, disse ela com lágrimas nos olhos.
Deve ser alguma coisa na barriga, disse o rapaz.
A garota não respondeu. Continuou a embalar a criança nos braços, sem
prestar atenção ao rapaz.
O rapaz esperou mais um pouco, depois foi até a cozinha e pôs água no fogo
para fazer um café. Vestiu sua ceroula de lã e abotoou. Depois vestiu suas
roupas.
O que você está fazendo?, perguntou a garota a ele.
Estou indo caçar, disse ele.
Acho que você não devia ir, disse ela. Talvez pudesse deixar para ir mais
tarde, quando o bebê estiver bem. Não acho que você devia ir caçar de manhã.
Não quero que você me deixe aqui sozinha com o bebê chorando desse jeito.
O Carl está contando comigo para caçar, disse o rapaz. A gente já
combinou.
Não dou a mínima para o que você e o Carl combinaram, disse ela. E não
dou a mínima para o Carl também. Nem conheço esse sujeito. Não quero que
você vá e pronto. Acho que você não devia nem pensar em ir nestas
circunstâncias.
Você já esteve com o Carl, você conhece ele, disse o rapaz. Como pode dizer
que não conhece?
A questão não é essa, e você sabe muito bem, retrucou a garota. A questão é
que eu não quero ser largada aqui sozinha com um bebê doente.
Espere aí, disse o rapaz. Você não está entendendo.
Não, você é que não está entendendo, disse ela. Eu sou a sua mulher. Essa é
a sua lha. Ela está doente ou tem alguma coisa. Olhe só para ela. Por que ela
está chorando desse jeito? Você não pode nos deixar para ir caçar.
Não que histérica, disse ele.
O que eu estou dizendo é que você pode ir caçar a hora que bem quiser,
disse ela. Só que tem alguma coisa errada com este bebê, e você quer nos
deixar para ir caçar.
Ela começou a chorar. Pôs o bebê de volta no berço, mas o bebê recomeçou
a chorar. A garota enxugou os olhos às pressas na manga da camisola e pegou
o bebê outra vez.
O rapaz amarrou o cadarço das botas devagar, vestiu a camisa, o suéter e o
casaco. Na cozinha, a chaleira apitou no fogão.
Você vai ter de escolher, disse a garota. Ou o Carl ou nós. Estou falando
sério, você vai ter de escolher.
O que você quer dizer?, perguntou o rapaz.
Você ouviu muito bem o que eu disse, respondeu a garota. Se você quer ter
uma família, vai ter que escolher.
Os dois caram se encarando. Então o rapaz pegou seu equipamento de
caça e foi para o andar de cima. Ligou o carro, deu a volta em torno dele,
raspando com esforço o gelo depositado nas janelas.
A temperatura tinha caído durante a noite, mas o céu havia limpado e as
estrelas estavam brilhando. Elas reluziam no céu acima de sua cabeça.
Enquanto dirigia, o rapaz olhava as estrelas e se comoveu ao pensar na
distância delas.
A luz da varanda da casa de Carl estava acesa e sua caminhonete já
estacionada na entrada de carro, com o motor ligado. Carl saiu da
caminhonete quando o rapaz estacionou junto ao meio- o. O rapaz tinha
tomado uma decisão.
Você podia parar o carro aqui dentro, disse Carl enquanto o rapaz vinha
andando pela calçada. Já estou pronto, deixe só eu apagar as luzes de casa.
Estou louco para ir caçar, de verdade mesmo, prosseguiu ele. Achei que você
tinha dormido além da hora, por isso acabei de telefonar para a sua casa. Sua
mulher disse que você tinha saído. Estou louco para ir caçar.
Está certo, disse o rapaz, tentando escolher bem as palavras. Passou o peso
do corpo para uma perna e levantou a gola. En ou as mãos nos bolsos do
casaco. Ela já estava acordada, Carl. Fazia um tempo que nós dois já estávamos
acordados. Acho que tem alguma coisa errada com o bebê. Sei lá. O bebê não
para de chorar, entende? A questão é que eu acho que eu não posso ir desta
vez, Carl.
Mas bastava pegar o telefone e me ligar, rapaz, disse Carl. Está tudo bem.
Você sabe que não precisava vir até aqui só para me dizer isso. Que diabo, esse
negócio de caçar a gente pode fazer ou não fazer e pronto. Não é tão
importante. Quer tomar uma xícara de café?
Acho melhor eu voltar logo para casa, disse o rapaz.
Bem, então acho que eu vou em frente, disse Carl. Olhou para o rapaz.
O rapaz continuou parado diante da varanda sem falar nada.
Está tudo resolvido, disse Carl. Eu não estava mesmo contando com muita
coisa nesta manhã. Na certa você não vai perder grande coisa.
O rapaz fez que sim com a cabeça. A gente se fala depois, Carl, disse ele.
Até logo, disse Carl. Ei, não deixe ninguém atrapalhar a sua vida, disse Carl.
Você é um rapaz de muita sorte, falando sério.
O rapaz ligou o carro e esperou. Ficou vendo Carl percorrer a casa e apagar
todas as luzes. Então o rapaz engrenou a primeira e afastou o carro do meio-
o.
A luz da sala estava acesa, mas a garota estava dormindo na cama e o bebê
dormia ao lado dela.
O rapaz tirou as botas, a calça e a camisa, sem fazer barulho. De meias e
ceroula de lã, sentou no sofá e cou lendo o jornal da manhã.
Em pouco tempo começou a clarear lá fora. A garota e o bebê continuavam
dormindo. Depois de algum tempo, o rapaz foi para a cozinha e começou a
fritar um pedaço de bacon.
Alguns minutos depois a garota saiu de roupão e pôs os braços em volta
dele sem dizer nada.
Ei, cuidado para o seu roupão não pegar fogo, disse o rapaz. Ela estava
debruçada sobre ele, mas encostando no fogão.
Desculpe pelo que aconteceu de noite, disse ela. Não sei o que deu em mim.
Não sei por que falei aquelas coisas.
Está tudo bem, disse ele. Vamos, me deixe pegar esse bacon.
Eu não queria criar tanta confusão, disse ela. Foi horrível.
Foi culpa minha, disse ele. E a Catherine, como está?
Agora ela está bem. Não sei o que houve com ela. Depois que você saiu
troquei a roupa dela de novo e aí ela cou bem. Ficou bem quietinha e logo
começou a dormir. Não sei o que foi. Não que zangado com a gente.
O rapaz riu. Não estou zangado com vocês. Não seja boba, disse ele. Vamos,
me deixe cuidar dessa frigideira.
Não, que aí sentado, disse a garota. Eu é que vou preparar o café da
manhã. Que tal um waffle para acompanhar esse bacon?
Acho ótimo, disse ele. Estou faminto.
Ela tirou o bacon da frigideira e preparou a massa do waffle. Ele cou
sentado à mesa, agora relaxado, observando a garota se movimentar pela
cozinha.
Ela foi fechar a porta do quarto deles. Na sala, pôs para tocar um disco de
que os dois gostavam.
A gente não vai querer que aquela menina acorde outra vez, não é?, disse a
garota.
Não tenha a menor dúvida, respondeu o rapaz e riu.
Ela pôs um prato na frente dele com o bacon, um ovo frito e o waffle. Pôs
outro prato na mesa para ela. Pronto, disse.
Parece ótimo, disse ele. Passou manteiga e derramou melado sobre o waffle.
Mas, quando estava começando a cortar o waffle, o prato virou em cima do
seu colo.
Não acredito, disse ele, pulando da mesa.
A garota olhou para ele e depois para a expressão do seu rosto. E começou a
rir.
Se você visse sua cara no espelho, disse ela. E não parava de rir.
Ele olhou para o melado que cobria a parte da frente das suas ceroulas de lã,
para os pedaços do waffle, do bacon e do ovo misturados com o melado. E
começou a rir também.
Eu estava morrendo de fome, disse ele, balançando a cabeça.
Você estava morrendo de fome mesmo, disse ela, rindo.
Ele tirou a ceroula de lã e jogou-a na porta do banheiro. Depois abriu os
braços e a garota foi ao encontro dele.
Não vamos brigar nunca mais, disse ela. Não vale a pena, não é?
Isso mesmo, disse ele.
Não vamos brigar nunca mais, disse ela.
O rapaz falou: Não vamos. E lhe deu um beijo.
Ele se levanta da cadeira e enche de novo os dois copos.
Pois é, diz ele. Fim da história. Reconheço que ela não é lá essas coisas.
Eu quei bem interessada, diz ela. É muito interessante, se quer mesmo
saber. Mas o que foi que aconteceu? diz ela. Mais tarde, quero dizer.
Ele encolhe os ombros e vai até a janela com seu drinque. Está escuro mas
ainda neva.
As coisas mudam, diz ele. Não sei como é que mudam. Mas mudam sem
que a gente perceba, e sem a gente querer que mudem.
Sim, é verdade, só que... Mas ela não termina a frase que começou.
Então ela muda de assunto. No re exo da janela, ele a vê examinando as
unhas. Depois ela ergue a cabeça. Em tom animado, pergunta se ele a nal não
vai mostrar a cidade para ela.
Ele diz: Ponha suas botas e vamos lá.
Mas ca parado junto à janela, recordando aquela vida. Eles tinham rido.
Tinham se recostado um no outro e rido até as lágrimas, enquanto tudo o
mais — o frio e o lugar aonde ele estava indo naquele frio — cava lá fora,
pelo menos por um tempo.
A mentira
O sr. Harrold saiu do café e viu que tinha parado de nevar. O céu estava
limpando por trás dos morros do outro lado do rio. Ele se deteve ao
lado do carro por um momento e se espreguiçou, mantendo a porta do carro
aberta, enquanto inspirava um bom bocado de ar frio. Podia jurar que quase
sentia o gosto daquele ar. Acomodou-se atrás do volante e voltou à estrada
principal. Estava só a uma hora de carro da pousada. À tarde, ele tinha
conseguido pescar por algumas horas. E ainda teria o dia seguinte. O dia
seguinte inteiro.
No entroncamento para Parke, pegou a ponte sobre o rio e fez a curva para
pegar a estrada que ia dar na pousada. Pinheiros com os galhos pesados de
neve se erguiam dos dois lados da estrada. Nuvens encobriam os morros
brancos, de modo que era difícil saber onde os morros terminavam e o céu
começava. Fazia lembrar aquelas paisagens chinesas que eles tinham visto na
época do museu em Portland. Ele gostava das paisagens. Tinha dito isso a
Frances, mas ela não respondeu nada. Passou uns poucos minutos com ele
naquele setor da galeria e depois foi em frente, para a exposição seguinte.
Já era quase meio-dia quando ele chegou à pousada. Viu os chalés na subida
do morro e depois, quando a estrada se nivelou, viu a pousada. Reduziu a
velocidade, saiu da pista, entrou no estacionamento esburacado, poeirento e
coberto de areia, e parou o carro perto da porta da frente. Baixou a janela e
descansou um instante, movimentou os ombros para trás e para a frente no
banco. Abriu e fechou os olhos. Um neon que piscava dizia Castlerock e
abaixo, num letreiro elegante, em letras manuscritas, Chalés Deluxe —
ESCRITÓRIO . Na última vez que tinha estado ali — Frances viera com ele —,
cou por quatro dias e pescou cinco peixes muito bonitos no rio. Isso tinha
acontecido três anos antes. Eles costumavam ir lá sempre, duas ou três vezes
por ano. Abriu a porta e saiu do carro devagar, sentindo uma rigidez no
pescoço e nas costas. Andou pesado pela neve congelada e en ou as mãos nos
bolsos do casaco quando começou a subir a escadinha de tábuas da entrada.
No alto, raspou a neve e o saibro dos sapatos e cumprimentou com a cabeça
um casal de jovens que vinha saindo. Observou a maneira como o rapaz
segurava o braço da garota na hora em que desceram a escadinha.
Dentro do chalé, havia um cheiro de fumaça de lenha e de presunto frito.
Ouviu o retinir de pratos. Olhou a grande truta empalhada em cima da lareira,
na sala de jantar, e sentiu-se feliz por estar de volta. Perto da caixa
registradora, onde ele estava, havia uma estante com bolsas de couro, carteiras
e pares de mocassim arrumados e expostos por trás de um vidro. Espalhadas
por cima da estante, havia peças de artesanato indígena, pulseiras, colares de
contas e pedaços de madeira petri cada. Ele seguiu até o balcão em forma de
ferradura e ocupou um banco. Dois homens sentados alguns bancos à frente
pararam de conversar e viraram a cabeça para dar uma olhada nele. Eram
caçadores, e seus chapéus e casacos vermelhos estavam jogados sobre uma
mesa vazia atrás deles. O sr. Harrold cou esperando, enquanto puxava os
próprios dedos.
“Há quanto tempo o senhor está aqui?”, perguntou a garota, franzindo as
sobrancelhas. Ela veio da cozinha e se aproximou dele sem fazer barulho.
Colocou um copo de água a sua frente.
“Há pouco tempo”, respondeu o sr. Harrold.
“Devia ter tocado a campainha”, disse ela. Seu aparelho rebrilhava quando
ela abria e fechava a boca.
“Eu reservei um chalé”, disse ele. “Mandei um cartão para vocês e z uma
reserva na semana passada.”
“Vou chamar a senhora Maye”, respondeu a garota. “Ela está cozinhando. É
ela quem cuida dos chalés. Não me falou nada sobre isso. A gente não
costuma abrir os chalés no inverno, sabe?”
“Escrevi um cartão para vocês”, disse ele. “Veri que com a senhora Maye.
Pergunte a ela.” Os dois homens se viraram outra vez nos bancos a m de
olhar para ele.
“Vou falar com a senhora Maye”, disse a garota.
Ruborizado, ele fechou uma mão na outra sobre o balcão à frente. Uma
grande reprodução de uma pintura de Frederic Remington pendia na parede,
no fundo da sala. Ele cou olhando o búfalo assustado, cambaleante, e os
índios com os arcos a postos, apoiados nos ombros.
“Senhor Harrold!”, exclamou a velha, capengando na sua direção. Era uma
mulher pequena, grisalha, de peitos grandes e pescoço gordo. As tiras do seu
sutiã apareciam por trás do uniforme branco. Ela desamarrou o avental e
estendeu a mão para ele.
“Estou muito contente em ver a senhora”, disse ele ao se levantar do banco.
“Mal reconheci o senhor”, respondeu a velha. “Não sei o que é que dá nessa
menina às vezes... a Edith... ela é minha neta. Minha lha e o marido dela é
que estão cuidando da pousada agora.” Tirou os óculos e começou a esfregar
o vapor que embaçava as lentes.
Ele baixou os olhos para o balcão lustroso. Deslizou os dedos sobre a
madeira cheia de veios.
“Onde está a senhorita?”, perguntou a velha.
“Ela não está se sentindo muito bem esta semana”, respondeu o sr. Harrold.
Ia começar a dizer mais alguma coisa, mas não havia nada a dizer.
“Lamento ouvir isso! Arrumei um chalezinho bem bonito para os dois
carem”, disse a sra. Maye. Tirou o avental e pôs atrás da caixa registradora.
“Edith! Vou levar o senhor Harrold ao seu chalé! Vou ter que pegar o meu
casaco, senhor Harrold.” A garota não respondeu. Mas veio até a porta da
cozinha com um bule de café na mão e olhou para os dois.
Lá fora o sol tinha saído e a luminosidade feriu os olhos dele. Segurou-se ao
corrimão e desceu a escada devagar, seguindo a sra. Maye, que mancava.
“O sol está forte, não é?”, disse ela, enquanto se movia com cuidado sobre a
neve amontoada. Ele achou que seria bom se ela usasse uma bengala. “É a
primeira vez que o sol aparece em uma semana”, disse ela. Acenou para
algumas pessoas num carro.
Os dois passaram por uma bomba de gasolina bloqueada e coberta de neve,
e por um pequeno galpão com um letreiro de BORRACHEIRO pendurado acima
da porta. Através das janelas quebradas, ele viu os montes de sacos de
aniagem, os pneus velhos e os barris lá dentro. O cômodo era úmido e parecia
frio. A neve tinha se in ltrado lá dentro e borrifava o peitoril em volta do vidro
quebrado.
“Foram crianças que zeram isso”, disse a sra. Maye, parando um minuto e
erguendo a mão até o vidro quebrado. “Nunca perdem a chance de fazer uma
gracinha com a gente. Um bando delas vive correndo feito doidas e vem lá do
alojamento dos operários da construção.” Balançou a cabeça. “Pobre
diabinhos. Também, é uma vida de dar pena a dessas crianças, sempre
mudando de casa desse jeito. Seus pais estão trabalhando na construção
daquela barragem.” Ela destrancou a porta do chalé e empurrou. “Acendi um
pouco a lareira hoje de manhã para que já casse quentinha para vocês”, disse
ela.
“Fico muito agradecido à senhora”, disse ele.
No quarto da frente, separado da cozinha por uma pequena divisória de
compensado, havia uma grande cama de casal coberta por uma colcha lisa,
uma cômoda e uma escrivaninha. Havia também uma pia, um fogão a lenha,
uma caixa de lenha, uma geladeira antiga, uma mesa coberta por uma toalha
de mesa impermeável, além de duas cadeiras. Uma porta dava para o
banheiro. Ele viu uma varandinha lateral, onde poderia pendurar suas roupas.
“Parece ótimo”, disse ele.
“Tentei dar um jeito para car o melhor possível”, disse ela. “Precisa de
alguma coisa agora, senhor Harrold?”
“Não, agora, não, obrigado”, respondeu.
“Então vou deixar o senhor descansar. Na certa o senhor está cansado,
depois de vir dirigindo até aqui”, disse ela.
“Vou pegar as minhas coisas”, disse o sr. Harrold, enquanto a seguia. Fechou
a porta e os dois caram parados na varanda, olhando para baixo, para a
encosta do morro.
“É uma pena que a sua mulher não tenha podido vir”, disse a velha.
Ele não respondeu.
Onde estavam, cavam quase no mesmo nível de uma rocha enorme, que
ressaltava da encosta, para além da estrada. Algumas pessoas diziam que
aquela rocha parecia um castelo petri cado. “Está bom para pescaria?”,
perguntou ele.
“Tem gente pegando uns peixes, mas a maioria está caçando”, respondeu
ela. “É a temporada dos cervos, sabe.”
Ele levou o carro até o mais próximo possível do chalé e começou a
descarregar. A última coisa que tirou do carro foi uma garrafa de meio litro de
uísque escocês, que estava no porta-luvas. Colocou a garrafa sobre a mesa.
Mais tarde, quando foi arrumar as caixas de anzóis, as chumbadas e as iscas de
borracha vermelhas e brancas que imitavam insetos, deixou a garrafa no
escorredor de pratos. Sentado à mesa, fumando um cigarro com sua caixa de
equipamentos aberta e com tudo arrumado em seu lugar, as iscas arti ciais e
os pesos de chumbo espalhados, veri cando entre as mãos a resistência das
linhas e preparando os apetrechos para a pescaria daquela tarde, ele se sentiu
feliz por ter vindo, a nal. Ainda teria algumas horas para pescar naquela
mesma tarde. E além disso teria também o dia seguinte. Já havia resolvido
poupar um pouco da garrafa para quando voltasse da pescaria à tarde, e o
resto deixaria para o dia seguinte.
Enquanto estava sentado à mesa preparando o equipamento, pensou ter
ouvido o barulho de alguma coisa cavando na varanda. Levantou-se e abriu a
porta. Mas não havia nada. Só os morros brancos e os pinheiros com ar de
mortos sob o céu encoberto e, bem mais abaixo, umas poucas casas e uns
carros estacionados ao lado da rodovia. De repente, sentiu-se muito cansado e
achou melhor ir se deitar na cama por alguns minutos. Não queria dormir. Só
deitar e descansar, depois ia se levantar, se vestir, pegar suas coisas e caminhar
rio abaixo. Tirou tudo da mesa, despiu-se e depois se en ou debaixo dos
lençóis frios. Ficou deitado de lado por um tempo, de olhos fechados, os
joelhos encolhidos para se aquecer, depois virou-se de costas e remexeu os
dedos dos pés contra o lençol. Gostaria que Frances estivesse ali. Gostaria de
ter alguém para conversar.
Abriu os olhos. O quarto estava escuro. Da estufa, vinham alguns estalidos e
havia um brilho avermelhado na parede em frente à estufa. Deitado na cama,
olhava para a janela, incapaz de acreditar que já estava escuro lá fora. Fechou
os olhos de novo e depois abriu. Só queria descansar um pouco. Não pretendia
pegar no sono. Sentou-se pesadamente na lateral da cama. Pegou a camisa e
esticou a mão para alcançar a calça. Foi ao banheiro e jogou água no rosto.
“Droga!”, exclamou, ao fazer barulho remexendo os objetos no armário da
cozinha, pegando algumas latas e pondo-as de volta no lugar. Preparou um
bule de café e bebeu duas xícaras antes de resolver que ia descer à lanchonete
ou a algum outro lugar para comer alguma coisa. Calçou chinelos de lã, vestiu
um casaco e cou procurando por todo canto até achar sua lanterna. Então
saiu.
O ar frio castigava suas bochechas e comprimia suas narinas. Mas o ar lhe
dava uma sensação boa. Limpava a mente. As luzes da pousada lhe indicavam
o caminho, e ele estava atento. Na lanchonete, cumprimentou a garota, Edith,
com um aceno de cabeça e sentou-se num banco próximo à ponta do balcão.
Podia ouvir um rádio ligado na cozinha. A garota não fez o menor esforço
para atendê-lo.
“Vocês já fecharam?”, perguntou o sr. Harrold.
“Mais ou menos. Estou limpando tudo para amanhã de manhã”, respondeu
a garota.
“Então é muito tarde para eu comer alguma coisa”, disse ele.
“Acho que posso preparar alguma coisa para o senhor”, disse ela. Peguei um
cardápio.
“A senhora Maye está aqui, Edith?”
“Ela já subiu para o seu quarto. O senhor precisava dela para alguma coisa?”
“Preciso de mais lenha. Para ter alguma de manhã.”
“A lenha ca nos fundos da pousada”, respondeu ela. “Logo atrás da
cozinha.”
Ele apontou para uma coisa simples no cardápio — sanduíche de presunto
com salada de batata. “Quero isto aqui”, disse.
Enquanto esperava, começou a mover o saleiro e o pimenteiro sobre a
mesa, fazendo um pequeno círculo à sua frente. Depois que ela trouxe o
prato, cou perto dele, abastecendo açucareiros e porta-guardanapos, e
erguendo os olhos para ele de vez em quando. Pouco depois, enquanto ele
ainda comia, a garota se aproximou com um pano úmido e começou a
esfregar a mesa dele.
Ele deixou algum dinheiro, bem mais do que a conta, e saiu por uma porta
lateral da pousada. Deu a volta pelos fundos, onde pegou uma braçada de
lenha. Em seguida, muito devagar, subiu o morro na direção do chalé. Olhou
para trás uma vez e viu a garota olhando para ele da janela da cozinha.
Quando chegou à porta de seu chalé e largou a lenha, estava com ódio da
garota.
Ficou muito tempo deitado na cama e leu edições antigas da revista Life que
achou na varanda. Quando o calor do fogo nalmente o deixou sonolento,
levantou-se e ajeitou a cama, depois arrumou suas coisas para a manhã
seguinte. Conferiu mais uma vez o monte de apetrechos para ver se estava
tudo certo. Gostava das coisas em ordem e não queria acordar na manhã
seguinte e ainda ter que procurar alguma coisa. Pegou a garrafa de uísque e
levantou-a contra a luz. Em seguida serviu um pouco numa xícara. Levou a
xícara até a cama e colocou-a na mesinha de cabeceira. Apagou a luz e cou
olhando pela janela durante um minuto antes de ir para a cama.
***
Levantou-se tão cedo que ainda estava quase escuro no chalé. O fogo tinha
virado carvão durante a noite. Podia ver sua respiração em forma de vapor
dentro do chalé. Ajeitou a grelha da estufa e empurrou mais um pouco de
lenha. Nem conseguia lembrar a última vez em que havia acordado tão cedo
assim. Fez uns sanduíches de manteiga de amendoim e embrulhou-os em
papel-manteiga. Colocou os sanduíches e alguns biscoitos de aveia dentro do
bolso do casaco. Na porta, calçou suas botas com perneiras à prova de água.
A luz lá fora era difusa e cinzenta. Nuvens enchiam os vales extensos e
pairavam como manchas acima das árvores e das montanhas. A pousada
estava às escuras. Ele saiu e desceu devagar pela trilha batida, escorregadia, a
caminho do rio. Gostou de acordar cedinho assim e ir pescar. Em algum lugar
num dos vales para além do rio, ele ouviu o barulho distante de tiros, e
contou. Sete. Oito. Os caçadores estavam acordados. E os cervos também.
Imaginou se os tiros não estariam vindo daqueles dois caçadores que tinha
visto na pousada no dia anterior. Os cervos não tinham muita chance naquela
neve. Manteve os olhos baixos, atento à trilha. Ela continuava descendo a
encosta, e não demorou muito até ele se ver entre árvores pesadas e com neve
na altura das canelas.
A neve jazia em camadas ao pé das árvores, mas não estava funda demais
onde ele caminhava. Era uma trilha boa, batida e sólida, engrossada com as
folhas dos pinheiros, que se esmigalhavam sob a neve embaixo de suas botas.
Ele podia ver sua respiração uir como vapor à sua frente. Segurava a vara de
pesca reta diante de si quando tinha de empurrar os arbustos para avançar ou
precisava passar embaixo de árvores com ramos baixos. Segurava a vara pelo
molinete grande, presa embaixo do sovaco, como uma lança. Às vezes,
quando era criança e ia pescar numa região mais afastada, quando cava lá por
dois ou três dias e tinha de andar sozinho no mato, também segurava a vara
daquele jeito, mesmo quando não havia arbustos nem árvore, só um grande
prado. Naquelas ocasiões, se imaginava à espera de seu oponente, que sairia
do meio das árvores montado num cavalo. As gralhas na orla densa da mata
começavam a gritar. Então ele cantava alguma coisa o mais alto que
conseguia. Soltava brados de desa o, até sentir o peito doer, para os falcões
que voavam em círculos por cima do prado. O sol e o céu voltaram à sua
lembrança, e o lago com o telheiro. A água era tão limpa e verde que dava
para enxergar até cinco ou seis metros abaixo da superfície, onde a
profundidade ia aumentando aos poucos. Ele já podia ouvir o barulho do rio.
Mas agora a trilha tinha sumido e, pouco antes de começar a descer o
barranco para o rio, ele entrou num monte de neve acumulada, afundou até
os joelhos e cou em pânico, agarrando-se em punhados de neve e em ramos
de trepadeiras na tentativa de sair dali.
O rio parecia de uma frieza insuportável. Tinha uma coloração verde-
prateada, e havia gelo nas pequenas poças que se formavam nas pedras ao
longo da margem. Antes, no verão, ele tinha pegado seu peixe num trecho do
rio mais abaixo. Mas naquela manhã ele não ia conseguir descer além dali.
Naquela manhã sentia-se satisfeito de simplesmente estar onde estava. Uns
trinta metros adiante, no outro lado do rio, havia uma praia com uma
simpática corredeira em frente. Mas, claro, não havia como chegar lá.
Concluiu que estava muito bem onde estava. Subiu num tronco baixo, ajeitou-
se ali em cima e olhou em volta. Viu árvores altas e montanhas cobertas de
neve. Achou que era um belo quadro, a maneira como o vapor pairava acima
do rio. Ficou sentado no tronco balançando as pernas para a frente e para trás,
enquanto en ava a linha de pesca pelas guias de sua vara. Amarrou na linha
um dos apetrechos que havia preparado na noite anterior. Quando tudo estava
pronto, deslizou do tronco, en ou as botas de borracha o mais alto que elas
alcançavam e prendeu as velas das perneiras ao cinto. Caminhou devagar
dentro do rio, prendendo o fôlego por causa do choque da água fria. A água
batia e rodopiava, fazendo pressão até a altura dos joelhos. Ele parou, depois
avançou um pouco mais. Soltou a trava do molinete e fez um belo arremesso
na direção contrária à corrente do rio.
Enquanto pescava, começou a sentir um pouco do antigo entusiasmo
voltando. Continuou a pescar. Depois de um tempo, saiu do rio e sentou
numa pedra, com as costas apoiadas num tronco. Pegou os biscoitos. Não
tinha pressa de fazer nada. Não naquele dia. Um bando de pássaros pequenos
veio voando do outro lado do rio e todos se empoleiraram numas pedras
perto do lugar onde ele estava sentado. Saíram voando quando ele jogou um
punhado de migalhas de biscoito na direção deles. Do topo das árvores
vinham rangidos, e o vento arrastava as nuvens para fora do vale e acima dos
morros. Então ele ouviu uma saraivada de tiros vinda de algum ponto da
oresta, do outro lado do rio.
Tinha acabado de trocar as iscas arti ciais e fazer o arremesso quando viu o
cervo. Saiu aos trambolhões dos arbustos perto do rio e correu para a
praiazinha, balançando e virando a cabeça, enquanto os de muco branco
pendiam das narinas. A pata traseira esquerda estava quebrada, vinha
pendurada atrás dele, e o cervo parou um instante e virou a cabeça para olhar
a pata. Então entrou no rio e se foi na correnteza, até só a cabeça e o dorso
carem visíveis. Chegou à parte rasa, meio de lado, e saiu capengando,
mexendo a cabeça para um lado e para o outro. O sr. Harrold cou
absolutamente parado, olhando o cervo desaparecer no meio das árvores.
“Sacanas nojentos”, disse.
Arremessou mais uma vez a linha. Depois girou o molinete e voltou para a
praia. Sentou-se no mesmo tronco e comeu seu sanduíche. Estava seco e não
tinha gosto de nada, mas comeu mesmo assim e tentou não pensar mais no
cervo. A esta hora Frances já estaria acordada, fazendo coisas pela casa. Ele
também não queria pensar em Frances. Mas lembrou-se daquela manhã em
que tinha pegado três trutas-arco-íris. A única coisa que ele podia fazer era
levar as trutas até o chalé, no alto do morro. Foi o que ele fez e, quando
Frances chegou à porta, ele virou o saco na escadinha da entrada e despejou as
trutas diante dela. Frances soltou um assobio e curvou-se para tocar nas pintas
pretas espalhadas no dorso dos peixes. E naquela tarde ele voltou ao rio e
pegou mais duas trutas.
Tinha esfriado ainda mais. O vento soprava rio abaixo. Ele sentiu que
enrijecia e saiu mancando sobre as pedras enquanto tentava relaxar o corpo.
Pensou em fazer uma fogueira, mas decidiu que não ia car ali por muito
tempo. Algumas gralhas voaram estalando as asas no alto, vindas do outro
lado do rio. Quando estavam bem acima dele, o sr. Harrold gritou, mas as
gralhas nem olharam para baixo.
Trocou as iscas outra vez, pôs mais peso na linha e fez um arremesso rio
acima. Deixou a correnteza puxar a linha entre seus dedos, até que a viu car
frouxa. Então acionou a trava do molinete. O peso de chumbo em forma de
lápis rebateu nas pedras debaixo d’água. Ele segurou rme o punho da vara
contra a barriga e imaginou que aspecto teria a isca arti cial aos olhos de um
peixe.
Vários garotos saíram correndo do meio das árvores perto do rio e vieram
andando para a praia. Alguns usavam bonés e coletes vermelhos. Ficaram
circulando em volta da praia, observando o sr. Harrold, e depois o rio, para
cima e para baixo da correnteza. Quando começaram a descer pela praia na
sua direção, o sr. Harrold olhou para o alto dos morros, depois rio abaixo,
onde cavam as águas melhores para pescar. Começou a enrolar a linha.
Pegou a isca arti cial e ncou o anzol na rolha de cortiça presa acima do
molinete. Depois começou a fazer o caminho de volta para a margem,
pensando apenas na margem e pensando que cada passo cuidadoso que dava o
deixava um passo mais perto dela.
“Ei!”
Parou e virou devagar, dentro d’água, desejando que aquilo tivesse
acontecido quando ele já estivesse na margem do rio e não ali no meio da
correnteza, com a água empurrando suas pernas e atrapalhando seu equilíbrio
sobre as pedras escorregadias. Seus pés se encaixaram no vão entre as pedras
enquanto ele manteve os olhos xos nos garotos, até que identi cou o líder.
Todos usavam o que pareciam ser coldres ou bainhas de faca no cinto. Mas só
um dos garotos tinha um ri e. Logo percebeu que era o garoto que o havia
chamado. Com ar sombrio, rosto no, boné de pala em forma de bico de pato,
o garoto falou:
“Você não viu um cervo passar por aqui?” O garoto estava com a arma na
mão direita, como se fosse uma pistola, e apontava o cano para a praia.
Um dos garotos disse: “É claro que ele viu, Earl, e não deve fazer muito
tempo”, e olhou para os outros quatro. Eles assentiram com a cabeça.
Passaram um cigarro de um para o outro e caram de olhos grudados no sr.
Harrold.
“Estou perguntando... ei, você é surdo? Não viu ele não?”
“Não era ele, era ela”, respondeu o sr. Harrold. “E estava com a perna
esquerda quase arrancada, uma coisa horrível.”
“Olhem só isso!”, disse o que estava com a ri e.
“Até que ele é bem esperto, não é, Earl? Diga logo para que lado ele foi, seu
velho lho da puta!”, disse um dos garotos.
“Para onde ele foi?”, perguntou o garoto, e ergueu o ri e até o quadril, meio
que apontando para o sr. Harrold.
“Quem quer saber?” Segurou a vara de pesca reta e apontada para a frente,
presa embaixo do braço, e com a outra mão abaixou o chapéu. “Seus
moleques, vocês são daquele acampamento que ca no alto do rio, não são?”
“Você se acha muito sabido, não é?” disse o garoto, e olhou para os outros
garotos, acenando com a cabeça para eles. Levantou um pé e abaixou-o
devagar, depois o outro. Num instante, ergueu o ri e até os ombros e puxou o
percussor para trás.
O cano estava apontado para a barriga do sr. Harrold, talvez um pouco mais
para baixo. A água rodopiava e espumava em volta das suas botas. Ele abriu e
fechou a boca. Mas não conseguiu mover a língua. Baixou os olhos para a água
clara sobre as pedras e para os pequenos espaços do fundo cobertos de areia.
Imaginou como seria se suas botas virassem na água e ele caísse, rolando
como um tronco.
“O que é que há com você a nal?”, perguntou para o garoto. A água gelada
subiu entre suas pernas e esguichou em seu peito.
O garoto não disse nada. Apenas cou parado ali. Todos caram parados ali,
olhando para ele.
“Não atire”, disse o sr. Harrold.
O garoto manteve o ri e seguro junto ao corpo durante mais um minuto,
depois baixou a arma. “Ficou com medo, não foi?”
O sr. Harrold assentiu devagar com a cabeça. Teve a sensação de que queria
bocejar. Continuou abrindo e fechando a boca.
Um dos garotos soltou uma pedra da beira do rio e jogou-a. O sr. Harrold
virou de costas e a pedra foi cair na água a meio metro dele. Os outros
começaram a jogar pedras. Ele cou parado, olhando para a margem,
enquanto ouvia as pedras caírem, espirrando água à sua volta.
“Você não está querendo pescar nada por aqui de verdade, não é?”, disse o
garoto. “Eu podia ter acertado você, mas não quis. Você viu aquele cervo,
então está sabendo que teve muita sorte mesmo.”
O sr. Harrold permaneceu parado mais um minuto. Depois olhou por cima
do ombro. Um dos garotos apontou o dedo para ele e o resto sorriu. Depois
eles se afastaram juntos, de volta para o meio das árvores. Ele cou olhando os
garotos irem embora. Virou-se, continuou seu caminho de volta à margem do
rio e se deixou cair junto ao tronco. Depois de alguns minutos, se levantou e
começou a fazer o caminho de volta para o chalé.
A neve tinha se poupado durante toda a manhã e agora, na hora em que a
clareira já estava à vista, começaram a cair ocos leves. Sua vara havia cado lá
atrás, em algum lugar. Talvez a tivesse deixado na hora em que parou, depois
de torcer o tornozelo. Lembrava de haver posto a vara sobre a neve na hora
em que tentava desamarrar a bota, mas não se lembrava de ter pegado a vara
outra vez. De todo modo, isso agora não importava mais. Era uma vara boa,
tinha pagado mais de noventa dólares por ela num verão, cinco ou seis anos
antes. Mas, mesmo que o tempo casse bom no dia seguinte, ele não iria
procurar a vara. No dia seguinte? No dia seguinte ele precisava voltar para casa
e para o trabalho. Uma gralha gritou numa árvore próxima e outra respondeu
do lado de lá da clareira, perto do seu chalé. Ele estava cansado e caminhava
devagar, tentando não pôr peso sobre o pé.
Saiu do bosque e parou. Havia luzes acesas na pousada lá embaixo. Até as
luzes do estacionamento estavam acesas. Ainda faltavam muitas horas para
escurecer, mas tinham acendido todas as luzes lá embaixo. Aquilo lhe pareceu
misterioso e impenetrável. Será que tinha acontecido alguma coisa? Balançou
a cabeça. Depois subiu a escadinha até o chalé. Parou na varanda. Não queria
entrar. Mas entendeu que precisava abrir a porta e entrar. Não sabia se ia
conseguir. Por um instante, pensou em simplesmente entrar no carro e ir
embora. Olhou mais uma vez as luzes acesas embaixo do morro. Então
segurou a maçaneta e abriu a porta do chalé.
Alguém, a sra. Maye, ele supôs, tinha acendido o fogo na estufa. Mesmo
assim, ele olhou em volta com cautela. Estava tudo em silêncio, exceto pelo
crepitar do fogo. Sentou-se na cama e começou a tirar as botas. Depois
continuou sentado ali, de meias, pensando no rio e no peixe grande que até
agora devia estar subindo o rio naquela água fria de fazer parar o coração.
Balançou a cabeça, levantou-se e estendeu as mãos a poucos centímetros da
estufa, abrindo e fechando os dedos até eles começarem a formigar. Deixou
que o calor voltasse aos poucos ao corpo. Começou a pensar na sua casa, em
voltar para lá antes de escurecer.
A morte de Harry
Mazatlan, México — três meses depois
T udo mudou depois da morte de Harry. Estar aqui, tão longe, por
exemplo. Quem poderia imaginar, apenas três breves meses atrás, que
eu estaria aqui no México e o coitado do Harry estaria morto e enterrado?
Harry! Morto e enterrado — mas não esquecido.
Não consegui ir trabalhar no dia em que recebi a notícia. Fiquei abalado
demais. Jack Berger, que é o encarregado do serviço de lanternagem na o cina
do Frank onde todos trabalhamos, me telefonou às seis e meia da manhã
quando eu estava tomando uma xícara de café e fumando um cigarro antes de
sentar para comer o café da manhã.
“O Harry morreu”, disse ele assim de cara, soltando logo a bomba. “Ligue o
rádio”, disse ele. “Ligue a tevê.”
A polícia tinha acabado de sair da casa dele, depois de fazer uma porção de
perguntas sobre o Harry para o Jack. Disseram para ir logo identi car o corpo.
Jack disse que na certa viriam depois à minha casa também. Por que motivo
foram primeiro à casa de Jack Berger é um mistério para mim, porque ele e o
Harry não eram o que a gente chama de pessoas muito ligadas. Pelo menos
não eram tão ligados quanto eu e o Harry.
Eu nem conseguia acreditar, mas sabia que devia ser verdade, para o Jack me
telefonar daquele jeito. Eu tinha a sensação de estar em estado de choque, e
acabei esquecendo o café da manhã. Passei de um noticiário a outro do rádio,
até ter uma ideia completa da história. Devo ter cado mais ou menos uma
hora escutando as notícias pelo rádio e fui cando cada vez mais transtornado,
à medida que pensava no Harry e naquilo que o rádio estava dizendo. Havia
um monte de gente mesquinha que não ia lamentar nem um pouco a morte
do Harry, na verdade iam até car contentes de saber que ele tinha batido as
botas. A mulher dele, por exemplo, ia car bem contente, embora ela morasse
em San Diego e já zesse dois ou três anos que os dois não se viam. Ela ia car
contente. É desse tipo de gente, pelo que o Harry tinha contado. Não quis
concordar com o divórcio para ele não poder car com outra mulher. Nem
divórcio nem nada. Agora ela não ia ter mais que se preocupar com esse
assunto. Não, ela não ia lamentar nem um pouco quando soubesse que o
Harry tinha morrido. Mas a Pequena Judith, aí a história é outra.
Saí de casa depois de telefonar para o trabalho e avisar que eu não ia. Frank
não falou grande coisa, disse que entendia. Também estava se sentindo do
mesmo jeito, disse ele, mas precisava manter a o cina aberta. O Harry ia
querer que zessem isso, disse. Frank Klovee. É o dono e o gerente fundidos
numa só pessoa, e é o melhor sujeito para quem já trabalhei.
Entrei no carro e parti na direção do Red Fox, um bar onde eu, Harry, Gene
Smith, Rod Williams, Ned Clarke e mais uns outros da turma cávamos à
noite depois do trabalho. Eram oito e meia da manhã e o trânsito estava
pesado, por isso tive que me concentrar na direção. Mesmo assim, de vez em
quando eu não conseguia deixar de pensar no coitado do Harry.
Ele era um homem de ação. Isso quer dizer que sempre tinha uma
novidade. Nunca era chato estar com o Harry. Era bom com mulheres, se
entendem o que quero dizer, sempre tinha dinheiro no bolso e sabia gozar a
vida. Também era esperto, sempre arranjava um jeito de se safar numa boa, e
assim ele saía de toda e qualquer encrenca limpo e cheiroso como uma or. O
Jaguar que ele dirigia, por exemplo. Era quase novo, um carro de vinte mil
dólares, mas que tinha sido detonado num grande engavetamento na rua 101.
Harry comprou o Jaguar por uma bagatela na companhia de seguros, e ele
mesmo ajeitou o carro todo até car como novo. O Harry era assim. Depois
teve aquela lancha Chris Craft de trinta e dois pés que um tio do Harry, de Los
Angeles, deixou de herança para ele. Harry cou só mais ou menos um mês
com a lancha. Há poucas semanas, ele havia acabado de ir lá ver o barco e dar
uma voltinha nele. Mas havia o problema da mulher do Harry que, pela lei,
tinha direito a uma parte. Para evitar que ela, de algum jeito, pusesse as mãos
na lancha se viesse a saber da história — e antes mesmo que ele tivesse posto
os olhos no barco —, Harry procurou um advogado, inventou alguma tramoia
e deixou o negócio todo amarrado pelos sete lados em favor da Pequena
Judith. Os dois tinham planos de fazer uma viagem para algum canto nas
férias do Harry em agosto. Aliás devo acrescentar que o Harry já tinha viajado
por toda parte. Foi à Europa quando estava no serviço militar e visitou todas
as capitais e as principais cidades de veraneio. Uma vez, estava no meio da
multidão bem na hora que alguém deu um tiro no general De Gaulle. Ele
conhecia muitos lugares e tinha visto muita coisa, o Harry. Agora estava
morto.
No Red Fox, que abre cedo, só tinha um sujeito. Estava sentado na outra
ponta do balcão, e não era alguém que eu conhecesse. Jimmy, o garçom, tinha
ligado a televisão e me cumprimentou com a cabeça quando entrei. Seus olhos
estavam vermelhos e por isso, quando vi o Jimmy, quei ainda mais comovido
com a morte do Harry. Na tevê estava começando um antigo programa de
Lucille Ball e Desi Arnaz. Jimmy pegou uma vara comprida e virou o seletor
de canais para outra emissora, mas naquela hora não estavam noticiando nada
sobre o Harry.
“Não consigo acreditar”, disse Jimmy. “Podia ser qualquer um, menos o
Harry.”
“Estou sentindo a mesma coisa, Jimmy”, falei. “Podia ser qualquer um,
menos o Harry.”
Jimmy serviu duas boas doses para nós e engoliu a dele sem sequer piscar os
olhos. “Está doendo como se o Harry fosse meu irmão. Nada podia doer mais
que isso.” Balançou a cabeça outra vez e cou um tempo olhando o copo. Já
estava bem alto naquela altura.
“É melhor a gente tomar mais um”, disse ele.
“Dessa vez ponha um pouco de água no meu”, falei.
Uns caras, amigos do Harry, foram chegando aos poucos naquela manhã. A
certa altura vi o Jimmy sacar de um lenço e assoar o nariz com força. O sujeito
na outra ponta do balcão, o desconhecido, fez um gesto, como se fosse para
tocar alguma coisa no jukebox. Mas Jimmy foi até lá e tirou a tomada da parede
com um puxão violento e cou olhando para o sujeito até ele ir embora.
Nenhum de nós tinha muita coisa a dizer um para o outro. O que podíamos
dizer? Ainda estávamos muito atordoados. Por m Jimmy trouxe uma caixa de
charuto vazia e colocou sobre o balcão. Disse que era melhor a gente começar
a fazer uma vaquinha para comprar uma coroa de ores. Cada um pôs um ou
dois dólares para resolver a questão. Jimmy pegou um lápis de cera e escreveu
na caixaFUNDOS PARA O HARRY .
Mike Demarest entrou e pegou o banco ao lado do meu. Ele é garçom do
TNT Club. “Droga!”, disse ele. “Ouvi a notícia no radiorrelógio. Minha mulher
estava se vestindo para ir trabalhar, me acordou e disse: ‘Não é aquele Harry
que você conhece?’. E era mesmo. Me dê um duplo e uma cerveja para
rebater, Jimmy.”
Pouco depois ele disse: “Como é que deve estar a Pequena Judith depois
disso? Alguém viu a Pequena Judith?”. Percebi que ele olhava para mim com o
canto do olho. Eu não tinha nada para lhe dizer. Jimmy falou: “Ela ligou para
cá de manhã e parecia bem histérica, a coitadinha”.
Depois de mais um ou dois drinques, Mike virou para mim e disse: “Você
vai lá ver ele?”.
Esperei um pouco antes de responder. “Não ligo muito para esse tipo de
coisa. Acho difícil eu ir”.
Mike fez que sim com a cabeça como se tivesse compreendido. Mas um
instante depois, no espelho por trás do balcão, vi que ele me olhava. Aqui devo
deixar claro que não gosto de Mike Demarest, caso vocês ainda não tenham
adivinhado. Nunca gostei dele. Harry também não gostava. Conversávamos
sobre isso. Mas as coisas são sempre assim mesmo — os caras legais se dão mal
e os outros vão em frente numa boa.
Naquela hora percebi que a palma das minhas mãos estava cando pegajosa
e senti um peso de chumbo dentro de mim. Ao mesmo tempo, sentia o
sangue latejar com força nas têmporas. Por um instante, pensei que eu fosse
desmaiar. Deslizei do banco, me despedi do Mike com um aceno de cabeça e
disse: “Fique frio, Jimmy”.
“Certo, e você também”, disse ele.
Na rua, me encostei na parede por um momento, tentando me recuperar.
Lembrei que eu não tinha comido nada no café da manhã. Somando-se ainda a
angústia, o abatimento e os drinques que eu havia tomado, não era de admirar
que a minha cabeça estivesse rodando. Mas eu não queria comer nada. Não ia
conseguir nem morder nada. Um relógio no alto da vitrine de uma joalheria
do outro lado da rua indicava dez para as onze. Parecia que já era até m de
tarde, de tanta coisa que havia acontecido.
Naquele instante, vi a Pequena Judith. Ela dobrou a esquina e veio andando
devagar, os ombros curvados e encolhidos, uma expressão a ita no rosto. Uma
imagem de dar pena. Tinha um grande bolo de lenços de papel na mão. Parou
uma vez e assoou o nariz.
“Judith”, falei.
A voz dela emitiu um som que atravessou meu coração como uma bala. Na
mesma hora caímos nos braços um do outro, ali no meio da calçada.
Falei: “Judith, lamento muito. O que eu posso fazer? Eu daria o meu braço
direito, você sabe disso”.
Ela assentiu com a cabeça. Não conseguia falar nada. Ficamos parados
trocando abraços e tapinhas nas costas, eu tentava consolar a Pequena Judith
dizendo qualquer coisa que me viesse à cabeça e nós dois fungávamos. Ela
relaxou por um momento e olhou para mim com expressão aturdida, depois
jogou os braços em volta de mim outra vez.
“Não consigo, não consigo acreditar, só isso”, disse ela. “Não consigo
acreditar de jeito nenhum.” Continuou apertando meu ombro com uma mão
e me dando tapinhas nas costas com a outra.
“É verdade, Judith”, falei. “Está no noticiário do rádio e da televisão, e vai
sair nos jornais da noite.”
“Não, não”, disse ela, me apertando com mais força ainda.
Eu estava começando a car zonzo de novo. Sentia o sol queimando minha
cabeça. Ela continuava com os braços em volta de mim. Eu me mexi só o
su ciente para nos separarmos um pouco. Mas quei com o braço em volta da
cintura dela para lhe dar apoio.
“A gente ia viajar daqui a um mês”, disse ela. “Ontem à noite camos
sentados na nossa mesa do Red Fox durante três ou quatro horas fazendo
planos.”
“Judith”, falei, “vamos a algum lugar tomar uma xícara de café ou uma
bebida.”
“Vamos entrar aqui”, disse ela.
“Não, vamos a outro lugar”, falei. “Depois a gente volta para cá.”
“Acho que se eu comesse alguma coisa ia me sentir melhor”, disse ela.
“Boa ideia. Bem que estou precisando comer alguma coisa.”
Passei os três dias seguintes num redemoinho. Fui trabalhar todos os dias,
mas era um lugar muito triste e deprimente sem o Harry. Via a Pequena Judith
muitas vezes depois do trabalho. Ficava sentado com ela no nal do dia e
tentava evitar que ela se xasse demais em aspectos desagradáveis da história.
Eu também lhe fazia companhia quando ela ia para um lado ou outro resolver
seus problemas. Por duas vezes a levei à agência funerária. Na primeira vez ela
desmaiou. Eu mesmo não quis entrar. Eu queria me lembrar do pobre Harry
do jeito que ele era.
Um dia antes da cerimônia, todos nós da o cina arrrecadamos trinta e oito
dólares para uma coroa de ores. Fiquei encarregado de comprar, porque eu
era o mais chegado ao Harry. Lembrei-me de uma oricultura que não cava
longe de casa. Então fui para casa, preparei um almoço para mim e depois fui
à Casa de Flores Howard. Ficava num shopping center, junto com uma
farmácia, uma barbearia, um banco e uma agência de viagens. Estacionei o
carro e mal tinha dado alguns passos quando meus olhos foram atraídos por
um grande cartaz na vitrine da agência de viagem. Me aproximei da vitrine e
parei ali por um momento. México. Tinha um enorme rosto de pedra sorrindo
do mesmo jeito que o sol sobre um mar azul coalhado de barquinhos à vela
que mais pareciam guardanapos brancos de papel. Na praia, mulheres de
biquíni se estiravam relaxadas na areia de óculos escuros, ou jogavam
badminton. Olhei todos os cartazes da vitrine, inclusive os da Alemanha e da
Velha Inglaterra, mas toda hora eu voltava para aquele sol sorridente, a praia,
as mulheres e os barquinhos. Por m penteei o cabelo diante do meu re exo
no vidro da loja, ajeitei os ombros e fui para a oricultura.
Na manhã seguinte, Frank Klovee foi trabalhar usando calças folgadas,
camisa branca e gravata. Disse que se algum de nós quisesse ver o Harry, por
ele não tinha problema. A maioria foi para casa trocar de roupa, foi ao enterro
e depois tirou o resto da tarde de folga. Jimmy tinha preparado um pequeno
bufê no Red Fox em homenagem ao Harry. Havia diversas pastinhas, batatas
fritas e sanduíches. Não fui ao enterro, mas dei um pulo no Red Fox no nal
da tarde. A Pequena Judith estava lá, claro. Estava muito bem-vestida e
zanzava pelo bar como se fosse uma vítima de um tremendo trauma de
guerra. Mike Demarest também estava lá e percebi como ele cava olhando
para ela de vez em quando. Ela passava de um homem a outro falando sobre
Harry e dizendo coisas como “O Harry adorava você, Gus”. Ou “O Harry
gostaria que a gente zesse isso”. Ou “Essa era a parte que o Harry ia preferir.
Ele era assim”. Dois ou três homens a abraçaram, lhe deram palmadinhas no
quadril e caram tão desembaraçados que eu quase fui lá pedir que fossem
embora. Alguns velhos pinguços deram as caras, tipos com quem o Harry na
certa não tinha trocado nem meia dúzia de palavras durante toda a vida —
diziam que aquilo era uma grande tragédia e tratavam logo de engolir cerveja
e sanduíches. A Pequena Judith e eu camos por lá até o bar esvaziar, por volta
das sete da noite. Depois eu a levei para casa.
Na certa vocês já adivinharam uma parte do resto da história. A Pequena
Judith e eu começamos e sair juntos depois da morte do Harry. Íamos ao
cinema quase todas as noites e depois íamos a um bar ou então à casa dela. Só
voltamos ao Red Fox uma vez e depois resolvemos não ir mais lá, e sim a
lugares novos — lugares aonde ela e o Harry nunca tinham ido. Num
domingo, não muito tempo depois do enterro, nós dois fomos ao cemitério
Golden Gate pôr um vaso de ores no túmulo do Harry. Só que ainda não
tinham colocado aquela plaquinha, então a gente perdeu uma hora
procurando o lugar e mesmo assim não conseguiu encontrar a droga do
túmulo. A Pequena Judith não parava de andar de um canto a outro, dizendo:
“É aqui! É aqui!”. Mas logo se via que a sepultura pertencia a outra pessoa. Por
m desistimos, nós dois nos sentindo deprimidos.
Em agosto, fomos de carro até Los Angeles dar uma olhada na tal lancha.
Era um senhor barco. O tio do Harry tinha conservado o barco em ótimas
condições, e Tomás, o rapaz mexicano que tomava conta dele, disse que não
teria medo de dar a volta ao mundo naquela lancha. A Pequena Judith e eu
olhamos para a lancha e depois olhamos um para o outro. Raramente uma
coisa acaba sendo melhor do que a gente esperava. Em geral acontece o
contrário. Mas foi assim no caso da lancha — melhor do que qualquer coisa
que a gente podia ter sonhado. Na viagem de volta para San Francisco,
resolvemos sair de lancha num pequeno passeio no mês seguinte. Assim,
marcamos nossa viagem para setembro, pouco antes do m de semana do
feriado do Dia do Trabalho.
Como eu disse, um monte de coisas tinha mudado desde a morte do Harry.
Até a Pequena Judith está fora de cena agora, ela se foi de um jeito trágico e
que até hoje me intriga. Aconteceu em algum lugar ao largo do litoral de Baja:
a Pequena Judith, que não sabia nadar nem uma braçada, desapareceu de
repente. Imaginamos que ela tenha caído do barco durante a noite. O que ela
estava fazendo no convés tão tarde ou o que provocou sua queda no mar, nem
Tomás nem eu sabemos. Só sabemos que na manhã seguinte ela havia sumido
e nenhum de nós viu nada nem ouviu nenhum grito. Simplesmente sumiu.
Essa é a verdade, juro, e foi o que contei à polícia quando chegamos a
Guayamas dias depois. Minha mulher, contei a eles — pois por sorte eu tinha
casado com ela pouco antes de partirmos de San Francisco. Era para ser a
nossa viagem de lua de mel.
Falei que as coisas mudaram desde a morte do Harry. Agora aqui estou, em
Mazatlan, e Tomás está me mostrando alguns locais bem bonitos. Coisas que a
gente, nos Estados Unidos, nem sonha que existem. Nossa próxima parada é
Manzanillo, cidade natal de Tomás. Depois Acapulco. Nossa intenção é seguir
em frente até o dinheiro acabar, depois ancorar o barco e trabalhar um pouco,
depois zarpar outra vez. Me vem à cabeça que estou fazendo as coisas do jeito
que o Harry gostaria. Mas agora quem é que vai saber?
Às vezes acho que nasci para ser nômade.
O faisão
G erald Weber não tinha mais nada para dizer. Estava calado e dirigia o
carro. Shirley Lennart cara acordada no início, mais do que tudo pela
novidade da situação, pelo fato de estar sozinha com ele por algum tempo. Ela
havia posto uma porção de tas cassete para tocar — Crystal Gale, Chuck
Mangione, Willie Nelson — e depois, quase de manhã, começou a girar o
botão do rádio e passar de uma estação a outra, pegando notícias locais e do
mundo, boletins sobre o tempo e sobre assuntos rurais, sintonizou até um
programa bem de manhãzinha, de perguntas e respostas, sobre os efeitos da
maconha na mãe que amamenta, qualquer coisa servia para preencher os
silêncios demorados. De vez em quando, fumando, ela olhava para ele através
da escuridão desoladora que dominava o carro grande. Em algum ponto entre
San Luis Obispo e Potter, na Califórnia, a cerca de duzentos e quarenta
quilômetros da sua casa de veraneio em Carmel, ela resolveu deixar de lado
Gerald Weber, como um mau investimento — ela havia feito outros, re etiu,
deprimida —, e pegou no sono no banco do carro.
Gerald Weber podia ouvir a rouca respiração dela sobrepondo-se ao barulho
do ar que entrava em rajadas pela janela. Desligou o rádio e cou contente
com a privacidade. Tinha sido um erro sair de Hollywood no meio da noite
para fazer uma viagem de quase quinhentos quilômetros, mas tinha se sentido
entediado naquela noite, dois dias antes do seu aniversário de trinta anos, e
sugeriu que zessem uma viagem até a casa de praia dela e cassem lá uns
dias. Eram dez da noite e eles ainda estavam bebendo martínis, embora
tivessem saído para o pátio de onde se tinha uma vista da cidade. “Por que
não?”, disse ela, enquanto mexia seu martíni com o dedo e olhava para ele, de
pé e encostado no parapeito da sacada. “Vamos lá. Acho que é a melhor ideia
que você teve a semana inteira”, e lambeu o gim de seu dedo.
Ele desviou os olhos da estrada. Ela não parecia estar dormindo, parecia
inconsciente ou gravemente ferida — como se tivesse caído de um edifício.
Estava toda torcida no banco, uma perna dobrada sob o corpo, a outra
pendurada no banco, quase tocando o chão. A saia estava puxada acima das
coxas, deixando à mostra a parte de cima das meias de náilon, a cinta-liga e a
carne entre as meias e a cinta. A cabeça de Shirley pendia sobre o descanso do
braço e sua boca estava aberta.
Havia chovido a intervalos ao longo da noite. Agora, quando o dia
começava a clarear, a chuva tinha parado, mas a rodovia ainda estava molhada
e escura e ele via pequenas poças d’água nas depressões dos campos que se
estendiam dos dois lados da estrada. Ainda não se sentia cansado. Sentia-se
bem, levando em conta as circunstâncias. Estava feliz de fazer alguma coisa.
Era uma sensação boa estar sentado atrás do volante, dirigindo o carro, sem
precisar pensar em nada.
Tinha acabado de apagar os faróis e reduzir um pouco a velocidade quando
pelo canto do olho viu o faisão. Voava rápido, baixo e num ângulo que talvez o
levasse para o caminho por onde o carro ia passar. Pisou no freio, depois
aumentou a velocidade e segurou o volante com mais força. O pássaro se
chocou no farol esquerdo com um baque forte. Rolou para cima, pelo para-
brisa, deixando pelo caminho um rasto de penas e de sujeira.
“Ah, meu Deus”, disse ele, estarrecido com o que tinha feito.
“O que aconteceu?”, perguntou ela, ajeitando-se no banco de repente, de
olhos arregalados e sobressaltada.
“Bati em alguma coisa... um faisão.” Ele ouviu o vidro do farol quebrado
tilintar no asfalto na hora em que freou o carro.
Parou no acostamento e saiu do carro. O ar estava úmido e frio, e ele
abotoou o suéter enquanto se curvava para examinar os danos. A não ser por
uns pedaços de vidro pontudos, que por um momento, com seus dedos
trêmulos, ele veri cou se ainda estavam presos, o farol tinha acabado. Havia
também um pequeno afundamento no para-lama dianteiro esquerdo. No
afundamento, uma mancha de sangue recobria o metal, e havia algumas penas
coloridas grudadas no sangue. Era um faisão fêmea, ele percebeu um segundo
antes do choque.
Shirley se debruçou sobre o lado dele do carro e apertou o botão para abrir
a janela. Ainda estava meio adormecida. “Gerry?”, chamou.
“Só um instante. Fique dentro do carro”, disse ele.
“Eu não ia sair”, ela disse. “Só que estou com pressa.”
Ele voltou, dando a volta pelo acostamento. Passou um caminhão,
espirrando água, e o motorista olhou para ele pela janela, enquanto passava
rugindo o motor. Gerry encolheu os ombros por causa do frio e continuou
andando, até se aproximar do punhado de cacos de vidro sobre a rodovia.
Andou mais um pouco, observando com atenção o capim molhado na beira
da estrada, até que encontrou o pássaro. Não teve coragem de tocá-lo, mas
cou olhando para ele por um minuto; destroçado, de olhos abertos, uma
mancha brilhante de sangue no bico.
Quando ele voltou ao carro, Shirley disse: “Eu nem sabia o que tinha
acontecido. Estragou muito o carro?”.
“Um farol estourou e o para-lama amassou um pouco”, respondeu. Olhou
para trás, na direção de onde tinham vindo, e depois pegou de novo a estrada.
“Ele morreu?”, perguntou Shirley. “Quer dizer, deve ter morrido, claro.
Imagino que não exista a menor chance de escapar.”
Ele olhou para ela e depois de novo para a estrada. “A gente estava a cento e
dez quilômetros por hora.”
“Por quanto tempo eu dormi?”
Como ele não respondeu, ela disse: “Estou com dor de cabeça. Estou com
uma dor de cabeça horrível. Quanto falta para a gente chegar a Carmel?”.
“Só algumas horas”, respondeu ele.
“Eu queria comer alguma coisa e tomar um café. Talvez a dor de cabeça
passe.”
“Vamos dar uma parada na próxima cidade”, disse ele.
Ela virou o espelho retrovisor e examinou o próprio rosto. Tocou alguns
pontos embaixo dos olhos com o dedo. Depois deu um bocejo e ligou o rádio.
Começou a girar o botão.
Ele pensou no faisão. Tinha acontecido muito depressa, mas para ele estava
claro que havia batido no pássaro de propósito. “Você me conhece bem
mesmo?”, perguntou ele.
“O que você quer dizer?”, disse ela. Deixou o rádio de lado por um instante
e recostou-se no banco.
“Só perguntei se você me conhece bem mesmo. É só isso que estou
perguntando.”
“Por que está me perguntando uma coisa dessa e a esta hora da manhã?”
“A gente só está conversando. Só perguntei se você me conhece bem
mesmo. Será que eu sou” — como é que ele devia dizer aquilo? — “será que
eu sou digno de con ança, por exemplo? Você con a em mim?” Ele não
entendeu por que estava perguntando aquilo, mas teve a sensação de estar
perto de alguma coisa séria.
“Isso é importante?”, perguntou ela. Olhou para ele com rmeza.
Ele encolheu os ombros. “Se você não acha que é, então acho que não é.”
Voltou a se concentrar na estrada. Pelo menos no início, pensou ele, havia
uma certa afeição. Passaram a morar juntos primeiro porque ela tinha
sugerido, e também porque na ocasião em que ele a conheceu, na festa de um
amigo num apartamento do condomínio Paci c Palisades, ele desejava o tipo
de vida que imaginou que ela podia lhe dar. Shirley tinha dinheiro e era bem
relacionada. Esses contatos eram mais importantes do que o dinheiro. Mas,
juntos, dinheiro e contatos eram imbatíveis. Quanto a ele, não passava de um
recém-formado na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Diplomado
em artes cênicas — mas a cidade não estava entupida de gente com essa
formação? — e, a não ser por algumas montagens teatrais da própria
universidade, era um ator sem nenhum papel pro ssional no currículo. Além
do mais, estava duro. Shirley era doze anos mais velha, tinha se casado e
divorciado duas vezes, mas possuía algum dinheiro e o levava a festas onde ele
conhecia muita gente. Em consequência, acabou conseguindo alguns papéis
secundários. Finalmente podia chamar a si mesmo de ator, embora não
trabalhasse mais do que um ou dois meses por ano. O resto do tempo,
naqueles últimos três anos, ele havia passado na piscina, deitado ao sol, ou
então em festas, ou correndo de lá para cá com Shirley.
“Então deixe eu te perguntar uma coisa”, prosseguiu ele. “Você acha que eu
poderia agir, que um dia eu poderia fazer alguma coisa contrária aos meus
interesses?”
Shirley olhou para ele e bateu de leve no dente com a unha do polegar.
“E então?”, disse ele. Ainda não estava claro para ele aonde aquilo podia
levar. Mas tinha a intenção de ir até o m.
“Então o quê?”, perguntou ela.
“Você ouviu o que eu disse.”
“Acho que você faria, sim, Gerald. Acho que faria, se achasse que era uma
coisa importante no momento. Agora pare de me fazer perguntas, está certo?”
O sol havia subido. As nuvens tinham se aberto. Ele começou a ver placas
que anunciavam diversos serviços na cidade seguinte. Havia mais tráfego na
estrada. Os campos molhados dos dois lados da pista pareciam viçosos e
verdejantes e cintilavam sob o sol daquele início de manhã.
Ela fumava o seu cigarro e olhava xo pela janela. Estava pensando se valia a
pena gastar energia para mudar de assunto. Mas também começava a se irritar.
Já estava de saco cheio de toda aquela história. Já tinha sido bem ruim
concordar em vir com ele. Devia ter cado em Hollywood. Não gostava de
gente que vivia tentando descobrir a si mesma, gente do tipo introspectiva,
cismada.
Então ela falou: “Olhe! Dê só uma olhada naquele lugar”, exclamou.
Nos campos à esquerda deles havia uma área com barracas desmontáveis,
alojamentos para trabalhadores rurais. As barracas tinham sido postas sobre
blocos a cerca de um metro acima do chão, à espera de um caminhão que as
levaria para outro local. Havia umas vinte e cinco, trinta barracas. Tinham
sido erguidas do chão e deixadas de pé, de modo que algumas estavam de
frente para a estrada e outras viradas em diferentes direções. Parecia que uma
revolta tinha ocorrido ali.
“Olhe só aquilo”, disse ela enquanto eles passavam em alta velocidade.
“John Steinbeck”, disse ele. “Uma coisa saída de um livro de Steinbeck.”
“Como é?”, perguntou ela. “Ah, Steinbeck. Sei, certo, Steinbeck.”
Ele piscou os olhos e imaginou que estava vendo o faisão. Lembrou-se de
seu pé pisando fundo no acelerador enquanto tentava atropelar o pássaro.
Abriu a boca para dizer alguma coisa. Mas não conseguiu achar as palavras.
Estava surpreso e ao mesmo tempo profundamente comovido e
envergonhado pelo impulso repentino — a que ele havia obedecido — de
matar o faisão. Seus dedos se enrijeceram no volante.
“O que você diria se eu dissesse que matei o faisão de propósito? Que tentei
acertá-lo?”
Shirley olhou para ele durante um minuto sem o menor interesse. Não
falou nada. Então uma coisa cou clara para ele. Em parte, supôs mais tarde,
aquilo foi fruto da expressão de indiferença entediada com que ela o olhou, em
parte foi consequência do próprio estado de espírito dele. Mas de repente ele
entendeu que não tinha mais valores. Nenhum quadro de referência, foi a
expressão que passou por sua cabeça.
“É verdade mesmo?”, perguntou ela.
Ele assentiu com a cabeça. “Foi até perigoso. Ele podia ter entrado pelo
para-brisa. Mas a questão vai além disso”, disse.
“Tenho certeza de que vai além disso. Se você diz que é assim, Gerry. Mas
isso não me surpreende, se é o que você está pensando. Não estou surpresa”,
disse ela. “Nada a seu respeito me surpreende mais. Você vive inventando
coisas para se animar, não é?”
Estavam entrando em Potter. Ele reduziu a velocidade e começou a
procurar o restaurante cuja placa tinha visto na estrada. Achou-o alguns
quarteirões depois do centro da cidade e estacionou o carro na frente, num
estacionamento coberto de cascalho. Ainda era muito cedo. Dentro do
restaurante, cabeças voltaram-se para os dois enquanto ele estacionava o carro
e puxava o freio de mão. Tirou a chave da ignição. Viraram-se em seus bancos
e olharam um para o outro.
“Perdi a fome”, disse ela. “Quer saber? Você acaba com o meu apetite.”
“Eu acabo com o meu próprio apetite.”
Ela continuou olhando rme para ele. “Sabe o que seria melhor você fazer,
Gerald? Seria melhor você fazer alguma coisa.”
“Vou pensar em alguma coisa.” Ele abriu a porta do carro e saiu. Abaixou-se
na frente do carro, examinou o farol arrebentado e o para-lama amassado.
Depois deu a volta até o lado dela e abriu a porta do carro para ela sair. Shirley
hesitou, depois saiu.
“As chaves”, disse ela. “As chaves do carro, por favor.”
Ele teve a sensação de que estavam representando uma cena e que aquela já
era a quinta ou sexta tomada. Mas ainda não estava claro o que ia acontecer
depois. De repente sentiu-se cansado até a medula, mas também sentiu-se
muito bem e perto de algo importante. Entregou as chaves para ela. Shirley
fechou a mão e manteve o punho cerrado.
Ele disse: “Então acho que vou me despedir, Shirley. Se não for
melodramático demais”. Ficaram parados na frente do restaurante. “Vou
tentar pôr minha vida em ordem”, disse ele. “Para começar, vou arranjar um
emprego, um emprego de verdade. Vou car um tempo sem ver ninguém.
Certo? Nada de lágrimas, certo? Vamos continuar amigos, se você quiser.
Tivemos alguns bons momentos, não foi?”
“Gerald, você não é nada para mim”, disse Shirley. “Você é um bundão.
Pode ir para o inferno, seu lho da puta.”
Dentro do restaurante duas garçonetes e alguns homens de macacão
correram para a janela da frente a m de olhar, depois que a mulher deu um
tabefe na cara do homem com as costas da mão. De início, as pessoas no
restaurante caram chocadas, mas depois acharam a cena divertida. Agora a
mulher no estacionamento apontava para a estrada, sacudindo o dedo. Um
drama só. Mas o homem já havia começado a andar. E também não olhou
para trás. As pessoas no restaurante não conseguiam ouvir o que a mulher
dizia, mas dava para se ter uma boa ideia do que devia ser, pois o homem
continuou andando.
“Caramba, ela deu um fora e tanto nele, hein?”, disse uma das garçonetes.
“Ele levou um pé na bunda que não tem tamanho.”
“Ele não sabe como se trata uma mulher”, disse um caminhoneiro que tinha
visto tudo. “Ele devia ter dado meia-volta e arrebentado a cara dela.”
Cadê todo mundo?
J á vi muita coisa. Eu estava indo para a casa da minha mãe passar umas
noites lá, mas, assim que cheguei no alto da escadinha da varanda, olhei e vi
que ela estava no sofá beijando um homem. Era verão, a porta estava aberta e
a televisão colorida estava ligada.
Minha mãe tem sessenta e cinco anos e é uma mulher solitária. Ela participa
de um clube de solteiras. Mesmo assim, mesmo sabendo de tudo isso, foi
duro. Fiquei parado no alto da escada com a mão no corrimão vendo o
homem puxar minha mãe mais para perto dele a m de beijá-la. Era domingo,
umas cinco da tarde. O pessoal do prédio de apartamentos estava na piscina.
Desci a escada e fui para o meu carro.
Aconteceu um bocado de coisas desde aquela tarde e, de modo geral, agora
está tudo bem. Mas naquela época em que minha mãe andava com homens
que ela mal conhecia eu não tinha emprego, bebia e estava doido. Meus lhos
estavam doidos e minha mulher estava doida, andava tendo uma “coisa” com
um engenheiro aeroespacial desempregado que havia conhecido nos
Alcoólicos Anônimos. Ele também era doido. Seu nome era Ross e tinha cinco
ou seis lhos. Mancava por causa de um tiro que levou da primeira mulher.
Naquela época ele não tinha mais mulher; queria a minha mulher. Não sei o
que todos nós tínhamos na cabeça naquela época. A segunda mulher veio e foi
embora, mas foi a primeira mulher que deu um tiro nele, na coxa, anos antes,
e por causa disso ele mancava, e era ela que o mandava para o tribunal, ou
para a cadeia, a cada seis meses mais ou menos por não pagar a pensão. Agora
estou de bem com ele. Mas naquela época era diferente. Mais de uma vez
naqueles dias cheguei a falar em armas. Eu falava para a minha mulher,
berrava mesmo: “Vou matar esse cara!”. Mas nunca aconteceu nada. A vida ia
seguindo. Eu nunca encontrava o sujeito, se bem que às vezes a gente se falava
por telefone. Uma ocasião, achei umas fotos dele quando fui remexer na bolsa
da minha mulher. Era um cara pequeno, não muito pequeno, tinha bigode e
estava com uma camisa de malha listrada, à espera de uma criança que ia
descer de um escorregador. Na outra foto, ele estava de pé na frente de uma
casa — a minha casa? Não dava para saber — de braços cruzados, bem-vestido,
de gravata. Ross, seu lho da puta, espero que você esteja bem hoje. Espero
que as coisas também estejam melhores para você.
Na última vez que ele foi para a cadeia, um mês antes daquele domingo, eu
soube pela minha lha que a mãe dela havia pagado a ança dele. Minha lha
Kate, que tinha quinze anos, gostou daquilo tanto quanto eu. Não que ela
tivesse alguma lealdade a mim nessa questão — ela não tinha nenhuma
lealdade a mim nem à sua mãe em nada, e só estava louca para ver nós dois
pelas costas. Não, a questão é que havia um sério problema de uxo de caixa
na casa e, se algum dinheiro fosse para o Ross, haveria menos ainda para
aquilo de que ela precisava. Por isso o Ross agora estava na sua lista negra.
Além do mais, ela não gostava dos lhos dele, Kate me contou, mas antes
disso ela me disse uma vez que de forma geral até que o Ross era bacana,
inclusive engraçado e interessante quando não estava bebendo. Uma vez ele
até leu o futuro na mão dela.
Ross passava o tempo consertando coisas, agora que não podia mais
arrumar um emprego na indústria aeroespacial. Mas eu tinha visto a casa dele
por fora; e o lugar parecia um depósito de lixo, com tudo quanto é tipo de
aparelhos e equipamentos antigos e de todas as marcas, que nunca mais iam
lavar, cozinhar nem tocar nada — tudo simplesmente cava jogado na
garagem aberta, na entrada de carro da casa e também no jardim. Ele também
guardava uns carros bem ferrados que ele gostava de car remendando. Na
primeira fase do caso deles, minha mulher me disse que ele “colecionava
carros antigos”. Foram essas as palavras dela. Eu tinha visto alguns automóveis
dele estacionados na frente da casa uma vez que passei por lá de carro
tentando ver o que desse para ver. Carros velhos e amassados das décadas de
50 e 60 com o estofamento dos bancos rasgado. Não passavam de lixo. Eu
sabia. Eu tinha o telefone dele. Tínhamos mais coisas em comum do que
apenas dirigir carros velhos e aferrar-se à mesma mulher para conseguir
suportar a vida. De todo modo, conserta-tudo ou não, o fato é que ele não
conseguiu dar um jeito no carro da minha mulher nem consertar o nosso
televisor quando ele quebrou e camos sem imagem. A gente tinha o som,
mas nada de imagem. Se quiséssemos ver o noticiário, precisávamos nos sentar
em volta da tela à noite e car ouvindo o som do aparelho. Eu bebia e fazia
piadas para meus lhos sobre o Sr. Conserta-Tudo. Até hoje não sei se minha
mulher acreditava ou não naquele papo, na história de carros antigos e tudo.
Mas ela gostava dele. Acho até que o amava; isso está bem claro agora.
Eles se conheceram quando Cynthia estava tentando se manter sóbria e ia às
reuniões três ou quatro vezes por semana. Eu já havia entrado e saído dos
Alcoólicos Anônimos por vários meses, mas quando Cynthia conheceu Ross
eu estava fora das reuniões, e todo dia eu bebia um litro de qualquer coisa em
que conseguisse pôr a mão. Mas, quando ouvi Cynthia falar sobre mim com
alguém no telefone, eu já havia sido apresentado aos Alcoólicos Anônimos e
sabia muito bem aonde ir se quisesse ajuda. Ross tinha frequentado os
Alcoólicos Anônimos e depois voltou a beber. Acho que Cynthia tinha a
impressão de que talvez houvesse mais esperança para ele do que para mim, e
assim ia às reuniões a m de se manter sóbria, depois foi cozinhar para ele ou
limpar sua casa. Nesse aspecto, os lhos dele não ajudavam nem um pouco.
Ninguém levantava um dedo na casa dele, a não ser Cynthia, quando estava lá.
Quanto menos os moleques punham a mão na massa, mais o Ross gostava
deles. Era esquisito. Comigo era o contrário. Naquela época, eu odiava meus
lhos. Eu estava no sofá com um copo de vodca e suco de toranja e aí um
deles chegava da escola e batia a porta com força. Uma tarde eu berrei e
quebrei o maior pau com o meu lho. Cynthia precisou intervir quando
ameacei fazer o garoto em pedacinhos. Falei que ia matar. Falei: “Vou matar
você e não vou nem piscar o olho”.
Loucura.
Aliás, as crianças, Katy e Mike estavam felizes da vida por poderem tirar
vantagem daquela situação enrolada. Pareciam ganhar vida com as ameaças e
intimidações que lançavam um sobre o outro e sobre nós — violência e
desespero, a bagunça tradicional. Agora, quando penso no assunto, mesmo a
essa distância, meu coração acaba se voltando contra eles. Lembro que uns
anos antes — eu ainda não tinha voltado a beber em período integral — li uma
cena extraordinária num romance de um italiano chamado Italo Svevo. O pai
do narrador estava morrendo e a família tinha se reunido em volta da cama,
chorando e esperando que o velho morresse, quando ele abriu os olhos e tou
cada um deles pela última vez. Quando seu olhar pousou no narrador, ele de
repente se agitou e alguma coisa surgiu em seus olhos; e com um último
ímpeto de energia ele se ergueu, se jogou para o outro lado da cama e deu um
tapa na cara do lho com toda a força que tinha. Depois caiu na cama e
morreu. Naquela época, muitas vezes eu imaginava a minha própria cena no
leito de morte e me via fazendo a mesma coisa — só que eu esperava ter
forças para dar um tapa nos meus dois lhos, e minhas últimas palavras para
eles seriam aquelas que só um homem à beira da morte teria coragem de
pronunciar.
Mas eles viam loucura em tudo quanto é canto, e isso servia bem aos seus
propósitos, eu estava convencido. Eles até engordavam com isso. Gostavam de
ter as rédeas nas mãos, car por cima, enquanto a gente fazia o maior estrago
e deixava que eles tirassem proveito da nossa culpa. Podiam car incomodados
de vez em quando, mas sabiam levar a situação à maneira deles. Também não
cavam embaraçados nem chateados com nenhuma das atividades que
aconteciam em casa. Ao contrário. Isso lhes dava algum assunto para falar
com os amigos. Eu ouvi os dois regalando seus colegas com as histórias mais
medonhas, uivando de tanto rir enquanto derramavam os detalhes sórdidos do
que estava acontecendo comigo e com a mãe deles. Exceto por serem
economicamente dependentes de Cynthia, que não sei como ainda conseguia
se segurar num emprego de professora e ter um salário mensal, eles
comandavam o espetáculo de ponta a ponta. E era isso mesmo — um
espetáculo.
Uma vez Mike trancou a casa e deixou a mãe do lado de fora depois de ela
ter passado a noite inteira na casa do Ross... Não sei onde eu estava naquela
noite, na certa na casa da minha mãe. Às vezes eu dormia lá. Jantava com ela e
ela me contava como vivia preocupada conosco; depois a gente via televisão e
tentava conversar sobre alguma outra coisa, tentava travar uma conversa
normal sobre alguma coisa que não fosse a situação da minha família. Ela
preparava uma cama para mim no sofá — o mesmo sofá onde fazia amor, eu
imaginava, mas eu dormia ali de todo jeito e me sentia grato por isso. Certa
manhã, Cynthia voltou para casa às sete horas, a m de se vestir e ir para a
escola onde trabalhava, e descobriu que o Mike tinha trancado todas as portas
e janelas por dentro para não deixar a mãe entrar em casa. Ela cou parada
junto à janela dele, implorando que a deixasse entrar — por favor, por favor,
ela precisava trocar de roupa e ir para a escola, porque se perdesse o emprego
o que seria deles? Para onde ele iria? Para onde iríamos todos nós? Ele disse:
“Você não mora mais aqui. Por que vou deixar você entrar?”. Foi o que ele
disse a ela, parada junto à janela dele, a cara dele toda tomada pela raiva. (Ela
me contou isso mais tarde quando estava embriagada e eu sóbrio, eu segurava
as mãos dela e a deixava falar à vontade.) “Você não mora aqui”, disse ele.
“Por favor, por favor, por favor, Mike”, implorava ela. “Me deixe entrar.”
Ele deixou a mãe entrar e disse palavrões para ela. Sem mais nem menos,
esmurrou com força os ombros da mãe várias vezes — pá, pá, pá —, depois
deu um murro no alto da cabeça dela e aí uma surra geral. No nal ela
conseguiu trocar de roupa, ajeitar o rosto e ir depressa para a escola.
Não faz muito tempo que tudo isso aconteceu, uns três anos mais ou
menos. Naquela época não era fácil.
Deixei minha mãe com o tal sujeito no sofá e quei rodando de carro por
um tempo, sem vontade de ir para casa e também sem vontade de car
sentado num bar naquele dia.
Às vezes eu e Cynthia conversávamos sobre essas coisas — “uma avaliação
da situação”, a gente chamava assim. Mas de vez em quando, em raras
ocasiões, conversávamos um pouco sobre coisas que não tinham a menor
relação com a nossa situação. Uma tarde a gente estava na sala e ela disse:
“Quando eu quei grávida do Mike você me carregou até o banheiro quando
eu estava tão enjoada e grávida que nem conseguia sair da cama. Você me
carregou. Nunca mais ninguém vai fazer uma coisa dessa, ninguém mais podia
me amar tanto assim. A gente viveu isso, não importa o resto. Nós nos
amamos como ninguém mais podia se amar, nem vai se amar outra vez,
nunca”.
Olhamos um para o outro. Talvez nossas mãos tenham se tocado, não
lembro. Então me lembrei do meio litro de uísque, ou de vodca, ou de gim,
ou de scotch, ou de tequila, que eu tinha escondido debaixo da mesma
almofada do sofá na qual estávamos recostados e comecei a desejar muito que
ela se levantasse logo e fosse dar uma volta — fosse para a cozinha, para o
banheiro ou fosse limpar a garagem.
“Talvez você pudesse fazer um cafezinho para nós”, falei. “Um bule de café
até que ia bem.”
“Não quer comer alguma coisa? Posso fazer uma sopa.”
“Talvez eu até coma alguma coisa, mas quero mesmo é beber uma xícara de
café.”
Ela foi para a cozinha. Esperei até ouvir a água começar a correr. Aí peguei a
garrafa embaixo da almofada, desatarraxei a tampa e bebi.
Nunca contei essas coisas nos Alcoólicos Anônimos. Nunca fui de falar
muito nas reuniões. Eu “passava”, como eles chamavam quando chegava a sua
vez e você não dizia nada a não ser “Esta noite eu vou passar, obrigado”. Mas
eu escutava, balançava a cabeça e ria demonstrando apoio às histórias
medonhas que eu ouvia. Em geral eu estava embriagado quando ia às
reuniões. A gente se assusta e precisa de alguma outra coisa além de biscoitos
e café instantâneo.
Mas aquelas conversas sobre amor ou o passado eram raras. Se a gente
conversava, era para tratar de negócios, sobrevivência, questões críticas.
Dinheiro. De onde é que vai vir o dinheiro? O telefone já era, a luz e o gás
estavam por pouco. E o que seria da Katy? Ela precisa de roupas. Os seus
estudos. O namorado dela que pertence a um bando de motoqueiros. O Mike.
O que vai acontecer com o Mike? O que vai acontecer com todos nós? “Meu
Deus”, dizia ela. Mas Deus não estava nem aí. Tinha lavado as mãos para o
nosso caso.
Eu queria que Mike entrasse para o Exército, a Marinha ou a guarda
costeira. Ele era impossível. Uma personalidade perigosa. Até o Ross achava
que o Exército seria uma boa para ele, Cynthia me contou, e ela não gostou
nem um pouco que ele tivesse dito isso. Mas eu quei satisfeito de saber que
Ross e eu concordávamos naquela questão. Ross subiu um ponto na minha
avaliação. Mas isso enfureceu Cynthia porque, por pior que fosse ter de viver
com o Mike, apesar do lado violento dele, ela achava que aquilo era só uma
fase que logo ia passar. Ela não queria saber do lho no Exército. Mas Ross foi
dizer à Cynthia que o Mike era talhado para servir o Exército, onde ele iria
aprender a respeitar os outros e a ter boas maneiras. Ross falou isso para ela
depois de uma briga de empurrões e safanões na entrada de carros da casa
dele, de manhã bem cedinho, quando Mike atirou Ross na calçada.
Ross amava Cynthia, mas também tinha uma garota de vinte e dois anos
chamada Beverly que estava grávida de um lho dele, embora Ross jurasse a
Cynthia que amava a ela, e não Beverly. Os dois nem dormiam mais juntos, ele
disse para Cynthia, mas Beverly estava grávida de um lho dele e ele amava
todos os seus lhos, mesmo os que ainda não tinham nascido, e não podia dar
um pé na bunda da mulher assim sem mais nem menos, podia? Ele chorou
quando contou tudo isso para Cynthia. Estava embriagado. (Sempre tinha
alguém embriagado naquela época.) Imagino bem a cena.
Ross havia se formado no Instituto Politécnico da Califórnia e foi direto
trabalhar na Nasa, numa operação em Mountain View. Trabalhou lá por dez
anos, até que o mundo desabou em cima dele. Nunca estive com ele, como já
disse, mas nos falamos pelo telefone diversas vezes, sobre isso e aquilo. Uma
vez liguei para ele quando eu estava embriagado e eu e Cynthia discutíamos
várias coisas. Um dos lhos dele atendeu o telefone e quando Ross entrou na
linha perguntei se, no caso de eu tirar meu time de campo (eu não tinha a
menor intenção de tirar meu time de campo, claro; era só uma provocação),
ele pretendia bancar Cynthia e nossos lhos. Ele disse que estava trinchando
uma carne assada, foi o que ele disse, e que eles estavam sentando à mesa para
começar a jantar, ele e os lhos. Será que ele podia telefonar mais tarde?
Desliguei. Quando ele ligou, mais ou menos uma hora depois, eu já tinha
esquecido o telefonema anterior. Cynthia atendeu o telefone e disse: “Sim”, e
depois “Sim” outra vez, e aí entendi que era o Ross e que ele estava
perguntando se eu estava embriagado. Agarrei o telefone. “E então, você vai
bancar minha mulher e meus lhos ou não vai?” Ele disse que lamentava
muito a sua parte naquela história toda e que não, não achava que pudesse
bancar todos eles. “Então a sua resposta é Não, você não pode bancar a vida
deles”, falei, e olhei para Cynthia como se isso pusesse um ponto- nal no
assunto. Ele disse: “Sim, a resposta é não”. Mas Cynthia não piscou um olho
sequer. Mais tarde me dei conta de que os dois já tinham conversado tudo a
respeito daquele assunto, por isso não houve surpresa. Ela já sabia.
Ele tinha trinta e poucos anos quando começou a ir para o buraco. Sempre
que aparecia uma oportunidade, eu avacalhava o Ross. Chamava-o de “fuinha”
por causa da sua fotogra a. “É com isso que o namorado da sua mãe se
parece”, eu dizia aos meus lhos se eles estivessem por perto e estivéssemos
conversando. “Parece uma fuinha.” Nós ríamos. Ou então “Senhor Conserta-
Tudo”. Esse era meu apelido predileto para ele. Que Deus abençoe e proteja
você, Ross. Não tenho nada contra você agora. Mas, naquela época em que eu
o chamava de fuinha ou de Senhor Conserta-Tudo e ameaçava sua vida, ele
era uma espécie de herói derrotado para meus lhos e também para Cynthia,
imagino, porque tinha ajudado a colocar os homens na lua. Ele havia
trabalhado, toda hora vinham me dizer isso, no projeto dos foguetes para a lua
e era amigo íntimo de Buzz Aldren e Neil Armstrong. Ele contou a Cynthia e
Cynthia contou aos lhos, que depois me contaram, que quando os
astronautas viessem à cidade ele iria nos apresentar a eles. Mas os astronautas
nunca vieram à cidade ou, se vieram, se esqueceram de procurar Ross. Pouco
depois das sondas lunares, a roda da fortuna girou e Ross passou a beber mais.
Passou a faltar no trabalho. Em algum momento dessa época, começaram os
problemas com sua primeira mulher. No nal ele já estava levando bebida para
o trabalho numa garrafa térmica. Montaram lá um aparato supermoderno, eu
fui ver — cafeterias chiques, salas de jantar para executivos, um monte de
coisas assim, máquinas de café expresso Mr. Coffee em todos os escritórios.
Mas Ross levava sua garrafa térmica para o trabalho e depois de um tempo o
pessoal começou a perceber e a falar. Ele foi demitido, ou então pediu
demissão — ninguém jamais conseguia me dar uma resposta objetiva quando
eu perguntava. Ele continuou bebendo, claro. É isso que a gente faz. Depois
começou a trabalhar em aparelhos detonados, a consertar televisores e a fazer
reparos em automóveis. Interessava-se por astrologia, aura, I Ching — essa
história toda. Não duvido que fosse um cara bem inteligente, interessante e
diferente, como a maioria dos nossos ex-amigos. Falei para Cynthia que eu
tinha certeza de que ela não se interessaria por ele (eu não conseguia de jeito
nenhum usar a palavra “amor” para falar daquele relacionamento) se no fundo
ele não fosse, basicamente, um homem bom. “Um de nós”, era assim que eu o
classi cava, tentando ser generoso. Ele não era um homem mau ou nocivo, o
Ross. “Ninguém é nocivo”, falei uma vez para Cynthia, quando discutíamos o
meu caso.
Meu pai morreu dormindo, bêbado, oito anos atrás. Era uma noite de sexta-
feira e ele tinha cinquenta e quatro anos. Chegou em casa do seu trabalho na
serraria, tirou umas salsichas do congelador para o seu café da manhã do dia
seguinte e sentou-se à mesa da cozinha, onde abriu uma garrafa de burbom
Four Roses. Andava de muito bom humor naquela ocasião, feliz por voltar a
trabalhar depois de ter cado três ou quatro anos sem emprego por causa de
uma septicemia e depois por alguma outra coisa que o obrigou a fazer um
tratamento com choques elétricos. (Eu estava casado e morava em outra
cidade naquela época. Eu tinha os lhos e o emprego, problemas su cientes e
assim não podia acompanhar muito bem a vida dele.) Naquela noite ele foi
para a sala com sua garrafa, um balde de cubos de gelo e um copo, cou
bebendo e vendo televisão até minha mãe voltar do seu trabalho numa
cafeteria.
Os dois trocaram algumas palavras sobre o uísque. Ela não era de beber
muito. Depois que eu cresci, só vi minha mãe beber no Dia de Ação de
Graças, no Natal e no Ano-Novo — batida com ovos, leite e açúcar ou rum
com manteiga, e nunca bebia muito. A única vez em que ela acabou bebendo
demais, anos antes (eu soube disso pelo meu pai, que ria quando contava a
história), eles foram a um barzinho nos arredores de Eureka e ela tomou
várias doses de uísque com limão e açúcar. Quando os dois entraram no carro
para ir embora, ela começou a passar mal e teve que abrir a porta. De algum
jeito a dentadura dela saltou da boca, o carro andou um pouco para a frente e
um pneu passou por cima da dentadura. Depois disso ela nunca mais bebeu, a
não ser nos dias de festa em casa, e mesmo assim nunca bebia demais.
Meu pai continuou bebendo naquela noite de sexta-feira e tentou ignorar
minha mãe, que, sentada na cozinha, fumava e tentava escrever uma carta
para sua irmã em Little Rock. Por m ele se levantou e foi dormir. Minha mãe
foi para a cama não muito tempo depois, quando já teve certeza de que ele
estava dormindo. Depois contou que não percebeu nada fora do comum a não
ser talvez que o ronco dele parecia mais pesado e mais profundo, e também
que ela não conseguia fazê-lo virar para o lado. Mas ela dormiu. Acordou
quando os músculos do esfíncter e da bexiga do meu pai se soltaram. Foi ao
amanhecer. Os passarinhos cantavam. Meu pai ainda estava deitado de costas,
de olhos fechados e boca aberta. Minha mãe olhou para ele e gritou seu nome.
Continuei rodando de carro. Agora já estava escuro. Segui até minha casa,
todas as luzes acesas, mas o carro de Cynthia não estava na entrada. Fui a um
bar onde eu às vezes cava bebendo e telefonei para casa. Katy atendeu e disse
que sua mãe não estava, e onde é que eu estava? Ela precisava de cinco dólares.
Gritei qualquer coisa e desliguei. Depois liguei a cobrar para uma mulher a
mil e trezentos quilômetros de distância que fazia meses que eu não via, uma
mulher boa que, na última vez que eu tinha visto, disse que ia rezar por mim.
Ela aceitou a ligação a cobrar. Perguntou onde eu estava. Perguntou como
eu estava. “Você vai bem?”, disse ela.
Conversamos. Perguntei sobre o marido dela. Tinha sido meu amigo e
agora estava morando longe dela e dos lhos.
“Ele continua em Portland”, disse ela. “Como foi que tudo isso aconteceu
com a gente?”, perguntou ela. “No início a gente vivia bem.” Ficamos
conversando mais um tempo; depois ela disse que ainda me amava e que ia
continuar rezando por mim.
“Reze por mim”, falei. “Sim.” Depois nos despedimos e desligamos o
telefone.
Mais tarde telefonei de novo para casa, mas dessa vez ninguém atendeu.
Disquei o número da minha mãe. Ela atendeu o telefone no primeiro toque,
com uma voz cautelosa, como se já estivesse à espera de alguma encrenca.
“Sou eu”, falei. “Desculpe estar ligando.”
“Não, não, querido, eu estava acordada”, disse ela. “Onde você está? Algum
problema? Pensei que você ia vir aqui hoje. Esperei você. Você não está em
casa?”
“Não estou em casa”, falei. “Acabei de ligar para lá.”
“O Velho Ken passou por aqui hoje”, prosseguiu ela. “Aquele velho sacana.
Ele veio à tarde. Fazia um mês que eu não o via e aí ele aparece de repente,
aquele velho. Não gosto dele. Só quer saber de car falando de si mesmo e de
contar vantagem, contar como vivia em Guam, dizer que tinha três
namoradas ao mesmo tempo e que viajou para tudo quanto é lugar. Não passa
de um velho metido a besta, isso é que ele é. Eu o conheci naquele clube de
dança de que falei para você, mas não gosto dele.”
“Tem algum problema se eu for para aí?”, perguntei.
“Querido, por que você não vem? Vou preparar alguma coisa para a gente
comer. Estou com fome. Desde a tarde que não como nada. O Velho Ken
trouxe umas comidas do KFC hoje à tarde. Venha que preparo uns ovos
mexidos para nós. Quer que eu pegue você aí? Querido, você está bem?”
Fui de carro até a casa dela. Minha mãe me beijou quando entrei. Virei o
rosto. Senti ódio dela por causa do cheiro de vodca. A televisão estava ligada.
“Lave as mãos”, disse ela enquanto me observava. “Está tudo pronto.”
Depois ela arrumou minha cama no sofá. Fui ao banheiro. Ela guardava um
pijama do papai lá. Peguei o pijama na gaveta, olhei para ele e comecei a
trocar de roupa. Quando saí ela estava na cozinha. Arrumei o travesseiro e me
deitei. Ela terminou o que estava fazendo, apagou a luz da cozinha e sentou-se
na ponta do sofá.
“Querido, não queria ser eu a contar isso para você”, disse ela. “Parte meu
coração ter de dizer isso, mas até seus lhos já sabem, e foram eles que me
contaram. Nós conversamos sobre o assunto. Mas a Cynthia está saindo com
outro homem.”
“Não tem problema”, eu disse. “Eu já sabia”, falei e olhei para a televisão.
“O nome dele é Ross e é um alcoólatra. Como eu.”
“Querido, você precisa fazer alguma coisa para se cuidar”, disse ela.
“Eu sei”, falei. Continuei olhando para a televisão.
Ela se inclinou para mim e me deu um abraço. Me abraçou durante um
minuto. Depois me largou e enxugou os olhos. “Vou acordar você de manhã”,
disse ela.
“Não tenho muito o que fazer amanhã. Posso car dormindo mais um
tempo depois que você sair.” Pensei: depois que você levantar, depois que você
for ao banheiro e trocar de roupa, aí eu vou para a sua cama, me deito lá,
cochilo, enquanto ouço seu rádio ligado na cozinha, dando as notícias e a
previsão do tempo.
“Querido, ando muito preocupada com você.”
“Não se preocupe”, falei. Balancei a cabeça.
“Agora você tem que descansar um pouco”, disse ela. “Precisa dormir.”
“Vou dormir. Estou morto de sono.”
“Fique vendo televisão o quanto quiser”, disse ela.
Assenti com a cabeça.
Ela se inclinou e me beijou. Seus lábios pareciam machucados e inchados.
Puxou a manta em cima de mim. Depois foi para o quarto. Deixou a porta
aberta e um minuto depois eu já podia ouvir seu ronco.
Fiquei deitado olhando para a televisão. Havia imagens de homens de
uniforme na tela, um rumor baixo, depois tanques e um homem usando um
lança-chamas. Eu não conseguia ouvir o som, mas não queria me levantar.
Fiquei olhando até sentir os olhos se fecharem. Mas acordei assustado, o
pijama molhado de suor. Uma luz enevoada enchia a sala. Um rugido vinha na
minha direção. A sala clamava. Continuei deitado. Não me mexi.
Tanta água tão perto de casa
Stuart acha que está me deixando dormir até mais tarde esta manhã. Mas eu
já estava acordada muito antes de o despertador tocar, pensando, deitada do
outro lado da cama, longe de suas pernas peludas e de seus dedos grossos
adormecidos. Ele despacha o Dean para a escola, depois faz a barba, troca de
roupa e vai trabalhar. Por duas vezes olha dentro do quarto e tosse de leve,
mas continuo de olhos fechados.
Na cozinha, acho um bilhete dele assinado “Com amor”. Fico sentada no
canto onde a gente toma café da manhã sob o sol, bebo café e deixo um
círculo de café no bilhete. O telefone parou de tocar, já é um bom começo.
Nenhum telefonema desde a noite passada. Olho o jornal e viro as páginas
para a frente e para trás em cima da mesa. Então trago o jornal para perto de
mim e leio o que está escrito. O corpo ainda continua sem identi cação,
ninguém o reclamou, ninguém deu pela falta da garota. Mas nas últimas vinte
e quatro horas homens a examinaram, meteram coisas dentro dela, cortaram,
pesaram, mediram, puseram de volta lá dentro, costuraram, em busca da
causa exata e da hora exata da morte. Em busca da prova de estupro. Tenho
certeza de que eles estão torcendo para que seja um caso de estupro. Um
estupro deixaria tudo mais fácil de entender. O jornal diz que ela vai ser levada
para o necrotério da Funerária Keith & Keith, que vai cuidar de tudo. As
autoridades pedem que quem tiver informações etc.
Duas coisas são certas: 1) as pessoas já não se importam com o que acontece
com os outros, e 2) nada mais faz diferença nenhuma de verdade. Vejam o que
aconteceu. E mesmo assim nada vai mudar entre mim e o Stuart. Mudar de
verdade, quero dizer. Vamos envelhecer, nós dois, já se pode ver no rosto da
gente, no espelho do banheiro, por exemplo, nas manhãs em que usamos o
banheiro ao mesmo tempo. E certas coisas à nossa volta vão mudar, se tornar
mais fáceis ou mais difíceis, uma coisa aqui, outra ali, mas nada jamais será
diferente de verdade. Acredito nisso. Já tomamos nossas decisões, nossas vidas
foram postas em movimento e vão seguir adiante até a hora em que vão parar.
Mas e daí se isso for mesmo verdade? Quer dizer, a gente acredita nisso, e
mantém isso escondido, até que um dia acontece uma coisa que deveria
mudar tudo, só que aí a gente vê que, no nal das contas, nada vai mudar. E
daí? Enquanto isso, as pessoas à nossa volta continuam a falar e a agir como se
a gente fosse a mesma pessoa do dia anterior, ou da noite anterior, ou de cinco
minutos antes, mas na verdade a gente está passando por uma crise, o coração
sente que sofreu um estrago...
O passado está obscurecido. É como se houvesse uma película por cima
daqueles anos iniciais. Nem tenho certeza de que as coisas que me lembro que
aconteceram tenham acontecido de fato comigo. Havia uma garota, que tinha
um pai e uma mãe — o pai era gerente de um pequeno bar onde a mãe
trabalhava como garçonete e caixa —, uma garota que, como num sonho,
passou pela escola primária, pela escola secundária e depois de um ou dois
anos pela escola de secretariado. Mais tarde, muito mais tarde — o que
aconteceu nesse meio-tempo? —, lá está ela em outra cidade, trabalhando
como recepcionista numa rma de componentes eletrônicos, e faz amizade
com um engenheiro que pede para sair com ela. No nal, vendo que este é o
objetivo dele, ela se deixa seduzir. Naquele momento ela tem uma intuição,
uma sacada repentina a respeito da sedução, que mais tarde, por mais que ela
tente, não consegue se lembrar. Após um breve período, os dois resolvem se
casar, mas o passado, o passado dela, já está escoando depressa. O futuro é
uma coisa que ela não consegue imaginar. Ela sorri, como se tivesse um
segredo, quando pensa no futuro. Certa vez, durante uma briga especialmente
séria, o motivo ela agora não consegue mais lembrar, mais ou menos cinco
anos depois de se casarem, ele diz a ela que um dia este caso (palavras dele:
“este caso”) ainda vai terminar em violência. Ela se lembra disso. Arquiva essa
informação em algum canto e começa a repeti-la em voz alta de vez em
quando. Às vezes, passa a manhã inteira de joelhos na caixa de areia atrás da
garagem, brincando com Dean e mais um ou dois amiguinhos dele. Mas toda
tarde, às quatro horas, a cabeça dela começa a doer. Segura a testa e sente-se
zonza de tanta dor. Stuart pede que ela vá consultar um médico e ela vai,
intimamente satisfeita com a solicitude do médico. Viaja por um tempo para
um lugar recomendado pelo médico. A mãe do marido vem às pressas de
Ohio para tomar conta da criança. Mas ela, Claire, estraga tudo e volta para
casa poucas semanas depois. A mãe do marido deixa a casa e aluga um
apartamento do outro lado da cidade e ca lá empoleirada, como que à
espera. Certa noite, na cama, quando os dois estão quase dormindo, Claire
conta a ele que ouviu umas pacientes da clínica conversando sobre felação.
Acha que é uma coisa que ele talvez gostasse de ouvir. Stuart gosta de saber
daquilo. Afaga o braço dela. Tudo vai car bem, diz ele. De agora em diante,
tudo vai ser diferente e melhor para os dois. Stuart ganhou uma promoção e
um aumento substancial. Compraram um carro novo, uma caminhonete, o
carro dela. Vão viver o aqui e o agora. Ele diz que, pela primeira vez em
muitos anos, se sente capaz de relaxar. No escuro, continua a afagar o braço
dela... Continua a jogar cartas e boliche regularmente. Continua a pescar com
seus três amigos.
Naquela noite, acontecem três coisas: Dean diz que as crianças da escola
contaram para ele que seu pai achou um cadáver no rio. Ele agora quer saber
mais a respeito daquilo.
Stuart explica rapidamente, deixando de fora boa parte da história, só diz
que, sim, ele e mais três homens acharam um cadáver enquanto estavam
pescando.
“Que tipo de cadáver?”, pergunta Dean. “Era uma garota?”
“Era, sim, era uma garota. Uma mulher. Depois a gente chamou o
delegado.” Stuart olha para mim.
“O que ele falou?”, quer saber Dean.
“Falou que ia cuidar do caso.”
“E como é que era? Dava medo?”
“Já chega”, digo. “Lave o seu prato, Dean, e depois pode ir.”
“Mas como é que era?”, insiste Dean. “Quero saber.”
“Você ouviu o que eu falei”, digo. “Não me ouviu, Dean? Dean!” Quero
sacudi-lo. Quero sacudi-lo até ele gritar.
“Faça o que sua mãe está dizendo”, lhe diz Stuart com voz serena. “Era só
um cadáver, e não há mais nada para contar.”
Estou limpando a mesa quando Stuart vem por trás e toca meu braço. Seus
dedos queimam. Tenho um sobressalto, quase largo um prato.
“O que há com você?”, ele pergunta, baixando a mão. “Claire, o que é?”
“Você me assustou”, respondo.
“É disso mesmo que estou falando. É só eu tocar em você e você pula de
susto.” Fica parado na minha frente com um sorrisinho, tentando captar meu
olhar, e aí passa o braço em volta da minha cintura. Com a outra mão, pega a
minha mão livre e a coloca na parte da frente de sua calça.
“Por favor, Stuart.” Puxo a mão, ele recua e estala os dedos.
“Dane-se, então”, diz. “Que seja como você quer. Mas depois lembre bem.”
“Lembrar o quê?”, pergunto depressa. Olho para ele e prendo a respiração.
Ele dá de ombros. “Nada, nada”, diz.
A segunda coisa que acontece é que, enquanto estamos vendo tevê naquela
noite, ele na sua poltrona de couro reclinável, eu no sofá com um cobertor e
uma revista, a casa no maior silêncio, exceto pela televisão, uma voz
interrompe o programa para dizer que a garota assassinada tinha sido
identi cada. Detalhes completos vão ser apresentados no noticiário das onze.
Olhamos um para o outro. Depois de alguns minutos, ele se levanta e diz
que vai preparar um drinque. Eu também não quero um?
“Não”, respondo.
“Não me importo de beber sozinho”, diz ele. “Achei melhor perguntar.”
Dá para ver que ele cou vagamente ofendido e desvio os olhos,
envergonhada, mas também zangada.
Ele ca na cozinha durante um bom tempo, mas volta com o drinque
quando o noticiário começa.
Primeiro o locutor repete a história dos quatro pescadores da região que
acharam o corpo. Depois a tevê mostra uma foto da garota na formatura do
ensino médio, uma garota de cabelo escuro, de rosto redondo e lábios
sorridentes e carnudos. Há um vídeo dos pais da garota entrando no
necrotério para fazer o reconhecimento do corpo. Perplexos, tristes, eles
arrastam os pés pela calçada, até a escadinha da porta, onde um homem de
terno escuro está à espera, segurando a porta. Em seguida, parece que só se
passaram alguns segundos, como se os dois tivessem entrado pela porta, dado
meia-volta e vindo para fora de novo, e o mesmo casal é mostrado saindo do
necrotério, a mulher chora, cobrindo o rosto com um lenço, o homem se
detém tempo su ciente para dizer a um repórter: “É ela, é a Susan. Não
consigo falar mais nada no momento. Espero que prendam a pessoa ou as
pessoas que zeram isso, para que não aconteça de novo. Toda essa
violência...”. Ele avança claudicante na direção da câmera de tevê. Depois o
homem e a mulher entram num carro velho e se afastam em direção ao
tráfego do nal da tarde.
O locutor diz que a garota, Susan Miller, tinha saído do seu emprego como
caixa da bilheteria de um cinema em Summit, uma cidade cento e noventa
quilômetros ao norte da nossa cidade. Um carro verde, modelo novo, parou
na porta do cinema, e a garota, que segundo testemunhas parecia estar ali
esperando, se aproximou do carro e entrou, o que leva as autoridades a
descon ar de que o motorista fosse amigo dela, ou pelo menos conhecido. As
autoridades gostariam de falar com o motorista do carro verde.
Stuart tosse de leve, depois se recosta na poltrona e toma um gole da sua
bebida.
A terceira coisa que acontece é que depois do noticiário Stuart se
espreguiça, boceja e me olha. Eu me levanto e começo a fazer uma cama para
mim no sofá.
“O que você está fazendo?”, pergunta ele, perplexo.
“Estou sem sono”, respondo, evitando os olhos dele. “Acho que vou car
acordada até mais tarde e depois ler alguma coisa até pegar no sono.”
Ele olha bem para mim enquanto abro um lençol em cima do sofá. Quando
vou pegar um travesseiro, ele ca parado na porta do quarto, barrando o meu
caminho.
“Vou perguntar mais uma vez”, diz ele. “Que diabo você acha que está
fazendo?”
“Preciso car sozinha esta noite”, respondo. “Só preciso de um tempo para
pensar.”
Ele está ofegante. “Acho que você está cometendo um grande erro agindo
assim. Acho melhor você pensar bem no que está fazendo. Claire?”
Não consigo responder. Não sei o que quero dizer. Viro e começo a prender
a beirada do cobertor embaixo do sofá. Ele ca me observando por mais um
minuto e depois vejo que encolhe os ombros. “Faça como quiser, então. Não
estou nem aí para o que você faz”, diz ele. Vira e segue pelo corredor coçando
o pescoço.
Hoje de manhã, leio no jornal que o velório de Susan Miller será na Capela
do Pinheiral, em Summit, às duas da tarde. E também que a polícia tomou o
depoimento de três pessoas que viram a garota entrar no Chevrolet verde.
Mas ainda não conseguiram o número da placa do carro. Porém estão
chegando mais perto do criminoso, e a investigação prossegue. Fico ali sentada
por um bom tempo segurando o jornal, pensando, depois telefono para
marcar hora no cabeleireiro.
Sento embaixo do secador com uma revista no colo e deixo Millie fazer
minhas unhas.
“Amanhã vou a um enterro”, digo depois que conversamos um pouco sobre
uma garota que não trabalha mais ali.
Millie ergue os olhos para mim e depois volta a olhar para os meus dedos.
“Lamento saber disso, senhora Kane. Lamento muito.”
“É o enterro de uma jovem”, digo.
“É o pior tipo que tem. Minha irmã morreu quando eu era pequena e até
hoje não superei isso. Quem foi que morreu?”, pergunta depois de um
instante.
“Uma garota. Não éramos muito próximas, sabe, mesmo assim...”
“Que pena. Lamento muito, mesmo. A gente vai deixar você bem-
arrumada, não se preocupe. Dê uma olhada, que tal cou?”
“Ficou... bom. Millie, alguma vez você já quis ser outra pessoa, ou então
não ser ninguém, nada, absolutamente nada?”
Ela me olha. “Não posso dizer que já senti isso, não. Não, se eu fosse outra
pessoa, iria ter medo de que pudesse não gostar do que eu era.” Ela segura
meus dedos e parece car pensando em alguma coisa por um instante. “Não
sei, não sei mesmo... Deixe eu ver a outra mão agora, senhora Kane.”
Às onze da noite faço a cama de novo no sofá, e dessa vez Stuart só olha
para mim e mais nada, corre a língua por trás dos lábios e segue pelo corredor,
em direção ao quarto. Durante a noite, acordo e escuto o vento batendo o
portão contra a cerca. Não quero car acordada e permaneço deitada por
muito tempo, de olhos fechados. Por m, me levanto e sigo pelo corredor com
o meu travesseiro. A luz do quarto está acesa e Stuart está deitado de costas,
de boca aberta, respirando pesado. Vou ao quarto de Dean e me deito ao lado
dele. Durante o sono, ele se mexe para me dar espaço. Fico deitada por um
momento e depois o abraço, meu rosto contra o seu cabelo.
“O que foi, mãe?”, diz ele.
“Nada, meu bem. Durma outra vez. Não é nada, está tudo bem.”
Acordo quando ouço o despertador de Stuart, ponho o café no fogo e
preparo o café da manhã enquanto ele faz a barba.
Ele aparece na porta da cozinha, uma toalha por cima do ombro nu,
pensativo.
“Já passei o café”, digo. “Os ovos vão car prontos num minuto.”
Ele faz que sim com a cabeça.
Acordo o Dean e nós três tomamos o café da manhã. Uma ou duas vezes,
Stuart me olha como se quisesse dizer alguma coisa, mas toda vez que isso
acontece eu pergunto ao Dean se ele quer mais leite, mais torradas etc.
“Vou telefonar para você hoje”, diz Stuart quando abre a porta.
“Acho que não vou estar em casa hoje”, digo depressa. “Tenho um monte de
coisas para fazer hoje. Na verdade, acho que vou chegar tarde para o jantar.”
“Tudo bem. Está certo.” Ele passa a sua pasta para a outra mão. “Que tal se
a gente fosse jantar fora hoje? O que você acha?” Ele continua me olhando. Já
esqueceu a garota. “Você está bem?”
Estendo o braço para ajeitar a gravata dele, depois baixo a mão. Stuart quer
me dar um beijo de despedida. Recuo um passo. “Então, um bom dia para
você”, diz ele, a nal. Dá as costas e segue pela calçada até seu carro.
Visto-me com cuidado. Experimento um chapéu que não uso há alguns
anos e me olho no espelho. Depois tiro o chapéu, me maquio de leve e escrevo
um bilhete para o Dean.
Querido, mamãe tem que fazer umas coisas à tarde, mas depois volto para casa.
Fique dentro de casa ou no quintal até que um de nós chegue.
Com amor
Olho para a palavra “amor” e depois a sublinho. Enquanto escrevo o bilhete,
percebo que não sei se tem que fazer está certo. Nunca tive essa dúvida. Penso
no assunto por um tempo e depois risco e escrevo tem de fazer.
Paro a m de reabastecer o carro e pergunto como faço para chegar a
Summit. Barry, um mecânico de quarenta anos, de bigode, vem do banheiro e
se apoia no para-lama dianteiro, enquanto o outro homem, Lewis, põe a
mangueira no tanque e começa a lavar lentamente o para-brisa.
“Summit”, diz Barry, me olhando enquanto desce os dedos até as pontas do
bigode. “Não existe um caminho melhor para chegar a Summit, senhora
Kane. Por qualquer lado que a senhora vá, dá umas duas horas, duas horas e
meia de viagem. Fica do outro lado da montanha. É uma viagem puxada para
uma mulher. Summit? O que é que tem lá em Summit, senhora Kane?”
“Preciso tratar de uns negócios”, respondo, vagamente confusa. Lewis foi
atender outro cliente.
“Ah. Puxa, se eu não estivesse tão preso aqui”, faz um gesto com o polegar
apontando para o posto, “eu iria dirigindo até Summit para a senhora e depois
voltava. A estrada não é lá essas coisas. Sabe, não é muito boa, tem uma
porção de curvas e tudo mais.”
“Eu me viro. Mesmo assim, obrigada.” Ele se apoia no para-lama. Posso
sentir os olhos dele esticados enquanto abro a bolsa.
Barry pega o cartão de crédito. “Não dirija à noite”, diz. “A estrada não é
nada boa, como já falei, e, apesar de eu até apostar que a senhora não vai ter
problemas mecânicos no caminho com este carro, eu conheço ele, a gente
nunca sabe quando um pneu vai estourar e coisas assim. Só para garantir, vou
dar uma checada nos pneus.” Ele toca um dos pneus da frente com o bico do
sapato. “Vamos suspender o carro ali no elevador. Demora só um minuto.”
“Não, não, está tudo certo. Na verdade, não posso demorar mais. Acho que
está tudo bem com os pneus.”
“É rápido”, diz ele. “Só para garantir.”
“Eu já disse que não. Não! Acho que os pneus estão bem. Agora eu preciso
ir. Barry...”
“Oi, senhora Kane.”
“Eu preciso ir.”
Assino alguma coisa. Ele me dá o comprovante, o cartão, a nota scal.
Ponho tudo dentro da bolsa. “Vá com calma”, diz ele. “A gente se vê.”
Enquanto espero uma chance de voltar ao trânsito na rua, olho para trás e
vejo Barry me olhando. Fecho os olhos e depois abro de novo. Ele acena.
Viro no primeiro sinal, depois viro de novo e sigo em frente, até chegar à
estrada e ler a placa:
SUMMIT 188 quilômetros. São dez e meia da manhã e faz
calor.
A estrada margeia a cidade, depois passa por uma região de fazendas, por
campos de aveia, beterraba e pomares de macieira, e por pequenos rebanhos
que pastam aqui e ali em campos abertos. Depois tudo se modi ca, as
fazendas cam cada vez mais escassas, agora mais parecem barracões do que
casas, depósitos de madeira tomam o lugar dos pomares. De uma hora para a
outra, estou na montanha e, à direita, lá embaixo, avisto relances do rio
Naches.
Dali a pouco vejo uma caminhonete verde atrás de mim, e ela ca atrás de
mim por vários quilômetros. Toda vez reduzo a velocidade na hora errada, na
esperança de que ela me ultrapasse, e depois aumento a velocidade, também
na hora errada. Seguro o volante com força, até meus dedos doerem. Depois,
num longo trecho livre, ele de fato me ultrapassa, mas ca emparelhado
comigo por um instante, um homem de cabelo bem curto, de camisa azul de
trabalho e trinta e poucos anos, e olhamos um para o outro. Em seguida, ele
acena, dá duas buzinadas e passa na minha frente.
Reduzo a velocidade e acho um lugar, uma estrada de terra à beira do
acostamento, paro o carro e desligo o motor. Dá para ouvir o rio em algum
lugar abaixo das árvores. À minha frente, a estrada de terra avança por entre as
árvores. Depois ouço a caminhonete voltando.
Ligo o motor na hora em que a caminhonete para atrás de mim. Tranco as
portas e levanto os vidros. O suor brota no meu rosto e nos braços na hora em
que engato a marcha, mas não há espaço para manobrar.
“Você está bem?”, pergunta o homem ao se aproximar do carro. “Alô. Alô,
você aí dentro.” Ele bate de leve no vidro. “Você está bem?” Apoia os braços
na porta e aproxima bem o rosto da janela.
Olho bem para ele e não consigo dizer nada.
“Depois que ultrapassei você, diminuí um pouco a velocidade”, diz ele.
“Mas quando vi que você não aparecia no retrovisor, parei e esperei uns
minutos. Como você continuava não aparecendo na estrada, achei melhor
voltar e dar uma olhada. Está tudo bem? Por que está trancada aí dentro?”
Balanço a cabeça.
“Vamos, abaixe o vidro. Ei, tem certeza de que você está bem? Hein? Sabia
que não é bom uma mulher car rodando pelo campo assim sozinha?” Ele
balança a cabeça, olha para a estrada e depois de novo para mim. “Vamos,
abaixe o vidro, o que houve? A gente não consegue conversar desse jeito.”
“Por favor, preciso ir.”
“Abra a porta, está bem?”, diz ele, como se não estivesse ouvindo. “Pelo
menos abaixe o vidro. Você vai sufocar aí dentro.” Olha para os meus peitos e
as minhas pernas. A saia tinha subido um pouco acima dos joelhos. Os olhos
dele se demoram nas minhas pernas, e eu co parada, com medo de me
mexer.
“Eu quero me sufocar”, digo. “Estou me sufocando, não está vendo?”
“Mas que diabo é isto?”, exclama e se afasta da porta. Dá as costas e volta
para a caminhonete. Então, no espelho retrovisor, vejo que ele está voltando e
fecho os olhos.
“Você não quer que eu acompanhe você até Summit? Eu não me importo,
não. Estou com tempo livre esta manhã.”
Balanço a cabeça de novo.
Ele hesita e depois encolhe os ombros. “Muito bem, madame, como a
senhora quiser”, diz. “Está certo.”
Espero até ele chegar à estrada e em seguida dou marcha a ré. Ele engrena a
primeira e parte devagar, olhando para trás, na minha direção, pelo espelho
retrovisor. Paro o carro no acostamento e reclino a cabeça sobre o volante.
O caixão está fechado e coberto por pétalas de ores. O órgão começa a
tocar pouco depois que eu me sento perto do fundo da capela. As pessoas
começam a assinar os nomes no livro de registro e a procurar cadeiras,
algumas de meia-idade e mais velhas, mas a maioria é de vinte e poucos anos
ou até mais jovem. São pessoas que parecem desconfortáveis de paletó e
gravata, paletó esporte e calças folgadas, vestidos escuros e luvas de couro.
Um rapaz de calça boca de sino e camisa amarela de manga curta senta perto
de mim e começa a morder os lábios. Uma porta abre na lateral da capela, eu
levanto os olhos e por um minuto o estacionamento me faz lembrar uma
campina. Mas aí o sol re ete com força nas janelas dos carros. A família entra
em grupo e vai para uma área protegida por uma cortina, mais no canto. As
cadeiras rangem quando eles se acomodam. Em poucos minutos, um homem
magro, louro, de terno escuro se levanta e pede que baixemos a cabeça. Faz
uma breve prece por nós, os vivos, e quando termina pede que rezemos em
silêncio pela alma de Susan Miller, que nos deixou. Fecho os olhos e lembro a
foto dela no jornal e na tevê. Vejo a moça saindo do cinema e entrando no
Chevrolet verde. Depois imagino sua viagem pelo rio, o corpo nu batendo nas
pedras, colhido pelos galhos, o corpo boiando e rodando, o cabelo escorrendo
pela água. Depois as mãos e o cabelo se prendendo nos galhos curvos,
agarrando, até surgirem quatro homens que cam olhando para ela. Posso até
ver um homem bêbado (Stuart?) que a segura pelo pulso. Será que alguém
aqui sabe disso? E se essas pessoas soubessem? Olho em volta para os outros
rostos. Há uma relação que deve ser estabelecida entre essas coisas, esses fatos,
esses rostos, e eu queria descobrir qual é. Minha cabeça dói por causa desse
esforço.
O homem fala das qualidades de Susan Miller: alegria e beleza, graça e
entusiasmo. Por trás da cortina fechada, uma pessoa tosse de leve, outra
soluça. A música do órgão começa. A cerimônia terminou.
Junto com os outros, na la, eu passo devagar diante do caixão. Em seguida,
vou até a porta e saio para a luz forte e quente da tarde. Uma mulher de meia-
idade, que desce mancando a escadinha à minha frente, chega à calçada, olha
em volta e esbarra os olhos em mim. “Bem, ele foi preso”, diz. “Se é que serve
de consolo. Foi preso hoje de manhã. Ouvi no rádio antes de vir para cá. Um
rapaz aqui mesmo da cidade. Um cabeludo, já era de prever.” Seguimos juntas
pela calçada quente. As pessoas estão ligando os carros. Estendo a mão e me
apoio num parquímetro. A luz do sol incide nos capôs e nos para-lamas
reluzentes. Minha cabeça gira. “Ele confessou ter tido relações com ela
naquela noite, mas diz que não a matou.” Bufa. “Vão deixar o sujeito solto sob
condicional e depois ele vai car livre.”
“Talvez não tenha agido sozinho”, digo. “Eles vão ter de se certi car. Talvez
ele esteja dando cobertura a alguém, um irmão ou amigos.”
“Eu conhecia essa menina desde criança”, continua a mulher, e seus lábios
tremem. “Ela ia muito à minha casa, eu fazia biscoitos e ela cava comendo na
frente da televisão.” Desvia os olhos e começa a balançar a cabeça, enquanto
as lágrimas escorrem por suas faces.
3.
Stuart está sentado à mesa com um drinque à sua frente. Tem os olhos
vermelhos e, por um instante, penso que ele andou chorando. Olha para mim
e não diz nada. Por um instante desvairado, acho que alguma coisa aconteceu
com o Dean e sinto um aperto no coração.
“Onde é que ele está?”, pergunto. “Cadê o Dean?”
“Lá fora”, diz ele.
“Stuart, estou com tanto medo, tanto medo”, digo, me encostando na porta.
“Está com medo de quê, Claire? Me diga, meu bem, talvez eu possa ajudar.
Eu queria ajudar, ou pelo menos tentar. É para isso que os maridos servem.”
“Não consigo explicar”, digo. “Estou com medo, só isso. Sinto uma
sensação, uma sensação, uma sensação de que...”
Ele esvazia o copo e se levanta, sem tirar os olhos de mim. “Acho que sei do
que você precisa, meu bem. Deixe eu bancar o médico, está bem? Apenas
que bem calma.” Estende um braço em torno da minha cintura e, com a
outra mão, começa a desabotoar meu casaco, depois minha blusa. “Uma coisa
de cada vez”, diz ele, tentando fazer graça.
“Agora não, por favor”, digo.
“Agora não, por favor”, diz ele, brincando. “Por favor nada.” Passa para trás
de mim e me prende com o braço pela cintura. Uma das mãos se en a
embaixo do meu sutiã.
“Pare, pare, pare”, digo. Piso na ponta do pé dele.
E então sou levantada e depois jogada no chão. Fico sentada no chão,
olhando para o alto, na direção dele, meu pescoço dói e minha saia está acima
do joelho. Ele se curva e diz: “Vá para o inferno, então, está ouvindo, piranha?
Tomara que a sua boceta apodreça antes que eu chegue a tocar nela de novo”.
Ele soluça de novo e me dou conta de que ele não pode ajudar, não pode nem
ajudar a si mesmo. Sinto um ataque de compaixão por Stuart enquanto ele vai
para a sala.
Ele não dormiu em casa na noite passada.
Nesta manhã, ores, crisântemos vermelhos e amarelos. Estou tomando
café quando a campainha toca.
“Senhora Kane?”, pergunta o jovem, segurando a caixa de ores.
Faço que sim com a cabeça e fecho mais o roupão na altura do pescoço.
“O homem que telefonou disse que a senhora ia saber quem era.” O rapaz
olha para o meu roupão, aberto no pescoço, e dá um toque no boné. Fica
parado com as pernas separadas, os pés bem plantados no alto da escadinha da
entrada. “Tenha um bom dia”, diz.
Pouco depois, o telefone toca e Stuart diz: “Querida, como você está? Vou
chegar em casa mais cedo, eu amo você. Está ouvindo? Eu amo você,
desculpe, vamos fazer as pazes. Até logo, agora preciso correr”.
Coloco as ores num vaso no centro da sala de jantar e depois passo as
minhas coisas para o quarto extra.
Na noite passada, por volta da meia-noite, Stuart arrebenta a fechadura do
meu quarto. Faz isso só para me mostrar que pode fazer, imagino, porque
quando a porta se abre ele não faz nada, a não ser car ali parado de cueca
com um ar surpreso e abobalhado enquanto a raiva vai se diluindo em seu
rosto. Ele fecha a porta devagar e, minutos depois, ouço Stuart na cozinha
abrindo uma bandeja de cubos de gelo.
Estou na cama quando ele telefona hoje para me dizer que pediu que sua
mãe viesse passar uns dias conosco. Eu espero um minuto, pensando no
assunto, e depois desligo o telefone enquanto ele ainda está falando. Mas
pouco depois ligo para o trabalho dele. Quando a nal ele atende, eu digo:
“Não tem importância, Stuart. Sério, estou dizendo a você que, de um jeito ou
de outro, não tem importância nenhuma”.
“Eu amo você”, diz ele.
Diz mais alguma coisa, eu escuto e assinto com a cabeça, devagar. Me sinto
sonolenta. Depois acordo e digo: “Pelo amor de Deus, Stuart, ela era só uma
criança”.
CATEDRAL
Para Tess Gallagher
E à memória de John Gardner
Penas
N aquele verão Wes alugou uma casa mobiliada no norte de Eureka que
pertencia a um alcoólatra recuperado chamado Chef. Depois ele me
telefonou e disse para eu esquecer o que estivesse fazendo e me mudar com
ele para lá. Wes disse que não estava bebendo mais. Eu já conhecia aquela
história. Mas ele não queria aceitar um não como resposta. Telefonou de novo
e disse: Edna, dá para ver o mar da janela da frente. A gente sente o cheiro do
sal no ar. Prestei atenção na maneira como falava. Não estava enrolando as
palavras. Respondi: Vou pensar. E pensei mesmo. Uma semana depois ele
telefonou outra vez e disse: Você vem? Respondi que ainda estava pensando.
Ele disse: A gente vai recomeçar. Falei: Se eu for para aí, quero que você me
faça uma coisa. É só dizer o que é, respondeu Wes. Falei: Quero que você se
esforce e seja o Wes que eu conhecia antes. O velho Wes. O Wes com quem
me casei. Wes começou a chorar, mas entendi isso como um sinal de suas boas
intenções. Assim, falei: Tudo bem, eu vou.
Wes tinha rompido com a namorada, ou ela tinha rompido com ele — sei lá,
não me interessa. Quando resolvi ir morar com Wes, precisei dar adeus ao
meu amigo. Meu amigo disse: Você está cometendo um erro. Ele disse: Não
faça isso comigo. O que vai ser de nós?, disse ele. Falei: Preciso fazer isso pelo
bem do Wes. Ele está tentando car sóbrio. Você lembra como é. Eu lembro,
respondeu meu amigo, mas não quero que você vá embora. Falei: Vou passar
o verão. Depois resolvo. Vou voltar, falei. Ele disse: Mas e eu? O que você vai
fazer pelo meu bem? Não volte mais, disse ele.
Tomamos café, refrigerante e todos os tipos de suco naquele verão. O verão
inteiro, era o que tínhamos para beber. De repente eu estava desejando que o
verão não terminasse mais. Eu não era boba, mas depois de um mês morando
com o Wes na casa do Chef coloquei a aliança de casamento no dedo outra
vez. Fazia dois anos que eu não usava a aliança. Desde a noite em que Wes se
embriagou e jogou sua aliança no meio de um pomar de pessegueiros.
Wes tinha algum dinheiro e assim eu não precisava trabalhar. E vi que Chef
estava deixando a gente morar na casa em troca de uma ninharia. Não
tínhamos telefone. Pagávamos a gasolina, a luz e comprávamos o que estivesse
em promoção no supermercado Safeway. Num domingo à tarde, Wes saiu
para comprar um regador e voltou com uma coisa para mim. Voltou com um
bonito buquê de margaridas e um chapéu de palha. Nas noites de terça-feira a
gente ia ao cinema. Outras noites Wes ia ao que chamava de reunião Não
Beba. Chef vinha pegá-lo de carro na porta de casa e depois o trazia de volta.
Alguns dias, Wes e eu saíamos para pescar trutas numa das lagoas de água
doce das redondezas. A gente percorria a margem inteira e levava o dia todo
para pegar uns poucos peixes miúdos. Vão car gostosos, eu dizia, e naquela
noite eu fritava os peixes para o jantar. Às vezes eu tirava o chapéu e pegava no
sono numa colcha estendida ao lado da minha vara de pescar. A última coisa
que eu via eram as nuvens passando no alto, rumo ao vale central. De noite,
Wes me tomava nos braços e perguntava se eu ainda era a sua garota.
Nossos lhos se mantinham afastados. Cheryl morava com um pessoal
numa fazenda no Oregon. Cuidava de um rebanho de cabras e vendia leite.
Criava abelhas e vendia frascos de mel. Tinha sua própria vida e eu não a
condenava por isso. Ela não estava nem aí para o que seu pai e eu fazíamos,
contanto que não a envolvêssemos em nossos assuntos. Bobby morava em
Washington e trabalhava nos campos de feno. Depois que terminasse a época
da safra, pretendia trabalhar com maçãs. Tinha uma garota e estava
guardando dinheiro. Eu escrevia cartas e assinava “Amor sempre”.
Uma tarde, Wes estava no jardim arrancando ervas daninhas quando Chef
parou o carro na frente da casa. Eu estava na pia. Olhei e vi o carrão de Chef
entrar no terreno. Eu podia ver o carro dele, a estrada de acesso e a rodovia e,
atrás da rodovia, as dunas e o mar. Nuvens pairavam acima da água. Chef saiu
do carro e ajeitou as calças na cintura. Vi logo que havia alguma coisa. Wes
parou o que estava fazendo e se levantou. Estava de luvas e chapéu de lona.
Tirou o chapéu e enxugou o rosto com as costas da mão. Chef se aproximou
dele e pôs o braço em volta dos ombros de Wes. Wes tirou uma das luvas. Eu
fui até a porta. Ouvi Chef dizer para Wes que Deus era testemunha de como
ele lamentava, mas tinha de pedir que a gente saísse da casa no m do mês.
Wes tirou a outra luva. Por que isso, Chef ? Chef respondeu que sua lha,
Linda, a mulher que Wes chamava de Linda Gorda na época em que bebia,
precisava de um lugar para morar e o lugar era aquele. Chef disse a Wes que o
marido de Linda tinha saído em seu barco de pesca algumas semanas antes e
depois disso ninguém teve mais notícias dele. Ela é do meu sangue, disse Chef.
Perdeu o marido. Perdeu o pai do seu lho. Posso ajudar. Estou contente de
poder ajudar, disse Chef. Desculpe, Wes, mas você vai ter de procurar outra
casa. Chef abraçou Wes de novo, ajeitou as calças na cintura, entrou no seu
carrão e foi embora.
Wes entrou na casa. Largou o chapéu e as luvas no tapete e sentou na
poltrona grande. A poltrona de Chef, me passou pela cabeça. O tapete de Chef
também. Wes parecia pálido. Servi duas xícaras de café e dei uma para ele.
Está tudo certo, falei. Wes, não se preocupe, falei. Sentei no sofá do Chef
com o meu café na mão.
Agora a Linda Gorda vai morar aqui no lugar da gente, disse Wes. Ele
segurava sua xícara, mas não bebia.
Wes, não que agitado, falei.
O homem dela vai aparecer em Ketchikan, disse Wes. O marido de Linda
Gorda simplesmente deu o fora em todos eles. E quem pode criticar o sujeito
por ter feito isso?, disse Wes. Falou que se estivesse no lugar dele também ia
preferir pegar o seu barco e sumir a car morando o resto da vida com a Linda
Gorda e o lho dela. Depois Wes deixou a xícara junto de suas luvas. Esta foi
uma casa feliz até agora, disse ele.
A gente vai arranjar outra casa, falei.
Não como esta, disse Wes. Pelo menos não vai ser a mesma coisa. Esta casa
tem boas recordações. Agora a Linda Gorda e o lho vão car aqui, disse Wes.
Pegou sua xícara e bebeu.
É a casa do Chef, falei. Ele tem de fazer o que tem de fazer.
Sei disso, respondeu Wes. Mas não preciso gostar disso.
Wes estava com aquela sua cara. Eu conhecia aquela cara. Ficava
encostando a língua nos lábios. Ficava torcendo a bainha da camisa. Levantou
da poltrona e foi até a janela. Ficou parado olhando para fora, para o mar, para
as nuvens, que estavam aumentando. Batia de leve com os dedos no queixo
como se estivesse pensando alguma coisa. E estava pensando.
Tenha calma, Wes, falei.
Ela quer que eu tenha calma, disse Wes. Continuava ali parado.
Mas depois de um minuto voltou e se sentou perto de mim no sofá. Cruzou
as pernas e começou a mexer nos botões da camisa. Peguei a mão dele.
Comecei a falar. Falei sobre o verão. Mas vi que estava falando como se fosse
uma coisa ocorrida no passado. Talvez anos antes. De todo modo, como uma
coisa que tivesse terminado. Depois comecei a falar dos nossos lhos. Wes
disse que gostaria de poder recomeçar tudo, e dessa vez fazendo tudo direito.
Eles amam você, falei.
Não, não amam não, disse ele.
Falei: Um dia eles vão compreender as coisas.
Pode ser, disse Wes. Mas aí já não vai ter nenhuma importância.
A gente não sabe, falei.
Sei algumas coisas, disse Wes, e olhou para mim. Sei que estou feliz por
você ter vindo para cá. Não vou esquecer que você fez isso, disse Wes.
Também estou feliz, respondi. Estou feliz por você ter achado esta casa,
falei.
Wes bufou. Depois riu. Os dois rimos. Esse Chef, disse Wes, e balançou a
cabeça. Deu um pé na bunda da gente, o lho da mãe. Mas estou feliz por
você estar usando a aliança. Estou feliz por termos passado esse tempo juntos,
disse Wes.
Então eu disse uma coisa. Eu disse: Vamos supor, só supor, que nada
aconteceu. Vamos supor que essa foi a primeira vez. Só supor. Não faz mal
nenhum supor. Vamos dizer que não aconteceu nada. Sabe o que estou
querendo dizer? E então?, falei.
Wes xou os olhos em mim. Falou: Então eu suponho que a gente tinha de
ser pessoas diferentes, se o caso fosse esse. Pessoas que nós não somos. Não
tenho mais condição de fazer esse tipo de suposição. A gente nasce do jeito
que é. Entende o que estou dizendo?
Falei que eu não tinha abandonado uma coisa boa e viajado mil quilômetros
para ouvir ele falar daquele jeito.
Desculpe, disse Wes, mas não posso falar como uma pessoa que eu não sou.
Não sou outra pessoa. Se eu fosse outra pessoa, tenho certeza de que eu não
estaria aqui. Se eu fosse outra pessoa, não seria eu. Mas eu sou quem sou. Não
entende?
Wes, está tudo bem, falei. Peguei sua mão e trouxe para o meu rosto.
Depois, não sei, lembrei como ele era quando tinha dezenove anos, ele
correndo naquele campo em direção a seu pai, que estava num trator, mão
sobre os olhos, vendo Wes correr para ele. Tínhamos acabado de chegar de
carro da Califórnia. Tirei Cheryl e Bobby do carro e disse: Este é o seu vovô.
Mas os dois eram apenas bebês.
Wes cou sentado ao meu lado tocando os dedos de leve no queixo, como
se estivesse tentando imaginar o que ia fazer. O pai de Wes tinha ido embora e
nossos lhos estavam crescidos. Olhei para Wes, depois olhei em volta para a
sala do Chef, as coisas do Chef, e pensei: Precisamos fazer alguma coisa agora,
e bem depressa.
Querido, falei. Wes, me escute.
O que você quer?, disse ele. E falou só isso. Parecia já ter tomado uma
decisão. E, tendo tomado sua decisão, não tinha a menor pressa. Reclinou-se
para trás no sofá, cruzou as mãos sobre o colo e fechou os olhos. Não falou
mais nada. Não precisava.
Falei o nome dele para mim mesma. Era um nome fácil de dizer e eu estava
habituada a dizer seu nome fazia muito tempo. Então falei seu nome outra
vez. Dessa vez falei alto. Wes, eu disse.
Ele abriu os olhos. Mas não olhou para mim. Apenas cou ali sentado e
olhou para a janela. A Linda Gorda, disse ele. Mas eu sabia que a questão não
era a Linda Gorda. Ela não era nada. Só um nome. Wes se levantou, puxou as
cortinas e o mar sumiu de uma só vez. Entrei para fazer o jantar. Ainda
tínhamos uns peixes no congelador. Também não havia muito mais do que
isso. Eu pensei: Vamos recolher nossas coisas esta noite e vai ser o m.
Preservação
O marido de Sandy vivia no sofá desde o dia em que tinha sido demitido,
três meses antes. Naquele dia, três meses antes, ele chegou em casa
pálido, assustado e com todas as coisas do trabalho dentro de uma caixa. “Feliz
Dia dos Namorados”, disse para Sandy e pôs uma caixa de bombons em forma
de coração e uma garrafa de uísque Jim Bean na mesa da cozinha. Tirou o
chapéu e também pôs na mesa. “Fui demitido hoje. Puxa, o que você acha que
vai acontecer com a gente agora?”
Sandy e o marido caram sentados na mesa, beberam uísque e comeram os
chocolates. Conversaram sobre o que ele podia fazer em vez de pôr telhados
em casas novas. Mas não conseguiram pensar em nada. “Vai aparecer alguma
coisa”, disse Sandy. Queria transmitir ânimo. Mas também estava apavorada.
Por m, ele disse que ia dar um tempo para pensar. E foi o que fez. Arrumou
sua cama no sofá naquela noite e foi ali que passou a dormir todas as noites,
desde que foi despedido.
No dia seguinte à sua demissão, teve de cuidar das indenizações trabalhistas.
Foi ao centro da cidade, a uma repartição pública, tratar de uns documentos e
procurar outro emprego. Mas não havia empregos no seu ramo de trabalho,
nem em nenhum outro ramo de trabalho. Seu rosto começou a suar quando
ele tentou descrever para Sandy a enxurrada de homens e mulheres que havia
lá. Naquela noite, voltou para o sofá. Começou a passar todo o tempo ali,
como se, pensava Sandy, fosse aquilo mesmo que ele precisava fazer agora que
não tinha mais nenhum trabalho. De vez em quando ele precisava ir conversar
com alguém sobre alguma possibilidade de emprego e de quinze em quinze
dias tinha de ir assinar alguma coisa a m de receber o seguro-desemprego.
Mas o resto do tempo cava no sofá. Parecia que morava ali, pensava Sandy.
Ele morava na sala. Uma vez ou outra dava uma olhada nas revistas que ela
trazia do mercado; e de vez em quando ela entrava e topava com ele olhando
aquele livro grande que ela tinha ganhado de brinde por ter se associado a um
clube do livro — uma coisa chamada Mistérios do passado. Ele segurava o livro
na sua frente com as duas mãos, a cabeça inclinada sobre as páginas, como se
estivesse sendo sugado pelo que estava lendo. Mas depois de um tempo ela
percebeu que o marido parecia não estar avançando nada na leitura; parecia
continuar no mesmo lugar — em algum ponto do capítulo dois, ela achava.
Uma vez Sandy pegou o livro e abriu na página que ele tinha deixado
marcada. Ali Sandy leu sobre um homem que fora descoberto depois de passar
dois mil anos enterrado num pântano de turfa na Holanda. A fotogra a
ocupava uma página. A testa do homem estava franzida, mas o rosto tinha
uma expressão serena. Usava chapéu de couro e estava deitado de lado. As
mãos e os pés estavam murchos, mas a não ser por isso seu aspecto não era tão
horrível assim. Sandy leu o livro mais um pouco, depois colocou-o de volta
onde o havia encontrado. Seu marido mantinha o livro num local onde
estivesse sempre à mão, sobre a mesa de centro em frente ao sofá. O maldito
sofá! No que lhe dizia respeito, Sandy não queria nunca mais sentar naquele
sofá. Nem conseguia imaginar que os dois haviam se deitado ali no passado
para fazer amor.
O jornal era entregue em casa todos os dias. Ele lia o jornal da primeira à
última página. Sandy via que ele lia tudo, até o obituário e a seção que
mostrava as temperaturas nas principais cidades, bem como as notícias de
nanças que falavam de fusões de empresas e taxas de juros. Todas as manhãs,
ele acordava antes dela e usava o banheiro. Depois ligava a televisão e
preparava o café. Sandy achava que ele parecia otimista e bem-disposto
naquela hora do dia. Mas quando saía para trabalhar o marido já havia se
instalado em seu sofá e a tevê estava ligada. Na maioria das vezes a tevê
continuava ligada quando ela voltava à tarde. Ele estava sentado no sofá, ou
então deitado, vestido com a mesma roupa que costumava usar para ir ao
trabalho — jeans e camisa de anela. Mas às vezes a tevê estava desligada e ele
estava sentado, segurando o seu livro.
“Como vão as coisas?”, ele perguntava, quando ela ia dar uma olhada nele.
“Tudo bem”, respondia Sandy. “E com você?”
“Tudo bem.”
Ele sempre tinha um bule de café quente no fogão pronto para ela. Na sala,
Sandy sentava na poltrona e ele cava no sofá enquanto conversavam sobre o
dia dela. Cada um segurava sua xícara e os dois tomavam café como se fossem
pessoas normais, pensava Sandy.
Sandy ainda o amava, embora soubesse que as coisas estavam cando meio
esquisitas. Sandy era grata por ter seu emprego, mas não sabia o que ia
acontecer com eles, nem com ninguém no mundo. Sandy tinha uma amiga no
emprego a quem certa vez fez con dências sobre o marido — o fato de car o
tempo todo no sofá. Por algum motivo, a amiga pareceu não achar aquilo tão
estranho, o que surpreendeu e entristeceu Sandy. A amiga lhe contou sobre
um tio que morava no Tennessee — quando seu tio fez quarenta anos, foi para
a cama e não levantou mais. E chorava muito — chorava pelo menos uma vez
por dia. A amiga contou a Sandy que achava que o tio tinha medo de car
velho. Achava que talvez ele tivesse medo de ter um ataque do coração ou
alguma coisa assim. Mas o homem agora estava com sessenta e três anos e
ainda respirava, disse ela. Quando Sandy ouviu aquilo, cou atônita. Se aquela
mulher estava contando a verdade, pensou Sandy, o homem havia cado na
cama durante vinte e três anos. O marido de Sandy tinha só trinta e um anos.
Trinta e um mais vinte e três dá cinquenta e quatro. A essa altura ela também
já estaria na faixa dos cinquenta. Pelo amor de Deus, uma pessoa não podia
passar o resto da vida na cama, nem no sofá. Se o marido tivesse se
machucado ou estivesse doente, ou tivesse se ferido num acidente de trânsito,
aí seria diferente. Isso ela até poderia entender. Se fosse uma coisa dessas, sabia
que ia conseguir suportar bem. Se ele tivesse de viver no sofá e ela tivesse de
levar comida para ele no sofá, ou até lhe dar comida na boca — haveria até um
certo romantismo nesse tipo de coisa. Mas o seu marido, um homem jovem e
saudável, car no sofá daquele jeito e não querer levantar a não ser para ir ao
banheiro ou ligar a televisão de manhã e desligar à noite, isso era diferente.
Envergonhava Sandy; e, a não ser por essa única vez, ela nunca falou sobre
aquele assunto com mais ninguém. Não tocou mais no assunto com sua
amiga cujo tio tinha ido para a cama vinte e três anos antes e, até onde Sandy
sabia, continuava lá.
Num m de tarde, ela chegou do trabalho, estacionou o carro e entrou em
casa. Ouviu a televisão ligada na sala ao entrar na cozinha. O bule de café
estava no fogão, em fogo baixo. Ali da cozinha, segurando a bolsa, Sandy deu
uma olhada na sala e viu as costas do sofá e a tela da televisão. Figuras se
moviam na tela. Os pés descalços do marido ressaltavam na ponta do sofá. Na
outra ponta, sobre um travesseiro em cima do braço do sofá, Sandy viu o topo
da cabeça dele. O marido nem se mexeu. Podia ou não estar dormindo, podia
ou não ter ouvido Sandy entrar. Mas ela concluiu que não fazia a menor
diferença. Colocou a bolsa na mesa e foi até a geladeira pegar um iogurte. Mas
quando abriu a porta um ar quente e abafado caiu sobre ela. Não conseguia
acreditar na confusão que viu lá dentro. O sorvete no congelador tinha
derretido e escorrido em cima da sobra de postas de peixe e também da salada
de repolho. O sorvete tinha caído na tigela de risoto e formado uma poça
embaixo da geladeira. Havia sorvete por todo lado. Sandy abriu a porta do
congelador. Um cheiro horroroso bafejou em cima dela e lhe deu vontade de
vomitar. O sorvete recobria a parte de baixo do congelador e formava uma
poça em volta de uma embalagem de um quilo e meio de hambúrguer. Ela
apertou o dedo no papel-celofane que envolvia a carne e seu dedo afundou. As
costeletas de porco também haviam descongelado. Tudo estava descongelado,
inclusive outros lés de peixe, um pacote de carne para bife e duas embalagens
de comida chinesa do restaurante Chef Sammy. Os cachorros-quentes e o
molho de espaguete feito em casa tinham descongelado. Sandy fechou a porta
do congelador e procurou na geladeira o potinho de iogurte. Levantou a
tampinha e cheirou. Foi então que deu um grito para o marido.
“O que é isso?”, perguntou ele, sentando-se no sofá e olhando para trás. “Ei,
qual é o problema?” Passou a mão pelo cabelo algumas vezes. Ela não sabia
dizer se ele estivera dormindo todo aquele tempo ou não.
“Esta droga de geladeira parou de funcionar”, disse Sandy. “Esse é o
problema.”
O marido levantou-se do sofá e baixou o volume da televisão. Em seguida
desligou o aparelho e foi para a cozinha. “Deixa eu ver isso”, disse. “Puxa, não
acredito!”
“Olhe só, venha ver”, disse ela. “Vai estragar tudo.”
O marido olhou dentro da geladeira e sua cara cou com uma expressão
muito séria. Depois deu uma remexida na geladeira e viu como estavam as
coisas lá dentro.
“Era só o que faltava”, disse.
De repente um monte de coisas passou pela cabeça de Sandy, mas ela não
falou nada.
“Droga”, disse ele. “Desgraça chama desgraça. Puxa, esta geladeira não
pode ter mais de dez anos. Estava praticamente nova quando a gente
comprou. Escute, minha família usou uma geladeira por vinte e cinco anos.
Depois, deram para o meu irmão quando ele casou, e estava funcionando
muito bem. Puxa, o que está acontecendo?” Se moveu de lado para poder
enxergar no espaço estreito entre a parede e a geladeira. “Não entendo”, disse
e balançou a cabeça. “A tomada está ligada.” Em seguida segurou a geladeira e
sacudiu-a para a frente e para trás. Pôs o ombro contra a geladeira e deu uns
solavancos e empurrões no aparelho. Alguma coisa dentro da geladeira caiu de
uma prateleira e quebrou. “Cacete”, exclamou ele.
Sandy se deu conta de que ainda estava com o iogurte na mão. Foi até a lata
de lixo, levantou a tampa e jogou o potinho de iogurte lá dentro. “Vou ter que
cozinhar tudo esta noite”, disse. Viu a si mesma diante do fogão fritando
carne, arrumando a comida em panelas sobre o fogão e dentro do forno.
“Vamos precisar de uma geladeira nova”, disse.
Ele não falou nada. Olhou dentro do congelador mais uma vez e balançou a
cabeça de um lado para o outro.
Sandy tomou a sua frente e começou a retirar as coisas das prateleiras e a
colocar na mesa. Ele ajudou. Tirou a carne do congelador e pôs os pacotes
sobre a mesa. Depois retirou as outras coisas do congelador e colocou em
outro lugar da mesa. Retirou tudo da geladeira e depois pegou as toalhas de
papel e o pano de prato e começou a limpar por dentro.
“Perdemos o nosso gás freon”, disse ele e parou de esfregar. “Foi isso que
aconteceu. Estou sentindo o cheiro. O gás freon escapou. Alguma coisa
aconteceu e o gás freon escapou. Ei, já vi isso acontecer uma vez com
alguém.” Agora estava calmo. Começou a limpar de novo. “É o gás freon”,
disse.
Sandy parou o que estava fazendo e olhou para ele. “A gente precisa de
outra geladeira”, disse.
“Pois é, você já falou isso. Escute, onde é que a gente vai arranjar outra?
Geladeira não dá em árvore.”
“A gente precisa de uma geladeira”, disse ela. “Ou não precisa? Talvez a gen‐
te não precise. Talvez a gente possa deixar os nossos produtos perecíveis no
peitoril da janela, como as pessoas fazem nos conjuntos habitacionais. Ou
quem sabe a gente podia arranjar uma dessas caixas de isopor e comprar gelo
todo dia.” Pôs um pé de alface e uns tomates em cima da mesa, ao lado dos
pacotes de carne. Depois sentou numa das cadeiras da saleta de jantar e levou
as mãos ao rosto.
“Vamos arranjar outra geladeira”, disse o marido. “Droga, vamos sim. A
gente precisa de uma geladeira, não é? A gente não pode se virar sem uma
geladeira. A questão é: onde vamos arranjar uma geladeira e quanto podemos
pagar? Deve haver milhões de geladeiras usadas nos classi cados. Fique calma
e vamos ver o que tem no jornal. Caramba, eu sou um especialista em
classi cados”, disse.
Ela retirou as mãos do rosto e olhou para ele.
“Sandy, a gente vai achar uma boa geladeira de segunda mão no jornal”,
continuou ele. “A maioria das geladeiras é fabricada para durar a vida inteira.
Esta nossa, caramba, não sei o que aconteceu com ela. Esta é a segunda vez na
vida que eu soube que uma geladeira pifou desse jeito.” Olhou para a
geladeira outra vez. “Que azar desgraçado”, disse.
“Traga o jornal para cá”, disse ela. “Vamos ver o que tem.”
“Não se preocupe”, disse ele. Foi até a mesa de centro, pegou a seção de
classi cados no meio do jornal e voltou à cozinha. Ela afastou a comida para
poder abrir as páginas do jornal. Ele pegou outra cadeira.
Ela baixou os olhos em direção ao jornal e depois à comida descongelada.
“Vou ter de fritar as costeletas de porco esta noite”, disse. “E também fazer
esse hambúrguer. E aquelas fatias de carne para sanduíche, e os lés de peixe.
E também não posso esquecer as refeições prontas.”
“Maldito gás freon”, disse ele. “Dá para sentir o cheiro.”
Começaram a examinar os classi cados. Ele corria o dedo por uma coluna e
depois pela seguinte. Passou depressa pela seção EMPREGOS EM OFERTA . Sandy
viu marcas de caneta ao lado de alguns anúncios, mas nem parou para ver o
que ele havia marcado. Não interessava. Havia uma coluna com o título
EQUIPAMENTOS PARA CAMPING . Depois eles encontraram — eletrodomésticos
novos e usados.
“Aqui”, disse ela, e cravou o dedo no jornal.
Ele afastou o dedo de Sandy. “Deixe eu ver”, falou.
Ela pôs o dedo de novo onde estava. “Geladeiras, fogões, máquinas de lavar,
secadoras etc.”, disse, enquanto ia lendo os anúncios en leirados na coluna.
“Estábulo de Leilões, o que será isso?”, e continuou a ler. “Eletrodomésticos
novos e usados e muito mais todas as noites de quinta-feira. Leilão às
dezenove horas. Quer dizer que é hoje. Hoje é terça”, disse ela. “Este leilão
É
aqui é hoje. E esse lugar não ca muito longe. É no nal da rua Pine. Devo ter
passado umas cem vezes de carro por ali. Você também. Sabe onde ca. É ali
embaixo, perto daquela sorveteria Baskin-Robbins.”
O marido não falou nada. Ficou olhando para o anúncio. Levantou a mão e
apertou a lábio inferior com dois dedos. “Estábulo de leilões”, disse.
Sandy olhou xo para ele. “Vamos lá. O que você acha? Vai te fazer bem sair
de casa, e quem sabe a gente consegue uma geladeira. Vamos matar dois
coelhos com uma cajadada só”, disse ela.
“Nunca fui a um leilão na minha vida”, disse ele. “Não acredito que eu
queira ir a um agora.”
“Vamos lá”, disse Sandy. “O que há com você? É divertido. Não vou a um
leilão há anos, desde que eu era criança. Eu costumava ir com o meu pai.” De
repente, Sandy cou com uma enorme vontade de ir àquele leilão.
“O seu pai”, disse ele.
“É, o meu pai.” Olhou para o marido, à espera de que ele fosse dizer mais
alguma coisa. A última coisa. Mas ele não falou.
“Leilões são divertidos.”
“Devem ser mesmo, mas não quero ir.”
“Também preciso de um abajur de cabeceira”, continuou Sandy. “Vai ter
abajures para vender lá.”
“Puxa, a gente precisa de um monte de coisas. Mas estou sem emprego,
esqueceu?”
“Eu vou a esse leilão”, disse ela. “Com ou sem você. Você bem que podia vir
comigo. Mas não faz mal. Se quer saber, para mim é uma coisa secundária.
Mas eu vou.”
“Vou com você. Quem disse que eu não iria?” Olhou para ela e depois
desviou os olhos. Pegou o jornal e leu o anúncio outra vez. “Não entendo
nadinha de leilões. Mas é claro que é bom experimentar um pouco de tudo.
A nal, quem foi que disse que a gente não podia comprar uma geladeira num
leilão?”
“Ninguém”, disse ela. “Mas a gente vai comprar do mesmo jeito.”
“Está certo”, disse ele.
“Ótimo”, disse ela. “Mas só se você quiser de verdade.”
Ele assentiu com a cabeça.
Ela disse: “Acho melhor eu começar a cozinhar logo. Vou fazer essas drogas
de costeletas de porco agora, e depois a gente come. O resto dessa porcaria
toda pode esperar. Cozinho tudo mais tarde. Depois que a gente voltar do
leilão. Mas temos que começar a nos mexer. O jornal está dizendo que é às
sete horas”.
“Sete horas”, disse ele. Ergueu-se da mesa e foi até a sala, onde cou um
instante olhando pela janela. Um carro passou na rua. Ele levou os dedos até o
lábio. Sandy viu quando ele sentou no sofá e pegou seu livro. Abriu-o na
página marcada. Mas um minuto depois baixou o livro e deitou-se no sofá. Ela
viu sua cabeça deitar no travesseiro que estava no braço do sofá. Ele ajeitou o
travesseiro sob a cabeça e pôs as mãos embaixo da nuca. Depois cou quieto,
deitado. Pouco depois, Sandy viu os braços dele tombarem para os lados.
Ela fechou o jornal. Levantou-se da cadeira e, sem fazer barulho, foi para a
sala, onde olhou por cima das costas do sofá. Os olhos do marido estavam
fechados. Seu peito mal parecia subir e descer. Sandy voltou à cozinha e pôs
uma frigideira numa boca do fogão. Acendeu o queimador e derramou óleo
na frigideira. Começou a fritar as costeletas de porco. Tinha ido a leilões com
o pai. A maioria daqueles leilões tinha a ver com animais de criação. Na sua
lembrança, o pai estava sempre querendo vender um bezerro ou comprar um
bezerro. Às vezes nos leilões havia equipamentos agrícolas e também
utilidades domésticas. Mas o que mais tinha eram animais de criação. Depois,
quando seus pais se divorciaram e ela foi morar com a mãe, o pai de Sandy
escrevia dizendo que sentia saudades de ir aos leilões com ela. Na última carta
que escreveu para ela, depois que já era adulta e estava vivendo com o marido,
o pai contou que tinha comprado um carro muito bacana num leilão por
duzentos dólares. Se ela estivesse lá, disse o pai, teria comprado um para ela
também. Três semanas depois, no meio da noite, um telefonema informou
que seu pai havia morrido. O carro que ele comprara tinha um vazamento de
monóxido de carbono no piso, o que o fez desmaiar ao volante. Ele morava no
campo. O motor continuou funcionando até acabar a gasolina do tanque. Ele
cou dentro do carro até que alguém o achou, dias depois.
A frigideira estava começando a fumegar. Sandy pôs mais óleo e ligou o
exaustor. Fazia vinte anos que ela não ia a um leilão e agora, naquela noite,
estava se preparando para ir a um. Mas antes precisava fritar aquelas costeletas
de porco. Era muito azar a geladeira ter quebrado, mesmo assim Sandy viu
que estava ansiosa para ir ao leilão. Começou a sentir saudades do pai. Agora
tinha saudades até da mãe, embora as duas vivessem discutindo, até que Sandy
conheceu o marido e foi morar com ele. Continuava parada diante do fogão,
virando a carne na frigideira, com saudades do pai e da mãe.
Ainda com saudades deles, apanhou um pegador de panela e tirou a
frigideira do fogão. Foi até a porta com a frigideira na mão e olhou para a sala.
A frigideira continuava fumegando, pingos de gordura e de óleo espirravam
pelos lados. Na sala escurecida, ela só conseguia enxergar a silhueta da cabeça
do marido e seus pés descalços. “Vamos lá, saia daí”, disse ela. “Está pronto.”
“Está bem”, respondeu ele.
Sandy viu a cabeça dele erguer-se na ponta do sofá. Pôs a frigideira de volta
no fogão e virou-se para o guarda-louça. Pegou uns pratos e colocou na
bancada. Usou a espátula para levantar uma das costeletas de porco. Depois
colocou-a num prato. A carne não parecia carne. Parecia um pedaço de osso
velho tirado de uma escápula, ou uma ferramenta para cavar. Mas ela sabia
que era uma costeleta de porco, e tirou outra da frigideira e também colocou
no prato.
Um minuto depois, o marido entrou na cozinha. Olhou de novo para a
geladeira, que estava com a porta aberta. Depois os olhos se voltaram para as
costeletas. Sua boca se abriu, mas ele não disse nada. Ela esperou que o
marido falasse alguma coisa, qualquer coisa, mas ele não falou. Sandy colocou
o sal e a pimenta na mesa e lhe disse para sentar.
“Sente”, disse ela e lhe deu um prato em que estavam os restos de uma
costeleta de porco. “Quero que você coma isso”, disse. Ele pegou o prato. Mas
apenas cou parado, de pé, olhando o prato. Ela se virou para pegar o seu
prato.
Sandy afastou o jornal e empurrou a comida para uma das extremidades da
mesa. “Sente”, disse ao marido outra vez. Ele cou mexendo o prato de um
lado para o outro. Mas continuou parado, de pé. Foi aí que ela viu poças de
água na mesa. Ouviu também um barulho de água. A água da mesa estava
pingando em cima do piso de linóleo.
Sandy olhou para os pés descalços do marido. Ficou olhando os pés dele
perto da poça d’água. Sabia que nunca mais na vida veria uma coisa tão fora
do comum. Mas ainda não sabia o que devia fazer a respeito daquilo. Achou
que o melhor era passar batom, vestir um casaco e ir ao leilão. Mas não
conseguia desviar os olhos dos pés do marido. Pôs o prato na mesa e cou
olhando, até que os pés saíram da cozinha e voltaram para a sala.
O compartimento
M yers viajava pela França num vagão de primeira classe que seguia para
Estrasburgo, onde ia visitar seu lho, que estudava numa universidade
de lá. Fazia oito anos que não via o rapaz. Durante esse tempo, não tinha
havido telefonemas entre os dois, nem mesmo um cartão-postal, desde que
Myers e a mãe do rapaz tomaram caminhos distintos — e o menino cou com
a mãe. O rompimento nal, Myers sempre havia acreditado nisto, tinha sido
precipitado pela interferência maligna do garoto nos assuntos particulares dos
dois.
Na última vez que Myers tinha visto o lho, o rapaz havia tentado agredir o
pai durante uma violenta discussão. A mulher de Myers estava junto ao
aparador, jogando um prato de porcelana depois do outro no chão da sala de
jantar. Depois começou a jogar as xícaras. “Agora já chega”, disse Myers, e
naquele instante o rapaz o atacou. Myers desviou-se para o lado e segurou o
lho com uma gravata, enquanto o rapaz chorava e esmurrava Myers nas
costas e nos rins. Myers estava com ele em seu poder e tirou o máximo
proveito disso. Bateu o lho contra a parede e ameaçou até matá-lo. Estava
falando sério. “Fui eu que te dei a vida”, Myers se lembrou de ter gritado, “e
posso tomar ela de volta!”
Agora, ao pensar naquela cena horrível, Myers balançou a cabeça, como se
aquilo tivesse acontecido com outra pessoa. E de fato era assim. Ele
simplesmente não era o mesmo de antes. Morava sozinho e tinha poucas
relações com pessoas fora do trabalho. À noite, ouvia música clássica e lia
livros sobre iscas para aves aquáticas.
Acendeu um cigarro e continuou olhando pela janela do trem, ignorando o
homem sentado junto à porta que dormia com o chapéu baixado sobre os
olhos. Era quase de manhã e a neblina pairava sobre os campos verdes que
passavam lá fora. De vez em quando, Myers via uma casa de fazenda e prédios
ao redor, tudo cercado por um muro. Achou que aquele talvez fosse um modo
bom de viver — numa casa velha, cercada por um muro.
Passava um pouco das seis horas. Myers não havia dormido desde que
embarcara no trem em Milão, às onze da noite anterior. Quando o trem partiu
de Milão, considerou-se um sujeito de sorte por ter um compartimento só
para si. Manteve a luz acesa e folheou guias de viagem. Leu coisas que gostaria
de ter lido antes de ter viajado à região onde eles estavam. Descobriu muita
coisa que devia ter visto e feito. De certo modo, lamentava estar descobrindo
determinadas coisas sobre o país só agora, quando deixava a Itália para trás,
depois de sua primeira e, sem dúvida, última visita.
Pôs os guias de viagem dentro da mala, colocou a mala no maleiro acima da
sua cabeça e tirou o paletó para usá-lo como coberta. Apagou a luz e
acomodou-se, sentado, no compartimento escurecido, de olhos fechados, na
esperança de pegar logo no sono.
Depois do que lhe pareceu um tempo muito longo, e na hora em que
pensava que nalmente ia dormir, o trem começou a reduzir a velocidade.
Parou numa estaçãozinha nos arredores de Basel. Lá, um homem de meia-
idade, de terno escuro e chapéu, entrou no compartimento. O homem disse
algo a Myers numa língua que Myers não entendeu e depois colocou sua bolsa
de couro no maleiro. Sentou-se no lado oposto do compartimento e aprumou
os ombros. Em seguida puxou o chapéu sobre os olhos. Quando o trem voltou
a se mover, o homem estava dormindo e roncando baixinho. Myers teve inveja
dele. Poucos minutos depois, um funcionário suíço abriu a porta do
compartimento e acendeu a luz. Em inglês, e também numa outra língua —
alemão, supôs Myers —, o funcionário pediu para ver os passaportes dos dois.
O homem no compartimento de Myers empurrou o chapéu para trás da
cabeça, piscou os olhos e en ou a mão no bolso do paletó. O funcionário
examinou o passaporte, olhou bem para o homem e lhe devolveu o
documento. Myers entregou o seu passaporte. O funcionário leu os dados,
examinou a fotogra a e depois olhou bem para Myers, antes de fazer que sim
com a cabeça e devolver o passaporte. Apagou a luz e saiu. O homem em
frente a Myers puxou o chapéu por cima dos olhos e esticou as pernas. Myers
supôs que ele iria voltar a dormir logo, e mais uma vez o invejou.
Ficou acordado depois disso e começou a pensar no encontro com o lho,
para o qual faltavam só umas poucas horas. Como iria agir ao ver o lho na
estação? Deveria abraçá-lo? Sentiu-se incomodado com essa perspectiva. Ou
deveria apenas apertar sua mão, sorrir como se aqueles oito anos nunca
tivessem existido e depois dar umas palmadinhas no ombro do lho? Talvez o
rapaz dissesse algumas palavras — Estou contente em ver você — como foi a
viagem? — E Myers responderia... alguma coisa. Não sabia mesmo o que ia
dizer.
O contrôleur francês passou pela porta do compartimento. Olhou para Myers
e para o homem que dormia em frente a ele. O mesmo contrôleur já havia
perfurado suas passagens, por isso Myers virou a cabeça e continuou olhando
pela janela. Mais casas começaram a aparecer. Agora, porém, não havia muros
e as casas eram menores e mais próximas umas das outras. Logo veria um
povoado francês, Myers não tinha dúvida. A névoa estava subindo. O trem
apitou e passou em velocidade por um cruzamento diante do qual haviam
baixado a cancela. Myers viu uma jovem com o cabelo preso, de suéter, parada
com sua bicicleta, enquanto olhava os vagões passarem ligeiro.
Como vai sua mãe? Poderia dizer ao rapaz depois que tivessem andado um
pouco, já fora da estação. Que notícias tem da sua mãe? Por um instante, Myers
teve o pensamento desagradável de que ela poderia ter morrido. Mas logo se
deu conta de que não era possível, ele teria sabido de alguma coisa — de um
jeito ou de outro, a notícia teria chegado até ele. Sabia que caso se entregasse
àqueles pensamentos poderia car deprimido. Fechou o último botão da
camisa e ajeitou a gravata. Estendeu o paletó sobre o assento a seu lado.
Amarrou o cadarço dos sapatos, levantou-se e, erguendo os pés, passou por
cima das pernas do homem que dormia. Saiu do compartimento.
Myers precisou se apoiar na janela do corredor para se equilibrar enquanto
se dirigia ao m do vagão. Fechou a porta do banheirinho e trancou-a. Depois
abriu a torneira e jogou água no rosto. O trem entrou numa curva, ainda em
alta velocidade, e Myers teve de se segurar na pia para se equilibrar.
A carta do rapaz tinha chegado meses antes. A carta era breve. Ele escreveu
que morava na França fazia um ano e que estudava na universidade de
Estrasburgo. Não havia nenhuma informação sobre o que o zera ir para a
França nem sobre o que tinha feito da vida durante os anos anteriores à
França. De modo bem conveniente, pensou Myers, não havia na carta
nenhuma referência à mãe do rapaz — nem a menor dica do seu estado e do
seu paradeiro. Mas, de forma inexplicável, o rapaz havia encerrado a carta com
as palavras Com amor, e Myers re etira muito tempo sobre aquilo. Por m,
respondeu a carta. Após alguma re exão, Myers escreveu para dizer que fazia
algum tempo que andava pensando em fazer uma pequena viagem à Europa.
Será que o rapaz não gostaria de se encontrar com ele na estação de
Estrasburgo? Assinou a carta: “Com amor, seu pai”. Recebeu a resposta do
lho e depois tomou as providências para a viagem. Ficou chocado ao ver que,
além da secretária e de uns poucos parceiros de negócios, na verdade não havia
ninguém a quem ele achava necessário avisar que estava indo viajar. Tinha
acumulado seis semanas de férias na empresa de engenharia onde trabalhava e
resolveu que aproveitaria ao máximo seu tempo de férias naquela viagem.
Sentia-se feliz por ter feito isso, muito embora não tivesse a intenção de passar
todo o tempo na Europa.
Primeiro tinha ido a Roma. Mas depois das primeiras horas, andando
sozinho pelas ruas, lamentou não ter combinado um passeio em grupo.
Sentia-se solitário. Foi a Veneza, cidade sobre a qual ele e sua mulher sempre
falavam visitar um dia. Mas Veneza foi uma decepção. Viu um homem com
um braço só comendo lula frita, e por todo lado havia prédios encardidos, com
manchas de in ltração. Pegou um trem para Milão, onde se registrou num
hotel quatro estrelas e passou a noite assistindo a uma partida de futebol num
televisor Sony colorido, até que a emissora saiu do ar. Levantou-se na manhã
seguinte e andou sem rumo pela cidade até chegar a hora de ir para a estação
de trem. Tinha planejado fazer uma escala em Estrasburgo, como o ponto alto
da viagem. Depois de um ou dois dias, ou três — ele veria como as coisas iam
estar —, seguiria para Paris e de lá pegaria um avião para casa. Estava cansado
de fazer força para entender os estrangeiros e caria contente de voltar para
casa.
Alguém tentou abrir a porta do banheiro. Myers terminou de pôr a camisa
dentro da calça. A velou o cinto. Em seguida destrancou a porta e, oscilando
com o movimento do trem, caminhou de volta para o seu compartimento.
Quando abriu a porta, logo viu que tinham mexido no seu paletó. Estava
jogado em outro banco, não naquele onde o havia deixado. Sentiu que tinha se
metido numa situação ridícula, mas potencialmente grave. Seu coração
começou a bater acelerado quando pegou o paletó. En ou a mão no bolso
interno e tirou seu passaporte. A carteira estava no bolso da calça. Portanto
ainda tinha a carteira e o passaporte. Veri cou os outros bolsos do paletó. O
que faltava era o presente que havia comprado para o rapaz — um relógio de
pulso caro, japonês, comprado numa loja em Roma. Tinha deixado o relógio
no bolso interno do paletó por questão de segurança. Agora o relógio havia
sumido.
“Desculpe”, disse ao homem todo largado no assento, as pernas esticadas, o
chapéu sobre os olhos. “Desculpe.” O homem empurrou o chapéu para trás e
abriu os olhos. Aprumou o corpo na poltrona e olhou para Myers. Tinha os
olhos arregalados. Talvez estivesse sonhando. Talvez não.
Myers disse: “O senhor viu alguém entrar aqui?”.
Mas estava claro que o homem não sabia o que Myers estava dizendo.
Continuou a tá-lo com o que pareceu a Myers um olhar de completa
incompreensão. Mas talvez fosse outra coisa, pensou Myers. Talvez o olhar
mascarasse astúcia e dissimulação. Myers balançou o paletó a m de chamar a
atenção do homem. Depois en ou a mão no bolso e vasculhou. Levantou a
manga da camisa e mostrou seu relógio de pulso ao homem. O homem olhou
para Myers e depois para o relógio de Myers. Parecia perplexo. Myers deu uns
toques com o dedo no visor do seu relógio de pulso. Pôs a outra mão dentro
do bolso do paletó outra vez e fez um gesto como se estivesse pegando
alguma coisa com a ponta dos dedos. Myers apontou para o relógio outra vez
e agitou os dedos, na esperança de transmitir a ideia de que o relógio havia
voado pela porta.
O homem encolheu os ombros e balançou a cabeça.
“Droga”, disse Myers, frustrado. Vestiu o paletó e saiu para o corredor. Não
podia car naquele compartimento nem mais um minuto. Tinha medo de
esmurrar o homem. Olhou para um lado e para o outro no corredor, na
esperança de ver e reconhecer o ladrão. Mas não havia ninguém. Talvez o
homem que dividia o compartimento com ele não tivesse pegado o relógio.
Talvez alguém, a pessoa que tentou abrir a porta do banheiro, tivesse passado
pelo compartimento e visto o paletó e o homem adormecido, e depois
simplesmente abriu a porta, revistou os bolsos, fechou a porta e foi embora.
Myers andou devagar até a extremidade do vagão, espiando os outros
compartimentos. Não estavam cheios, naquele vagão de primeira classe, mas
havia uma ou duas pessoas em cada compartimento. A maioria estava
dormindo, ou parecia dormir. Tinham os olhos fechados e a cabeça caída para
trás, sobre o encosto das poltronas. Num compartimento, um homem mais
ou menos da sua idade estava sentado junto à janela olhando para os campos e
pastos lá fora. Quando Myers parou diante do vidro e olhou para ele, o
homem se virou e tou-o com agressividade.
Myers dirigiu-se ao vagão da segunda classe. Os compartimentos daquele
vagão estavam lotados — às vezes cinco ou seis passageiros em cada um, e as
pessoas, dava para perceber ao primeiro olhar, tinham um ar mais a ito.
Muitas estavam acordadas — era desconfortável demais para dormir — e
voltavam os olhos para Myers quando ele passava. Estrangeiros, pensou.
Estava claro para Myers que, se o homem que dividia o compartimento com
ele não tinha pegado o relógio, o ladrão devia estar num daqueles
compartimentos da segunda classe. Mas o que ele podia fazer? Não havia
saída. O relógio tinha sumido para sempre. Agora estava no bolso de outra
pessoa. Ele não iria conseguir fazer o contrôleur entender o que havia ocorrido.
Mesmo se conseguisse, e daí? Voltou ao seu compartimento. Olhou para
dentro e viu que o homem tinha esticado as pernas outra vez, com o chapéu
em cima dos olhos.
Myers ergueu os pés, passou por cima das pernas do homem e sentou-se na
sua poltrona junto à janela. Sentiu-se atordoado de raiva. Estavam agora na
periferia da cidade. Fazendas e pastagens tinham dado lugar a fábricas com
nomes impronunciáveis na fachada dos prédios. O trem começou a reduzir a
velocidade. Myers viu automóveis nas ruas da cidade e outros parados nos
cruzamentos diante da cancela, esperando o trem passar. Myers levantou-se e
tirou a mala do maleiro. Ficou com ela no colo enquanto olhava através da
janela para aquele lugar detestável.
Ocorreu-lhe então que na verdade não queria ver o rapaz. Ficou chocado
com a descoberta e por um momento sentiu-se diminuído pela mesquinharia
daquele sentimento. Balançou a cabeça. Entre as muitas besteiras que havia
feito na vida, aquela viagem talvez fosse a coisa mais idiota de todas. Mas o
fato é que ele não tinha a menor vontade de voltar a ver aquele rapaz, cujo
comportamento o havia afastado das afeições de Myers desde muito tempo.
De repente, e com grande nitidez, recordou o rosto do garoto na briga
daquela vez e uma onda de amargura cobriu Myers. O rapaz devorara a
juventude de Myers, tinha transformado a garota com quem ele havia
namorado e se casado numa mulher nervosa, alcoólatra, a quem o rapaz ora
maltratava, ora tinha pena. Por que diabo ele havia percorrido aquela distância
enorme, perguntou-se Myers, para ver uma pessoa de quem não gostava? Não
queria apertar a mão do rapaz, a mão do seu inimigo, nem lhe dar
palmadinhas no ombro ou jogar conversa fora com ele. Não queria ter de
fazer perguntas sobre a mãe.
Myers inclinou-se para a frente na poltrona, na hora em que o trem chegou
à estação. Anunciaram algo em francês no sistema de comunicação interna do
trem. O homem em frente a Myers começou a se mexer. Ajeitou o chapéu e se
pôs mais ereto na poltrona, enquanto diziam mais alguma coisa em francês no
alto-falante. Myers não compreendeu nada do que diziam. Ficou mais agitado
quando o trem reduziu a velocidade e depois parou. Decidiu não sair do
compartimento. Ia car sentado onde estava, até o trem partir. Quando
partisse, ele estaria a bordo, seguindo no trem para Paris, e o assunto estaria
encerrado. Olhou pela janela com cuidado, receoso de ver o rosto do rapaz no
vidro. Não saberia o que fazer caso aquilo acontecesse. Tinha medo de que
brandisse o punho cerrado para ele e o ameaçasse. Viu algumas pessoas na
plataforma, de casaco e cachecol, paradas junto a suas malas, à espera do sinal
de embarque. Outras esperavam sem bagagem, mão no bolso, obviamente na
expectativa de receber alguém. Seu lho não estava entre os que aguardavam,
mas é claro que aquilo não signi cava que o rapaz não estava em algum lugar
ali. Myers passou a mala do colo para o chão e moveu-se alguns centímetros
para a ponta da poltrona.
O homem à sua frente bocejava e olhava pela janela. Agora voltou o olhar
para Myers. Tirou o chapéu e passou a mão pelo cabelo. Em seguida pôs o
chapéu de novo na cabeça, cou de pé e tirou sua mala do maleiro. Abriu a
porta do compartimento. Mas antes de sair deu meia-volta e acenou na
direção da estação.
“Estrasburgo”, disse o homem.
Myers lhe deu as costas.
O homem aguardou mais um momento e depois foi para o corredor com
sua mala e, Myers tinha certeza disto, levando seu relógio de pulso. Mas agora
aquilo era o que menos o preocupava. Olhou mais uma vez pela janela. Viu
um homem de jaleco parado na porta da estação, fumando um cigarro. O
homem estava observando dois funcionários da ferrovia que explicavam algo a
uma mulher de saia comprida que segurava um bebê nos braços. A mulher
escutou com atenção, fez que sim com a cabeça e depois escutou mais um
pouco. Passou o bebê de um braço para o outro. Os homens continuaram
falando. Ela escutava. Um dos homens fez cosquinha com o dedo embaixo do
queixo do bebê. A mulher olhou para baixo e sorriu. Mudou o bebê de lugar
outra vez e continuou escutando. Myers viu o casal de jovens se abraçando na
plataforma a pouca distância do seu vagão. Depois o rapaz soltou a moça.
Falou alguma coisa, pegou sua mala e seguiu para embarcar no trem. A
mulher olhou-o partir. Levou a mão ao rosto, tocou num olho e depois no
outro com as costas da mão. Um instante depois, Myers viu a mulher indo
embora pela plataforma, com olhos xos no vagão do rapaz, como se
seguissem alguém. Myers desviou o olhar da moça e contemplou o grande
relógio no alto da sala de espera da estação. Olhou para um lado e para o
outro da plataforma. O rapaz não estava em parte alguma. Talvez tivesse
dormido além da hora ou quem sabe mudado de ideia também. De qualquer
forma, Myers se sentiu aliviado. Contemplou mais uma vez o relógio, depois
viu a moça vir correndo para junto da janela onde ele estava sentado. Myers
recuou com se ela fosse bater contra o vidro.
A porta do compartimento se abriu. O rapaz que ele tinha visto lá fora
fechou a porta atrás de si e disse: “Bonjour”. Sem esperar resposta, jogou a
mala no maleiro acima da poltrona e foi até a janela. “Pardonnez-moi.” Puxou a
janela para baixo e abriu. “Marie”, falou. A jovem começou a sorrir e a chorar
ao mesmo tempo. O rapaz segurou as mãos dela e começou a beijar seus
dedos.
Myers desviou o olhar e cerrou os dentes. Ouviu os últimos chamados dos
funcionários da ferrovia. Alguém tocou um apito. Logo depois, o trem
começou a sair da plataforma. O rapaz soltou as mãos da moça, mas
continuou acenando para ela enquanto o trem seguia em frente devagar.
No entanto, o trem andou uma curta distância fora da área coberta da
plataforma e em seguida Myers sentiu uma freada brusca. O jovem fechou a
janela e aproximou-se da poltrona junto à porta. Tirou um jornal do bolso do
casaco e começou a ler. Myers levantou-se e abriu a porta. Foi até o m do
corredor, onde os vagões se engatavam. Não sabia por que o trem havia
parado. Talvez houvesse alguma coisa errada. Foi até a janela. Mas tudo o que
conseguia ver era um intrincado sistema de trilhos onde as composições eram
montadas e os vagões desengatados e transferidos de uma composição a
outra. Afastou-se da janela. A placa na porta do vagão seguinte dizia Poussez.
Myers pressionou o punho contra a placa e a porta abriu. Estava de volta ao
vagão da segunda classe. Passou por uma la de compartimentos cheios de
pessoas que se instalavam em seus lugares como se estivessem se preparando
para uma viagem longa. Ele precisava que alguém lhe dissesse aonde estava
indo aquele trem. Na hora em que comprou a passagem, entendeu que o trem
para Estrasburgo seguia para Paris. Mas achou que seria humilhante pôr a
cabeça num dos compartimentos e dizer “Parri?”, ou fosse lá como
pronunciavam o nome da cidade, e dar a impressão de que estava perguntando
se já tinham chegado àquele destino. Ouviu um forte estalido metálico e o
trem andou um pouco para trás. Viu a estação outra vez e pensou de novo no
lho. Talvez ele estivesse lá atrás esperando, com a respiração ofegante por ter
corrido para a estação, se perguntando o que teria acontecido com o pai.
Myers sacudiu a cabeça.
O vagão em que ele estava guinchou e soltou um rugido sob seus pés,
depois algo engatou e se encaixou com um barulho forte. Myers olhou para o
emaranhado de trilhos e se deu conta de que o trem estava de novo em
movimento. Virou-se, voltou depressa para a extremidade daquele vagão e
passou para o vagão em que estava viajando. Seguiu pelo corredor até o seu
compartimento. Mas o rapaz com o jornal havia sumido. E a mala de Myers
havia sumido. Na verdade não era mais o seu compartimento. Com um
sobressalto, se deu conta de que o seu vagão devia ter sido desengatado
enquanto o trem estava no pátio de manobras e fora engatado a um outro
vagão de segunda classe de outra composição. O compartimento diante do
qual ele estava achava-se quase lotado de homens pequenos, de pele escura,
que falavam depressa e numa língua que Myers nunca tinha ouvido. Um dos
homens acenou para que ele entrasse. Myers entrou no compartimento e os
homens abriram espaço para ele. Parecia haver um clima jovial no
compartimento. O homem que havia acenado para ele riu e bateu de leve com
a mão no lugar vago a seu lado. Myers sentou-se com as costas voltadas para a
frente do trem. A paisagem rural que se via na janela começou a passar cada
vez mais depressa. Por um momento, Myers teve a impressão de que a
paisagem corria em disparada ao lado dele. Estava indo para algum lugar,
sabia disso. E, se fosse a direção errada, mais cedo ou mais tarde iria descobrir.
Recostou-se na poltrona e fechou os olhos. Os homens continuaram falando
e rindo. Suas vozes chegavam até ele como que de longe. Logo as vozes se
tornaram parte dos movimentos do trem — e aos poucos Myers se sentiu
levado e depois empurrado para trás, para o interior do sono.
Uma coisinha boa
S ábado à tarde ela foi de carro até a padaria no centro comercial. Depois de
passar os olhos por um álbum de folhas soltas com fotos de bolos coladas
com ta adesiva, ela pediu o de chocolate, o predileto do lho. O bolo que ela
escolheu era decorado com uma nave espacial e uma plataforma de
decolagem, sob uma chuva de estrelas brancas numa extremidade do bolo e
um planeta feito com glacê vermelho na outra ponta. O nome dele, SCOTTY ,
seria escrito com letras verdes embaixo do planeta. O padeiro, um homem
mais velho e de pescoço grosso, escutou sem dizer nada quando ela lhe disse
que Scotty ia fazer oito anos na segunda-feira seguinte. O padeiro usava um
avental branco que mais parecia um guarda-pó. As alças passavam por baixo
dos braços, davam a volta nas costas e depois voltavam de novo para a frente,
onde cavam amarradas embaixo da cintura larga. Ele esfregou as mãos na
frente do avental e escutou a explicação. Mantinha os olhos abaixados para as
fotos e deixava-a falar. Ela que falasse o quanto quisesse. Havia acabado de
chegar ao trabalho e ia car lá a noite inteira, assando, e não tinha a menor
pressa.
Ela deu ao padeiro seu nome, Ann Weiss, e o número de seu telefone. O
bolo ia car pronto na segunda-feira de manhã, bem fresquinho, saído do
forno, com tempo de sobra para a festa de Scotty à tarde. O padeiro não era
um sujeito alegre. Não houve nenhum comentário bem-humorado entre os
dois, só a troca de palavras indispensáveis, a informação necessária. Ele a fez se
sentir desconfortável, e ela não gostou disso. Enquanto ele se debruçava no
balcão, lápis na mão, a mulher observava suas feições rudes e se perguntava se
ele já teria feito alguma outra coisa na vida além de ser padeiro. Ela era mãe,
tinha trinta e três anos, e lhe parecia que todo mundo, sobretudo alguém da
idade do padeiro — homem velho o bastante para ser seu pai —, devia ter tido
lhos que haviam passado por aquela fase especial de bolos e de festas de
aniversário. Todo mundo passa por isso, pensava. Mas o homem foi frio com
ela, não chegou a ser rude, só frio. Ela desistiu de criar um clima simpático.
Olhou para o fundo da padaria e viu uma mesa comprida de madeira com
fôrmas de alumínio empilhadas na ponta e, ao lado da mesa, um recipiente de
metal cheio de prateleiras vazias. Havia um forno imenso. Um rádio tocava
música country.
O padeiro terminou de anotar as informações do pedido num cartão
especial e fechou o livreto com fotos de bolos. Olhou para ela e disse:
“Segunda-feira de manhã”. Ela agradeceu e foi de carro para casa.
Na segunda-feira de manhã, o menino que fazia aniversário estava indo a pé
para a escola com um amigo. Passavam um saquinho de batata frita de um
para o outro, e o menino que fazia aniversário estava tentando descobrir o que
o amigo ia lhe dar de presente à tarde. Sem perceber, o menino que fazia
aniversário pisou fora do meio- o numa esquina e, no mesmo instante, foi
atingido por um carro. Caiu de lado com a cabeça na sarjeta e as pernas
estendidas na rua. Ficou de olhos fechados, mas suas pernas começaram a se
mexer para a frente e para trás, como se ele estivesse tentando subir em
alguma coisa. Seu amigo deixou cair as batatas fritas e começou a chorar. O
carro ainda avançou por uns trinta metros e depois parou no meio da rua. Um
homem no banco do motorista olhou para trás, por cima do ombro. Esperou
o menino car de pé, meio trôpego. O menino bambeou um pouco. Parecia
zonzo, mas bem. O motorista ligou o carro e foi embora.
O menino que fazia aniversário não chorou, mas também não tinha nada
para dizer sobre o caso. Não respondeu quando o amigo perguntou qual era a
sensação de ser atingido por um carro. Ele foi para casa e seu amigo foi para a
escola. Mas depois que o garoto que fazia aniversário entrou e contou à mãe o
que tinha acontecido — a mãe sentada ao lado dele no sofá, segurando as
mãos de Scotty no colo e dizendo “Scotty, meu querido, tem certeza de que
está bem, meu anjo?”, achando que, pelo sim, pelo não, ia chamar o médico —
de repente ele se deitou de costas no sofá, fechou os olhos e amoleceu todo.
Quando a mãe viu que não conseguia acordá-lo, correu ao telefone e ligou
para o marido no trabalho. Howard disse que ela casse calma, casse calma,
depois chamou uma ambulância para a criança e foi para o hospital.
Claro que a festa de aniversário foi cancelada. O garoto estava no hospital
com uma leve concussão e em estado de choque. Teve vômitos e um pouco de
líquido tinha ido para os pulmões, e precisaram fazer uma punção do líquido
naquela mesma tarde. Agora, ele parecia apenas num estado profundo de sono
e nada mais — mas não em estado de coma, enfatizou o dr. Francis: ele não
está em coma, disse, quando percebeu o alarme nos olhos dos pais. Às onze da
noite daquela segunda-feira, quando o garoto parecia estar descansando bem
confortavelmente depois de uma série de radiogra as e exames de laboratório
e parecia que agora era só questão de ele acordar e voltar ao normal, Howard
deixou o hospital. Ele e Ann estavam no hospital desde aquela tarde e ele ia
para casa tomar banho e trocar de roupa. “Volto daqui a uma hora”, disse.
Ann assentiu com a cabeça. “Está bem”, respondeu. “Vou car aqui.” Ele deu
um beijo na testa de sua mulher e os dois tocaram-se as mãos. Ann cou
sentada numa cadeira ao lado da cama, olhando para o lho. Continuava
esperando que ele acordasse e melhorasse. Aí poderia começar a relaxar.
Howard foi de carro para casa. Seguiu pelas ruas escuras e molhadas mais
depressa do que deveria, depois se deu conta disso e diminuiu a velocidade.
Até aquele momento, para sua satisfação, sua vida tinha corrido tranquila —
faculdade, casamento, mais um ano de faculdade para uma pós-graduação em
administração, uma participação como sócio minoritário numa empresa de
investimentos. Tornou-se pai. Ficou feliz e, até ali, tinha tido sorte — sabia
disso. Seus pais ainda estavam vivos, seus irmãos e sua irmã estavam com a
vida bem-arrumada, seus amigos da faculdade haviam se espalhado para
ocupar seus lugares no mundo. Até então, ele tinha se mantido a salvo de toda
dor verdadeira, daquelas forças que ele sabia que existiam e que podiam aleijar
ou arrasar um homem, se a sorte piorasse e as coisas de repente começassem a
dar errado. Subiu pela entrada da garagem e parou. A perna esquerda tinha
começado a tremer. Ele cou um tempo sentado no carro e tentou enfrentar a
situação de modo racional. Scotty fora atingido por um carro e estava no
hospital, mas ia car bem. Fechou os olhos e passou a mão pelo rosto. Saiu do
carro e foi até a porta da frente. O cachorro estava latindo dentro de casa. O
telefone tocava sem parar enquanto ele destrancava a porta e tateava a parede
em busca do interruptor de luz. Não devia ter saído do hospital, não devia, ele
se maldizia por aquilo. Pegou o fone e disse: “Acabei de entrar!”.
“Tem um bolo aqui que ninguém veio buscar”, disse a voz do outro lado da
linha.
“O que é que você está dizendo?”, perguntou Howard.
“Um bolo”, disse a voz. “Um bolo de dezesseis dólares.”
Howard segurava o fone colado à orelha, tentando entender. “Não sei de
bolo nenhum”, disse. “Meu Deus, do que você está falando?”
“Não me venha com esse papo”, disse a voz.
Howard desligou o telefone. Foi até a cozinha e se serviu de uma dose de
uísque. Telefonou para o hospital, mas o estado de Scotty continuava na
mesma; o menino ainda dormia e não tinha havido nenhuma mudança por lá.
Enquanto a água enchia a banheira, Howard passou espuma no rosto e fez a
barba. Ele tinha acabado de se esticar na banheira e fechar os olhos quando o
telefone tocou de novo. Levantou-se depressa, agarrou uma toalha e correu
pela casa, repetindo “Idiota, idiota”, por ter saído do hospital. Mas, quando
atendeu o telefone e gritou “Alô!”, não veio nenhum som do outro lado. Em
seguida, a pessoa desligou.
Ele voltou ao hospital pouco depois da meia-noite. Ann ainda estava sentada
na cadeira ao lado da cama. Ergueu os olhos para Howard e depois voltou a
olhar o lho. Os olhos do garoto continuavam fechados, sua cabeça ainda
estava envolta em ataduras. Sua respiração era serena e regular. De uma
armação metálica acima da cama, pendia um frasco de glicose com um tubo
que ia do frasco até o braço do menino.
“Como é que ele está?”, perguntou Howard. “O que é tudo isso?”, apontou
para a glicose e o tubo.
“Ordens do doutor Francis”, respondeu ela. “Scotty precisa se alimentar. O
doutor Francis disse que ele precisa manter as energias. Por que ele não
acorda, Howard?”, disse ela. “Não entendo, se a nal ele está bem.”
Howard pôs a mão atrás da cabeça dela e passou os dedos por seu cabelo.
“Ele vai melhorar, meu bem. Vai acordar daqui a pouco. O doutor Francis
sabe das coisas.”
Depois de um tempo, ele disse: “Talvez fosse melhor você ir para casa
descansar um pouco. Eu co aqui. Mas não dê atenção a um chato que está
ligando para lá toda hora. Desligue logo na cara dele”.
“Quem é que está telefonando?”, ela perguntou.
“Não sei, é alguém que não tem nada melhor para fazer do que car
telefonando para os outros. Agora, vá para casa.”
Ela balançou a cabeça. “Não”, disse. “Eu estou bem.”
“Sério”, insistiu Howard. “Vá um pouco para casa, se quiser, depois você
volta e ca no meu lugar de manhã. Vou car bem aqui. Lembra o que o
doutor Francis disse? Ele disse que o Scotty ia car bem logo. A gente não tem
motivo para se preocupar. Agora ele está dormindo, só isso, mais nada.”
Uma enfermeira abriu a porta. Cumprimentou os dois com um aceno de
cabeça enquanto avançava para a beirada da cama. Tirou o braço esquerdo
debaixo das cobertas e pôs os dedos no pulso, encontrou a pulsação e depois
consultou o relógio. Dali a pouco, pôs o braço debaixo das cobertas e foi para
o pé da cama, onde escreveu alguma coisa numa prancheta presa à cama.
“Como ele está?”, perguntou Ann. A mão de Howard pesava em seu ombro.
Ann sentia a pressão dos dedos do marido.
“O estado dele é estável”, disse a enfermeira. Em seguida falou: “O doutor
virá daqui a pouco. Ele já está no hospital. Está visitando os pacientes agora”.
“Eu estava dizendo que ela talvez devesse ir para casa descansar um pouco”,
disse Howard. “Depois que o médico vier”, acrescentou.
“Ela podia fazer isso, sim”, disse a enfermeira. “Acho que vocês dois devem
car à vontade para fazer isso, se quiserem.” A enfermeira era uma mulher
grande, escandinava, de cabelo louro. Havia um traço de sotaque em sua fala.
“Vamos ver o que o doutor vai dizer”, falou Ann. “Quero conversar com o
médico. Não acho que ele deveria estar dormindo tanto assim. Não acho um
bom sinal.” Levou a mão aos olhos e inclinou a cabeça um pouco para a
frente. A pressão dos dedos de Howard aumentou em seu ombro e depois a
mão dele passou para o pescoço, onde os dedos começaram a massagear os
músculos dali.
“O doutor Francis virá dentro de alguns minutos”, disse a enfermeira. Em
seguida saiu do quarto.
Howard olhou para o lho por alguns momentos, o pequeno peito subia e
descia serenamente sob as cobertas. Pela primeira vez desde os terríveis
minutos após o telefonema de Ann para o escritório, ele sentiu um medo
autêntico subir pelas pernas e pelos braços. Começou a sacudir a cabeça, na
tentativa de rechaçar esse medo. Scotty estava bem, só que em vez de dormir
em casa, na sua cama, estava numa cama de hospital, com ataduras na cabeça
e um tubo metido no braço. Mas era dessa ajuda que ele precisava naquele
momento.
O dr. Francis entrou, apertou a mão de Howard, embora tivessem se falado
poucas horas antes. Ann se levantou da cadeira. “Doutor?”
“Ann”, disse ele fazendo um gesto com a cabeça. “Primeiro vamos ver como
ele está”, disse o médico. Foi até a lateral da cama e tomou o pulso do menino.
Levantou uma pálpebra e depois a outra. Howard e Ann estavam ao lado do
médico e observavam. Ann emitiu um pequeno som quando a pálpebra de
Scotty foi erguida e deixou à mostra um espaço branco, sem pupila. Depois o
médico puxou a coberta e auscultou o coração e os pulmões do menino com o
estetoscópio. Pressionou o abdômen aqui e ali com a ponta dos dedos.
Quando terminou o exame, foi até o pé da cama e observou a cha. Veri cou
a hora no relógio de pulso, anotou alguma coisa na cha e depois olhou para
Ann e Howard, que estavam esperando.
“Como ele está, doutor?”, perguntou Howard. “Qual é exatamente o
problema dele?”
“Por que ele não acorda?”, disse Ann.
O médico era bonito, de ombros largos e rosto queimado de sol. Vestia
terno e colete, gravata listrada e abotoaduras de mar m. Tinha o cabelo
grisalho bem penteado e dava a impressão de ter acabado de chegar de um
concerto. “Ele está bem”, disse o médico. “Não é nada de mais, mas podia
estar melhor, acho. Mas ele está bem. Mesmo assim, eu gostaria que ele
acordasse. Seria bom se acordasse logo.” O médico olhou de novo para o
menino. “Vamos saber um pouco mais daqui a algumas horas, depois que os
resultados de mais alguns exames chegarem. Mas ele está bem, acreditem em
mim, a não ser por essa pequena fratura no crânio, no alto da testa. Isso de
fato ele tem.”
“Ah, não”, disse Ann.
“E uma pequena concussão, como eu disse antes. Claro, vocês sabem que
ele está em estado de choque”, disse o médico. “Às vezes isso acontece em
casos de choque. Esse sono.”
“Mas ele está fora de um perigo mais sério?”, perguntou Howard. “Antes o
senhor disse que ele não estava em coma. Então o senhor não chamaria isso de
coma, doutor?” Howard esperou. Olhou para o médico.
“Não, eu não quero chamar de coma”, disse o médico e olhou de relance
para o garoto outra vez. “Ele só está num sono profundo. É uma medida
restauradora que o corpo toma por conta própria. Ele não corre nenhum
perigo mais sério, posso a rmar com segurança, de fato. Mas vamos saber
melhor quando ele acordar e os outros exames carem prontos. Não se
preocupem”, disse o médico.
“Está em coma”, disse Ann. “Uma espécie de coma.”
“Ainda não é bem um coma”, disse o médico. “Eu não chamaria de coma.
Pelo menos não por enquanto. Ele sofreu um choque. Em casos de choque,
esse tipo de reação é muito comum; é uma reação temporária a um trauma
físico. O coma... bem, o coma é uma inconsciência profunda e prolongada que
pode demorar dias ou até semanas. Scotty não está nesse campo, pelo menos
até onde podemos saber. Só tenho certeza de que o estado dele vai começar a
melhorar de manhã. Pelo menos estou apostando nisso. Vamos saber melhor
depois que ele acordar, o que não deve demorar muito para acontecer agora.
Claro, vocês podem fazer o que quiserem, podem car aqui ou ir um pouco
para casa, mas em todo caso quem à vontade para sair por algum tempo, se
quiserem. Isso não é nada fácil, sei muito bem.” O médico lançou um olhar
para o menino outra vez, observou-o e depois se virou para Ann e disse:
“Tente não se preocupar. Acredite em mim, estamos fazendo tudo o que pode
ser feito. Agora é só questão de um pouco mais de tempo”. Cumprimentou
Ann com a cabeça, apertou a mão de Howard outra vez e saiu do quarto.
Ann colocou a mão na testa do lho. “Pelo menos ele não está com febre”,
disse. Depois falou: “Meu Deus, mas ele parece tão frio. Howard? Ele devia
estar frio desse jeito? Sinta a testa dele”.
Howard pôs a mão na testa do menino. Sua própria respiração cou mais
lenta. “Acho que é normal que esteja assim agora”, respondeu. “Ele está em
estado de choque, lembra? Foi o que o médico disse. O médico acabou de sair.
Teria dito alguma coisa se o Scotty não estivesse bem.”
Ann cou ali por mais um tempo, mordendo o lábio com os dentes. Em
seguida, foi até a cadeira e sentou.
Howard sentou numa cadeira próxima à dela. Olharam um para o outro.
Ele quis dizer mais alguma coisa e tranquilizá-la, mas também estava com
medo. Pegou a mão dela e colocou-a no colo, e isso fez Howard se sentir
melhor, estar com a mão dela ali. Segurou a mão de sua mulher, apertou-a,
depois a soltou. Ficaram sentados assim por algum tempo, observando o
menino, sem falar nada. De vez em quando Howard apertava a mão dela. Por
m, Ann retirou a mão.
“Fiquei rezando”, disse ela.
Howard assentiu com a cabeça.
Ann disse: “Quase achei que tinha esquecido como era, mas lembrei. Bastou
eu fechar os olhos e dizer: Por favor, Deus, nos ajude... ajude o Scotty; e
depois o resto foi fácil. As palavras estavam bem à mão. Quem sabe você
também podia rezar”, disse ela.
“Eu já rezei”, disse ele. “Rezei hoje à tarde... ontem à tarde, depois que você
telefonou, enquanto eu estava vindo para o hospital. Fiquei rezando”, disse.
“Isso é bom”, disse Ann. Pela primeira vez, sentiu que os dois estavam
juntos naquilo, naquele problema. Então se deu conta de que, até ali, aquilo só
tinha acontecido com ela e Scotty. Ann não havia permitido que Howard
participasse, embora ele estivesse ali, a ito, desde o começo. Sentiu-se feliz por
ser sua mulher.
A mesma enfermeira voltou, tomou o pulso do garoto outra vez e veri cou
o uxo do líquido no frasco que pendia acima da cama.
Uma hora depois, entrou outro médico. Disse que seu nome era Parsons, da
radiologia. Tinha um bigode cerrado. Usava mocassim, camisa à moda do
Oeste e calça jeans.
“Vamos levá-lo lá embaixo para tirar mais algumas chapas”, disse aos dois.
“Precisamos de mais chapas e queremos fazer uma tomogra a.”
“O que está havendo?”, perguntou Ann. “Uma tomogra a?” Ficou parada
entre aquele novo médico e a cama. “Pensei que vocês já tivessem tirado todos
os seus raios X.”
“Lamento, mas precisamos fazer mais alguns”, disse o médico. “Não é nada
com que se preocupar. Apenas precisamos de mais chapas e queremos
também fazer uma tomogra a do cérebro.”
“Meu Deus”, disse Ann.
“É um procedimento absolutamente normal em casos assim”, disse o novo
médico. “Só precisamos descobrir por que ele ainda não acordou. É um
procedimento normal, nada com que se alarmar. Vamos levá-lo para baixo por
alguns minutos”, disse o médico.
Pouco depois, dois assistentes entraram no quarto com uma maca. Eram
homens de cabelo preto e pele morena, usavam uniforme branco e trocaram
algumas palavras entre si numa língua estrangeira, enquanto tiravam o
menino do tubo e o passavam da cama para a maca. Em seguida, empurraram
a maca com rodinhas para fora do quarto. Howard e Ann pegaram o mesmo
elevador. Ann observava com atenção a criança. Fechou os olhos quando o
elevador começou a descer. Os ajudantes caram cada um de um lado da
maca, sem dizer nada, embora de vez em quando um deles comentasse
alguma coisa com o outro, na língua deles, e o outro, em resposta, assentia
devagar com a cabeça.
Mais tarde, naquela manhã, na hora em que o sol começava a iluminar com
mais força as janelas da sala de espera do setor de raios X, trouxeram o
menino para fora e o levaram de volta ao quarto. Howard e Ann mais uma vez
subiram no elevador junto com o lho e mais uma vez tomaram seus lugares
ao lado da cama.
Esperaram o dia inteiro, mas o garoto não acordou. De vez em quando, um
dos dois descia até a lanchonete para tomar um café ou um suco de frutas e
então, como se de repente se lembrasse e sentisse culpa, levantava de um salto
da mesa e voltava depressa para o quarto. O dr. Francis retornou naquela
tarde, examinou o menino mais uma vez e saiu, depois de lhes dizer que o
garoto estava melhorando e que agora podia acordar a qualquer momento.
Enfermeiras diferentes das enfermeiras da noite anterior entravam de vez em
quando. Então uma jovem do laboratório bateu na porta e entrou no quarto.
Vestia calça esporte branca e blusa branca, e trazia uma pequena bandeja com
objetos que colocou numa prateleira ao lado da cama. Sem dirigir uma
palavra aos dois, colheu sangue do braço do menino. Howard fechou os olhos
quando a mulher encontrou o ponto certo no braço do garoto e en ou a
agulha.
“Não estou entendendo isso”, disse Ann para a mulher.
“Ordens do médico”, disse a jovem. “Faço o que me mandam fazer.
Mandam tirar um pouco de sangue de alguém, eu vou e tiro. Qual é o
problema com ele, a nal?”, perguntou. “Ele é uma gracinha.”
“Um carro bateu nele”, respondeu Howard. “O motorista fugiu.”
A jovem balançou a cabeça e olhou de novo para o garoto. Em seguida,
pegou a bandeja e saiu do quarto.
“Por que será que ele não acorda?”, disse Ann. “Howard? Quero algumas
respostas dessa gente.”
Howard não disse nada. Sentou-se de novo na cadeira e cruzou as pernas.
Esfregou o rosto com as mãos. Olhou para o lho e depois se recostou na
cadeira, fechou os olhos e adormeceu.
Ann foi até a janela e olhou lá fora, para o estacionamento Era noite e carros
entravam e saíam do estacionamento com os faróis acesos. Ela cou junto à
janela, as mãos agarradas ao parapeito, e sabia, no fundo do coração, que
agora ela e o marido iam entrar numa nova etapa, mais difícil. Ela estava com
medo e seus dentes começaram a bater, até que precisou fazer força com a
mandíbula. Viu um carro grande na frente do hospital e uma pessoa, uma
mulher de casaco longo, entrar no carro. Desejou ser aquela mulher e que
alguém, qualquer um, a levasse embora dali de carro, para qualquer lugar, um
lugar onde encontrasse Scotty à sua espera quando saísse do carro, pronto
para dizer mamãe e deixar que ela o tomasse nos braços.
Dali a pouco, Howard acordou. Olhou de novo para o menino e então
levantou da cadeira, se espreguiçou e caminhou até a janela para car junto de
sua mulher. Os dois caram olhando para o estacionamento e não falaram
nada. Pareciam perceber o interior um do outro agora, como se a preocupação
os tivesse deixado transparentes, de um modo perfeitamente natural.
A porta se abriu e o dr. Francis entrou. Dessa vez vestia um terno e uma
gravata diferentes, mas seu cabelo estava do mesmo jeito e parecia que tinha
acabado de fazer a barba. Foi direto para a cama e examinou o menino. “Ele já
devia ter acordado a esta altura. Já não existe nenhuma boa razão para isto”,
disse. “Mas posso dizer a vocês que estamos todos convencidos de que ele não
corre perigo; apenas vamos nos sentir melhor quando ele acordar. Agora não
existe nenhum motivo, absolutamente nenhum motivo, para que ele não
acorde muito em breve. Ah, ele vai sentir uma tremenda dor de cabeça
quando acordar, contem com isso. Mas todos os seus sinais estão em ordem.
Não poderiam estar mais normais.”
“Então ele está em coma?”, disse Ann.
O doutor passou a mão por suas faces lisas. “Por enquanto, vamos chamar
assim, até ele acordar. Mas vocês devem estar esgotados. É muito duro car
esperando tanto tempo. Fiquem à vontade para sair um pouco”, disse. “Faria
bem a vocês. Vou pôr uma enfermeira aqui enquanto você estiverem fora, se
quiserem sair. Podem ir e tratem de comer alguma coisa.”
“Não vou conseguir comer”, disse Ann. “Estou sem fome.”
“Façam como quiser, claro”, disse o médico. “De qualquer forma, quero
dizer a vocês que todos os sinais dele estão bons, os exames deram negativo,
não apareceu nada, e assim que acordar ele vai se recuperar rápido.”
“Obrigado, doutor”, disse Howard. Apertou a mão do médico de novo, o
médico deu palmadinhas em seu ombro e saiu.
“Acho que um de nós dois devia ir para casa ver como estão as coisas”, disse
Howard. “Primeiro porque o Slug precisa comer.”
“Ligue para um dos vizinhos”, disse Ann. “Ligue para os Morgan. Qualquer
um pode dar comida a um cachorro, se você pedir.”
“Está certo”, respondeu Howard. Depois de um tempo, disse: “Querida, por
que você não faz isso? Por que não vai para casa, vê como estão as coisas por lá
e depois volta? Vai fazer bem a você. Eu co aqui com ele. Sério”, disse
Howard. “A gente precisa preservar as nossas forças numa situação dessas. Nós
vamos querer car aqui ainda um bom tempo, mesmo depois que ele
acordar.”
“Por que não vai você?”, perguntou Ann. “Dê comida ao Slug. Coma você
também.”
“Eu já fui para casa”, ele disse. “Fiquei lá exatamente uma hora e quinze
minutos. Agora você vai, ca lá por uma hora, mais ou menos, se recupera um
pouco e depois volta. Eu co aqui.”
Ann tentou pensar no assunto, mas estava cansada demais. Fechou os olhos
e tentou pensar naquilo de novo. Depois de um tempo, disse: “Talvez eu vá
para casa por alguns minutos. Quem sabe se eu não car aqui olhando para ele
o tempo todo ele acorde e que tudo bem outra vez? Entende? Quem sabe ele
acorde se eu não estiver aqui? Vou para casa tomar um banho e trocar de
roupa. Dou comida para o Slug. Depois volto”.
“Eu co aqui”, disse ele. “Vá para casa, querida. Vou car de olho em tudo.”
Seus olhos estavam vermelhos e pequenos, como se tivesse andado bebendo
por muito tempo. Suas roupas estavam amarrotadas. A barba tinha crescido
um pouco outra vez. Ann tocou no rosto do marido e depois afastou a mão.
Entendeu que ele queria car um pouco sozinho, não ter de falar nem dividir
sua preocupação por algum tempo. Ann pegou sua bolsa na mesinha e
Howard ajudou sua mulher a vestir o casaco.
“Não demoro”, disse ela.
“Sente-se, descanse por um tempo quando chegar em casa”, disse Howard.
“Coma alguma coisa. Tome um banho. Depois que sair do banho, descanse
um pouco. Vai fazer um bem enorme a você, vai ver só. Depois você volta”,
disse. “Vamos tentar não nos preocupar demais. Você ouviu o que o doutor
Francis falou.”
Ela cou ali com seu casaco por um momento, tentando lembrar as palavras
exatas do médico, procurando alguma nuance, algum vestígio de algo oculto
nas palavras dele que não fosse aquilo que ele tinha dito. Tentou lembrar se a
expressão do médico havia mudado, por pouco que fosse, quando se curvou
para examinar Scotty. Lembrou-se de como as feições do médico se
tranquilizaram quando ele levantou as pálpebras do menino e depois
auscultou sua respiração.
Ela foi até a porta, virou-se e olhou para o quarto. Olhou para o menino,
depois olhou para o pai. Howard assentiu com a cabeça. Ela saiu do quarto e
fechou a porta.
Passou pelo posto de enfermagem e seguiu até o m do corredor, em busca
do elevador. No m do corredor, virou à direita e entrou numa salinha de
espera onde uma família negra estava sentada em cadeiras de vime. Havia um
homem de meia-idade, de calça e camisa cáqui, boné de beisebol virado para
trás na cabeça. Uma mulher grande de vestido caseiro e chinelo estava
esparramada numa das cadeiras. Uma adolescente de jeans, o cabelo armado
com um monte de trancinhas enroscadas, estava esticada numa das cadeiras,
com as pernas para a frente, fumando um cigarro, e os tornozelos cruzados. A
família voltou os olhos para Ann quando ela entrou na sala. A mesinha estava
cheia de embalagens de hambúrgueres e copinhos de isopor.
“Franklin”, disse a mulher grande, se ajeitando na cadeira. “É sobre o
Franklin?” Os olhos dela se arregalaram. “Me diga logo, senhora”, falou a
mulher. “É sobre o Franklin?” Ela tentava se levantar da cadeira, mas o
homem havia fechado a mão sobre o braço dela.
“Calma, calma”, disse ele. “Evelyn.”
“Desculpe”, disse Ann. “Estou procurando o elevador. Meu lho está no
hospital e eu não estou conseguindo achar o elevador.”
“O elevador ca lá na frente, vire à esquerda”, disse o homem, apontando o
dedo.
A garota tragou fundo o seu cigarro e olhou bem para Ann. Os olhos dela
haviam se estreitado até se tornarem apenas duas fendas e seus lábios largos se
separaram devagar enquanto ela deixava escapar a fumaça. A mulher negra
deixou a cabeça tombar sobre o ombro e virou o rosto para Ann, sem mais
interesse.
“Um carro pegou meu lho”, Ann disse ao homem. Ela parecia precisar
explicar aquilo para si mesma. “Teve uma concussão e uma pequena fratura
no crânio, mas vai car bom. Ele agora está em estado de choque, mas
também pode ser uma espécie de coma. Isso é o que realmente preocupa a
gente, a questão do coma. Eu vou sair um pouco, mas meu marido está com
ele. Quem sabe ele acorda quando eu estiver fora.”
“Isso é muito ruim”, disse o homem e se mexeu na cadeira. Assentiu com a
cabeça. Olhou para a mesa e depois voltou a olhar para Ann. Ela continuava
parada no mesmo lugar. Ele disse: “O nosso Franklin, ele está na mesa de
operação. Alguém cortou ele. Tentou matar ele. Teve uma briga lá onde ele
estava. Naquela festa. Dizem que estava só parado, olhando. Não mexeu com
ninguém. Mas hoje em dia isso não signi ca mais nada. Agora ele está na mesa
de operação. A gente só ca torcendo e rezando por ele, é só o que a gente
pode fazer agora”. Olhou bem rme para ela e depois puxou a viseira do
boné.
Ann olhou de novo para a garota, que ainda olhava para ela, e também
olhou para a mulher mais velha, que continuava de cabeça baixa, mas agora de
olhos fechados. Ann viu que os lábios se moviam em silêncio, formando
palavras. Sentiu uma ânsia de perguntar que palavras eram aquelas. Queria
conversar mais com aquelas pessoas que estavam no mesmo tipo de espera
que ela. Ann estava com medo e eles estavam com medo. Tinham isso em
comum. Ann bem que gostaria de dizer mais alguma coisa sobre o acidente,
contar mais coisas sobre o Scotty, que aquilo havia acontecido no dia do
aniversário dele, segunda-feira, que ele ainda estava inconsciente. Porém não
sabia como começar e, assim, apenas cou olhando para eles sem falar mais
nada.
Avançou pelo corredor que o homem havia indicado e achou o elevador.
Ficou um momento diante das portas fechadas, ainda se perguntando se estava
mesmo fazendo a coisa certa. Em seguida, estendeu o dedo e apertou o botão.
Ela conduziu o carro até a entrada da garagem e desligou o motor. Fechou
os olhos e descansou a cabeça sobre o volante por um momento. Ouviu os
estalidos que o motor fazia enquanto esfriava. Depois saiu do carro. Podia
ouvir o cachorro latindo dentro de casa. Foi até a porta da frente, que estava
destrancada. Entrou, acendeu as luzes e pôs uma chaleira de água no fogo
para fazer um chá. Abriu uma latinha de comida para cachorro e alimentou o
Slug na varanda dos fundos. Ele comeu em pequenos bocados famintos. Não
parava de correr até a cozinha para ver se ela ia car em casa. Quando ela
estava sentada no sofá tomando o chá, o telefone tocou.
“Sim?”, disse ela tão logo atendeu. “Alô!”
“Senhora Weiss”, disse uma voz masculina. Eram cinco da manhã e ela
achou que ouvia um barulho de máquinas ou de algum equipamento no
fundo.
“Sim, sim, o que é?”, ela disse. “Aqui é a senhora Weiss. É ela mesma. O que
é, por favor?” Ficou escutando os barulhos ao fundo, sem saber o que era.
“Pelo amor de Deus, é sobre o Scotty?”
“Scotty”, disse a voz masculina. “É sobre o Scotty, sim. Tem a ver com o
Scotty, esse é o problema. A senhora se esqueceu do Scotty?”, perguntou o
homem. E depois desligou.
Ela discou o número do hospital e pediu para falar com o terceiro andar.
Perguntou sobre o lho à enfermeira que atendeu o telefone. Depois pediu
para falar com o marido. Disse que era uma emergência.
Ann cou esperando, torcendo o o do telefone nos dedos. Fechou os olhos
e sentiu um enjoo no estômago. Ela devia ter se forçado a comer alguma
coisa. Slug veio da varanda dos fundos e deitou no chão, perto dos pés dela.
Abanou o rabo. Ann puxava de leve as orelhas do cão, enquanto ele lambia
seus dedos. Howard atendeu o telefone.
“Alguém acabou de ligar pra cá”, disse ela. Ela torcia o o do telefone. “Ele
disse que era sobre o Scotty”, gritou.
“O Scotty está bem”, Howard lhe disse. “Quer dizer, continua dormindo.
Não houve nenhuma mudança. A enfermeira veio duas vezes depois que você
saiu. Mais ou menos de meia em meia hora, vem alguém. Uma enfermeira ou
um médico, um dos dois. Ele está bem, Ann.”
“Esse homem que telefonou, ele disse que era sobre o Scotty”, repetiu.
“Querida, descanse um pouco, você precisa descansar. Depois venha para cá.
Deve ser a mesma pessoa que telefonou quando eu estava aí. Esqueça. Venha
para cá depois que tiver descansado. Aí nós vamos tomar café da manhã ou
comer alguma coisa.”
“Café da manhã”, disse ela. “Eu não vou conseguir comer nada.”
“Você sabe o que eu quero dizer”, disse Howard. “Um suco, um bolinho,
qualquer coisa, sei lá. Sei lá, Ann. Meu Deus. Também não sinto fome. Ann, é
ruim falar aqui. Estou no balcão das enfermeiras. O doutor Francis voltará às
oito da manhã. Ele vai ter alguma coisa para nos dizer, alguma coisa mais
concreta. Foi o que uma das enfermeiras falou. Ela não sabe mais nada além
disso. Ann? Querida, talvez a gente que sabendo de mais alguma coisa lá
pelas oito. Venha antes das oito horas. Enquanto isso eu co aqui, o Scotty
está bem. Ele está do mesmo jeito”, acrescentou.
“Eu estava tomando uma xícara de chá”, disse ela, “quando o telefone
tocou. Disseram que era sobre o Scotty. Havia um barulho no fundo. No
telefonema que você atendeu também tinha um barulho no fundo, Howard?”
“Não me lembro”, disse ele. “Vai ver que é o motorista do carro que pegou
o Scotty, vai ver ele é um psicopata e de algum jeito descobriu sobre o Scotty.
Mas eu estou aqui com ele. Fique aí e descanse um pouco, como a gente
combinou. Tome um banho e volte pra cá às sete horas mais ou menos, e aí
nós dois conversamos com o médico quando ele chegar. Vai dar tudo certo,
meu bem. Eu estou aqui e tem médicos e enfermeiras por aqui a toda hora. Só
dizem que o estado dele é estável.”
“Estou morrendo de medo”, disse Ann.
Ela deixou a água correr, tirou a roupa e entrou na banheira. Lavou-se e
enxugou-se depressa, nem deu tempo de lavar o cabelo. Vestiu roupas de baixo
limpas, calça de lã e um suéter. Foi até a sala, onde o cachorro levantou os
olhos para ela e deixou o rabo bater uma vez contra o chão. Lá fora ainda
estava começando a clarear quando ela pegou o carro e saiu.
Chegou ao estacionamento do hospital e achou uma vaga perto da porta de
entrada. De um modo meio obscuro, sentia-se responsável pelo que havia
acontecido com o lho. Deixou os pensamentos se voltarem para a família de
negros. Lembrou-se do nome Franklin e da mesa coberta de papéis de
hambúrguer, e da garota adolescente que olhava rme para ela enquanto
tragava seu cigarro. “Não tenha lhos”, disse à imagem da garota na hora em
que entrou pela porta da frente do hospital. “Pelo amor de Deus, não tenha
lhos.”
Ann pegou o elevador e subiu ao terceiro andar com duas enfermeiras que
estavam iniciando seu turno. Era quarta-feira, alguns minutos antes das sete.
Houve um chamado para certo dr. Madison quando as portas do elevador se
abriram no terceiro andar. Ela saiu atrás das enfermeiras, que tomaram outra
direção e continuaram a conversa que ela havia interrompido ao entrar no
elevador. Ann seguiu pelo corredor rumo à salinha onde a família de negros
estivera esperando. Eles já tinham ido embora, mas as cadeiras estavam
espalhadas de um modo que dava a impressão de que as pessoas haviam
acabado de se levantar e saído às pressas. A mesa estava atulhada com as
mesmas embalagens e copinhos, o cinzeiro cheio de guimbas de cigarro.
Ela parou no posto de enfermagem na ponta do corredor, logo depois da
sala de espera. Uma enfermeira estava atrás do balcão, escovando o cabelo e
bocejando.
“Havia um rapaz negro na sala de cirurgia na noite passada”, disse Ann.
“Franklin alguma coisa, era o nome dele. A família estava na salinha de espera.
Eu queria saber como ele está.”
Uma enfermeira sentada numa escrivaninha atrás do balcão levantou os
olhos que estavam voltados para uma cha a sua frente. O telefone buzinou e
ela pegou o fone, mas continuou com os olhos voltados para Ann.
“Ele faleceu”, disse a enfermeira no balcão. A enfermeira cou segurando a
escova na mão e continuou olhando para ela. “A senhora é amiga da família ou
alguma coisa assim?”
“Conheci a família na noite passada”, disse Ann. “Meu lho está no hospital.
Parece que está em estado de choque. Não sabemos direito qual é o problema.
Eu apenas me lembrei desse rapaz, Franklin, só isso. Obrigada.”
Seguiu em frente pelo corredor. Portas de elevador da mesma cor que as
paredes se abriram e um homem careca, muito magro, de calça branca e
sapato branco de lona empurrou um pesado carrinho para fora do elevador.
Ann não tinha notado aquelas portas na noite anterior. O homem empurrou o
carrinho pelo corredor, parou na frente do quarto mais próximo do elevador e
consultou uma prancheta. Em seguida, abaixou e pegou uma bandeja que
estava no carrinho, bateu bem de leve na porta e entrou no quarto. Ann sentiu
um cheiro desagradável de comida quente quando passou pelo carrinho.
Passou depressa pelo posto de enfermagem seguinte sem olhar para as
enfermeiras e abriu a porta do quarto de Scotty.
Howard estava junto à janela com as mãos cruzadas nas costas. Virou-se
quando sua mulher entrou.
“Como ele está?”, perguntou Ann. Seguiu direto para junto da cama. Largou
a bolsa no chão ao lado da mesinha de cabeceira. Teve a impressão de que
fazia muito tempo que havia saído de lá. Tocou no cobertor em volta do
pescoço de Scotty. “Howard?”
“O doutor Francis esteve aqui agora há pouco”, disse Howard. Ann olhou
com atenção para o marido e achou que os ombros dele estavam um pouco
curvados.
“Achei que ele só viria às oito”, disse ela depressa.
“Veio outro médico junto com ele. Um neurologista.”
“Um neurologista”, disse Ann.
Howard fez que sim com a cabeça. Seus ombros estavam curvados, Ann via
isso muito bem agora. “O que foi que eles disseram, Howard? Pelo amor de
Deus, o que eles disseram? O que foi?”
“Disseram, bem, vão levar o Scotty para baixo e fazer mais alguns exames,
Ann. Acham que vão ter de operar, querida. Querida, eles vão operar. Não
conseguem entender por que ele não acorda. É mais do que choque ou
concussão, agora eles já sabem disso. Está dentro do crânio, a fratura, tem
alguma coisa, alguma coisa a ver com isso, eles acham. Então vão operar.
Tentei telefonar para você, mas acho que você já tinha saído de casa.”
“Ah, meu Deus”, disse Ann. “Ah, por favor, Howard, por favor”, disse ela,
segurando os braços do marido.
“Olhe!”, Howard disse. “Scotty! Olhe, Ann!” Virou sua mulher para a cama.
O garoto tinha aberto os olhos, depois os fechou. Abriu-os de novo. Os
olhos permaneceram xos à frente por um momento, depois se moveram
devagar até pousarem em Howard e Ann, depois vagaram de novo para o
outro lado.
“Scotty”, disse a mãe, aproximando-se da cama.
“Ei, Scott”, disse o pai. “Ei, lho.”
Inclinaram-se sobre a cama. Howard pegou a mão de Scotty em suas mãos e
começou a dar palmadinhas e a apertar. Ann curvou-se sobre o menino, beijou
sua testa várias vezes. Pôs as mãos nos dois lados do rosto do menino. “Scotty,
meu anjo, é a mamãe e o papai”, disse. “Scotty?”
O garoto olhou para eles, mas sem nenhum sinal de reconhecimento. Então
seus olhos se fecharam com força, sua boca se abriu e ele soltou um grito
longo, até não ter mais ar nos pulmões. Então seu rosto pareceu relaxar. Os
lábios se separaram enquanto seu último suspiro era soprado através da
garganta e exalado suavemente entre os dentes cerrados.
Os médicos chamaram aquilo de oclusão oculta e disseram que ocorria um
caso em um milhão. Se tivesse sido detectado mais cedo e a cirurgia feita
imediatamente, quem sabe ele se salvasse, porém o mais provável é que não.
Em todo caso, o que os médicos iriam procurar? Nada havia aparecido nos
exames nem nas radiogra as. O dr. Francis cou abalado. “Não tenho palavras
para dizer a vocês como estou me sentindo mal. Lamento muito mesmo,
vocês não fazem ideia”, disse, enquanto levava os pais para a sala dos médicos.
Havia um médico sentado numa cadeira com as pernas enganchadas no
encosto de outra cadeira vendo um programa matinal na tevê. Vestia um
uniforme verde desses usados em salas de parto, calça verde folgada e camisa
verde, e um gorro verde que cobria seu cabelo. Olhou para Howard e Ann,
depois olhou para o dr. Francis. Ficou de pé, desligou o televisor e saiu da sala.
O dr. Francis conduziu Ann até o sofá, sentou-se ao lado dela e começou a
falar numa voz baixa e consoladora. A certa altura, o médico se inclinou e
abraçou-a. Ann sentiu o peito do médico subindo e descendo ritmadamente
junto ao seu ombro. Ann continuou de olhos abertos, deixando que o médico
a abraçasse. Howard foi ao banheiro, mas não fechou a porta. Depois de um
violento ataque de choro, ele abriu a torneira e lavou o rosto. Em seguida, saiu
e sentou-se diante de uma mesinha onde havia um telefone. Olhou para o
telefone como se estivesse resolvendo o que ia fazer primeiro. Deu alguns
telefonemas. Depois de um tempo, o dr. Francis usou o telefone.
“Há mais alguma coisa que eu possa fazer por vocês no momento?”,
perguntou.
Howard disse que não com a cabeça. Ann olhou xo para o dr. Francis,
como se não entendesse suas palavras.
O médico os levou até a porta da frente do hospital. Pessoas entravam e
saíam do hospital. Eram onze da manhã. Ann tinha a consciência de que
movia os pés de forma vagarosa, quase relutante. Parecia-lhe que o dr. Francis
estava mandando os dois embora, quando ela de algum modo tinha a sensação
de que devia car, quando aquilo parecia ser o correto na situação, car ali.
Ann olhou para o estacionamento lá fora e depois, na calçada, olhou de novo
para trás, para a porta do hospital. Começou a sacudir a cabeça. “Não, não”,
disse. “Isso não está acontecendo. Não posso deixar o Scotty lá, não.” Ouviu a
própria voz e pensou como era errado que as únicas palavras que saíam de sua
boca eram palavras do tipo que se falam nos programas de televisão, quando
as pessoas cam chocadas ao saber de mortes violentas e repentinas. Ann
queria que suas palavras fossem delas mesma. “Não”, disse, e por alguma
razão a lembrança da cabeça da mulher negra caída sobre o ombro veio ao seu
pensamento. “Não”, disse de novo.
“Volto a falar com vocês ainda hoje, mais tarde”, o médico dizia para
Howard. “Há mais algumas coisas que precisam ser feitas, coisas que precisam
car claras para nós. Algumas coisas precisam ser explicadas.”
“Uma autópsia”, disse Howard.
O dr. Francis fez que sim com a cabeça.
“Entendo”, disse Howard. “Ah, meu Deus. Não, eu não entendo, doutor.
Não posso, não consigo. Não consigo de jeito nenhum.”
O dr. Francis pôs o braço nos ombros de Howard.
“Eu lamento. Deus sabe como eu lamento.” Em seguida, retirou o braço e
estendeu a mão. Howard olhou para a mão e depois a apertou. O dr. Francis
passou os braços em torno de Ann mais uma vez. O médico parecia cheio de
uma bondade que ela não compreendia. Deixou a cabeça repousar no ombro
do médico, mas seus olhos se mantiveram abertos. Continuava olhando para o
hospital. Quando deixaram o estacionamento, Ann olhou de novo para trás,
para o hospital.
Em casa, cou sentada no sofá com as mãos nos bolsos do casaco. Howard
fechou a porta que dava para o quarto de Scotty. Ligou a cafeteira e achou
uma caixa vazia. Tinha pensado em recolher algumas coisas de Scotty
espalhadas pela sala. Mas em vez disso sentou no sofá perto de sua mulher,
empurrou a caixa para o lado e inclinou-se com os braços entre os joelhos.
Começou a chorar. Ela puxou a cabeça de Howard para o seu colo e cou
dando palmadinhas no ombro do marido. “Ele se foi”, disse Ann. Continuou
dando palmadinhas no ombro do marido. Por cima dos soluços de Howard,
ela podia ouvir a cafeteira chiando lá na cozinha. “Pronto, pronto”, disse ela
com ternura. “Howard, ele se foi. Ele se foi e agora nós vamos ter de nos
acostumar com isso. A car sozinhos.”
Dali a pouco, Howard se levantou e começou a se movimentar pela sala,
sem rumo, com a caixa na mão, sem colocar nada dentro dela, mas pegando
algumas coisas no chão, ao lado da extremidade do sofá. Ann continuou
sentada com as mãos nos bolsos. Howard pôs a caixa no chão e trouxe o café
para a sala. Mais tarde, Ann deu telefonemas para os familiares. Depois que o
parente atendia o telefone, Ann atropelava umas poucas palavras e chorava
um minuto. Em seguida, explicava com calma, com voz estudada, o que havia
acontecido e lhes dizia o que iam fazer. Howard levou a caixa para a garagem,
onde viu a bicicleta de Scotty. Largou a caixa e sentou-se no chão, ao lado da
bicicleta. Pegou a bicicleta desajeitadamente e ela cou inclinada sobre seu
peito. Ele a segurou, o pedal de borracha contra o peito. Ele fez a roda girar
uma vez.
Ann desligou o telefone depois de falar com a irmã. Estava procurando
outro número quando o telefone tocou. Atendeu logo no primeiro toque.
“Alô”, disse, e de novo ouviu um barulho no fundo, um zumbido. “Alô!
Alô!”, repetiu. “Pelo amor de Deus”, disse. “Quem é? O que você quer? Fale
alguma coisa.”
“O seu Scotty, já aprontei ele para a senhora”, disse uma voz masculina. “A
senhora se esqueceu dele?”
“Seu desgraçado!”, ela gritou no aparelho. “Como pode fazer uma coisa
dessa, seu lho da mãe desgraçado?!”
“Scotty”, disse o homem. “A senhora se esqueceu do Scotty?” O homem
desligou na cara dela.
Ao ouvir o grito, Howard voltou e deparou com a mulher chorando em
cima da mesa, a cabeça sobre os braços. Pegou o fone e ouviu o sinal de discar.
Bem mais tarde, pouco antes da meia-noite, depois que eles tinham
resolvido muitas coisas, o telefone tocou outra vez.
“Atenda você”, disse ela. “Howard, é ele, eu sei.” Estavam sentados à mesa
da cozinha, com o café a sua frente. Howard tinha um pequeno copo de
uísque ao lado de sua xícara. Atendeu o telefone no terceiro toque.
“Alô”, disse. “Quem é? Alô! Alô!” A linha cou muda. “Desligou”, disse
Howard. “Seja lá quem for.”
“Era ele”, insistiu Ann. “Aquele sacana. Eu gostaria de matar esse sujeito”,
disse. “Eu gostaria de dar um tiro nele e ver seu corpo estrebuchar.”
“Ann, meu Deus”, disse Howard.
“Você escutou alguma coisa?”, ela perguntou. “No fundo? Um barulho de
máquinas, uma coisa zumbindo?”
“Não, na verdade nada. Nada desse tipo”, disse ele. “Nem deu tempo. Acho
que tinha uma música de rádio. Sim, tinha um rádio ligado, foi só o que
consegui ouvir. Não faço a menor ideia do que está acontecendo”, disse.
Ann balançou a cabeça. “Se eu pudesse, se eu pudesse pôr as mãos nele.”
Então ela se lembrou. Ela sabia quem era. Scotty, o bolo, o número do
telefone. Levantou-se empurrando a cadeira para trás, para bem longe da
mesa. “Me leve de carro até o centro comercial”, disse Ann. “Vamos,
Howard.”
“O que você está dizendo?”
“O centro comercial. Já sei quem está telefonando. Sei quem é. É o padeiro,
o padeiro lho da mãe, Howard. Eu encomendei um bolo com ele para o
aniversário do Scotty. É ele que está telefonando, é ele que tem o telefone da
gente e ca ligando. Para nos ameaçar por causa do bolo. O desgraçado do
padeiro.”
Foram de carro até o centro comercial. O céu estava limpo e as estrelas
brilhavam. Fazia frio e eles ligaram o aquecimento do carro. Estacionaram na
frente da padaria. Todas as lojas estavam fechadas, mas ainda havia carros na
extremidade do estacionamento, em frente aos dois cinemas vizinhos. As
janelas da padaria estavam na penumbra, mas quando eles olharam pelo vidro
viram uma luz na sala dos fundos, e de vez em quando um homem grande de
avental entrava e saía da faixa de luz branca e forte. Através do vidro, Ann viu
as caixas do mostruário e algumas mesinhas com cadeiras. Tentou abrir a
porta. Bateu com os dedos no vidro. Mas, se o padeiro ouviu o chamado, não
deu o menor sinal. Nem olhou naquela direção.
Pegaram o carro, foram até os fundos da padaria e estacionaram. Saíram do
veículo. Havia uma janela iluminada, alta demais para que pudessem olhar lá
dentro. Uma tabuleta perto da porta dos fundos dizia PADARIA CASEIRA,
É
Benny disse: “É, sim. Mostre a orelha para ele, Nelson. O Nelson acabou de
descer de um avião que veio do Vietnã com essa orelha. Essa orelha viajou
metade do planeta para vir parar aqui nesta mesa hoje à noite. Nelson, mostre
para ele”, disse Benny.
Nelson pegou a caixa e a estendeu para Khaki.
Khaki examinou a orelha. Levantou a correntinha e balançou a orelha na
frente do rosto. Olhou bem para ela. Deixou a orelha balançar de um lado
para o outro na ponta da correntinha. “Ouvi falar dessas orelhas secas, e
também de caralhos secos e outras coisas assim.”
“Tirei essa daí de um moleque vietnamita”, disse Nelson. “Ele já não podia
escutar nada mesmo. Eu queria uma lembrança.”
Khaki devolveu a orelha à caixinha.
Donna e eu começamos a sair do compartimento.
“Garota, não vá”, disse Nelson.
“Nelson”, disse Benny.
Khaki olhava para Nelson. Eu estava no canto do compartimento, com o
casaco de Donna na mão. Minhas pernas tinham enlouquecido.
Nelson levantou a voz. Falou: “Se você sair com esse babaca aí, deixar que
ele meta a cara nas suas carnezinhas gostosas, os dois vão ter de acertar as
contas comigo”.
Começamos a nos afastar do compartimento. As pessoas estavam olhando.
“O Nelson acabou de descer de um avião que chegou do Vietnã hoje de
manhã”, ouvi Benny dizer. “A gente cou o dia todo bebendo. Foi o dia mais
comprido do mundo. Mas eu e ele vamos nos comportar direito, Khaki.”
Nelson berrou alguma coisa mais alto do que a música. Berrou: “Não vai
adiantar nada! Podem fazer o que quiserem que não vai adiantar nada!”. Ouvi
Nelson gritar isso e depois não ouvi mais nada. A música parou e depois
recomeçou. Não olhamos para trás. Continuamos andando. Saímos para a
calçada.
Abri a porta do carro para ela. Peguei o caminho de volta em direção ao
hospital. Donna cou sentada quieta no banco. Chegou a usar o isqueiro para
acender um cigarro, mas não disse nada.
Tentei falar alguma coisa. Falei: “Escute, Donna, não que chateada por
causa disso. Lamento o que aconteceu”, falei.
É
“Até que aquele dinheiro cairia bem”, disse Donna. “É nisso que eu estava
pensando.”
Continuei dirigindo e não olhei para ela.
“É verdade”, disse ela. “Aquele dinheiro poderia ter me ajudado muito.”
Balançou a cabeça. “Sei lá”, disse. Baixou o queixo e chorou.
“Não chore”, falei.
“Não vou trabalhar amanhã, hoje, seja quando for; o alarme tocou”, disse
ela. “Não vou lá. Vou embora desta cidade. Para mim o que aconteceu agora
foi um sinal.” Apertou o isqueiro do carro e esperou ele subir de novo.
Estacionei ao lado do meu carro e desliguei o motor. Olhei pelo espelho
retrovisor, mais ou menos achando que eu ia ver o Chrysler velho entrar no
estacionamento atrás de mim, com Nelson no banco do motorista. Fiquei com
as mãos no volante por um minuto e depois deixei que caíssem nas minhas
pernas. Não queria tocar em Donna. O nosso abraço naquela noite na cozinha
de casa, os nossos beijos no Off-Broadway, tudo estava acabado.
Perguntei: “O que você vai fazer?”. Mas eu não estava ligando. Naquela
hora, ela podia até morrer de um ataque do coração que para mim não ia ter a
menor importância.
“Talvez eu vá mesmo para Portland”, disse ela. “Deve haver alguma coisa
em Portland. Portland anda na cabeça de todo mundo ultimamente. Portland
é a bola da vez. Portland isso, Portland aquilo. Portland é um lugar como
qualquer outro. Dá tudo no mesmo.”
“Donna”, falei. “É melhor eu ir embora.”
Comecei a sair do carro. Abri um pouco a porta e a luz interna acendeu.
“Pelo amor de Deus, apague essa luz!”
Saí depressa. “Boa noite, Donna”, falei.
Deixei Donna de olhos cravados no painel do carro. Liguei meu carro e
acendi o farol. Engrenei a primeira e pisei no acelerador.
Me servi de uísque, bebi um pouco e levei o copo para o banheiro. Escovei
os dentes. Depois abri uma gaveta. Patti gritou alguma coisa lá do quarto.
Abriu a porta do quarto. Ela ainda estava vestida. Tinha dormido sem trocar
de roupa, acho.
“Que horas são?”, berrou. “Dormi demais! Puxa, meu Deus! Você me
deixou dormir demais, seu bandido!”
Ela estava uma fera. Ficou parada na porta, toda vestida. Parecia que tinha
se arrumado para ir ao trabalho. Só que não havia nenhuma maleta de
amostras, nenhuma vitamina. Ela teve um pesadelo, só isso. Começou a
sacudir a cabeça de um lado para o outro.
Eu não ia conseguir aguentar mais nada naquela noite. “Vá dormir de novo,
meu anjo. Estou procurando uma coisa”, falei. Entornei umas coisas que
estavam na caixa de remédios. Coisas caíram dentro da pia. “Onde está a
aspirina?”, perguntei. Entornei mais coisas. Eu não queria nem saber. E as
coisas não paravam de cair.
Cuidado
A mulher se chamava srta. Dent e mais cedo, naquela noite, ela tinha
apontado um revólver para um homem. Obrigou o homem a se abaixar
até o chão e suplicar pela vida. Enquanto os olhos do homem se inundavam de
lágrimas e os dedos esmagavam folhas na terra, a mulher apontava o revólver
e lhe dizia coisas sobre ele mesmo. Tentava fazer o homem entender que ele
não podia continuar pisando nos sentimentos das pessoas. “Fique quieto!”,
disse ela, embora o homem estivesse apenas en ando os dedos na terra e
abrindo um pouco as pernas por causa do medo. Quando ela terminou de
falar, quando tinha dito tudo o que conseguiu pensar em dizer a ele, a mulher
pôs o pé na sua nuca e empurrou a cara dele contra a terra. Depois guardou o
revólver na bolsa e voltou para a estação de trem.
Sentou-se num banco na sala de espera deserta, com a bolsa no colo. A
bilheteria estava fechada; não tinha ninguém. Até o estacionamento da estação
estava vazio. Deixou os olhos carem pousados no grande relógio na parede.
Queria parar de pensar no homem e em como ele tinha se comportado com
ela depois de pegar o que queria. Mas ela sabia que ia se lembrar por muito
tempo do barulho que ele fez pelo nariz na hora em que caiu de joelhos. Ela
respirou fundo, fechou os olhos e tentou ouvir o barulho de um trem.
A porta da sala de espera da estação se abriu. A srta. Dent olhou naquela
direção quando duas pessoas entraram. Uma delas era um velho de cabelo
branco e gravata branca de seda; a outra, uma mulher de meia-idade com
sombra nos olhos, batom e vestido de tricô cor-de-rosa. A noite tinha esfriado,
mas nenhum dos dois vestia casaco, e o velho estava sem sapato. Pararam na
porta, aparentemente surpresos de ver alguém na sala de espera. Tentaram
agir como se a presença dela não fosse uma decepção. A mulher falou algo
para o velho, mas a srta. Dent não entendeu o que ela disse. Os dois entraram
na sala de espera. A srta. Dent teve a impressão de que os dois tinham um ar
agitado, de alguém que acabou de sair às pressas de algum lugar e ainda não
tinha tido oportunidade de conversar sobre algum assunto. Vai ver que os dois
beberam demais também, pensou a srta. Dent. A mulher e o velho de cabelo
branco olharam para o relógio, como se ele pudesse lhes dizer algo sobre a sua
situação e o que deveriam fazer em seguida.
A srta. Dent também voltou os olhos para o relógio. Não havia nada na sala
de espera que anunciasse o horário de chegada e partida dos trens. Mas estava
disposta a esperar o tempo que fosse. Sabia que, se esperasse bastante tempo,
algum trem acabaria chegando, ela poderia embarcar e o trem a levaria para
longe dali.
“Boa noite”, disse o velho para a srta. Dent. Ele disse isso, pensou ela, como
se fosse uma noite normal de verão e como se ele fosse um velho importante,
de sapatos e paletó social.
“Boa noite”, disse a srta. Dent.
A mulher de vestido de tricô olhou para ela de um jeito calculado, a m de
que a srta. Dent soubesse que a mulher não estava nada contente de encontrá-
la ali na sala de espera.
O velho e a mulher se sentaram num banco bem em frente à srta. Dent, do
outro lado da sala. Ela viu que o velho deu um pequeno puxão nos joelhos de
sua calça e depois cruzou as pernas e começou a abanar os pés calçados só de
meias. Tirou do bolso da camisa um maço de cigarros e uma piteira. En ou a
ponta do cigarro na piteira e levantou a mão até o bolso da camisa. Em
seguida pôs a mão no bolso da calça.
“Não tenho fogo”, disse para a mulher.
“Eu não fumo”, disse a mulher. “Se você soubesse alguma coisa sobre mim,
era de imaginar que soubesse isso. Se precisa mesmo fumar, ela pode ter
fósforos.” A mulher levantou o queixo e olhou com ar ferino para a srta. Dent.
Mas a srta. Dent fez que não com a cabeça. Puxou a bolsa mais para perto.
Mantinha os joelhos unidos, os dedos seguravam a bolsa com força.
“Então, além de tudo, não temos fósforos”, disse o velho de cabelo branco.
Veri cou outra vez nos bolsos. Depois deu um suspiro e tirou o cigarro da
piteira. Empurrou o cigarro de volta para dentro do maço. Pôs os cigarros e a
piteira no bolso da camisa.
A mulher começou a falar num idioma que a srta. Dent não compreendeu.
Achou que podia ser italiano, porque as palavras rápidas e metralhadas
pareciam as que tinha ouvido Sophia Loren usar num lme.
O velho balançou a cabeça. “Não consigo entender você, sabe. Está indo
depressa demais para mim. Precisa ir mais devagar. Vai ter de falar inglês. Não
consigo entender”, disse ele.
A srta. Dent relaxou a mão que segurava a bolsa e moveu-a do colo para um
lugar a seu lado, sobre o banco. Olhou o fecho da bolsa. Não tinha certeza do
que precisava fazer. Era uma sala pequena e ela não sentia a menor vontade de
levantar e ir sentar em outro lugar. Seus olhos se voltaram para o relógio.
“Não consigo esquecer aquele bando de malucos”, disse a mulher. “É uma
coisa espantosa! Não há palavras para exprimir uma coisa dessa. Meu Deus!” A
mulher disse isso e balançou a cabeça. Afundou no banco, como se estivesse
exausta. Ergueu os olhos e olhou xo para o teto.
O velho pegou a gravata de seda entre os dedos e começou a enrolá-la e
desenrolá-la despreocupadamente. Abriu um botão da camisa e en ou a
gravata para dentro. Parecia estar pensando em alguma outra coisa enquanto
a mulher continuava a falar.
“Tenho pena é daquela garota”, disse a mulher. “A pobre coitada sozinha
numa casa cheia de imbecis e víboras. É dela que eu tenho pena. Ela é quem
vai acabar pagando por tudo! Nenhum dos outros. Mas sem dúvida não estou
falando daquele idiota que chamam de capitão Nick! Ele não é o responsável
por nada. Ele não”, disse a mulher.
O velho ergueu os olhos e olhou em volta da sala de espera. Fitou a srta.
Dent por um momento.
A srta. Dent olhou por cima do ombro dele, na direção da janela. Lá viu o
poste alto de iluminação, sua luz brilhando no estacionamento vazio.
Mantinha as mãos unidas sobre o colo e tentava se concentrar nos seus
assuntos. Mas não conseguia deixar de ouvir o que os dois diziam.
“Garanto a você”, disse a mulher. “Só me preocupo com a garota. Quem
quer saber do resto daquela tribo? Toda a existência deles está tomada por café
au lait e cigarros, o seu precioso chocolate suíço e aquelas malditas araras.
Nada mais tem importância para eles”, disse a mulher. “Com o que eles se
importam? Espero nunca mais ver aquele lugar em toda a minha vida. Está me
entendendo?”
“Claro, entendo, sim”, respondeu o velho. “Claro.” Pôs os pés no chão e
depois apoiou a outra perna em cima do joelho. “Mas não se a ija com isso
agora”, disse.
“‘Não se a ija com isso agora’, ele me diz. Por que você não se olha no
espelho?”, disse a mulher.
“Não se preocupe comigo”, respondeu o velho. “Já me aconteceram coisas
piores e ainda estou aqui.” Riu baixinho e balançou a cabeça. “Não se
preocupe comigo.”
“Como é que posso não me preocupar com você?”, perguntou a mulher.
“Quem mais vai se preocupar com você? Aquela mulher com a bolsa por acaso
vai se preocupar com você?”, disse, e parou tempo su ciente para olhar bem
para a srta. Dent. “Estou falando sério, amico mio. Dê só uma olhada em você!
Meu Deus, se eu já não tivesse tantas coisas na cabeça, podia ter um colapso
nervoso aqui mesmo. Me diga: quem é que vai se preocupar com você se não
for eu? Estou fazendo uma pergunta séria. Você sabe muito bem”, disse a
mulher. “Então responda.”
O velho de cabelo branco cou de pé e depois se sentou de novo. “Não se
preocupe comigo, só isso”, disse. “Se preocupe com outra pessoa. Se quer se
preocupar com alguém, se preocupe com a tal garota e com o capitão Nick.
Você estava no outro quarto na hora em que ele falou: ‘Não sou sério, mas
estou apaixonado por ela’. Foram exatamente essas as palavras dele.”
“Eu sabia que uma coisa assim ia acontecer!”, gritou a mulher. Cerrou os
dedos e levou as mãos às têmporas. “Eu sabia que você ia me contar uma coisa
dessa! Mas também não estou surpresa. Não estou, não. As pintas de um
leopardo nunca mudam. Nunca foram ditas palavras mais verdadeiras do que
essas. Vivendo e aprendendo. Mas quando é que você vai acordar, seu velho
bobo? Me responda só isso”, disse ela. “Será que você é como uma mula, que
primeiro precisa levar uma varada no meio dos olhos? O Dio mio! Por que você
não se olha no espelho?”, disse a mulher. “Dê uma boa olhada em si mesmo
enquanto ainda está inteiro.”
O velho se levantou do banco e se aproximou do bebedouro. Pôs uma mão
nas costas, girou o botão e curvou-se para beber. Depois cou ereto e enxugou
o queixo com as costas da mão. Juntou as mãos nas costas e começou a andar
lentamente em volta da sala de espera da estação, como se estivesse dando um
passeio.
Mas a srta. Dent podia ver os olhos do velho varrendo atentamente o chão,
os bancos vazios, os cinzeiros. Compreendeu que o homem estava
procurando fósforos, e a srta. Dent lamentou não ter nenhum.
A mulher se virou para acompanhar o passeio do velho. Ergueu a voz e
disse: “Kentucky Fried Chicken no Polo Norte! Coronel Sanders de parca e
botas. Aí já não dava mais para aguentar! Isso foi o limite!”.
O velho não respondeu. Continuou sua circum-navegação pela sala até parar
na janela da frente. Ficou parado diante da janela com as mãos nas costas,
olhando para o estacionamento vazio.
A mulher se virou para a srta. Dent. Puxou o pano embaixo do braço do
vestido. “Da próxima vez eu queria ver lmes domésticos sobre Point Barrow,
Alasca e os esquimós nativos americanos, vou perguntar sobre isso. Meu Deus,
foi extraordinário! Tem gente que não tem limite. Tem gente capaz de matar
os inimigos só de tédio. Mas você precisava estar lá para ver.” A mulher tou a
srta. Dent com veemência, como se a desa asse a contestar.
A srta. Dent pegou sua bolsa e colocou-a no colo. Olhou para o relógio, que
parecia andar muito devagar, se é que andava.
“Você não é de falar muito”, disse a mulher para a srta. Dent. “Mas aposto
que é capaz de falar um bocado se alguém der um empurrãozinho. Não é?
Mas você é bem dissimulada. Prefere car aí sentada com a sua boquinha
metida a besta, enquanto os outros cam falando até estourar. Não estou
certa? Águas paradas são mais fundas. Como é mesmo o seu nome?”,
perguntou a mulher. “Como é que eles chamam você?”
“Senhorita Dent. Mas eu não conheço você”, disse a srta. Dent.
“Eu também nunca vi você mais gorda!”, disse a mulher. “Não conheço
você nem quero conhecer. Pode car aí e pensar o que quiser. Não muda nada
para mim. Mas sei o que penso, e penso que tem alguma coisa aqui cheirando
mal!”
O velho saiu de perto da janela e foi para fora. Quando voltou, um minuto
depois, tinha um cigarro aceso na piteira e parecia mais bem-humorado. Seus
ombros estavam erguidos e o queixo levantado. Sentou-se ao lado da mulher.
“Achei uns fósforos”, disse. “Estavam lá, uma cartela de fósforos encostada
no meio- o. Alguém deve ter deixado cair.”
“Basicamente, você tem sorte”, disse a mulher. “E na sua situação isso é um
diferencial. Eu sempre soube disso sobre você, ainda que ninguém soubesse.
Sorte é importante.” A mulher lançou um olhar para a srta. Dent e disse:
“Jovem senhora, vou apostar que a senhora teve a sua cota de provações e de
enganos na vida. Sei que teve. Seu rosto me diz isso. Mas a senhora não vai
falar sobre o assunto. Então faça como quiser, não fale. Deixe que a gente fale.
Mas a senhora vai car mais velha. Aí vai ter coisas para contar. Espere só até
ter a minha idade. Ou a idade dele”, disse a mulher e apontou o polegar para o
velho. “Deus me livre. Mas vai chegar a sua vez de encarar tudo isso. Na sua
hora certa e aprazada, isso vai chegar. Você também não vai ter de correr atrás
disso. Você é que vai ser alcançada.”
A srta. Dent levantou-se do banco e foi, com a bolsa na mão, até o
bebedouro. Bebeu no bebedouro, virou-se e deu uma olhada nos dois. O velho
tinha terminado de fumar. Tirou da piteira o que havia sobrado do cigarro e
jogou embaixo do banco. Bateu a piteira na palma da mão, soprou a boquilha
e recolocou a piteira no bolso da camisa. Agora ele também voltou a atenção
para a srta. Dent. Fixou os olhos nela e cou esperando, junto com a mulher.
A srta. Dent tomou coragem para falar. Não estava certa de como devia
começar, mas achava que podia começar dizendo que tinha um revólver na
bolsa. Também podia dizer a eles que quase havia matado um homem pouco
antes, naquela noite.
Mas naquele momento ouviram o trem. Primeiro ouviram o apito, depois
um barulho de ferros, um sino de alarme, enquanto a grade de proteção
baixava na passagem de nível. A mulher e o velho de cabelo branco
levantaram do banco e foram em direção à porta. O velho abriu a porta para
sua acompanhante e então sorriu e fez um pequeno movimento com os dedos
para a srta. Dent passar na frente dele. Ela apertou a bolsa diante de si e seguiu
a mulher mais velha para fora.
O trem soprou seu apito outra vez, enquanto reduzia a velocidade, e então
parou na frente da estação. A luz da cabine da locomotiva balançava para a
frente e para trás sobre os trilhos. Os dois vagões que formavam aquele
pequeno trem estavam bem iluminados, portanto foi fácil para as três pessoas
na plataforma ver que o trem estava quase vazio. Mas isso não os surpreendeu.
Naquela hora, cariam surpresos de ver alguém no trem.
Os poucos passageiros nos vagões olharam para fora através do vidro e
acharam estranho ver aquelas pessoas na plataforma, se preparando para
embarcar naquela hora da noite. O que as teria levado a sair de casa? Era uma
hora em que as pessoas deviam estar pensando em ir para a cama. As cozinhas
das casas do morro atrás da estação estavam limpas e arrumadas; os lava-
louças já tinham terminado seus ciclos havia muito tempo, tudo estava no
lugar. As pequenas luzes que permanecem acesas à noite ardiam nos quartos
das crianças. Algumas adolescentes ainda podiam estar lendo romances,
enquanto seus dedos torciam uma mecha de cabelo. Mas os televisores agora
estavam sendo desligados. Maridos e esposas faziam seus preparativos para a
noite. A meia dúzia de passageiros, sentados sozinhos nos vagões, olhava pelo
vidro e se perguntava quem seria aquela gente na plataforma.
Viram uma mulher muito maquiada de meia-idade, com um vestido cor-de-
rosa de tricô, subir a escadinha e entrar no trem. Atrás dela veio uma mulher
mais jovem, com blusa de verão e saia, segurando uma bolsa com força. Elas
foram seguidas por um velho que caminhava lentamente e que dava a si
mesmo ares de importância. O velho tinha cabelo branco e gravata de seda
branca, mas estava sem sapato. Os passageiros naturalmente imaginaram que
as três pessoas que embarcaram estavam juntas; e tiveram certeza de que,
quaisquer que tivessem sido os negócios daqueles três naquela noite, não
haviam chegado a bom termo. Mas os passageiros tinham visto as coisas mais
diferentes ao longo da vida. O mundo está repleto de negócios de todo tipo,
como eles sabiam muito bem. Por essa razão, mal voltaram a pensar naqueles
três novos passageiros que passaram pelo corredor entre as poltronas e foram
ocupar seus assentos — a mulher e o velho de cabelo branco juntos um do
outro; a jovem com a bolsa, alguns assentos atrás. Em vez disso, os passageiros
olharam lá fora, para a estação, e voltaram a pensar em seus próprios assuntos,
coisas com que estavam envolvidos antes da parada na estação.
O cobrador olhou para os trilhos. Depois olhou para trás, na direção de
onde o trem tinha vindo. Ergueu o braço e, com sua lanterna, fez sinal para o
maquinista. Era o que o maquinista estava esperando. Ele virou um botão e
empurrou uma alavanca. O trem começou a se mover. No início avançou
devagar, mas depois começou a ganhar velocidade. Andou cada vez mais
depressa, até correr de novo em velocidade pela escura zona rural, enquanto
os vagões radiantes lançavam luz no leito da estrada de ferro.
Febre
AJUDA — Leitura para um cego, e um número de telefone. Ela telefonou, foi até
lá e acabou contratada na hora. Trabalhou para o tal cego durante todo o
verão. Lia muita coisa para ele, casos reais, reportagens, coisas assim. Ajudou
o cego a organizar seu pequeno escritório no departamento de serviço social
do município. Ficaram amigos, minha mulher e o cego. Como sei dessas
coisas? Ela me contou. E me contou outra coisa também. No seu último dia
no escritório do cego, ele perguntou se podia tocar no rosto dela. Minha
mulher concordou. Contou que os dedos dele tocaram em todas as partes do
seu rosto, o nariz — até o pescoço! Ela nunca esqueceu. Tentou até escrever
um poema sobre isso. Vivia tentando escrever um poema. Escrevia um ou dois
poemas por ano, em geral depois de alguma coisa realmente importante ter
acontecido com ela.
Quando começamos a sair, ela me mostrou o poema. No poema, ela
lembrava os dedos dele e a maneira como se moveram pelo seu rosto. No
poema, ela falava do que sentiu na hora, do que passou pelo seu pensamento
quando o cego tocou seu nariz e seus lábios. Lembro que não achei o poema
grande coisa. Claro, não falei para ela. Vai ver que eu não entendo de poesia,
só isso. Reconheço que poesia não é a primeira coisa que procuro quando vou
pegar um livro para ler.
Mas, como eu ia dizendo, o tal homem que foi o primeiro a desfrutar os
favores dela, o candidato a o cial, tinha sido seu namoradinho dos tempos de
menina. Tudo bem. O que estou dizendo é que no m do verão ela deixou o
cego passar as mãos no rosto dela, se despediu dele, casou com o namorado
dos tempos de menina, que então já era um o cial, e foi embora de Seattle.
Mas os dois mantiveram contato, ela e o cego. Foi ela quem fez o primeiro
contato, depois de mais ou menos um ano. Telefonou para ele à noite, de uma
base aérea do Alabama. Queria conversar. Os dois conversaram. Ele pediu que
ela mandasse uma ta gravada pelo correio contando como estava a sua vida.
Ela fez isso. Mandou a ta. Na ta, contava a respeito do marido e da vida dos
dois nas Forças Armadas. Contou ao cego que amava o marido, mas que não
gostava do lugar onde moravam, e que não gostava de fazer parte da indústria
militar. Contou ao cego que tinha escrito um poema e que ele, o cego, estava
no poema. Contou que estava escrevendo um poema sobre como era a vida de
uma esposa de um o cial da Força Aérea. O poema não estava pronto. Ela
ainda estava escrevendo. O cego gravou uma ta. Mandou a ta para ela. Ela
gravou uma ta. Isso continuou durante anos. O o cial da minha mulher vivia
sendo transferido de base. Ela mandou tas de bases em Moody, McGuire,
McConnell e por m Travis, perto de Sacramento, onde certa noite se sentiu
solitária e triste por viver perdendo os amigos que fazia naquela vida de se
mudar a toda hora de um lugar para o outro. Teve a sensação de que não ia
mais conseguir viver assim. Engoliu todas as pílulas e comprimidos que
estavam no armário de remédios e ainda por cima bebeu uma garrafa de gim
para ajudar a mandar tudo para dentro. Depois foi tomar um banho quente e
apagou.
Mas, em vez de morrer, ela cou doente. Vomitou. O seu o cial — por que
ele precisaria ter um nome? Era o namoradinho de infância dela, o que mais
ele quer? — chegou em casa vindo de não sei onde, achou a mulher e chamou
uma ambulância. Mais tarde, ela contou tudo isso numa ta e mandou para o
cego. Com o correr dos anos, ela gravava todo tipo de coisa nas tas e logo
depois despachava pelo correio. Além de escrever um poema todos os anos,
acho que esse era o seu principal passatempo. Numa ta, contou ao cego que
tinha resolvido viver longe do seu o cial por um tempo. Em outra ta, falou
para ele do seu divórcio. Eu e ela começamos a sair, e é claro que ela contou
isso ao cego. Contava tudo a ele, pelo menos era o que me parecia. Uma vez
me perguntou se eu não gostaria de ouvir a última ta que o cego tinha
mandado. Faz um ano. Eu estava na ta, disse ela. Respondi que tudo bem, ia
escutar a ta, sim. Peguei bebidas para nós e nos instalamos na sala. Nos
preparamos para escutar. Primeiro ela colocou a ta no toca- tas e regulou
uns botões. Depois puxou uma alavanca. A ta deu um guincho e alguém
começou a falar com uma voz muito alta. Ela baixou o volume. Depois de
alguns minutos de um papo-furado inofensivo, ouvi meu nome na boca
daquele desconhecido, o cego que eu nem sequer conhecia! E depois isto: “De
tudo o que você disse sobre ele, só posso concluir...”. Mas fomos
interrompidos, bateram na porta, ou alguma outra coisa, e nunca mais
voltamos a ouvir a ta. Pode ser que tenha sido melhor assim. Já tinha ouvido
tudo o que eu queria ouvir.
Agora aquele mesmo cego estava vindo dormir na minha casa.
“Talvez eu possa levar o seu amigo para jogar boliche”, falei para minha
mulher. Ela estava na pia cortando batatas. Baixou a faca que estava usando e
se virou para mim.
“Se você me ama”, disse, “faça isso por mim. Se não me ama, tudo bem.
Mas se você tivesse um amigo, qualquer amigo, e esse amigo viesse visitar
você, eu ia fazer de tudo para ele se sentir à vontade.” Limpou as mãos com o
pano de prato.
“Não tenho nenhum amigo cego”, falei.
“Você não tem amigo nenhum”, disse ela. “Ponto- nal. Além disso”,
emendou, “puxa vida, a mulher dele acabou de morrer! Será que você não
entende? O homem acabou de perder a mulher!”
Não respondi. Ela me falou um pouco mais sobre a mulher do cego. O
nome dela era Beulah. Beulah! Isso é nome de mulher de cor.
“A mulher dele era crioula?”, perguntei.
“Você está maluco?”, disse minha mulher. “Será que você pirou de vez?”
Pegou uma batata. Vi a batata bater no chão e depois rolar para baixo do
fogão. “O que é que você tem?”, perguntou. “Está embriagado ou o quê?”
“Estou só perguntando”, falei.
Minha mulher logo despejou em cima de mim muito mais detalhes do que
eu queria saber. Preparei uma bebida e sentei junto à mesa da cozinha para
escutar. Pedaços daquela história começaram a se encaixar.
Beulah tinha ido trabalhar para o cego no verão, depois que minha mulher
havia deixado de trabalhar para ele. Não demorou muito, Beulah e o cego
casaram na igreja. Foi um casamento pequeno — a nal, quem ia querer ir a
um casamento daqueles? —, só os dois mais o pastor e a mulher do pastor.
Mas, para todos os efeitos, foi um casamento na igreja. Era o que Beulah
queria, disse ele. Mas já naquele tempo Beulah devia estar com câncer nas
glândulas. Depois de viverem inseparáveis durante oito anos — palavra da
minha mulher, inseparáveis —, a saúde de Beulah entrou em rápido declínio.
Morreu num quarto de hospital em Seattle, o cego sentado ao lado da cama,
segurando a mão dela. Casaram, moravam e trabalhavam juntos, dormiam
juntos — faziam sexo, claro — e depois o cego teve de enterrar a mulher.
Tudo isso sem ele jamais ter visto que aspecto tinha o raio da mulher. Era uma
coisa além da minha compreensão. Ao ouvir aquilo, tive um pouquinho de
pena do cego. Depois me vi pensando na vida lamentável que aquela mulher
devia ter tido. Imagine uma mulher que nunca podia se ver como era vista
pelos olhos do homem que amava. Uma mulher que vivia dia após dia sem
nunca receber um elogio do seu amado. Uma mulher cujo marido nunca ia
poder ver a expressão do rosto dela, fosse de angústia ou de alguma coisa
melhor. Alguém que podia usar maquiagem ou não usar — que diferença faria
para ele? Se quisesse, ela poderia usar uma sombra verde em volta de um olho,
um al nete en ado no nariz, calças amarelas folgadas e sapatos roxos, tanto
fazia. E depois resvalar para a morte, a mão do cego segurando sua mão, os
olhos cegos dele cheios de lágrimas — imagino agora — e o último
pensamento da mulher podia ser este: ele nunca soube como era o aspecto
dela de verdade, e lá ia a mulher num trem expresso direto para a sepultura.
Robert cou com uma pequena apólice de seguro e metade de uma moeda de
vinte pesos mexicanos. A outra metade da moeda cou no caixão com ela.
Patético.
Então, quando chegou a hora marcada, minha mulher foi à estação pegar o
cego. Sem nada mais para fazer a não ser esperar — claro, pus a culpa nele por
isso —, eu estava tomando um drinque e vendo tevê quando ouvi o carro
parar na entrada. Levantei do sofá com a bebida na mão e fui até a janela dar
uma olhada.
Vi minha mulher rindo enquanto estacionava o carro. Vi minha mulher sair
do carro e fechar a porta. Ainda estava sorrindo. Era espantoso. Deu a volta
para o outro lado do veículo, onde estava o cego, que já começava a sair do
carro. O cego, imagine só, tinha uma barba enorme! Uma barba num cego! É
demais, francamente. O cego esticou o braço para o banco traseiro e puxou
uma mala. Minha mulher amparou o homem pelo braço, fechou a porta do
carro e, falando por todo o caminho, conduziu o cego pela entrada e depois
pela escadinha da varanda. Desliguei a televisão. Terminei minha bebida, lavei
o copo, enxuguei as mãos. Depois fui até a porta.
Minha mulher disse: “Quero te apresentar o Robert. Robert, esse é o meu
marido. Já contei a você tudo sobre ele”. Ela sorria radiante. Segurava o cego
pela manga do paletó.
O cego largou sua mala e estendeu a mão.
Apertei a mão. Ele apertou com força, cou segurando um pouco minha
mão e depois soltou.
“Tenho a sensação de que já nos conhecemos”, falou com seu vozeirão.
“Eu também”, respondi. Não sabia o que mais eu podia dizer. Depois falei:
“Seja bem-vindo. Ouvi falar muito de você”. Então começamos a andar, um
pequeno grupo, da varanda para a sala, e minha mulher o guiava pelo braço.
O cego levava sua mala na outra mão. Minha mulher ia dizendo coisas como:
“Para a esquerda agora, Robert. Isso mesmo. Agora cuidado, tem uma
cadeira. Isso. Sente aí. É o sofá. Compramos esse sofá há duas semanas”.
Eu ia começar a dizer alguma coisa sobre o sofá velho. Eu gostava daquele
sofá velho. Mas não falei nada. Depois quis falar alguma outra coisa, puxar um
papo à toa, falar da paisagem pitoresca que a gente vê quando viaja de trem
pela beira do rio Hudson. Queria falar como é que, quando a gente viaja para
Nova York, deve sentar no lado direito do trem e quando a gente vem de Nova
York deve sentar no lado esquerdo.
“Fez boa viagem?”, perguntei. “Por falar nisso, de que lado do trem você
sentou?”
“Que pergunta, de que lado do trem!”, disse minha mulher. “Que
importância tem o lado?”, exclamou.
“Eu só perguntei”, respondi.
“No lado direito”, disse o cego. “Fazia quase quarenta anos que eu não
andava de trem. Desde que eu era criança. Com minha família. Já faz muito
tempo. Tinha quase esquecido a sensação. Agora estou com o inverno na
minha barba”, disse. “A nal, envelheci. Estou com um ar distinto, minha
querida?”, perguntou à minha mulher.
“Está com um ar distinto sim, Robert”, respondeu ela. “Robert”, disse.
“Robert, como é bom ver você.”
Minha mulher nalmente tirou os olhos do cego e olhou para mim. Tive a
sensação de que não gostou do que viu. Encolhi os ombros.
Eu nunca tinha encontrado, nem conhecido pessoalmente, alguém cego.
Aquele cego era um homem à beira dos cinquenta anos, corpulento, meio
careca, de ombros curvados, como se carregasse ali um grande peso. Usava
calças marrons, sapatos marrons, camisa marrom-clara, gravata, paletó
esporte. Arrumadinho. Além disso tinha aquela barba grande. Mas não usava
bengala nem óculos escuros. Sempre pensei que óculos escuros fossem uma
obrigação para os cegos. O fato é que eu preferia que ele usasse óculos
escuros. À primeira vista, os olhos dele pareciam iguais aos de qualquer
pessoa. Mas se a gente prestasse atenção havia uma coisa diferente neles. Para
começar, tinha branco demais na íris e as pupilas pareciam se mexer nas
órbitas dos olhos sem que ele soubesse ou que fosse capaz de impedir. Sinistro.
Quando olhei com atenção para aquela cara, vi a pupila esquerda virar na
direção do nariz, enquanto a outra fazia um esforço para continuar no lugar.
Mas era só um esforço, pois aquele olho passeava para tudo quanto era lado,
sem que ele soubesse ou quisesse aquilo.
Falei: “Vou servir um drinque para você. O que prefere? Temos um pouco
de tudo. É um de nossos passatempos”.
“Meu camarada, sou um homem do uísque”, respondeu bem depressa com
sua voz cheia.
“Muito bem”, falei. “Você é dos meus! Logo vi que era.”
Deixou os dedos tocarem sua mala, que estava no chão ao lado do sofá. Ele
estava conferindo suas coordenadas. Não o censurei por isso.
“Vou levar a mala para o seu quarto”, disse minha mulher.
“Não, está bem assim”, respondeu o cego em voz alta. “Ela pode subir junto
comigo.”
“Um pouco de água no uísque?”, perguntei.
“Muito pouca”, respondeu.
“Eu sabia”, falei.
Ele disse: “Só um pingo. Aquele ator irlandês, Barry Fitzgerald, não é? Sou
como ele. Quando bebo água, disse Fitzgerald, bebo água. Quando bebo
uísque, bebo uísque”. Minha mulher riu. O cego ergueu a mão por baixo da
barba. Levantou a barba devagar e deixou-a cair.
Preparei as bebidas, três copos grandes de uísque com um borrifo de água.
Então nos acomodamos confortavelmente e conversamos sobre as viagens de
Robert. Primeiro o longo voo da Costa Leste até Connecticut. Cobrimos todo
esse tema. Depois, de Connecticut até aqui de trem. Tomamos mais uma
bebida para tratar dessa parte da viagem.
Lembrei que tinha lido em algum lugar que os cegos não fumavam porque,
essa era a hipótese, não podiam ver a fumaça que exalavam. Eu achava que era
isso e só isso que eu sabia sobre cegos. Mas aquele cego fumava seu cigarro até
o m e depois logo acendia outro. Aquele cego enchia o cinzeiro e minha
mulher esvaziava.
Quando sentamos à mesa para jantar, pegamos mais uma bebida. Minha
mulher encheu o prato de Robert até em cima com bife, batatas picadas e
assadas e feijão verde. Passei manteiga em duas fatias de pão para ele. Falei:
“Tome aqui um pão com manteiga para você”. Engoli um pouco da minha
bebida. “Agora vamos rezar”, falei, e o cego baixou a cabeça. Minha mulher
me olhou de boca aberta. “Vamos rezar para que o telefone não toque
justamente agora e a gente tenha que comer comida fria”, falei.
Atacamos os pratos cheios de vontade. Comemos tudo o que havia para
comer em cima da mesa. Comemos como se não fosse haver o dia seguinte.
Não conversamos. Comemos. Raspamos o prato. Passamos o rodo naquela
mesa. Estávamos ali para comer a sério. O cego localizou na mesma hora as
suas comidas, sabia exatamente onde tudo estava no prato. Eu observava com
admiração enquanto ele usava o garfo e a faca na sua comida. Cortou a carne
em dois pedaços, espetou um no garfo e o levou à boca, depois avançou cheio
de gás nas batatas assadas, depois no feijão e depois rasgou um pedaço de pão
com manteiga e comeu. Tudo isso regado com um grande gole de leite.
Também não parecia se importar muito em usar os dedos de vez em quando.
Liquidamos tudo, inclusive metade de uma torta de morango. Durante
alguns momentos, camos parados, como que atordoados. O suor brilhava em
nosso rosto. Por m, levantamos da mesa e deixamos os pratos sujos. Nem
olhamos para trás. Fomos para a sala e afundamos de novo em nossos lugares.
Robert e minha mulher sentaram no sofá. Ocupei a poltrona grande.
Tomamos mais duas ou três bebidas enquanto os dois conversavam sobre as
coisas mais importantes que tinham acontecido com eles nos últimos dez
anos. A maior parte do tempo só quei escutando. De vez em quando eu
falava alguma coisa. Eu não queria que ele pensasse que eu tinha saído da sala,
e eu não queria que ela pensasse que eu estava me sentindo excluído. Eles
falaram de coisas que tinham acontecido — com eles! — nos últimos dez anos.
Esperei em vão ouvir meu nome nos doces lábios da minha mulher: “E então
meu querido marido entrou na minha vida” — algo assim. Mas não ouvi nada
desse tipo. Falavam mais de Robert. Pelo jeito, Robert tinha feito um pouco de
tudo, um cego que era um verdadeiro homem dos sete instrumentos. No
entanto, mais recentemente, ele e a mulher tinham conseguido uma
representação da empresa Amway, e assim, pelo que entendi, vinham
ganhando a vida modestamente. O cego era também radioamador. Com
aquela sua voz retumbante, falava de suas conversas com radioamadores em
Guam, nas Filipinas, no Alasca e até no Taiti. Disse que teria uma porção de
amigos à disposição se algum dia quisesse visitar aqueles lugares. De vez em
quando, virava o rosto cego para mim, punha a mão embaixo da barba, me
perguntava alguma coisa. Fazia quanto tempo que eu estava na minha atual
posição? (Três anos.) Eu gostava do meu trabalho? (Não gostava.) Eu ia
continuar no emprego? (Quais eram as opções?) Por m, quando achei que ele
estava começando a car cansado, levantei e liguei a televisão.
Minha mulher me olhou irritada. Estava à beira de explodir. Então olhou
para o cego e disse: “Robert, você tem televisão?”.
O cego falou: “Minha querida, tenho dois televisores. Tenho um aparelho
em cores e um preto e branco, uma relíquia. É engraçado, mas quando ligo a
televisão, e estou sempre ligando a televisão, ligo o aparelho em cores.
Engraçado, não acha?”.
Fiquei sem saber o que responder. Eu não tinha absolutamente nada para
dizer. Nenhuma opinião. Então quei vendo o noticiário e tentei escutar o que
o locutor dizia.
“Esse é um televisor em cores”, disse o cego. “Não me pergunte como eu
sei, mas sei.”
“A gente comprou faz pouco tempo”, falei.
O cego tomou mais um gole da sua bebida. Levantou a barba, cheirou-a e a
deixou cair de novo. Inclinou-se para a frente no sofá. Colocou o cinzeiro na
mesinha de centro, depois levou o isqueiro até seu cigarro. Recostou-se no
sofá e cruzou as pernas na altura dos tornozelos.
Minha mulher cobriu a boca e depois bocejou. Espreguiçou-se. Falou: “Acho
que vou subir e pôr o meu roupão. Acho que vou trocar de roupa. Robert, se
ajeite de maneira mais confortável”, disse.
“Estou confortável”, respondeu o cego.
“Quero que você se sinta confortável nesta casa”, disse ela.
“Estou confortável”, disse o cego.
Depois que ela saiu da sala, eu e ele camos escutando a previsão do tempo
e depois a cobertura esportiva. Nessa altura, já fazia tanto tempo que ela havia
saído que eu não sabia mais se ela ia voltar. Achei que podia ter ido dormir.
Torci para que ela descesse. Não queria car sozinho com um cego. Perguntei
se ele não queria mais uma bebida e ele respondeu que sim, claro. Depois
perguntei se não queria fumar maconha comigo. Eu falei que havia acabado
de enrolar alguns. Eu não tinha feito isso, mas era o que eu pretendia fazer em
seguida.
“Vou experimentar um pouco”, disse ele.
“Beleza”, falei. “É assim que se fala.”
Fui pegar nossos drinques e sentei no sofá com ele. Depois enrolei para nós
dois baseados bem gorduchos. Acendi um e passei para ele. Coloquei entre
seus dedos. Ele segurou e inalou.
“Prenda o ar o máximo que conseguir”, falei. Dava para ver que ele não
entendia do assunto.
Minha mulher desceu vestindo o roupão cor-de-rosa e os chinelos cor-de-
rosa.
“Que cheiro é esse?”, perguntou ela.
“A gente achou que podia fumar um pouco de cannabis”, respondi.
Minha mulher me lançou um olhar furioso. Depois olhou para o cego e
disse: “Robert, eu não sabia que você fumava”.
Ele disse: “Agora fumo, minha querida. Para tudo há uma primeira vez. Mas
ainda não estou sentindo nada”.
“Esta aqui é muito fraquinha”, falei. “É suave. É maconha para a gente
continuar raciocinando”, falei. “Não confunde as ideias da gente.”
“Não mesmo, meu camarada”, disse ele, e riu.
Minha mulher sentou no sofá entre mim e o cego. Passei o baseado para ela,
que pegou, deu uma tragada e passou de volta para mim. “Em que direção
está rodando?”, perguntou ela. Depois falou: “Eu não devia estar fumando
isto. Mal consigo me manter de olhos abertos do jeito que já estou. Esse jantar
acabou comigo. Não devia ter comido tanto”.
“Foi a torta de morango”, disse o cego. “Ela é que fez isto”, disse ele, e riu
com sua gargalhada alta. Depois balançou a cabeça.
“Tem mais torta de morango”, falei.
“Quer mais, Robert?”, perguntou minha mulher.
“Talvez daqui a pouco”, respondeu.
Voltamos nossa atenção para a tevê. Minha mulher bocejou outra vez.
Disse: “Quando você sentir vontade de ir dormir, sua cama já está feita,
Robert. Sei que deve ter tido um dia longo. Quando tiver vontade de ir para a
cama, é só dizer”. Ela puxou o braço do cego. “Robert?”
Ele acordou e disse: “Tive momentos ótimos. Isso é mais legal do que as
tas, não é?”.
Falei: “Sua vez de novo”, e pus o baseado entre seus dedos. Ele inalou,
prendeu a fumaça e depois soltou. Parecia que fazia aquilo desde o nove anos.
“Obrigado, meu camarada”, disse ele. “Mas acho que para mim já chega.
Acho que estou começando a sentir”, disse. Ofereceu a guimba do baseado
aceso para a minha mulher.
“Pois é”, disse ela. “Idem, idem. Eu também.” Ela pegou a guimba e passou
para mim. “Acho que vou car aqui só mais um pouquinho, entre vocês dois,
de olhos fechados. Mas não quero incomodar vocês, está legal? Nenhum dos
dois. Se eu estiver incomodando é só dizer. Se eu não incomodar, vou car
aqui sentada de olhos fechados até a hora de vocês irem para a cama”, disse
ela. “Sua cama está pronta, Robert, quando quiser ir. Fica bem do lado do
nosso quarto, no alto da escada. A gente vai mostrar onde é quando você
estiver pronto. Vocês me acordem, viu, vocês dois, se eu pegar no sono.” Disse
isso, fechou os olhos e adormeceu.
O noticiário da tevê terminou. Levantei e mudei de canal. Recostei-me no
sofá. Bem que eu gostaria que minha mulher não tivesse apagado. A cabeça
dela estava tombada para trás, sobre o encosto do sofá, e ela estava de boca
aberta. Tinha virado de um jeito que o roupão havia escorregado de suas
pernas, deixando à mostra uma coxa bem suculenta. Estiquei a mão para
puxar o roupão por cima dela e aí lancei um olhar para o cego. Que diabo!
Larguei a aba do roupão aberta outra vez.
“Se quiser mais um pouco de torta de morango é só dizer”, falei.
“Pode deixar”, respondeu.
Perguntei: “Está cansado? Quer que eu leve você para a cama? Está pronto
para puxar um ronco?”.
“Ainda não”, disse ele. “Não, vou car acordado com você, meu camarada.
Se não houver problema. Vou car acordado até você sentir vontade de ir
dormir. Ainda não tivemos oportunidade de conversar. Sabe do que estou
falando? Acho que eu e ela acabamos monopolizando a noite.” Levantou a
barba e a deixou cair de novo. Pegou seus cigarros e seu isqueiro.
“Não tem problema”, falei. Depois eu disse: “Estou contente de ter
companhia”.
E acho que estava mesmo. Toda noite eu fumava maconha e cava acordado
o máximo que conseguia antes de pegar no sono. Era muito raro eu e minha
mulher irmos para a cama no mesmo horário. Quando eu ia dormir, tinha
aqueles sonhos. Às vezes eu acordava de um sonho assim e meu coração batia
feito doido.
Na tevê estava passando alguma coisa que tinha a ver com a Igreja e a Idade
Média. Nada dessas coisas que a gente costuma ver na tevê. Eu queria ver
outra coisa. Fui mudando de canal. Mas neles também não havia nada. Aí
voltei para o primeiro canal e pedi desculpas.
“Meu camarada, está tudo bem”, disse o cego. “Para mim está ótimo. O que
você quiser ver está bom. Estou sempre aprendendo alguma coisa. O
aprendizado nunca termina. Não vai me fazer mal nenhum aprender alguma
coisa esta noite. Sei ouvir”, disse ele.
Ficamos calados por um tempo. Ele estava inclinado para a frente com a
cabeça virada para mim, a orelha direita apontada para o televisor. Muito
desconcertante. De vez em quando suas pálpebras tombavam e depois se
abriam de repente. De vez em quando punha os dedos na barba e puxava,
como se estivesse pensando em alguma coisa que estava ouvindo na tevê.
Na tela, um grupo de homens vestidos com capuz de monge estavam sendo
atacados e atormentados por homens vestidos com fantasias de esqueleto e de
diabo. Os homens vestidos de diabo usavam máscaras de diabo, chifres e rabos
compridos. Aquela pantomima fazia parte de uma procissão. O inglês que
estava narrando o negócio dizia que aquilo ocorria na Espanha uma vez por
ano. Tentei explicar ao cego o que estava acontecendo.
“Esqueletos”, disse ele. “Sei o que são esqueletos”, disse, e assentiu com a
cabeça.
A tevê mostrou uma catedral. Depois veio uma tomada longa e lenta de
outra catedral. Por m, surgiu a imagem daquela catedral famosa em Paris,
com seus arcobotantes suspensos e suas torres que subiam até as nuvens. A
câmera recuou para mostrar o conjunto de catedrais se erguendo contra o
horizonte.
O inglês que narrava aquele negócio de vez em quando cava calado e
simplesmente deixava a câmera passear sobre as catedrais. Ou então a câmera
se voltava para paisagens rurais, homens andando atrás de bois em campos de
lavoura. Esperei o mais que pude. Aí achei que eu precisava falar alguma coisa.
Disse: “Agora estão mostrando a parte externa da catedral. As gárgulas. Umas
estátuas pequenas esculpidas para parecerem monstros. Acho que agora estão
na Itália. Tem pinturas nas paredes dessa igreja”.
“São afrescos, meu camarada?”, perguntou e tomou um gole do seu
drinque.
Estendi a mão para alcançar meu copo. Mas estava vazio. Tentei me lembrar
do que eu podia. “Está me perguntando se são afrescos?”, falei. “Boa pergunta.
Não sei.”
A câmera focalizou uma catedral nos arredores de Lisboa. As diferenças
entre a catedral portuguesa e as francesas e italianas não eram lá muito
grandes. Mas havia diferenças. Sobretudo no interior. Então me ocorreu uma
coisa e eu falei: “Sabe, me ocorreu uma coisa. Você tem alguma ideia do que é
uma catedral? Como é que elas são, entende? Está sacando o que quero dizer?
Se alguém diz para você ‘catedral’, você tem alguma ideia do que a pessoa está
falando? Sabe a diferença entre ela e uma igreja batista, por exemplo?”.
Ele soltou um pouco de fumaça pela boca. “Sei que sua construção exigia
centenas de operários e que levavam cinquenta ou cem anos para car
prontas”, disse. “Acabei de ouvir o homem falar isso, claro. Sei que diversas
gerações das mesmas famílias trabalhavam numa catedral. Ouvi o homem
dizer isso também. Os homens que iniciavam a vida trabalhando numa
catedral morriam sem ver seu trabalho concluído. Nesse aspecto, meu
camarada, eles não são em nada diferentes de nós, certo?” Riu. Então suas
pálpebras baixaram outra vez. A cabeça balançou um pouco, para cima e para
baixo. Ele parecia estar cochilando. Talvez estivesse se imaginando em
Portugal. Agora a tevê mostrava outra catedral. Ficava na Alemanha. A voz do
inglês continuava sua lenga-lenga. “Catedrais”, disse o cego. Ergueu os
ombros e rodou a cabeça de um lado para o outro. “Se que saber a verdade,
meu camarada, isso é tudo que eu sei. Isso que acabei de dizer. O que ouvi o
homem falar. Mas quem sabe você pode me descrever uma catedral? Eu
gostaria que zesse isso. Gostaria muito. Para dizer a verdade, não tenho uma
boa ideia do que é uma catedral.”
Olhei com atenção a imagem da catedral na tevê. Como é que eu ia
conseguir até mesmo começar a descrever aquilo? Mas digamos que minha
vida dependesse disso. Digamos que minha vida estivesse sendo ameaçada por
um maluco que dissesse que eu tinha de fazer aquilo senão...
Observei mais um pouco a catedral antes de a imagem mudar de repente
outra vez para uma paisagem rural. Não tinha jeito. Virei para o cego e disse:
“Antes de mais nada, elas são muito altas”. Fiquei olhando em volta da sala,
em busca de alguma ideia. “Elas sobem muito alto. Vão subindo, subindo a
vida toda. Na direção do céu. Algumas são tão grandes que precisam de
escoras. Que ajudem a sustentar, sabe. Essas escoras são chamadas de
arcobotantes. Para mim, lembram os viadutos, não sei por quê. Mas talvez
você também não saiba como são os viadutos, não é? Às vezes as catedrais têm
uns demônios, umas coisas assim esculpidas na frente. Às vezes uns senhores e
umas senhoras. Não me pergunte por quê”, falei.
Ele fazia que sim com a cabeça. Toda a parte superior do seu corpo parecia
se mover para a frente e para trás.
“Não estou me saindo muito bem, não é?”, falei.
Ele parou de balançar a cabeça e inclinou-se para a beira do sofá. Enquanto
me ouvia, passava os dedos por dentro da barba. Eu não estava conseguindo
explicar, dava para ver pela cara dele. Mesmo assim ele esperava que eu
continuasse. Assentiu com a cabeça, como se quisesse me incentivar a
prosseguir. Tentei achar mais alguma coisa para dizer. “Elas são grandes
mesmo”, falei. “São pesadas. São feitas de pedra. De mármore também, às
vezes. Antigamente, na época em que os homens construíam catedrais, eles
queriam car perto de Deus. Antigamente, Deus era uma parte importante da
vida de todo mundo. Dá para ver isso pela construção das catedrais.
Desculpe”, falei, “mas parece que isso é o máximo que consigo fazer por você.
Eu não sou bom nisso.”
“Tudo bem, meu camarada”, disse o cego. “Ei, escute. Espero que não se
importe de eu perguntar. Mas posso perguntar uma coisa para você? Deixe eu
fazer a você uma pergunta simples, do tipo sim ou não. É que estou curioso, e
não há nenhum desrespeito no que vou perguntar. Você é meu an trião. Mas
queria perguntar se você tem algum tipo de religião. Não se importa que eu
pergunte?”
Fiz que não com a cabeça. No entanto, ele não podia ver isso. Um piscar de
olhos e um balanço da cabeça são a mesma coisa para um cego. “Acho que não
acredito nisso. Em nada. Às vezes não é fácil. Sabe como é?”
“Claro que sim”, respondeu.
“Certo”, falei.
O inglês continuava falando. Minha mulher deu um suspiro dormindo.
Respirou fundo e continuou a dormir.
“Você vai ter que me desculpar”, falei. “Mas não consigo explicar a você
como é o aspecto de uma catedral. Não tenho essa capacidade. Não consigo
dizer mais do que já disse.”
O cego permaneceu imóvel, de cabeça baixa enquanto me ouvia falar.
Falei: “A verdade é que as catedrais não têm nenhum signi cado especial
para mim. Nada. Catedrais. São uma coisa para a gente car vendo na tevê
tarde da noite. É só isso que são”.
Foi aí que o cego pigarreou para limpar a garganta. Levantou alguma coisa
na mão. Tinha tirado um lenço do bolso de trás. Depois falou: “Entendo, meu
camarada. Está tudo bem. Acontece. Não se preocupe”, falou. “Ei, escute
aqui. Pode me fazer um favor? Tive uma ideia. Você podia arranjar um papel
grosso? E uma caneta? Vamos fazer uma coisa. Vamos desenhar uma catedral
juntos. Pegue uma caneta e um papel grosso. Vamos lá, meu camarada, traga
esse material”, disse.
Então fui até o andar de cima. Minhas pernas pareciam estar sem força. A
sensação era que eu tinha acabado de voltar de uma corrida. No quarto da
minha mulher, dei uma olhada em volta. Achei umas esferográ cas numa
cestinha na mesa dela. E depois tentei pensar onde podia encontrar o tipo de
papel que ele estava pedindo.
No térreo, na cozinha, achei um saco de compras com umas cascas de
cebola no fundo. Esvaziei o saco e sacudi com força. Levei-o para a sala e
sentei no chão com ele, perto das pernas do cego. Tirei algumas coisas do
lugar, alisei as rugas do saco de papel, estendi o saco em cima da mesinha de
centro.
O cego desceu do sofá e sentou no tapete ao meu lado.
Ele passou os dedos sobre o papel. Subiu e desceu os dedos pelas margens
do papel. As beiradas, até as beiradas. Ele tocou todos os cantos.
“Tudo bem”, disse. “Tudo bem, vamos fazer uma.”
Localizou minha mão, a mão com a caneta. Fechou a sua mão em cima da
minha. “Agora vamos lá, meu camarada, desenhe”, disse. “Desenhe. Você vai
ver. Vou acompanhar você. Vai dar certo. É só começar do jeito como estou
dizendo. Você vai ver. Desenhe”, disse o cego.
Então comecei. Primeiro desenhei uma caixa que parecia uma casa. Podia
ser a casa onde eu morava. Depois z um telhado em cima. Nas duas pontas
do telhado, pus torres. Que doideira.
“Ótimo”, disse ele. “Fantástico. Você está indo muito bem”, disse. “Nunca
imaginou que uma coisa assim podia acontecer na sua vida, não é, meu
camarada? Bem, a vida é uma coisa estranha mesmo, todos sabem disso.
Agora vá em frente. Continue.”
Acrescentei janelas com arcos. Desenhei os arcobotantes. Pus umas portas
grandes. Não conseguia parar. O canal de tevê saiu do ar. Baixei a caneta e
fechei e abri os dedos. O cego tateou a superfície do papel. Moveu as pontas
dos dedos pelo papel, percorreu tudo o que eu havia desenhado e assentiu
com a cabeça.
“Está muito bom”, disse o cego.
Peguei a caneta de novo e ele achou minha mão. Continuei. Não sou
nenhum artista nem nada. Mas continuei desenhando assim mesmo.
Minha mulher abriu os olhos e olhou para nós. Ela se endireitou no sofá,
seu roupão ainda aberto. Falou: “O que vocês estão fazendo? Me contem,
quero saber”.
Não respondi.
O cego disse: “Estamos desenhando uma catedral. Eu e ele estamos fazendo
esse trabalho. Aperte a caneta com força”, ele me disse. “Assim mesmo. Muito
bem”, disse. “Claro. Você pegou o jeito, meu camarada. Não há dúvida. Você
achava que não ia conseguir. Mas consegue, não é? Agora você esquentou os
motores. Entende o que estou dizendo? Daqui a pouco a gente vai conseguir
fazer aqui uma coisa fora do comum. E o velho braço, como vai?”, perguntou.
“Vamos pôr umas pessoas lá dentro agora. O que é uma catedral sem gente?”
Minha mulher disse: “O que é que está acontecendo? Robert, o que você
está fazendo? O que está acontecendo?”.
“Está tudo bem”, disse ele. “Agora feche os olhos”, disse o cego para mim.
Fechei. Fechei os olhos como ele disse.
“Estão fechados?”, perguntou. “Não pode trapacear.”
“Estão fechados”, falei.
“Fique com os olhos assim”, disse ele. “Agora não pare, continue
desenhando.”
E a gente continuou desenhando. Os dedos dele guiavam os meus, enquanto
minha mão se movia sobre o papel. Nunca na vida eu tinha experimentado
uma coisa assim.
Então ele disse: “Acho que está pronto. Acho que você conseguiu”, disse ele.
“Dê uma olhada. O que acha?”.
Mas eu estava de olhos fechados. Fiquei com vontade de manter os olhos
fechados por mais tempo. Achei que era uma coisa que eu devia fazer.
“E então?”, perguntou ele. “Está vendo?”
Meus olhos ainda estavam fechados. Eu estava na minha casa. Sabia disso.
Mas não tinha a sensação de estar dentro de nada.
“É mesmo incrível”, falei.
CONTOS RECOLHIDOS
A nos atrás li uma coisa numa carta de Tchekhov que me impressionou. Era um
conselho para um de seus muitos correspondentes, e dizia mais ou menos o
seguinte: Amigo, você não precisa escrever sobre gente extraordinária que realiza feitos
extraordinários e memoráveis. (Entendam que na época eu estava na faculdade e lia
peças sobre príncipes, duques e sobre a derrubada de reinos. Buscas do cálice sagrado e
coisas do gênero, grandes façanhas com o objetivo de pôr os heróis em seus devidos
lugares. Romances com heróis exagerados e fora da realidade.) Mas ler o que Tchekhov
tinha a dizer naquela carta, bem como em outras cartas, e seus contos me levou a ver
as coisas de modo diferente.
Raymond Carver “The art of ction ” LXXVI