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As Anotações

de Malte Laurids Brigge


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Título: As Anotações de Malte Laurids Brigge


Título original: Die Aufzeichnungen des Malte Laurids Brigge (1910)
Autor: Rainer Maria Rilke
Tradução e Prefácio: Maria Teresa Dias Furtado
Revisão técnica: Helder Guégués
Capa: Fernando Mateus sobre foto do autor

© Relógio D' Água Editores, Dezembro de 2003

Composição e paginação: Relógio D' Água Editores


Impressão: Rolo & Filhos, Artes Gráficas, Lda.
Depósito Legal n.º: 204281103
Rainer Maria Rilke

As Anotações
de Malte Laurids Brigge

Tradução e Prefácio de
Maria Teresa Dias Furtado

Clássicos
Índice

Prefácio
As Anotações de Malte Laurids Brigge 15

1 Então é mesmo para aqui que as pessoas vêm ...


(Primeiras impressões de Paris) 35
2 E não poder eu ...
(Ruídos noctumos) 36
3 São estes os ruídos ...
(O silêncio) 36
4 Aprendo a ver ...
(Aprender a ver: «Uma interioridade que desconhecia») 37
5 Já o disse?
(Aprender a ver: rostos) 37
6 Tenho medo
(Hôtel-Dieu: a chegada dos moribundos) 38
7 Este Hôtel excelente ...
(Hôtel-Dieu: morrer em série) 39
8 Sempre que penso na minha casa ...
(A morte do camareiro, uma «morte própria») 40
9 E quando penso nos outros ...
(A «morte própria»: exemplos do passado) 45
10 Fiz uma coisa contra o medo
(A escrita; o passado perdido) 45
11 Hoje esteve uma bela manhã de Outono
(Cores outonais; o homem com a muleta) 46
8 Índice

12 O que uma lua assim tão pequena é capaz de causar!


(Cores outonais: «uma plenitude em que nada falta») 46
13 Em baixo encontra-se a seguinte composição ...
(A tocadora de realejo com os filhos) 47
14 Acho que deveria começar a trabalhar um pouco ...
(Trabalhos literários até ao presente; versos são experiências;
as grandes questões) 47
15 Doze ou treze anos ...
(O avô Brahe em Umekloster: a aparição
de Christine Brahe) 52
16 Estou sentado a ler um poeta
(Na Biblioteca Nacional; Malte e os marginalizados) 61
17 Muitas vezes passo por pequenas lojas ...
(Antiquários, alfarrabistas, vendedores de gravuras) 66
18 É bom dizer alto ...
(O vendedor de couve-flor cego; a casa demolida;
o moribundo no pequeno restaurante;
o «tempo de uma outra interpretação»;
Baudelaire e o Livro de Job) 66
19 O médico não me compreendeu
(No Hospital Salpetriere) 74
20 E agora ainda por cima esta doença ...
(«Todos os medos desaparecidos se tomaram presentes») 81
21 Ontem a febre baixou ...
(0 epiléptico) 82
22 Tento escrever-te ...
(Uma carta: a Santa; transformações;
Une Charogne de Baudelaire e
Saint Julien l' Hospitalier de Flaubert) 87
23 A existência do terrível . ..
(Medos noctumos; a mãe) 89
24 O moldador ...
(Beethoven) 91
25 Não o menosprezo
(Marginalizados: a dar de comer aos pássaros) 92
26 Debrucei-me sobre os teus livros ...
�� �
27 Só então reparei ...
(História de Ingeborg 1; a mamã) 97
As Anotações de Malte Laurids B rigge 9

28 Mas, quando falava de Ingeborg ...


(A escrivaninha de Ingeborg; a mamã;
História de Ingeborg 2) 98
29 Uma vez, quando já escurecera no decurso desta narrativa ...
(A mão vinda da parede) 101
30 E foi então que veio uma dessas doenças ...
(Medos nocturnos com febre; a mãe) 105
31 Mas o que custava a passar eram as tardes ...
(Tardes durante doenças com a mãe;
Malte no papel de «Sophie») 107
32 Quando agora me ponho a reflectir ...
(Malte diante do espelho) 109
33 O tempo passava com uma rapidez incalculável ...
(Visitas do pregador Dr. Jespersen;
os pais de Malte e a religião; a morte da mamã;
o tio Christian Brahe) 115
34 Só muitos anos mais tarde ...
(Umekloster: na galeria com Erik Brahe) 118
35 Caro, meu caro Erik ...
(O retrato a óleo de Erik Brahe) 122
36 Quando havia visitas e chamavam Erik ...
(A avó Margarete Brigge; a sua morte) 123
37 Foi no ano a seguir à morte da mamã ...
(Primeiro interesse por Abelone; o seu canto;
cartas de amor enviadas da Academia dos Nobres;
reencontro nas férias) 127
38 Há aqui tapeçarias ...
(As tapeçarias da Dame à la Licorne) 130
39 Agora as tapeçarias ...
(As mulheres) 132
40 Mas agora, que tanta coisa muda ...
(Homens: «aprender o trabalho do amor») 135
41 Agora também me vem à memória ...
(As peças de renda) 136
42 Muitas vezes, quando havia visitas ...
(O palácio dos Schulins que ardera) 137
43 Mas os dias mais ricos de experiências quase inconcebíveis ...
(Os aniversários natalícios) 142
10 Índice

44 Que alguém soubesse narrar, narrar a sério ...


(O conde Brahe dita a Abelone as suas memórias;
o marquês de Belmare) 144
45 Ainda antes da morte do meu pai tudo se tinha modificado
(Na casa da cidade do pai; a perfuração do coração) 150
46 Sei que me julguei ...
(Na cidade paterna; os papéis do pai:
a morte de Christian IV.) 154
47 Desde então tenho reflectido muito sobre o medo da morte ...
(Medo da morte) 156
48 Aliás compreendo agora inteiramente ...
(A morte de Felix Arvers e de S. João de Deus) 159
49 Há um ser totalmente inofensivo ...
(Vizinhos; vizinho 1:
Nikolai Kusmitsch e o «Banco do Tempo») 160
50 Depois desta experiência fiz o propósito ...
(Vizinho 2: o estudante de Medicina) 166
51 Quase já me tinha esquecido do meu vizinho ...
(A caixa de lata; o solitário) 169
52 Como compreendo agora as estranhas imagens ...
(As Tentações de Santo Antão) 172
53 Quando se fala dos homens solitários ...
(O solitário e os outros) 173
54 Esta noite voltei a lembrar-me do livrinho verde ...
(0 livro verde: o falso czar Grischa Otrepjow) 174
55 Quando agora penso nisso, parece-me estranho ...
(O livro verde: a morte de Carlos, o Temerário) 177
56 É bom verificar simplesmente certas coisas ...
(Férias em Ulsgaard:
a primeira leitura de Malte e Abelone) 182
57 Esta promessa continua a realizar-se ...
(Abelone e Bettina von Arnim) 187
58 O destino gosta de inventar desenhos e figuras
(Destino - vida; o amado - a amante) 188
59 Nunca ousei comprar-lhe um jornal ...
(O ardina cego) 189
60 Não é que me queira distinguir deles ...
(Marginalizados: as amantes) 192
As Anotações de Malte Laurids Brigge 11

61 Sei que, se estiver destinado ao que há de extremo ...


(O século xrv: Carlos VI de França; Papa João XXII;
Pierre de Luxemburgo-Ligny) 194
62 Aqui estou sentado, nesta noite fria ...
(O episódio da infância envolvendo um homem desconhecido;
Carlos VI e a representação dos Mistérios da Paixão
pelos irmãos missionários) 202
63 Por fora muita coisa mudou
(«Nem seres autênticos, nem actores») 206
64 Foi no teatro de Orange
(O anfiteatro romano em Orange) 206
65 Se tivéssemos teatro ...
(Eleonora Duse) 208
66 As mulheres amadas vivem mal e correm perigo
(As grandes amantes) 209
67 Folheai os vossos diários no sentido inverso
(A Primavera da Natureza - o amor das pessoas) 210
68 Raparigas da minha terra natal!
(O velho excêntrico: raparigas;
Unidade universal da Antiguidade; Safo) 211
69 Uma vez ainda, Abelone, nos últimos anos ...
(Veneza: a canção da dinamarquesa) 215
70 Dantes perguntava-me algumas vezes por que razão Abelone ...
(Abelone e Deus) 219
71 Dificilmente me convencerão ...
(A parábola do filho pródigo enquanto
«lenda daquele que não queria ser amado») 221

Documento
Carta de R. M. Rilke ao tradutor polaco, Witold Hulewicz,
sobre As Anotações de Malte Laurids Brigge 229

Questionário 233
;L.
Pormenor de Die Dame mit dem Einhorn (Museu de Cluny).
Prefácio

AS ANOTAÇÕES DE MALTE LAURIDS BRIGGE

Rainer Maria Rilke, nascido a 4 de Dezembro de 1875 em


Praga e falecido a 29 de Dezembro de 1926 em Valmont (Suí­
ça), foi ainda em vida um poeta de renome europeu e de di­
mensão universal. Vivendo numa época de profundas trans­
formações, ele próprio se propôs fazer da transformação o
seu programa estético. Seguiu, nas primeiras obras, uma li­
nha simbolista, dedicando-se depois à superação do deca­
dentismo e do esteticismo tão característicos da viragem do
século, adaptando a atitude de uma global afirmação da exis­
tência humana tal como se lhe apresentava. A fase intermédia
da sua Obra, da qual fazem parte As Anotações de Malte
Laurids Brigge, é marcada pelo acréscimo a esse programa
de uma nova perspectiva estética que foi desenvolvendo e
consolidando em contacto com os trabalhos do escultor
Auguste Rodin (1840-1917) e do pintor Paul Cézanne
(1839-1906). Ao mesmo tempo, Rilke tira partido das suas
inúmeras viagens e das experiências culturais nelas adquiri­
das para configurar uma personagem que é um estranho -
o jovem escritor dinamarquês Malte Laurids Brigge - em
terra estranha - a cidade de Paris no início do século xx.
16 Prefácio

E não deixa de, naturalmente, utilizar fontes históricas quer


relativas à Dinamarca, quer relativas à França.
O próprio Rilke é, de facto, um desenraizado - cedo se
afasta da Praga natal para ir para Munique (momento que é
«caricaturado» em Ewald Tragy, narrativa publicada postu­
mamente e que muitos pontos de contacto apresenta com As
Anotações), de onde segue para Berlim, Florença, Hambur­
go, Viena. Em 1899 empreende a sua primeira viagem à Rús­
sia, acompanhado por Lou Andreas-Salomé e seu marido, du­
rante a qual conhece Leon Tolstoi, Ilja Repin e trava amizade
com Leonid Pasternak. A esse mesmo país regressa no ano se­
guinte, 1900, percorrendo várias cidades, entre elas Moscovo
e S. Petersburgo. A espiritualidade que capta no povo russo
- apesar de já ser visível uma forte agitação social e políti­
ca - levam-no a considerar este país como a sua «pátria es­
piritual» . De regresso à Alemanha, passa uma temporada na
colónia de artistas em Worpswede, perto de Bremen, onde já
conhece Heinrich Vogeler e vem a conhecer Paula Becker e
Clara Westhoff. É com esta última que casa no ano seguinte,
fixando residência em Westerwede, perto de Worpswede. Pou­
cos meses depois do nascimento da filha, Ruth, Rilke parte,
em 1902, para Paris, a fim de elaborar uma monografia so­
bre Rodin, do qual Clara Westhofffora discípula. Esse traba­
lho é publicado no ano seguinte, ano em que, em Roma, Rai­
ner Maria dá início ao longo trabalho de redacção das
Anotações que só termina em Janeiro de 1910 e vem a lume
a 31 de Maio desse mesmo ano. Nesse lapso de tempo são re­
levantes: a viagem à Suécia proporcionada por Ellen Key, o
início do trabalho com a editora Insel em Leipzig e o seu edi­
tor Anton Kippenberg, o convívio e a colaboração com Rodin
em Meudon durante largos meses até terminar abruptamente
por iniciativa de Rodin (o contacto é apenas retomado em fi­
nais de 1907), a morte do pai de Rilke em Praga, a assistên­
cia, em Berlim, ao desempenho da actriz Eleonora Duse da
As Anotações de Malte Laurids Brigge 17

peça de lbsen Rosmersholm, as repetidas visitas ao Salão de


Outono em 1907 onde estão expostas as obras do pintor Paul
Cézanne, a morte da pintora Paula Modersohn-Becker aos 31
anos, as viagens pela Provença visitando Avignon, Orange e
Les Baux. Até ao fim da vida, Rilke visitará cerca de cem lu­
gares em perto de doze países, constituindo Paris, Munique
(nesta cidade foi forçado a ficar mais tempo pelo eclodir da
Primeira Guerra Mundial) e a Torre de Muzot na Suíça, sua
pátria de eleição, uma espécie de pontos fixos da sua trajec­
tória. No entanto, o Autor nunca exalta esse desenraizamen­
to, pois sempre procura uma terra à qual possa pertencer.
Esta problemática que lhe é vital é tratada num dos Novos
Poemas cuja composição ocorre durante o trabalho em torno
do Malte:

O POETA

Afastas-te de mim, ó hora.


O teu adejar feridas em mim cria.
Só: que farei com a minha boca agora?
Com a minha noite? Com o meu dia?

Amada não tenho, sem casa estou,


sem qualquer lugar onde viver.
Todas as coisas às quais me dou
Enriquecem e gastam o meu ser.

As primeiras recensões àquela obra a que Rilke chama o


seu «livro em prosa» não se fazem esperar e ora são negati­
vas, ora entusiastas, sem que em qualquer dos casos revelem
um justo entendimento daquele que é o primeiro romance da
modernidade em língua alemã. A sua «revolução literária»
era demasiado radical para encontrar um eco imediato. O or­
ganizador do Ili vol. da Edição Comentada da Obra de Rilke
18 Prefácio

(1996:891 ), August Stahl, conclui do seguinte modo o capítu­


lo dedicado à recepção das Anotações: «No panorama críti­
co alemão como no estrangeiro As Anotações de Malte Lau­
rids Brigge são consideradas uma das grandes obras da
Literatura Alemã, e mesmo uma das mais imponentes obras
da Literatura Mundial e um dos primeiríssimos testemunhos
da Modernidade. "Este livro de culto", escreveu recentemen­
te um leitor entusiasta, "é um livro difícil, mas hoje somos ca­
pazes de entender que este primeiro romance da Modernida­
de é igualmente um dos mais belos.»
Essa «dificuldade» foi sentida pelo próprio Rilke, como
claramente a transmite numa carta a Rodin datada de 29 de
Dezembro de 1908: «Como recentemente tive necessidade de
lhe dizer, aproximo-me cada vez mais da aplicação daquela
longa paciência que me ensinou com o seu exemplo perseve­
rante; esta paciência que, desproporcionalmente à vida de to­
dos os dias que parece impor-nos a pressa, nos põe em rela­
ção com tudo o que nos ultrapassa.
Agora sinto, com efeito, que todos os meus esforços seriam
vãos sem ela. Quando se escreve poesia, encontra-se sempre
a ajuda e o arrebatamento do ritmo das coisas exteriores,
pois a cadência lírica é a da Natureza: das águas, do vento,
da noite. Mas para ritmar a prosa é preciso entrar nas pró­
prias profundezas e encontrar o ritmo anónimo e múltiplo do
sangue. A prosa tem de ser construída como uma catedral; e,
nessa tarefa, não se tem verdadeiramente nome, nem ambi­
ção, nem ajuda: fica-se nos alicerces, acompanhado apenas
pela consciência.
E, imagine, agora sei fazer nesta prosa homens e mulheres,
crianças e velhos. Evoquei sobretudo as mulheres fazendo
cuidadosamente todas as coisas em torno delas, deixando um
espaço em branco que seria apenas um vazio, mas que, con­
tornado com ternura e amplidão, se torna vibrante e lumino­
so, quase como uma das suas esculturas em mármore.
As Anotações de Malte Laurids Brigge 19

Deveria explicar-me longamente a outra pessoa. Mas o se­


nhor, meu caro e único amigo, saberá o que isso quer dizer.
[ . . . ]» (Luck, 2001 :27112)
O que em primeiro lugar impressionou Rilke tanto em Ro­
din como em Cézanne foi o modo constante como trabalha­
vam, o que contrastava vivamente com o seu, inconstante
e dependente da inspiração. É no método dos dois artistas
plásticos que o poeta encontra duas razões de fundo, que pro­
cura fazer suas: por um lado, ambos criam a partir de um mo­
delo, de uma pessoa ou de um objecto que têm diante dos
olhos e que estudam com toda a precisão; por outro lado, do­
minam uma actividade que lhes permite não só reproduzir es­
tes modelos como também transpô-los sistematicamente para
a linguagem específica da sua arte, para os seus equivalentes
respectivos na escultura e na pintura. E é neste processo de
transformação que reside a sua modernidade.
Assim, nesta fase da sua Obra, Rilke procura centrar-se em
dois aspectos fundamentais: o «aprender a ver» , abrindo-se
às impressões e efeitos que partem de uma realidade exterior
concreta, e a criação da actividade poética que ajude a en­
contrar os equivalentes literários, os meios de expressão es­
pecificamente literários adequados às impressões captadas.
O novo «ver» deste Autor apresenta quatro características:
1. Nele se esbate a divisão entre sujeito e objecto, interior
e exterior, pois para o eu completamente virado para o exte­
rior transpõem-se as características do que é observado -
como no caso do epiléptico que desce o Boulevard Saint­
-Michel (Anotação 21) tentando controlar as manifestações
iniciais de um ataque, até que ele irrompe violentamente
quando atinge a ponte com o mesmo nome: Malte fica de tal
modo tomado pelo pânico que altera os planos que tinha
para esse dia e regressa a casa esgotado.
2. Esse novo modo de ver é um olhar não dominado, não
projectado pela vontade, antes projecta o eu para a vida, que-
20 Prefácio

brando a sua vontade e pondo em causa a sua identidade -


será o caso da Anotação 18, em que a impressão mais forte é
criada pelo moribundo que se encontra no pequeno restau­
rante, do qual Malte sai precipitadamente.
3. Este ver não corresponde a um reconhecimento, é pura
percepção que não é acompanhada de mecanismos racionais.
No início da Anotação 4 lemos: «Aprendo a ver. Não sei por
que motivo, tudo penetra em mim mais profundamente e não
se imobiliza no ponto em que costumava extinguir-se. Tenho
uma interioridade que desconhecia. Tudo agora para aí se
encaminha. Não sei o que aí se passa.»
4. Trata-se igualmente de um olhar não selectivo que acei­
ta com uma «dura objectividade» todos os aspectos da reali­
dade, sem estabelecer qualquer distinção entre belo e feio,
agradável e desagradável, familiar e estranho. Como exem­
plo, encontramos no final da Anotação 22 as seguintes ob­
servações: «Mas não penses que estou a sofrer aqui decep­
ções, antes pelo contrário. Por vezes admiro-me da facilidade
com que abandono tudo o que esperava, trocando-o pela rea­
lidade, mesmo quando ela é má.»

Nesta aproximação ao romance rilkeano, consideremos agora


a divisão tripartida do mesmo e algumas das suas implicações.
Os estudos sobre Malte são unânimes em distinguir três partes
na obra, segundo o assunto dominante. Assim, a parte relativa a
Paris engloba as Anotações 1 a 26, a relativa às memórias da in­
fância as Anotações 27 a 53 e a relativa à cultura livresca de
Malte as 54 a 71. Esta divisão não é de modo algum estanque e
em qualquer das partes referidas surgem elementos de outras,
como é o caso da Anotação 8 sobre a morte do avô Brigge, que
surge após a descrição da morte «institucionalizada» e «em sé­
rie» num dos mais importantes hospitais de Paris, o Hôtel-Dieu.
Paris é uma cidade desconhecida e estranha, que apresenta
beleza, mas também sofrimento, o que atinge duplamente um
As Anotações de Malte Laurids Brigge 21

jovem desenraizado, sem certezas, sem parentes nem amigos,


sem posses. A sua ascendência nobre de nada lhe serve e, a
curto prazo, vê-se descer ao nível dos marginalizados que são
muitos e ocupam diariamente a sua atenção. O ambiente de
grande cidade cria anonimato e desorientação, ao mesmo
tempo que representa um excesso de estímulos sensíveis - so­
bretudo visuais e sonoros - para quem acaba de chegar num
estado de fragilização. No entanto, não deixa de ser o lugar
adequado para uma grande aprendizagem, não só no sentido
humano como sobretudo no sentido artístico. A criação realiza­
-se prioritariamente na solidão e é nesta que Malte faz um ba­
lanço da sua produção literária até ao momento, achando-a
completamente insatisfatória, traçando, a partir daí, as traves
mestras da sua actividade que recomeça noutro aqui e agora,
mas de um modo radical, rejeitando as concepções vigentes
nos vários campos da actuação humana (Anotação 14).
As memórias da infância surgem inicialmente como contra­
posição positiva às realidades assustadoras de Paris mas, à
medida que se desenrolam, acabam por ter um efeito perver­
so, pois o seu conteúdo é também negativo, fantasmagórico,
com pequenos hiatos de fugaz felicidade. De tal modo pesa a
infância no protagonista que acaba por chegar à conclusão
de que seria necessário refazê-la para encarar com consis­
tência a vida de adulto e todos os seus desafios, como se
pode ler na Anotação 71, em que a parábola bíblica do filho
pródigo é contada na versão de Malte. O clímax do efeito ne­
gativo das memórias da infância é atingido na Anotação 19
em que o jovem dinamarquês se encontra no Hospital Salpe­
triere, doente entre doentes, e começa a lembrar-se de um
sofrimento físico e psíquico da infância e o mesmo se torna
subitamente presente: «Mas a coisa grande inchava e crescia
a meus olhos como um inchaço quente e azulado e crescia
diante da minha boca e por cima do meu último olho caía já
a sombra da sua orla.»
22 Prefácio

A terceira parte do romance é aparentemente a mais hete­


rogénea: por um lado dá continuidade ao tema das amantes
- as que continuaram a amar depois de terem perdido aque­
le que amavam, sendo o seu amor sem objecto embora numa
linha universal, cuja única concretização referida é a de Deus
como «direcção para o amor» - e ao amor de Malte por
Abelone; por outro lado, são narrados acontecimentos e epi­
sódios de figuras pertencentes ao passado histórico. O que
constitui o denominador comum destas matérias é o acesso a
elas através da leitura. Esta ocupação, tal como a experiên­
cia de Paris e as memórias da infância, implica um alarga­
mento de horizontes. No entanto, à medida que se vai tornan­
do quase uma obsessão, indicia a preferência pela solidão em
detrimento do convívio humano (Cfr. Anotação 56).
E apesar de todos os paralelismos, as histórias do passado
cada vez mais longínquo diferem num ponto importante das
vivências do presente e do passado de Malte. Essas experiên­
cias do que é estranho no passado, apesar de serem ameaça­
doras e difíceis, eram mais fáceis de suportar, uma vez que
para elas havia equivalentes visíveis - sinais, símbolos, ri­
tuais - em que o que era incomensuravelmente estranho as­
sumia uma figura moderada e apolínea: é o caso das figuras
dos príncipes e dos reis, das obras de arte como as rendas e
as tapeçarias, dos mistérios da Idade Média ou da máscara
do teatro antigo. Tudo isso era o fundamento e a possibilida­
de da vida em comum. Actualmente, apenas o solitário e o in­
divíduo, apartados de uma vida comum negativa pela qual fo­
ram obrigados a passar, são capazes de suportar situações
limite, como se tenta dizer na Anotação final. Por isso se tor­
nam necessárias novas e válidas imagens e narrativas por
parte dos escritores da modernidade. A essa tarefa se devota­
rá Rilke na sua Obra tardia.
O recurso ao passado reduz de algum modo a difícil rela­
ção com o presente, mas não conduz a nenhuma transforma-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 23

ção existencial de Malte. Neste paradigma da transformação,


todas as Anotações constituem variações de dois tipos funda­
mentais: ou o indivíduo é, com maior ou menor violência,
confrontado com o que é estranho e diferente, ou os indiví­
duos que já passaram por uma transformação têm de a afir­
mar perante os outros enquanto seres alheios e alheados.
Debruçando-nos agora sobre a poética do romance, en­
contramos características que nos levam à conclusão de que
nos encontramos perante um romance moderno centrado na
consciência e de que a sua progressão narrativa nos faz pas­
sar de aspectos realistas a aspectos simbólicos.
Na primeira parte, Malte é narrado de modo pessoal, sen­
do mínima a distância que o separa do romance-diário. (Cfr.
Anotação 13, em que o jovem escritor anota o que vê da sua
janela, e Anotação 12, escrita no próprio exterior em que se
move). Mas, à medida que o romance progride, vai aumentan­
do a distância entre o narrador e o que é narrado. Os aconte­
cimentos continuam a centrar-se na situação de Malte, nos
seus medos e anseios, no entanto o seu distanciamento dos te­
mas que trata é tematizado cada vez com maior ênfase: por
exemplo quando Malte conta uma história que a mãe lhe con­
tou repetidas vezes quando era criança (Anotação 27), fi­
cando alguns pormenores por esclarecer, outros são narrados
hipoteticamente ou ainda reorganizados em consonância com
a Anotação respectiva.
O sentido do carácter cada vez menos directo da narração
advém do efeito de duplo sofrimento que a cidade de Paris
exerce sobre o seu habitante recente. Narrar directamente os
acontecimentos e as impressões negativos apenas pode levar a
tentativas de eufemização e de recalcamento, como na Anota­
ção 18: «É bom dizer alto: "Não aconteceu nada." E de novo:
"Não aconteceu nada". Servirá isso de alguma coisa ?»
Este círculo vicioso é quebrado com a passagem da narra­
ção para as memórias da infância. A distância cronológica a
24 Prefácio

que se encontra dela - Malte tem 28 anos - permite-lhe


uma atitude de abertura maior, ainda que o conteúdo do que
rememora quase nunca tenha o efeito apaziguador desejado.
A temática da ausência é, por exemplo, de algum modo sua­
vizada pela história de Ingeborg contada pela mãe (Anotação
27). O clímax da narração indirecta, correspondendo ao «di­
zer objectivo» que subjaz a todo o livro, encontra-se na Ano­
tação 38: em vez de explicitar a relação diferenciada das
«grandes amantes» com a realidade, recorre-se a um diálogo
imaginário com Abelone diante das tapeçarias de Cluny (A
Senhora do Licorne) através de comentários mais sugestivos
do que unívocos.
Na terceira parte do romance intensifica-se ainda mais esta
poética da narração indirecta através da distância pessoal,
cronológica e temporal do que é objecto de narração. Essa
distância continua a ser tematizada: a partir do papel dobra­
do que Malte encontra nas coisas que o pai deixou, descobre
a função consoladora da narração dos derradeiros momentos
de personagens alheias (Anotações 46--48); no pó/o oposto,
apresenta-se a problemática da participação empática na
realidade partindo das histórias dos vizinhos (Anotações
49-53); imediatamente a seguir surgem as histórias lidas no
«pequeno livro verde», uma narração em parte hipotética e
em segunda mão, que depois se alarga ao campo biográfico:
quando Malte escreve sobre Bettine (von Arnim) e sobre a jo­
vem que encontrou em Veneza, narra também aspectos relati­
vos a Abelone e vice-versa. Esta variante da narração indi­
recta atinge o seu clímax no currículo imaginado do homem
idoso excêntrico (Anotação 68), e na versão malteana da pa­
rábola do filho pródigo (Anotação 7I ). Todas estas histórias
partem de Malte e dele se afastam.
Deste modo, Rilke desenvolve um processo narrativo que
simultaneamente marca expressamente a distância entre o
narrador e o que é narrado e cuidadosamente a supera do
As Anotações de Malte Laurids Brigge 25

ponto de vista hermenêutico. Assim fica resolvido o problema


central da poética do seu romance: o novo dizer simbolista e
evocativo constitui o meio longamente procurado para trans­
por para o romance as soluções encontradas nos Novos Poe­
mas (190718) . Tal como nestes se eliminou o sujeito lírico, a
subjectividade narrativa foi retirada da matéria da narração.
Se, por um lado, se pode considerar que Malte, enquanto
narrador.fez progressos notáveis, por outro lado ele é apenas
responsável pelas Anotações em si; a ordenação das mesmas
é um mérito do organizador, o que as encontrou, provavel­
mente depois da morte de Malte, as anotou (lembremos as no­
tas: «escrito à margem no manuscrito» , «esboço de uma car­
ta» , «Fim das Anotações») e as entregou ao editor. Desta
forma, o progresso poetológico do romance dá-se pratica­
mente à margem do seu herói, como mérito de uma obra de
arte literária libertada do seu Autor.
Do ponto de vista da História Literária, a inovação essen­
cial das Anotações reside no seguinte : ao escrever um ro­
mance que já não é realista, mas sim simbolista e centrado na
consciência, Rilke afasta-se decisivamente do padrão biográ­
fico do género romanesco e do romance de personagem com
base na evolução psicológica do herói.
A rejeição de um encadeamento narrativo fundamentado
na causalidade e no desenvolvimento psicológico de uma per­
sonagem dá lugar a uma configuração geral inesperada, que
temos vindo a caracterizar, e que a terceira parte do roman­
ce permite mais claramente identificar: As Anotações são um
romance de montagem e os seus princípios estruturais que aí
se detectam abertamente encontram-se também presentes nas
duas partes anteriores. Tais princípios consistem em três pro­
cessos:
1. A relação metafórica das Anotações entre si através de
uma consistente rede de correspondências e paralelismos nos
campos da imagem e dos motivos. Entre estes últimos seria
26 Prefácio

muito interessante ver como se conjugam nas diversas Anota­


ções «O rosto» , «OS olhos» , «a máscara» .
2. A montagem complementar: Rilke confronta com toda a
dureza extremos opostos: ao idílio segue-se o terror; à vonta­
de de transformação, o medo da transformação; à narração
do ramo paterno da família em Ulsgaard, que tem como no­
tas dominantes o recalcamento e o autocontrolo, a narração
do ramo materno da família em Urnekloster, que apresenta
uma relação com o mundo muito mais aberta e integradora;
à história do falso czar, que tenta esboçar o seu eu a partir da
livre invenção, segue-se a do duque Carlos, o Temerário, que
a muito custo tenta preservar a sua identidade face ao seu
sangue dionisíaco, etc.
3. A montagem simultânea: desde logo constitui um efeito
simultâneo o facto de os três ciclos de matérias com os res­
pectivos níveis temporais dominarem apenas numa parte
mas, ao mesmo tempo, se encontrarem nas outras duas. As­
sim se encontra na primeira parte, relativa a Paris, não só
memórias da infância como também a figura histórica de
Beethoven (Anotação 24) . Sobretudo na última parte, Rilke
tematiza expressamente o entrecruzamento dos três níveis
temporais, o qual faz parte do programa estético da transfor­
mação presente neste romance, sobretudo na figura do conde
Brahe, e que vai ter um desenvolvimento ainda mais amplo
mais tarde nas Elegias de Duíno. Neste aspecto é de destacar,
nas Anotações finais, a 62, na qual o presente da escrita é co­
locado directamente em paralelo com a infância e com a
Alta Idade Média de Carlos VI. O clímax deste processo é
atingido na Anotação final - de novo a versão de Malte da
parábola do filho pródigo - que, pelo seu teor, pertence a to­
dos os níveis temporais.
Deste modo, o princípio da montagem está orientado para
o mesmo objectivo do processo simbolista antes descrito:
Rilke, não a partir da evolução do herói, mas sim a partir do
As Anotações de Malte Laurids Brigge 27

processo da obra, esboça o modelo de uma consciência dife­


rente aberta aos opostos e a todo o amplo leque da condição
humana, sem estabelecer distinções qualitativas nem os sub­
meter às restrições de uma ordem temporal linear.

Volvidos quarenta e sete anos sobre a publicação da pri­


meira tradução desta obra para português pela mão expe­
riente e sábia de Paulo Quintela, queremos prestar com a
presente sincera homenagem àquele trabalho pioneiro. Neste
lapso de tempo a tradição literária da nossa língua mudou,
ganhou novas tonalidades e é nesse contexto que se insere e
porventura se justifica uma nova versão. O acesso a novos es­
tudos e interpretações da Obra também estimulou e facilitou
esta tarefa. Não podemos, no entanto, deixar de remeter o lei­
tor para o prefácio daquela edição de 1955, que contém da­
dos e informações de bastante interesse. Entretanto há um
dado que veio a lume recentemente, relacionado com o que se
diz no romance sobre a avó paterna de Malte, Margarete
Brigge (Anotação 36): «Contava-se que, quando era rapari­
ga, estivera noiva do belo Felix Lichnowski que depois veio a
morrer em Frankfurt de uma maneira muito cruel. E, de fac­
to, encontrou-se, depois da morte dela, um retrato do prínci­
pe que, se não me engano.foi restituído à família.» Realmen­
te não deixa de ser interessante saber que este nobre
permaneceu, em 1842, dois meses em Portugal, por assim di­
zer a convite de D. Fernando 1/, também alemão. Dessa per­
manência resultou, no ano seguinte, a publicação: Felix
Lichnowski, Portugal. Erinnerungen aus dem Jahre 1 842.
Mainz, Verlag von Victor von Zabern, 1843 - sendo de re­
gistar a publicação da tradução, já em 2.ª edição, em 1845,
levada a cabo por Daniel Augusto da Silva, em Lisboa. Tal
notícia veio ao nosso conhecimento através da belíssima pu­
blicação de autoria de Luiz Farinha Franco e Ana Isabel
Líbano Monteiro, Jerónimos. Memórias de Cinco Séculos.
28 Prefácio

Fragmentos Literários. Lisboa, Instituto Português do Patri­


mónio Arquitectónico, 200I, na qual, a páginas 149-164, se
encontra um notável excerto sobre o monumento em causa.
No ano lectivo 1997198 tivemos oportunidade de leccionar
um seminário de Mestrado sobre a presente obra, intitulado
«Crítica e Prática da Tradução Literária». O trabalho final
incluía a versão de uma ou várias Anotações, da responsabi­
lidade das participantes. Uma vez que foram tidas em consi­
deração essas versões, cumpre-nos mencionar nominalmente
as colaboradoras: Alexandra Lemos (A . 66), Carlota Miran­
da (A. 33), M.ª Assunção J. Santos (A . 38), M.ª Conceição
Vieira (A . 31), M.ª Inês E. S. Sousa (A . 43), M.ª Margarida T.
Marcelino (A . 65), Marina Pankow C. Santos (A . 63-64),
Sandra de Sousa (A . 32), Sílvia Almeida (A . 11-13), Susana
Ferreira (A . 22).
Finalmente, agradecemos à escritora Hélia Correia a leitu­
ra completa da versão e as valiosas sugestões que nos propôs,
à amiga Lisete Verças a revisão do Prefácio, à escultora Si­
mone Boisecq a cordial hospitalidade com que nos recebeu na
sua residência de Paris, possibilitando a realização de um
percurso malteano da cidade que nos proporcionou a percep­
ção do extremo rigor do olhar de Rilke, esse olhar que lhe per­
mitiu transformar cada «objecto» visto em «objecto de arte».

Lisboa, Maio de 2002


Maria Teresa Dias Furtado
As Anotações de Malte Laurids Brigge 29

Bibliografia

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As Anotações
de Malte Laurids Brigge
I

11 de Setembro, rue Toullier

Então é mesmo para aqui que as pessoas vêm viver; antes


pensaria que aqui se morresse. Saí. Vi: hospitais. Vi alguém
que cambaleava e caiu. As pessoas juntaram-se à volta dele, o
que me poupou o resto. Vi uma mulher grávida. Arrastava-se
penosamente ao longo de um muro alto e quente que às vezes
tacteava, como para se convencer de que ele ainda lá estava.
Sim, ele ainda lá estava. E por detrás dele? Procurei na plan­
ta: Maison d' Accouchement. Bem. Dar-lhe-ão assistência ao
parto - sabem fazê-lo. Mais adiante, rue Saint-Jacques, um
grande edifício com uma cúpula. A planta dizia Val-de-grâce,
Hôpital militaire. Não precisava de o saber, mas não faz mal.
A viela começava a cheirar por todos os lados. Cheirava, tan­
to quanto se podia distinguir, a iodofórmio, à gordura de ba­
tatas fritas, a medo. Todas as cidades cheiram no Verão. De­
pois vi uma casa curiosamente cega, não se encontrava na
planta, mas por cima da porta estava escrito, de modo ainda
bastante legível: Asyle de nuit. Ao lado da entrada estavam os
preç os. Li-os. Não era caro.
E de resto? Uma criança num carrinho parado: era gorda,
esverdeada e tinha uma nítida erupção cutânea na testa. Pare-
36 Rainer Maria Rilke

eia estar a sarar e não fazia doer. A criança dormia, tinha a


boca aberta, respirava iodofórmio, batatas fritas, medo. Era
assim mesmo. O principal era estar vivo. Era isso o principal.

E não poder eu deixar de dormir de janela aberta ! Os carros


eléctricos passam vertiginosamente e a tocar através do meu
quarto. Os automóveis passam por cima de mim. Uma porta
fecha-se, batendo. Algures uma vidraça cai, estilhaçando-se,
oiço as gargalhadas dos seus estilhaços grandes e os risinhos
dos pequenos. Depois, subitamente, um ruído abafado e fe­
chado do lado oposto, no interior da casa. Alguém sobe as es­
cadas. Avança, aproxima-se cada vez mais. Detém-se, detém­
-se durante muito tempo, vai-se embora. E de novo a rua.
Uma rapariga grita estridentemente: Ah tais-toi, je ne veux
plus. O eléctrico passa veloz e agitadamente bem perto,
afasta-se, afasta-se de tudo. Alguém chama. As pessoas cor­
rem, ultrapassam-se. Um cão ladra. Que alívio ! : um cão. De
madrugada até um galo canta, o que produz um bem-estar
sem limites. Depois adormeço subitamente.

São estes os ruídos. Mas também há aqui algo bem mais


terrível: o silêncio. Creio que nos grandes incêndios também
se introduz por vezes um momento semelhante, de tensão ex­
trema, em que os j actos de água caem, os bombeiros deixam
de trepar pelas escadas, ninguém se move. Em silêncio, uma
comija negra desloca-se lá no alto e um grande muro, atrás
do qual o fogo deflagra, inclina-se, em silêncio. Toda a
gente fica imóvel e espera, de ombros levantados, de rosto
As Anotações de Malte Laurids Brigge 37

contraído acima dos olhos, a tremenda pancada. Aqui o si­


lêncio é assim.

Aprendo a ver. Não sei por que motivo, tudo penetra em


mim mais profundamente e não se imobiliza no ponto em que
se costumava extinguir. Tenho uma interioridade que desco­
nhecia. Tudo agora para aí se encaminha. Não sei o que aí se
passa.
Quando hoje estava a escrever uma carta apercebi-me de
que estou aqui apenas há três semanas. Três semanas em qual­
quer outro lugar, no campo, por exemplo, seriam como um só
dia, aqui são anos. Também já não quero voltar a escrever car­
tas. Para que hei-de dizer a alguém que me estou a transfor­
mar? Se me estou a transformar, já não sou aquele que fui, e
sou diferente do que era até aqui, por isso é óbvio que não co­
nheço ninguém. E é impossível escrever a pessoas desconhe­
cidas, a pessoas que não me conhecem.

Já o disse? Aprendo a ver. Sim, estou a começar. Ainda é di­


fícil. Mas pretendo aproveitar o meu tempo.
Nunca tinha tomado consciência, por exemplo, da enorme
quantidade de rostos que há. Existem numerosas pessoas, mas
os rostos são ainda mais, pois cada uma tem vários. Há pes­
soas que usam um rosto durante anos a fio e é claro que ele se
gasta, se suja, se quebra nas rugas, se alarga como as luvas
que foram usadas em viagem. São pessoas poupadas, simples;
não o mudam, nem sequer o mandam limpar. Ainda está bom,
afirmam, e quem lhes pode provar o contrário? Mas então
38 Rainer Maria Rilke

pode naturalmente perguntar-se: uma vez que têm vários ros­


tos, o que fazem com os outros? Guardam-nos. São para os
filhos. Mas também acontece que os seus cães saem com eles.
E porque não? Um rosto é um rosto.
Outras pessoas colocam os seus rostos com uma rapidez in­
crível, um após outro, e gastam-nos. Primeiro parece-lhes que
chegariam para sempre, mas, mal fazem quarenta anos, o que
têm já é o .último. Tudo isto tem, evidentemente, o seu lado
trágico. Não estão habituadas a poupar rostos, o último fica
gasto ao fim de oito dias, tem buracos, em muitos pontos é fi­
no como papel, e então vai aparecendo gradualmente o que
está por baixo, o não-rosto, e é com ele que andam.
Mas aquela mulher, aquela mulher: estava completamente en­
simesmada, de cabeça inclinada para a frente, sobre as mãos. Foi
na esquina da rue Notre-Dame-des-Champs. Assim que a vi co­
mecei a andar sem fazer ruído. Quando os pobres se põem a pen­
sar não se deve incomodá-los. Talvez acabem por lembrar-se.
A rua estava vazia de mais, o seu vazio aborreceu-se e
retirou-me o passo debaixo dos pés e pôs-se a bater com ele,
aqui e acolá, como se fosse uma tamanca. A mulher assustou­
-se e saiu do seu ensimesmamento, demasiado depressa, com
demasiada violência, de tal modo que o rosto lhe ficou nas
duas mãos. Eu podia vê-lo nessa posição, ver a sua forma oca.
Custou-me um esforço indescritível fixar o olhar apenas nas
mãos e não o levantar para ver o que delas se tinha arrancado.
Sentia pavor de ver um rosto por dentro, mas tinha um medo
ainda maior de uma cabeça nua e em carne viva, sem rosto.

Tenho medo. Quando se tem medo, é preciso fazer alguma


coisa contra ele. Seria horrível adoecer aqui, e se alguém se
lembrasse de me internar no Hôtel-Dieu, aí morreria de certe-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 39

za. Este Hôtel é um Hôtel agradável, incrivelmente frequenta­


do. Mal se pode observar a fachada da Catedral de Paris sem se
correr o risco de ser atropelado por algum dos muitos carros
que para aí se dirigem, atravessando a toda a pressa a praça
livre. São pequenos autocarro s, a buzinar constantemente, e
mesmo o duque de Sagan teria de mandar parar o seu coche, se
algum destes pequenos moribundos se obstinasse em querer ir
direito ao Hôtel-Dieu. Os moribundos são obstinados e Paris
inteiro pára quando a Madame Legrand, brocanteuse [vende­
deira de velharias] , se desloca da rue des Martyrs para uma cer­
ta praça da Cité. Há que notar que estes pequenos carros endia­
brados têm janelas de vidro fosco altamente sugestivas, atrás
das quais se pode imaginar as mais magníficas agonias; para tal
basta apenas a fantasia de uma concierge [porteira] . Se a ima­
ginação é mais fértil e avança noutras direcções, as suposições
tomam-se verdadeiramente ilimitadas. Mas também vi chegar
tipóias abertas, carros de aluguer de capota levantada, que cir­
culavam à tarifa habitual: dois francos por hora de morte.

Este Hôtel excelente é muito antigo. Já nos tempos do rei


Clóvis se morria nalgumas das suas camas. Agora morre-se
em 559 camas. Em série, é claro. Perante tão enorme produ­
ç ão, a morte individual não é tão bem acabada como devia,
mas também não é isso que interessa. A culpa é da massifica­
ção. Quem é que hoje em dia dá alguma coisa por uma morte
bem conseguida? Ninguém. Até os ricos, que se poderiam dar
ao luxo de morrerem com todos os requisitos, começam a fi­
car descuidados e indiferentes; o desejo de ter uma morte pes­
soal toma-se cada vez mais raro. Um pouco mais de tempo e
ela tomar-se-á tão rara como uma vida pessoal. Meu Deus, tu­
do isso se apresenta diante dos nossos olhos ! Chega-se,
40 Rainer Maria Rilke

encontra-se uma vida já pronta, é só vesti-la. Quer-se partir ou


é-se obrigado a fazê-lo: pronto, não é preciso esforçar-se:
voilà votre mort, monsieur. Morre-se conforme calha; morre­
-se a morte que faz parte da doença que se tem (pois desde
que se conhecem todas as doenças, também se sabe que os vá­
rios desfechos letais fazem parte das doenças e não das pes­
soas; e o doente não tem, por assim dizer, nada a fazer).
Nos sanatórios, onde até se gosta de morrer, pleno de grati­
dão para com médicos e enfermeiras, morre-se uma de entre as
mortes ao serviço do estabelecimento. Isso é bem-visto. Mas,
quando se morre em casa, é natural que se escolha a morte
aristocrática da alta sociedade, que começa logo com um en­
terro de primeira classe e todo o séquito dos seus maravilhosos
rituais. Nessa altura, os pobres ficam diante de uma tal casa e
olham até à saciedade. A sua morte é naturalmente banal, sem
qualquer pompa. Ficam contentes quando encontram uma que
seja mais ou menos da sua medida. Pode ser excessivamente
larga: afinal sempre se cresce um pouco. Só quando ela não se
fecha sobre o peito ou estrangula é que é mais penoso.

Sempre que penso na minha casa, onde agora já não há nin­


guém, parece-me que antigamente as coisas eram diferentes.
Antigamente sabia-se (ou talvez se pressentisse) que a morte
estava dentro de cada um, como no fruto está o caroço. As
crianças tinham dentro de si uma pequena e os adultos uma
grande. As mulheres tinham-na no seio e os homens no peito.
As pessoas tinham-na e isso dava a cada um uma dignidade
própria e uma serena soberba.
No meu avô, o velho camareiro Brigge, ainda se notava que
trazia dentro de si uma morte. E que morte ! Evidenciou-se du­
rante dois meses e tão alto que se ouvia lá fora, na quinta.
As Anotações de Malte Laurids Brigge 41

A ampla e antiga casa senhorial era demasiado pequena


para esta morte; parecia que era preciso acrescentar-lhe novas
alas, pois o corpo do camareiro tomava-se cada vez maior e
continuamente queria ser transportado de um quarto para ou­
tro e enchia-se de uma cólera terrível quando o dia ainda não
chegara ao fim e já não havia nenhum quarto onde ele ainda
não tivesse estado deitado. Nessa altura procedia-se, com
todo o séquito de criados, criadas e cães, que sempre tinha à
sua volta, à subida das escadas e, com o mordomo à frente,
entrava-se no quarto onde morrera a sua santa mãe e que es­
tava tal qual como ela o deixara havia vinte e três anos e on­
de, além disso, a ninguém era permitido entrar. Agora era in­
vadido por toda aquela matilha. Corridos os reposteiros, a luz
forte de uma tarde de Verão fixava todos aqueles objectos tí­
midos e assustados e girava desajeitadamente nos espelhos di­
lacerados. E as pessoas procediam do mesmo modo. Havia
criadas que, de tanta curiosidade, nem sequer sabiam onde ti­
nham as mãos, criados novos que tudo miravam de olhos ar­
regalados e outros mais velhos que andavam de um lado para
o outro, procurando lembrar-se do que lhes haviam contado
sobre este quarto fechado onde agora tinham a sorte de estar.
Mas era sobretudo aos cães que a permanência num quarto
onde todas as coisas cheiravam parecia invulgarmente atracti­
va. Os grandes e esguios galgos russos corriam de um lado
para o outro, em grande azáfama, por detrás das poltronas,
atravessavam o aposento em longo passo de dança, com um
movimento baloiçante, erguiam-se como cães de brasão e,
com as patas delgadas sobre o peitoril branco e dourado, com
o rosto afilado e atento e a testa retraída, olhavam para o pá­
tio, tanto para a direita como para a esquerda. Cãezinhos bai­
xotes teckel de pêlo raso, cor de luva de camurça, estavam
sentados no grande cadeirão estofado de seda junto à janela e
ostentavam rostos de quem acha tudo na sua devida ordem, e
um perdigueiro pêlo-de-arame de aspecto carrancudo coçava
42 Rainer Maria Rilke

o dorso na esquina de uma mesa de pernas douradas, sobre


cujo tampo pintado as chávenas de Sevres tremiam.
Sim, para estas coisas alheadas e estremunhadas foi um
tempo terrível. Acontecia que de livros, abertos por uma qual­
quer mão apressada e desajeitada, caíam pétalas de rosa que
eram pisadas ; pequenos objectos frágeis eram retirados e, de­
pois de imediatamente se partirem, rapidamente colocados de
novo nos seus lugares, muitos eram escondidos por baixo dos
reposteiros ou mesmo atirados para trás da rede dourada do
guarda-fogo da lareira. E de tempos a tempos caía qualquer
coisa, caía com som abafado no tapete, caía com som agudo
no soalho duro, mas partia-se num caso e no outro, estilha­
çava-se estridentemente ou quebrava-se quase sem ruído, pois
estas coisas, mimadas como estavam, não resistiam a qual­
quer tipo de queda.
E se ocorresse a alguém perguntar qual seria a causa de
tudo isso, o que atraíra tamanha destruição sobre este quarto
protegido com tanto receio - haveria apenas uma resposta: a
morte.
A morte do camareiro Christoph Detlev Brigge em Uls­
gaard. Pois este, agora de um tamanho superior ao do seu uni­
forme azul-escuro, jazia no meio do chão e não se movia. No
seu rosto grande, estranho, que para todos deixara de ser fa­
miliar, os olhos tinham-se fechado: não via o que se passava.
Primeiro tentara-se deitá-lo sobre a cama, mas ele recusara,
pois detestava camas desde aquelas primeiras noites em que a
sua doença alastrara. A cama de cima dele também se revela­
ra demasiado pequena e não houve outra alternativa senão
deitá-lo no tapete, pois ele não quisera voltar ao piso inferior.
E ali jazia agora, e podia pensar-se que tinha morrido.
Quando, lentamente, começara a escurecer, os cães foram-se
esgueirando, um após outro, pela fresta da porta, apenas o de
pêlo eriçado de rosto carrancudo ficara sentado ao lado do do­
no, pousando uma das largas e peludas patas dianteiras na
As Anotações de Malte Laurids Brigge 43

mão grande e pálida de Christoph Detlev. Também a maioria


dos criados se encontrava lá fora, no corredor branco, que ti­
nha mais luz do que o quarto; mas aqueles que ainda tinham
ficado olhavam por vezes furtivamente para o grande monte
que estava no meio e ia escurecendo e desejavam que fosse
apenas um grande fato sobre urna coisa apodrecida.
Mas havia ainda algo mais. Havia urna voz, a voz que sete
semanas antes ainda ninguém conhecia: pois não era a voz do
camareiro. Esta voz não pertencia a Christoph Detlev, era a
morte de Christoph Detlev.
A morte de Christoph Detlev vivia nessa altura já há mui­
tos, muitos dias em Ulsgaard e falava com todos e exigia. Exi­
gia que a transportassem, exigia o quarto azul, exigia o pe­
queno salão, exigia a sala. Exigia os cães, exigia que se risse,
falasse, jogasse e ficasse quieto e tudo ao mesmo tempo. Exi­
gia ver amigos, mulheres e defuntos e exigia que ela própria
morresse: exigia. Exigia e gritava.
Pois, quando se fizera noite e os criados exaustos, que não ti­
nham de ficar em vigília, tentavam adormecer, eis que a morte
de Christoph Detlev gritava e gemia, bramava tão longa e per­
sistentemente que os cães, que a princípio uivavam simulta­
neamente, se calavam e, não ousando deitar-se, ficavam cheios
de medo sobre as pernas altas, magras e trémulas. E quando na
aldeia a ouviam atravessar a distante noite de prata estival
dinamarquesa com o seu bramido, levantavam-se corno quan­
do há trovoada, vestiam-se e ficavam em silêncio sentados à
volta da luz, até que tudo passasse. E as mulheres que estavam
quase a dar à luz eram levadas para os quartos mais distantes e
para as alcovas mais recolhidas. Mas elas continuavam a ouvir,
continuavam a ouvir corno se essa voz se encontrasse no inte­
rior dos seus próprios corpos e imploravam que as deixassem
levantar-se também e vinham, alvas e amplas, e sentavam-se
junto dos outros com os seus rostos imprecisos. E as vacas que
então davam à luz ficavam desamparadas e fechadas, e a urna
44 Rainer Maria Rilke

foi-lhe arrancado do corpo o fruto morto com todas as entra­


nhas, porque ele não queria sair. E todos realizavam mal o seu
trabalho quotidiano e esqueciam-se de recolher o feno, porque
durante o dia receavam a noite e, por estarem tão exaustos das
muitas vigílias e do levantar-se em sobressalto, não eram capa­
zes de pensar em nada. E quando, ao domingo, iam à igreja
branca e pacífica, rezavam para que não houvesse mais ne­
nhum senhor em Ulsgaard, pois este era um senhor terrível.
E o que todos eles pensavam e rezavam, dizia-o em voz alta o
prior do alto do púlpito, pois também ele deixara de ter noites
e não era capaz de compreender Deus. E o sino dizia-o, pois
tinha agora um terrível rival que toda a noite ressoava e contra
o qual nada podia fazer, mesmo quando começava a soar com
todo o seu metal. Sim, todos o diziam, e entre os rapazes havia
um que tinha sonhado que entrara no palácio e matara à pan­
cada o fidalgo com a sua forquilha de estrume, e tão exaspera­
das, tão exaustas, tão sobreexcitadas estavam as pessoas que
todas escutaram quando ele contou esse sonho e, sem darem
conta, se puseram a olhar para ele para ver se estaria, de facto,
à altura de semelhante acto. Assim sentiam e falavam as pes­
soas em toda a região, na qual ainda algumas semanas atrás o
camareiro era amado e lamentado. Mas, apesar de se falar as­
sim, tudo continuava na mesma. A morte de Christoph Detlev,
que vivia em Ulsgaard, não se sujeitava a pressões. Viera por
dez semanas e ficou até ao fim. E durante este tempo tinha
mais senhorio do que o próprio Christoph Detlev Brigge algu­
ma vez tivera, era como uma rainha, posteriormente e para
sempre cognominada de a Terrível.
Não se tratava da morte de um hidrópico qualquer, era a
morte malévola e principesca que o camareiro trouxera dentro
de si toda a sua vida e que dele se alimentava. Todo o exces­
so de soberba, vontade e domínio que ele próprio não gastara
nos seus dias serenos introduzira-se na sua morte, naquela
morte que agora tinha a sua sede em Ulsgaard e esbanjava.
As Anotações de Malte Laurids Brigge 45

Como olharia o camareiro Brigge qtJem quer que dele exi­


gisse que morresse de outra morte que não desta ! Ele morreu
a sua difícil morte.

E quando penso nos outros que vi ou dos quais ouvi falar:


sempre se repete o mesmo. Todos tiveram uma morte própria.
Estes homens que a traziam no interior, dentro da armadura,
como uma prisioneira; estas mulheres que envelheceram mui­
to e mirraram e depois tinham um passamento discreto e se­
nhoril sobre uma cama descomunal, como se estivessem num
palco, diante de toda a família, os empregados e os cães. Sim,
as crianças, mesmo as mais pequenas, não tinham uma morte
infantil qualquer: continham-se e morriam aquilo que já eram
e aquilo que teriam vindo a ser.
E aquilo que dava às mulheres uma beleza melancólica
quando estavam grávidas e se erguiam e no seu corpo dilata­
do, sobre o qual pousavam involuntariamente as mãos es­
guias, estavam dois frutos: uma criança e uma morte. Não
provinha aquele denso sorriso, quase nutritivo, sobre o seu
rosto completamente despojado, do facto de elas muitas vezes
acharem que ambos estavam a crescer?

IO

Fiz uma coisa contra o medo. Toda a noite fiquei sentado a


escrever e agora estou tão cansado como depois de dar um
longo passeio pelos campos de Ulsgaard. É de facto difícil
pensar que tudo aquilo j á não existe, que pessoas estranhas vi­
vem na antiga e alongada mansão. Pode ser que no quarto
branco lá de cima, debaixo da empena, durmam agora as ra-
46 Rainer Maria Rilke

parigas, durmam o seu sono pesado e húmido, desde o anoi­


tecer até à manhã.
E uma pessoa não tem ninguém nem nada e viaja pelo mun­
do fora com uma mala e uma caixa com livros e sem qualquer
tipo de curiosidade. De facto, que vida é esta? Sem casa, sem
coisas herdadas, sem cães. Se ao menos uma pessoa tivesse re­
cordações ! Mas quem as tem? Se houvesse infância . . . Mas ela
está como que enterrada. Talvez seja preciso ser-se velho para
poder alcançar tudo isso. Penso que deve ser bom ser velho.

II

Hoje esteve uma bela manhã de Outono. Atravessei as Tu­


lherias. Tudo o que ficava na direcção do leste, frente ao sol,
ofuscava. O que ficava iluminado encobria-se de névoa de
modo a parecer uma cortina cinzenta-clara. Cinzentas no cin­
zento, as estátuas estavam ao sol nos jardins ainda encobertos.
Uma a uma, flores em longos canteiros erguiam-se e diziam:
vermelho, com uma voz assustada. Depois, um homem muito
alto e magro dobrou a esquina, vindo dos Champs-Elysées.
Usava uma muleta, mas já não colocada debaixo do braço -
levava-a erguida, à sua frente, leve, e de tempos a tempos
firmava-a com ruído no chão, como se fosse um bastão de
arauto. Não conseguia reprimir um sorriso de alegria e sorria
a tudo aquilo por que passava: ao sol, às árvores. Os seus pas­
sos eram tímidos como os de uma criança, mas invulgarmen­
te leves, cheios da lembrança de um andar anterior.

I2

O que uma lua assim tão pequena é capaz de causar! Há dias


em que tudo à nossa volta é claro, leve, mal se esboça no ar lu-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 47

rninoso e, contudo, é visível. O que fica mais próximo já tem


tonalidades de distância, está retirado e apenas é mostrado, não
posto ao alcance; e o que está relacionado com a distância: o
rio, as pontes, as longas ruas e as praças pródigas assumiram a
distância atrás delas, estão sobre ela pintadas como sobre seda.
Não se consegue dizer o que pode então ser um carro verde­
-claro sobre o Pont-neuf ou um qualquer vermelho, impossível
de fazer parar, ou apenas um cartaz afixado no muro corta­
-fogo de um grupo de casas cinzento-pérola. Tudo está simpli­
ficado, transposto para superfícies exactas e claras, tal como o
rosto de um retrato de Manet. E nada é escasso nem supérfluo.
Os alfarrabistas do Quai abrem as suas caixas, e o amarelo
fresco ou gasto dos livros, o castanho-arroxeado dos volumes,
o verde mais amplo de uma pasta: tudo está bem, é válido, par­
ticipa e constitui uma plenitude em que nada falta.

IJ

Em baixo encontra-se a seguinte composição: um pequeno


carro de mão, empurrado por uma mulher; nele, à frente, ao
comprido, um realejo. Atrás, atravessada, uma alcofa, onde
está uma criancinha de pé sobre as pernas firmes, com ar sa­
tisfeito, de touca posta, e que não gosta de que a mandem sen­
tar. De tempos a tempos, a mulher toca o realejo. A criancinha
volta a erguer-se na sua cesta batendo com os pés, e uma ra­
pariguinha, envergando um vestido domingueiro verde, dança
e toca pandeireta em direcção às j anelas.

I4

Acho que deveria começar a trabalhar um pouco, agora que


estou a aprender a ver. Tenho vinte e oito anos e praticamen-
48 Rainer Maria Rilke

te ainda nada aconteceu. Vejamos mais uma vez: escrevi um


estudo sobre Carpaccio, que é mau, um drama chamado Ma­
trimónio e que pretende provar algo falso com meios ambí­
guos, e versos. Ai, mas os versos pouco adiantam quando são
escritos cedo ! Deveria esperar-se e reunir sentido e doçura ao
longo de toda a vida, se possível uma longa vida, e depois,
mesmo no fim, talvez se pudesse então escrever dez versos
bons. Pois os versos não são, como as pessoas j ulgam, senti­
mentos (esses aparecem bastante cedo) - são experiências.
Para conseguir um verso é preciso ver muitas cidades, pessoas
e coisas, é preciso conhecer os animais, é preciso sentir como
voam os pássaros e conhecer o gesto das pequenas flores
quando se abrem de manhã. É preciso poder recapitular cami­
nhos em regiões desconhecidas, encontros inesperados e des­
pedidas que há muito se via aproximarem-se - dias da in­
fância ainda por esclarecer, pais que era preciso magoar
quando nos traziam uma alegria que nós não compreendíamos
(era uma alegria para outro), doenças infantis que tão estra­
nhamente começam acompanhadas de tantas transformações
profundas e difíceis, dias passados em quartos calmos e con­
tidos e manhãs passadas junto ao mar, o próprio mar, os ma­
res, as noites passadas em viagem que nas alturas se dissipa­
vam sussurrando e voavam com todos os astros - e ainda não
basta poder recapitular tudo isso. É preciso ter recordações de
muitas noites de amor em que nenhuma a outra se assemelha­
va, de gritos de mulheres em trabalhos de parto e de partu­
rientes leves, brancas, adormecidas, que se fecham. Mas tam­
bém é preciso ter estado junto de moribundos, ter ficado
sentado junto de mortos no quarto com a janela aberta e os
ruídos intermitentes. E também não basta ter recordações.
É preciso poder esquecê-las quando são muitas, e é preciso ter
a grande paciência de esperar que elas regressem. Pois as pró­
prias recordações ainda não são o que mais importa. Só quan­
do se tomam sangue dentro de nós, olhar e gesto, quando dei-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 49

xam de ter nome e já não se distinguem de nós mesmos, só en­


tão pode acontecer que, no decurso de uma hora muito rara, a
primeira palavra de um verso delas se erga e delas saia.
Mas todos os meus versos surgiram de outra maneira, por­
tanto não são versos. E quando escrevi o meu drama, como
me enganei ! Seria eu um imitador e um insensato para lançar
mão a um terceiro a fim de narrar o destino de dois seres hu­
manos que faziam a vida negra um ao outro? Como caí facil­
mente na esparrela ! E eu devia, no entanto, ter sabido que
este terceiro, que atravessa todas as vidas e literaturas, este
fantasma de um terceiro, que nunca existiu, não tem qualquer
importância, deve ser eliminado. Ele faz parte dos pretextos
da Natureza que sempre se empenha em desviar a atenção dos
homens dos seus mistérios mais profundos. Ele é biombo
atrás do qual se desenrola um drama. Ele é o ruído à entrada
do silêncio sem voz de um conflito verdadeiro. Dir-se-ia que
até agora foi demasiado difícil para todos falar dos dois em
questão. O terceiro, precisamente por ser tão irreal, é a parte
mais fácil da tarefa, todos foram capazes de o criar. Logo no
início dos seus dramas nota-se a impaciência de chegar ao ter­
ceiro, mal conseguem esperar por ele. Mal ele chega, tudo
está bem. Mas que aborrecido é quando se atrasa, nada pode
acontecer sem ele, tudo se imobiliza, paralisa, espera. Sim, e
que se passaria se tudo ficasse neste congestionamento e fila
de espera? Que se passaria, senhor dramaturgo, e tu, público
que conheces a vida? Que se passaria se ele tivesse desapare­
cido, este tão apreciado folgazão, ou este jovem pretensioso
que entra em todos os matrimónios como uma chave falsa?
Que se passaria se, por exemplo, o diabo o tivesse levado?
Admitamo-lo. Nota-se de súbito o vazio artificial dos teatros,
que são emparedados como buracos perigosos, apenas as tra­
ças dos rebordos dos camarotes cambaleiam através do espa­
ço oco e inconsistente. Os dramaturgos j á não sentem prazer
nos seus bairros de moradias . Todos os modos públicos de es-
50 Rainer Maria Rilke

quadrinhamento procuram, para eles, nos continentes mais re­


motos aquilo que é insubstituível, a própria acção.
E, no entanto, eles vivem entre os homens, não estes ter­
ceiros, mas os dois, dos quais haveria incrivelmente tanto a
dizer, dos quais ainda nada se disse, ainda que sofram e aj am
e não saibam superar as dificuldades.
É ridículo. Aqui estou sentado no meu pequeno quarto, eu,
Brigge, com vinte e oito anos já feitos e que todos ignoram.
Aqui estou sentado e não sou nada. E, no entanto, este nada
começa a pensar e pensa, num quinto andar, numa tarde pari­
siense cinzenta, estes pensamentos:
É possível, pensa, que não se tenha visto, conhecido e dito
nada de real e importante? É possível que se tenha tido milé­
nios para olhar, reflectir e anotar e que se tenha deixado pas­
sar os milénios como uma pausa escolar, durante a qual se
come fatias de pão com manteiga e uma maçã?
Sim, é possível.
É possível que, apesar das invenções e dos progressos, ape­
sar da cultura, da religião e da filosofia, se tenha ficado na su­
perfície da vida? É possível que até se tenha coberto esta su­
perfície - que, apesar de tudo, seria qualquer coisa - com
um pano incrivelmente aborrecido, de tal modo que se asse­
melhe aos móveis de sala durante as férias de Verão?
Sim, é possível.
É possível que toda a História Universal tenha sido mal en­
tendida? É possível que o passado seja falso, precisamente
porque sempre se falou das suas multidões, como se se dis­
sertasse sobre uma aglomeração de pessoas, em vez de falar
de uma única, em tomo da qual elas estavam, porque se trata­
va de um desconhecido que morreu?
Sim, é possível.
É possível que se tenha julgado ser preciso recuperar o que
aconteceu antes de se ter nascido? É possível que se tivesse de
lembrar a cada um que ele, de facto, é proveniente de todos os
As Anotações de Malte Laurids Brigge 51

antecessores, tendo ele disso conhecimento e não devendo dar


ouvidos a outros que soubessem outras coisas?
Sim, é possível.
É possível que todas estas pessoas conheçam em pormenor
um passado que nunca houve? É possível que todas as reali­
dades nada sejam para elas; que a sua vida decorra, desligada
de tudo, como um relógio numa sala vazia?
Sim, é possível.
É possível que nada se saiba das raparigas que, no entanto,
vivem? É possível que se diga «as mulheres», «as crianças»,
«OS rapazes» e não se faça a mínima ideia (apesar de toda a
cultura não se faça a mínima ideia) de que há muito que estas
palavras não têm plural, mas apenas inúmeros singulares?
Sim, é possível.
É possível que haja gente que diga «Deus» e julgue que se
trata de algo comum a todos? - E veja-se apenas dois rapa­
zinhos de escola: um compra um canivete, e o seu vizinho
compra outro tal qual no mesmo dia. E uma semana depois
mostram um ao outro os dois canivetes, e acontece que eles só
muito de longe se parecem - tão diferentemente evoluíram
em mãos diferentes. (Ora, diz a mãe de um deles a esse res­
peito: vocês têm sempre por força de desgastar logo tudo !).
Ah, pois: é possível acreditar que se possa ter um Deus sem
recorrer a Ele?
Sim, é possível.
Porém, se tudo isto é possível, se tem mesmo só uma apa­
rência de possibilidade - então, por tudo o que há no mun­
do, é preciso que aconteça alguma coisa. O primeiro indiví­
duo, o que teve estes pensamentos inquietantes, deve começar
a fazer alguma coisa do que se perdeu; mesmo que seja um
qu alquer, certamente o menos indicado: mais nenhum há que
o po ssa fazer. Este jovem estrangeiro sem importância, Brig­
ge, terá de se sentar no quinto piso e escrever dia e noite: sim,
ele terá de escrever, esse será o fim.
52 Rainer Maria Rilke

IS

Doze ou treze anos, no máximo, devia ser a minha idade na


altura. O meu pai levara-me consigo até Umekloster. Não sei o
que o fez visitar o sogro. Não se tinham visto durante muitos
anos, após a morte da minha mãe, e o meu pai nem sequer es­
tivera alguma vez no palácio, para o qual só tardiamente o con­
de Brahe se retirara. Nunca mais voltei a ver essa casa curiosa
que, quando o meu avô morreu, ficou nas mãos de estranhos.
Tal corno a vejo na memória a que a infância deu forma, não se
trata de nenhum edifício; tudo em mim está dividido: ali urna
divisão, acolá urna divisão, e aqui parte de um corredor que
não liga as duas divisões, mas se mantém por si corno um frag­
mento. Assim, tudo em mim está disperso - os quartos, as
escadas, que desciam tão cerimoniosamente, e outras escadas
estreitas, de construção circular, em cuja escuridão se andava
corno o sangue nas veias; os quartos da torre, as varandas sus­
pensas lá no alto, os inesperados terraços, para os quais se era
lançado por urna pequena porta: - tudo isto está em mim e
jamais deixará de estar em mim. É corno se a imagem desta
casa se tivesse despenhado de urna altura infinita para dentro
de mim e se tivesse despedaçado no fundo de mim mesmo.
Conservada no meu coração por inteiro, segundo me pare­
ce, está apenas aquela sala em que nos costumávamos reunir
para j antar, todos os fins de tarde às sete horas. Nunca vi esta
sala de dia, nem sequer me lembro se tinha janelas e para
onde elas davam; todas as vezes que a farm1ia entrava esta­
vam acesas as velas nos pesados candelabros, e dentro de
poucos minutos esquecia-se a hora do dia e tudo o que se
vira lá fora. Esta sala alta e, corno suponho, abobadada, era
mais forte do que tudo; com a sua altura revestida de escuro e
os seus cantos nunca totalmente iluminados sugava-nos todas
as imagens sem dar, em troca, urna determinada compensa­
ção. Ali ficávamos sentados corno se nos tivéssemos diluído;
As Anotações de Malte Laurids Brigge 53

completamente sem vontade, sem pensamento, sem prazer,


sem defesa. Éramos como um lugar vazio. Lembro-me de que
este estado de aniquilamento primeiro quase me causava náu­
seas, uma espécie de enjoo marítimo, que eu apenas superava
estendendo uma perna até tocar com o pé no joelho do meu
pai, que estava sentado à minha frente. Só mais tarde reparei
que ele parecia perceber este estranho comportamento ou en­
tão tolerá-lo, embora entre nós houvesse uma relação quase
fria que não tomava óbvio tal gesto. No entanto, era esse leve
contacto que me dava forças para suportar aquelas longas re­
feições. E, depois de algumas semanas de sofrimento forçado
e graças à quase ilimitada capacidade de adaptação infantil,
acostumara-me de tal modo ao ambiente medonho daquelas
reuniões que já não me custava qualquer esforço ficar senta­
do duas horas à mesa; agora elas já passavam relativamente
depressa, uma vez que me ocupava a observar os presentes.
O meu avô chamava-lhes família e eu também ouvia os ou­
tros usarem esta designação completamente arbitrária. Pois,
embora estas quatro pessoas estivessem ligadas entre si por
laços de parentesco afastado, mesmo assim não constituíam
um todo. O tio, que ficava sentado ao meu lado, era um ho­
mem velho cujo rosto duro e queimado mostrava algumas
manchas negras, ao que vim a saber, consequência da explo­
são de uma carga de pólvora; carrancudo e mal-humorado
como era, reformara-se no posto de major, e agora, numa di­
visão do palácio que eu desconhecia, dedicava-se a experiên­
cias alquímicas, estava também em contacto com uma prisão,
segundo ouvi os criados dizerem, de onde lhe mandavam ca­
dáveres uma ou duas vezes por ano, fechando-se com eles
dias e noites e retalhando-os e preparando-os de uma forma
misteriosa, de tal modo que resistiam à decomposição. À fren­
te dele ficava o lugar da Fraulein Mathilde Brahe. Esta era
uma pessoa de idade indefinida, uma prima afastada da minha
mãe, da qual nada se sabia a não ser que mantinha uma inten-
54 Rainer Maria Rilke

sa correspondência com um espiritista austríaco, que se auto­


denominava barão Nolde e de quem era inteiramente devota,
a ponto de não empreender a mínima coisa sem, antes, obter
a sua aprovação ou, melhor, algo parecido à sua bênção. Nes­
sa altura ela era extraordinariamente forte, apresentando uma
gordura mole e indolente, vertida descuidadamente nos vesti­
dos soltos e claros; os seus movimentos eram cansados e in­
definidos, e os seus olhos lacrimejavam continuamente. E, no
entanto, havia qualquer coisa nela que me lembrava a minha
mãe, que era frágil e elegante. Quanto mais a observava, tan­
to mais encontrava no seu rosto todos os traços finos e dis­
cretos de que nunca mais conseguira lembrar-me bem desde a
morte de minha mãe; só agora, desde que via diariamente Ma­
thilde Brahe, voltava a ter presente o aspecto da morta; sim,
talvez o tivesse presente pela primeira vez. Só agora reconsti­
tuo em mim, a partir de centenas e centenas de pormenores,
uma imagem da morta, aquela imagem que me acompanha
sempre. Mais tarde tomou-se-me evidente que no rosto da
Fraulein Brahe existiam todos os pormenores que definiam as
feições da minha mãe - apenas se encontravam separados
forçadamente, torcidos e sem qualquer relação entre si, como
se um rosto desconhecido se tivesse metido de permeio.
Ao lado desta senhora ficava o filho ainda pequeno de uma
prima, um rapaz mais ou menos da minha idade, mas mais
baixo e mais débil. O seu pescoço magro e pálido saía-lhe de
uma gola franzida e desaparecia sob um queixo comprido. Os
lábios eram finos e fechados com firmeza, as narinas tremiam
levemente e dos seus dois olhos bonitos e castanho-escuros
apenas um tinha mobilidade. Muitas vezes movia-se na minha
direcção, com um ar calmo e triste, enquanto o outro ficava
sempre virado para o mesmo canto, como se estivesse vendi­
do e deixasse de contar.
À cabeceira superior da mesa encontrava-se a poltrona
enorme do meu avô que um criado, a quem apenas cabia essa
As Anotações de Malte Laurids Brigge 55

ocupação, lhe chegava para que se sentasse e onde o ancião


apenas preenchia um espaço reduzido. Havia pessoas que cha­
mavam a este senhor idoso, surdo e autoritário, Excelência e
marechal da Corte, outras intitulavam-no de general. E ele de­
tinha certamente todas estas qualificações, mas havia tanto
tempo que cessara o exercício de funções que estes títulos já
quase não faziam sentido. A mim parecia-me mesmo que não
havia qualquer nome concreto adequado àquela personalidade
em certos momentos tão agreste e no entanto sempre tão diluí­
da. Nunca fui capaz de decidir-me a tratá-lo por avô, ainda que
ele fosse por vezes amável comigo e até me chamasse para
junto dele, tentando dar ao meu nome um tom brincalhão. De
resto, toda a famfüa apresentava um comportamento para com
o conde, em que se misturavam o respeito e o receio, apenas o
pequeno Erik vivia uma certa familiaridade para com o idoso
dono da casa; o seu olho móvel tinha por vezes rápidos olha­
res de entendimento com ele, a que o avô correspondia com
igual rapidez; também durante as longas tardes se podia, por
vezes, vê-los aparecer ao fundo da grande galeria e observar
como, de mão dada, passavam pelos retratos escuros e antigos,
sem falar, entendendo-se manifestamente de outro modo.
Eu passava quase todo o dia no parque e, mais adiante, nas
florestas de faias ou na charneca; e por sorte havia cães em
Umekloster que me acompanhavam; havia aqui e acolá uma
casa de um caseiro ou um pátio de um quinteiro onde me da­
vam leite, pão e fruta, e creio que gozava da minha liberdade
bastante sem cuidados e, pelo menos nas semanas que se se­
guiram, sem me deixar atemorizar pela ideia das reuniões ao
fim da tarde. Quase não falava com ninguém, pois o que me
alegrava era estar sozinho; apenas com os cães tinha, de vez
em quando, breves conversas: entendia-me perfeitamente
com eles. O mutismo era, de resto, uma espécie de caracterís­
tica da família; eu conhecia-a através do meu pai e não me ad­
mirava que durante o jantar quase nada se dissesse.
56 Rainer Maria Rilke

Contudo, nos primeiros dias após a nossa chegada, Mathil­


de Brahe mostrou-se extremamente faladora. Perguntava ao
meu pai por conhecimentos de outrora em cidades estrangei­
ras, lembrava-se de impressões longínquas, comovia-se até às
lágrimas ao recordar amigas mortas e um certo jovem de
quem dava a entender que a tinha amado sem que ela quises­
se corresponder à sua inclinação insistente e sem esperança.
O meu pai ouvia atenciosamente, assentia de vez em quando
com a cabeça e respondia apenas o imprescindível. O conde,
à cabeceira da mesa, sorria continuamente com os lábios des­
caídos, o seu rosto parecia maior do que o habitual, era como
se tivesse uma máscara. Aliás ele próprio tomava algumas ve­
zes a palavra, sem que a sua voz se dirigisse a alguém; porém,
mesmo sendo baixa, podia ouvir-se em toda a sala; tinha qual­
quer coisa do andar regular e indiferente de um relógio; o si­
lêncio em volta dela parecia ter uma ressonância própria va­
zia, igual para cada sílaba.
O conde Brahe pensava que seria uma especial amabilida­
de para com meu pai falar-lhe da sua falecida esposa, minha
mãe. Chamava-lhe condessa Sibylle, e todas as suas frases
terminavam como se perguntasse por ela. Bom, imaginei, não
sei porquê, que se tratasse de uma rapariguinha de branco que
a qualquer momento pudesse entrar onde nós estávamos. No
mesmo tom, ouvia-o falar também da «nossa pequena Anna
Sophie». E quando um dia lhe perguntei por esta menina, de
quem o avô parecia gostar especialmente, fiquei a saber que
ele se referia à filha do grão-chanceler Conrad Reventlow, es­
posa da mão esquerda do então Friedrich IV, e a qual já havia
quase cento e cinquenta anos repousava em Roskilde. A su­
cessão temporal não tinha qualquer importância para ele, a
morte era um pequeno incidente que ignorava por completo;
as pessoas que ele gravara na memória existiam e mesmo a
sua morte nada alterava a esse respeito. Muitos anos mais tar­
de, depois da morte do idoso senhor, contava-se que ele tinha
As Anotações de Malte Laurids Brigge 57

uma percepção tão obstinada do futuro como se ele fosse pre­


sente. Dizia-se que teria falado uma vez com uma j ovem se­
nhora acerca dos filhos dela, especialmente das viagens de um
deles, enquanto a jovem senhora que, de facto, se encontrava
grávida de três meses do seu primeiro filho, quase desmaiara
de pavor e susto ao mesmo tempo que o velho, ao lado de
quem estava sentada, falava sem interrupção.
Mas tudo começou pelo facto de eu me pôr a rir. Sim, eu ri
alto e não era capaz de me acalmar. Uma vez, à noitinha, ain­
da faltava Mathilde Brahe. O velho criado, quase completa­
mente cego, ao chegar ao lugar dela, estendeu, mesmo assim,
a travessa para ela se servir. Por momentos manteve-se nessa
posição; depois prosseguiu, satisfeito e digno, como se tudo
estivesse bem. Eu observara esta cena, e no momento em que
a estava a ver não me pareceu absolutamente nada cómica.
Mas pouco depois, no momento em que levava comida à bo­
ca, subiu-me o riso com tal rapidez à cabeça que me engas­
guei e fiz um grande barulho. E, apesar de esta situação ser
para mim confrangedora, apesar de me esforçar de todas as
maneiras possíveis por ficar sério, o riso voltava sempre in­
termitentemente e mantinha um total domínio sobre mim.
O meu pai, para encobrir o meu comportamento, perguntou
com a sua voz ampla e abafada: «A Mathilde está doente?»
O avô sorriu à sua maneira e depois respondeu com uma fra­
se à qual não dei atenção, ocupado como estava comigo pró­
prio, e que era mais ou menos assim: Não, ela apenas não de­
seja encontrar-se com a Christine. Não considerei, portanto,
como efeito destas palavras o facto de o meu vizinho, o ma­
jor moreno, se ter levantado e abandonado a sala com uma
desculpa murmurada ininteligivelmente e uma vénia em di­
recç ão ao conde. Apenas reparei que se voltou novamente à
porta, nas costas do dono da casa e, acenando e assentindo
com a cabeça, fez sinais ao pequeno Erik e, de súbito, para
meu grande espanto, também a mim, como se nos convidasse
58 Rainer Maria Rilke

a segui-lo. Fiquei tão surpreendido que o riso deixou de me


atormentar. De resto não continuei a prestar atenção ao major;
ele era-me desagradável e também notei que o pequeno Erik
não lhe ligava.
A refeição foi-se arrastando como sempre e quando se aca­
bara de chegar à sobremesa o meu olhar foi impressionado e
absorvido por um movimento que surgia ao fundo da sala, na
penumbra. Aí abria-se lentamente uma porta que eu pensara
estar sempre fechada e que me disseram que conduzia à so­
breloj a, e agora, enquanto para ela olhava com um sentimen­
to, para mim totalmente novo, de curiosidade e de sobressal­
to, avançou pelo escuro da abertura da porta uma senhora
elegante, vestida de claro, e dirigiu-se devagar para nós. Não
sei se fiz algum movimento ou se emiti algum som, o barulho
da queda de uma cadeira obrigou-me a desviar os olhos da fi­
gura misteriosa, e vi o meu pai que se levantara de um salto e
agora se aproximava da senhora com uma palidez de morte
estampada no rosto, com os braços caídos e os punhos cerra­
dos. Entretanto ela movia-se passo a passo na nossa direcção,
completamente alheia a esta cena, e já não estava longe do lu­
gar do conde quando este se ergueu de um pulo, agarrou o
meu pai por um braço, fazendo-o recuar até à mesa e
segurando-o, enquanto a estranha senhora atravessava vaga­
rosa e indiferentemente a sala, agora desimpedida, passo a
passo, no meio de um silêncio indescritível, no qual apenas
um copo, a tremer, tiniu algures, e desaparecia numa porta da
parede do lado oposto. Neste momento reparei que fora o pe­
queno Erik quem fechara, com uma profunda vénia, a porta
nas costas da estranha personagem.
Fui o único que ficara sentado à mesa; tomara-me tão pe­
sado na cadeira que me parecia que nunca me poderia levan­
tar sozinho. Por momentos fiquei a olhar, sem ver. Depois,
apercebi-me do meu pai que o ancião continuava a segurar
por um braço. O seu rosto estava agora encolerizado, todo
As Anotações de Malte Laurids Brigge 59

vermelho, mas o avô, cujos dedos lhe prendiam o braço como


uma garra branca, sorria o seu sorriso de máscara. Então ouvi­
-o dizer qualquer coisa, sílaba a sílaba, sem que eu pudesse
compreender o sentido das suas palavras . No entanto
gravaram-se de tal modo no meu ouvido que há cerca de dois
anos as encontrei, um dia, no fundo da memória, e desde en­
tão sei-as. Ele disse: « É s violento, camareiro, e indelicado.
Porque não deixas as pessoas irem à sua vida?» «Quem é?»,
gritava o meu pai enquanto ele falava. «Alguém que tem todo
o direito de estar aqui. Não é nenhuma desconhecida. É Chris­
tine Brahe.» - Depois fez-se de novo aquele silêncio frágil e
estranho e o copo voltou novamente a tremer. Então o meu pai
soltou-se com um movimento brusco e saiu precipitadamente
da sala.
Ouvi-o andar de um lado para o outro no quarto, durante
toda a noite, pois também eu não conseguia dormir. Mas su­
bitamente, já de manhãzinha, acordei de uma espécie de so­
nolência e vi, com um terror que me paralisava até ao cora­
ção, algo branco, sentado à beira da minha cama. O meu
desespero deu-me por fim a força necessária para meter a ca­
beça por baixo da coberta, e nessa posição comecei a chorar
de medo e desamparo. De repente senti frescura e claridade
sobre os meus olhos chorosos ; fechei-os firmemente por cima
das lágrimas, para não ter de ver nada. Mas a voz que me fa­
lava muito perto de mim chegou morna e doce ao meu rosto,
e eu reconheci-a: era a voz da Fraulein Mathilde. Desde logo
me acalmei, mas deixei que me continuasse a consolar, mes­
mo quando fiquei completamente calmo. Eu até sentia que es­
ta bondade era excessivamente branda, mas apesar disso
u sufruía-a e achava que de algum modo a merecera. «Tia»,
dis se eu por fim, tentando reconstituir no seu rosto diluído os
traço s da minha mãe: «Tia, quem era aquela senhora?»
«Ai», respondeu a Fraulein Brahe com um suspiro que me
p areceu estranho, «uma infeliz, meu filho, uma infeliz.»
60 Rainer Maria Rilke

Na manhã desse dia notei que alguns criados estavam ata­


refados a fazer malas num quarto. Pensei que íamos partir e
pareceu-me muito natural que partíssemos nessa altura. Tal­
vez fosse essa também a intenção do meu pai. Nunca vim a
saber o que o levou a ficar em Umekloster depois daquela
noite. Não chegámos a partir. Demorámo-nos ainda oito ou
nove semanas nesta casa, suportámos o peso das suas excen­
tricidades, e ainda voltámos a ver três vezes Christine Brahe.
Naquela altura, eu nada sabia da sua história. Não sabia que
ela tinha morrido há muito, muito tempo, na sequência do seu
segundo parto em que deu à luz um rapaz que veio a crescer
ao encontro de um destino angustioso e cruel - eu não sabia
que ela era uma morta. Mas o meu pai sabia-o. Teria ele, que
possuía um temperamento apaixonado e era intelectualmente
lógico e claro, teria ele querido obrigar-se a suportar esta
aventura sem se manifestar exteriormente e sem fazer per­
guntas ? Vi, sem o entender, como lutava consigo próprio, sen­
ti, sem perceber, o modo como ele por fim se dominou.
Isso deu-se quando vimos Christine Brahe pela última vez.
Desta vez a Fraulein Mathilde também estava à mesa, mas es­
tava diferente do habitual. Tal como nos primeiros dias depois
da nossa chegada, falava incessantemente sem qualquer pre­
texto e confundindo-se sucessivamente, denotando um desas­
sossego físico que a levava a compor frequentemente o cabe­
lo ou o vestido - até que repentina e inesperadamente deu
um salto acompanhado de um alto grito de queixume e desa­
pareceu.
Nesse mesmo momento, os meus olhos dirigiram-se auto­
maticamente para a porta especial e, de facto, Christine Brahe
entrou. O meu vizinho major fez um movimento violento e
breve que se propagou pelo meu corpo, mas ele já não tinha
manifestamente força para se levantar. O seu rosto moreno, ve­
lho e com manchas, voltava-se ora para um ora para outro, de
boca aberta, e a língua dava voltas atrás dos dentes estragados;
As Anotações de Malte Laurids Brigge 61

depois, subitamente, este rosto desapareceu, ficando a cabeça


grisalha apoiada ao tampo da mesa e os braços, como se esti­
vessem cortados em pedaços, por cima e por baixo dela, e al­
gures apareceu uma mão murcha e com manchas a tremer.
E nesse momento Christine Brahe avançou, passo a passo,
lentamente como uma enferma, através de um silêncio indes­
critível, em que se ouvia apenas um som, um gemido, como
se fosse de um cão velho. Mas nessa altura surgiu, do lado es­
querdo do grande cisne de prata cheio de narcisos, a grande
máscara do ancião com o seu sorriso pálido. Ele ergueu o seu
copo de vinho em direcção ao meu pai. E então vi que o meu
pai, precisamente quando Christine Brahe passou por detrás
da cadeira dele, pegou no seu copo e o ergueu um palmo aci­
ma da mesa como se fosse algo muito pesado.
E nessa mesma noite partimos.

I6

Biblioteca Nacional

Estou sentado a ler um poeta. Há muitas pessoas na sala,


mas passam despercebidas. Estão embrenhadas nos livros.
Por vezes movimentam-se nas páginas como quem está a dor­
mir e se volta entre dois sonhos. Ah, como é verdadeiramen­
te bom estar entre pessoas que lêem. Porque é que elas não
são sempre assim? Podes aproximar-te de uma e tocar-lhe ao
de leve: ela nada sente. E se, quando te levantares, deres um
leve empurrão ao vizinho do lado e pedires desculpa, ele faz
um gesto de assentimento para o lado de onde veio a tua voz,
o seu rosto vira-se para ti e não te vê, e tem o cabelo como o
de alguém que está a dormir. Como isto faz bem ! E eu estou
sentado e tenho um poeta. Que destino ! Talvez se encontrem
agora trezentas pessoas na sala, a ler; mas é impossível que
62 Rainer Maria Rilke

cada uma delas tenha um poeta. (Sabe Deus o que têm ! ) Não
existem trezentos poetas. Mas vê bem que destino me coube:
eu, talvez o mais indigente de todos estes leitores, um estran­
geiro, tenho um poeta. Embora seja pobre. Embora o fato que
todos os dias visto já comece a apresentar algumas partes co­
çadas pelo uso, embora os meus sapatos possam merecer re­
paros. É verdade que o meu colarinho está limpo, a minha
roupa também e com este meu aspecto poderia entrar em
qualquer pastelaria, mesmo nos grandes boulevards, e esco­
lher sem receio um bolo, retirando-o de uma bandeja. Nin­
guém acharia que isso dava nas vistas, nem me repreenderia,
nem me mandaria embora, pois afinal a minha mão, proce­
dente da alta sociedade, é lavada quatro a cinco vezes por dia.
Sim, as unhas estão limpas, o indicador não está sujo de tinta,
e especialmente os pulsos estão irrepreensíveis. Os pobres
não se lavam até esse ponto, como é sabido. É , pois, possível
tirar certas conclusões a partir da sua higiene. E tiram-se.
Tiram-nas nas lojas. Mas, por outro lado, há certos indiví­
duos, no boulevard Saint-Michel, por exemplo, e na rue Raci­
ne, que não se deixam enganar, não dão qualquer importância
aos punhos. Vêem-me e sabem-no. Sabem que eu, de facto,
lhes pertenço, que apenas estou a fazer um pouco de comédia.
Até porque é Carnaval. E eles não querem ser desmancha­
-prazeres. Apenas esboçam um sorriso um pouco irónico e
piscam o olho. Ninguém viu. Quanto ao resto, tratam-me cor­
tesmente. Basta apenas que alguém se encontre nas proximi­
dades, e nessa altura até são subservientes. Procedem como se
eu usasse uma pele e o meu carro se aproximasse para me vir
buscar. Muitas vezes dou-lhes duas moedas e tremo ante a
possibilidade de eles as recusarem. Mas aceitam-nas. E tudo
estaria bem se não voltassem a sorrir um pouco ironicamente
e a piscar o olho. Quem são eles? O que querem de mim? Es­
tão à minha espera? Como me reconhecem? É verdade que a
minha barba está pouco cuidada e faz lembrar um pouquinho
As Anotações de Malte Laurids Brigge 63

as suas barbas doentes, velhas e descoradas, que sempre me


impressionaram. Mas não tenho eu o direito de descuidar a
barba? Muitas pessoas atarefadas fazem-no e ninguém se lem­
bra de, por esse motivo, as incluir imediatamente no número
dos marginalizados. Pois para mim é óbvio que se trata de
marginalizados, não apenas de mendigos; não, de facto não
são nenhuns mendigos, é preciso fazer distinções. São lixo,
cascas de pessoas que o destino expeliu. Molhados pela sali­
va do destino, colam-se a uma parede, a um candeeiro, a uma
coluna publicitária, ou então escorrem lentamente pela viela
abaixo, deixando um rasto escuro e sujo atrás de si. Que que­
ria de mim afinal esta velha, saída de rastos de um qualquer
buraco, com uma gaveta de mesa-de-cabeceira em que rola­
vam alguns botões e agulhas? Porque caminhava a meu lado,
observando-me? Como se tentasse reconhecer-me com os
seus olhos remelosos que tinham o aspecto de terem recebido
um escarro verde nas pálpebras ensanguentadas cuspido por
um doente. E que terá levado outrora aquela mulher baixa e
de cinzento a ficar ao meu lado em frente de uma montra du­
rante um quarto de hora, enquanto me mostrava um lápis ve­
lho e grande que lhe ia escorregando das mãos suj as e fecha­
das com uma lentidão sem fim? Fiz como se estivesse a
observar os objectos expostos e não desse por nada. Mas ela
sabia que eu a tinha visto, sabia que eu estava ali e reflectia
sobre o que ela estava realmente a fazer. Pois eu bem com­
preendia que não se podia tratar do lápis: eu sentia que era um
sinal, um sinal para iniciados, que só os marginalizados co­
nhecem; pressentia que ela me queria dizer que eu devia ir a
algum lado ou fazer alguma coisa. E o mais estranho é que eu
continuava a não me libertar da sensação de que havia de
facto um certo compromisso do qual fazia parte este sinal e
esta cena seria, no fundo, algo que eu deveria ter esperado.
Isto aconteceu há duas semanas. Mas agora quase não se
passa um dia sem que se dê um encontro deste género. Não só
64 Rainer Maria Rilke

ao crepúsculo, ao meio-dia, nas ruas mais movimentadas,


acontece que, de repente, aparece um homem pequeno ou
urna mulher velha e me acena com a cabeça, me mostra qual­
quer coisa e volta a desaparecer, corno se tudo o que é neces­
sário se tivesse cumprido. É possível que um destes dias se
lembrem de vir até ao meu quarto, sabem certamente onde eu
moro, e farão tudo para que o concierge [porteiro] não os de­
tenha. Mas aqui, meus caros, aqui estou protegido de vós.
É preciso possuir um determinado cartão para poder entrar
nesta sala. Este cartão é o meu privilégio perante vós. Ando
pelas ruas um pouco timidamente, corno se pode adivinhar,
mas por fim encontro-me perante urna porta de vidro, abro-a,
corno se estivesse em casa, apresento o meu cartão na porta
seguinte (precisamente corno vós me mostrais as vossas coi­
sas, apenas com a diferença de que me compreendem e en­
tendem o que eu quero dizer), e depois encontro-me entre
estes livros, estou separado de vós, corno se tivesse morrido,
e sento-me a ler um poeta.
Não sabeis o que é um poeta? - Verlaine . . . Nada, não há
memória? Não. Não o distinguis daqueles que conheceis?
Não estabeleceis quaisquer distinções, bem sei. Mas eu estou
a ler outro poeta, que não vive em Paris, que é totalmente di­
ferente. Ele tem urna casa sossegada na montanha. Ele soa
corno um sino no ar puro. É um poeta feliz que fala da sua j a­
nela e das portas envidraçadas das suas estantes, que reflec­
tern pensativamente urna amável distância solitária. Ele é pre­
cisamente o poeta que eu gostaria de ser, pois sabe tantas
coisas sobre as raparigas e eu gostaria de saber também mui­
tas coisas sobre elas. Ele sabe coisas sobre raparigas que vi­
veram há cem anos ; não faz diferença elas estarem mortas,
urna vez que ele tudo sabe. E isto é o mais importante. Ele
pronuncia os nomes delas, estes nomes suaves e elegante­
mente escritos, com desenhos em laço à moda antiga nas le­
tras mais compridas, e os nomes adultos das suas amigas mais
As Anotações de Malte Laurids Brigge 65

velhas, em que já se ouve um pouco do som do destino, um


pouco de desilusão e de morte. Talvez se encontrem numa ga­
veta da secretária de mogno dele as suas cartas amareladas e
as folhas soltas dos seus diários, onde figuram aniversários,
festas de Verão, aniversários. Ou pode ser que na cómoda bo­
juda ao fundo do seu quarto haja uma gaveta em que estão
guardados os vestidos primaveris delas; vestidos brancos, que
foram estreados por altura da Páscoa, vestidos de tule às pin­
tas, que são mais apropriados para o Verão pelo qual não foi
possível esperar. Oh, que feliz destino o de estar sentado na
sala silenciosa de uma casa herdada, somente entre coisas se­
renas e sedentárias, e lá fora, no jardim leve e verde-claro, ou­
vir as primeiras abelheiras dando os primeiros gorjeios, e, ao
longe, o relógio da aldeia. Estar sentado e olhar para uma es­
tria quente do sol da tarde e saber muitas coisas sobre rapari­
gas do passado e ser um poeta. E pensar que eu também teria
podido ser um poeta assim, se tivesse podido morar nalgum
lugar, em qualquer sítio do mundo, numa das muitas casas de
campo fechadas, com as quais ninguém se preocupa. Apenas
precisaria de uma única divisão (o quarto claro debaixo · da
empena do telhado). Aí teria vivido com as minhas velhas coi­
sas, os retratos de fanu1ia, os livros. E teria uma poltrona e
flores e cães e um cajado resistente para os caminhos pedre­
gosos. E mais nada. Apenas um livro encadernado a couro
amarelado, cor de marfim, com folhas de guarda de papel an­
tigo com motivos florais: nele teria eu escrito. Teria escrito
muito, pois teria tido muitas ideias e recordações de muitas
pessoas.
Mas as coisas aconteceram de outro modo, sabe Deus por­
quê. Os meus móveis antigos apodrecem num celeiro, onde
me permitiram que os depositasse, eu próprio, sim, meu Deus,
não tenho telhado que me abrigue e chove-me nos olhos.
66 Rainer Maria Rilke

I7

Muitas vezes passo por pequenas lojas, por exemplo na rue


de Seine. Antiquários ou pequenos alfarrabistas ou comer­
ciantes de gravuras em cobre com montras excessivamente
cheias. Nunca ninguém entra nessas lojas, parece que não fa­
zem negócio. Mas se se olha lá para dentro, eles estão senta­
dos, estão sentados a ler despreocupadamente; não se preo­
cupam com o amanhã, não se atemorizam por um êxito a
alcançar, têm um cão bem-disposto sentado à sua frente ou
um gato que faz aumentar o silêncio ao roçar-se pelas prate­
leiras de livros, como se apagasse os nomes nas lombadas.
Ai, se tal coisa bastasse ! Muitas vezes desejei comprar uma
montra assim tão cheia e sentar-me com um cão atrás dela du­
rante vinte anos.

I8

É bom dizer alto: «Não aconteceu nada.» E de novo: «Não


aconteceu nada.» Servirá isso de alguma coisa?
Não é, de modo algum, uma desgraça o meu fogão ter en­
chido novamente o quarto de fumo, obrigando-me a sair. Não
tem importância eu sentir-me cansado e constipado. Se andei
sem destino pelas vielas todo o dia, a culpa é minha. Poderia
igualmente ter ficado sentado no Louvre. Ou não, de prefe­
rência não. Aí encontram-se determinadas pessoas que se que­
rem aquecer. Sentam-se nos bancos de veludo e os seus pés
estão lado a lado como se fossem grandes botas vazias, pou­
sados sobre as grelhas do aquecimento. São homens extrema­
mente modestos, que ficam agradecidos por os funcionários
de uniforme escuro com muitos galões os tolerarem. Mas,
quando eu entro, fazem um sorriso de troça. Fazem esse sor­
riso e acenam ligeiramente com a cabeça. E depois, quando
As Anotações de Malte Laurids Brigge 67

estou a ver os quadros, andando de um lado para o outro,


mantêm-me debaixo de olho, sempre na sua mira, sempre de­
baixo desse olho revolvido e de novo reunido. Portanto, ainda
bem que não fui ao Louvre. Tenho sempre andado de um la­
do para outro. Sabe Deus em quantas cidades, bairros, cemi­
térios, pontes e passagens. Num desses lugares vi um homem
que empurrava um carro de legumes. Ele apregoava: chou­
-fleur, chou-fleur, o fleur com um eu curiosamente melancóli­
co. Caminhava a seu lado uma mulher feia, angulosa, que de
vez em quando lhe dava uma cotovelada. E a cada cotovelada
ele apregoava. Muitas vezes ele tomava a iniciativa de apre­
goar, mas nessa altura revelava-se ter sido em vão, e tinha de
voltar a apregoar logo a seguir, porque se encontravam dian­
te de uma casa que era freguesa. Já disse que ele era cego?
Não? Pois era cego. Era cego e apregoava. Estou a adulterar
quando digo isto, estou a omitir o carro que ele empurrava,
procedo como se não tivesse reparado que ele apregoava
couve-flor. Mas será isso essencial? E mesmo que fosse es­
sencial, não se trata em primeiro lugar do que toda essa cena
constituiu para mim? Eu vi um homem velho que era cego e
apregoava. Foi o que eu vi. Vi.
Será possível acreditar que existem semelhantes casas?
Não, dirão que estou a mentir. Mas desta vez é verdade, não
omiti nada, claro que também nada acrescentei. Onde iria eu
buscar semelhante coisa? É sabido que sou pobre. É sabido.
Casas? Mas, para ser exacto, eram casas que já não existiam.
Casas que tinham demolido de alto a baixo. O que restava
eram as outras casas que ficavam ao lado dessas, casas vizi­
nhas de vários andares. Aparentemente corriam perigo de se
desmoronarem, desde que retiraram o que estava ao lado; ha­
via um andaime inteiro feito de compridos mastros revestidos
de alcatrão, colocado obliquamente entre o chão coberto de
destroços e o muro desnudado. Não sei se já disse que é a es­
te muro que me refiro. Mas não se tratava do primeiro muro
68 Rainer Maria Rilke

das casas existentes (o que se deveria ser levado a pensar),


mas sim do último das que existiam dantes. Via-se o seu inte­
rior. Via-se nos vários andares paredes de divisões a que ain­
da estava colado o papel, aqui e ali a base do soalho ou do
tecto. Ao lado das paredes divisórias tinha ficado um espaço
branco-sujo ao comprimento de todo o muro, e atravessava-o,
agachado, o rego aberto e cheio de manchas de ferrugem do
cano de esgoto em movimentos indizivelmente repugnantes,
moles como um verme e de algum modo em digestão. Das
condutas por onde passara o gás de iluminação havia marcas
cinzentas e com pó nos bordos dos tectos que inesperadamen­
te viravam para aqui e acolá, em círculos, e desciam pene­
trando a parede colorida para dentro de um buraco negro, ras­
gado sem contemplações. Mas o mais inesquecível eram as
próprias paredes. A vida vigorosa destas divisões não se dei­
xara espezinhar. Ainda lá estava, agarrada aos pregos que fi­
caram, sobre o palmo de chão que restava, escondia-se debai­
xo dos sedimentos dos cantos onde ainda havia um pouco de
espaço interior. Podia ver-se que estava na tinta que, devagar,
ano após ano, tinha transformado: o azul em verde bolorento,
o verde em cinzento e o amarelo num branco velho, insípido,
a apodrecer. Mas também se encontrava nas zonas mais fres­
cas, conservadas por detrás de espelhos, quadros e armários;
pois tinha marcado e sublinhado os seus contornos e também
estivera com aranhas e pó nestes lugares cobertos, agora pos­
tos a nu. Estava em cada tira já arrancada, estava nas bolhas
húmidas no bordo inferior do papel de parede, oscilava nos
bocados rasgados e transpirava das manchas repelentes que
existiam há muito. E destas paredes outrora azuis, verdes e
amarelas, emolduradas pelos rastos quebrados dos tabiques
destruídos, surgia o ar destas vidas, o ar persistente, mole,
abafado, que nenhum vento ainda dissipara. Aí estavam os
meios-dias e as doenças e o que se expirara e o fumo com a
duração de anos e o suor que parte das axilas e toma a roupa
As Anotações de Malte Laurids Brigge 69

pesada, e o hálito tépido das bocas e o cheiro arm1ico a pés em


fermentação. Aí estava o acre da urina e o ardor da fuligem e
do vapor cinzento das batatas e o mau cheiro pesado e liso de
gordura rançosa. O longo cheiro doce de lactentes mal cuida­
dos estava lá e o cheiro a medo das crianças que vão à esco­
la, e o ar abafado das carnas dos rapazes púberes. E muita coi­
sa se lhes tinha juntado, vinda de baixo, do abismo da viela
evaporando-se e outras coisas infiltradas de cima com a chu­
va que sobre as cidades não é pura. E muitas outras coisas ti­
nham sido trazidas pelos fracos ventos domésticos amansados
que permanecem sempre na mesma rua, e ainda havia muita
coisa cuja origem se desconhecia. Eu já disse que demoliram
todos os muros, à excepção do último. É deste muro que con­
tinuo a falar. Dir-se-á que fiquei muito tempo diante dele; no
entanto eu juro que comecei a correr logo que reconheci esse
muro. Pois o que é terrível é eu tê-lo reconhecido. Reconheço
tudo isto aqui e por isso tudo se introduz em mim sem con­
templações: tudo está em casa em mim.
Depois daquilo fiquei um pouco exausto, poder-se-á mes­
mo dizer abalado, e por isso era de mais para mim ele ter de
ficar ainda por cima à minha espera. Esperava por mim na pe­
quena crémerie onde pretendia comer dois ovos estrelados;
sentia fome, durante todo o dia não tinha conseguido tempo
para comer. Mas também agora não fui capaz de comer nada;
antes de os ovos estarem prontos, senti-me novamente impe­
lido a sair para as ruas que corriam ao meu encontro pejadas
de gente. Porque era Carnaval e a noite caía e as pessoas ti­
nham todas tempo e deambulavam, roçando-se urnas pelas
outras. E os seus rostos estavam cheios da luz que vinha das
barracas e o riso saía-lhes das bocas corno pus de feridas aber­
tas. Riam cada vez mais e apertavam-se cada vez mais, quan­
to mais impacientemente eu tentava avançar. O xaile de urna
mulher ficou preso a mim não sei corno, arrastei-a comigo e
as pessoas detinham-me e riam e eu sentia que também devia
70 Rainer Maria Rilke

rir, mas não era capaz de fazê-lo. Alguém atirou-me um pu­


nhado de confetti aos olhos que ficaram a arder como se ti­
vessem recebido uma chicotada. À s esquinas, as pessoas esta­
vam apinhadas, encaixadas umas nas outras, e nelas não havia
qualquer movimento de avanço, apenas um leve e mole vai­
vém, como se se acasalassem em pé. Mas, embora estivessem
paradas e eu corresse como um louco à beira do passeio atra­
vés dos rasgões que se abriam na multidão comprimida, na
verdade elas é que se movimentavam e eu estava imóvel. Pois
nada se alterava: quando eu olhava para cima, continuava a
ver as mesmas casas de um lado e as barracas do outro. Tal­
vez tudo estivesse mesmo parado e houvesse apenas em mim
e neles uma vertigem que parecia pôr tudo a andar à roda. Não
tinha tempo algum para pensar nisso, estava pesado de suor,
dentro de mim circulava uma dor anestesiante como se no
meu sangue algo desmesuradamente grande de igual modo
corresse, a ponto de dilatar as veias, por onde quer que pas­
sasse. E sentia que o ar há muito tinha acabado e que eu ape­
nas inspirava mais expirações que me paralisavam os pul­
mões.
Mas agora tudo passou, superei a prova. Estou sentado no
meu quarto junto ao candeeiro. Faz um pouco de frio, pois
não ouso experimentar o fogão - se ele começasse a deitar
fumo, teria de sair novamente. Estou sentado e penso : se eu
não fosse pobre, alugaria outro quarto, um quarto com móveis
que não fossem tão usados, tão cheios dos inquilinos anterio­
res como estes. Primeiramente tive muita dificuldade em
apoiar a cabeça nesta cadeira de encosto - tem uma certa
cova gordurosa e cinzenta no estofo verde, na qual parecem
caber todas as cabeças. Durante muito tempo costumava ter o
cuidado de colocar um lenço debaixo do cabelo, mas agora
estou demasiado cansado para isso; achei que assim também
serve e que a pequena cova se ajusta perfeitamente à minha
nuca, como se tivesse sido feita por medida. Mas, se eu não
As Anotações de Malte Laurids Brigge 71

fosse pobre, compraria sobretudo um bom fogão e nele quei­


maria a lenha pura e forte que vem da montanha e não estes
desconsolados têtes-de-moineau [carvões] , cujo fumo me di­
ficulta a respiração e confunde a cabeça. Depois teria de ter
alguém que arrumasse o quarto sem fazer estes ruídos gros­
seiros e tratasse do lume como eu preciso; pois muitas vezes,
quando tenho de estar de joelhos diante do fogão um quarto
de hora a atiçá-lo, com a pele da testa esticada pela proximi­
dade das brasas e os olhos dilatados pelo calor, gasto todas as
forças necessárias a esse dia e, nessa altura, quando me apro­
ximo das pessoas da rua, elas estão naturalmente em vanta­
gem em relação a mim. Também muitas vezes, quando a mul­
tidão se acotovela, tomaria um carro passando ao largo,
comeria diariamente num restaurante Duval, em vez de me
aninhar nas crémeries . . . E ele, estaria ele porventura também
num Duval? Não. Lá não lhe seria permitido esperar por mim.
Não se admitem lá moribundos. Moribundos? Mas agora es­
tou sentado no meu quarto, posso tentar reflectir tranquila­
mente sobre o que me aconteceu. É bom não deixar nada a
pairar na incerteza. De facto entrei e logo vi que a mesa que
habitualmente ocupava já tinha alguém. Cumprimentei em di­
recção ao pequeno balcão e fiz o meu pedido e sentei-me ao
lado da outra pessoa. E nessa altura senti-o, embora ele não se
mexesse. O que eu senti foi precisamente a sua imobilidade e
compreendi-a num relâmpago. A relação entre os dois
estabelecera-se e eu sabia que ele estava hirto de pavor. Sabia
que o pavor o tinha paralisado, pavor de alguma coisa que no
seu íntimo se desenrolava. Talvez nele se tivesse rompido um
vaso, talvez acabasse de entrar no seu ventrículo um veneno
que ele há muito temia, talvez lhe tivesse rebentado um gran­
de tumor no cérebro, como um sol que lhe transformava o
mundo. Com indescritível esforço obriguei-me a olhar para
ele, pois ainda tinha esperança de que tudo fosse imaginação.
Mas aconteceu que me levantei de um salto e saí precipitada-
72 Rainer Mari a Rilke

mente, pois não me tinha enganado. Ele ali estava sentado


com um sobretudo grosso e preto, e o seu rosto pálido e ten­
so pendia pesadamente sobre o seu cachecol de lã. Tinha a
boca cerrada, corno se tivesse sido fechada com grande ímpe­
to, mas não era possível dizer se os seus olhos ainda viam:
diante deles havia uns óculos embaciados, cinzentos corno o
fumo, que tremiam um pouco. As narinas estavam dilatadas e
o cabelo comprido cobrindo as têmporas, das quais tudo fora
retirado, murchava corno se fizesse um calor excessivo. As
orelhas eram longas, amarelas, projectando grandes sombras
para trás de si. Sim, ele sabia que agora se afastava de tudo e
não apenas das pessoas. Ainda um momento e tudo terá per­
dido o seu sentido, e esta mesa e a chávena e a cadeira a que
está agarrado, tudo o que faz parte do dia-a-dia e o que é mais
próximo ter-se-á tornado incompreensível, estranho e pesado.
Era assim que ele ali estava sentado e esperava até que tudo
tivesse acontecido. E deixou de oferecer resistência.
E eu ainda continuo a oferecer resistência. Ofereço resis­
tência, ainda que saiba que o coração já de mim se afastou e
que já não posso continuar a viver, mesmo que os meus ator­
mentadores me deixassem em paz. Digo para comigo: nada
aconteceu, e no entanto só me foi possível compreender aque­
le homem porque também em mim algo incontrolável se pas­
sa e começa a afastar-me e a separar-me de tudo. Corno fica­
va cheio de medo quando ouvia dizer de um moribundo que
já não reconhecia ninguém. Imaginava então um rosto solitá­
rio que se erguia de almofadas e procurava alguma coisa ain­
da familiar, procurava algo que já tivesse visto antes mas não
se encontrava presente. Se o meu medo não fosse tão grande,
consolar-me-ia o facto de não ser impossível ver todas as coi­
sas de maneira diferente e no entanto continuar a viver. Mas
eu tenho medo, tenho um medo inconfessável desta transfor­
mação. Ainda nem me habituei a este mundo que me parece
bom - que hei-de fazer noutro? Gostaria tanto de permane-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 73

cer entre as significações que me são caras e, se alguma coisa


tem de se transformar, então gostaria de que pelo menos me
deixassem viver com cães, pois têm um mundo parecido e as
mesmas coisas.
Durante algum tempo poderei ainda escrever e dizer tudo
isto. Mas chegará o dia em que a minha mão estará longe de
mim e escreverá palavras que eu não pretendo. Despontará o
tempo de uma outra interpretação e não ficará palavra sobre
palavra e todo e qualquer sentido dissolver-se-á como as nu­
vens e precipitar-se-á como a chuva. Com todo o meu medo
acabo por ser como alguém que está perante algo grande, e
lembro-me de que outrora sentia com frequência algo seme­
lhante antes de começar a escrever. Mas desta vez sou eu que
vou ser escrito. Sou a impressão que se vai transformar. Oh,
apenas falta um pouquinho, e eu estaria em condições de
compreender e aprovar tudo isso. Mais um passo apenas e a
minha profunda miséria transformar-se-ia em bem-aventu­
rança. Mas não posso dar esse passo, caí e já não me posso le­
vantar, pois estou destroçado. Sempre acreditei que alguma
ajuda pudesse vir em meu auxílio. Tenho diante de mim, es­
crito por meu punho e letra, tudo aquilo que rezei, noite após
noite. Copiei-o dos livros em que o encontrei, para que ficas­
se muito junto a mim, saído da minha mão como se fosse de
minha autoria. E vou escrevê-lo novamente, vou escrevê-lo
aqui, ajoelhado diante da minha mesa; pois assim pertence­
-me mais tempo do que se o lesse apenas, e cada palavra tem
duração e tempo para se extinguir no ar.
«Mécontent de tous et mécontent de moi, je voudrais bien
me racheter et m' enorgueillir un peu dans le silence et la so­
litude de la nuit. Âmes de ceux que j ' ai aimés, âmes de ceux
que j ' ai chantés, fortifiez-moi, soutenez-moi, éloignez de moi
le mensonge et les vapeurs corruptrices du monde; et vous,
Seigneur mon Dieu ! accordez-moi la grâce de produire quel­
ques beaux vers qui me prouvent à moi-même que je ne suis
74 Rainer Maria Rilke

pas le dernier des hornmes, que je ne suis pas inferieur à ceux


. ,, . *
que Je rnepnse.»
«Filhos de gente infame, de gente sem nome, são expulsos
do país ! Agora sou o assunto das suas canções, o objecto dos
seus escárnios .
. . . Destroem os meus caminhos . . .
. . . para me arruinar, e ninguém me presta ajuda contra eles.
.. . Agora a minha alma dissolve-se, os dias da aflição
apoderam-se de mim.
A noite trespassa os meus ossos, consome-os, e os males
que me roem não descansam.
A sua violência vai consumindo a minha veste, aperta-me
corno o colarinho da minha túnica.
As minhas entranhas agitam-se sem descanso, assaltaram­
-me dias de aflição.
A minha cítara converteu-se em pranto e a minha flauta em
lamentações.»

I9

O médico não me compreendeu. Nada. Também era difícil


contar-lhe. Queriam fazer urna experiência com choques eléc­
tricos. Está bem. Deram-me urna senha: devia estar à urna
hora no Salpêtriere. Compareci. Andei durante muito tempo,
passando por diversas casas provisórias, atravessando vários

* Em francês no original; final do poema em prosa « À une heure du matin» ( À

uma da manhã) de Charles Baudelaire em Le Spleen de Paris (O Spleen de Paris),


1869. «Descontente com todos e descontente comigo, gostaria de me redimir e de
me orgulhar um pouco no silêncio e na solidão da noite. Almas daqueles que amei,
almas daqueles que cantei, fortalecei-me, apoiai-me, afastai de mim a mentira e os
vapores funestos do mundo; e Vós, Senhor meu Deus ! concedei-me a graça de es­
crever alguns versos belos que me provem a mim mesmo que não sou o último dos
homens e que não sou inferior àqueles que desprezo.» (N. T.)
As Anotações de Malte Laurids Brigge 75

pátios onde de vez em quando via pessoas usando toucas bran­


cas como os prisioneiros, de pé, sob árvores despidas. Por fim
cheguei a um compartimento comprido e escuro semelhante a
um corredor que, de um lado, tinha quatro janelas de vidros
foscos e esverdeados, separadas umas das outras por largos ta­
biques pretos. À frente estava um banco de madeira a todo o
comprimento, e neste banco estavam sentados aqueles que me
conheciam e esperavam. Sim, todos estavam lá. Quando já me
habituara à penumbra do compartimento, notei que entre
aqueles que estavam sentados ombro a ombro, em fila inter­
minável, também se podiam encontrar algumas outras pes­
soas, pessoas simples, operários, criadas e cocheiros de carros
de carga. Em baixo, na parte mais estreita do corredor, tinham­
-se sentado à vontade, em cadeiras diferentes, duas mulheres
gordas, provavelmente concierges [porteiras] , que conversa­
vam animadamente. Olhei para o relógio: faltavam cinco para
a uma. Então dentro de cinco, digamos dez minutos, deveria
ser a minha vez; nada mau, portanto. O ar estava viciado, pe­
sado, cheio de roupa e respiração. Num ponto determinado,
saía da fresta de uma porta a frescura forte e crescente do éter.
Comecei a andar de um lado para o outro. Veio-me à mente
que me tinham enviado para aqui, para junto destas pessoas,
para esta superlotada consulta geral. Era por assim dizer a pri­
meira confirmação pública de que eu pertencia ao número dos
marginalizados; teria o médico lido isso na minha cara? Mas
eu tinha ido ao consultório usando um fato razoavelmente
bom, fizera-lhe chegar o meu cartão-de-visita. Apesar disso,
deve tê-lo sabido de alguma outra forma, talvez eu próprio me
tivesse traído. Mas, já que era um facto, não o achava tão mau;
as pessoas estavam sentadas e caladas e não davam por mim.
Algumas tinham dores e balouçavam um pouco uma das per­
nas para as suportarem melhor. Vários homens tinham pousa­
do a cabeça na palma das mãos, outros dormiam profunda­
mente e tinham rostos pesados e soterrados. Um homem gordo
76 Rainer Maria Rilke

de pescoço vermelho e inchado estava inclinado para a frente,


olhava fixamente o chão e de tempos a tempos cuspia com ruí­
do para um ponto que lhe parecera adequado. Uma.criança so­
luçava num canto; tinha encolhido as pernas compridas e ma­
gras no banco, agora envolvia-as nos braços, puxando-as
contra si, como se tivesse de despedir-se delas. Uma mulher
baixa e pálida usando um chapéu de crepe enfeitado com flo­
res redondas e pretas, colocado à banda sobre os cabelos, ti­
nha a careta de um sorriso sobre os lábios escassos, mas as
suas pálpebras feridas lacrimejavam continuamente. Não lon­
ge dela tinham sentado uma rapariga de rosto redondo e liso e
de olhos salientes, sem expressão; a boca estava aberta, de
modo que se via as gengivas brancas e mucosas com dentes
velhos e atrofiados. E havia muitas ligaduras. Ligaduras que
cobriam a cabeça inteira, camada sobre camada, até sobrar
apenas um único olho, que não pertencia a ninguém. Ligadu­
ras que ocultavam e ligaduras que mostravam o que estava por
baixo. Ligaduras que se tinham aberto e nas quais agora se en­
contrava, como numa cama suja, uma mão que já não era mão.
E uma perna ligada que se destacava na fila, grande como um
homem inteiro. Eu andava de um lado para o outro e esfor­
çava-me por estar calmo. Reparava com pormenor na parede
da frente. Notei que continha enorme quantidade de portas de
um só batente e que não chegava ao tecto, de modo que este
corredor não estava completamente separado das salas que lhe
deviam ser contíguas. Olhei para o relógio: tinha andado de
um lado para o outro durante uma hora. Os médicos chegaram
um pouco depois. Primeiro alguns jovens, que passavam com
um ar de indiferença no rosto, por fim aquele que eu tinha con­
sultado, de luvas claras, chapeau à huit reflets [chapéu alto e
brilhante] e sobretudo impecável. Quando me viu, levantou
um pouco o chapéu e sorriu distraidamente. Fiquei esperança­
do de que me chamassem imediatamente, mas decorreu de no­
vo uma hora. Não sou capaz de me lembrar como é que a pas-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 77

sei. Ela passou. Um velho de avental cheio de nódoas, uma es­


pécie de enfermeiro, aproximou-se e tocou-me no ombro. En­
trei numa das salas ao lado. O médico e os jovens estavam
sentados à volta de uma mesa e olhavam-me. Deram-me uma
cadeira. Assim. E então eu deveria contar o que se passava co­
migo. Com a maior brevidade, s' il vous plaft [por favor] . Pois
aqueles senhores não tinham muito tempo. Não me sentia
bem. Os jovens estavam sentados e olhavam-me com aquela
curiosidade superior e profissional que tinham aprendido.
O médico que eu conhecia cofiava a pêra escura e sorria dis­
traidamente. Pensei que ia desatar a chorar, mas ouvi-me res­
ponder em francês : «Já tive a honra de lhe dar todas as infor­
mações disponíveis. Se considera necessário estes senhores
serem iniciados no assunto, certamente estará em condições
de o fazer com base na nossa conversa anterior, até com pou­
cas palavras, enquanto para mim suporia um esforço enorme.»
O médico levantou-se com um sorriso amável, aproximou-se
da j anela com os assistentes e disse algumas palavras,
acompanhando-as com um movimento horizontal e oscilante
da mão. Três minutos depois, um dos jovens, míope e distraí­
do, aproximou-se de novo da mesa e perguntou, esforçando-se
por me olhar com severidade: «Ü senhor dorme bem?» «Não,
mal.» Ao que ele regressou ao grupo de um salto. Aí discuti­
ram por uns momentos, depois o médico dirigiu-se para mim
e comunicou-me que me mandariam chamar de novo.
Lembrei-lhe que me tinham mandado vir à uma hora. Ele sor­
riu e fez com as pequenas mãos brancas uma série de movi­
mentos rápidos e saltitantes para dizer que estava extrema­
mente ocupado. Voltei então para o meu corredor, onde o ar
estava muito mais pesado, e comecei de novo a andar de um
lado para o outro, embora me sentisse morto de cansaço. Por
fim, o cheiro húmido e acumulado causou-se tonturas; fiquei
ao pé da porta de entrada e abri-a um pouco. Vi que lá fora ain­
da era de tarde e havia um pouco de sol, e isso fez-me indizi-
78 Rainer Maria Rilke

velmente bem. Mas mal passara um minuto nessa posição, ou­


vi chamar por mim. Uma mulher, sentada a dois passos dali a
uma mesinha, silvou qualquer coisa na minha direcção. Quem
me tinha mandado abrir a porta. Disse que não suportava
aquele ar. Bem, isso era comigo, mas a porta tinha que se man­
ter fechada. Não seria possível abrir uma j anela. Não, isso era
proibido. Decidi retomar o andar de um lado para o outro, pois
era afinal uma espécie de anestesia e não ofendia ninguém.
Mas à mulher sentada à mesinha também isso desagradou. Se
eu não tinha onde me sentar. Não, não tinha. Mas andar às vol­
tas não era permitido, eu tinha de procurar um lugar. Devia ha­
ver algum. A mulher tinha razão. Imediatamente apareceu um
lugar ao lado da rapariga de olhos salientes. Fiquei então ali
sentado com a sensação de que este estado seria necessaria­
mente a preparação para algo terrível. À esquerda encontrava­
-se a rapariga de gengivas apodrecidas ; o que estava à minha
direita, só depois de alguns momentos pude reconhecer. Era
uma massa enorme e imóvel que tinha um rosto e uma mão
grande, pesada e parada. O lado do rosto que eu via era vazio,
sem feições e sem lembranças, e metia medo o seu fato ser co­
mo o de um cadáver, vestido para ser posto num caixão. A es­
treita gravata preta estava atada em volta do colarinho da mes­
ma maneira frouxa e impessoal, e via-se pela maneira de o
casaco assentar que tinha sido colocado por outros sobre este
corpo sem vontade. A mão havia sido colocada sobre estas cal­
ças, tal como se encontrava agora, e até o cabelo parecia ter si­
do penteado pelas mulheres que lavam os cadáveres e estava
rigidamente ordenado como o pêlo dos animais embalsama­
dos. Eu observava atentamente tudo isto e ocorreu-me que era
afinal aquele o lugar que me fora destinado, pois eu acredita­
va ter chegado finalmente a um ponto da minha vida em que
ia ficar. Sim, o destino tem caminhos surpreendentes.
Repentinamente ergueram-se muito perto, uns a seguir aos
outros, os gritos assustados, defensivos, de uma criança, aos
As Anotações de Malte Laurids Brigge 79

quais se seguiu um choro baixo e contido. Enquanto eu me es­


forçava por descobrir onde poderia ter sido isto, um pequeno
grito abafado desfez-se de novo no seu tremor, e ouvi vozes
que faziam perguntas, uma voz que dava ordens em voz bai­
xa, e depois o zumbido de uma qualquer máquina indiferente,
sem se importar com nada. Lembrei-me, então, da meia­
-parede e apercebi-me de que tudo aquilo vinha do lado de lá
das portas e de que aí estavam a trabalhar. De facto, de tem­
pos a tempos aparecia o enfermeiro com o avental cheio de
nódoas e acenava. Eu já não pensava que ele se estivesse a di­
rigir a mim. Ou estava? Não. Havia ali dois homens com uma
cadeira de rodas. Meteram a massa lá dentro e então vi que era
um velho paralítico, que ainda tinha um outro lado, mais pe­
queno, gasto pela vida, com um olho aberto, turvo, triste.
Levaram-no para dentro, e ao meu lado havia muito espaço li­
vre. E eu estava sentado e pensava o que é que eles queriam
fazer à rapariga idiota e se ela também ia gritar. As máquinas
lá atrás zumbiam de um modo tão agradavelmente fabril que
nada tinha de inquietante.
Mas de súbito fez-se silêncio e neste silêncio dizia uma voz
superior e vaidosa que eu julgava conhecer:
«Riez! [Ria ! ] » Intervalo. «Riez. [Ria.] Mais riez, riez. [Mas
ria, ria.] » Eu já estava a rir. É inexplicável porque é que o ho­
mem do lado de lá não queria rir. Uma máquina começou a vi­
brar, mas voltou a calar-se novamente; houve uma troca de
palavras, depois ergueu-se outra vez a voz enérgica e orde­
nou: «Dites-nous le mot: avant. [Diga-nos a palavra: antes.]»
Soletrando: «a-v-a-n-t [a-n-t-e-s]» . . . Silêncio. «On n' entend
rien. Encare une fois: . . . [Não se ouve nada. Outra vez: . . . ] »
E então, enquanto do lado de l á s e desenrolava esse balbu­
ciar quente e esponjoso: então, pela primeira vez depois de
muitos anos, eis que essa coisa surgiu de novo. Ela que fora a
primeira a causar-me um profundo pavor quando, na minha
infância, estava de cama com febre: a coisa grande. Sim, era
80 Rainer Maria Rilke

assim que eu sempre a referira, quando todos estavam à volta


da minha cama e me tomavam o pulso e me perguntavam o
que me tinha assustado: a coisa grande. E quando iam .buscar
o médico e ele comparecia e me procurava acalmar, eu pedia­
-lhe que ele fizesse com que a coisa grande se fosse embora, o
resto não era nada. Mas ele era como os outros. Não era capaz
de a afastar, embora eu nessa altura fosse pequeno e tivesse
sido fácil ajudar-me. E agora ela tinha regressado. Durante
algum tempo desaparecera, mesmo em noites de febre não
voltara. Agora estava ali, embora eu não tivesse febre. Agora
crescia de dentro de mim como um tumor, como uma segunda
cabeça, e era uma parte de mim, embora não pudesse de facto
pertencer-me, por ser tão grande. Estava ali como um grande
animal morto que outrora, enquanto estava vivo, fora a minha
mão ou o meu braço. E o meu sangue circulava por mim e por
ela, como por um só e mesmo corpo. E o meu coração tinha de
fazer um grande esforço para fazer chegar o sangue até à coi­
sa grande: quase não havia sangue que bastasse. E o sangue
entrava contrariado na coisa grande e dela saía doente e mau.
Mas a coisa grande inchava e crescia a meus olhos como um
inchaço quente e azulado e crescia diante da minha boca e por
cima do meu último olho caía já a sombra da sua orla.
Não consigo lembrar-me de como saí atravessando todos
aqueles pátios. Era de noite e perdi-me naquela zona desco­
nhecida e subi boulevards com muros sem fim numa determi­
nada direcção e, quando vi que não havia fim, voltei na direc­
ção contrária até uma praça qualquer. Aí comecei a percorrer
uma rua, e apareciam outras ruas que eu nunca tinha visto, e de
novo outras. Por vezes passavam eléctricos velozes, excessi­
vamente iluminados, a tocar dura e insistentemente. Mas nos
seus letreiros havia nomes que eu não conhecia. Eu não sabia
em que cidade estava e se tinha aqui, nalgum sítio, uma mora­
da, nem o que devia eu fazer para não ter de continuar a andar.
As Anotações de Malte Laurids Brigge 81

20

E agora ainda por cima esta doença, que desde sempre me


atingiu de modo tão estranho ! Estou certo de que as pessoas
não lhe dão o devido valor. Do mesmo modo que exageram a
importância de outras doenças. Esta doença não tem sintomas
definidos, assume a índole daquele que ataca. Com uma fir­
meza sonâmbula arranca a cada um o seu perigo mais profun­
do, aquele que já parecia pertencer ao passado, e coloca-o de
novo diante dele, a pouca distância, na hora seguinte. Homens
que outrora, quando andavam na escola, experimentaram
esse desamparado vício cujos confidentes enganados eram as
pobres e rudes mãos de rapaz, a ele regressam novamente; ou
reaparece uma doença que superaram em criança; ou volta a
surgir um hábito perdido, um determinado modo hesitante de
virar a cabeça, como faziam há muitos anos. E com tudo isso
ergue-se uma confusão d� loucas lembranças que se agarram
como algas molhadas a uma coisa submersa. Vidas, das quais
nunca se teria sabido, levantam-se e misturam-se naquilo que
realmente se deu, e recalcam coisas passadas que se julgava
conhecer: pois naquilo que vem à tona existe uma força revi­
gorada e nova, mas aquilo que sempre existiu fica cansado do
excesso de recordações.
Estou deitado na minha cama, num quinto andar, e o meu dia,
por nada interrompido, está vazio como um mostrador sem pon­
teiros. Como uma coisa que durante muito tempo esteve perdi­
da e aparece uma bela manhã no seu sítio, poupada e em bom
estado, quase mais nova do que na altura em que se perdeu,
como se tivesse sido entregue aos cuidados de alguém: desse
modo se encontram aqui e acolá, em cima da colcha da minha
cama, coisas perdidas da minha infância, como se fossem
novas. Todos os medos desaparecidos se tomaram presentes.
O medo de que um fiozinho de lã que sobressai da orla da
colcha seja rijo, rijo e pontiagudo como uma agulha de aço; o
82 Rainer Maria Rilke

medo de que este botãozinho da minha camisa de donnir seja


maior do que a minha cabeça, grande e pesado; o medo de que
esta migalhinha de pão caindo da minha cama sej a de vidro e
chegue ao chão estilhaçada, e o cuidado premente de que com
ela se parta realmente tudo, tudo para sempre; o medo de que
a borda da tira rasgada de uma carta seja uma coisa proibida
que ninguém devesse ver, uma coisa indescritivelmente pre­
ciosa que em nenhum sítio do quarto ficaria em segurança; o
medo de que eu, ao adormecer, engula o bocado de carvão que
está perto do fogão; o medo de que um número qualquer co­
mece a crescer-me no cérebro até já não caber dentro de mim;
o medo de estar deitado sobre granito, granito cinzento; o me­
do de poder gritar e de as pessoas se virem a juntar à minha
porta, acabando por arrombá-la; o medo de poder trair-me e
dizer todas as coisas das quais tenho medo, e o medo de nada
poder dizer porque tudo é indizível - e os outros medos . . . os
medos.
Pedi a minha infância e ela veio de novo, e sinto que conti­
nua a ser tão difícil como outrora e que de nada serviu ser
mais velho.

2I

Ontem a febre baixou e hoje o dia começa como uma Pri­


mavera, uma Primavera em imagens. Vou experimentar sair e
ir à Bibliotheque Nationale ao encontro do meu poeta que não
leio há tanto tempo e talvez depois possa andar a passo lento
pelos jardins. Talvez o vento sopre sobre o grande lago cuj a
água é tão autêntica, e venham crianças que aí deitem os seus
barquinhos de velas vermelhas, ficando a vê-los.
Hoje não esperava ter a coragem de sair de modo a parecer
a coisa mais natural e simples. No entanto, novamente se
apresentou uma coisa que me tomou como se eu fosse um pe-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 83

daço de papel, me amachucou e deitou fora, uma coisa inau­


dita.
O boulevard St-Michel era vazio e vasto, e caminhava-se
facilmente no seu ligeiro declive. Nos andares de cima das ca­
sas abriram-se batentes de janelas, fazendo vibrar as vidraças,
e os seus reflexos voavam por cima da rua como pássaros
brancos. Um carro de rodas vermelho-claras passou, e mais
longe, na parte de baixo, alguém ia vestido de verde-claro.
Passavam alguns cavalos de arreios reluzentes sobre a calça­
da escurecida e limpa. O vento era estimulante, novo, suave,
e tudo subia: cheiros, vozes, sinos.
Passei junto de um dos cafés onde à noite tocam falsos ci­
ganos de vermelho. Das janelas abertas esgueirava-se, de má
consciência, o ar tresnoitado. Alguns empregados de cabelo
bem penteado esfregavam os passeios junto às portas. Um es­
tava inclinado para a frente e deitava, punhado após punhado,
areia amarelada para debaixo das mesas. Uma das pessoas
que passavam tocou-lhe e apontou-lhe para a descida da rua.
O empregado, que tinha a cara muito encarnada, olhou com
muita atenção nessa direcção, depois o riso espalhou-se-lhe
pelas faces imberbes, como se nelas estivesse a ser derrama­
do. Fez um sinal aos outros empregados, virou a cara ridente
com rapidez várias vezes da direita para a esquerda, para cha­
mar a atenção dos outros sem perder nada do que se estava a
passar. Agora tinham acorrido todos e olhavam para baixo
vendo ou procurando ver, sorrindo ou aborrecidos por ainda
não terem descoberto qual era o motivo do riso.
Senti despontar em mim um pouco de medo. Algo me im­
pelia para o outro lado da rua; mas comecei apenas a andar
mais depressa e olhei involuntariamente para as poucas pes­
soas que iam à minha frente e nas quais nada notava de espe­
cial. Porém vi que um moço de recados de avental azul e um
cesto vazio ao ombro reparava em alguém. Quando achou que
bastava de olhar, voltou-se, no sítio onde estava, para as casas
84 Rainer Maria Rilke

e fez para um caixeiro que se ria o gesto insistente na testa co­


nhecido de todos. Depois os seus olhos negros faiscaram e
veio em direcção a mim satisfeito e a balouçar-se.
Esperava, logo que tivesse o olhar desimpedido, ver uma fi­
gura invulgar e impressionante, mas ficou demonstrado que
ninguém ia à minha frente, a não ser um homem alto e magro
de sobretudo escuro e um chapéu mole e preto sobre o cabelo
curto e louro-claro. Comprovei que nada havia de ridículo na
roupa nem no comportamento deste homem, e já me dispunha
a desviar os olhos, dirigindo-os para o fundo do boulevard,
quando ele tropeçou em qualquer coisa. Como ia logo atrás
dele, precavi-me mas, ao chegar a esse sítio, nada aí estava,
absolutamente nada. Continuámos os dois a andar, ele e eu,
mantinha-se a mesma distância entre nós. Agora havia que
atravessar uma rua e então aconteceu que o homem que ia à
minha frente saltou os degraus do passeio com movimentos
desiguais das pernas, mais ou menos como as crianças costu­
mam fazer ao andar quando estão contentes: saltar a pé­
-coxinho, pular. No outro lado deu simplesmente um passo
largo. Mas, mal subira o passeio, encolheu um pouco uma das
pernas e saltitou com a outra uma vez e de novo outra e mais
outra. Agora era de novo perfeitamente possível considerar o
movimento repentino um tropeção, se uma pessoa se conven­
cesse de que seria devido a uma pequena coisa no chão, um
caroço, a casca escorregadia de um fruto, uma coisa qualquer.
E o que era estranho era que o próprio homem parecia acredi­
tar na existência de um obstáculo, pois de cada vez voltava-se
e olhava para o ponto importuno com aquele olhar meio abor­
recido, meio acusador, que as pessoas costumam lançar em
tais momentos. Mais uma vez algo me advertia e atraía para o
outro lado da rua, mas não liguei e continuei a andar atrás des­
te homem, enquanto concentrava toda a minha atenção nas
suas pernas. Tenho de confessar que me senti estranhamente
aliviado quando, durante os vinte passos seguintes, não se ve-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 85

rificou qualquer saltitar. Mas, ao erguer os olhos, notei que o


homem fora acometido por um outro aborrecimento. Tinha­
-se-lhe levantado a gola do sobretudo e, por mais que se es­
forçasse denodadamente, ora com uma mão, ora com as duas,
por baixá-la, não conseguia. Assim sucedeu. Tal não me per­
turbou. Mas logo a seguir apercebi-me, com um espanto sem
limites, de que havia dois movimentos nas mãos ocupadas
deste homem: um secreto, rápido, com o qual levantava a
gola involuntariamente, e o outro movimento cuidadoso, per­
sistente, ao mesmo tempo exageradamente soletrado, que pre­
tendia dobrar a gola. Este facto confundiu-me de tal maneira
que levei dois minutos a perceber que no pescoço do homem,
atrás da gola levantada e das mãos de movimentos nervosos,
se instalara o mesmo saltitar horrível em dois tempos que aca­
bara de abandonar as pernas. A partir deste momento fiquei li­
gado a ele. Dei-me conta de que este saltitar errava pelo seu
corpo, de que tentava irromper aqui e acolá. Compreendi o
medo que ele tinha dos outros e comecei a verificar com todo
o cuidado se as pessoas que passavam notavam alguma coisa.
Um calafrio arrepiou-me a espinha quando as suas pernas su­
bitamente deram um salto pequeno e convulsivo, mas nin­
guém deu por isso, e pensei para comigo que eu também tro­
peçaria um pouco, caso alguém reparasse. Seria sem dúvida
um modo de fazer crer aos curiosos que teria havido um pe­
queno obstáculo sem importância que ambos tínhamos pisado
por acaso. Mas enquanto eu reflectia sobre o modo de o so­
correr, ele próprio tinha achado uma excelente nova saída.
Esqueci-me de dizer que ele usava bengala. Era uma bengala
simples, de madeira escura, com um castão simples e curvo.
E tinha-lhe ocorrido, na sua ansiosa busca de uma saída,
segurá-la primeiro só com um a mão (quem sabe para que se­
ria ainda necessária a outra) contra as costas, precisamente ao
longo da coluna, fazer pressão nas cruzes e meter na gola o
castão redondo, de modo a sentir a sua dureza e apoio entre a
86 Rainer Maria Rilke

vértebra do pescoço e a primeira vértebra dorsal. Era uma ati­


tude que não dava nas vistas, quando muito era um pouco au­
daciosa. O dia de Primavera inesperado desculpava-o. Nin­
guém se lembrou de olhar para trás e agora tudo corria bem.
Corria primorosamente. Em boa verdade, na travessia da rua
seguinte produziram-se dois saltos, dois pequenos saltos meio
reprimidos, completamente insignificantes. O único salto ver­
dadeiramente visível foi de uma oportunidade tão hábil (havia
mesmo uma mangueira de rega atravessada no caminho) que
nada era de recear. Sim, estava tudo ainda a correr bem. De
vez em quando, também a outra mão agarrava a bengala e
comprimia-a com mais força, vencendo imediatamente o pe­
rigo. Eu não conseguia de modo algum impedir que o meu
medo aumentasse. Sabia que, enquanto ele tentava com um
esforço infinito parecer indiferente e distraído, a terrível con­
vulsão se acumulava no seu corpo. Também em mim se insta­
lara o medo que ele sentia ao notar que ela crescia cada vez
mais, e eu via como ele se agarrava à bengala quando a con­
vulsão se começou a agitar dentro dele. Depois, a expressão
daquelas mãos era tão implacável e severa que depositei todas
as minhas esperanças na vontade dele, que teria de ser forte.
Mas que podia fazer a vontade nestes momentos? Havia de
chegar a altura em que as suas forças se tivessem esgotado, e
não devia demorar. E eu, que ia atrás dele com o coração a ba­
ter com toda a força, reuni o meu bocadinho de vontade como
se juntasse dinheiro, e enquanto olhava para as suas mãos
pedi-lhe que se servisse dela, se dela precisasse.
Creio que se serviu; seria falta minha ela ser tão pouca?
Na Praça St-Michel havia muitos carros e pessoas apressa­
das que andavam de um lado para o outro, várias vezes pas­
sámos entre dois carros, e ele nessa altura respirava fundo e
desleixava-se um pouco como que para descansar, e dava pe­
quenos saltos e abanava um pouco a cabeça. Talvez fosse a as­
túcia com que a doença aprisionada o queria vencer. A vonta-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 87

de estava anulada em dois pontos e essa cedência deixara nos


músculos possessos uma excitação leve e insinuante e o com­
passo binário coercivo. Mas a bengala ainda estava no seu lu­
gar e as mãos pareciam más e iradas. Assim j á íamos na pon­
te e tudo corria bem. Corria bem. Então alguma insegurança
se introduziu no seu andar, deu dois passos e parou. Parou.
A mão esquerda desprendeu-se suavemente da bengala e
ergueu-se tão lentamente que a vi tremer no ar. Empurrou o
chapéu um pouco para trás e passou a mão pela testa. Virou
um pouco a cabeça e o seu olhar oscilou por cima do céu, das
casas e da água do rio, sem nada reter, e depois cedeu. A ben­
gala desaparecera, esticou os braços como se quisesse levan­
. tar voo, e aquilo rebentou para fora dele como uma força ele­
mentar e dobrou-o para a frente e puxou-o com violência para
trás e fê-lo abanar a cabeça e inclinar-se e arremessou de den­
tro dele uma dança frenética que o lançou para o meio da mul­
tidão. Pois já havia muitas pessoas à volta dele e eu já o tinha
perdido de vista.
Que sentido teria ir ainda a qualquer sítio? Eu encontrava­
-me vazio. Como um papel vazio fui-me arrastando junto às
casas, subindo novamente o boulevard.

22

1 Tento escrever-te, embora de facto nada haja a dizer de­


pois de uma despedida necessária. No entanto procuro fazê­
-lo, penso ser meu dever porque vi a Santa no Panteão, essa
santa mulher solitária e o tecto e a porta e lá dentro a lâmpa­
da com o seu modesto círculo de luz e, mais longe, a cidade
adormecida e o rio e a distância ao luar. A Santa vela sobre a
cidade adormecida. Chorei. Chorei porque tudo isso se apre-

1 Rascunho de uma carta.


88 Rainer Maria Rilke

sentou de modo súbito e inesperado. Chorei diante de tudo is­


so, não fui capaz de resistir.
Estou em Paris - os que o sabem ficam contentes, a maior
parte deles inveja-me. Têm razão. É uma grande cidade, gran­
de e cheia de tentações. No que me diz respeito, tenho de re­
conhecer que de certo modo sucumbi-lhes. Penso que não o
posso exprimir de outra maneira. Sucumbi a estas tentações,
o que causou certas modificações, se não no meu carácter,
pelo menos na minha mundividência, de qualquer modo na
minha vida. Uma concepção de todas as coisas totalmente di­
ferente formou-se em mim sob estas influências. Existem cer­
tas diferenças que me separam das outras pessoas mais do que
qualquer outra coisa até agora. Um mundo transformado.
Uma vida nova, cheia de novos sentidos. Momentaneamente
tenho alguma dificuldade, porque tudo é novo. Sou um prin­
cipiante nas minhas próprias circunstâncias.
Não seria possível ir um dia ver o mar?
Sim, mas imagina, pensei que poderias vir até cá. Talvez
me pudesses dizer se não há um médico? Esqueci-me de me
informar acerca disso. De resto, agora já não preciso dele.
Lembras-te do incrível poema de Baudelaire «Une Charog­
ne»? (Um cadáver em decomposição). É provável que eu agora
o entenda. Salvo na última estrofe, ele tinha razão. Que havia
ele de fazer, depois de uma tal experiência? Competia-lhe ver
nestas coisas terríveis, apenas aparentemente repelentes, aquilo
que é, aquilo que faz parte de tudo o que é. Não há escolha nem
rejeição. Achas que foi por acaso que Flaubert escreveu o seu
Saint-Julien-l' Hospitalier? Parece-me ser este o aspecto decisi­
vo: vencer-se e deitar-se ao lado de um leproso e aquecê-lo com
o calor íntimo das noites de amor - isso só pode acabar bem.
Mas não penses que estou a sofrer aqui decepções, antes
pelo contrário. Por vezes admiro-me da facilidade com que
abandono tudo o que esperava, trocando-o pela realidade,
mesmo quando ela é má.
As Anotações de Malte Laurids Brigge 89

Meu Deus, se algo de tudo isso se pudesse partilhar. Mas


seria então, seria ainda? Não, apenas pelo preço da solidão.

23

A existência do terrível em cada partícula do ar. Tu respira­


-lo com a sua transparência; mas ele condensa-se em ti, endu­
rece, assume formas pontiagudas e geométricas entre os ór­
gãos; pois todas as torturas e terrores cometidos em lugares de
suplício, nas câmaras de tortura, nos manicómios, nas salas de
operações, debaixo dos arcos das pontes no fim do Outono:
tudo isso é de uma resistente intemporalidade, tudo subsiste e
se agarra, ciumento daquilo que é, à sua terrível realidade. As
pessoas gostariam de poder esquecer muitas dessas coisas; o
seu sono lima suavemente esses sulcos no cérebro, mas os so­
nhos expulsam-no e sublinham os seus desenhos. E elas acor­
dam, ofegantes, e deixam diluir-se no escuro o brilho de uma
vela e bebem como se fosse água açucarada este calmante se­
miclaro. Mas, ai, em que aresta resiste esta segurança? Basta
o menor dos movimentos e j á o olhar ultrapassa as coisas co­
nhecidas e amigas, e o contorno ainda agora tão consolador
precisa-se como uma orla de terror. Abriga-te da luz que tor­
na mais vazio o espaço; não olhes à tua volta para ver se al­
guma sombra acaso se ergue atrás da tua vigília como teu se­
nhor. Mais teria valido teres permanecido no escuro e o teu
coração ilimitado ter tentado ser o coração pesado de tudo o
que é indistinto. Agora que todo te recolheste em ti, sentes-te
terminar nas tuas mãos, refazes, de tempos a tempos, o con­
torno do teu rosto com um movimento impreciso. E em ti qua­
se não há espaço; e quase te apazigua o facto de, nesta tua es­
treiteza interior, não ser possível deter-se qualquer coisa
muito grande; o facto de mesmo o inaudito ter de se interiori­
zar e de se adaptar às circunstâncias. Mas lá fora, lá fora tudo
90 Rainer Maria Rilke

é desmedido. E quando lá fora o nível sobe, também em ti ele


se eleva, não nos vasos que em parte estão em teu poder, ou
no fleuma dos teus órgãos mais impassíveis: eleva-se nos ca­
pilares, aspirado para cima em canais até às últimas ramifica­
ções da tua existência infinitamente ramificada. Aí se ergue,
aí te ultrapassa, alcança mais alto do que a tua respiração, na
qual te refugias como num último reduto. Ai, e agora para on­
de ir, para onde ir? O teu coração expulsa-te de ti mesmo, o
teu coração persegue-te, e tu estás quase fora de ti e já não po­
des regressar. Como um escaravelho que se pisa, assim tu es­
corres de dentro de ti, e a tua pequena parcela de dureza exte­
rior e de adaptação não faz qualquer sentido.
Ó noite sem objectos ! Ó j anela indiferente ao exterior, ó
portas cuidadosamente fechadas ; instalações de tempos remo­
tos transmitidas, reconhecidas, nunca inteiramente compreen­
didas. Ó silêncio no vão das escadas, silêncio dos quartos vi­
zinhos, silêncio lá em cima no tecto. Ó mãe: ó única, que
dissimulaste todo este silêncio outrora, na minha infância.
Que o toma sobre si, dizendo; não te assustes, sou eu. A que
tem a coragem de ser, em plena noite, este silêncio para aque­
le que tem medo, que está perdido de medo. Acendes uma luz
e já o ruído és tu. Ergue-la e dizes : sou eu, não tenhas medo.
E lentamente pousa-la e não há dúvida: és tu, tu és a luz que
envolve os objectos familiares e queridos que ali estão sem
segundo sentido, bondosos, simples, unívocos. E quando
qualquer coisa se agita na parede ou dá um passo no soalho:
então sorris apenas, sorris, sorris com transparência sobre um
fundo claro para o rosto angustiado que te sonda como se tu
te identificasses com o mistério, nele submersa, e com qual­
quer som abafado, combinada com ele e de acordo com ele.
Haverá poder que se compare ao teu poder no domínio terre­
no? Olha, há reis que jazem hirtos e o contador de histórias
não consegue distraí-los. Sobre o peito venturoso da sua ama­
da o terror insinua-se nele e toma-o trémulo e insensível. Mas
As Anotações de Malte Laurids Brigge 91

tu vens e escondes o que é monstruoso atrás de ti e ficas com­


pletamente à sua frente; não corno um reposteiro que ele pu­
desse erguer aqui e acolá. Não, antes corno se o tivesses ul­
trapassado ao apelo daquele que de ti precisava. Como se te
tivesses adiantando muito a tudo o que pode acontecer e ti­
vesses deixado para trás apenas a tua corrida para ele, o teu
caminho eterno, o voo do teu amor.

24

O moldador que tem uma loja pela qual passo todos os dias
expôs à porta duas máscaras. O rosto da jovem afogada, mol­
dado na morgue porque era belo, porque sorria, porque sorria
tão enganosamente como se o soubesse. E, por baixo, o rosto
dele, que sabe. Este nó duro de sentidos firmemente tensos.
Esta implacável autocondensação de urna música que conti­
nuamente se quer libertar. A face daquele a quem um Deus
quis fechar o ouvido para que mais nenhuns sons houvesse se­
não os seus. Para que ele não fosse confundido pelos turvos
ruídos efémeros. Ele, em quem habitavam a sua clareza e a
sua duração; para que apenas os sentidos sem som lhe trans­
mitissem o mundo, silenciosamente, um mundo tenso, expec­
tante, inacabado, anterior à criação do som.
Aperfeiçoador do mundo: tal como aquilo que enquanto a
chuva cai sobre a terra e sobre as águas, caindo negligente­
mente, caindo ao acaso - de novo se ergue de tudo mais in­
visível e alegre da sua lei, e ascende e paira e forma os céus :
assim de ti se ergueu a ascensão das nossas quedas e deu ao
mundo uma abóbada de música.
A tua música: a ela foi permitido envolver o mundo; não a
n ós. Tivessem-te construído um piano em Tebaida; e que um
Anj o te tivesse acompanhado até ao instrumento solitário
através de cadeias montanhosas do deserto onde repousam
92 Rainer Maria Rilke

reis e heteras e anacoretas. E ele ter-se-ia lançado nos ares


afastando-se, com medo de que tu começasses.
E então terias libertado as tuas torrentes, ó torrencial, inau­
di velmente; devolvendo ao Todo o que apenas o Todo supor­
ta. Ao longe, os beduínos ter-se-iam posto em fuga, supersti­
ciosos; mas os mercadores ter-se-iam prostrado nos confins
da tua música, como se tu fosses a tempestade. Apenas alguns
leões teriam andado à tua volta de longe, à noite, com medo
de si próprios, ameaçados pelo seu sangue agitado.
Pois quem te arranca agora dos ouvidos cúpidos? Quem os
expulsa dos auditórios de música, a esses venais de ouvido es­
téril que se prostitui sem nunca conceber? O sémen jorra e
eles colocam-se por baixo como mulheres da vida e brincam
com ele, ou ele cai entre eles como o sémen de Onan, en­
quanto estão deitados nas suas satisfações incompletas.
Mas, ó Mestre, onde quer que um homem casto, de ouvidos
virgens, se deitasse com os teus sons : ou ele morreria de feli­
cidade ou conceberia coisas infinitas e o seu cérebro fecunda­
do forçosamente explodiria de tanto nascimento.

25

Não o menosprezo. Sei que é preciso coragem. Mas consi­


deremos por um momento que alguém tem esta courage [ co­
ragem] de luxo de ir atrás deles, para então ficar a saber de
uma vez por todas (pois quem poderia voltar a esquecê-lo ou
confundi-lo?) onde eles depois desaparecem da vista e o que
fazem todo o resto do dia e se dormem à noite. Pois isto seria
especialmente de verificar: se dormem. Mas ter coragem não
basta. Pois eles não vêm e vão como as outras pessoas que po­
dem ser seguidas sem a menor dificuldade. Eles apresentam­
-se e de novo desaparecem, colocados e retirados como se
fossem soldados de chumbo. Os lugares onde os encontramos
As Anotações de Malte Laurids Brigge 93

são um pouco retirados, mas de modo algum escondidos. Os


arbustos recuam, o caminho dá uma ligeira curva à volta do
relvado: ali estão eles, rodeados de um grande espaço trans­
parente, como se estivessem dentro de uma redoma. Poderias
tomá-los por passeantes pensativos, estas pessoas simples de
figura baixa e em todos os sentidos modesta. Mas enganas-te.
Estás a ver a mão esquerda metida na algibeira descaída do
velho sobretudo, à procura de alguma coisa, e como encontra
e tira para fora e segura no ar o pequeno objecto, com um ges­
to desajeitado e ostensivo? Mal passa um minuto e já aí acor­
rem dois, três pássaros, pardais, que com curiosidade se apro­
ximam saltitantes. E se o homem consegue corresponder à sua
noção muito exacta de imobilidade, não há qualquer motivo
para que eles se não aproximem ainda mais. E, por fim, um le�
vanta voo e esvoaça nervoso por uns momentos à altura da­
quela mão que (sabe-o Deus) estende a oferta de um bocadi­
nho de pão doce já encetado nos dedos humildes e claramente
desprendidos. E quanto mais gente se aglomera à sua volta -
dentro de uma natural distância - tanto menos coisas em co­
mum há entre eles. Ali se ergue ele, como um castiçal que
arde até ao fim e ilumina com o resto do pavio, aquecido, sem
jamais se ter movido. Os numerosos passarinhos tontos não
podem de modo algum avaliar o modo como ele atrai e en­
canta. Se não fossem os espectadores e se o deixassem lá
estar bastante tempo, tenho a certeza de que viria um Anjo su­
bitamente e, superando-se, comeria este pedaço de pão velho
e adocicado da mão atrofiada. Mas agora, como sempre, as
pessoas impedem que tal aconteça. Fazem com que apenas os
pássaros compareçam; acham que isso basta e afirmam que
ele mais nada espera. O que é que havia de esperar este velho
boneco estragado pelas chuvas, metido no chão um pouco de
viés como as figuras de proa nos pequenos j ardins da nossa
terra? Dever-se-á esta sua atitude ao facto de alguma vez ter
ficado à frente na vida, onde o movimento é mais forte? Esta-
94 Rainer Maria Rilke

rá ele agora tão descorado por outrora ter sido colorido? Que­
res perguntar-lho?
Mas às mulheres nada perguntes, quando vires alguma dar
de comer aos pássaros. A essas até as poderíamos seguir: elas
fazem-no ao passar, seria coisa fácil. Mas deixa-as em paz.
Não sabem como tudo aconteceu. De súbito têm uma porção
de pão na saquinha e de lá tiram grandes bocados,
estendendo-os na mão que sai da mantilha delida, bocados
que estão um pouco mastigados e húmidos. Faz-lhes bem a
sua saliva chegar ao mundo sobrevoado pelos passarinhos que
provam esse travo, mesmo que, naturalmente, em seguida o
esqueçam.

Debrucei-me sobre os teus livros, ó obstinado, e tentei


considerá-los como os outros, que não respeitam a tua unida­
de, e levaram consigo a sua parte, satisfeitos. Pois nessa altu­
ra eu ainda não sabia o que era a fama, esta demolição públi­
ca de alguém em devir, cujo terreno em construção é invadido
pela multidão que lhe desloca as pedras.
Ó jovem algures no mundo, em quem algo sobe e te faz es­
tremecer, aproveita o facto de ninguém te conhecer. E quando
aqueles que te tomam por nada te contradisserem, e aqueles
com quem convives te votarem ao abandono e quiserem
extirpar-te por causa dos teus pensamentos amados, o que é
este claro perigo que te afirma em ti, comparado com a hábil
inimizade da fama posterior, que te toma inofensivo disper­
sando-te?
Não peças a ninguém que fale de ti, nem mesmo com des­
prezo. E quando o tempo passar e vires que o teu nome anda
de boca em boca, não o tomes mais a sério do que tudo aqui­
lo de que os outros falam. Pensa: ele degradou-se, e livra-te
As Anotações de Malte Laurids Brigge 95

dele. Lança mão de outro, qualquer outro, pelo qual Deus te


possa chamar à noite. E esconde-o de todos.
Ó mais solitário dos homens, de todos afastado, como te fo­
ram buscar servindo-se da tua fama ! Há bem pouco tempo
eram radicalmente contra ti e agora tratam-te como se fosses
um deles. E trazem consigo as tuas palavras nas gaiolas da sua
vaidade e ostentam-nas nas praças e excitam-nas um pouco do
alto da sua segurança. Todas as tuas temíveis feras.
Só te li quando essas desesperadas me escaparam e me ata­
caram no meu deserto. Desesperado como tu próprio eras no
final, tu cuja trajectória está erroneamente traçada em todos
os mapas. Essa hipérbole sem esperança do teu caminho atra­
vessa os céus como uma fenda, inclina-se uma só vez para nós
e afasta-se cheia de terror. Que te importava que uma mulher
ficasse ou se afastasse, ou que alguém fosse acometido por
vertigens e outro pela loucura e que os mortos estivessem vi­
vos e os vivos aparentemente mortos: que te importava tudo
isso? Tudo isso era tão natural para ti : atravessava-lo como
quem atravessa um vestíbulo e não te detinhas . Mas
demoravas-te e baixavas-te onde quer que o nosso acontecer
fervilha e se precipita e muda de cor: no íntimo. Mais no ínti­
mo do que alguma vez alguém esteve; uma porta abrira-se-te
de par em par e eis-te junto das retortas ao clarão do fogo. Ali
onde nunca levaste ninguém, ó desconfiado, aí ficavas senta­
do e discernias mutações. E foi aí, uma vez que no teu sangue
havia a força de revelar e não a de formar ou de dizer, que to­
maste a enorme decisão de aumentar, por ti só, esta coisa mí­
nima, que tu próprio só notaste através de vidros, de tal ma­
neira que ela surgisse imensa aos olhos de milhares, aos olhos
de todos. O teu Teatro nasceu. Não pudeste esperar que esta
vida quase sem espaço, comprimida em gotas pelos séculos,
fosse encontrada pelas outras artes e gradualmente tomada vi­
sível para indivíduos singulares que pouco a pouco se reúnem
p ara partilhar este conhecimento e por fim exigem ver em
96 Rainer Maria Rilke

conjunto confirmados os sublimes boatos na parábola da cena


aberta diante dos seus olhos. Por isto não pudeste esperar, es­
tavas lá, era-te imposto o que mal se pode medir: um senti­
mento que subia um meio grau, o ângulo de desvio de uma
vontade agravada de um peso quase insensível, do qual tu, de
muito perto, fazias a leitura, a leve turbação numa gota de
saudade e este nada de mudança de cor num átomo de con­
fiança: tudo isso tinhas de comprovar e reter; pois em tais pro­
cessos se encontrava agora a vida, a nossa vida, que para den­
tro de nós se vertera, para o nosso interior se retirara, tão
profundamente que mal podia ser objecto de suposições.
Tal como eras, propenso às revelações, intemporal poeta
trágico, tinhas de transpor de um só golpe este movimento ca­
pilar para os gestos mais convincentes, para as coisas mais
presentes. Então empreendeste o acto de violência sem exem­
plo da tua obra que, com uma impaciência cada vez maior,
com um desespero cada vez maior, procurava entre as coisas
visíveis o equivalente às visões interiores. Assim havia um
coelho, uma mansarda, uma sala onde alguém ia e vinha: ha­
via um ruído de vidros no quarto vizinho, um incêndio diante
das j anelas, havia o sol. Havia uma igreja e um vale rochoso
que parecia uma igreja. Mas isso não bastava. Por fim tiveram
de entrar as torres e todas as montanhas ; e as avalanches que
enterram as paisagens cobriram o palco sobrecarregado de
coisas tangíveis por amor do que não pode ser abarcado. E en­
tão já não podias mais. As duas pontas, que tu dobraras até se
juntarem, soltaram-se subitamente e afastaram-se. A tua força
demente soltou-se da vara elástica, e foi como se a tua obra
nunca tivesse existido.
De outra forma, quem seria capaz de perceber que no final
não quisesses afastar-te da janela, pertinaz como sempre fos­
te. Querias ver quem passava; pois tinha-te vindo ao pensa­
mento que talvez se pudesse um dia fazer algo a partir deles,
se se tomasse a decisão de começar.
As Anotações de Malte Laurids Brigge 97

27

Só então reparei, pela primeira vez, que não se pode dizer


nada de uma mulher; notei como a poupavam quando dela fa­
lavam, como se referiam a outras e as descreviam, o ambien­
te, os locais, os objectos, até a um determinado ponto em que
tudo terminava, terminava suave e ao mesmo tempo cuidado­
samente com o leve contorno que a envolvia e que jamais fo­
ra traçado. Como era ela? perguntei então. Loura, mais ou me­
nos como tu, diziam e enumeravam todo o tipo de pormenores
que ainda sabiam; mas, depois, ela tomava-se de novo muito
imprecisa, e eu não era capaz de a imaginar. Apenas a podia
ver quando a mamã me contava a história que eu repetida­
mente pedia.
- Então, quando chegava à cena do cão, costumava fechar
os olhos e apoiar o rosto, completamente fechado e de uma
transparência total, de certo modo instantemente nas mãos,
que o tocavam com o seu frio nas têmporas. «Vi, Malte», ju­
rava ela: «Vi.» Isto deu-se nos seus últimos anos de vida. Nos
tempos em que já não queria ver ninguém e em que ela, mes­
mo em viagem, tinha sempre consigo o pequeno e sólido coa­
dor de prata, com o qual coava todas as bebidas. Já não toma­
va comidas sólidas, à excepção de um pouco de biscoito ou
pão que ela, quando estava sozinha, esboroava e comia miga­
lha a migalha, tal como as crianças comem migalhas. Já nes­
sa altura, o seu medo das agulhas a dominava completamen­
te. Para se desculpar, dizia apenas aos outros: «Já não sou
capaz de suportar seja o que for, mas não vos incomodeis,
encontro-me perfeitamente.» Mas para mim podia voltar-se
de repente (pois eu já era um pouco adulto) e dizer com um
sorriso que lhe custava bastante esforço: «Quantas agulhas há
ainda, Malte, e estão espalhadas por todo o lado, e quando
pensamos na facilidade com que elas podem cair. . . » Bem gos­
tari a de dizer isto em tom de brincadeira, mas era sacudida pe-
98 Rainer Maria Rilke

lo terror ao pensar em todas as agulhas mal presas que a qual­


quer momento podiam cair para dentro de qualquer coisa.

Mas, quando falava de Ingeborg, estava a salvo de todos os


problemas. Não se poupava, falava mais alto, ria ao recordar­
-se do riso de Ingeborg e podia ver-se como Ingeborg tinha si­
do bela. «Punha-nos a todos alegres», dizia ela, «ao teu pai
também, Malte, literalmente alegre. Mas depois, quando dis­
seram que iria morrer, embora parecesse, enfim, um pouco
doente, e nós fazíamos a vida normal e não lho revelávamos,
ela um dia sentou-se na cama e começou a falar como alguém
que quer ouvir como soa alguma coisa: "Não precisais de vos
conter; todos o sabemos, e eu posso tranquilizar-vos, já não
quero mais." Imagina, ela disse: "Já não quero mais"; ela, que
a todos nos punha alegres. Serás capaz de compreender isto
quando fores grande, Malte? Pensa nisto mais tarde, talvez te
venhas a lembrar. Seria óptimo que houvesse alguém que
compreendesse estas coisas.»
«Estas coisas» ocupavam a mente da mamã quando estava
só, e ela estava sempre só nesses últimos anos.
«Eu não chegarei a entendê-lo, Malte», dizia ela às vezes
com o seu sorriso singularmente ousado que por ninguém
queria ser visto e que alcançava o seu objectivo ao esboçar-se.
«Mas que não haja ninguém que sinta o desafio de o desco­
brir ! Se eu fosse homem, sim, precisamente, se eu fosse um
homem reflectiria sobre isso, a sério e por ordem, a partir do
princípio. Pois há-de haver um princípio e se fosse possível
apreendê-lo sempre seria alguma coisa. Ai, Malte, nós vamo­
-nos assim, e parece-me que todos estão distraídos e ocupados
e não prestam bem atenção quando nos vamos. Como se hou­
vesse no céu uma estrela cadente e ninguém a visse nem for-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 99

mulasse um desejo. Nunca te esqueças de ter desejos, Malte.


Não se deve deixar de ter desejos. Penso que eles não se cum­
prem, mas há desejos que duram muito tempo, toda a vida, de
tal modo que não seria possível esperar o seu cumprimento.»
A mamã mandou que levassem a escrivaninha de Ingeborg
para o seu quarto lá em cima. Encontrei-a muitas vezes dian­
te dela, pois eu tinha licença de entrar sem mais no seu quar­
to. Os meus passos perdiam-se completamente no tapete, mas
ela sentia a minha presença e estendia-me uma das suas mãos
por cima do outro ombro. Esta mão não tinha qualquer peso e
podia beijar-se quase como o crucifixo de marfim que me es­
tendiam à noite, antes de adormecer. A esta escrivaninha bai­
xa, cuja tampa se abria à sua frente, estava a mamã sentada
como diante de um instrumento de música. «Há tanto sol lá
dentro», dizia ela, e de facto o interior era singularmente cla­
ro, de um velho verniz amarelo com flores pintadas, sempre
uma vermelha e uma azul. E quando se juntavam três, havia
uma roxa no meio que separava as outras duas. Estas cores e
o verde dos finos ornamentos horizontais eram tão escuros em
si como o fundo era luminoso, sem ser verdadeiramente cla­
ro. De tudo isso resultava uma proporção de tons estranha­
mente abafada, pois eles encontravam-se numa íntima e mú­
tua relação, que não se revelava exteriormente.
A mamã abria as gavetinhas que estavam todas elas vazias .
«Ah, rosas !», dizia ela, e inclinava-se um pouco sobre o
odor turvo que não se dissipava. Nesses momentos imagina­
va sempre que ainda se poderia encontrar subitamente alguma
coisa numa gaveta de segredo de que ninguém se tivesse lem­
brado e que cedesse apenas à pressão de uma qualquer mola
escondida. «De repente pode saltar, vais ver», dizia com se­
riedade e medo, e puxava apressadamente todas as gavetas.
Mas os papéis que de facto aí tinham ficado, tinha-os ela jun­
to e fechado cuidadosamente, sem os ler. «Não seria capaz de
os entender, Malte, deviam ser demasiado difíceis para mim.»
1 00 Rainer Maria Rilke

Tinha a convicção de que tudo era demasiado complicado pa­


ra ela. «Na vida não há classes para principiantes, exigem
sempre de nós o mais difícil.» Garantiram-me que ela ficara
assim só depois da morte terrível da irmã, a condessa Õ lle­
gaard Skeel, que morreu queimada por ter querido, antes de
um baile, compor as flores que levava no cabelo diante de um
espelho de candelabros. Mas nos últimos tempos parecia-lhe
que era Ingeborg o mais difícil de entender.
Agora vou escrever a história como a mamã contava, sem­
pre que eu lho pedia.
Foi em pleno Verão, na quinta-feira depois do funeral de In­
geborg. Do sítio do terraço onde se tomava chá podia ver-se o
pináculo do j azigo de família entre enormes ulmeiros. Tinham
posto a mesa como se a ela nunca se tivesse sentado mais ne­
nhuma pessoa, e todos nós estávamos sentados muito à von­
tade. E todos tínhamos trazido qualquer coisa, um livro ou um
cesto de costura, de modo que ficávamos um pouco apertados.
Abelone, a irmã mais nova da mamã, servia o chá, e todos es­
távamos ocupados a fazer chegar coisas uns aos outros, só o
teu avô olhava da sua cadeira em direcção à casa. Era a hora
a que costumava vir o correio e era quase sempre lngeborg a
trazê-lo, retida mais tempo no interior da casa para dar as in­
dicações para o j antar. Durante as semanas em que ela estive­
ra doente houvera tempo suficiente para nos desabituarmos da
sua vinda, pois bem sabíamos que ela não podia vir. Mas nes­
ta tarde, Malte, quando ela de facto não podia vir, ela veio.
Talvez a culpa fosse nossa, talvez a tenhamos chamado. Pois
lembro-me que de repente estava ali sentada a esforçar-me
por descobrir o que é que tinha realmente mudado. Não era
capaz de dizer de imediato o que era; tinha-me esquecido por
completo. Ergui os olhos e vi todos os outros voltados para a
casa, não de uma maneira especial que desse nas vistas, mas
sim tranquila e quotidiana na sua expectativa. E então estava
eu quase - sinto calafrios, Malte, quando penso nisso, mas,
As Anotações de Malte Laurids Brigge 101

Deus me perdoe, e u estava quase a dizer: «Onde estará - » E


j á o Cavalier, como de costume, tinha saído de debaixo da
mesa e se lançara ao seu encontro. Eu vi, Malte, eu vi. Ele
corria ao seu encontro, embora ela não viesse; para ele, ela vi­
nha. Compreendemos que ele corria para ela. Duas vezes se
voltou a olhar para nós, como se perguntasse. Depois atirou­
-se para ela, como sempre, Malte, exactamente como sempre
fizera, e chegou ao pé dela; depois começou a saltar à volta,
Malte, à volta de algo que não estava lá, e depois a saltar à al­
tura dela para a lamber, mesmo à sua altura. Ouvimo-lo ganir
de alegria e pela maneira como ele saltava para o alto, rápida
e repetidamente, poder-se-ia verdadeiramente dizer que no-la
tapava com os seus saltos. Mas de súbito soltou um uivo e deu
uma volta no ar com o seu próprio impulso e caiu para trás de
modo estranhamente desajeitado, e ficou muito curiosamente
deitado ao comprido, sem se mexer. Do outro lado, o criado
saía de casa com as cartas. Hesitou um pouco ; não parecia ser
muito fácil vir ao encontro dos nossos rostos. E o teu pai fez­
-lhe um sinal para que se detivesse. O teu pai, Malte, não gos­
tava de animais; mas neste momento dirigiu-se ao cão, lenta­
mente, segundo me parecia, e inclinou-se sobre ele. Disse
qualquer coisa ao criado, algo breve, monossilábico. Vi como
o criado se preparava, de um salto, para erguer o Cavalier.
Mas nessa altura o teu pai pegou ele próprio no animal e
levou-o para dentro de casa, como se soubesse exactamente
para onde.

29

Uma vez, quando j á quase escurecera no decurso desta nar­


rativa, estive para contar à mamã a história da «mão»: nesse
momento teria sido capaz de o fazer. Já respirava fundo para
começar quando me lembrei de como tinha compreendido
1 02 Rainer Maria Rilke

bem o criado que não conseguira avançar para os rostos deles.


E tive receio, apesar do escuro, da expressão da mamã quan­
do visse o que eu vi. E rapidamente voltei a respirar para pa­
recer que era esse o meu único propósito. Alguns anos mais
tarde, depois da estranha noite na galeria em Umekloster, le­
vei dias a considerar a hipótese de me · abrir ao pequeno Erik.
Mas ele, depois da nossa conversa noctuma, tinha-se nova­
mente afastado completamente de mim, evitava-me; penso
que me desprezava. E precisamente por isso queria contar-lhe
a história da «mão». Imaginava eu que ganharia a sua consi­
deração (o que desejava fortemente por um motivo qualquer),
se fosse capaz de lhe dar a entender que de facto tinha vivido
aquilo. Mas Erik era tão hábil a esquivar-se que não cheguei
a fazê-lo. E, de resto, partimos pouco depois. E, assim, é ago­
ra a primeira vez, por muito estranho que pareça, que eu (e,
no fundo, também só a mim próprio) conto um acontecimen­
to já muito distante na minha infância.
Calculo que deveria ainda ser bastante pequeno pelo facto
de ter de me ajoelhar na cadeira para chegar bem à mesa so­
bre a qual fazia desenhos. Era de noite, no Inverno e, se não
me engano, na casa da cidade. A mesa estava entre as duas j a­
nelas do meu quarto e não havia outra luz a não ser a que ilu­
minava as minhas folhas e o livro da Mademoiselle; pois a
Mademoiselle estava sentada ao meu lado, um pouco retirada,
a ler. Quando lia estava muito longe, não sei se absorta no li­
vro; podia ler horas a fio, voltando raramente as páginas, e eu
tinha a impressão de que as páginas se enchiam cada vez mais
sob o seu olhar, como se ela visse palavras que se acrescenta­
vam, certas palavras das quais precisava e que não estavam lá.
Assim me parecia enquanto desenhava. Desenhava devagar,
sem intenção muito definida e, quando não sabia como pros­
seguir, olhava o meu desenho com a cabeça um pouco incli­
nada para a direita; assim, descobria mais depressa o que fal­
tava ainda. Eram oficiais a cavalo dirigindo-se para a batalha,
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 03

ou que já nela se encontravam, o que era muito mais fácil,


pois nessa altura quase só faltava fazer o fumo que tudo en­
volvia. É certo que a mamã sempre achava que eu só pintava
ilhas; ilhas com grandes árvores e um castelo e uma escadaria
e flores à volta que deviam reflectir-se na água. Mas parece­
-me que isso era invenção dela ou então foi mais tarde.
O que é certo é que, naquela noite, eu estava a desenhar um
cavaleiro, um único cavaleiro, montando um cavalo estranha­
mente ajaezado. Começou a ficar tão multicor, que eu tinha de
trocar de lápis com frequência, mas era sobretudo o vermelho
o mais usado, tendo, pois, de retomá-lo sucessivamente. Em
dado momento, voltei a precisar dele; então ele rolou (ainda o
estou a ver) em diagonal sobre a folha iluminada até ao re­
bordo da mesa e caiu, antes que eu pudesse apanhá-lo, para
debaixo do sítio onde me encontrava e desapareceu. Eu preci­
sava urgentemente dele, e foi deveras irritante ter de sair da
cadeira e a pôr-me à sua procura. Sendo eu desajeitado, pre­
cisei de várias operações para descer: as minhas pernas
pareciam-me demasiado compridas; não conseguia tirá-las de
debaixo de mim; a posição ajoelhada em que estivera dema­
siado tempo deixara-me os membros dormentes; eu não era
capaz de distinguir o que pertencia à cadeira do que me per­
tencia a mim. Por fim cheguei ao chão, algo confuso.
Encontrava-me sobre uma pele que se estendia por baixo da
mesa até à parede. Nessa altura surgiu uma nova dificuldade.
Os meus olhos, habituados à claridade da parte superior e ain­
da sob o entusiasmo de ver as cores sobre o papel branco, não
conseguiam distinguir o que quer que fosse debaixo da mesa,
onde a negra escuridão me parecia tão cerrada que tinha me­
do de esbarrar nela. Confiei então a tarefa ao tacto e, ajoelha­
do, apoiando-me na mão esquerda, penteava, tacteando, com
a outra mão, o pêlo frio e comprido do tapete, cujo contacto
me era tão familiar. Mas do lápis não havia rasto. Pareceu-me
que estava a perder demasiado tempo e, quando me dispunha
1 04 Rainer Maria Rilke

a chamar a Mademoiselle e a pedir-lhe que aproximasse de


mim o candeeiro, reparei que aos meus olhos involuntaria­
mente esforçados a escuridão se ia tomando gradualmente
mais transparente. Já distinguia lá ao fundo a parede que ter­
minava num rodapé claro; orientei-me pela posição das per­
nas da mesa; reconhecia sobretudo a minha própria mão es­
palmada, que aí em baixo se movia por si, um pouco como um
animal aquático, examinando o fundo. Olhava para ela, ainda
me lembro, quase com curiosidade; parecia-me que ela sabia
coisas que eu não lhe ensinara ao vê-la tactear ali em baixo,
por sua conta, com movimentos que nunca nela observara.
Segui-a à medida que ela avançava, estava interessado e pre­
parado para tudo. Mas como poderia eu esperar que, de re­
pente, saísse da parede ao seu encontro uma outra mão, maior,
invulgarmente magra, como eu não vira até então. Ela avan­
çava, vinda do outro lado, tacteando de modo semelhante, e as
duas mãos espalmadas moviam-se às cegas ao encontro uma
da outra. A minha curiosidade ainda não se tinha esgotado,
mas de repente cessou, e só havia terror. Eu sentia que uma
daquelas mãos me pertencia e que ela se encaminhava para
algo irreparável. Com todo o direito que tinha a ela, detive-a
e retirei-a devagar, virada para baixo, ao mesmo tempo que
não perdia de vista a que continuava a tactear. Percebi que ela
não desistiria, e nem sei como fui capaz de voltar para cima.
Fiquei enterrado na cadeira, batendo os dentes, e tinha tão
pouco sangue no rosto que me pareceu que já não haveria azul
nos meus olhos. «Mademoiselle» - queria eu dizer e não po­
dia. Mas ela própria se sobressaltou nesse momento, atirou o
livro e ajoelhou-se junto à cadeira gritando o meu nome; acho
que me sacudiu. Mas eu estava plenamente consciente. Engo­
li em seco algumas vezes, pois queria contar-lhe o sucedido.
Mas como? Fiz um esforço indescritível, mas isso não se
podia exprimir de modo a alguém o compreender. Se havia
palavras para este acontecimento, eu era demasiado pequeno
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 05

para as encontrar. E de repente assaltou-me o temor de que es­


sas palavras próprias de uma idade superior à minha se pu­
dessem apresentar de súbito, e pareceu-me a coisa mais temí­
vel de todas, ter então de dizê-las. Ter de voltar a passar por
aquela realidade lá de baixo desde o princípio, sendo já outra,
transformada; ouvir eu próprio admiti-la - para isso já não ti­
nha forças.
Naturalmente é imaginação eu afirmar agora que naquela
altura j á sentira que, com aquela experiência, entrara alguma
coisa na minha vida, directamente na minha vida, com a qual
tinha de viver em segredo para todo o sempre. Vejo-me deita­
do na minha cama de grades sem dormir e de algum modo a
prever vagamente que a vida seria assim: cheia apenas de coi­
sas estranhas, destinadas apenas a uma pessoa e impossíveis
de comunicar. O que é certo é que um orgulho triste e pesado
se foi formando gradualmente, dentro de mim. Imaginava
como seria possível andar toda a vida cheio de sentimentos ín­
timos e envolto em silêncio. Senti uma simpatia arrebatadora
pelos adultos; admirava-os e propus-me dizer-lhes que os ad­
mirava. Propus-me dizê-lo à Mademoiselle na próxima opor­
tunidade.

30

E foi então que veio uma dessas doenças que pretendiam


provar-me que esta não era a primeira vivência que eu tinha.
A febre revolvia-me e trazia ao de cima, arrancando-as do
mais fundo de mim, experiências, imagens, realidades que eu
desconhecia completamente; ali ficava eu deitado, sob o peso
de mim mesmo, à espera do momento em que me fosse orde­
nado que voltasse a dispor tudo isto dentro de mim cuidado­
samente em camadas e por ordem. Comecei, mas tudo aquilo
crescia nas minhas mãos, opunha resistência, era excessivo.
1 06 Rainer Maria Rilke

Então a cólera apoderava-se de mim, e eu deitava tudo para


dentro de mim indiscriminadamente e comprimia-o; mas não
me podia fechar sobre tudo isso. E então gritava, pois
encontrava-me meio aberto, gritava e tomava a gritar. E quan­
do começava a olhar para fora de mim, eles já há muito se en­
contravam à volta da minha cama e seguravam-me as mãos, e
havia uma vela e as grandes sombras deles moviam-se por de­
trás. E o meu pai ordenou-me que dissesse o que se passava.
Foi uma ordem amigável, em voz baixa, mas mesmo assim era
uma ordem. E ele impacientava-se quando eu não respondia.
A mamã nunca vinha ter comigo à noite - ou melhor, uma
noite veio. Eu gritara e voltara a gritar, apareceram a Made­
moiselle e Sieversen, a governanta, e Georg, o cocheiro; mas
de nada servira. E por fim mandaram o carro buscar os meus
pais, que estavam num grande baile, creio que no palácio do
príncipe herdeiro. E de repente ouvi-o entrar no pátio e calei­
-me, sentei-me na cama e fiquei a olhar para a porta. E houve
um breve sussurro nos outros quartos, e a mamã entrou com
o vestido comprido de gala, a que não dava atenção, e vinha
quase a correr, deixando cair no chão a sua peliça branca e
tomou-me nos seus braços nus . E eu, admirado e encantado
como nunca, tocava no seu cabelo e no seu pequeno rosto cui­
dado e nas pedras frias que tinha nas orelhas e na seda que en­
volvia os seus ombros que cheiravam a flores. E assim ficá­
mos e chorámos temamente e beijávamo-nos até sentirmos
que o meu pai estava presente e que nos tínhamos de separar.
«Tem febre alta», ouvi a mamã dizer timidamente, e o meu
pai pegou na minha mão e contou-me as pulsações. Enverga­
va o uniforme de capitão de caçadores com a bela e larga fai­
xa de um azul aguado da Ordem do Elefante. «Que disparate
terem-nos chamado ! », disse ele voltado para o quarto, sem
olhar para mim. Eles tinham prometido voltar para o baile,
caso não se tratasse de algo sério. E, de facto, não se tratava
de nada sério. Sobre a minha colcha, encontrei o cademinho
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 07

de baile da minha mãe e camélias brancas que eu nunca vira


antes e que coloquei nos olhos quando reparei como eram
frescas.

JI

Mas o que custava a passar eram as tardes durante essas


doenças. De manhã, depois de uma noite mal passada,
voltava-se a adormecer, e quando acordava e pensava que era
cedo, era de tarde e continuava a ser de tarde e nunca mais
acabava de ser de tarde. Ali ficava deitado na cama arranjada
e crescia talvez um pouco nas articulações e estava excessi­
vamente cansado para imaginar o que quer que fosse. O gos­
to a puré de maçã mantinha-se durante muito tempo, e já era
muito de algum modo interpretá-lo involuntariamente e dei­
xar circular dentro de si essa pura acidez em vez de pensa­
mentos. Mais tarde, quando voltavam as forças, colocavam as
almofadas de modo a apoiarem as costas e era possível estar­
-se sentado e brincar com soldados; mas eles caíam com faci­
lidade sobre a mesa de cama inclinada e logo toda uma fila ao
mesmo tempo; e ainda não estava de facto em pleno na vida
para se estar sempre a recomeçar. Subitamente tudo isso era
excessivo e pedia para o retirarem rapidamente, e era bom ver
de novo apenas as duas mãos, um pouco afastadas sobre a col­
cha vazia.
Quando a mamã vinha estar comigo por uma meia hora e
lia contos populares (para leituras a sério e extensas contava
com a Sieversen), não era propriamente por causa dos contos
populares. Pois estávamos de acordo em não gostarmos de
contos populares. Tínhamos um outro conceito de maravilho­
so. Achávamos que quando tudo se passava com coisas natu­
rais, então era mais maravilhoso. Não dávamos muita impor­
tância a voar pelos ares, as fadas decepcionavam-nos e das
1 08 Rainer Maria Rilke

transformações em qualquer outra coisa esperávamos apenas


uma distracção superficial. Mas acabávamos por ler um boca­
dinho para parecermos ocupados; não gostávamos que, quan­
do entrasse alguém, tivéssemos de estar a explicar o que está­
vamos a fazer; especialmente em relação ao meu pai éramos
extremamente claros nas nossas ocupações.
Só quando tínhamos toda a certeza de não sermos incomo­
dados e lá fora anoitecia, é que podia acontecer que nos en­
tregássemos a recordações, a recordações comuns, que a am­
bos pareciam antigas e das quais sorríamos, porque desde
então ambos tínhamos crescido. Lembrávamo-nos de que
houvera um tempo em que a mamã queria que eu fosse uma
menina e não o rapaz que eu afinal era. De algum modo eu
adivinhara-o e ocorreu-me ir muitas vezes, à tarde, bater à
porta da mamã. Quando ela então perguntava quem era, eu
sentia-me feliz por responder «Sophie» entoando tão delica­
damente a minha vozinha que ela me fazia cócegas na gar­
ganta. E nessa altura, ao entrar (vestindo o pequeno bibe de
menina que usava habitualmente, de mangas enroladas até
acima), eu era simplesmente Sophie, a pequena Sophie da
mamã, que se ocupava das coisas da casa e a quem a mamã
tinha de fazer uma trança, para que não houvesse confusão
possível com o maroto do Malte, caso ele aparecesse. Tal coi­
sa era inteiramente indesejável. Tanto a mamã como Sophie
gostavam que ele estivesse ausente, e as suas conversas (que
Sophie mantinha com a mesma voz aguda) giravam sobretu­
do à volta das maldades de Malte e das censuras que ele me­
recia. «Ah, sim, esse Malte !», suspirava a mamã. E Sophie
sabia imensas coisas sobre as maldades dos rapazes em geral,
como se conhecesse muitos.
«Gostaria muito de saber o que é feito de Sophie», dizia a
mamã subitamente durante essas recordações. Quanto a isso,
é verdade que Malte nada sabia dizer. Mas quando a mamã
considerava que certamente tinha morrido, ele contradizia-a
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 09

teimosamente e implorava-lhe que não acreditasse nisso,


mesmo que não pudesse provar o contrário.

32

Quando agora me ponho a reflectir sobre tudo isso, admiro­


-me de ter sempre regressado inteiramente do mundo dessas
febres e de me ter adaptado à vida completamente normal, em
que cada um desejava sentir-se apoiado, estar com pessoas co­
nhecidas, e em que as pessoas se suportavam cuidadosamen­
te nos limites do inteligível. Esperava-se algo e isso chegava
ou não chegava, urna terceira hipótese ficava excluída. Havia
coisas definitivamente tristes, havia coisas agradáveis e urna
grande quantidade de coisas secundárias. Mas se se planeava
dar urna alegria a alguém, isso passava a ser urna alegria, e
essa pessoa deveria reagir em conformidade. No fundo tudo
isso era muito simples, e quando já se dominava as situações,
tudo se resolvia por si. Dentro destes limites definidos tudo
cabia: as longas e monótonas horas de aula enquanto lá fora
era Verão; os passeios que era preciso contar em francês; as
visitas, devido às quais se era chamado para dentro de casa, e
que achavam engraçado aquele que estava justamente triste, e
se divertiam com ele corno com o rosto triste de determinados
pássaros que não possuem outro. E os dias de aniversário tam­
bém, para os quais eram convidadas crianças que mal se co­
nhecia, crianças tímidas que nos tornavam tímidos, ou crian­
ças atrevidas que nos arranhavam o rosto e estragavam os
presentes acabados de receber e que depois desapareciam de
repente, quando tudo já fora arrancado das caixas e das arcas
e se encontrava amontoado. Mas quando se brincava a sós,
corno sempre, podia no entanto acontecer ultrapassar-se ines­
peradamente este mundo definido, no fundo inofensivo, e des­
lizar para situações completamente diferentes e imprevisíveis.
1 10 Rainer Maria Rilke

A Mademoiselle sofria na altura de enxaquecas que se de­


claravam de um modo invulgarmente violento, e nesses dias
era difícil encontrar-me. Sei que o cocheiro recebia ordens de
me procurar no parque, onde eu não estava, quando o meu pai
se lembrava de perguntar por mim. De um dos quartos de hós­
pedes de lá de cima, via-o correr e chamar por mim à entrada
da longa álea. Estes quartos de hóspedes encontravam-se uns
ao lado dos outros no sótão de Ulsgaard e estavam quase sem­
pre vazios, uma vez que nesta altura do ano era raro termos
visitas. Na ponta havia aquele grande quarto de esquina que
me atraía tanto. Lá dentro havia apenas um velho busto, que,
segundo creio, era do almirante Juel. Mas as paredes estavam
revestidas a toda a volta de armários fundos e sombrios, de tal
modo que a própria janela estava colocada acima dos armá­
rios, na parede vazia e caiada. Descobrira a chave numa das
portas dos armários e ela abria todos os outros. E assim, em
pouco tempo, tinha passado tudo em revista: os fraques de ca­
mareiros do séc. xvrn, gelados pelos fios de prata que faziam
parte do tecido, e os respectivos coletes belamente bordados;
os trajos da Ordem de Dannebrog e do Elefante, que à pri­
meira vista pareciam vestidos femininos por serem tão ricos e
complicados e de forro muito macio ao tacto. Depois togas
verdadeiras que, penduradas em separado nos seus suportes,
estavam hirtas como as marionetas de uma peça demasiado
grande, tão definitivamente fora de moda que haviam sido
usadas as suas cabeças para outros efeitos. Mas ao lado des­
ses havia outros armários onde fazia escuro quando se abriam,
escuro de uniformes fechados até acima que pareciam muito
mais usados do que tudo o resto e que de facto desejavam que
não os conservassem.
Ninguém estranhará que eu tenha retirado tudo isso para fo­
ra e o visse à luz do dia; que eu tenha posto à minha frente ou
à minha volta isto e aqui lo ; que vestisse à pressa um traje que
talvez me servisse , e, j á vestido, curioso e excitado, corresse
As Anotações de Malte Laurids Brigge 111

para o quarto de hóspedes mais próximo, para diante do es­


treito espelho entre duas janelas, feito de bocados desiguais
de vidro verde. Ai, como se tremia de estar lá dentro e como
era arrebatador ser o que lá estava. Quando algo se aproxima­
va vindo do turvo fundo, mais devagar do que quem nele se
via, pois o espelho não acreditava ainda e, sonolento como es­
tava, não queria repetir de imediato o que se lhe dizia. Mas no
fim tinha naturalmente de ceder. E então era uma coisa muito
surpreendente, estranha, totalmente diferente do que se tinha
pensado, algo súbito, independente, que se captava rapida­
mente com o olhar, para no momento seguinte se reconhecer
a si próprio, não sem uma certa ironia que, por um triz, podia
destruir todo esse divertimento. Mas quando se começava de
imediato a falar, a fazer vénias, quando se acenava a si pró­
prio, afastando-se e olhando continuamente para trás e depois
voltando a aproximar-se com decisão e ânimo, então tinha-se
a imaginação do nosso lado por quanto tempo nos agradasse.
Nessa altura aprendi a conhecer a influência que um deter­
minado traje pode exercer directamente sobre nós. Mal vestia
um destes fatos, tinha de confessar a mim próprio que ele me
tinha em seu poder; que ele me ditava os meus movimentos,
a expressão do rosto e até as ideias; a minha mão, coberta con­
tinuamente pelo punho de renda, não era, nem de longe, a mão
habitual; ela movimentava-se como um actor, mais, poderia
até dizer que ela se observava a si própria, por muito que isto
soe a exagero. Estes disfarces, no entanto, não se desenrola­
vam até ao ponto de eu próprio me sentir alienado; pelo con­
trário, quanto mais diversificadamente me transformava, tan­
to mais convencido ficava de mim mesmo. Tomei-me cada
vez mais ousado; lançava-me cada vez mais alto; pois a mi­
nha perícia em dominar a situação estava acima de qualquer
suspeita. Não dei conta da tentação que se escondia nesta
crescente convicção. Para minha desgraça só faltava que o úl­
timo armário, que eu até então pensara não conseguir abrir,
1 12 Rainer Maria Rilke

cedesse um dia para me entregar, em vez de determinados tra­


jes, todo o tipo de um arsenal de fatos e adereços de máscaras,
cuja fantástica imprecisão me fez subir o sangue à cabeça.
Não é possível enumerar tudo o que ali se encontrava. Para
além de uma bautta [máscara veneziana] do séc. XVIII de que
me lembro, havia dominós em várias cores, havia saias de se­
nhora que tilintavam alegremente por causa das moedas nelas
pregadas; havia Pierrots que me pareciam idiotas, calças tur­
cas com muitas pregas e bonés persas dos quais se soltavam
saquinhos de cânfora, e coroas com pedras estúpidas e inex­
pressivas. Desprezei um pouco tudo isto; era de uma irreali­
dade tão indigente e apresentava-se tão despojado e miserável,
e prostrado e sem vontade, quando se arrastava até à luz. Mas
o que me transpunha para uma espécie de embriaguez eram os
amplos casacos, os lenços, os cachecóis, os véus, todos estes
grandes tecidos maleáveis e por usar, que eram macios e ele­
gantes ou tão escorregadios que mal se conseguia agarrá-los,
ou tão leves que passavam por nós voando como o vento, ou
simplesmente pesados com todo o seu lastro. Só neles é que
vi possibilidades verdadeiramente livres e infinitamente va­
riáveis: ser uma escrava que é vendida, ou ser Jeanne d' Are
ou um velho rei ou um mago; tudo isso estava agora à mão,
tanto mais que havia também máscaras, grandes caras amea­
çadoras ou espantadas com barbas autênticas e sobrancelhas
crespas ou erguidas. Nunca vira máscaras até então, mas con­
cordei imediatamente que existissem máscaras. Tive de me rir
quando me lembrei que tivemos um cão que parecia ter uma.
Imaginei os seus olhos temos que olhavam sempre como vin­
dos de trás, de outro rosto, através do seu rosto peludo. Ainda
me ria enquanto me disfarçava, e desse modo esqueci-me
completamente de que é que me queria vestir. Ora, era coisa
nova e cheia de expectativa, só decidir depois diante do espe­
lho. O rosto que coloquei cheirava singularmente a vazio,
colou-se ao meu, mas eu podia ver à vontade através dele,
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 13

mas só depois de a máscara assentar é que escolhi toda a es­


pécie de lenços que ia enrolando à volta da cabeça numa es­
pécie de turbante, de tal modo que o bordo da máscara, que na
parte inferior entrava por um enorme casaco amarelo, também
estava coberto na parte superior e dos lados. Por fim, quando
j á não podia mais, achei que já estava suficientemente masca­
rado. Ainda peguei num grande bordão que movimentava ao
meu lado com o braço o mais esticado que era posível, e as­
sim me arrastei, não sem esforço mas, como imaginava, cheio
de dignidade, para o quarto de hóspedes, em direcção ao
espelho.
Foi verdadeiramente fantástico, excedendo toda a expecta­
tiva. O espelho reproduziu-o imediatamente, era demasiado
convincente. Não teria sido necessário fazer muitos movi­
mentos; esta aparência era perfeita, mesmo que nada fizesse.
Mas era preciso saber o que era eu afinal, e por isso voltei-me
um pouco e por fim ergui os braços: movimentos amplos e de
conjuração, era o que mais se adequava, como notei. Mas,
precisamente neste momento festivo, ouvi, ainda que abafado
pelo meu disfarce, um ruído de composição múltipla, muito
próximo de mim; muito assustado, perdi de vista o ser do la­
do de lá e fiquei muito indisposto ao aperceber-me de que der­
rubara uma mesinha redonda sobre a qual estavam sabe Deus
que objectos, provavelmente muito frágeis. Inclinei-me como
pude e vi confirmada a minha pior suspeita: parecia que tudo
estava partido. Os dois supérfluos papagaios de porcelana
verde-roxo estavam naturalmente feitos em mil pedaços, qual
deles o pior. Uma caixa, da qual tinham saltado rebuçados que
pareciam insectos em casulos de seda, atirara a tampa para
longe de si, só se via uma das suas metades, a outra tinha de­
finitivamente desaparecido. Mas o mais aborrecido era um
frasco desfeito em mil estilhaços minúsculos e do qual se ti­
nha vertido o resto de uma qualquer velha essência que agora
formava uma mancha de fisionomia muito repugnante sobre o
1 14 Rainer Maria Rilke

parqué claro. Limpei-a com algum dos panos que me envol­


viam, mas a mancha ficou apenas mais negra e desagradável.
Fiquei desesperado. Ergui-me e tentei encontrar um qualquer
objecto que me servisse para remediar tudo isso. Mas nada
encontrei. Também estava tão limitado na visão e em qualquer
movimento que fui acometido de cólera contra o meu estado
absurdo que já escapava à minha compreensão. Comecei a
puxar por tudo, mas tudo se apertava ainda mais. Os cordões
do casaco estrangulavam-me e os trapos que tinha sobre a ca­
beça pesavam, como se se tivessem multiplicado. Entretanto
o ar tomara-se turvo e como que embaciado com o cheiro ba­
fiento do líquido derramado.
Cheio de calor e de fúria lancei-me para diante do espelho
e com muito esforço vi através da máscara o trabalho das mi­
nhas mãos. Mas disso é que ele estava à espera. Tinha chega­
do o seu momento de desforra. Enquanto eu me esforçava,
com uma angústia que crescia sem medida, por me livrar de
qualquer modo do meu disfarce, ele obrigava-me, não sei co­
mo, a erguer os olhos e ditava-me uma imagem, não, uma rea­
lidade, uma realidade estranha, incompreensível e monstruo­
sa que me penetrava contra a minha vontade: pois ele agora
era o mais forte, e era eu o espelho. Olhei de olhos esbuga­
lhados este grande e horrível desconhecido à minha frente e
pareceu-me extraordinário estar a sós com ele. Mas, no mes­
mo instante em que pensava isto, aconteceu o inacreditável:
perdi toda a consciência, pura e simplesmente deixei de exis­
tir. Durante um segundo, senti uma saudade indescritível, do­
lorosa e vã de mim mesmo, depois restou apenas ele: nada ha­
via para além dele.
Afastei-me a correr, mas agora era ele que corria. Embatia
contra tudo, não conhecia a casa, não sabia para onde ir; foi
parar ao fundo de uma escada, no corredor tropeçou contra
uma pesso a que se libertou aos gritos. Abriu-se uma porta,
pela qual saíram várias pes soas: ai, ai, que bom era conhecê-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 15

-las. Era Sieversen, a boa da Sieversen, urna das criadas e o


guarda-baixelas: agora tudo ia ser decidido. Mas eles não se
aproximaram de um salto para o salvamento; a sua crueldade
não tinha limites. Ficaram a rir ali, meu Deus, corno podiam
ficar ali a rir? Eu chorava, mas a máscara não deixava sair as
lágrimas, elas corriam-me lá dentro pela cara abaixo e logo
secavam e novamente corriam e secavam. E por fim caí de
j oelhos diante deles, corno nunca antes ninguém aj oelhara;
ajoelhei-me e ergui para eles as mãos e supliquei: «Tirem-me
para fora, se ainda for possível, e guardem-me», mas eles não
ouviram; eu já não tinha voz.
Sieversen contava até aos seus últimos dias corno eu caíra
desamparadamente e corno eles continuaram a rir, convenci­
dos de que aquilo fazia parte da cena. Estavam habituados a
que eu fizesse coisas deste género. Mas, depois, continuei no
chão, sem responder. E o susto que apanharam quando por
fim descobriram que eu perdera os sentidos e ali estava corno
se fosse urna coisa envolvida naqueles panos todos, pura e
simplesmente corno se fosse um pedaço de qualquer coisa.

33

O tempo passava com urna rapidez incalculável, e de re­


pente chegara de novo a ocasião em que era inevitável convi­
dar o pregador Dr. Jespersen. Era, para todas as partes envol­
vidas, um almoço difícil e interminável. Habituado a urna
vizinhança muito piedosa, que de cada vez se desfazia em
atenções por consideração para com ele, em nossa casa não se
encontrava de modo algum no seu elemento; ele era corno um
peixe que tinha dado à costa e respirava com dificuldade.
A respiração branquial que ele próprio cultivara processava­
-se a muito custo, formavam-se bolhas, e tudo isso não deixa­
va de ser perigoso. Ternas de conversa não havia, a bem dizer,
1 16 Rainer Maria Rilke

nenhuns ; os restos eram vendidos a preços inacreditáveis,


houve uma liquidação de toda a existência. Na nossa casa o
Dr. Jespersen tinha de limitar-se a ser uma espécie de pessoa
privada; mas tal coisa nunca chegou a acontecer. Tal como ele
o entendia, era um especialista no ramo da alma. A alma era
para ele uma instituição pública que ele representava, e con­
seguia nunca deixar de estar em serviço, nem sequer no con­
vívio com a sua mulher, «a sua modesta e fiel Rebecà, cada
vez mais santificada pelos sucessivos partos», tal como disse
Lavater a propósito de um outro caso.
1 (No respeitante ao meu pai, de resto, a sua atitude peran­

te Deus era de uma inteira correcção e de uma cortesia irre­


preensível. Na igreja parecia-me, por vezes, ao vê-lo de pé, à
espera e ligeiramente inclinado, que ele era, de facto, capitão
de caçadores ao serviço de Deus. À mamã, pelo contrário,
parecia-lhe quase ofensivo que alguém pudesse ter com Deus
uma mera relação de cortesia. Se ela tivesse uma religião com
ritos precisos e pormenorizados, teria sido para ela uma feli­
cidade estar horas a fio de joelhos e prostrar-se por terra e
benzer-se, traçando uma ampla cruz que passava pelo peito e
se alargava aos ombros. Não me chegou a ensinar a rezar, mas
dava-lhe tranquilidade eu gostar de ajoelhar e de pôr as mãos
ora com os dedos entrecruzados, ora na vertical, conforme me
parecia mais expressivo. Assim entregue a mim mesmo, cedo
passei por várias fases que eu só muito mais tarde relacionei
com Deus, numa espécie de desespero e aliás de uma tal vio­
lência que Ele se formou e se desfez quase no mesmo mo­
mento. É evidente que depois tive de começar tudo de novo.
E para este começo julguei muitas vezes que precisava da ma­
mã, embora fosse naturalmente melhor levá-lo a cabo por mi­
nha conta. E nessa altura também ela já tinha morrido havia
muito tempo.)

1 Escrito à margem no manuscrito


As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 17

Perante o Dr. Jespersen, a mamã conseguia ser de urna 'jo­


vialidade quase exuberante. Tinha com ele conversas que ele
levava a sério e depois, quando ele se começava a ouvir falar,
ela achava que já bastava e de repente esquecia-se completa­
mente dele, corno se já se tivesse ido embora. «Corno é que ele
pode», dizia ela às vezes, «deslocar-se de um lado para o ou­
tro e entrar na casa das pessoas quando elas estão a morrer?»
Também veio visitá-la nessas circunstâncias, mas ela já não
o deve ter visto. Os seus sentidos foram-se extinguindo, um
após outro, a vista foi o primeiro. Foi no Outono, era altura de
mudar para a cidade, mas foi precisamente quando ela adoe­
ceu, ou melhor, começou logo a morrer, a definhar lenta e ine­
xoravelmente em toda a sua superfície. Vinham os médicos e
certo dia compareceram todos e dominavam toda a casa. Du­
rante algumas horas foi corno se a casa pertencesse ao profes­
sor e aos seus assistentes e nós não tivéssemos mais nada a
dizer. Porém, logo a seguir perderam todo o interesse, vinha
apenas um de cada vez, corno por pura cortesia, para aceitar
um charuto e um cálice de vinho do Porto. E entretanto a
mamã morria.
Aguardávamos apenas a chegada do único irmão da mamã,
o conde Christian Brahe que, corno ainda se devem lembrar,
estivera algum tempo ao serviço da Turquia, onde, corno sem­
pre se dizia, recebera muitas condecorações. Chegou um dia
de manhã, acompanhado por um criado estrangeiro, e fiquei
surpreendido por ele ser mais alto e aparentemente também
mais velho do que o meu pai. Os dois cavalheiros trocaram de
imediato algumas palavras relacionadas, suponho, com a
mamã. Fez-se um breve silêncio. Depois o meu pai disse:
«Ela está muito desfigurada. » Eu não percebi essa expressão,
senti calafrios ao ouvi-la. Tive a impressão de que o meu pai
também se tivera de vencer a si mesmo antes de a pronunciar.
Mas era sem dúvida o seu orgulho que se sentia ferido por ter
de o admitir.
1 18 Rainer Maria Rilke

34

Só muitos anos mais tarde é que voltei a ouvir falar do con­


de Christian. Foi em Umekloster, e foi Mathilde Brahe que o
fez, pois gostava muito de falar dele. No entanto estou con­
vencido de que ela apresentava os vários episódios conforme
entendia, pois a vida do meu tio, da qual só chegavam boatos
ao conhecimento público e mesmo ao conhecimento da famí­
lia, boatos que ele nunca refutava, era susceptível de infinitas
interpretações. Umekloster é agora propriedade dele. Mas
ninguém sabe se ele lá vive. Talvez continue a viaj ar, corno
era seu costume; talvez esteja a chegar a notícia da sua mor­
te, escrita pelo punho do seu criado estrangeiro em mau inglês
ou numa qualquer língua desconhecida, enviada de algum
continente bem longínquo. Ou talvez este homem não dê
qualquer sinal de vida, se vier a ficar sozinho depois da mor­
te do seu amo. Talvez os dois tenham desaparecido há muito
e constem apenas na lista de passageiros de um navio perdido
sob nomes que não eram os seus.
É verdade que, outrora, quando um carro chegava a Ume­
kloster, eu estava sempre à espera de o ver entrar, e o meu co­
ração batia de um modo peculiar. Mathilde Brahe afirmava:
era assim que ele havia de vir, aquele era o seu modo singu­
lar de aparecer subitamente, quando para os outros era o me­
nos provável. Ele nunca chegou a vir, mas a minha imagina­
ção andava à volta dele semanas a fio, tinha a sensação de
estarmos a dever um ao outro um relacionamento, e eu gosta­
ria muito de saber factos reais acerca dele.
Quando, pouco tempo depois, o meu interesse se passou a
centrar, na sequência de certos acontecimentos, em Christine
Brahe, curiosamente não me esforcei por saber o que quer que
fosse sobre as circunstâncias da vida dela. Por outro lado,
inquietava-me a ideia de saber se na galeria se encontrava o
seu retrato a óleo. E o desejo de o verificar aumentou de
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 19

modo tão exclusivo e importuno, que não dormi durante vá­


rias noites, até que, inesperadamente, chegou aquela em que,
sabe Deus como, me levantei e subi as escadas levando na
mão uma vela que parecia ter medo.
No que me diz respeito, não pensava em medo. Não pensa­
va em nada, avançava. As portas altas cediam à minha frente
e à minha passagem, como se brincassem, e os quartos que eu
atravessava estavam sossegados. E por fim notei pela profun­
didade que me fazia chegar o seu sopro que tinha chegado à
galeria. Senti, do lado direito, as janelas dando para a noite, e
à esquerda deviam estar os quadros. Ergui a minha vela o
mais alto possível. Sim: lá estavam os quadros.
Primeiro propus-me procurar apenas os retratos de mulhe­
res, mas depois reconheci um e mais outro, que se assemelha­
vam a alguns que se encontravam em Ulsgaard, e quando eu
os iluminava de baixo, eles movimentavam-se e queriam vir
para a luz, e parecia-me cruel não lhes dar ao menos tempo
para tal. Lá estava de novo Christian IV com a sua bela tran­
ça junto à face larga, suavemente arqueada. Lá estavam pro­
vavelmente as suas esposas, das quais eu conhecia apenas
Kirstine Munk; e de repente Frau Ellen Marsvin olhou-me,
com ar desconfiado, em traje de viúva e com o mesmo colar
de pérolas na aba do chapéu alto. Lá estavam os filhos do rei
Christian: filhos sempre recentes de novas mulheres, a «in­
comparável» Eleonore montada numa égua branca nos seus
tempos de esplendor, antes das provações. Os Gyldenlõves:
Hans Ulrik, de quem as mulheres espanholas diziam que pin­
tava o rosto, de tal modo estava pleno de sangue, e Ulrich
Christian, que j á se não podia esquecer. E quase todos os
Ulfelds. E aquele ali, com um dos olhos coberto de preto, bem
podia ser Henrik Holk que aos trinta e três anos foi conde do
império e marechal-de-campo, o que sucedeu deste modo:
quando ia ter com a Fraulein Hilleborg Krafse, sonhou que lhe
iam dar, em vez de uma noiva, uma espada desembainhada -
1 20 Rainer Maria Rilke

o que tomou a peito, voltando para trás e começando a sua


curta e temerária vida que acabou com a peste. Esses conheci­
-os eu. Também em Ulsgaard tínhamos os delegados no Con­
gresso de Nimega, pareciam-se todos um pouco uns com os
outros porque tinham sido pintados ao mesmo tempo, cada
um deles com o mesmo fino bigode, como uma sobrancelha,
apoiado sobre a boca sensual que parecia capaz de ver. É ób­
vio que reconheci o duque Ulrich e Otte Brahe e Claus Daa e
Sten Rosensparre, o último da sua estirpe, pois tinha visto re­
tratos de todos eles na sala de Ulsgaard, ou havia encontrado
em velhas pastas gravuras em cobre que os representavam.
Mas estavam ali muitos que eu nunca vira; poucas mulhe­
res, mas havia crianças. O meu braço já há muito estava can­
sado e tremia, mas eu continuava a erguer a luz, para ver as
crianças. Eu compreendia-as, estas meninas com um pássaro
na mão, por elas esquecido. Algumas vezes havia um cão pe­
queno sentado aos seus pés, havia uma bola, e sobre a mesa
ao lado havia fruta e flores ; e por detrás, na coluna, encontra­
va-se, pequeno e provisório, o brasão dos Grubbe ou dos
Bille ou dos Rosenkrantz. Acumularam imensas coisas à vol­
ta delas, como se houvesse muitas injustiças a reparar. Mas
elas estavam simplesmente de pé nos seus vestidos e espera­
vam; via-se que esperavam. E nesse momento lá voltava eu a
lembrar-me das mulheres e de Christine Brahe, interrogando­
-me se a iria reconhecer.
Queria ir rapidamente até ao fundo e de lá voltar atrás à
procura, mas nesse momento esbarrei em qualquer coisa.
Voltei-me tão bruscamente que o pequeno Erik deu um salto
para trás e murmurou : «Cuidado com a tua vela.»
«Estás aí?» perguntei sem fôlego, e não tinha a certeza se
isso era bom ou irremediavelmente mau. Ele riu apenas, e eu
não sabia o que fazer. A chama da minha vela vacilava e eu
não conseguia distinguir bem a expressão do seu rosto. Era
certamente mau sinal ele estar ali. Então ele disse, aproximan-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 121

do-se: « Ü retrato dela não está aqui, nós continuamos à pro­


cura dele lá em cima.» Com a sua meia voz e o seu olho com
movimento apontou não sei como lá para cima. E eu percebi
que se referia ao sótão. Mas de repente veio-me uma ideia es­
tranha.
«Nós?», perguntei, «então ela está lá em cima?»
«Sim», disse ele, acenando com a cabeça e mesmo junto de
mim.
«Ela também ajuda a procurar?»
«Sim, nós procuramos.»
«Então tiraram o retrato daqui?»
«Sim, imagina», disse ele indignado.
Mas não percebi bem o que ela pretendia.
«Ela quer ver-se», murmurou ele muito perto de mim.
«Ah, sim», disse eu, como se tivesse entendido. Então, com
um sopro, ele apagou-me a vela. Vi-o esticar-se para diante,
aproximando-se da chama, de sobrancelhas muito levantadas.
Depois fez-se escuro. Recuei involuntariamente.
«Que estás tu a fazer?», exclamei oprimido, com a gargan­
ta completamente seca. Ele saltou para mim e pendurou-se no
meu ombro, soltando risadinhas.
«Que foi?», disse-lhe com aspereza e queria sacudi-lo, mas
ele agarrou-se bem. Não fui capaz de impedir que me puses­
se o braço à volta do pescoço.
«Queres que diga?», disse ele com voz sibilante, e um pou­
co de saliva saltou-me para o ouvido.
«Sim, sim, depressa.»
Eu não sabia o que dizia. Então ele abraçou-me por com­
pleto, esticando-se.
«Trouxe-lhe um espelho», disse ele e voltou a soltar risadi-
nhas.
«Um espelho?»
«Sim, porque afinal o retrato não se encontra aqui.»
«Não, não», disse eu.
1 22 Rainer Maria Rilke

De repente puxou-me um pouco mais para a janela e belis­


cou-me com tal força o braço que gritei.
«Ela não está lá dentro», soprou-me ao ouvido.
Involuntariamente repeli-o, algo nele estalou, pareceu-me
que o tinha partido.
«Vai, vai», e agora era eu a rir-me, «não está lá dentro, por
que carga de água não está lá dentro?»
«Tu és parvo», replicou ele zangado e deixou de sussurrar.
A sua voz mudou de registo, como se começasse agora uma
peça nova, ainda inédita.
«Üu se está lá dentro», ditou ele, com ar sisudo e severo, «e
então não se está aqui ; ou se se está aqui e não se pode estar
lá dentro.»
«Com certeza», respondi eu rapidamente, sem reflectir. Ti­
nha medo de que ele de outro modo se fosse embora e me dei­
xasse sozinho. Estendi-lhe mesmo a mão.
«Vamos ser amigos?», propus eu. Ele fez-se rogado.
«Tanto faz», disse com descaramento.
Tentei iniciar a nossa amizade, mas não ousei abraçá-lo.
«Meu caro Erik», foi a única coisa que consegui dizer e
toquei-lhe ao de leve. Subitamente fiquei muito cansado.
Olhei à minha volta; já não sabia como viera até aqui e como
não sentira medo algum. Não sabia ao certo onde ficavam as
janelas e onde ficavam os quadros. E quando nos fomos em­
bora ele teve de guiar-me.
«Eles não te fazem mal», assegurou magnanimamente e
soltou de novo risadinhas .

35

Caro, meu caro Erik; talvez tenhas sido o meu único amigo,
pois nunca tive nenhum. É pena que não tenhas feito nenhum
caso da amizade. Teria gostado de te contar muita coisa. Tal-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 23

vez nos tivéssemos dado bem. Nunca se sabe. Lembro-me de


quando andavam a fazer o teu retrato a óleo. O avô mandara
vir alguém para te retratar. Urna hora por manhã. Não me con­
sigo recordar corno era o pintor, esqueci-me do nome dele,
embora Mathilde Brahe o repetisse a cada instante.
Ter-te-á ele visto corno eu te vejo? Tinhas vestido um fato
de veludo cor de heliotrópio. Mathilde Brahe adorava esse fa­
to. Mas tudo isso é agora indiferente. Só gostava de saber se
ele te viu. Partamos do princípio que ele era um verdadeiro
pintor. Partamos do princípio que não pensava que poderias
morrer antes de ele acabar o quadro; que não encarava a tare­
fa de um modo sentimental; que simplesmente trabalhava.
Que a dissernelhança dos teus olhos castanhos o encantava;
que nem por um minuto se envergonhava do teu olho sem mo­
vimento; que tinha o tacto de mais nada colocar sobre a mesa
em que se apoiava talvez levemente a tua mão. Partamos do
princípio que tudo o que é necessário aí se encontrava e
aceiterno-lo: deste modo existe um retrato, o teu retrato, o úl­
timo na galeria de Umekloster.
(E quando já se está prestes a partir e se viu tudo, ainda ali
está um rapazinho. Um momento: quem é ele? Um Brahe. Es­
tás a ver a pala de prata sobre campo negro e as penas de pa­
vão? Também está lá o nome: Erik Brahe. Não foi um Erik
Brahe que foi executado? Claro, isso é sabido. Mas não se tra­
ta deste. Este rapazinho morreu quando ainda era rapazinho,
não importa quando. Não estás a ver?)

Quando havia visitas e chamavam Erik, a Fraulein Mathilde


Brahe garantia sempre que ele era incrivelmente parecido com
a velha condessa Brahe, minha avó. Ela deve ter sido urna
grande senhora. Já não a conheci. Em contrapartida lembro-
1 24 Rainer Maria Rilke

-me muito bem da mãe do meu pai, a verdadeira senhora de


Ulsgaard. E assim continuou, mesmo que tivesse levado a mal
à mamã ter entrado naquela casa na qualidade de esposa do ca­
pitão de caçadores. Desde então actuava sempre como se se
colocasse num segundo plano, e mandava a criadagem ir ter
com a mamã a propósito de qualquer insignificância, enquan­
to ela, em assuntos importantes, punha e dispunha tranquila­
mente, sem prestar contas a quem quer que fosse. A mamã,
creio eu, não desej ava que as coisas fossem de outra maneira.
Ela não estava talhada para supervisar uma casa tão grande,
era incapaz de distinguir as coisas importantes das secundá­
rias. Aquilo de que lhe falavam parecia-lhe ser sempre tudo, e
consequentemente esquecia-se das outras coisas, que no en­
tanto continuavam a existir. Nunca se queixava da sogra.
E também a quem se havia de queixar? O meu pai era um fi­
lho extremamente respeitador e o avô pouco tinha a dizer.
Frau Margarete Brigge fora sempre, tanto quanto me lem­
bro, uma senhora idosa muito alta e inacessível. Não posso
admitir que não fosse muito mais velha do que o camareiro.
Ela vivia a sua vida no nosso meio, sem ter consideração por
ninguém. Não precisava de nenhum de nós e tinha sempre
junto de si uma espécie de dama de companhia, uma condes­
sa Oxe, já idosa, que se sentia obrigada sem reservas para com
ela por um qualquer benefício. Isto devia constituir uma ex­
cepção única, pois fazer bem não estava nos seus hábitos. Não
gostava de crianças, e os animais não podiam aproximar-se
dela. De resto, não sei se gostava de alguma coisa. Contava­
-se que, quando era rapariga, estivera noiva do belo Felix
Lichnowski, que depois veio a morrer em Frankfurt de uma
maneira muito cruel. E, de facto, encontrou-se, depois da
morte dela, um retrato do príncipe que, se não me engano, foi
restituído à família. Talvez, imagino eu agora, devido a esta
vida recatada e campestre que levava em Ulsgaard, uma vida
que de ano para ano se tornava cada vez mais isolada, ela se
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 25

esquecesse de uma vida diferente e mais brilhante, a que esti­


vera destinada por natureza. É difícil dizer se ela o lamenta­
va. Talvez a desprezasse por nunca se ter concretizado, por ter
perdido a oportunidade de a viver com habilidade e talento.
Interiorizara até ao fundo de si mesma tudo isso e envolvera­
-o em camadas múltiplas e duras, de brilho um pouco metáli­
co, a última das quais com aspecto novo e fresco. No entanto,
por vezes traía-se através de uma impaciência ingénua por
não lhe darem a atenção suficiente; quando eu já era nascido,
era capaz de se engasgar à mesa subitamente de uma forma
evidente e complicada que lhe garantia a atenção de todos e,
pelo menos por uns momentos, tornava-a tão sensacional e
cativante como ela gostaria de ter sido em grande escala. No
entanto, suponho que o meu pai era o único que levava a sé­
rio todos estes incidentes demasiado frequentes. Olhava para
ela, cortesmente inclinado para a frente, via-se que ele em
pensamento lhe oferecia de imediato e punha à sua inteira dis­
posição a sua própria traqueia em boas condições. O camarei­
ro também tinha evidentemente deixado de comer; bebia um
pequeno gole de vinho e abstinha-se de qualquer opinião.
Apenas uma vez ele tinha defendido a sua opinião à mesa
contra a da sua esposa. Isso sucedera havia já muito tempo;
mas a história continuava a circular com malícia e em segre­
do; havia quase em todo o lado alguém que ainda não a ouvi­
ra contar. Dizia-se que a esposa do camareiro numa dada al­
tura era capaz de se exaltar muito com nódoas de vinho que
caíam na toalha por descuido; que qualquer dessas nódoas,
fosse qual fosse a ocasião em que se produzisse, não lhe pas�
sava despercebida e era por assim dizer denunciada com a
mais violenta das repreensões. Isso aconteceu uma vez em
que havia vários convidados ilustres. Umas quantas nódoas
inofensivas, que ela exagerou, foram objecto das suas acusa­
ções sarcásticas, e por muito que o meu avô se esforçasse por
a chamar à ordem por meio de pequenos sinais e de interpela-
1 26 Rainer Maria Rilke

ções jocosas, ela continuava teimosamente a fazer as suas cen­


suras, que, aliás, teve de interromper pouco depois, a meio de
uma frase. Acontecera, com efeito, uma coisa inédita e intei­
ramente incompreensível. O camareiro pediu que lhe dessem
o vinho tinto que acabara de ser servido, e começou então a
encher atentamente o seu copo. Só que ele, estranhamente,
não deixou de deitar vinho apesar de o copo estar cheio havia
muito, antes continuou a deitá-lo lenta e cuidadosamente no
meio de um silêncio cada vez maior, até que a mamã, que
nunca se conseguia dominar, soltou uma gargalhada e desse
modo pôs fim a toda aquela situação pelo lado do riso. Todos
se lhe associaram, aliviados, e o camareiro ergueu os olhos e
entregou a garrafa ao criado.
Mais tarde houve uma outra mania que dominou a minha
avó. Ela não suportava que alguém adoecesse lá em casa.
Uma vez, quando a cozinheira se ferira e ela a viu por acaso
com a mão ligada, afirmou que em toda a casa cheirava a io­
dofórmio e dificilmente a convenceram de que isso não era
motivo para despedirem aquela pessoa. Não queria que lhe
lembrassem doenças. Se alguém tivesse o descuido de referir
diante dela qualquer pequena indisposição, isso significava
para ela uma ofensa pessoal, da qual guardava rancor durante
muito tempo.
Naquele Outono, quando a mamã morreu, a esposa do ca­
mareiro enclausurou-se com Sophie Oxe nos seus aposentos e
cortou todas as relações connosco. Nem sequer o filho rece­
bia. É verdade, esta morte veio muito despropositadamente.
Os quartos estavam frios, os fogões deixavam sair fumo, e os
ratos tinham-se introduzido na casa; em nenhum lugar se es­
tava ao abrigo deles. Mas não era só isso: Frau Margarete
Brigge estava indignada por a mamã morrer; por haver um as­
sunto na ordem do dia do qual se recusava a falar; por essa
mulher ainda jovem ter tido a ousadia de passar-lhe à frente,
a ela que pensava vir a morrer, mas em data de modo algum
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 27

fixada. Pois ela pensava muitas vezes que teria de morrer.


Mas não queria que a apressassem. Certamente que morreria,
quando lhe apetecesse, e então podiam todos morrer à vonta­
de, mas depois, se estivessem assim com tanta pressa.
Nunca nos perdoou completamente a morte da mamã. Ela
envelheceu de resto a olhos vistos durante o Inverno seguinte.
Ao andar ainda era alta, mas sentada no sofá ficava abatida e
ia ouvindo cada vez pior. Podia-se ficar junto dela horas a fio,
fixando-a, mas ela não dava por nada. Encontrava-se recolhi­
da no seu interior; só raramente e por instantes regressava aos
sentidos, que estavam vazios, que ela já não habitava. Depois
dizia alguma coisa à condessa, que lhe compunha a mantilha,
e aconchegava junto ao corpo o vestido com as suas mãos
grandes e acabadas de lavar, como se tivessem derramado
água ou não estivéssemos muito limpos.
Morreu uma noite, ao aproximar-se a Primavera, na cidade.
Sophie Oxe, cuja porta estava aberta, não ouvira nada. Quan­
do de manhã a encontraram, estava fria como vidro.
Logo a seguir começou a grande e terrível doença do ca­
mareiro. Era como se ele tivesse esperado o fim da esposa,
para morrer sem contemplações, como devia.

37

Foi no ano a seguir à morte da mamã que eu reparei pela


primeira vez em Abelone. Abelone estava sempre presente.
Foi isso que a prejudicou muito. Abelone não era, além disso,
simpática, como eu já constatara há muitos anos em certa oca­
sião e nunca chegara a analisar seriamente esta opinião. Per­
guntar, nessa altura, alguma coisa sobre a presença de Abelo­
ne ter-me-ia parecido quase ridículo. Abelone estava ali e
abusavam da sua disponibilidade tanto quanto podiam. Mas
de repente perguntei a mim mesmo: porque está Abelone
1 28 Rainer Maria Rilke

aqui? Cada um de nós tinha um determinado motivo para es­


tar ali, mesmo que não fosse sempre tão aparente corno, por
exemplo, o emprego de Frãulein Oxe. Mas por que razão es­
tava Abelone ali? Durante algum tempo disse-se que era para
se distrair. Mas isso foi esquecido. Ninguém contribuía para a
distracção de Abelone. Não retinha a impressão de que ela se
distraísse.
Aliás Abelone tinha urna boa qualidade: cantava. Quer di­
zer: havia alturas em que ela cantava. Havia nela urna música
forte e imperturbável. Se é verdade que os Anjos são do sexo
masculino, pode-se dizer que havia algo masculino na sua voz:
urna masculinidade radiosa, celestial. Eu, que já em criança era
tão desconfiado em relação à música (não porque ela me ar­
rancasse de mim com mais força do que tudo o resto, mas sim
porque notara que ela não me voltava a depor no lugar onde
me tinha encontrado, antes mais fundo, mergulhando-me no
inacabado) suportava esta música na qual se podia subir na
vertical, cada vez mais alto, até se achar que já se devia estar
mais ou menos no Céu já há algum tempo. Não imaginava que
Abelone ainda me haveria de abrir outros céus.
Primeiro o nosso relacionamento limitava-se ao facto de ela
me contar coisas dos tempos em que a mamã era rapariga. Pu­
nha muito empenho em convencer-me de que a mamã fora
muito corajosa e jovem. Segundo ela afirmava, não havia,
nessa altura, ninguém que se pudesse comparar com ela na
dança e na equitação. «Ela era a mais audaz e incansável e de­
pois casou de repente», disse Abelone ainda admirada depois
de todos aqueles anos. «Aconteceu tão inesperadamente, nin­
guém conseguia entender. »
Eu estava interessado em saber porque é que Abelone não
casara. Ela parecia relativamente velha, e não pensei que ain­
da o pudesse fazer.
«Não havia ninguém», respondeu ela com simplicidade e
ficou mesmo bela ao dizê-lo. Abelone é bela?, perguntei-me,
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 29

surpreendido. Depois saí de casa para ir para a Academia dos


Nobres, e começou um período repugnante e mau da minha
vida. Mas quando eu lá em Soro, afastado dos outros, ficava
à janela e eles me deixavam um pouco em paz, olhava para as
árvores lá fora, e em momentos como esse e à noite aumenta­
va em mim a certeza de que Abelone era bela. E comecei a
escrever-lhe todas aquelas cartas, longas e breves, muitas car­
tas secretas nas quais pensava que estava a falar de Ulsgaard
e de como eu era infeliz. Mas, como agora bem vejo, devem
ter sido cartas de amor. Pois quando finalmente vinham as fé­
rias, que a princípio pareciam nunca mais querer chegar, ha­
via como que um acordo prévio de não nos voltarmos a ver
diante dos outros.
Não havia absolutamente nenhum acordo prévio entre nós,
mas quando o carro fazia a curva para entrar no parque, eu
não podia deixar de descer, talvez só porque não queria che­
gar de carro como qualquer estranho. Estávamos em pleno
Verão. Ia por um dos caminhos, em direcção a um arbusto de
cítiso. E ali estava Abelone. Ó bela, bela Abelone !
Nunca hei-de esquecer como me olhavas. Como dirigias o
teu olhar por assim dizer como algo não fixado, retendo-o no
teu rosto inclinado para trás.
Ai, o clima não se terá alterado nada? Não se terá tornado
mais suave em redor de Ulsgaard devido a todo o nosso calor?
Será que algumas rosas florescem durante mais tempo no par­
que até em pleno Dezembro?
Não quero contar nada que te diga respeito, Abelone. Não
por nos termos iludido um ao outro: porque tu amavas al­
guém, também naquele tempo, e nunca mais o esqueceste, ó
amante, e eu: todas as mulheres. Não, não é por isso, mas sim
porque dizendo as coisas cometemos sempre injustiças.
1 30 Rainer Maria Rilke

Há aqui tapeçarias, Abelone, tapeçarias. Imagino que estás


aqui, são seis tapeçarias, anda, vamos vê-las devagar. Mas pri­
meiro recua e vê-as ao mesmo tempo. Como são tranquilas,
não achas? Há pouca variedade nelas. Vê-se sempre esta ilha
azul oval flutuando sobre o fundo vermelho discreto, cheio de
flores e habitado por pequenos animais ocupados consigo pró­
prios. Apenas ali, na última tapeçaria, a ilha sobe um pouco,
como se se tivesse tomado mais leve. Continua a apresentar
uma figura de mulher, uma mulher com outro vestido, mas é
sempre a mesma. Por vezes há uma figura mais pequena a seu
lado, uma aia, e estão sempre presentes os grandes animais que
ostentam as armas e se encontram também na ilha, fazendo
parte da acção. À esquerda está um leão, e à direita, de cor cla­
ra, o licome; seguram estandartes iguais, que erguem bem aci­
ma deles: três luas de prata ascendentes, sobre banda azul em
campo vermelho. - Já viste, queres começar pela primeira?
Ela está a dar de comer ao falcão. Como são magníficas as
suas vestes. A ave está pousada na mão enluvada e move-se.
Olha para ela e ao mesmo tempo mete a mão na taça, trazida
pela aia, para lhe dar de comer. À direita, sobre a cauda do
vestido, está um cãozinho de pêlo sedoso, que olha para cima
esperançado de que se lembrem dele. E, reparaste, um renque
baixo de roseiras delimita a ilha por detrás. Os animais que
ostentam as armas soerguem-se com heráldico orgulho. As ar­
mas estão também nas capas que os cobrem, presas por belos
fechos. Adejam.
Não nos aproximamos, sem dar por isso, mais silenciosa­
mente da tapeçaria seguinte logo que notamos que a figura fe­
minina está como que absorta? Ela está a fazer uma grinalda,
uma pequena coroa redonda de flores. Pensativa, escolhe a
cor do cravo seguinte na salva que a aia lhe estende, enquan­
to vai prendendo o anterior. Ao fundo, sobre um banco, está
As Anotações de Malte Laurids Brigge 131

um cesto de rosas intactas, que um macaco descobriu. Desta


vez eram precisos cravos. O leão está alheado; mas o licorne,
à direita, entende.
Não tinha de haver música neste silêncio? Não estava ela já
presente mas contida? Grave e silenciosamente adornada
aproximou-se (muito lentamente, não achas?) do órgão portá­
til e toca, de pé, separada pelos tubos do órgão da aia que, do
outro lado, manobra os foles. Nunca a senhora se apresentara
tão bela. Curiosamente o cabelo está puxado para a frente em
duas tranças que se juntam no ornato sobre a cabeça, de mo­
do a subir dessa junção como o pequeno penacho de um elmo.
Contrariado, o leão suporta os sons de mau grado, contendo
rugidos. O licorne porém está belo, como que levado ao sabor
das ondas.
A ilha alarga-se. Está armada uma tenda de damasco azul e
com chamas de ouro. Os animais mantêm-na aberta e ela
avança, quase simples no seu vestido principesco. Que são as
pérolas comparadas com ela? A aia abriu um pequeno baú, e
agora a senhora tira de lá um colar, uma jóia pesada e magní­
fica, que esteve sempre fechada. O cãozinho está sentado jun­
to a ela, num plano mais acima, em lugar preparado e olha pa­
ra a jóia. Descobriste a divisa na orla da tenda? Lá diz: «À
mon seul désir.» [«Ao meu único desejo.»]
Que aconteceu? Por que salta o pequeno coelho lá em bai­
xo, por que se vê logo que ele salta? Está tudo tão confuso ! O
leão não tem nada que fazer. Ela própria segura o estandarte.
Ou segurar-se-á a ele? Com a outra mão agarra o chifre do li­
corne. Será isto um luto? Pode o luto ser tão erecto, e um ves­
tido de luto tão silencioso como este veludo verde-negro com
algumas partes murchas?
Mas há ainda uma festa; ninguém foi convidado. Aí a ex­
pectativa não tem qualquer papel. Tudo está presente. Tudo
para sempre. O leão olha à sua volta quase ameaçador: a nin­
guém é permitido entrar. Nunca tínhamos visto a senhora com
1 32 Rainer Maria Rilke

ar cansado; estará cansada? Ou apenas se sentou porque está


a segurar algo pesado? Poder-se-ia pensar que é uma custódia.
Mas ela inclina o outro braço para o licome, e o animal
empina-se, lisonjeado, e sobe até ao regaço dela, nele se
apoiando. É um espelho o que ela está a segurar. Estás a ver?
Mostra ao licome a sua imagem.
Abelone, imagino que estás aqui. Compreendes, Abelone?
Penso que deves compreender.

39

Agora as tapeçarias da Dame à la Licorne [Senhora com o


Licome] também já não se encontram no velho castelo de
Boussac. Chegou o tempo em que tudo sai das casas, elas já
nada mais podem albergar. O perigo tomou-se mais seguro do
que a própria segurança. Já ninguém da estirpe dos Delle
Viste passa ao nosso lado, contendo essa origem no sangue.
Todos passaram. Ninguém pronuncia o teu nome, Pierre
d' Aubusson, importante grão-mestre de casa antiquíssima,
por cuja determinação foram talvez tecidas estas imagens, que
tudo louvam e nada abandonam. (Ah, por que razão os poetas
não escreveram de outro modo sobre as mulheres, mais lite­
ralmente, segundo pretendiam? É certo que a nós não nos era
permitido saber mais do que isso.) Agora passa-se diante
delas ocasionalmente entre pessoas ocasionais e quase nos as­
sustamos por não sermos convidados. Mas há ainda outros
visitantes que passam adiante, embora não sejam muitos.
Esses jovens mal param, a não ser que de algum modo faça
parte dos seus estudos ter visto estas coisas alguma vez, repa­
rando nesta ou naquela característica.
De resto encontra-se por vezes raparigas diante delas. Pois
existe uma quantidade de raparigas nos museus e que partiram
algures das suas casas que já mais nada guardam. Quando se
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 33

encontram diante destas tapeçarias esquecem-se um pouco de


si. Sempre sentiram que isto existia, esta vida suave em gestos
lentos, nunca completamente esclarecidos, e lembram-se obs­
curamente de que durante algum tempo acharam que assim se­
ria a sua vida. E então pegam de repente num caderno e co­
meçam a desenhar não importa o quê: uma das flores ou um
pequeno animal divertido. Não tem importância o objecto em
questão, disseram-lhes, e, de facto, não tem. O principal é de­
senhar, pois foi por isso que partiram um dia, à viva força. São
de boas farm1ias. Mas quando agora, ao desenhar, levantam os
braços, acontece que os seus vestidos lá atrás não estão abo­
toados ou não o estão completamente. Há uns quantos botões
a que não se chega. Pois quando estes vestidos foram feitos
ainda não se falava da possibilidade de saírem repentinamen­
te de casa, sozinhas. Na família há sempre quem se ocupe
desses botões. Mas aqui, meu Deus, quem haveria de se preo­
cupar com isso numa cidade tão grande. Era preciso ter uma
amiga; mas as amigas estão na mesma situação, e o resultado
é que têm de abotoar os vestidos umas às outras. Isto é ridí­
culo e lembra a família da qual não nos queremos lembrar.
No entanto é inevitável que, enquanto se está a desenhar,
por vezes se pense se não teria sido afinal possível ficar em ca­
sa. Se se conseguisse ter sido piedosa, intrepidamente piedo­
sa, acompanhando o ritmo dos outros. Mas revelou-se absur­
do tentar semelhante coisa em comum. O caminho tomou-se
de algum modo mais estreito: as famílias já não podem cami­
nhar juntas para Deus. Restavam pois apenas várias outras
coisas que se podia partilhar em caso de necessidade. Mas
quando as partilhas se faziam com honradez, cabia tão pouco
a cada um que era uma vergonha. E se ao dividir os bens se
enganasse os outros surgiam discussões. Não, é de facto me­
lhor desenhar, não importa o quê. Com o passar do tempo a se­
melhança virá por si. E a arte, quando se vai conquistando as­
sim gradualmente, é realmente uma coisa bastante invejável.
1 34 Rainer Maria Rilke

E com o esforço gasto no objectivo que se propuseram, es­


tas raparigas já não conseguem levantar os olhos. Não se
apercebem de que, ao desenhar, não fazem outra coisa senão
reprimir dentro de si a vida imutável que se abre radiosamen­
te diante delas nestas imagens tecidas, na sua infinita inefabi­
lidade. Não o querem crer. Agora que tanta coisa muda, tam­
bém elas querem mudar. Estão quase a desistir de si próprias
e a pensar de si mesmas um pouco como os homens delas fa­
lam quando elas não estão presentes. Este parece-lhes ser o
seu progresso. Estão já quase convencidas de que se procura
um prazer sensível e depois outro e outro prazer sensível ain­
da mais forte: que nisso consiste a vida, se não se quer perdê­
-la de uma maneira estúpida. Já começaram a olhar à sua vol­
ta, a procurar; elas, cuja força sempre consistiu em serem
achadas.
Isto resulta, julgo eu, de estarem cansadas. Durante séculos,
cumpriram toda a tarefa do amor, desempenharam sempre a
totalidade do diálogo, as duas partes. Pois o homem apenas
repetiu e mal. E dificultou-lhes a aprendizagem com a sua dis­
tracção, a sua negligência, o seu ciúme, que também era uma
espécie de negligência. E, apesar de tudo, elas perseveraram
noite e dia e cresceram em amor e em miséria. E de entre elas
saíram, sob a pressão de angústias sem fim, as poderosas
amantes que, enquanto o chamavam, superavam o homem;
que cresciam para além dele quando não regressava, como
Gaspara Stampa ou a Portuguesa, que não desistiram até o seu
tormento se transformar numa acre e gelada magnificência
que já nada podia deter. Sabemos da existência desta e da­
quela porque existem cartas que se conservaram como por mi­
lagre, ou livros de poemas de acusação e queixa, ou quadros
que numa galeria nos contemplam através de um pranto con­
tido que o pintor conseguiu transmitir porque não sabia o que
era. Mas elas foram inúmeras : as que queimaram as cartas e
outras que já não tinham forças para as escrever. Velhas que
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 35

endureceram, mas com um grão de delícia dentro de si, que


ocultavam. Mulheres informes que tomando-se fortes pelo es­
gotamento, consentiram em_fic élf parecidas aos maridos, mas
que interiormente eram completamente diferentes, lá onde o
seu amor trabalhara, no escuro. Parturientes que nunca quise­
ram dar à luz e que, quando finalmente morriam ao oitavo
parto, tinham os gestos e a leveza de raparigas que se alegram
na expectativa do amor. E aquelas que ficaram junto a de­
mentes e ébrios, por teram achado o meio de estarem inte­
riormente mais longe deles do que em nenhum outro lugar; e
quando se encontravam com outras pessoas, não podiam
conter-se e irradiavam um brilho como se sempre tivessem vi­
vido com bem-aventurados. Quem poderá dizer quantas e
quais foram? É como se tivessem antecipadamente destruído
as palavras com as quais seria possível abrangê-las.

40

Mas agora, que tanta coisa muda, não será a nossa vez de
mudarmos? Não poderíamos tentar evoluir um pouco mais e
assumir lenta e gradualmente a parte que nos cabe do trabalho
no amor? Pouparam-nos a todos a sua dor, e desse modo nos
escorregou para o meio das distracções, como cai, por vezes,
na gaveta dos brinquedos de uma criança um bocado de ren­
da verdadeira causando alegria e deixando de causar alegria e
por fim ali fica entre coisas partidas e escangalhadas, em pior
estado do que tudo o resto. Estamos estragados pelo prazer
fácil como todos os diletantes e é-nos atribuída a mestria. E se
desprezássemos os nossos êxitos, se começássemos desde o
princípio a aprender o trabalho do amor, que sempre foi feito
para nós? Se partíssemos e nos fizéssemos principiantes, ago­
ra que tantas coisas mudam?
1 36 Rainer Maria Rilke

4I

Agora também me vem à memória o que acontecia quando


a mamã desenrolava as pequenas peças de renda. Ela tinha
mesmo reservado para seu uso uma única gaveta da escriva­
ninha de Ingeborg.
«Vamos vê-las, Malte», dizia ela e alegrava-se como se fos­
se receber como oferta tudo o que estava dentro da gavetinha
envernizada de amarelo. E depois, com toda a sua expectati­
va, não era capaz de desembrulhar o papel de seda. Era sem­
pre eu a fazê-lo. Mas eu também ficava todo excitado quando
começavam a aparecer as rendas. Elas estavam enroladas num
rolo de madeira que nem sequer se via devido às camadas de
renda. E então desenrolávamo-las lentamente e olhávamos
para os desenhos que iam aparecendo e quando um chegava
ao fim assustávamo-nos um pouco, pois acabavam repentina­
mente.
Em primeiro lugar vinham pontas de trabalho italiano, rij as
peças de fios tirados, nas quais tudo se repetia continua e ni­
tidamente como num jardim campestre. E depois, de súbito,
uma longa sequência dos nossos olhares ficava gradeada pela
renda veneziana de agulha, como se fôssemos mosteiros ou
prisões. Mas o olhar voltava a ser livre e olhávamos para jar­
dins longínquos que se tomavam cada vez mais artificiais até
tudo se encontrar espesso e tépido aos nossos olhos como nu­
ma estufa: plantas faustosas que nós não conhecíamos deita­
vam folhas gigantescas, trepadeiras enlaçavam-se como se es­
tivessem com vertigens, e as grandes flores desabrochadas da
renda de Alençon turvavam tudo com o seu pólen. Subita­
mente, esgotados e confusos, saíamos para o longo trajecto
das Valenciennes e era Inverno e de manhã cedo e havia gea­
da. E irrompíamos pelos arbustos nevados da renda de bilros
de Binche e chegávamos a lugares onde ninguém tinha passa­
do ainda; os ramos pendiam tão curiosamente para o chão
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 37

como se pudesse estar debaixo deles uma sepultura, mas isso


ocultávamo-lo nós um ao outro. O frio aproximava-se cada
vez mais de nós e por fim a mamã, quando chegava a vez das
pequenas rendas de bilros muito finas, dizia: «Ah, agora va­
mos ficar com flores de gelo nos olhos !», e assim era, porque
havia muito calor dentro de nós.
Quando as voltávamos a enrolar, suspirávamos ambos; era
um trabalho demorado, mas não queríamos que mais ninguém
o fizesse.
«Imagina só, se nós as tivéssemos de fazer!», dizia a mamã
e ficava com um ar verdadeiramente assustado. Eu não era ca­
paz de imaginar semelhante coisa. Depois dava por mim a
pensar em animaizinhos que estão sempre a tecer tudo aquilo
e que por isso se deixam em paz. Mas não, eram evidente­
mente mulheres.
«As que fizeram isto estão com certeza no Céu», achava eu,
cheio de admiração. Lembro-me que pensei então que havia
muito tempo que não perguntava nada sobre o Céu. A mamã
respirava fundo, as rendas estavam de novo reunidas.
Uns momentos depois, quando eu já esquecera o que aca­
bara de dizer, ela dizia muito devagar: «No Céu? Acho que es­
tão até à ponta dos cabelos metidas ali dentro. Vendo as coi­
sas assim: pode bem ser uma bem-aventurança eterna.
Sabe-se tão pouco acerca disso.»

42

Muitas vezes, quando havia visitas, dizia-se que os Schu­


lins viviam num espaço mais restrito. O grande palácio anti­
go ardera havia alguns anos, e agora habitavam nas duas es­
treitas alas laterais e viviam apertados. Mas o hábito de
receber estava-lhes na massa do sangue. Não podiam renun­
ciar a isso. Se alguém aparecia na nossa casa inesperadamen-
138 Rainer Maria Rilke

te, devia vir da casa dos Schulins; e se alguém olhava de re­


pente para o relógio tendo de partir completamente assustado,
era porque certamente o esperavam em Lystager.
É certo que a mamã j á não ia a lado nenhum, mas isso era
coisa que os Schulins eram incapazes de compreender. Não
havia outro remédio senão ir até à casa deles. E assim foi em
Dezembro, depois de alguns nevões precoces. Pediu-se o
trenó para as três horas, eu também ia. No entanto, da nossa
casa nunca se partia pontualmente. A mamã, que não gostava
que se avisasse que o carro estava pronto, chegava quase sem­
pre demasiado cedo e, como não encontrava ninguém, sempre
se lembrava de qualquer coisa que devia estar há muito tem­
po feita e começava lá em cima a procurar ou a arrumar, de
modo que ninguém sabia onde ela estava. Por fim estávamos
todos prontos e à espera dela. E quando finalmente ela já es­
tava no carro sentada e agasalhada, vinha a descobrir-se que
havia um esquecimento e tinham de ir buscar a Sieversen,
pois só ela sabia onde aquilo estava. Mas nessa altura partia­
-se bruscamente, antes que a Sieversen voltasse.
Naquele dia não houve propriamente claridade. As árvores
estavam como que desorientadas no nevoeiro, e era quase um
acto de teimosia partir por ele dentro. Entretanto a neve reco­
meçou a cair silenciosamente, e nessa altura parecia que até
os últimos traços tinham sido apagados e que viajávamos so­
bre uma página branca. Apenas se ouvia o tocar dos guizos,
mas não sabíamos ao certo onde ele estava. Houve um mo­
mento em que deixou de se ouvir, como se o último guizo se
tivesse gasto; mas depois reuniu-se novamente e estava em
uníssono e espalhou-se de novo com todo o vigor. A torre da
igrej a à esquerda podia ser pura imaginação. Mas a silhueta
do parque estava de repente à vista, alta, quase acima de nós
e encontrávamo-nos na longa álea. O som dos guizos não vol­
tou a desaparecer por completo; era como se estivesse sus­
penso em cachos nas árvores da esquerda e da direita. Depois
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 39

virámos e andámos à volta de qualquer coisa e passámos à di­


reita por qualquer coisa e parámos no meio.
Georg esquecera-se completamente de que a casa já não
existia; mas para todos nós ela estava lá neste momento. Su­
bimos a escadaria que conduzia ao antigo terraço e apenas nos
admirávamos por estar tão escuro. De súbito abriu-se uma
porta em baixo à esquerda e alguém exclamou: «por aqui ! », e
ergueu e agitou uma vela fumarenta. O meu pai soltou uma
gargalhada e disse: «Andamos por aqui errantes como fantas­
mas !», e voltou a ajudar-nos a descer as escadas.
«Mas agora mesmo estava ali uma casa ! », exclamou a ma­
mã e não conseguia habituar-se tão depressa a Wjera Schulin,
que chegara afogueada e a rir. Agora tínhamos naturalmente
de entrar rapidamente e não se pensou mais na casa. Num ves­
tíbulo apertado deixámos os casacos e os agasalhos e depois
ficámos logo no interior da casa à luz dos candeeiros e em
frente da lareira acesa.
Estes Schulins eram uma poderosa famt1ia de mulheres inde­
pendentes. Não sei se havia filhos varões. Apenas me lembro de
três irmãs: da mais velha, que fora casada com um marquês de
Nápoles, de quem se foi divorciando paulatinamente à força de
sucessivos processos ; a seguinte era Zoe, de quem se dizia que
não havia nada que ela não soubesse; e depois havia esta Wje­
ra, esta quente Wjera - sabe Deus o que é feito dela. A con­
dessa era uma Narischkin, mas de facto era a quarta irmã e, em
certos aspectos, a mais nova. Não sabia nada de nada e as filhas
tinham que estar continuamente a ensiná-la. E o bom do conde
Schulin sentia-se como se estivesse casado com todas estas mu­
lheres, dava uma volta e beijava-as um pouco ao acaso.
Estendendo a mão dava gargalhadas sonoras e cumprimen­
tava-nos atenciosamente. Eu era saudado pelas várias senho­
ras que me iam fazendo passar de umas às outras, depois de
me apertarem e interrogarem. Mas eu fizera o propósito firme
de me escapar para ir à procura da casa quando isso terminas-
1 40 Rainer Maria Rilke

se. Estava convencido de que ela estava lá naquele dia. Sair


não era assim tão difícil: podia passar como um cão por de­
baixo dos casacos, e a porta que dava para o vestíbulo estava
ainda encostada. Mas a porta de fora não queria ceder. Havia
vários dispositivos de segurança, cadeias e ferrolhos, que eu
não fui capaz de manejar com a pressa. De repente ela acabou
por ceder, mas com grande barulho, e antes que eu saísse fui
agarrado e puxado para trás.
«Alto, daqui ninguém pode fugir !», disse Wjera Schulin,
divertida. Inclinou-se para mim, e eu estava decidido a não
revelar nada a esta pessoa tão quente. Mas ela, como eu não
dizia nada, partiu sem mais do princípio que uma necessidade
natural me teria impelido para a porta. Pegou-me na mão e co­
meçou a andar e queria levar-me não sei onde, com um ar
meio familiar, meio arrogante. Este mal-entendido íntimo
ofendeu-me desmesuradamente. Soltei-me e lancei-lhe um
olhar zangado. «Quero ver a casa», disse eu com orgulho. Ela
não compreendeu.
«A casa grande lá fora junto à escadaria.»
«Meu palerma ! », disse ela, tentando agarrar-me, <<j á lá não
está casa nenhuma.» Eu insistia.
«Havemos de lá ir uma vez de dia», propôs ela, conciliado­
ra, «agora não podemos andar por lá a gatinhar. Há buracos e
lá atrás estão os viveiros de peixes do papá, que não podem
gelar. Senão podes cair lá dentro e transformas-te em peixe. »
E , ao dizer isso, i a empurrando-me à sua frente para as sa­
las iluminadas. Todos se encontravam sentados e conversa­
vam e eu fui-os observando um a um: é claro que eles só lá
vão quando ela não está lá, pensava eu com desprezo; se a
mamã e eu morássemos aqui, a casa havia de estar sempre lá.
A mamã parecia distraída, enquanto os outros falavam ao
mesmo tempo. Ela estava certamente a pensar na casa.
Zoe sentou-se ao meu lado e começou a fazer-me pergun­
tas. Tinha um rosto bem ordenado, no qual a compreensão se
As Anotações de Malte Laurids Brigge 141

renovava de tempos a tempos, como s e estivesse sempre a


compreender alguma coisa. O meu pai estava sentado um
pouco inclinado para a direita e prestava atenção à marquesa
que estava a rir. O conde Schulin estava de pé entre a mamã e
a esposa e estava a contar qualquer coisa. Mas a condessa
interrompeu-o a meio de uma frase, conforme vi.
«Não, filha, isso é imaginação tua», disse o conde com bo­
nomia, mas ficou subitamente com a mesma expressão in­
quieta no rosto inclinado para a frente, por cima das duas se­
nhoras. Ninguém conseguia demover a condessa da sua assim
chamada imaginação. Tinha um ar muito tenso, como alguém
que não quer ser incomodado. Fazia pequenos movimentos
negativos com as mãos moles cheias de anéis, alguém disse
«chh», e de repente fez-se um grande silêncio.
Atrás das pessoas estavam comprimidos os grandes objec­
tos da antiga casa, demasiado próximos. A pesada baixela de
prata da família brilhava e arqueava-se, como se a estivésse­
mos a ver por lentes de aumentar. O meu pai olhou à sua
volta com estranheza.
«A mamã cheira-lhe a qualquer coisa», disse Wjera Schulin
atrás dele, «e quando assim é temos todos que ficar calados,
pois ela cheira com os ouvidos» - ao dizê-lo, ela própria fi­
cou de sobrancelhas levantadas, muito atenta, toda ela nariz.
Os Schulins eram neste aspecto um pouco estranhos desde o
incêndio. Nas salas acanhadas e sobreaquecidas, surgia a cada
instante um cheiro e depois analisavam-no e cada um apresen­
tava a sua opinião. Zoe observava o fogão, prática e conscien­
ciosa. O conde andava de um lado para o outro, detinha-se uns
momentos em cada canto da sala, aguardava. «Não é aqui», di­
zia então. A condessa levantava-se e não sabia onde procurar.
O meu pai dava lentamente umas voltas sobre si, como se ti­
vesse o cheiro atrás dele. A marquesa, que desde logo supuse­
ra tratar-se de um mau cheiro, colocava o lenço diante do
rosto e olhava para cada um para saber se tinha desaparecido.
1 42 Rainer Maria Rilke

«Aqui, aqui ! », exclamava Wjera de vez em quando, como se


o tivesse encontrado. E à volta de cada palavra fazia-se um si­
lêncio estranho. No que me dizia respeito, eu cheirara com
toda a concentração. Mas de repente (seria o calor que havia
nas salas ou a luz intensa muito próxima?) apoderou-se de
mim, pela primeira vez na vida, algo semelhante ao medo de
fantasmas. Tomou-se-me claro que todas aquelas pessoas niti­
damente adultas, que até então tinham estado a conversar e a
rir, andavam agora agachadas às voltas, ocupando-se de algo
invisível; que elas admitiam que havia ali algo que não viam.
E era pavoroso que isso fosse mais forte do que todas elas.
O meu pavor aumentava. Sentia-me como se aquilo que
procuravam pudesse subitamente irromper de mim como uma
erupção cutânea; e então todos o veriam e apontar-me-iam.
Completamente desesperado, olhei para a mamã, que se en­
contrava do outro lado. Estava sentada curiosamente direita,
parecia estar à minha espera. Mal cheguei ao pé dela e senti
que ela tremia por dentro, fiquei com a certeza de que a casa
precisamente então voltava a cair.
«Malte, seu cobarde ! » , ouvia-se algures entre risos. Era a
voz de Wjera. Mas nós continuámos agarrados um ao outro e
juntos suportámos esses momentos; e permanecemos assim, a
mamã e eu, até que a casa desapareceu de novo por completo.

43

Mas os dias mais ricos de experiências quase inconcebíveis


eram exactamente os dias de aniversário. Já se sabia que a
vida se comprazia em esbater todas as diferenças ; no entanto,
nestes dias levantávamo-nos conscientes de um direito à ale­
gria que não se podia pôr em dúvida. Provavelmente tinham
estimulado em nós desde muito cedo o sentimento deste di­
reito, no tempo em que tudo se agarra e tudo se recebe verda-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 43

deiramente, e em que se ergue as coisas que de momento se


segura nas mãos, com uma imaginação imperturbável, até à
intensidade das cores fundamentais do desejo que nessa altu­
ra impera.
Mas depois vêm de súbito aqueles estranhos aniversários
em que, firmemente consolidados na consciência daquele di­
reito, vemos a insegurança dos outros. Gostaríamos certa­
mente de que nos vestissem como antes e depois aceitar tudo
o resto que vem ao nosso encontro. Mas, mal acordamos, al­
guém grita lá fora que o bolo ainda não chegou; ou ouvimos
o ruído de qualquer coisa que se parte, enquanto na sala ao
lado preparam a mesa dos presentes; ou alguém entra lá e dei­
xa a porta aberta e vemos tudo antes da altura própria. Este é
o momento em que nos acontece algo semelhante a uma ope­
ração. É uma intervenção cirúrgica curta, imensamente dolo­
rosa. Mas a mão que a executa é experiente e firme. Termina
num instante. E, mal se recuperou, já não pensamos em nós;
para salvar o aniversário é preciso observar os outros,
adiantar-se aos seus erros, fortalecê-los na sua presunção de
que dominam tudo perfeitamente. Eles não facilitam nada a
tarefa. Verifica-se que têm uma falta de jeito sem par, quase
estúpida. Conseguem entrar com presentes embrulhados que
se destinam a outras pessoas ; corremos ao encontro deles e
depois temos de fingir que andamos apenas a correr à volta da
sala, para fazer exercício, sem qualquer objectivo determina­
do. Querem-nos fazer uma surpresa e levantam com expecta­
tiva superficialmente imitada a camada inferior das caixas de
brinquedos, onde apenas há aparas de madeira; nesse mo­
mento é preciso aliviar-lhes o embaraço. Ou, quando o pre­
sente era um brinquedo mecânico, davam-lhe corda a mais,
estragando-o. Por isso é bom treinar a tempo o movimento de
empurrar discretamente com o pé um rato com a mola escan­
galhada ou outras coisas semelhantes: desta maneira é possí­
vel enganá-los muitas vezes e socorrê-los na sua vergonha.
1 44 Rainer Maria Rilke

Tudo isso se acabava por conseguir fazer bem, mesmo sem


dotes especiais. Apenas era preciso talento quando alguém se
esforçara por trazer, com ar importante e benévolo, um moti­
vo de alegria que já de longe se via ser um motivo de alegria
para outra pessoa muito diferente, um motivo de alegria com­
pletamente estranho: nem se conhecia ninguém a quem ele
agradasse, tão estranho era.

44

Que alguém soubesse narrar, narrar a seno, só deve ter


acontecido antes do meu tempo. Nunca ouvi ninguém narrar.
Outrora, quando Abelone me falava da juventude da mamã,
revelou-se que ela não sabia narrar. Dizem que o velho conde
Brahe ainda dominava essa arte. Vou escrever o que ela sabia
a esse respeito.
Abelone, nos seus tempos de rapariga, deve ter vivido um
período de urna grande e ampla movimentação. Os Brahe mo­
ravam então no centro da cidade, na Rua Larga, e tinham urna
vida social muito intensa. Quando ela, à noite, já tarde, che­
gava ao quarto, achava que estava tão cansada corno os ou­
tros. Mas nessa altura sentia de súbito a janela e, se bem en­
tendi, era capaz de contemplar a noite horas a fio e de pensar:
isto diz-me respeito. «Ficava ali corno um prisioneiro», dizia
ela, «e as estrelas eram a liberdade. » Nesse tempo era capaz
de adormecer sem qualquer dificuldade. A expressão «cair no
sono» não se aplica a este ano juvenil. O sono era algo que su­
bia com a pessoa, e de tempos a tempos tinha-se os olhos
abertos e estava-se deitado sobre urna superfície nova que ain­
da não era de modo algum a de cima. E depois acordava-se
antes do romper do dia; mesmo no Inverno, quando os outros
vinham ensonados e a más horas para o pequeno-almoço tar­
dio. Ao anoitecer, quando escurecia, só havia velas para to-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 45

dos, velas comuns. Mas estas duas velas, muito cedo naquela
nova obscuridade em que tudo começava, estas eram só para
o uso de uma pessoa. Colocadas no castiçal de dois braços,
brilhavam serenamente através dos pequenos abajures de tu­
le, ovais e com rosinhas pintadas, que de vez em quando era
preciso puxar para baixo. Isso não incomodava, pois por um
lado não havia qualquer pressa e, por outro, acontecia que era
preciso algumas vezes levantar os olhos e reflectir quando se
escrevia uma carta ou uma página do diário que se começara
a escrever muito antes, com uma letra bem diferente, assusta­
da e bela.
O conde Brahe vivia completamente à margem das filhas.
Achava ilusório aquilo a que muitos chamavam compartilhar
a vida com outros. («Sim, compartilhar», dizia ele.) Mas não
lhe desagradava que as pessoas lhe falassem das filhas. Ele
ouvia com atenção, como se elas vivessem noutra cidade.
Por isso foi algo fora do comum ele ter feito uma vez sinal
a Abelone depois do pequeno-almoço, para ela se aproximar:
«Parece que temos os mesmos hábitos, eu também escrevo
muito cedo. Podes ajudar-me.» Abelone ainda se lembrava
como se fosse no dia de ontem.
Logo na manhã seguinte foi conduzida ao gabinete de tra­
balho do pai, que tinha fama de inacessibilidade. Não teve
tempo de o observar, pois sentaram-na imediatamente à se­
cretária do lado oposto ao conde; aquele tampo parecia-lhe
uma planície em que os livros e os manuscritos empilhados fi­
guravam como povoações.
O conde começou a ditar. Os que pensavam que ele estava
a escrever as suas memórias não se enganavam muito. Mas
não se tratava de recordações políticas ou militares, como se
esperava com alguma curiosidade. «A essas, esqueço-as», di­
zia o velho conde secamente, quando o interrogavam sobre
factos como esses. Mas o que ele não queria esquecer era a
sua infância. Essa é que contava para ele. E, segundo ele acha-
1 46 Rainer Maria Rilke

va, era absolutamente normal que aqueles tempos tão remotos


o dominassem agora e que eles, quando olhava para dentro de
si, ali estivessem como numa clara noite de Verão nórdica, in­
tensificados e insones.
Muitas vezes levantava-se bruscamente e falava em direc­
ção às velas de tal modo que as chamas vacilavam. Ou então
era preciso riscar frases inteiras de novo, e punha-se a andar
violentamente de um lado para o outro, fazendo adejar o rou­
pão de seda verde-nilo. Enquanto tudo isso decorria havia ou­
tra pessoa presente, Sten, o velho criado de quarto do conde,
da Jutlândia, cuja função era, sempre que o conde se levanta­
va bruscamente, pousar depressa as mãos sobre os papéis sol­
tos, cobertos de notas e espalhados pela secretária. Sua Exce­
lência achava que o papel de agora não era bom, era
demasiado leve e voava à menor coisa. E Sten, do qual só se
via a alta metade superior, partilhava desta suspeita e sentava­
-se, por assim dizer, sobre as mãos, cego à luz e grave como
uma ave noctuma.
Este Sten passava as tardes de domingo a ler o teósofo Swe­
denborg, e nenhum dos criados se atreveria a entrar no seu
quarto, pois dizia-se que ele invocava espíritos. A família
de Sten tivera desde sempre contacto com espíritos, e Sten
estava muito especialmente predestinado a este convívio.
A sua mãe tivera uma aparição na noite em que o trouxe ao
mundo. Ele tinha olhos grandes e redondos e a outra extemi­
dade do olhar ficava sempre atrás daquele que fitava. O pai de
Abelone perguntava-lhe frequentemente pelos espíritos, como
é costume perguntar-se a alguém pelos seus parentes: «Eles
vêm; Sten?», dizia ele com benevolência. « É bom eles vi­
rem.»
O ditado prosseguiu durante alguns dias. Mas depois suce­
deu que Abelone não sabia escrever «Eckemfürde» . Era um
nome próprio e ela nunca o tinha ouvido. O conde, que no
fundo já andava à procura de um pretexto para deixar de e s-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 147

crever, porque a escrita era mais lenta do que as suas recorda­


ções, mostrou-se irritado.
«Ela não sabe corno se escreve», disse ele num tom cortan­
te, «e outros não o saberão ler. E serão capazes de ver o que
aí digo?», continuou a dizer, zangado, sem tirar os olhos de
Abelone.
«Serão capazes de ver este Saint-Germain?», gritou-lhe ele.
«Dissemos Saint-Germain? Risca e escreve: o marquês de
Belrnare.»
Abelone riscou e escreveu. Mas o conde continuou a falar
tão depressa que não era possível acompanhá-lo.
«Ele não suportava crianças, este excelente Belrnare, mas a
mim, pequeno corno eu era, sentou-me sobre o seu joelho, e
veio-me à ideia morder os seus botões de diamante. Achou
graça. Riu-se e levantou-me a cabeça até os nossos olhos se
encontrarem: "Tens uns dentes óptirnos", disse ele, "dentes
empreendedores . . . '' - Mas eu reparei nos olhos dele. Mais
tarde fiz muitas viagens. Vi os olhos mais variados, mas po­
des crer que não voltei a ver olhos corno aqueles. Para estes
olhos as coisas não tinham de estar presentes, eles tinham-nas
em si. Já ouviste falar de Veneza? Bem. Digo-te que eles te­
riam visto Veneza nesta sala, de tal modo que ela estaria tão
presente corno a secretária. Urna vez eu estava sentado num
canto a ouvi-lo falar da Pérsia a meu pai, muitas vezes parece­
-me que as mãos ainda me cheiram àquilo. O meu pai
estimava-o, e Sua Alteza o Landegrave era urna espécie de
discípulo seu. Mas havia evidentemente muita gente que lhe
levava a mal ele só acreditar no passado, quando ele estava
dentro dele. Não eram capazes de compreender que essas coi­
sas só têm sentido quando se nasce com elas.»
«Üs livros estão vazios», gritava o conde, com um gesto de
cólera dirigido às paredes, «O sangue, isso é que importa,
nele é que é preciso saber ler. Este Belrnare tinha histórias es­
tranhas e imagens singulares no sangue; ele podia abri-lo
148 Rainer Maria Rilke

onde quisesse, encontrava sempre alguma coisa descrita; ne­


nhuma página do seu sangue estava em branco. E quando se
isolava de vez em quando para folhear sozinho, chegava
àquelas passagens sobre a alquimia e sobre as pedras e sobre
as cores. Por que não havia de estar lá tudo isso? Está certa­
mente nalgum lado.»
«Este homem bem poderia ter vivido com uma só verdade,
se estivesse sozinho. Mas não era nenhuma bagatela estar a sós
com essa verdade. E ele não era tão desprovido de bom gosto
que convidasse pessoas a visitarem-no quando estava por ela
acompanhado; ela não deveria cair nas bocas do mundo: para
isso ele era demasiado oriental. "Adeus, Senhora minha",
dizia-lhe ele de acordo com a verdade, "até outra vez. Talvez
dentro de mil anos estejamos um pouco mais fortes e menos
perturbados. A vossa beleza, Senhora, apenas está a crescer",
dizia ele, e não se tratava de mera cortesia. Assim se ia embo­
ra e erigia no exterior, para as pessoas, o seu jardim zoológico,
uma espécie de Jardin d' Acclimatation para as espécies maio­
res de mentiras que ainda não tínhamos visto no nosso país, e
um palmar de exageros e um pequeno e cuidado figueiral de
falsos mistérios. Então elas acorriam, vindas de toda a parte, e
ele andava nesse espaço com diamantes nas fivelas dos sapa­
tos e dedicava-se inteiramente aos seus convidados.»
«Uma existência superficial, isso? No fundo era antes um
gesto de cavalheirismo para com a sua dama, e ele manteve­
-se bastante bem nesse tipo de existência.»
Já havia algum tempo que o velho deixara de falar para
Abelone, da qual se esquecera. Andava como um louco de um
lado para o outro e deitava olhares de desafio a Sten, como se
Sten devesse em determinado momento transformar-se na­
quele em que o velho estava a pensar. Mas Sten ainda não se
tinha transformado.
«Dever-se-ia vê-lo», continuou o conde Brahe obstinada­
mente. «Houve uma altura em que ele era muito visível, em-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 149

hora em muitas cidades as cartas que recebia não estivessem


endereçadas a ninguém: no envelope apenas constava o lugar,
mais nada. Mas eu vi-o. »
«Ele não era belo.» O conde riu-se com estranha pressa.
«Também não era o que as pessoas chamam importante ou
distinto: havia sempre outros mais distintos junto dele. Era ri­
co: mas isso era para ele apenas como que uma ideia, não era
coisa que alguém pudesse levar a sério. Era bem constituído,
ainda que outros tivessem melhor porte. Nessa altura eu não
era capaz de julgar se ele era espirituoso e mais um ou outro
aspecto a que se dá importância: mas ele era.»
O conde, trémulo, de pé, fez um movimento, como se esti­
vesse a colocar algo no espaço de modo a permanecer.
Neste momento apercebeu-se de Abelone.
«Estás a vê-lo?», perguntou-lhe, em tom imperioso. E de
repente pegou num candelabro de prata e iluminou-lhe o ros­
to, ofuscando-a.
Abelone lembrava-se de o ter visto.
Nos dias seguintes, Abelone era chamada regularmente e o
ditado prosseguiu, depois deste incidente, de forma muito
mais calma. O conde reconstituía, a partir de toda a espécie de
manuscritos, as suas recordações mais recuadas do círculo de
Bernstorff, no qual o seu pai tinha desempenhado um deter­
minado papel. Abelone estava agora tão habituada às particu­
laridades do seu trabalho que, quem visse os dois, podia tomar
facilmente a sua eficiente colaboração por uma verdadeira
amizade.
Uma vez, quando Abelone já se ia retirar, o velho apro­
ximou-se dela e era como se tivesse nas mãos atrás das cos­
tas uma surpresa para ela. «Amanhã vamos escrever sobre Ju­
lie Reventlow», disse ele, e saboreava as palavras: «Era uma
santa.»
Provavelmente Abelone olhou-o com ar incrédulo.
«Sim, sim, ainda existem pessoas assim», insistiu ele em
1 50 Rainer Maria Rilke

tom de comando, «ainda existem pessoas assim, condessa


Abel. »
Tomou a s mãos de Abelone e abriu-as como s e fossem um
livro.
«Ela tinha os estigmas», disse ele, «aqui e aqui. » E com o
dedo indicador frio tocou-lhe com dureza e brevidade nas
duas palmas das mãos.
Abelone desconhecia a expressão «estigmas». Vamos ver,
pensou ela; estava bastante impaciente por ouvir falar da san­
ta que o seu pai ainda conhecera. Mas não a foram buscar,
nem na manhã seguinte, nem mais tarde.
«Na vossa casa continuou-se a falar com frequência da con­
dessa Reventlow», concluiu Abelone laconicamente, quando
lhe pedi que contasse mais. Ela parecia fatigada; também di­
zia que se esquecera da maior parte das coisas. «Mas ainda
sinto muitas vezes os dois pontos assinalados», disse ela sor­
rindo, e sem poder deixar de olhar quase com curiosidade
para as suas mãos vazias.

45

Ainda antes da morte do meu pai tudo se tinha modificado.


Ulsgaard já não nos pertencia. O meu pai morreu na cidade,
no andar de uma casa que me parecia hostil e estranha. Nessa
altura já eu estava no estrangeiro e cheguei demasiado tarde.
Tinham-no amortalhado num quarto que dava para o pátio,
entre duas filas de círios altos. O cheiro das flores era tão in­
compreensível como o ruído de várias vozes simultâneas.
O seu belo rosto, em que os olhos j á tinham sido fechados, os­
tentava uma expressão de cortês recordação. Estava vestido
com o uniforme de capitão de caçadores, mas por qualquer ra­
zão haviam-lhe colocado a faixa branca em vez da azul. As
mãos não estavam postas, mas obliquamente sobrepostas, e
As Anotações de Malte Laurids Brigge 151

pareciam imitadas e sem sentido. Tinham-me contado rapida­


mente que ele havia sofrido muito: isso não deixara vestígios.
As suas feições estavam arrumadas como os móveis num
quarto de hóspedes que alguém acaba de abandonar. Tinha a
impressão de já o ter visto morto muitas vezes, tão bem co­
nhecia tudo aquilo.
Novo era apenas o ambiente, novo de um modo desagradá­
vel. Novo era este quarto opressivo, com janelas do lado opos­
to, provavelmente janelas de outras pessoas. Novo era que Sie­
versen entrasse de vez em quando e nada fizesse. Sieversen
envelhecera. Depois queriam que eu tomasse o pequeno­
-almoço. Anunciaram-mo várias vezes. Mas naquele dia não ti­
nha vontade de tomar o pequeno-almoço. Não notava que que­
riam que eu saísse; por fim, como eu não me ia embora,
Sieversen deu de algum modo a entender que estavam ali os
médicos. Não percebia porquê. Havia ainda alguma coisa a fa­
zer, disse Sieversen e olhou-me esforçadamente com os seus
olhos vermelhos. Então entraram, algo precipitadamente, dois
cavalheiros: eram os médicos. O primeiro baixou bruscamente
a cabeça, como se tivesse chifres e quisesse investir, para nos
olhar por cima dos óculos: primeiro a Sieversen, depois a mim.
Inclinou-se com um formalismo estudantil.
«Ü senhor capitão de caçadores tinha ainda um desejo»,
disse ele do mesmo modo como entrou; dava de novo a im­
pressão de que ia precipitar-se. Não sei como, obriguei-o a di­
rigir o olhar através dos óculos. O colega dele era um homem
loiro e cheio, de casca fina; ocorreu-me que seria fácil fazê-lo
corar. Depois houve uma pausa. Era estranho o capitão de ca­
çadores ainda ter desejos agora.
Sem querer, olhei novamente o rosto belo e regular. E en­
tão fiquei a saber que ele queria ter a certeza. No fundo, ele
sempre a desejara. Agora ficava a tê-la.
«Üs senhores vieram por causa da perfuração do coração:
façam favor. »
152 Rainer Maria Rilke

Inclinei-me e recuei. Os dois médicos fizeram uma vénia


simultaneamente e começaram de imediato a entender-se
quanto ao trabalho. Alguém já estava também a afastar os cí­
rios. Mas o mais velho deu ainda alguns passos na minha di­
recção. Já um tanto próximo, inclinou-se para diante, como
para poupar o resto do caminho, e olhou-me com ar zangado.
«Não é necessário», disse ele, «quer dizer, acho que talvez
seja melhor, se o senhor. . . »
Pareceu-me negligente e gasto na sua atitude parcimoniosa
e apressada. Voltei a inclinar-me. Aconteceu que já estava a
inclinar-me de novo.
«Obrigado», disse eu laconicamente. «Não vou incomo­
dar.»
Eu sabia que era capaz de o suportar e que não havia qual­
quer motivo para me furtar à situação. Assim tinha de ser. Era
esse talvez o sentido de tudo aquilo. Eu também nunca vira
perfurar o peito a ninguém. Pareceu-me razoável não declinar
uma tão curiosa experiência, uma vez que ela se apresentava
naturalmente e sem reservas. Já nessa altura não acreditava
em desilusões, portanto nada havia a temer.
Não, não: nada se pode imaginar neste mundo, nem a coisa
mais ínfima. Tudo é de tal modo composto de pormenores
únicos que não se podem prever. Ao imaginar, passamos por
cima deles e não notamos a sua falta, tão rapidamente se ima­
gina. Mas as realidades são lentas e indescritivelmente minu­
ciosas.
Quem se lembraria, por exemplo, desta resistência? Mal o
largo e elevado peito foi posto a descoberto, já o pequeno ho­
mem apressado encontrara o ponto em questão. Mas o instru­
mento aplicado com rapidez não penetrou. Tinha a sensação
de que o tempo saíra completa e subitamente do quarto.
Encontrávamo-nos como que num quadro. Mas nessa altura o
tempo desmoronou-se com um pequeno ruído deslizante, e
passou a haver mais do que se podia empregar. De repente
As Anotações de Malte Laurids Brigge 153

ouviu-se bater nalgum sítio. Nunca ouvira bater assim: uma


dupla pancada quente e fechada. O meu ouvido transmitiu-a e
vi simultaneamente que o médico tinha atingido o fundo. Mas
levou algum tempo até se juntarem em mim as duas impres­
sões. Sim, sim, pensava eu, agora já lá chegou. A pancada, em
termos de ritmo, era quase maliciosa.
Olhei para o homem que agora já conhecia há tanto tempo.
Não, ele mantinha o autodomínio: um cavalheiro que traba­
lhava depressa e com competência, e que tinha de se ir embo­
ra já em seguida. Nele não havia qualquer indício de prazer ou
de satisfação. Apenas nas têmporas, do lado esquerdo, se ha­
viam levantado alguns cabelos devido a algum instinto anti­
go. Retirou cuidadosamente o instrumento e ficou no seu lu­
gar algo semelhante a uma boca, da qual saiu sangue duas
vezes seguidas, como se ela dissesse alguma coisa de duas sí­
labas. O jovem médico loiro retirou o sangue rapidamente
com algodão, fazendo um gesto elegante. E então a ferida fi­
cou tranquila, como um olho fechado.
É de supor que eu me inclinei de novo, desta vez sem o fa­
zer conscientemente. Pelo menos fiquei surpreendido por me
encontrar só. Alguém tinha recomposto o uniforme e a faixa
branca estava colocada como antes. Mas agora o capitão de
caçadores estava morto, e não era só ele que o estava. Agora
estava trespassado o coração, o nosso coração, o coração da
nossa linhagem. Agora fazia parte do passado. Isto era, pois,
o quebrar do elmo: «Hoje Brigge e nunca mais», dizia algo
em mim.
Não pensava no meu coração. E quando mais tarde me lem­
brei dele, fiquei pela primeira vez absolutamente seguro de
que não contava neste contexto. Era apenas um coração parti­
cular, que já estava prestes a recomeçar desde o princípio.
1 54 Rainer Maria Rilk:e

Sei que me julguei incapaz de voltar a partir imediatamen­


te. Primeiro é preciso deixar tudo em ordem, repetia para co­
migo. O que era preciso deixar em ordem não era claro para
mim. Não havia, por assim dizer, nada a fazer. Passeava ao
acaso pela cidade e verificava que ela se modificara.
Agradava-me sair do hotel em que estava hospedado e ver que
agora era uma cidade para adultos que ali estava, que se re­
compunha para mim, quase como para um estranho. Tudo se
tomara um pouco mais pequeno, e eu deambulava pela Rua
Linha Longa até ao farol e voltava para trás. Quando chegava
às proximidades da Rua Amália bem podia acontecer que de
algum lado saísse algo cuja influência fora reconhecida du­
rante anos e que voltava a tentar exercer o seu poder. Havia
ali certas janelas de canto ou arcos de porta ou lanternas que
sabiam muito a meu respeito e a partir daí me ameaçavam.
Olhei-as de frente e fiz-lhes sentir que vivia no Hotel Fénix e
que podia partir a qualquer momento. Mas isso não tranquili­
zava a minha consciência. Vinha-me ao de cima a suspeita de
que nenhuma destas influências e circunstâncias fora ainda
verdadeiramente ultrapassada. Um dia tinha-as deixado em
segredo, tão inacabadas como estavam. Também a infância
haveria de algum modo de ser completamente realizada, se
não se quisesse dá-la por perdida para sempre. E, à medida
que ia percebendo como a perdera, sentia também que nunca
haveria de ter mais nada a que pudesse apelar.
Passava diariamente algumas horas na Rua Dronningens
Tvaergade, nos quartos acanhados que pareciam ofendidos
como todas as casas de aluguer em que alguém morreu. An­
dava de cá para lá entre a secretária e o grande fogão de la­
drilhos brancos e queimava os papéis do capitão de caçadores.
Começara por lançar ao fogo a correspondência que estava
junta e atada, mas os pequenos pacotes estavam excessiva-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 155

mente apertados e só carbonizavam nas pontas. Tive de vencer


alguma relutância para os desatar. A maior parte deles tinha
um cheiro forte e persuasivo, que me penetrava como se qui­
sesse também agitar recordações dentro de mim. Eu não tinha
nenhumas. Também podia acontecer que deslizassem fotogra­
fias, que eram mais pesadas do que o resto; essas fotografias
ardiam com uma lentidão incrível. Não sei como sucedeu, mas
subitamente imaginei que a fotografia de Ingeborg poderia es­
tar entre elas. Mas sempre que as olhava eram mulheres ma­
duras, magníficas, claramente belas, que me levavam a outros
pensamentos. Ficou mesmo provado que eu afinal não estava
assim tão carente de recordações. Foi precisamente nesses
olhos que eu me encontrei muitas vezes, quando estava a ficar
crescido e atravessava a rua com o meu pai. Nessa altura po­
diam envolver-me num olhar lançado do interior de um carro,
olhar do qual dificilmente conseguia sair. Mas eu sabia que
elas nesse momento me comparavam com ele e que a compa­
ração não me era favorável. Não, seguramente o capitão de ca­
çadores não precisava de temer comparações.
Pode ser que eu agora saiba algo que ele temeu. Quero ex­
plicar como cheguei a esta suposição. No fundo da sua cartei­
ra encontrava-se um papel, há muito dobrado, mole, quebrado
nas dobras. Li-o antes de o queimar. Estava escrito cuidado­
samente, numa letra firme e regular, mas notei de imediato
que se tratava apenas de uma cópia.
«Três horas antes da morte», assim começava e dizia res­
peito ao rei Christian IV. Naturalmente não sei reproduzir tex­
tualmente o seu conteúdo. Três horas antes da morte desejou
levantar-se. O médico e o criado de quarto Wormius
ajudaram-no a pôr-se de pé. Ficou de pé um pouco inseguro,
mas estava de pé, e eles vestiram-lhe o roupão pespontado.
Depois sentou-se de repente aos pés da cama e disse algo. Era
imperceptível. O médico continuava a segurar-lhe a mão es­
querda para que o rei não caísse de costas para cima da cama.
156 Rainer Maria Rilke

Assim ficaram sentados, e o rei dizia, de tempos a tempos, a


custo e obscuramente, o que era incompreensível. Por fim, o
médico começou a incutir-lhe ânimo; esperava conseguir gra­
dualmente adivinhar o que o rei queria dizer. Algum tempo
depois, o rei interrompeu-o e disse subitamente com clareza:
« Ó doutor, doutor, como se chama?» O médico teve dificul­
dade em lembrar-se.
«Sperling, Sua Alteza.»
Mas não se tratava de nada disso. O rei, mal percebeu que
o entendiam, arregalou muito o olho direito, o único que lhe
restava, e disse com todo o seu rosto a palavra que a sua lín­
gua modelava havia horas, a única que ainda lhe restava:
«Dõden», disse ele, «Dõden.» 1
Mais nada estava escrito na folha. Li-a várias vezes, antes
de a queimar. E lembrei-me de que o meu pai sofrera muito
ultimamente. Assim me tinham contado.

47

Desde então tenho reflectido muito sobre o medo da morte,


não sem ter em conta certas experiências pessoais. Creio que
bem posso dizer que o senti. Assaltava-me em plena cidade,
no meio das pessoas, muitas vezes sem qualquer motivo. Ou­
tras vezes, pelo contrário, acumulavam-se os motivos ; quan­
do, por exemplo, alguém morria sobre um banco e todos o ro­
deavam e olhavam, e ele já estava para além do medo: então
eu sentia o medo dele. Ou em Nápoles, outrora: no banco da
frente do eléctrico estava sentada uma jovem e morreu. Pri­
meiro parecia um desmaio, o eléctrico ainda continuou a an­
dar durante algum tempo. Mas depois não havia dúvida algu­
ma de que tínhamos de facto de parar. E atrás de nós os carros

1 A morte, a morte.
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 57

ficavam parados e formava-se um engarrafamento, como se


nesta direcção nunca mais se pudesse prosseguir. A rapariga
gorda e macilenta pudera, assim, morrer calmamente, encos­
tada à vizinha de banco. Mas a mãe dela não consentiu. Pôs­
-lhe toda a espécie de dificuldades. Descompôs-lhe o vestido
e deitou-lhe alguma coisa na boca que já nada retinha.
Esfregou-lhe a testa com um líquido que alguém trouxera, e
quando então os olhos se reviraram um pouco, começou a
abaná-la para que o olhar voltasse novamente para a frente.
Gritava para dentro destes olhos que não ouviam, arrastava e
puxava de um lado para o outro todo o corpo como se fosse
uma boneca, e por fim tomou balanço e bateu com toda a
força na cara gorda para que não morresse. Então tive medo.
Mas já antes tivera medo. Por exemplo, quando o meu cão
morreu. Ele que me acusou de uma vez para sempre. Estava
muito doente. Eu tinha passado todo o dia ajoelhado ao pé
dele e, de repente, deu um latido sacudido e breve, como cos­
tumava fazer quando um estranho entrava na sala. Semelhan­
te latido era entre nós, de algum modo, uma combinação para
tais casos, e olhei maquinalmente para a porta. Mas aquilo já
se encontrava dentro dele. Inquieto, procurei o seu olhar, e ele
também procurou o meu; mas não para se despedir de mim.
Ele olhou para mim duramente e com estranheza. Censurava­
-me por ter deixado entrar aquilo. Estava convencido de que
eu o teria podido evitar. Assim se demonstrava que ele sem­
pre me tinha sobrestimado. E não havia tempo para lho expli­
car. Ele olhou-me com estranheza e com ar solitário, até que
tudo acabou.
Ou então tinha medo quando no Outono, depois das pri­
meiras geadas noctumas, as moscas entravam em casa e se
voltavam a animar ao calor. Estavam singularmente ressequi­
das e assustavam-se com o seu próprio zumbido; via-se que já
não sabiam o que faziam. Ali ficavam horas a fio e
abandonavam-se até se lembrarem de que ainda viviam; então
158 Rainer Maria Rilke

lançavam-se às cegas para qualquer lado e não percebiam o


que ali estavam a fazer, e ouvia-se corno caíam mais longe e
acolá e noutro sítio. E por fim rastej avam por todo o lado e co­
briam lentamente de morte toda a sala.
Mas até quando eu estava só era capaz de ter medo. Porque
haveria de fazer corno se aquelas noites não existissem, aque­
las em que me sentava com medo da morte e me agarrava à
ideia de que estar sentado era afinal algo vivo, pois os mortos
não estavam sentados? Isso acontecia sempre num dos quar­
tos ocasionais em que inevitavelmente me abandonavam
quando eu me sentia mal, corno se temessem ser interrogados
ou envolvidos nas minhas maldosas causas. Ali ficava senta­
do e provavelmente tinha um aspecto tão terrível que nada
conseguia coragem para se pôr do meu lado. Nem sequer a
luz, à qual tinha mesmo feito o favor de acender, queria saber
de mim. Ardia tão para si corno se estivesse num quarto va­
zio. A minha última esperança era então sempre a janela. Ima­
ginava que lá fora podia estar algo que me pertencia, também
nesse momento, também nesta súbita pobreza da morte. Mas
mal olhara lá para fora, já desejava que a janela estivesse tran­
cada, fechada, corno a parede. Pois agora sabia que lá fora
tudo continuava com a mesma indiferença, que também lá
fora apenas havia a minha solidão. A solidão que eu fizera
desabar sobre mim e cuja grandeza excedia j á o meu coração.
Lembrava-me de pessoas que eu abandonara outrora e não
compreendia corno era possível abandonar pessoas.
Meu Deus, meu Deus, se me aguardam ainda semelhantes
noites, deixa-me ao menos um daqueles pensamentos que eu
por vezes era capaz de ter. Não é assim tão insensato o que pe­
ço; pois sei que eles saíram precisamente do medo, por o meu
medo ser assim tão grande. Quando eu era pequeno, davam­
-me bofetadas e diziam-me que era cobarde. Era assim porque
eu ainda não sabia bem ter medo. Mas desde então aprendi a
ter medo com o medo verdadeiro, que apenas aumenta quan-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 159

do aumenta a força que o produz. Não fazemos a menor ideia


desta força senão no nosso medo. Pois ela é tão incompreen­
sível, tão inteiramente contra nós, que o nosso cérebro se de­
sagrega no ponto em que nos esforçamos por pensá-la. E, no
entanto, desde há algum tempo, creio que é a nossa força,
toda a nossa força, que ainda é demasiado forte para nós.
É verdade que a não conhecemos, mas não é precisamente o
que nos é mais próprio que nós mais desconhecemos? Muitas
vezes ponho-me a pensar como nasceram o Céu e a Morte: foi
porque afastámos de nós o que nos era mais precioso, porque
havia ainda tantas outras coi s as a fazer primeiro, e porque es­
sas coisas preciosas não estavam em segurança em nós, seres
tão ocupados. Agora passaram séculos sobre isso e habituá­
mo-nos a coisas menores. Já não reconhecemos o que nos é
próprio e assustamo-nos perante a sua extrema grandeza. Não
será isto possível?

Aliás compreendo agora inteiramente que se traga, todos es­


tes anos, no interior da carteira a descrição da hora da morte de
alguém. Nem sequer seria preciso escolher uma especialmen­
te selecta - todas têm algo quase raro. Não será possível, por
exemplo, imaginar alguém que se põe a copiar a descrição da
morte de Felix Arvers? Foi no hospital. Morreu de uma ma­
neira suave e serena, e uma freira talvez julgasse que ele, nes­
ses momentos, estivesse mais adiantado do que na realidade
estava. Ela disse lá para fora, bastante alto, uma qualquer indi­
cação sobre o lugar onde se encontrava isto e aquilo. Era uma
freira muito inculta; nunca tinha visto escrita a palavra «corre­
dor», que nesse momento não pode deixar de dizer; assim
aconteceu que ela disse «coledor», julgando que era assim que
se dizia. Então Arvers afastou a morte. Pareceu-lhe necessário
1 60 Rainer Maria Rilke

esclarecer primeiro este assunto. Ficou completamente lúcido


e explicou-lhe que se devia dizer «corredor». Depois morreu.
Ele era um poeta e detestava a imprecisão; ou talvez lhe im­
portasse apenas a verdade; ou talvez o incomodasse ter de le­
var consigo, como última impressão, que o mundo continuava
a sua marcha de um modo tão negligente. Já não será preciso
apurar a razão decisiva. Mas não se deve pensar que era pe­
dantismo. De outro modo, a mesma censura recairia sobre
S . João de Deus que, no momento da sua morte, se levantou de
um salto e ainda chegou a tempo de cortar, no jardim, a corda
de um homem que se acabara de enforcar, facto do qual tivera
conhecimento miraculoso na fechada tensão da sua agonia.
Também para ele a verdade é que contava.

49

Há um ser totalmente inofensivo. Quando aparece diante


dos teus olhos, mal dás por ele e logo o esqueces. Mas quan­
do ele, mantendo-se invisível, chega de algum modo ao ouvi­
do, aí se desenvolve, sai por assim dizer da casca, e já houve
casos em que penetrou até ao cérebro e nele cresceu devasta­
doramente, de modo semelhante aos pneumococos do cão que
penetram pelo nariz.
Este ser é o vizinho.
Até agora, desde que ando sozinho de lugar em lugar, tenho
tido inúmeros vizinhos: de cima e de baixo, da direita e da es­
querda, muitas vezes das quatro espécies ao mesmo tempo.
Poderia pura e simplesmente escrever a história dos meus vi­
zinhos - seria a obra de uma vida. É verdade que seria mais
a história dos sintomas de doenças que me causaram; mas eles
partilham desta característica com todos os seres da sua espé­
cie: serem apenas comprováveis pelas perturbações que pro­
vocam em certos tecidos.
As Anotações de Malte Laurids Brigge 161

Tive vizinhos imprevisíveis e outros muito regulares.


Detive-me a tentar descobrir a lei que norteia os primeiros;
pois era evidente que também a tinham. E, quando os pontuais
não regressavam à noite a casa, começava a imaginar o que
lhes poderia ter acontecido, e deixava a minha vela arder e ti­
nha medo como uma jovem esposa. Tive vizinhos que se en­
contravam de momento numa atitude de ódio, e vizinhos que
estavam envolvidos em amores violentos; ou então vivia o
momento em que um se transformava rapidamente no outro,
a meio da noite, e nessa altura não era sequer possível pensar
em dormir. E podia mesmo verificar-se que o sono, de facto,
não é assim tão frequente como se julga. Os meus dois vizi­
nhos de S . Petersburgo, por exemplo, não se preocupavam
muito com o sono. Um deles ficava a pé e tocava violino, e
estou certo de que, enquanto o fazia, olhava para as casas da
frente completamente despertas, que não deixavam de estar
iluminadas durante aquelas inverosímeis noites de Agosto. Do
vizinho da direita sei, de resto, que estava deitado; no tempo
em que lá estive j á não se levantava de todo. Até ficava com
os olhos fechados; mas não se podia dizer que dormia. Ele es­
tava deitado e ia dizendo para consigo longos poemas, poe­
mas de Puschkin e Nekrassow, num tom de voz como o das
crianças que recitam poemas quando lhes é pedido. E apesar
da música do meu vizinho da esquerda, era este com os seus
poemas que se encasulava na minha cabeça, e sabe Deus o
que de lá sairia, se o estudante que o visitava de vez em quan­
do não se tivesse um dia enganado na porta. Ele contou-me a
história do seu amigo, e aconteceu que era de certo modo tran­
quilizadora. De qualquer modo, era uma história literal, uní­
voca, que fez desaparecer as muitas minhocas das minhas su­
posições.
Este pequeno funcionário do lado tivera a ideia, num do­
mingo, de resolver um problema estranho. Partiu do princípio
de que iria viver muito tempo, digamos ainda por uns cin-
1 62 Rainer Maria Rilke

quenta anos. A magnanimidade que mostrou para consigo


próprio fez com que ficasse com uma disposição radiante.
Mas quis ainda superar-se a si mesmo. Pensou que se poderia
converter estes anos em dias, horas, minutos, sim, e, se se fos­
se capaz de o suportar, em segundos. E ele fez e tomou a fa­
zer contas, obtendo um resultado que jamais vira até então.
Teve tonturas. Foi preciso recompor-se um pouco. Que o tem­
po é precioso sempre ouvira dizer, e admirava-se de que não
tomassem medidas de segurança em relação a um homem
com tanto tempo. Como seria fácil roubá-lo ! Depois voltou à
sua boa disposição habitual, quase alegre, vestiu a sua peliça
para parecer um pouco mais largo e imponente, e ofereceu-se
a si próprio como presente todo aquele fabuloso capital, diri­
gindo a si mesmo a palavra com um pouco de complacência:
«Nikolaj Kusmitsch», disse ele com benevolência e imagi­
nava que ainda estava, além disso, sentado, sem peliça, magro
e miserável, no sofá de crina de cavalo, «espero, Nikolaj Kus­
mitsch», disse ele, «que não se envaideça com a sua riqueza.
Lembre-se sempre de que ela não é o mais importante; há
gente pobre totalmente respeitável; há até fidalgos e filhas de
generais que caíram na pobreza, que andam pelas ruas a ven­
der qualquer coisa.» E o benfeitor acrescentava ainda varia­
dos exemplos conhecidos em toda a cidade.
O outro Nicolaj Kusmitsch, o que estava sentado no sofá de
crina de cavalo, o feliz contemplado, não tinha ainda qualquer
ar de soberba, poder-se-ia até admitir que seria sensato. De
facto, não alterou em nada o seu estilo de vida modesto e re­
gular, e passava os domingos a pôr a sua conta em ordem.
Mas j á algumas semanas depois reparou que gastara incrivel­
mente muito. Vou passar a fazer restrições, pensou ele. Passou
a levantar-se mais cedo, a lavar-se menos minuciosamente, a
tomar o seu chá em pé, a correr para o escritório e a regressar
demasiado cedo. Em tudo poupava um pouco de tempo. Mas
no domingo não restava nada do que poupara. Então com-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 63

preendeu que fora enganado. Eu não devia ter feito a conver­


são, dizia para consigo. Quanto não dura um ano ! Mas estes
trocos infames desaparecem, não se sabe como. E veio uma
tarde feia em que ele, sentado no canto do sofá, esperava
pelo cavalheiro de peliça, a quem queria exigir a devolução
do seu tempo. E queria correr o ferrolho e não o deixar sair
sem antes ele lhe ter dado a soma correspondente. «Em no­
tas», pensava dizer, «de dez anos, é o que me convém.» Qua­
tro notas de dez e uma de cinco e o resto ficava para ele, c' os
diabos. Sim, estava disposto a oferecer-lhe o resto, só para
não haver problemas. Exasperado, continuava à espera no seu
sofá de crina de cavalo, mas o cavalheiro não veio. E ele,
Nikolaj Kusmitsch, que se vira com tanta facilidade, umas se­
manas atrás, ali sentado, agora que estava realmente sentado
não era capaz de imaginar o outro Nikolaj Kusmitsch, de pe­
liça e magnânimo. Sabe Deus o que era feito dele, provavel­
mente descobriram as suas falcatruas e agora estava preso al­
gures. Com certeza ele não fora o único a quem causara
desgraças. Esses impostores trabalham sempre em grande.
Lembrou-se de que deveria haver uma repartição estatal,
uma espécie de Banco do Tempo, onde pudesse pelo menos
trocar uma parte dos seus miseráveis segundos. Ao fim e ao
cabo eram autênticos. Nunca ouvira falar de tal instituição,
mas na lista de endereços haveria certamente alguma coisa do
género, em T, ou talvez também se chamasse «Banco para
Tempo» ; era fácil procurar em B . Eventualmente também seria
de ter em consideração a letra 1, pois era presumível que fosse
um Instituto Imperial; isso corresponderia à sua importância.
Mais tarde, Nikolaj Kusmitsch asseverava sempre que na­
quele domingo à noite não tinha bebido nada, embora, como
é facilmente compreensível, se encontrasse bastante deprimi­
do. Estava pois completamente sóbrio quando aconteceu o
que se segue, tanto quanto é possível dizer o que aconteceu.
Talvez estivesse um pouco adormecido no canto do seu sofá,
1 64 Rainer Maria Rilke

hipótese fácil de colocar. Este breve sono proporcionou-lhe


primeiro um grande alívio. Meti-me com os números, dizia
para consigo. Ora eu não percebo nada de números. Mas é
claro que não se deve atribuir-lhes um significado exagerado;
eles constituem, apenas, por assim dizer, uma organização
proveniente do Estado, por causa da ordem. Ninguém viu, a
não ser no papel, uma tal organização. Estava fora de questão
que na vida social viesse um sete ou um vinte e cinco ao en­
contro de alguém. Semelhante coisa não existia de todo. E en­
tão dera-se esta pequena confusão, fruto de uma completa dis­
tracção: tempo e dinheiro, como se não se pudesse separar as
duas coisas. Nikolaj Kusmitsch quase riu. Era de facto bom,
descobrir as próprias artimanhas e a tempo, sim, o mais im­
portante era a tempo. Agora as coisas iam mudar. O tempo,
sim, o tempo era uma coisa melindrosa. Mas acaso lhe dizia
apenas respeito a ele? Não se passava o mesmo com os outros,
mesmo sem o saberem, como ele descobrira, em segundos?
Nikolaj Kusmitsch não estava de todo isento de satisfação
pelo mal alheio: que ele possa ainda assim - ia ele a pensar,
mas aconteceu algo peculiar. Sentiu subitamente um sopro na
cara, que lhe passou pelas orelhas e se fez sentir nas mãos. Ar­
regalou os olhos. A janela estava bem fechada. E enquanto se
encontrava assim, de olhos muito abertos, sentado na sala às
escuras, começou a compreender que aquilo que agora sentia
era o tempo real que por ele passava. Reconheceu-os formal­
mente, todos estes pequenos segundos, uniformemente tépi­
das, tanto uns como outros, mas rápidos, mas rápidos. Sabe
Deus o que pretendiam ainda fazer. Que isto tivesse que lhe
acontecer precisamente a ele, para quem qualquer espécie de
aragem era uma ofensa pessoal ! Agora ia ficar ali sentado e
aquele sopro continuaria a passar durante toda a sua vida. Pre­
via todas as nevralgias que iria apanhar, ficou fora de si de fú­
ria. Levantou-se de um salto, mas as surpresas ainda não ti­
nham acabado. Também debaixo dos pés havia algo parecido
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 65

a um movimento, não só um mas vários movimentos estra­


nhamente oscilantes e confusos. Ficou transido de pavor: se­
ria a Terra? Claro, era a Terra. Ela de facto movia-se. Tinham
falado disso na escola, passara-se algo apressadamente por
cima do assunto, e mais tarde gostava-se de o escamotear; não
se achava oportuno falar dele. Mas agora que ficara sensível,
foi-lhe dada a ocasião de o sentir. Os outros, senti-lo-iam?
Talvez, mas não o mostravam. Provavelmente não fazia dife­
rença a esses marinheiros. Mas Nikolaj Kusmitsch, logo
·

neste aspecto, era um tanto sensível, até evitava os eléctricos.


Cambaleava na sala como num convés e tinha de se segurar à
direita e à esquerda. Para sua infelicidade, lembrou-se ainda
vagamente de algo relativo à posição oblíqua do eixo terres­
tre. Não, ele não era capaz de suportar todos estes movimen­
tos. Sentia-se miseravelmente. Ficar deitado e em sossego,
lera ele uma vez em qualquer sítio. E desde então Nikolaj Ku­
mitsch estava deitado.
Estava deitado e tinha os olhos fechados. E havia alturas,
dias menos movimentados, por assim dizer, em que essa po­
sição era perfeitamente suportável. E foi então que se lembrou
de usar os poemas . Ninguém seria capaz de acreditar como
isso ajudava. Quando se ia dizendo assim lentamente um poe­
ma, com a entoação cadenciada das rimas finais, então havia
de certo modo algo estável para o qual se podia olhar, inte­
riormente, entenda-se. Mas ele sempre se interessara de modo
especial pela literatura. Não se lamentava do seu estado,
garantia-me o estudante que o conhecia havia muito. Só que
com o tempo se desenvolvera dentro dele uma admiração ex­
cessiva por aqueles que, como o estudante, andavam lá fora e
suportavam o movimento da Terra.
Lembro-me desta história com tanto pormenor porque me
transmitiu uma grande serenidade. Bem posso dizer que não
voltei a ter um vizinho tão agradável como este Nikolaj Kus­
mitsch, que certamente também me teria admirado.
1 66 Rainer Maria Rilke

50

Depois desta experiência fiz o propósito de, em casos se­


melhantes, ir sempre directamente aos factos. Reparei como
eram simples e animadores, comparados com as suposições.
Como se não soubesse que todos os nossos conhecimentos
são posteriores, balanços, nada mais. Logo a seguir começa
uma nova página com coisas totalmente diversas, sem trans­
porte. De que me serviam agora, no caso actual, os poucos
factos que se poderia verificar brincando? Vou enumerá-los
logo que tenha dito o que me preocupa de momento: que eles
contribuíram ainda mais para agravar a minha situação, já de
si (como agora o reconheço) bastante complicada.
Diga-se em abono da minha honra que escrevi muito nestes
dias ; escrevi convulsivamente. De resto, quando saía, não
gostava de pensar no regresso a casa. Fazia até pequenos des­
vios e perdia desta maneira uma meia hora, durante a qual po­
deria ter escrito. Reconheço que isto era uma fraqueza. Mas
quando me encontrava no meu quarto não tinha nada de que
me censurar. Escrevia, tinha a minha vida, e a do lado era uma
vida completamente diferente, com a qual nada tinha em co­
mum: a vida de um estudante de Medicina que estuda para o
seu exame. Eu nada tinha de semelhante pela frente, e essa j á
era uma diferença decisiva. E de resto as nossas circunstân­
cias eram tão diferentes quanto possível. Tudo isso era para
mim evidente. Até ao momento em que eu soube que aquilo
ia vir; então esqueci-me de que entre nós não havia nada em
comum. Eu escutava de tal modo que o coração me batia per­
ceptivelmente. Deixava tudo e escutava. E então aquilo vinha:
nunca me enganei .
Quase todos conhecem o barulho que provoca qualquer
coisa redonda de lata, digamos a tampa de uma caixa quando
escapa das mãos. Normalmente nem faz muito barulho ao
chegar ao chão, cai rapidamente, continua a rolar sobre a bor-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 67

da e só se toma verdadeiramente desagradável quando o seu


impulso vai acabar e ela bate, cambaleante, em todas as di­
recções, antes de ficar deitada. Bem, isto é no seu conjunto;
um objecto de lata desses caiu ao lado, rolou, ficou deitado e,
pelo meio, em intervalos regulares, ouvia-se um estrépito.
Como todos os ruídos que se impõem repetidamente, também
este se organizara no seu interior; variava, nunca era exacta­
mente igual. Mas era precisamente isso que abonava a favor
da sua regularidade. Podia ser violento ou suave ou melancó­
lico; podia igualmente mover-se precipitadamente e deslizar
com uma lentidão infinita antes de se imobilizar. E a última
oscilação era sempre surpreendente. Pelo contrário, o estrépi­
to que se lhe acrescentava tinha algo quase mecânico. Mas re­
cortava o ruído sempre de modo diferente, parecendo ser essa
a sua função. Agora consigo ter muito mais presentes todos
estes pormenores, pois o quarto ao meu lado está vazio. Ele
partiu para casa dele na província. Tinha de se refazer. Moro
no último andar. À direita fica uma outra casa e para o andar
de baixo ainda não veio morar ninguém: não tenho vizinhos.
Nesta situação, quase me admiro de não ter encarado o as­
sunto mais ligeiramente. Embora de cada vez eu estivesse avi­
sado pela minha sensibilidade. Devia ter tirado partido disso.
Não te assustes, devia ter dito para mim próprio, agora aí vem
aquilo; eu bem sabia que nunca me enganava. Mas isso devia
ter a ver precisamente com os factos que eu quis que me con­
tassem; desde que os conhecia, tomara-me ainda mais im­
pressionável. Tocava-me de modo quase fantasmagórico que
aquilo que causava este ruído fosse aquele pequeno movi­
mento lento e silencioso com o qual a sua pálpebra se baixa­
va por si própria e se fechava sobre o seu olho direito, en­
quanto ele lia. Isto era o essencial da sua história, uma
insignificância. Tivera de faltar algumas vezes aos exames, a
sua ambição tomara-se susceptível, e as pessoas lá de casa
provavelmente insistiam com ele de cada vez que escreviam.
1 68 Rainer Maria Rilke

Que restava, pois, senão conter-se? Foi então uns meses antes
da sua decisão que se manifestou esta fraqueza; esta pequena
fadiga impossível, que era tão ridícula como quando um re­
posteiro de uma j anela não quer ficar preso em cima. Tenho a
certeza de que ele julgou durante semanas que seria possível
dominar aquilo. De outro modo eu não teria tido a ideia de lhe
oferecer a minha vontade. Um dia compreendi de facto que a
dele se esgotara. E desde então, quando sentia que aquilo vi­
nha, ficava de pé do meu lado da parede e pedia-lhe que se
servisse. E com o tempo tomou-se-me claro que ele aceitava.
Talvez ele não devesse fazê-lo, especialmente quando se vê
que afinal não servia de nada. Admitindo mesmo que conse­
guíssemos criar um ligeiro atraso, continua a ser questionável
se ele estava de facto em condições de aproveitar os momen­
tos que assim ganhávamos. E no que respeita aos meus gas­
tos, comecei a senti-los. Bem sei que me perguntava se aque­
la situação deveria continuar assim, precisamente naquela
tarde em que alguém chegou ao nosso andar. Isto causava
sempre grande barulho no pequeno hotel, por as escadas se­
rem estreitas. Pouco depois, pareceu-me que estavam a entrar
no quarto do meu vizinho. As nossas portas eram as últimas
do corredor, a dele um tanto oblíqua e a pouquíssima distân­
cia da minha. Eu sabia entretanto que, por vezes, ele recebia
visitas de amigos e, como já disse, não me interessava de to­
do pelas suas circunstâncias. É possível que a sua porta tives­
se sido ainda aberta várias vezes, que lá fora andassem de um
lado para o outro. Quanto a isso não tinha eu qualquer res­
ponsabilidade.
E nessa noite a coisa foi pior do que nunca. Ainda não era
muito tarde, mas eu fora-me deitar por me sentir cansado;
pareceu-me provável conseguir dormir. Então sobressaltei-me
como se me tivessem tocado. Logo a seguir rebentou aquilo.
Saltava e rolava e corria para qualquer sítio e oscilava e batia.
O estrépito era horrível. Entretanto, no andar de baixo batiam
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 69

ostensiva e furiosamente contra o tecto. O novo inquilino tam­


bém estava naturalmente incomodado. Agora devia ser a sua
porta. Eu estava tão desperto que me pareceu ouvir a porta,
embora ele a abrisse com um cuidado espantoso. Pareceu-me
que se aproximava. Certamente queria saber em que quarto se
passava aquilo. O que achava estranho era o seu cuidado exa­
gerado. Ele acabara de verificar que o sossego não era apaná­
gio desta casa. Por que razão abafava ele os passos? Por um
momento julguei que estava à minha porta; e depois ouvi-o,
sem qualquer tipo de dúvida, entrar no quarto ao lado. Ele en­
trou sem mais ali ao lado.
E agora (pois como o hei-de descrever?), agora fez-se silên­
cio. Silêncio como quando uma dor acaba. Um silêncio estra­
nhamente sensível, a arder, como uma ferida a sarar. Poderia
ter adormecido imediatamente; poderia ter respirado fundo e
adormecer. Apenas o meu espanto me manteve acordado. Al­
guém falava ao lado, mas isso também fazia parte do silêncio.
É preciso ter vivido este tipo de silêncio, pois não é possível
reproduzi-lo. Também lá fora estava tudo como que equilibra­
do. Sentei-me na cama, escutei, era como se estivesse no cam­
po. Meu Deus, pensei, a mãe dele está cá. Ela estava sentada
ao lado do candeeiro, incutia-lhe ânimo, talvez ele tivesse in­
clinado um pouco a cabeça sobre o ombro dela. A seguir ia
levá-lo até à cama. Então compreendi os passos leves lá fora
no corredor. Ai, existir alguém assim ! Existir um ser como es­
te, diante do qual as portas cedem de modo totalmente dife­
rente do que diante de nós ! Sim, agora podíamos dormir.

SI

Quase já me tinha esquecido do meu vizinho. Vejo nitida­


mente que eu não tinha para com ele uma verdadeira empatia.
É verdade que, de vez em quando, pergunto na portaria, de
1 70 Rainer Maria Rilke

passagem, se há notícias dele e quais são. E alegro-me quan­


do são boas. Mas exagero. Não tenho necessidade de o saber.
Já não tem a ver com ele o facto de eu sentir muitas vezes uma
súbita atracção por entrar no quarto ao lado. Da minha porta
à outra é só um passo e o quarto não está fechado. Interessar­
-me-ia saber como é realmente este quarto. Pode-se facilmen­
te imaginar como é um quarto qualquer, e com frequência
coincide mais ou menos com a realidade. Só que o quarto que
fica mesmo ao lado é sempre totalmente diferente do que se
imagina.
Digo para mim próprio que é essa circunstância que me
atrai. Mas eu sei perfeitamente que é um certo objecto de lata
que me espera. Supus que se trata realmente da tampa de uma
caixa, embora naturalmente me possa enganar. Isso não me
inquieta. No fundo, é a minha disposição que provoca a asso­
ciação com a tampa de uma caixa. Pode pensar-se que ele não
a levou consigo. Provavelmente fizeram arrumações, coloca­
ram a tampa na caixa correspondente, como deve ser. E ago­
ra as duas partes juntas constituem o conceito de caixa, caixa
redonda, para falar com rigor, um conceito simples, muito co­
nhecido. Sinto-me como se me lembrasse de que as duas par­
tes que constituem a caixa estão sobre a lareira. Sim, encon­
tram-se até diante do espelho, de modo que atrás delas surge
mais uma caixa, enganosamente igual, imaginária. Uma caixa
a que não damos nenhum valor, mas que, por exemplo, um
macaco tentaria agarrar. Certo, seriam até dois macacos que a
tentariam agarrar, pois também o macaco seria duplo, logo
que chegasse ao rebordo da lareira. Ora bem, é a tampa desta
caixa que me detesta.
Ponhamo-nos de acordo: a tampa de uma caixa, de uma
caixa saudável, cujo bordo tem a mesma curvatura que o de­
la, uma tal tampa não deveria ter outro desejo senão o de se
encontrar sobre a respectiva caixa; isto deveria ser o máximo
que ela poderia imaginar, uma satisfação inultrapassável, a
As Anotações de Malte Laurids Brigge 171

realização de todos os seus desejos. Também se trata de algo


abertamente idealista, encontrar-se em posição de repouso
uniforme, depois de paciente e suavemente rodada sobre o pe­
queno rebordo contrário, e sentir em si a aresta completa,
elástica e precisamente tão aguda como quando está, por si,
no rebordo, quando está separada da outra parte. Mas, ai, que
poucas tampas há que ainda saibam dar valor a isso ! Neste as­
pecto toma-se perfeitamente visível como o contacto das coi­
sas com o homem as tomou confusas . É que os homens, se for
admissível compará-los de passagem com tais tampas, assen­
tam completamente a contragosto e mal nas suas ocupações.
Em parte porque, com a pressa, não encontraram as mais ade­
quadas, em parte porque os colocaram nelas de modo torto e
com cólera, em parte porque os bordos, que deviam encaixar
um no outro, estão amolgados, cada um de sua maneira.
Digamo-lo com toda a sinceridade: no fundo eles apenas pen­
sam, na primeira oportunidade que lhes surja pela frente, em
saltar para baixo, rolar e fazer ruído de lata. De outro modo,
de onde viriam todas estas assim chamadas distracções e o
ruído que provocam?
As coisas têm vindo a assistir a isto desde há séculos. Não
é de admirar que estejam corrompidas, quando perdem o gos­
to pelo seu fim natural e silencioso e apenas querem usar a sua
existência como a vêem ser usada à sua volta. Fazem tentati­
vas para se furtarem às suas aplicações, tomam-se capricho­
sas e desleixadas, e as pessoas nem sequer se admiram quan­
do as surpreendem num excesso. As pessoas bem o conhecem
por experiência própria ! Arreliam-se porque são as mais for­
tes, porque julgam ter mais direito a distracções, porque se
sentem vítimas de macacos de imitação; mas deixam fazer, tal
como elas próprias se deixam ir. Mas quando existe alguém
que se domina, um solitário, por exemplo, que desejaria re­
pousar redondamente sobre si dia e noite, este desafia a con­
tradição, o desdém, o ódio dos instrumentos degenerados que,
1 72 Rainer Maria Rilke

na sua má consciência, j á não são capazes de suportar que al­


guma coisa se contenha e lute pelo seu próprio sentido. Então
juntam-se para o incomodar, assustar, confundir, e sabem que
disso são capazes. Então começam, trocando olhares cúmpli­
ces, a tentação que continua a crescer até ao incomensurável
e arrasta todos os seres e o próprio Deus contra o solitário que
talvez resista: o Santo.

52

Como compreendo agora as estranhas imagens, dentro das


quais coisas de usos limitados e regulares se distendem e se
experimentam umas às outras, lascivas e curiosas, estreme­
cendo na imprecisa luxúria da distracção. Estas caldeiras a
ferver que se movimentam, estas retortas que têm ideias, e os
ociosos funis que se metem num buraco para seu prazer.
E também já lá estão, erguidos pelo nada ciumento, extremi­
dades de corpos e membros entre eles e rostos que para den­
tro deles expelem o seu vómito quente, e traseiros a soprar,
que lhes fazem a vontade.
E o Santo verga-se e contrai-se; mas nos seus olhos ainda es­
tava um olhar que isto achava possível: ele olhou nessa direc­
ção. E já os seus sentidos formam um precipitado a partir do
claro soluto da sua alma. Já se desfolha a sua oração e sai-lhe
da boca como um arbusto seco. O seu coração caiu e verteu-se
no elemento turvo. As suas disciplinas tocam-lhe ao de leve
como uma cauda que enxota moscas. Os seus órgãos genitais
estão de novo apenas num só lugar, e quando uma mulher
avança, direita, por entre esta aglomeração repugnante, com o
peito nu, todo seios, apontam para ela como um dedo.
Houve tempos em que eu achava estas imagens antiquadas.
Não por duvidar delas. Podia pensar que isto acontecia aos
santos , outrora, a esses zelosos apressados que queriam ime-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 173

diatamente começar pelo próprio Deus a todo o custo. Nós já


não temos essa pretensão. Pressentimos que Ele é demasiado
difícil para nós, que temos de adiá-Lo, para lentamente cum­
prir o longo labor que nos separa d'Ele. Agora sei que esse la­
bor é exactamente tão árduo como a busca da santidade; que
isto acontece em tomo de todo aquele que é solitário por amor
a esse labor, tal como se formou outrora em tomo dos solitá­
rios de Deus nas suas cavernas e nos seus abrigos vazios.

53

Quando se fala dos homens solitários, pressupõe-se sempre


demasiado. Pensa-se que as pessoas sabem de que se trata.
Não, não sabem. Nunca viram um homem solitário, apenas o
detestaram, sem o conhecer. Foram os seus vizinhos que o
consumiram, e as vozes do quarto ao lado que o tentaram. Ex­
citaram as coisas contra ele, para que fizessem barulho e o
abafassem. As crianças juntaram-se contra ele, por ele ser de­
licado e criança, e a cada momento do seu crescimento crescia
contra os adultos. Eles seguiam o seu rasto até ao seu escon­
derijo como um animal que se pode caçar e a sua longa juven­
tude não teve época de defeso. E quando não se deixava ficar
exausto e escapava, eles gritavam sobre o que dele procedia e
diziam que era feio e lançavam suspeitas sobre ele. E quando
não lhes dava ouvidos, tomavam-se mais óbvios e devoravam­
-lhe o alimento e respiravam-lhe o ar e cuspiam na sua pobre­
za, para que ela se lhe tomasse repugnante. Difamavam-no
como se fosse contagioso e atiravam-lhe pedras, para que se
afastasse mais depressa. E tinham razão no seu instinto antigo,
pois ele era verdadeiramente o seu inimigo.
Mas quando ele não levantava os olhos, reflectiam. Pres­
sentiam que com tudo isso só lhe faziam a vontade; que o for­
taleciam no seu estar só, e o ajudavam a desligar-se deles
1 74 Rainer Maria Rilke

para sempre. E então mudavam de táctica e lançavam mão a


um último recurso, o mais extremo, a outra resistência: a fama.
E com esta ruidosa agitação quase todos levantavam os olhos
e se distraíam.

54

Esta noite voltei a lembrar-me do livrinho verde que devo


ter tido na minha posse alguma vez durante a infância; e não
sei porque é que imagino que ele pertencera a Mathilde Bra­
he. Isso não me interessava quando mo deram, e li-o só mui­
tos anos depois, creio que durante as férias em Ulsgaard. Mas
desde o primeiro momento teve para mim grande importân­
cia. Ele estava repleto de relação, também do ponto de vista
externo. O verde da encadernação tinha um sentido e via-se
de imediato que por dentro devia ser como era. Como por
combinação prévia, vinha primeiro a folha de guarda lisa e
ondeada de branco sobre branco e depois a folha de rosto que
se achava misteriosa. Poderia haver ilustrações, parecia; mas
não havia, e era preciso, quase com relutância, admitir que
isso também estava em ordem. Ficava-se de certo modo com­
pensado ao encontrar, a dada altura, a fita estreita para marcar
a leitura e que estava colocada, sabe Deus desde quando, sem­
pre entre as mesmas páginas, frágil e um pouco torta, como­
vente pela sua confiança de ser ainda cor-de-rosa. Talvez nun­
ca tivesse sido usada e o encadernador a tivesse dobrado
rápida e aplicadamente, sem reparar bem. Mas provavelmen­
te não foi por acaso. Podia ser que alguém tivesse interrompi­
do aí a leitura e nunca mais voltasse a ler; que o destino nes­
te momento batesse à sua porta para lhe dar que fazer, de
modo que tinha ido parar a um lugar muito longe de todos os
livros, que, no fundo, não são a vida. Não se podia saber se o
livro continuara a ser lido. Também se podia pensar que se
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 75

tratava simplesmente de abrir sempre o livro nesta passagem


e que assim acontecera por vezes, mesmo a altas horas da noi­
te. De qualquer modo, receava aquelas duas páginas como um
espelho diante do qual está alguém. Nunca as li. Não sei de
todo se li o livro inteiro. Não era muito grosso, mas continha
uma grande quantidade de histórias, sobretudo à tarde; então
havia sempre uma que não se conhecia ainda.
Já só me lembro de duas. São elas: «Ü Fim de Grischa
Otrepjow» e «Ü Declínio de Carlos-o-Temerário» .
Sabe Deus se outrora isso me impressionou. Mas agora,
volvidos tantos anos, lembro-me da descrição de como o ca­
dáver do falso czar foi atirado para o meio da multidão e ali
ficou três dias, despedaçado e esburacado e com uma másca­
ra no rosto. Não há qualquer perspectiva de o livrinho verde
me voltar às mãos. Mas este passo deve ter sido singular.
Também gostaria de voltar a ler como decorreu o encontro
com a mãe. Deve ter-se sentido muito seguro para a mandar
vir de Moscovo; estou até convencido de que ele nessa altura
acreditava tanto em si próprio que de facto quis chamar a mãe.
E esta Maria Nagoi, que veio em etapas rápidas do seu pobre
convento, também ganhou tudo por ter dado o seu acordo.
Mas não teria a incerteza dele começado precisamente quan­
do ela o reconheceu? Não estou longe de crer que a força da
sua transformação teria por base o facto de não ser filho de
ninguém.
(Esta é afinal a força de todos os jovens que partiram de
casa.) 1
O povo que o desejava, sem imaginar alguém em concreto,
tomou-o assim ainda mais livre e ilimitado nas suas possibili­
dades. Mas a declaração da mãe, mesmo como fraude cons­
ciente, ainda teve o poder de o diminuir; ela retirou-o da ple­
nitude da sua invenção; limitou-o a uma imitação estafada;

1 Escrito à margem no manuscrito.


176 Rainer Maria Rilke

reduziu-o ao indivíduo que ele não era: fez dele um impostor.


E então veio ainda esta Marina Mniczek que, mais vagamen­
te dissolvente, o negou à sua maneira, não acreditando nele,
como mais tarde se provou, mas sim em qualquer outro. Não
posso naturalmente garantir até que ponto tudo isso era tido
em consideração naquela história. Parece-me, porém, que de­
via ser contado.
Mas mesmo independentemente disso, este acontecimento
não é de modo algum anacrónico. Poderia imaginar-se agora
um narrador que dedicasse muita atenção aos últimos mo­
mentos; não deixaria de ter razão. Neles se desenrolam mui­
tas coisas : como ele salta de um sono profundo para a janela
e para lá da janela, para o pátio no meio das sentinelas. Não
consegue levantar-se sozinho, têm de ajudá-lo. Provavelmen­
te partiu um pé. Apoiado em dois homens, sente que acredi­
tam nele. Olha à sua volta: também os outros acreditam nele.
Quase lhe fazem pena estes gigantescos strieltsy, a que ponto
devem ter chegado as coisas : conheceram Iwan Grosnij em
toda a sua realidade, e acreditam nele! Apetecia-lhe esclarecê­
-los, mas abrir a boca equivalia a gritar. A dor no pé é de lou­
cos, e ele considera-se tão pouco neste momento que mais na­
da sabe além da dor. E depois não há tempo. A multidão
aproxima-se, vê o Schuiskij e, atrás dele, todos. Em breve tu­
do terá passado. Mas a sua guarda cerra fileiras. Não o aban­
donam. E acontece um milagre. A fé destes homens velhos
propaga-se, em dado momento já ninguém quer avançar.
Schuiskij , mesmo à frente dele, grita desesperado para uma
janela lá em cima. Não olha à sua volta. Sabe quem lá está;
compreende que se faça silêncio, silêncio sem qualquer tran­
sição. Agora vai surgir a voz que ele conhece de outrora; a voz
alta e falsa, que se esforça excessivamente. E então ouve a
czarina-mãe que o renega.
Até aqui as coisas avançam por si próprias, mas agora, por
favor, aproxime-se um narrador, um narrador: pois das poucas
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 77

linhas que ainda restam deve sair uma violência que ultrapas­
se qualquer contradição. Quer seja ou não dito, tem que se ju­
rar que, entre voz e tiro de pistola, ainda havia nele, infinita­
mente comprimidos, vontade e poder de ser tudo. De outro
modo não se compreende o brilho magnífico da consequên­
cia: que lhe tenham perfurado o roupão e lhe tenham dado es­
tocadas em todo o corpo, para ver se conseguiam chegar ao
duro cerne de uma pessoa. E que ele já morto ainda usasse,
mesmo assim, durante três dias, a máscara à qual quase já ti­
nha renunciado.

55

Quando agora penso nisso, parece-me estranho que no mes­


mo livro se contasse o declínio daquele que toda a vida foi só
um, o mesmo, duro e imutável como o granito, e cada vez
mais pesado para os que o suportaram. Em Dijon há um retra­
to dele. Mas também se sabe de qualquer modo que era de es­
tatura mediana, forte, teimoso e desesperado. Só nas mãos é
que talvez não se tivesse pensado. São mãos muito quentes,
que desejariam refrescar-se continuamente e se pousam invo­
luntariamente sobre coisas frias, espalmadas, com ar entre to­
dos os dedos. Nestas mãos o sangue podia acorrer precipita­
damente, como nos aflui à cabeça; e em punhos cerrados eram
verdadeiramente como cabeças de loucos, de ideias delirantes.
Era preciso um cuidado incrível para viver com este san­
gue. O duque estava com ele encerrado no seu interior, e por
vezes temia-o, quando ele andava à sua volta, rastej ante e es­
curo. Podia até ser-lhe terrivelmente estranho, este sangue ve­
loz e meio português que ele mal conhecia. Muitas vezes re­
ceava que o assaltasse enquanto dormia e o rasgasse. Ele fazia
como se o domasse, mas estava permanentemente com medo
dele. Nunca ousou amar uma mulher, para que ele não tives-
178 Rainer Maria Rilke

se ciúmes, e ele era tão impetuoso que o duque nunca chegou


vinho aos lábios ; em vez de beber, suavizava-o com mousse
de rosas. Mas houve uma vez em que bebeu, no acampamen­
to junto de Lausanne, quando Granson estava perdida; nessa
altura ficou doente e alheado e bebeu muito vinho puro. Mas
então o seu sangue dormia. Nos seus últimos anos absurdos o
sangue caía por vezes neste sono profundo e animalesco. En­
tão viu-se claramente como o duque estava dominado por ele,
pois enquanto dormia o sangue, ele não era nada. E nenhuma
pessoa próxima podia entrar; não percebia o que diziam. Não
podia aparecer aos mensageiros estranhos, vazio como estava.
E sentava-se e esperava, até o sangue acordar. E a maior
parte das vezes ele acordava de um salto e evadia-se do cora­
ção e bramava.
Por este sangue arrastava consigo todas aquelas coisas a
que não dava valor. Os três grandes diamantes e todas as pe­
dras preciosas; as rendas de Flandres e os tapetes de Arrás, em
grande número. A sua tenda de seda com cordões de fio de ou­
ro e quatrocentas tendas para o seu séquito. E imagens pinta­
das sobre madeira, e os doze Apóstolos em prata maciça. E o
príncipe de Tarento e o duque de Cleve e Philipp von Baden
e o senhor de Château-Guyon. Pois ele queria convencer o seu
sangue de que era imperador e não havia nada acima dele:
para que ele o temesse. Mas o seu sangue não acreditava nele
apesar de tais provas; era um sangue desconfiado. Talvez ain­
da o fizesse vacilar algum tempo. Mas as trompas de Uri
traíram-no. Desde então o seu sangue sabia que estava dentro
de um homem perdido: e queria sair dele.
Assim o vejo agora, mas outrora fazia-me sobretudo im­
pressão ler que naquele dia de Reis ainda o procuravam.
O jovem príncipe da Lorena que, no dia anterior, logo a se­
guir à batalha estranhamente precipitada, entrara a cavalo na
sua pobre cidade de Nancy, despertara muito cedo o seu sé­
quito e perguntara pelo duque. Mensageiro após mensageiro
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 79

foi enviado, e ele próprio aparecia de vez em quando à jane­


la, inquieto e preocupado. Nem sempre reconhecia quem tra­
ziam nos seus carros e padiolas, apenas via que não era o du­
que. E também não se encontrava entre os feridos, e dos
prisioneiros, que eram trazidos continuamente, nenhum o ti­
nha visto. Mas os fugitivos levavam para todo o lado notícias
diferentes e estavam confusos e assustados, como se temes­
sem correr ao seu encontro. Já escurecia e nada se sabia dele.
A notícia de que desaparecera teve tempo de circular nessa
longa noite de Inverno. E, onde quer que chegava, criava em
todos uma certeza repentina e exagerada de que ele ainda vi­
via. Talvez o duque nunca tivesse sido tão real na imaginação
de cada um como nessa noite. Não havia nenhuma casa em
que não se estivesse de vigília e se esperasse por ele, imagi­
nando que batia à porta. E, se não vinha, era porque já por lá
passara.
Nessa noite geou e era como se gelasse a ideia de que ele
existia, tão dura ela se tomou. E passaram-se anos e anos, an­
tes de ela se dissolver. Todas estas pessoas, sem saberem bem
como, insistiam agora que ele vivia. O destino que fizera re­
cair sobre eles apenas era suportável através da sua figura. Ti­
nham aprendido bem arduamente que ele existia; mas agora
que j á estavam adestrados, achavam que ele era fácil de reter
e impossível de esquecer.
Mas na manhã seguinte, dia sete de Janeiro, uma terça­
-feira, recomeçaram de novo as buscas. E desta vez havia um
guia. Era um pajem do duque, e diziam que ele vira ao longe
o seu senhor cair; agora ia mostrar esse sítio. Ele próprio
nada contara, o conde de Campobasso trouxera-o e falara por
ele. Agora ia à frente e os outros mantinham-se muito junto a
ele. Quem o visse assim, disfarçado e estranhamente insegu­
ro, tinha dificuldade em crer que era realmente Gian-Battista
Colonna, que era belo como uma rapariga e magro nas arti­
culações. Tremia de frio; o ar estava rígido da geada noctur-
1 80 Rainer Maria Rilke

na; o solo soava a ranger de dentes sob os passos. De resto


todos tremiam de frio. Apenas o bobo do duque, apelidado de
Luís-Onze, fazia exercícios. Fazia de cão, avançava a correr,
voltava e andava algum tempo a quatro patas ao lado do jo­
vem; mas, quando avistava à distância um cadáver, saltava
para ele e inclinava-se e falava-lhe, dizendo que se recompu­
sesse e fosse aquele que procuravam. Dava-lhe algum tempo
para reflexão, mas depois voltava a resmungar para junto dos
outros e ameaçava e praguejava e queixava-se da teimosia e
preguiça dos mortos. E continuava-se a andar e nunca mais
acabava. Já mal se via a cidade, pois o tempo cerrara-se en­
tretanto, apesar do frio, e tomara-se cinzento e opaco. A terra
jazia, plana e indiferente, e o pequeno grupo comprimido pa­
recia cada vez mais perdido à medida que avançava. Ninguém
falava, apenas uma velha, que se juntara a eles, mastigava
qualquer coisa e abanava a cabeça; talvez estivesse a rezar.
De súbito, o que ia à frente estacou e olhou à sua volta. De­
pois, virou-se brevemente para Lupi, o médico português do
duque, e apontou em frente. A uns passos de distância havia
uma superfície gelada, uma espécie de charco ou lago, e aí j a­
ziam, meio afundados, dez ou doze cadáveres. Estavam qua­
se completamente nus e despojados. Lupi ia, inclinado e aten­
to, de um para outro. E então reconheceu-se Olivier de la
Marche e o capelão, à medida que passavam junto a eles, um
a um. Mas a velha já estava ajoelhada na neve e gemia e
curvava-se sobre uma grande mão, cujos dedos espalmados se
estendiam, rígidos, para ela. Todos se aproximaram depressa.
Lupi, com alguns criados, tentou virar o cadáver, pois jazia
com a frente para baixo. Mas o rosto estava congelado e,
quando o libertaram do gelo, uma das faces descascou-se de
uma camada fina e áspera, e viu-se que a outra fora dilacera­
da por cães ou lobos ; e todo o conjunto estava dividido por
uma grande ferida que começava na orelha, de tal modo que
já não se podia falar de um rosto.
As Anotações de Malte Laurids Brigge 181

Cada um por sua vez olhava à sua volta; cada um julgava


que o romano estava atrás de si. Mas apenas viam o bobo, que
viera a correr, enraivecido e ensanguentado. Retirou um man­
to dos ombros e sacudiu-o, como se dele fosse saltar alguma
coisa, mas o manto estava vazio. E assim começou a procurar­
-se sinais de reconhecimento e encontraram-se alguns. Ti­
nham acendido uma fogueira e lavaram o corpo com água
quente e vinho. Descobriu-se a cicatriz no pescoço e os sítios
dos dois tumores. O médico já não tinha dúvidas . Mas ainda
se fizeram outras comparações. Luís-Onze encontrara uns
passos mais adiante o cadáver do grande cavalo negro
Moreau, que o duque montara no dia de Nancy. Sentou-se em
cima dele, com as pernas curtas no ar. O sangue ainda lhe es­
corria das narinas para a boca, e via-se que ele o saboreava.
Um dos criados do outro lado lembrou que uma unha do pé
esquerdo do duque estivera encravada; então todos procura­
ram a unha. Mas o bobo esbracej ava, como se lhe estivessem
a fazer cócegas, e gritou : «Ai, Monseigneur, perdoa-lhes que
te descubram os defeitos grosseiros, esses parvos, e te não re­
conheçam no meu rosto alongado em que se encontram as
tuas virtudes.»
1 (O bobo do duque foi também o primeiro a entrar quando

o corpo ficou deitado. Foi na casa de um certo Georg Mar­


quis, ninguém sabia dizer porquê. A mortalha ainda não o co­
bria, e assim ele teve uma impressão total. O branco do gibão
e o carmesim do manto contrastavam entre si rude e agressi­
vamente no meio do negro do baldaquino e do leito. À frente,
diante do bobo, estavam as botas altas vermelho-escarlate,
com grandes esporas douradas. E não havia qualquer dúvida
de que na parte de cima havia uma cabeça, porque se via a co­
roa. Era uma grande coroa ducal cravejada de umas pedras.
Luís-Onze deu umas voltas e observou tudo com muita aten-

1 Escrito à margem no manuscrito.


1 82 Rainer Maria Rilke

ção. Chegou a apalpar o cetim, embora pouco percebesse dis­


so. Devia ser bom cetim, talvez um pouco barato para a casa
de Borgonha. Recuou outra vez por causa da perspectiva glo­
bal. Curiosamente, as cores não condiziam umas com as ou­
tras à luz da neve. Ele memorizou cada uma delas. «Bem ves­
tido», reconheceu por fim, «talvez um pouquinho evidente de
mais.» A morte parecia-lhe um manipulador de marionetas,
que de repente precisa de um duque.)

56

É bom verificar simplesmente certas coisas que já não po­


derão mudar, sem lamentar os factos ou mesmo sem os julgar.
Foi assim que se me tomou claro que eu nunca fora um leitor
a sério. Durante a infância parecia-me que a leitura era uma
profissão que se assumiria mais tarde, um dia, quando vies­
sem todas as profissões, uma após outra. Para ser sincero, não
fazia a mínima ideia de quando isso poderia ser. Tinha con­
fiança de que se havia de notar, quando a vida de certo modo
mudasse de rumo e apenas viesse de fora, tal como dantes vi­
nha de dentro. Imaginava que então seria nítida e unívoca e
não se prestasse a mal-entendidos. De modo algum simples,
pelo contrário muito exigente, complexa e difícil em minha
opinião, mas mesmo assim visível. O singular carácter ilimi­
tado da infância, a sua falta de proporção, a sua previsibilida­
de sempre incompleta, estariam então ultrapassados. É certo
que não se via bem como. No fundo, tudo isso aumentava
cada vez mais e fechava-se em todos os sentidos, e quanto
mais se olhava para fora, tanto mais coisas interiores se re­
mexiam dentro de nós: sabe Deus de onde é que isso vinha.
Mas provavelmente crescia até um ponto limite e depois ces­
sava repentinamente. Era fácil observar que os adultos se in­
quietavam muito pouco com isso; andavam às voltas e julga-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 83

vam e agiam e, se alguma vez tinham dificuldades, elas devi­


am-se às circunstâncias externas.
Foi para o início dessas modificações que eu adiei a leitu­
ra. Nessa altura, havíamos de nos relacionar com os livros co­
mo com os amigos, haveria tempo para isso, um determinado
tempo regular que decorreria agradavelmente e justamente
com a duração que mais convinha. Naturalmente, alguns ser­
-nos-iam mais próximos, e com isso não se diz que teríamos
toda a certeza de perder com eles, de vez em quando, uma
meia hora que podia ser dedicada a um passeio, a um encon­
tro, ao início de uma peça de teatro ou a uma carta urgente.
Por outro lado ficaria, graças a Deus, definitivamente excluí­
do: que os cabelos ficassem levantados ou emaranhados como
se tivéssemos dormido sobre eles, que se ficasse com as ore­
lhas a escaldar e com as mãos frias que nem gelo, que uma ve­
la comprida ficasse a arder lentamente no castiçal ao nosso la­
do até chegar ao fim.
Cito estes sintomas porque os senti com bastante intensida­
de em mim outrora, durante aquelas férias em Ulsgaard, quan­
do fui tão subitamente absorvido pela leitura. Viu-se de ime­
diato que eu não sabia ler. Tinha de facto começado antes do
tempo que previra para esse fim. Mas aquele ano em Soro,
passado só entre outros mais ou menos da minha idade, tinha­
-me tomado desconfiado em relação a semelhantes cálculos.
Aí vieram ao meu encontro experiências súbitas e inesperadas
e via-se claramente que elas me tratavam como um adulto.
Eram experiências de grandeza natural que se mostravam tão
pesadas como eram. Na mesma medida, porém, em que eu
compreendia a sua realidade, também se me abriam os olhos
para a realidade infinita da minha infância. Sabia que ela não
terminaria, tão-pouco como a outra estava a começar. Dizia
para comigo que cada um é livre de fazer cortes, mas eles
eram inventados. E ficou demonstrado que eu era demasiado
desajeitado para imaginar alguns deles. Sempre que tentava, a
1 84 Rainer Maria Rilke

vida dava-me a entender que nada sabia a seu respeito. Mas,


se eu persistia em afirmar que a minha infância acabara, nes­
se mesmo momento tudo o que estava a chegar desaparecia, e
somente me restava tanto quanto um soldado de chumbo tem
debaixo de si para poder estar em pé.
Esta descoberta apenas serviu para me isolar mais, como é
compreensível. Ela centrava-me em mim próprio e enchia-me
de uma espécie de contentamento definitivo que eu tomava
por mágoa, porque ultrapassava em muito a minha idade.
Também me inquietava, segundo me lembro, que agora mui­
ta coisa se podia perder completamente, pois nada estava pre­
visto para uma época determinada. E quando voltei a Uls­
gaard e vi todos aqueles livros, atirei-me a eles, com enorme
pressa, quase com má consciência. Aquilo que mais tarde sen­
ti com tanta frequência, pressenti-o então de alguma maneira:
que não se tinha o direito de se abrir um livro sem se com­
prometer a lê-los todos. A cada linha abria-se o mundo. Antes
dos livros ele encontrava-se intacto, depois deles talvez de
novo completamente inteiro. Mas como é que eu, que não sa­
bia ler, ia absorver isso com todos eles? Lá estavam eles, mes­
mo nesta modesta biblioteca, em quantidade impossível, e
mantinham-se unidos. Atirava-me teimosa e desesperadamen­
te de um para outro livro e abria caminho pelas páginas como
alguém que tem de realizar uma tarefa superior às suas forças.
Nessa altura li Schiller e Baggesen, Õhlenschlager e Schack­
-Staffeldt, o que havia de Walter Scott e Calderón. Muitas coi­
sas que já deviam ter sido lidas me vieram ter às mãos, para
outras era demasiado cedo. Não havia quase nada adequado à
idade que eu tinha. E, apesar disso, lia.
Anos mais tarde, acontecia-me por vezes à noite acordar e
lá estavam as estrelas tão verdadeiras, avançando com tanta
importância, e eu não era capaz de entender como era possí­
vel perder tanto mundo. Algo semelhante se passava comigo,
creio eu, sempre que levantava os olhos dos livros e os dirigia
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 85

lá para fora onde estava o Verão e Abelone me chamava.


Parecia-nos muito inesperado que ela tivesse que chamar e eu
nem sequer respondesse. Aconteceu nos nossos tempos mais
felizes. Mas uma vez que eu estava obcecado, agarrava-me
obstinadamente à leitura e furtava-me, importante e teimoso,
às nossas festas diárias. Desajeitado como eu era para apro­
veitar as numerosas oportunidades, muitas vezes discretas, de
uma felicidade natural, deixava-me embalar, não sem prazer,
na promessa de futuras reconciliações com base na crescente
desavença em que vivíamos, reconciliações que se tomavam
tanto mais atraentes quanto mais adiadas eram.
De resto, o meu sono de leitura acabou um dia tão abrupta­
mente como começara; e foi então que nos zangámos um com
o outro a sério. Pois Abelone não me poupava nenhum des­
dém nem sobranceria, e quando a encontrava no caramanchão
dizia que estava a ler. Num certo domingo de manhã, o livro
estava de facto fechado ao seu lado, mas ela parecia ocupada
mais do que o suficiente com as groselhas que desprendia cui­
dadosamente com um garfo dos seus pequenos cachos.
Deve ter sido numa daquelas manhãzinhas que há em Ju­
lho, de horas novas e repousadas, durante as quais acontece
em todo o lado algo alegre e irreflectido. Milhões de peque­
nos movimentos irreprimíveis compõem um mosaico da exis­
tência mais convencida; as coisas vibram umas para dentro
das outras e para além de si para o ar, e a sua frescura toma as
sombras claras e dá ao sol um brilho leve e espiritual. Não há
então nada de importante no jardim; tudo está em todo o lado,
e dever-se-ia estar em tudo para não perder nada.
Mas no pequeno gesto de Abelone estava de novo tudo. Era
uma invenção tão feliz fazer precisamente aquilo e exacta­
mente como ela estava a fazer! As suas mãos brancas na som­
bra trabalhavam tão agilmente e em consonância, e diante do
garfo saltavam, travessas, as bagas redondas para dentro da
taça coberta de folhas de parra sem o brilho do orvalho, onde
1 86 Rainer Maria Rilke

já se amontoavam outras, vermelhas e louras, brilhantes, com


caroços sãos na polpa ácida. Perante este quadro, mais nada
desejava do que ficar a ver, mas por ser provável receber, por
isso, uma censura, peguei no livro, também para me mostrar
mais à vontade, sentei-me no outro lado da mesa e, sem fo­
lhear muito, embrenhei-me nele.
«Se ao menos lesses em voz alta, rato de biblioteca ! », dis­
se Abelone pouco depois. O tom já não era, de longe, confli­
tuoso e como, segundo a minha opinião, já era mais do que
tempo de fazer as pazes, comecei imediatamente a ler alto
sem parar até chegar ao fim do parágrafo, e continuei, lendo
o título seguinte: «A Bettine.»
«Não, as respostas não», interrompeu-me Abelone e pou­
sou o pequeno garfo de repente, como se estivesse esgotada.
Logo a seguir riu-se da cara com que a olhei.
«Meu Deus, Malte, leste mesmo mal ! »
Então tive de reconhecer que nem um momento me con­
centrara no que estava a fazer. «Li apenas para tu me inter­
romperes», confessei eu e subiram-me calores à cara, e fo­
lheei para trás até chegar ao título do livro. Então fiquei a
saber que livro era. «E porque não as respostas?», perguntei
com curiosidade.
Foi como se Abelone não me tivesse ouvido. Ali estava sen­
tada com o seu vestido claro, como se por dentro estivesse a
ficar toda às escuras, tal como os seus olhos escureciam.
«Dá cá», disse ela de súbito, como se estivesse zangada, e
tirou-me o livro da mão e abriu-o precisamente onde queria.
E então leu uma das cartas de Bettine.
Não sei o que terei entendido, mas foi como se me tivesse
sido prometido solenemente que um dia havia de compreen­
der tudo isto. E enquanto a sua voz subia e por fim se tomava
quase semelhante à que eu conhecia do canto, envergonhava­
-me de ter imaginado a nossa reconciliação de uma maneira
tão banal. Pois bem compreendia que ela estava a dar-se. Mas
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 87

isso acontecia agora em algum lado, em grande, muito acima


de mim, onde eu não podia chegar.

57

Esta promessa continua a realizar-se; em dada altura esse


mesmo livro veio juntar-se aos meus livros, aos poucos livros
dos quais nunca me separo. Agora também se me abre nas
passagens que pretendo, e quando as leio, fica por decidir se
penso em Bettine ou em Abelone. Não, Bettine tomou-se mais
real dentro de mim. Abelone, que eu conheci, foi como a pre­
paração para ela, e eis que agora ela desabrochou para mim
em Bettine como no seu ser próprio e involuntário. Pois esta
estranha Bettine criou, com as suas cartas, espaço, a mais es­
paçosa das formas. Desde o princípio, expandiu-se em tudo
como se já tivesse ultrapassado a morte. Em todo o lado se
juntou ao Ser na sua amplitude, nele se integrou, e o que lhe
aconteceu existia eternamente na Natureza; aí se reconheceu
e se separou quase dolorosamente; adivinhou-se penosa e re­
troactivamente como se procedesse de tradições, invocou-se
como quem invoca um espírito e manteve-se firme.
Ainda há pouco eras, Bettine; compreendo-te. Não tem ain­
da a terra o teu calor? E as aves ainda deixam espaço para a
tua voz. O orvalho é outro, mas as estrelas são ainda as estre­
las das tuas noites. Ou não te pertence afinal o mundo? Pois
quantas vezes não o incendiaste com o teu amor e o viste ar­
der e consumir-se e em segredo o substituíste por outro, quan­
do todos dormiam. Sentias-te tão em consonância com Deus,
quando todas as manhãs Lhe exigias uma nova Terra, para que
chegasse a vez a todas as que Ele criara. Parecia-te mesquinho
poupá-las e melhorá-las, tu gastava-las e estendias as mãos
para pedir sempre mais mundo. Pois o teu amor estava à altu­
ra de tudo.
1 88 Rainer Maria Rilke

Corno é possível que o teu amor não sej a por todos narra­
do? Que aconteceu desde então que fosse mais notável? O que
é que os ocupa então? Tu própria conhecias o valor do teu
amor, dizia-lo em voz alta diante do teu maior poeta, para que
ele o tornasse humano; pois ele era ainda elemento. Mas o
poeta dissuadiu os homens do teu amor, ao escrever-te. Todos
leram estas respostas e acreditavam mais nelas, porque o poe­
ta é para eles mais inteligível do que a Natureza. Mas talvez
venha a ser reconhecido que aqui estava o limite da sua gran­
deza. Esta amante foi-lhe imposta e ele não o suportou. Quer
dizer que ele não conseguiu corresponder? Um tal amor não
precisa de qualquer correspondência, tem em si chamamento
e resposta: ele próprio atende o seu pedido. Dever-se-ia ter
humilhado perante esse amor em toda a sua magnificência e
escrever o que ele ditava, com as duas mãos, corno João em
Patrnos, de joelhos. Não havia escolha possível perante esta
voz que «exercia o ofício dos Anjos»; que viera para o envol­
ver e arrebatar até à eternidade. Era esse o carro da sua ígnea
ascensão aos céus. Era esse o mito obscuro preparado para a
hora da sua morte e que ele deixou vazio.

58

O destino gosta de inventar desenhos e figuras. A sua difi­


culdade reside no que é complicado. A própria vida, porém,
tem a dificuldade da simplicidade. Só tem algumas coisas de
urna dimensão que nos excede. O santo, declinando o destino,
escolhe estas coisas por amor a Deus. Mas que a mulher, se­
gundo a sua natureza, tenha de fazer a mesma escolha em re­
lação ao homem, isso evoca a fatalidade de todos os laços de
amor: decidida e sem destino, corno um ser eterno, fica ao
lado dele, que se transforma. Sempre a amante ultrapassa o
amado, porque a vida é maior do que o destino. A sua entrega
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 89

quer ser sem medida: esta é a sua felicidade. A dor inominada


do seu amor, porém, foi sempre esta: exigirem-lhe que limi­
tasse esta entrega.
Nenhuma outra queixa foi alguma vez expressa por mulhe­
res : as duas primeiras cartas de Heloísa contêm apenas essa
queixa e, quinhentos anos mais tarde, ela ergue-se das cartas
da Portuguesa; reconhecerno-la novamente corno um chama­
mento de ave. E subitamente atravessa o claro espaço deste
ponto de vista a mais longínqua figura de Safo, que os séculos
não encontraram, urna vez que a procuraram no destino.

59

Nunca ousei comprar-lhe um jornal. Não tenho a certeza de


que ele tenha de facto ainda alguns exemplares, quando lá
fora, no Jardirn do Luxemburgo, se arrasta lentamente de um
lado para o outro durante toda a tardinha. Volta as costas à
grade e com a mão toca o rebordo da pedra em que se erguem
as barras. Ele adelgaça-se tanto que todos os dias passam mui­
tas pessoas por ele sem o verem. É verdade que tem ainda um
resto de voz e adverte; mas isso não é mais do que um ruído
numa vela ou no fogão ou quando, em intervalos caracteósti­
cos, a água goteja numa gruta. E o mundo está organizado de
tal maneira que há pessoas que durante toda a sua vida pas­
sam por ele na pausa em que ele, mais silenciosamente do que
tudo o que se move, continua a avançar corno um ponteiro,
corno a sombra de um ponteiro, corno o tempo.
Corno eu era injusto em não gostar de olhar para ele.
Envergonho-me de escrever que muitas vezes segui o passo
dos outros perto dele, corno se não soubesse da sua existên­
cia. Então ouvia dizer dentro dele «La Presse», e logo a seguir
outra vez, e urna terceira vez, em intervalos rápidos. E as pes­
soas a meu lado voltavam-se e procuravam a voz. Apenas eu
1 90 Rainer Maria Rilke

me apressava mais do que todos os outros, como se nada me


tivesse chamado a atenção, como se estivesse totalmente ab­
sorto.
E de facto estava. Estava absorto em representá-lo perante
mim mesmo, empreendi o trabalho de o imaginar, e este es­
forço fazia-me suar. Pois eu tinha de o criar como quem cria
um morto, do qual já não existem provas nem componentes;
que tem de ser realizado completamente cá dentro. Sei agora
que me ajudava um pouco pensar nos numerosos Cristos de
marfim estriado, tirados das cruzes, que se encontram espa­
lhados em todos os antiquários. A ideia de alguma Pietà sur­
gia e desaparecia: tudo isto provavelmente só para evocar
uma certa inclinação do seu rosto comprido, e a desolação de
uma barba que crescia à sombra das maçãs do rosto e a ce­
gueira definitivamente dolorosa da sua expressão fechada, di­
rigida obliquamente para o alto. Mas havia, além disso, tantas
coisas que faziam parte dele; pois já então percebera que
nada nele era secundário: nem a maneira como o casaco ou o
sobretudo, levantado atrás, deixava ver todo o colarinho, esse
colarinho baixo que fazia um arco à volta do pescoço estica­
do e cavado sem o tocar; nem a gravata negra-esverdeada,
atada lassa à volta de tudo isso; nem muito especialmente o
chapéu, um velho e rijo chapéu de feltro de copa alta, que ele
usava como todos os cegos usam: sem relação com as linhas
do rosto, sem a possibilidade de formar a partir deste acessó­
rio e de si próprio uma nova unidade exterior; de modo seme­
lhante a qualquer objecto estranho combinado. Na minha co­
bardia de não olhar para ele, levei a coisa a tal ponto que a
imagem deste homem se acabou por condensar em mim, mui­
tas vezes também sem motivo, forte e dolorosamente, numa
miséria tão dura que eu resolvi, movido por ela, intimidar e
suprimir a precisão crescente da minha imaginação, através
dos factos exteriores. Era quase noite. Decidi passar por ele
imediatamente e com toda a atenção.
As Anotações de Malte Laurids Brigge 191

É preciso saber que a Primavera estava a chegar. O vento do


dia deixara de se fazer sentir, as vielas eram compridas e esta­
vam satisfeitas; nas suas saídas brilhavam casas, novas como
cortes frescos de um metal branco. Mas era um metal que nos
surpreendia pela sua leveza. Nas ruas amplas e contínuas pas­
savam muitas pessoas misturando-se, quase sem recear os car­
ros, que eram raros. Devia ser domingo. Os terraços das torres
de Saint-Sulpice mostravam-se alegres e inesperadamente al­
tos no ar calmo e, através das vielas estreitas e quase romanas,
olhava-se involuntariamente a estação do ano. No j ardim e à
entrada havia tanta movimentação de pessoas que não o vi lo­
go. Ou não o reconheci de início por entre a multidão?
Fiquei a saber imediatamente que a minha imaginação nada
valia. A resignação da sua miséria, não limitada por qualquer
cuidado ou disfarce, ultrapassava as minhas possibilidades
criativas. Eu não tinha compreendido nem o ângulo de incli­
nação da sua atitude, nem o terror com o qual a parte interior
das suas pálpebras parecia preenchê-lo completamente. Nun­
ca tinha pensado na sua boca que era retraída como a abertu­
ra de um esgoto. Possivelmente ele tinha recordações ; mas
agora já nada se acrescentava à sua alma, a não ser a sensação
amorfa e quotidiana do rebordo de pedra atrás dele, no qual se
gastava a sua mão. Eu tinha parado e, enquanto via tudo isto
quase ao mesmo tempo, apercebi-me de que ele tinha outro
chapéu e uma gravata sem dúvida domingueira; era aos losan­
gos amarelos e roxos e, quanto ao chapéu, era um chapéu de
palha novo e barato, com uma fita verde. Estas cores não sig-·
nificam nada e é mesquinho da minha parte tê-las fixado. Ape­
nas quero dizer que nele assentavam como a penugem mais
macia no ventre de uma ave. Ele próprio não tinha nenhum
gosto nisso, e quem de todas aquelas pessoas (olhei à minha
volta) poderia pensar que este luxo lhe era dedicado?
Meu Deus, lembrei-me com súbita veemência, assim és Tu,
portanto. Há provas da Tua existência. Esqueci-me de todas e
1 92 Rainer Maria Rilke

nunca exigi nenhuma, pois que imensa responsabilidade não


haveria nessa certeza! E, contudo, agora isso é-me mostrado.
Este é o Teu gosto, isto é o que Te agrada. Que possamos so­
bretudo aprender a suportar e a não julgar. Quais são as coi­
sas graves? Quais as propícias? Só Tu sabes.
Quando for de novo Inverno e eu tiver de ter um sobretu­
do novo - concede-me que eu o use assim enquanto ele for
novo.

60

Não é que me queira distinguir deles quando ando com me­


lhores roupas, desde o princípio minhas, e dou valor a ter re­
sidência em algum lado. Não cheguei ainda a esse ponto. Não
tenho coragem para levar uma vida como a deles. Se me atro­
fiasse um braço, acho que o esconderia. Mas ela (não sei de
resto quem seria ela), ela aparecia todos os dias diante dos ter­
raços dos cafés e, apesar de lhe ser muito difícil tirar o casa­
co e despir as suas confusas roupas exteriores e interiores, não
se poupava ao esforço e tirava e despia durante tanto tempo
que era difícil manter a paciência. E então ficava diante de
nós, modesta, com o seu coto seco e atrofiado, e via-se que era
uma raridade.
Não, não é que me queira distinguir deles; mas seria pre­
sunçoso da minha parte querer ser como eles. Não o sou. Não
teria para tal nem a sua força nem a sua medida. Alimento­
-me e, de refeição em refeição, não tenho qualquer segredo;
mas eles mantêm-se quase como seres eternos . Ficam nas
suas esquinas quotidianas, também em Novembro, e o Inver­
no não os faz gritar. Vem o nevoeiro e toma-os imprecisos e
incertos ; eles são, apesar disso. Andei em viagem, estive
doente, muita coisa se desvaneceu em mim: mas eles não
morreram.
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 93

1 (Nem sequer sei como é possível que as crianças que an­

dam na escola se levantem nos quartos cheios de frio que


cheiram a cinzento; quem é que encoraja estes pequenos es­
queletos apressados a saírem para a cidade crescida, para a in­
clinação turva da noite, para o dia de escola eterno, sempre
pequenos, sempre repletos de pressentimentos, sempre atrasa­
dos. Não faço a mínima ideia da quantidade de auxílio que
continuamente é consumido.)
Esta cidade está cheia de pessoas que lentamente vão desli­
zando para junto deles. A maior parte primeiro resiste. Mas de­
pois existem estas raparigas desbotadas e envelhecidas que se
vão incessantemente abandonando sem resistência, raparigas
fortes, cujo íntimo nunca foi usado, que nunca foram amadas.
Talvez Tu queiras, meu Deus, que eu deixe tudo e as ame.
Se não porque me custa tanto não as seguir, quando me ultra­
passam? Porque invento eu subitamente as palavras mais
doces e nocturnas, e a minha voz se coloca suavemente entre
a garganta e o coração? Por que imagino eu como as ergueria
com um cuidado indizível até ao meu hálito, estas bonecas
com quem a vida brincou, esticando-lhes os braços, Primave­
ra após Primavera, para nada e coisa nenhuma, até ficarem
lassos nos ombros? Nunca caíram de muito alto de uma espe­
rança, por isso não se quebraram; mas estão amachucadas e já
demasiado estragadas para a vida. Apenas gatos perdidos vêm
ter com elas à noite ao seu quarto e secretamente as arranham
e dormem sobre elas. Algumas vezes sigo uma ao longo de
duas vielas. Avançam junto às casas, estão sempre a vir pes­
soas que as encobrem, elas desaparecem atrás delas e conti­
nuam como nada.
No entanto eu sei que, se alguém agora as tentasse amar,
elas ser-lhe-iam pesadas como pessoas que foram longe de
mais e deixam de caminhar. Creio que só Jesus as suportaria,

1 Escrito à margem no manuscrito.


1 94 Rainer Maria Rilke

Ele que ainda tem a Ressurreição em todos os membros; mas


elas não lhe importam. Apenas as amantes O seduzem e não
aquelas que esperam com um pequeno talento para serem
amadas, como com uma lâmpada apagada.

6I

Sei que, se estiver destinado ao que há de extremo, de nada


me servirá disfarçar-me com as minhas melhores roupas. Pois
não resvalou ele no meio do seu reino para junto dos últimos?
Ele que, em vez de subir, desceu até ao fundo. É verdade, eu
acreditei por vezes nos outros reis, embora os parques nada
mais provem. Mas é de noite, é Inverno, estou gelado, acredi­
to nele. Pois a magnificência dura apenas um momento, e nós
nunca vimos nada de mais duradouro do que a miséria . Mas o
.
rei deve durar.
Não é este o único que se conservou sob a sua loucura
como flores de cera sob uma campânula? Pelos outros reza­
vam nas igrejas para que tivessem vida longa, mas dele exigia
o chanceler Jean Charlier Gerson que fosse eterno, e isso na
altura em que ele já era o mais necessitado de todos, incapaz
e de uma pobreza total, apesar da sua coroa.
Era na época em que, de tempos a tempos, homens desco­
nhecidos de cara pintada de preto o assaltavam na cama para
lhe arrancarem as camisas apodrecidas dentro das úlceras que
ele há muito tomava como parte de si próprio. Havia pouca
luz no quarto e eles puxavam os farrapos apodrecidos por de­
baixo dos seus braços rígidos, tal como os conseguiam agar­
rar. Depois, um deles aproximava uma luz e só então desco­
briam uma chaga purulenta sobre o peito em que se tinha
afundado o amuleto de ferro, porque ele todas as noites o
comprimia contra si com toda a força do seu fervor; agora es­
tava lá no fundo, terrivelmente precioso, num fio de pérolas
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 95

de pus, como um resto que operava milagres na cavidade de


um relicário. Tinham escolhido ajudantes austeros, mas não
eram insensíveis ao nojo quando os vermes, incomodados, se
levantavam na sua direcção do fustão da Flandres e, caindo
das pregas, subiam por um qualquer lugar das suas mangas.
Estava sem dúvida pior do que nos dias da parva regina; pois
ela ainda gostara de facto de estar deitada a seu lado, tal
como era: jovem e clara. Depois morrera. E já mais ninguém
ousara deitar uma concubina na cama deste corpo em decom­
posição. Ela não deixara como herança as palavras e as carí­
cias com as quais conseguia aliviar o rei. Assim mais ninguém
penetrou na confusão deste espírito; ninguém o ajudava a sair
dos desfiladeiros da sua alma; ninguém o compreendia quan­
do ele próprio de repente de lá saía, com o olhar redondo de
um animal que se dirige às pastagens. Quando ele, então, re­
conhecia o rosto ocupado de Juvenal, lembrava-se do seu rei­
no tal como fora nos últimos tempos. E queria recuperar o que
havia perdido.
Mas os acontecimentos daquelas circunstâncias não permi­
tiam que as coisas fossem mitigadas . Quando acontecia algu­
ma coisa, acontecia com toda a gravidade, e, quando se con­
tava, era como se fosse de uma só peça. Como seria possível
atenuar o facto do seu irmão ter sido assassinado, quando on­
tem Valentina Visconti, a quem sempre chamava a sua queri­
da irmã, ajoelhara diante dele, levantando uma série de véus
negros de viuvez do seu rosto desfigurado de queixa e acusa­
ção? E quando hoje compareceu lá um advogado tenaz e há­
bil em argumentos, que provou, horas a fio, o direito do prín­
cipe assassino até o crime se tomar transparente e parecer
ascender ao céu luminosamente. E ser justo significava dar ra­
zão a todos; pois Valentina de Orleães morreu de desgosto,
embora lhe tivessem prometido vingança. E de que serviu
perdoar e voltar a perdoar ao duque de Borgonha? Sobre ele
descera o obscuro ímpeto do desespero de tal modo que, já ha-
1 96 Rainer Maria Rilke

via semanas, habitava numa tenda no interior da floresta de


Argilly e afirmava ter de ouvir à noite o bramar dos veados
para se acalmar.
Quando se pensava em tudo isso, sempre até ao fim, e não
era longo, o povo desejava ver alguém, e via-o: perplexo. Mas
o povo alegrava-se com o que via; compreendia que este era o
rei: este silencioso, este paciente, que apenas existia para per­
mitir que Deus agisse para lá dele na sua impaciência tardia.
Nestes momentos esclarecidos, na varanda do seu Hôtel de
Saint-Pol, talvez o rei pressentisse o seu progresso secreto;
vinha-lhe à lembrança o dia de Roosbecke quando o seu tio
von Beery o tomara pela mão para o conduzir ante o cenário
da sua primeira vitória acabada; então, naquele dia de No­
vembro, cuja claridade estranhamente se prolongara, ele abar­
cara com o olhar as massas de cidadãos de Gand, tal como sur­
giam estrangulados na sua própria estreiteza, quando a
cavalaria avançara contra eles de todos os lados. Mesclados
uns nos outros como um cérebro monstruoso, jaziam em mon­
tes que eles próprios tinham formado para cerrar fileiras.
Ficava-se sem respiração quando aqui e ali se via os seus ros­
tos asfixiados; não se podia deixar de imaginar que o ar fora
expulso para longe destes cadáveres, cujo amontoado ainda os
mantinha de pé, pela súbita fuga de tantas almas desesperadas.
Tinham-lhe gravado este facto na memória como o início
da sua fama. E ele fixou-o. Mas se outrora se dera o triunfo da
morte, agora, que ele estava erguido sobre os seus joelhos fra­
cos diante de todos aqueles olhos, tratava-se do mistério do
amor. Através dos outros ele vira que aquele campo de bata­
lha se podia compreender, mesmo sendo tão monstruoso. Mas
·
agora nada disso requeria compreensão; era exactamente tão
maravilhoso como outrora o veado com o colar de ouro na
floresta de Senlis. Só que agora ele próprio era a aparição e os
outros estavam mergulhados na contemplação. E ele não du­
vidava de que eles estivessem sem respiração e cheios da
As Anotações de Malte Laurids Brigge 197

mesma vasta expectativa que outrora o assaltara naquele dia


de caça, durante a sua adolescência, quando a aparição silen­
ciosa saiu dos ramos a olhar. O mistério da sua visibilidade
alargava-se à sua forma suave; ele não se movia com medo de
perecer, o seu sorriso fino sobre o rosto largo e simples assu­
mia uma duração natural, como nos santos de pedra, e não o
cansava. Assim se manteve e foi um daqueles momentos que
são a eternidade, vista em resumo. A multidão teve dificulda­
de em suportá-lo. Fortalecida, alimentada por uma consolação
inesgotavelmente multiplicada, rompeu o silêncio com o gri­
to da alegria. Mas lá em cima na varanda já estava apenas Ju­
venal de Ursins, e ele gritou para dentro do primeiro momen­
to de calma que o rei iria à rue Saint-Denis, à Irmandade da
Paixão, para ver os mistérios .
Em dias como esses, o rei estava cheio de uma suave cons­
ciência. Se um pintor daquela época tivesse procurado uma re­
ferência para pintar a vida no paraíso, não teria encontrado
modelo mais perfeito do que a figura apaziguada do rei quan­
do se encontrava a uma das altas janelas do Louvre, sob a in­
clinação dos seus ombros. Ele folheava o pequeno livro de
Christine de Pisan, intitulado O Caminho do Longo Estudo,
que lhe era dedicado. Não lia as polémicas eruditas daquele
parlamento alegórico que se propusera descobrir o príncipe
digno de reinar sobre o mundo. O livro abria-se sempre dian­
te dele nas passagens mais simples: onde se falava do coração
que, durante treze anos, como uma retorta sobre o fogo da dor,
apenas servira para destilar a água da amargura para os olhos ;
ele compreendia que a verdadeira consolação só começava
quando a felicidade desaparecera o suficiente e para sempre.
Nada lhe era tão próximo como esta consolação. E, enquanto
o seu olhar aparentemente abrangia a ponte do outro lado, gos­
tava de ver o mundo de então através deste coração tocado pe­
la forte sibila de Cumeia em direcção aos grandes caminhos :
os mares audazes, cidades com torres estranhas, fechadas
1 98 Rainer Maria Rilke

pela força das distâncias; a solidão extática das montanhas


reunidas e os céus prescrutados com dúvida receosa, que só
então se estavam a fechar como o crânio de um bébé de peito.
Mas, quando alguém entrava, o rei sobressaltava-se, e o seu
espírito ia-se lentamente turbando. Deixava que o tirassem da
janela e o ocupassem. Tinham-lhe criado o hábito de ficar ho­
ras a fio a olhar imagens, o que lhe era grato. Apenas o abor­
recia que, ao folhear, nunca tivesse diante de si várias imagens
e que elas estivessem agarradas aos in-fólios, de modo a não
se poder misturá-las. Então alguém se lembrou de um jogo de
cartas que tinha caído completamente no esquecimento, e o
rei concedeu o seu favor àquele que lho trouxe, tanto lhe agra­
daram estes cartões que eram coloridos e se podiam deslocar
e tinham muitas figuras. E enquanto os jogos de cartas se tor­
navam moda entre os cortesãos, o rei ficava sentado na sua
biblioteca e jogava sozinho. Exactamente como ele agora co­
locava dois reis um ao lado do outro, assim os tinha Deus jun­
tado recentemente., a ele e ao imperador Venceslau; muitas ve­
zes morria uma rainha e então ele depunha sobre ela um ás de
copas, como se fosse uma pedra tumular. Não o admirava que
neste jogo houvesse vários Papas ; colocava Roma ao fundo, à
beira da mesa e, sob a sua mão direita, estava Avinhão. Roma
era-lhe indiferente, por qualquer motivo imaginava-a redonda
e não lhe dava mais atenção. Mas Avinhão conhecia ele.
E, mal pensava nela, a sua memória repetia o alto palácio her­
mético e excedia-se no esforço. Fechava os olhos e tinha de
respirar fundo. Receava maus sonhos na noite seguinte.
Mas no conjunto era verdadeiramente uma ocupação re­
pousante, e tinham razão em lha sugerirem continuamente.
Tais horas confirmavam-lhe que era rei, o rei Carlos VI. Isto
não quer dizer que ele exagerasse; estava longe dele a opinião
de ser mais do que uma folha daquelas, mas adquiria consis­
tência a certeza de que também era uma determinada carta,
talvez uma carta má, jogada com fúria e sempre a perder: mas
As Anotações de Malte Laurids Brigge 1 99

sempre a mesma: mas nunca uma outra. E, no entanto, quan­


do passava uma semana em regular confirmação de si próprio,
sentia-se apertado dentro de si. A pele esticava-se-lhe na testa
e na nuca, como se de repente sentisse o seu contorno dema­
siado nítido. Ninguém sabia a que tentação cedia quando per­
guntava então pelos mistérios e mal continha a sua impaciên­
cia até eles começarem. E quando começavam, residia mais
na rue Saint-Denis do que no seu Hôtel de Saint-Pol.
O poder fatal destes poemas representados era o de se com­
pletarem e prolongarem continuamente e de crescerem até às
dezenas de milhares de versos, de modo que o seu tempo aca­
bava por ser o tempo real; algo como se se fizesse um globo
do tamanho da Terra. O estrado oco sob o qual ficava o Infer­
no e sobre o qual, montado junto a um pilar, o andaime sem
parapeito de uma varanda significava o nível do Paraíso, ape­
nas contribuía para diminuir a ilusão. Pois este século tinha de
facto tomado terrenos o Céu e o Inferno: ele vivia das forças
de ambos para sobreviver a si próprio.
Corriam os dias da Cristandade avinhonesa que, uma gera­
ção atrás, se apinhara à volta de João XXII, num refúgio tão
involuntário que, no lugar do seu pontificado, logo a seguir a
ele, surgira a mole deste palácio, fechado e pesado como um
último corpo de refúgio para as almas desalojadas de todos.
Mas ele próprio, esse pequeno ancião leve e espiritual, habita­
va ainda no Aberto. Enquanto ele, mal chegara, começou, sem
demora, a actuar em todos os sentidos rápida e concisamente,
havia gamelas temperadas com veneno na sua mesa; o con­
teúdo da primeira taça tinha de ser sempre deitado fora, pois o
bocado de unicórnio ficava sempre descolorado quando o ofi­
cial que servia vinho o retirava. Perplexo, sem saber onde as
havia de esconder, o septuagenário andava com as figuras de
cera que tinham feito à sua imagem para nelas o destruírem; e
arranhava-se nas grandes agulhas com que estavam atravessa­
das. Podiam-se derreter. Mas já se sobressaltara tanto com es-
200 Rainer Maria Rilke

tes simulacros secretos que, contra a sua forte vontade, pensa­


ra várias vezes que com isso poderia dar morte a si próprio e
desaparecer corno a cera junto ao fogo. O seu corpo diminuí­
do cada vez se tornava mais seco de terror e mais resistente.
Mas agora ousavam atacar o corpo do seu domínio; a partir de
Granada, os judeus foram incitados a destruir todos os cris­
tãos, e desta vez tinham comprado executores mais terríveis.
Ninguém duvidava, depois dos primeiros rumores, da conspi­
ração dos leprosos ; algumas pessoas já os tinham visto a dei­
tar aos poços molhos da sua terrível decomposição. Não era a
credulidade que levava a considerar imediatamente que isto
fosse possível; a fé, pelo contrário, tornara-se tão pesada que
escapava dos que estavam trémulos e caía até ao fundo dos po­
ços. E de novo o ancião zeloso tinha de afastar o veneno do
sangue. Na altura dos seus ímpetos supersticiosos tinha decre­
tado para si próprio e para os que o rodeavam a recitação do
Angelus contra os demónios do crepúsculo; e então era tocada
pelos sinos em todo esse mundo agitado, todos os fins de tar­
de, essa oração apaziguadora. Mas de resto todas as bulas e
breves emitidos por ele pareciam mais um vinho com especia­
rias do que urna tisana. O Império não se submetera ao seu tra­
tamento, mas ele não se cansava de o cumular de provas que
evidenciavam a doença desse Império; e do Extremo Oriente
já vinham emissários consultar este médico autocrático.
Mas então aconteceu o inacreditável. No dia de Todos os
Santos pregara mais prolongada e ardentemente do que era
habitual ; numa necessidade súbita de ele próprio voltar a ver
a sua fé, mostrara-a. Retirara-a lentamente, do seu sacrário de
oitenta e cinco anos, com todas as suas forças, e expusera-a no
púlpito: e então gritaram-lhe na cara. Toda a Europa gritou:
esta fé era má.
Então o Papa desapareceu. Durante longos dias nenhuma
acção partiu dele, ficava de joelhos no seu oratório e exami­
nava o mistério dos que actuarn e causam dano às suas almas.
As Anotações de Malte Laurids Brigge 20 1

Por fim reapareceu, exausto do pesado recolhimento, e retrac­


tou-se. Retractou-se uma vez após outra. Retractar-se tornou­
-se a paixão senil do seu espírito. Podia acontecer mandar
acordar os cardeais durante a noite, para com eles falar sobre
o seu arrependimento. E talvez o que fizesse durar a sua vida
para além do habitual fosse afinal apenas a esperança de se
humilhar também perante Napoleão Orsini, que o detestava e
não queria comparecer.
Jacob de Cahors retractara-se. E poderia pensar-se que o
próprio Deus quisera demonstrar o erro dele, uma vez que
pouco depois fez surgir o filho do conde de Ligny que parecia
apenas aguardar na terra a sua maioridade para participar, vi­
rilmente, nos deleites da alma que o céu lhe reservava. Ainda
viviam muitos que se lembravam deste rapaz claro no tempo
do seu cardinalato, e de quando foi ordenado bispo no início
da sua adolescência, e de quando, quase aos dezoito anos,
morrera num êxtase da sua perfeição. Encontrava-se antigos
mortos: pois junto ao seu túmulo o ar no qual se encontrava,
libertada, pura vida, actuou ainda por muito tempo sobre os
cadáveres. Mas não havia algo desesperado mesmo nesta san­
tidade precoce? Não era uma injustiça para todos que o esto­
fo puro desta alma tivesse apenas acabado de ser tecido, co­
mo se apenas se tratasse de o tingir luminosamente na já
preparada cuba de escarlate da época? Não se sentiu como
que um contragolpe quando este jovem príncipe saltou da
Terra para a sua ascensão apaixônada ao Céu? Porque é que
os luminosos não permaneciam entre os laboriosos cerieiros?
Não foi esta escuridão que levara João XXII a afirmar que an­
tes do Juízo Final não haveria bem-aventurança plena, em
parte alguma, nem mesmo entre os bem-aventurados? E, na
verdade, quanta teimosa obstinação não era precisa para ima­
ginar que, enquanto aqui reinava um caos tão denso, existiam
algures rostos já a contemplar o esplendor de Deus, encosta­
dos a anjos e saciados na inesgotável visão beatífica.
202 Rainer Maria Rilke

62

Aqui estou sentado, nesta noite fria, e escrevo e sei tudo is­
so. Talvez o saiba porque outrora, quando era pequeno, veio
ao meu encontro aquele homem. Era muito grande, creio até
que daria nas vistas devido à sua altura.
Por muito inverosímil que pareça, consegui de algum
modo sair de casa sozinho ao cair da noite; corri, dobrei uma
esquina, e nesse mesmo momento fui contra ele. Não com­
preendo como o que então aconteceu pôde decorrer em cerca
de cinco segundos. Por muito condensada que seja a sua des­
crição, ela dura muito mais tempo. Tinha-me magoado ao em­
bater contra ele; eu era pequeno, já me parecia muito não ter
chorado e involuntariamente esperava também ser consolado.
Como ele não o fez, parti do princípio de que estava perple­
xo; supus que não se lembrava do dito adequado para resolver
esta situação. Já me dava por bastante contente por o poder
ajudar a esse respeito mas, para tal, era preciso olhar para o
seu rosto. Já disse que ele era grande. Mas não se inclinara
para mim, como seria bem natural, e deste modo encontrava­
-se a uma altura para a qual eu não estava preparado. Conti­
nuava diante de mim apenas o cheiro e a dureza particular do
seu fato que eu tocara. De repente apareceu o seu rosto. Co­
mo era? Não sei, nem quero saber. Era o rosto de um inimigo.
E, ao lado deste rosto, quase colado a ele, à altura dos seus
olhos terríveis, como uma segunda cabeça, estava o seu punho
cerrado. Antes de ter tempo de baixar o meu rosto, já me pu­
sera a correr; esquivei-me pela sua esquerda e corri sempre
em frente por uma deserta e horrível viela abaixo, a viela de
uma cidade estranha, de uma cidade em que nada se perdoa.
Nessa altura vivi o que agora compreendo: aquele tempo pe­
sado, compacto, desesperado. O tempo em que o beijo de duas
pessoas que se reconciliavam era apenas o sinal para os assas­
sinos que estavam por ali. Bebiam do mesmo cálice, monta-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 203

vam perante o olhar de todos o mesmo cavalo e diziam que


dormiam à noite na mesma cama. E, através deste contacto, a
aversão mútua tomava-se tão incontível que, sempre que um
via o pulsar das veias do outro, um nojo doentio o soerguia
como à vista de um sapo. O tempo em que um irmão assalta­
va e aprisionava o outro irmão por causa da sua parte maior da
herança; é verdade que o rei intervinha a favor do maltratado
e lhe concedia a liberdade e os bens; ocupado com outros des­
tinos mais distantes, o mais velho oferecia-lhe a paz e mani­
festava-lhe em cartas o seu arrependimento pela injustiça co­
metida. Mas, com tudo isso, o que fora libertado já não
conseguia ter calma. O século mostra-o com vestes de pere­
grino a andar de igreja em igreja, inventando votos cada vez
mais estranhos. Coberto de amuletos, murmura aos monges de
Saint-Denis os seus temores, e nos seus registos ficou inscrito
durante muito tempo o círio de cem arráteis que achou por
bem consagrar a S. Luís. Não voltou a ter uma vida própria; até
ao fim sentia pairar sobre o seu coração a inveja e a ira do seu
irmão, como uma constelação desfigurada. E o conde de Foix,
Gaston Phõbus, que conquistou a admiração de todos, não as­
sassinara ele em público, em Lourdes, o seu primo Emault, ca­
pitão do rei de Inglaterra? E o que era este crime inequívoco
perante o cruel acaso de ele não pôr de lado o pequeno e afia­
do canivete de unhas, quando, com a sua mão bela e famosa,
aflorou o pescoço descoberto do seu filho deitado enquanto o
repreendia com brusquidão? O quarto estava escuro, foi preci­
so acender a luz para ver o sangue que vinha de tão longe e
agora para sempre abandonava uma linhagem admirável, ao
sair secretamente da minúscula ferida deste rapaz exausto.
Quem podia ser forte e resistir ao crime? Quem é que nes­
te tempo não sabia que as realidades mais extremas eram ine­
vitáveis? Aqui e além, alguém que de dia vira com os seus
próprios olhos o olhar intencionalmente assassino do que o ia
matar era invadido por um estranho pressentimento. Então
204 Rainer Maria Rilke

recolhia-se, fechava-se, acabava de escrever o seu testamento


e mandava vir finalmente a padiola de vimes, o hábito dos Ce­
lestinos e as cinzas da penitência. Menestréis desconhecidos
apareciam diante do seu castelo e ele concedia-lhes presentes
principescos por causa da sua voz, que era concorde com os
seus vagos pressentimentos. No olhar dos cães havia uma dú­
vida, e eles sentiam-se cada vez menos seguros nas tarefas
que lhes estavam confiadas. Do lema que vigorara durante
toda a vida, saía agora, silenciosamente, um novo e aberto
sentido secundário. Muitos hábitos de longa data passavam a
parecer antiquados, mas era como se não fosse já pos.sível for­
mar substitutos para eles. Se surgiam projectos, era-lhes atri­
buído grande destaque, sem se lhes dar um verdadeiro crédi­
to. Em contrapartida, certas recordações alcançavam uma
inesperada validade definitiva. À noite, à lareira, pensava
abandonar-se a elas. Mas a noite, lá fora, que já não se co­
nhecia, tomava-se subitamente muito forte para o ouvido.
O ouvido, experimentado em muitas noites livres ou perigosas,
distinguia fragmentos isolados do silêncio. E, no entanto, des­
ta vez era diferente. Não era a noite entre o ontem e o hoje: uma
noite. Noite. Beau Sire Dieu [Senhor meu Deus] , e depois a
Ressurreição. Em tais horas, mal o alcançava o cântico em lou­
vor de uma mulher amada: encontravam-se todas ocultas em
albas e cantigas de amor; tomaram-se ininteligíveis sob longos
nomes pomposos que se arrastavam. Quando muito, no escuro,
eram como o olhar pleno e feminino de um filho bastardo.
E em seguida, antes da ceia tardia, a reflexão sobre as mãos
na bacia de prata. As suas próprias mãos. Seria possível esta­
belecer uma relação entre o que lhes era próprio? Uma conse­
quência, uma continuação no tomar e no deixar? Não. Todos
tentavam a afirmação e a negação. Todos se anulavam, não
havia nenhuma acção.
Não havia nenhuma acção, à excepção do que se passava
entre os irmãos missionários. O próprio rei, ao vê-los repre-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 205

sentar, inventou a carta de privilégios que lhes foi destinada.


Tratava-os por seus queridos irmãos ; nunca ninguém lhe to­
cara assim o coração. Foi-lhes literalmente concedido andar
entre os seculares na sua plena significação. Pois o rei nada
desejava tanto como a sua actuação contagiante que arrastas­
se muitos para a sua forte acção, pautada pela ordem. No que
lhe dizia respeito, desej ava aprender com eles. Não enverga­
va, tal como eles, os sinais e o vestuário de um certo sentido?
Quando os olhava, era-lhe possível acreditar que conseguiria
aprender isto: ir e vir, afirmar e inclinar-se, de modo a não
suscitar nenhuma dúvida. Imensas esperanças invadiam-lhe o
coração. Nesta sala do Hospital da Trindade, inquietantemen­
te iluminada e estranhamente difusa, sentava-se ele todos os
dias no seu melhor lugar e levantava-se de excitação e
continha-se como um aluno. Outros choravam; ele, porém, es­
tava cheio de lágrimas interiores e brilhantes e apenas entre­
laçava e comprimia as mãos frias, para suportar tudo isso. Por
vezes, num momento limite, quando um actor acabava de re­
citar o seu papel e saía de repente do seu grande olhar, ele er­
guia o rosto e assustava-se: desde há quanto tempo estava lá
Ele, o Senhor São Miguel, lá em cima, tendo avançado até à
beira do estrado na sua armadura de prata resplandecente?
Nesses momentos costumava erguer-se. Olhava à sua volta
como antes de tomar uma decisão. Estava mesmo quase a com­
preender a contrapartida desta acção: a paixão grande, angus­
tiante e profana em que ele representava o seu papel. Mas de re­
pente isso passava. Todos se movimentavam sem sentido.
Archotes abertos aproximavam-se dele e sombras informes pro­
jectavam-se na abóbada. Pessoas que ele não conhecia puxavam
por ele. Queria representar: mas da sua boca nada saiu, os seus
movimentos não formavam gestos. As pessoas comprimiam-se
tão estranhamente à sua volta que lhe veio à ideia que tinha de
carregar com a cruz. E queria esperar que lha trouxessem. Mas
eles eram mais fortes e empurraram-no lentamente para fora.
206 Rainer Maria Rilke

Por fora muita coisa mudou. Não sei como. Mas por dentro
e perante Ti, meu Deus, por dentro e perante Ti, Espectador:
não carecemos nós de acção? Apercebemo-nos, é certo, de
que não sabemos o nosso papel, procuramos um espelho, que­
remos descaracterizar-nos, despoj ar-nos do que é falso e ser
autênticos. Mas algures, preso em nós, permanece ainda um
pedaço de disfarce de que nos esquecemos. Nas nossas so­
brancelhas fica um vestígio de exagero, não notamos que os
cantos da boca estão retorcidos. E assim andamos nós, escár­
nio e metade de nós mesmos: nem seres autênticos, nem ac­
tores.

Foi no teatro de Orange. Sem levantar completamente os


olhos, apenas consciente das pedras fendidas que presente­
mente constituem a sua fachada, eu entrara pela pequena
porta envidraçada do guarda. Encontrei-me entre torsos de
colunas deitadas e pequenas alteias que, por um instante ape­
nas, me ocultaram a concha aberta do anfiteatro que ali se en­
contrava, cortada pelas sombras da tarde como um gigantesco
e côncavo relógio de sol. Avancei rapidamente na sua direc­
ção. À medida que subia por entre as bancadas, sentia o meu
tamanho diminuir naquele ambiente. No alto, um pouco mais
acima, encontravam-se, mal distribuídos; alguns desconheci­
dos de curiosidade ociosa; as suas roupas eram desagradavel­
mente nítidas, mas a sua escala era insignificante. Por alguns
instantes olharam-me, surpreendidos pela minha pequenez.
Isso fez com que me voltasse.
Oh, eu estava completamente desprevenido. Ali represen­
tava-se. Um drama imenso e sobre-humano decorria, o drama
As Anotações de Malte Laurids Brigge 207

deste imponente cenário cuj a estrutura vertical se apresentava


tríplice, retumbante de grandeza, quase aniquiladora e subita­
mente contida no seu excesso.
Apoderou-se de mim uma ditosa agitação. O que ali se er­
guia, com suas sombras dispostas em forma de rosto, com a
obscuridade concentrada na boca do seu centro, limitado em
cima pela cabeleira de anéis iguais da cornija em coroa: era a
forte máscara antiga que tudo ocultava e detrás da qual o
mundo se condensava num rosto. Aqui, neste grande anfitea­
tro, reinava uma existência expectante, vazia e absorvente:
todo o acontecer estava além: Deuses e Destino. E de além vi­
nha (quando se olhava bem para o alto), leve, por sobre o
cimo do muro: o eterno cortejo dos Céus.
Esta hora, compreendo-o neste momento, excluiu-me para
sempre dos nossos teatros. Que hei-de ir lá fazer? Que hei-de
fazer perante uma cena na qual esta parede (a iconostase das
igrejas russas) foi demolida, por já se não ter a força para,
através da sua espessura, fazer passar a acção que, etérea, se
escapa sob a forma de gotas de azeite cheias e pesadas. Ago­
ra, as peças caem em pedaços por entre o crivo largo dos pal­
cos e acumulam-se e são removidas quando excedem o limi­
te. É a mesma realidade crua que se encontra nas ruas e nas
casas, só que ali se acumula mais do que uma única noite
pode comportar.
1 (Sejamos sinceros: não temos teatro, tal como não temos

Deus: para isso é preciso comunhão. Cada um tem as suas


ideias e receios específicos e apenas mostra aos outros o que
lhe convém e agrada. Vamos reduzindo continuamente o nos­
so entendimento até atingir o mínimo necessário, em vez de
gritarmos contra a parede de uma aflição comum, atrás da qual
o inconcebível tem tempo de se concentrar e intensificar.)

1 Escrito à margem no manuscrito.


208 Rainer Maria Rilke

65

Se tivéssemos teatro, tu, ó Trágica, estarias sempre tão es­


guia, tão despojada, tão sem subterfúgios diante daqueles que
satisfazem a sua apressada curiosidade na tua dor exposta? Já
outrora em Verona previras, ó indizivelmente comovedora, a
realidade do teu sofrimento, quando, ainda quase criança, ao
representar, empunhavas puras rosas diante de ti como a par­
te exterior de uma máscara que duplamente te escondesse.
É verdade que eras filha de actores, e quando os teus repre­
sentavam queriam ser vistos; mas tu degeneraste. Para ti, esta
profissão devia tomar-se o que foi para Mariana Alcoforado,
sem que ela se desse conta, o estado religioso: um disfarce su­
ficientemente denso e duradouro para, por detrás dele, poder
ser infeliz sem restrições, com o mesmo fervor com o qual os
bem-aventurados invisíveis são bem-aventurados. Em todas
as cidades onde estiveste descreveram os teus gestos; mas não
compreenderam como tu, perdendo a esperança de dia para
dia, continuavas a erguer diante de ti um poema para que ele
te ocultasse. Colocavas o teu cabelo, as tuas mãos, qualquer
coisa opaca nos lugares translúcidos; embaciavas com o teu
hálito os que eram transparentes ; fazias-te pequena;
escondias-te como se escondem as crianças, e depois lançavas
aquele breve grito de felicidade, e apenas um anjo, quando
muito, poderia procurar-te. Mas quando então erguias cuida­
dosamente o olhar, não havia dúvida de que te tinham visto
todo aquele tempo, todos aqueles que se encontravam na sala
feia, oca, repleta de olhos: a ti, a ti, a ti e só a ti.
E tinhas então vontade de lhes estender o teu braço dobra­
do, fazendo com os dedos o sinal contra o mau-olhado. Tinhas
vontade de lhes arrancar o teu rosto de que se alimentavam.
Tinhas vontade de seres tu própria. Aos que contracenavam
contigo faltava-lhes coragem; como se os tivessem fechado
com uma pantera, rastejavam ao longo dos bastidores e di-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 209

ziam o que era necessário, só para não te irritarem. Mas tu


arrastava-los para a frente e aí os colocavas, tratando-os como
seres reais. As portas frouxas, os reposteiros ilusórios, os ob­
jectos sem reverso, impeliam-te à réplica. Sentias o teu cora­
ção elevar-se incessantemente até uma realidade imensa e, as­
sustada, tentavas novamente afastar de ti os olhares como
longos fios de teias de aranha trazidos pelo vento no Verão de
S . Martinho: mas nessa altura já irrompiam os aplausos por
temor ao pior: como para desviarem de si, no último momen­
to, algo que os obrigaria a mudar de vida.

66

As mulheres amadas vivem mal e correm perigo. Ai, se elas


se vencessem e tomassem amantes ! À volta das amantes tudo
é segurança. Ninguém já suspeita delas, e elas próprias não
estão em condições de se traírem. Nelas o segredo tomou-se
intacto, gritam-no inteiro como rouxinóis, não o dividem.
O seu lamento apenas por um homem é causado; mas toda a
Natureza é conforme: o lamento é causado por um ser eterno.
Lançam-se em perseguição daquele que perderam, mas
ultrapassam-no mal dão os primeiros passos e diante delas
apenas está Deus. A sua lenda é a de Bíblis, que perseguiu
Caunus até à Lícia. O ímpeto do seu coração levou-a a correr
mundo no seu encalço até se lhes esgotarem as forças ; mas era
tão forte a agitação do seu ser que, desfalecendo, reapareceu
no outro lado da morte sob a forma de fonte, pressurosa,
como fonte pressurosa.
Que outra coisa sucedeu à Portuguesa, senão ela ter-se tor­
nado interiormente fonte? E a ti, Heloísa? E a vós, amantes,
cujos lamentos chegaram até nós : Gaspara Stampa, condessa
de Die e Clara d' Anduze, Louise Labbé, Marceline Desbor­
des, Elisa Mercoeur? Mas tu, pobre A'issé fugitiva, já hesitas-
210 Rainer Maria Rilke

te e cedeste. Exausta Julie Lespinasse. Desolada lenda do par­


que ditoso: Marie-Anne de Clermont.
Recordo ainda nitidamente uma ocasião, outrora, em minha
casa, quando encontrei um estojo de jóias; tinha dois palmos
de tamanho, era em forma de leque, com um rebordo de flo­
res decalcadas sobre o marroquim verde-escuro. Abri-o: esta­
va vazio. Posso dizê-lo agora, passado tanto tempo. Mas, na
altura em que o abri, vi apenas em que consistia este vazio:
em veludo, numa pequena elevação de veludo claro, já gasto;
no encaixe da jóia que nele se perdia, vazio, num pequeno ras­
to de melancolia mais claro. Por um instante era possível
suportá-lo. Mas talvez sej a sempre assim para aqueles que fo­
ram amados e ficaram para trás.

Folheai os vossos diários no sentido inverso. Não houve


sempre um tempo, em tomo das Primaveras, em que o irrom­
per do ano vos atingia como uma censura? Havia em vós o de­
sejo de estar alegre e, no entanto, quando saíeis para o ar livre
e amplo, surgia na atmofera exterior uma certa estranheza, e
sentíeis insegurança no caminhar, como a bordo de um barco.
O j ardim começava; mas vós (era mesmo assim) arrastáveis
para dentro dele o Inverno e o ano anterior; para vós era, no
melhor dos casos, uma continuação. Enquanto esperáveis a
participação da vossa alma, sentíeis de repente o peso dos
vossos membros, e algo como a possibilidade de ficar doente
penetrava no vosso pressentimento aberto. Atribuíei-lo ao
vosso vestido demasiado leve, ajustáveis a écharpe em volta
dos ombros, corríeis até ao fim da álea: e depois paráveis, de
coração aos saltos, na ampla rotunda, decididas a estar de
acordo com tudo isso. Mas um pássaro cantava e estava sozi­
nho e renegava-vos. Ai, deveríeis ter morrido?
As Anotações de Malte Laurids Brigge 21 1

Talvez. Talvez sej a novo resistir a isto: ao ano e ao amor.


Flores e frutos estão maduros quando caem; os animais
sentem-se e encontram-se uns aos outros e contentam-se com
isso. Mas nós, que nos propusemos alcançar Deus, não pode­
mos dar por terminado o nosso trabalho. Adiamos a nossa na­
tureza, precisamos ainda de tempo. Que é para nós um ano?
Que são todos? Ainda antes de termos começado Deus, j á Lhe
imploramos: deixa-nos sobreviver a esta noite. E depois as
doenças. E depois o amor.
Que Clémence de Bourges tivesse de morrer ao desabro­
char ! Ela, que era incomparável; entre os instrumentos que sa­
bia tocar como ninguém, o mais belo, mesmo no mínimo tom
da sua voz, ela própria tocava inesquecivelmente. A sua ju­
ventude era tão resoluta e elevada que uma amante torrencial
pôde dedicar a este coração nascente o livro de sonetos em
que cada verso estava insaciado. Louise Labbé não receou as­
sustar esta criança com a extensão do sofrimento do amor.
Mostrava-lhe o crescimento nocturno da saudade; prometia­
-lhe a dor como um espaço maior do mundo; e pressentia que
ela, com a sua mágoa experimentada, ficava aquém daquela
mágoa obscuramente esperada que conferia a esta adolescen­
te a sua beleza.

68

Raparigas da minha terra natal ! Quem me dera que a mais


bela de vós encontrasse, no Verão, numa tarde, na bilioteca
sombria, o livrinho que Jean de Tournes imprimiu em 1 556.
Que ela levasse o pequeno volume refrescante e liso para o
pomar cheio de zumbidos, ou para o outro lado até junto do
Flox, em cujo dulcíssimo perfume existe um resíduo de pura
doçura. Que ela o achasse nos seus verdes anos. Nos dias em
que os seus olhos começam a fixar-se em si própria, enquan-
212 Rainer Maria Rilke

to a boca, mais nova, ainda é capaz de dar dentadas demasia­


do grandes numa maçã e ficar cheia.
E que, quando chegasse o tempo das amizades mais agita­
das, ó raparigas, o vosso segredo fosse chamardes umas às ou­
tras Dika e Anaktoria, Gyrino e Atthis. Que alguém, talvez um
vizinho, um homem já de idade que tivesse viajado na sua ju­
ventude e de há muito fosse considerado um original, vos ti­
vesse revelado estes nomes. Que ele muitas vezes vos convi­
dasse a ir a sua casa, por causa dos seus famosos pêssegos ou
por causa das gravuras de Ridinger sobre equitação lá em
cima no corredor branco, das quais tanto se fala que é forço­
so tê-las visto.
Talvez consigais convencê-lo a contar. Talvez se encontre
entre vós a que seja capaz de lhe pedir que vá buscar os seus
antigos diários de viagem, quem sabe? A mesma que conse­
gue um dia arrancar-lhe a revelação de que chegaram até nós
alguns fragmentos de poemas de Safo, e que não descansa até
saber o que é quase um segredo: que este homem retraído gos­
tava de dedicar, muitas vezes, o seu ócio à tradução destes
fragmentos. Ele tem de admitir que já havia muito tempo que
não pensava nisso, e ao que tem, garante ele, não dá impor­
tância. Mas agora acaba por agradar-lhe dizer uma estrofe a
estas amigas ingénuas, já que tanto insistem. Até descobre na
sua memória o texto grego, di-lo, pois na sua opinião a tradu­
ção fica aquém, e para mostrar a esta juventude os requebros
belos e autênticos desta linguagem preciosa e maciça, curva­
da em tão intensas chamas.
Através de tudo isso, ganha novo ânimo para o seu traba­
lho. Chegam para ele belos e quase juvenis fins de tarde, fins
de tarde outonais, por exemplo, com muitas horas de silêncio
noctumo à sua frente. No seu escritório há luz acesa até tarde.
Não fica sempre debruçado sobre as folhas, muitas vezes
inclina-se para trás, fecha os olhos sobre um verso relido
cujo sentido se expande pelo seu sangue. Nunca esteve tão se-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 213

guro quanto à Antiguidade Clássica. Quase desejava sorrir às


gerações que a choraram como uma representação perdida em
que gostariam de ter desempenhado um papel. Agora entende
momentaneamente o significado dinâmico daquela anterior
unidade do mundo, que era como um novo, simultâneo assu­
mir de todo o labor humano. Não o confunde o facto de aque­
la cultura, consequente com as suas manifestações de certo
modo sem falha, ter parecido formar um todo a muitos olhos
de épocas posteriores e um todo passado. É verdade que aí se
ajustava realmente a metade celeste da vida à taça meio re­
donda da existência terrestre, como dois hemisférios inteiros
se ajustam na mesma intacta esfera de ouro. Porém, mal isto
tinha acontecido, os que estavam fechados nos seus espíritos
sentiram esta realização total apenas como uma parábola; o
astro maciço perdeu peso e ergueu-se no espaço, e na sua re­
dondez dourada reflectia-se retraidamente a tristeza do que
ainda não se podia dominar.
Quando ele, o solitário durante a sua noite, está a pensar
nisto, a pensar e a compreender, repara num prato com frutos
no parapeito da janela. Sem querer, tira de lá uma maçã e
coloca-a diante dele sobre a mesa. Como se encontra a minha
vida à volta deste fruto, pensa ele. Em tomo do que está aca­
bado ergue-se o não acabado e intensifica-se.
E, então, sobre o não acabado surge-lhe, quase demasiado
depressa, a pequena figura que se expandiu até para lá do in­
finito, a quem (segundo o testemunho de Galieno) se referiam
ao dizer: a poeta. Pois, tal como atrás dos trabalhos de Hércu­
les se erguiam, exigindo, a destruição e a reconstrução do
mundo, assim também se impeliam, para serem vividos, sain­
do das reservas do ser, para os feitos do seu coração, os de­
leites e os desesperos com que os tempos tinham de se con­
tentar.
Ele conhece repentinamente este coração decidido que es­
tava pronto a cumprir todo o amor até ao fim. Não o admira
214 Rainer Maria Rilke

que tenha sido mal interpretado; que nesta amante inteira­


mente futura se tenha visto apenas a desmesura e não a nova
unidade de medida do amor e da dor. Que se tenha interpreta­
do a legenda da sua vida como outrora era considerada; que
se lhe tenha por fim atribuído a morte daquelas que Deus
atrai, uma a uma, para que vivam o amor para lá de si mes­
mas, sem reciprocidade. Talvez houvesse, mesmo entre as
amigas por ela formadas, algumas que não compreendessem
isto: que ela no auge do seu agir lamentasse, não alguém que
deixara vazios os seus braços, mas antes aquele que já não era
possível, o que estava à altura do seu amor.
Aqui, o que reflecte levanta-se e aproxima-se da janela, o
seu quarto alto está demasiado próximo dele, ele gostaria de
ver estrelas, se fosse possível. Não se engana sobre si próprio.
Sabe que este movimento o preenche porque entre as rapari­
gas da vizinhança há uma que lhe importa. Ele tem desejos
(não para si, não, mas para ela) ; por ela compreende, numa
hora noctuma que passa, a exigência do amor. Promete a si
mesmo não lhe dizer nada. Parece-lhe ser o máximo estar só
e acordado e por causa dela pensar como tinha razão aquela
outra amante: quando ela soube que a união de dois seres
nada mais pode trazer do que um acréscimo de solidão; quan­
do ultrapassou a finalidade temporal do sexo através do seu
desígnio infinito. Quando na obscuridade dos abraços não
procurava a saciedade, mas sim a saudade. Quando despreza­
va a ideia de que, de dois seres, um era amante e outro ama­
do, e quando as fracas amadas que levava para o seu leito se
tomavam ardentes amantes prontas a abandoná-lo. Com estas
altas despedidas, o seu coração tomou-se natureza. Acima do
destino, cantava às antigas amadas o seu epitalâmio, exaltava­
-lhes as bodas ; exagerava-lhes o esposo próximo para que
reunissem todas as forças para ele, como em relação a um
Deus, e vencessem ainda a sua magnificência.
As Anotações de Malte Laurids Brigge 215

Uma vez ainda, Abelone, nos últimos anos, voltei-te a sen­


tir e a compreender, inesperadamente, depois de não ter pen­
sado em ti durante muito tempo.
Foi em Veneza, no Outono, num daqueles salões em que
estrangeiros se reúnem de passagem à volta da dona da casa,
que é estrangeira como eles. Estas pessoas ficam de pé,
deslocam-se com a sua chávena de chá na mão e sentem-se
encantadas de cada vez que um vizinho informado as volta
para a porta, breve e disfarçadamente, para lhes segredar ao
ouvido um nome que soa a veneziano. Estão preparadas para
os nomes mais extravagantes, nada as pode surpreender; pois,
por muito parcimoniosas que sej am normalmente nas suas vi­
vências, nesta cidade entregam-se indolentemente às possibi­
lidades mais exageradas. Na sua vida normal tomam conti­
nuamente o extraordinário pelo proibido, de tal maneira que
a expectativa do maravilhoso, que agora se permitem, adqui­
re no seu rosto uma expressão grosseira e dissoluta. Aquilo
que apenas lhes acontece momentaneamente, quando estão
no seu ambiente, durante concertos ou se encontram sozinhos
a ler um romance, exibem-no agora, nestas circunstâncias li­
sonjeiras, como um estado de espírito legítimo. Do mesmo
modo que, sem preparação alguma, sem qualquer noção de
perigo, se deixam excitar pelas confissões quase mortais da
música como por indiscrições corporais, assim se entregam,
sem minimamente dominarem a existência de Veneza, ao de­
líquio compensador das gôndolas . Casais já não muito novos,
que durante toda a viagem apenas tinham tido um para o ou­
tro respostas odientas, mergulham agora num acordo silen­
cioso. O homem é invadido pelo agradável cansaço dos seus
ideais, enquanto ela se sente jovem e faz aos indolentes ve­
nezianos sinais de encoraj amento com a cabeça e com um
sorriso, como se tivesse dentes de açúcar que continuamente
216 Rainer Maria Rilke

se desfazem. E se se presta atenção ao que dizem, fica-se a sa­


ber que partem amanhã ou depois de amanhã ou no fim da se­
mana.
Aí estava eu, então, entre eles, contente por não ter de par­
tir. Em breve chegaria o frio. A Veneza mole e opiácea dos
seus preconceitos e necessidades desaparece com estes es­
trangeiros sonolentos, e uma bela manhã aparece a outra Ve­
neza real, desperta, completamente quebradiça, de modo al­
gum saída dos sonhos: nascida da vontade no meio do nada,
sobre florestas submersas, criada à força e por fim inteira­
mente existente. O corpo endurecido, reduzido ao indispensá­
vel, através do qual o arsenal da vigília nocturna fez correr o
sangue do seu trabalho, e o espírito deste corpo, penetrante e
em contínua expansão, era mais intenso do que o perfume de
países aromáticos. O Estado engenhoso, que trocou o sal e o
vidro da sua pobreza pelas riquezas dos povos. O belo equilí­
brio do mundo, que até ao interior dos ornamentos está cheio
de energias latentes, que se ramificam em nervuras cada vez
mais finas : esta Veneza.
A consciência de que conhecia esta cidade invadiu-me en­
tre todas estas pessoas que se iludiam, com tal espírito de con­
tradição que ergui os olhos, para de algum modo o comunicar.
Seria possível que nestes salões não houvesse uma pessoa que
involuntariamente esperasse ser esclarecida sobre a essência
deste ambiente? Um jovem que imediatamente compreendes­
se que o que aqui se oferecia não era um prazer mas um exem­
plo de vontade como não se poderia encontrar em mais ne­
nhum lugar, nem mais exigente, nem mais severo? Comecei a
andar de um lado para o outro, a minha verdade causava-me
desassossego. O facto de ela se apoderar de mim aqui, entre
tanta gente, despertava o desejo de ser comunicada, defendi­
da, demonstrada. Surgiu em mim a ideia grotesca de, no mo­
mento seguinte, bater palmas por ódio àquele mal-entendido
dissolvido em toda aquela vozearia.
As Anotações de Malte Laurids Brigge 217

Nesta disposição ridícula, reparei nela. Estava sozinha


diante de uma janela radiosa e observava-me; não propria­
mente com os olhos, que eram graves e pensativos, mas sim
decididamente com a boca, que imitava ironicamente a ex­
pressão abertamente zangada do meu rosto. Senti de imediato
a tensão de impaciência nos traços do meu rosto e fiz uma ex­
pressão tranquila, após o que a sua boca se tomou natural e al­
tiva. Então, depois de uma breve hesitação, sorrimos simulta­
neamente um ao outro.
Ela fazia lembrar, se se quiser, um certo retrato da juventude
da bela Benedicte von Qualen que desempenha determinado
papel na vida de Baggesen. Não se podia ver a serenidade es­
cura dos seus olhos sem pressentir a clara obscuridade da sua
voz. De resto, o cabelo entrançado e o dc;cote do seu vestido
claro eram tão ao estilo de Copenhaga que decidi dirigir-me a
ela em dinamarquês.
Mas ainda eu não me tinha aproximado o suficiente, quan­
do, do outro lado, uma torrente humana avançou para ela; até
a nossa hospitaleira condessa, na sua distracção cordial e en­
tusiasta, se precipitou em seu socorro, para a desviar e levar
imediatamente a cantar. Eu tinha a certeza de que a jovem se
desculparia dizendo que naquele grupo não haveria qualquer
interesse em a ouvir cantar em dinamarquês. Foi o que ela fez,
assim que pôde falar. A multidão em tomo da figura clara fi­
cou mais solícita; alguém sabia que ela também cantava em
alemão. «E em italiano», acrescentou uma voz rindo, com
convicção maliciosa. Não sabia que desculpa havia de desejar
que ela lhes desse, mas não duvidava de que ela resistiria. Já
se expandia uma expressão de secura ofendida nos rostos ex­
tenuados pelo longo sorriso dos que a tentaram convencer, já
a boa condessa, para não ter nada a perdoar-se, recuava um
passo, compassiva e dignamente, quando ela cedeu, agora que
não era de todo necessário. Senti-me empalidecer de decep­
ção; o meu olhar encheu-se de censura, mas voltei-me, não
218 Rainer Maria Rilke

valia a pena que ela o visse. Mas ela libertou-se dos outros e,
de repente, encontrava-se ao meu lado. O seu vestido ilumi­
nou-me, o perfume floral do seu calor envolveu-me.
«Quero realmente cantar», disse ela em dinamarquês ao
longo da minha face, «não por eles o exigirem, não por causa
das aparências : porque agora tenho de cantar. »
Das suas palavras saía a mesma intransigência malévola da
qual ela acabara de me libertar.
Segui lentamente o grupo que a acompanhava. Mas, junto
de uma porta alta, fiquei para trás e deixei que as pessoas se
empurrassem e ordenassem. Encostei-me ao negro e polido
interior da porta, e esperei. Alguém me perguntou o que ia
acontecer, se iam cantar. Fingi não saber. Enquanto eu mentia,
ela já cantava.
Não conseguia vê-la do sítio onde estava. O espaço aumen­
tou gradualmente à volta de uma daquelas canções italianas
que os estrangeiros acham muito autênticas por serem de uma
convenção evidente. Ela, que a cantava, não acreditava nisso.
Erguia-a com esforço, tomava-a com excessiva gravidade. Os
aplausos da frente indicavam que tinha acabado. Eu estava
triste e envergonhado. Surgiu um certo movimento e resolvi
juntar-me aos que se fossem embora.
Mas subitamente fez-se silêncio. Fez-se um silêncio que
ainda há pouco ninguém pensara ser possível; durou, adquiriu
tensão, e então ergueu-se nele a sua voz. (Abelone, pensei.
Abelone.) Desta vez era forte, plena e no entanto não era gra­
ve; de uma só peça, sem falha, sem costura. Era uma canção
alemã desconhecida. Ela cantou-a com uma simplicidade es­
pantosa, como se fosse algo imperioso. Cantava:

Tu, a quem não digo que me deito


à noite a chorar,
tu, de quem o ser me fatiga o peito,
como berço de embalar.
As Anotações de Malte Laurids Brigge 219

Tu que não me dizes que em vigília, no leito,


permaneces por mim cheia de amor:
se nós todo este esplendoroso efeito
sem lhe saciar o ardor
pudéssemos sentir?
(breve pausa e com hesitação):
Olha para os amantes devagar,
mal o amor acabam de declarar,
quão breve começam a mentir.

D e novo o silêncio, sabe Deus quem o fazia. Depois a s pes­


soas mexiam-se, tocavam-se, pediam desculpa, tossiam. Já
queriam passar a um ruído geral que tudo apagasse, quando a
voz de súbito irrompeu, resoluta, ampla e concentrada:

Fazes de mim um solitário. Apenas a ti posso trocar.


Por um momento és tu, depois de novo o murmurar,
ou um perfume puro.
Ai! Nos meus braços a todas acabei por perder,
apenas tu, tu voltas sempre de novo a renascer:
por nunca te deter, com firmeza te seguro.

Ninguém estava à espera daquilo. Todos ficaram, por assim


dizer, curvados sob aquela voz. E no fim havia nela uma tal
segurança como se soubesse há muitos anos que deveria en­
trar naquele preciso momento.

70

Dantes perguntava-me algumas vezes por que razão Abelo­


ne não orientava para Deus as calorias do seu magnífico sen­
timento. Eu sei, ela aspirava a subtrair ao seu amor todo o ca­
rácter transitivo, mas podia o seu· coração verídico enganar-se
220 Rainer Maria Rilke

quanto ao facto de Deus ser apenas uma direcção do amor e


não um objecto de amor? Não saberia ela que não havia a re­
cear nenhuma correspondência amorosa da parte Dele? Não
conheceria ela o retraimento deste Amado superior a nós, que
adia tranquilamente o prazer, para nos permitir, a nós que so­
mos lentos, que cumpramos todo o nosso coração? Ou quere­
ria ela evitar Cristo? Recearia ela ser detida por Ele a meio do
caminho, tomar-se amada ao encontrá-Lo? Seria por isso que
não gostava de pensar em Julie Reventlow?
Quase acredito nisso quando penso que puderam sucumbir
a esta acessibilidade de Deus uma tão simples amante como
Mechtild, uma tão arrebatadora como Teresa de Á vila, uma
· tão ferida como a bem-aventurada Rosa de Lima, condescen­
dentes, mas amadas. Ai, Aquele que foi o auxílio dos fracos é
para estas mulheres fortes uma injustiça; quando elas nada
mais esperavam do que o caminho infinito, eis que se lhes
apresenta novamente, na antecâmara surpreendente do Céu,
Alguém com forma humana que as mima com o seu acolhi­
mento e as confunde com virilídade. A lente de forte refracção
do Seu coração volta a reunir os raios, já paralelos, dos cora­
ções delas, e elas, que os Anjos já esperavam receber inteira­
mente para Deus, inflamam-se na secura do seu anseio.
1 (Ser amado é inflamar-se. Amar é: iluminar com azeite

inexaurível. Ser amado é passar, amar é durar.)


É contudo possível que Abelone, anos mais tarde, tenha
tentado pensar com o coração para estabelecer uma relação
com Deus, discreta e directamente. Seria capaz de imaginar
que haj a cartas dela que lembrem a atenta contemplação inte­
rior da princesa Amalie Galitzin; mas, se estas cartas fossem
dirigidas a alguém que lhe era próximo havia muito, como ele
deveria ter sofrido com tal mudança. E ela própria: suspeito
que nada mais temia do que aquela mudança espectral, que

1 Escrito à margem no manuscrito.


As Anotações de Malte Laurids Brigge 22 1

não chama a atenção porque deixamos continuamente escapar


das mãos, como a coisa mais estranha, as provas da sua exis­
tência.

7I

Dificilmente me convencerão de que a história do filho pró­


digo não é a lenda daquele que não queria ser amado. Quan­
do era menino, todos o amavam lá em casa. Cresceu, e, como
não tinha outra alternativa, habituou-se à brandura daqueles
corações, enquanto foi menino.
Mas, quando já era rapaz, quis despojar-se dos seus hábitos.
Não seria capaz de o dizer, mas quando andava ao acaso, lá
fora, todo o dia, e já nem sequer queria que os cães o acom­
panhassem, era porque eles também o amavam. Porque nos
seus olhares havia observação, envolvimento, expectativa e
receio; porque, diante deles, também não se podia fazer nada
que não os alegrasse ou ofendesse. Mas o que ele então pre­
tendia era a indiferença íntima do seu coração que muitas ve­
zes o acometia de manhã cedo, nos campos, e com uma tal pu­
reza que ele começava a correr para não ter tempo nem fôlego
para ser mais do que um leve momento em que a manhã se
toma consciente de si.
O segredo da sua vida ainda por viver estendia-se diante
dos seus olhos. Involuntariamente abandonava o carreiro e
continuava a correr pelo campo fora, de braços estendidos,
como se, com esta expansão, pudesse apoderar-se de várias
direcções ao mesmo tempo. E depois atirava-se para um re­
canto qualquer atrás de uma sebe e ninguém lhe dava impor­
tância. Descascava uma flauta, arremessava uma pedra a um
pequeno animal predador, inclinava-se e obrigava um escara­
velho a andar para trás: tudo isto não se tomava um destino e
os céus passavam como sobre a Natureza. Por fim chegava a
222 Rainer Maria Rilke

tarde cheia de ideias fantásticas: era-se um corsário na ilha de


Tortuga e sê-lo não tinha quaisquer consequências ; cercava-se
Campêche, conquistava-se Vera-Cruz; era possível ser todo
um exército ou um comandante a cavalo ou um barco no mar:
conforme apetecia. Mas, se vinha à mente ajoelhar-se, era-se
rapidamente Deodato de Gozon e tinha-se vencido o dragão e
ouvia-se dizer, com calor, que esta heroicidade era altiva, sem
obediência. Pois não se poupava a nada que fizesse parte do
jogo. Por muitas que fossem as ideias fantásticas, havia sem­
pre tempo para, de vez em quando, ser apenas um pássaro,
não importa qual. Só que depois vinha o regresso a casa.
Meu Deus, quantas coisas era preciso pôr de lado e esque­
cer, pois era preciso mesmo esquecê-las, senão era-se traído
pela insistência. Por mais que se hesitasse e olhasse à volta,
por fim acabava por subir a empena. A primeira janela de ci­
ma olhava-nos fixamente, podia muito bem estar lá alguém.
Os cães, dentro dos quais a expectativa tinha aumentado du­
rante todo o dia, vinham numa correria atravessando arbustos
e coagiam uma pessoa a ser aquele que pretendiam. E do res­
to encarregava-se a casa. Apenas era necessário revestir-se do
seu pleno odor, pois já quase tudo estava decidido. Havia
pormenores que ainda se podia modificar; globalmente já se
era aquele por quem eles o tomavam: aquele a quem já tinham
há muito forjado uma vida, partindo do pequeno passado
dele e dos próprios desejos deles; o ser comum que se encon­
trava dia e noite sob a sugestão do seu amor, entre a sua es­
perança e a sua desconfiança, perante a sua censura ou o seu
aplauso.
A um tal ser de nada serve subir as escadas com indizível
cuidado. Todos estarão na sala de estar e basta que a porta se
abra para que todos olhem. Ele fica na penumbra, quer aguar­
dar as perguntas. E então vem o pior. Tomam-lhe as mãos,
puxam-no para a mesa e todos os que lá estão se debruçam
curiosamente diante do candeeiro. Têm a vantagem de se
As Anotações de Malte Laurids Brigge 223

manterem na penumbra e apenas sobre ele recai, com a luz,


toda a vergonha de ter um rosto.
Ficará ele a fim de repetir a mentira da vida indefinida que
lhe atribuem e de parecer-se com todos eles em toda a exten­
são do seu rosto? Dividir-se-á ele entre a sensível veracidade
da sua vontade e o grosseiro engano com que se tomam insu­
portáveis a seus olhos? Desistirá ele de vir a ser aquilo que
poderia prejudicar aqueles membros da sua família que ape­
nas têm um coração fraco?
Não, ele partirá. Por exemplo, quando todos estiverem ocu­
pados a preparar a mesa de aniversário com todos aqueles ob­
jectos mal adivinhados que deveriam, uma vez mais, tudo apa­
ziguar. Partirá para sempre. Só muito mais tarde terá a nítida
percepção de como nessa altura fez o propósito de nunca amar,
para não colocar ninguém na terrível situação de ser amado.
Anos depois recordar-se-á e, tal como outros propósitos, tam­
bém este foi impossível. Pois ele amou e voltou a amar na sua
solidão, esbanjando de cada vez toda a sua natureza e com um
temor indizível pela liberdade do outro. Aprendeu lentamente a
atravessar o objecto amado com os raios do seu sentimento, em
vez de neles o consumir. E ficava mimado pelo encanto de co­
nhecer, através da figura cada vez mais transparente da amada,
a imensidão que ela abria ao seu interminável desejo de posse.
Como era ele então capaz de chorar noites a fio de saudade
de ser ele próprio assim iluminado ! Mas uma amada que
cede ainda está longe de ser uma amante. Ó noites desconso­
ladas em que voltou a receber, despedaçadas e efémeras, as
suas dádivas transbordantes. Como se lembrava então dos tro­
vadores que nada mais temiam do que serem ouvidos. Todo o
dinheiro ganho e multiplicado empregava-o ele para não vir a
passar ainda por tudo isso. Ele ofendia-as com o seu rude pa­
gamento, receoso de dia para dia de que elas tentassem con­
sentir no seu amor. Pois ele já tinha perdido a esperança de vir
a conhecer a amante que o trespassasse.
224 Rainer Maria Rilke

Mesmo nos tempos em que a pobreza o assustava diaria­


mente com novos rigores, quando a sua cabeça era o objecto
predilecto da desgraça e estava toda gasta por ela, quando em
todo o corpo se abriam tumores quais olhos a que podia re­
correr contra a negrura da sua aflição, quando o aterrava a
imundície em que o tinham abandonado por ele lhe ser seme­
lhante: mesmo nessa altura, quando caía em si, o seu maior
pavor era ter sido correspondido. O que eram todas as trevas
desde então perante a densa tristeza daqueles abraços em que
tudo se perdia? Não se acordava com a sensação de não ter fu­
turo? Não se andava à deriva sem ter direito aos perigos? Não
se tinha tido que prometer cem vezes que não se morreria?
Talvez fosse a teimosia desta amarga lembrança, que de re­
gresso a regresso queria manter um lugar, que fez com que a
sua vida se conservasse no meio da imundície. Por fim, volta­
ram a encontrá-lo. E só então, nos anos de pastor, se apazi­
guou o seu imenso passado.
Quem poderá descrever o que então lhe aconteceu? Que
poeta será capaz de o convencer a conciliar a extensão dos
seus dias passados com a brevidade da vida? Que arte é sufi­
cientemente ampla para evocar simultaneamente a sua figura
esguia, coberta por um manto, e o espaço desmesurado das
suas noites imensas ?
Foi nessa época que começou a sentir-se vulgar e anónimo
como um hesitante convalescente. Não amava, a não ser que
amasse o facto de ser. O amor menor das suas ovelhas não lhe
importava. Como a luz que atravessa as nuvens, dispersava-se
à sua volta e brilhava suavemente sobre os prados. Seguindo
o rasto inocente da fome delas, caminhava em silêncio pelos
prados do mundo. Foi visto por desconhecidos na Acrópole, e
talvez tenha sido durante muito tempo um dos pastores dos
Baux e tenha visto o tempo petrificado sobreviver à elevada
estirpe que, com . todas as suas conquistas de Sete e de Três,
foi incapaz de dominar os dezasseis raios da sua estrela. Ou
As Anotações de Malte Laurids Brigge 225

hei-de imaginá-lo em Orange, encostado ao arco de triunfo


campestre? Hei-de vê-lo na sombra, habituada às almas, do
antigo cemitério dos campos elísios em Arles, enquanto o seu
olhar persegue uma libélula entre os túmulos abertos como os
túmulos dos ressuscitados?
Tanto faz. Vejo mais do que ele, vejo a sua existência que,
então, começou o longo amor a Deus, esse trabalho silencio­
so, sem objectivo. Pois sobre ele, que quisera conter-se para
sempre, recaiu mais uma vez a inelutabilidade crescente do
seu coração. E agora esperava ser ouvido. Todo o seu ser que,
na longa solidão, aprendera a pressentir e a não se perturbar,
prometia-lhe que aquele, em quem agora pensava, saberia amar
com um amor penetrante e radioso. Mas enquanto tinha sauda­
des de vir a ser finalmente amado com tanta perfeição, o seu
sentimento, habituado às distâncias, deu-se conta do extremo
afastamento de Deus. Vieram noites em que lhe parecia que se
precipitava para Ele no espaço; horas plenas de revelação, em
que se sentia suficientemente forte para mergulhar em direcção
à terra, para a arrebatar na torrente tempestuosa do seu coração.
Era semelhante a alguém que ouve uma língua magnífica e se
propõe febrilmente escrever poesia com ela. Ainda o aguardava
o sobressalto de vir a saber como esta língua era difícil; primei­
ro, não quis acreditar que poderia passar uma longa vida até
formar as primeiras e breves frases sem qualquer sentido.
Precipitou-se na sua aprendizagem como um corredor na
competição; mas a espessura daquilo que tinha de superar
retardava-lhe o passo. Não se podia imaginar nada mais hu­
milhante do que esta aprendizagem inicial. Tinha encontrado
a pedra filosofal e agora obrigavam-no a transformar inces­
santemente o ouro rapidamente conseguido da sua felicidade
no tosco chumbo da paciência. Ele, que se tinha adaptado ao
espaço do mundo, rastejava, como um verme, por caminhos
tortuosos sem saída nem direcção. Agora que aprendia a amar
com tanto esforço e sofrimento, mostravam-lhe como fora
226 Rainer Maria Rilke

descuidado e diminuto todo o amor que ele, até então, julgara


ter alcançado. E como nenhum deles chegara a ser alguma
coisa, por ele não lhe ter começado a consagrar-lhe o trabalho
necessário à sua concretização.
Foi nestes anos que nele se deram as grandes transforma­
ções. Quase se esquecia de Deus no difícil afã de se lhe apro­
ximar, e tudo o que ele esperava, com o tempo, vir talvez a al­
cançar d' Ele era «sa patience de supporter une âme» [a sua
paciência para suportar uma alma] . Já há muito tempo que os
acasos do destino, a que as pessoas se agarram, se tinham des­
ligado dele, mas agora mesmo o prazer e a dor inevitáveis per­
diam o ressaibo condimentado e tomavam-se-lhe puros e nu­
tritivos. Das raízes do seu ser brotava a planta firme e
resistente ao Inverno de uma alegria fecunda. Nela desabro­
chou completamente para dominar o que fazia parte da sua
vida interior, pois não queria saltar por cima de nada, uma vez
que não duvidava de que o seu amor em tudo estava e
aumentava. Sim, a sua atitude interior foi tão longe que deci­
diu recuperar o mais importante de tudo aquilo que antes não
fora capaz de realizar, o que havia ficado à espera. Pensava
sobretudo na infância: quanto mais serenamente reflectia, tan­
to mais ela lhe parecia por fazer; todas as recordações dela ti­
nham o carácter vago dos pressentimentos, e o facto de serem
consideradas como passadas tomava-as quase futuras. Assu­
mir, mais uma vez, tudo isso, e agora a sério, foi o motivo que
levou aquele que se tinha afastado a regressar a casa. Não sa­
bemos se ficou. Sabemos apenas que voltou.
Os que contaram a história tentam, neste ponto, recordar­
-nos a casa, tal como ela era. Pois aí só passou pouco tempo,
um pouco de tempo contado, todos em casa podem dizer
quanto. Os cães envelheceram, mas ainda estão vivos. Conta­
-se que um deles uivou. Todas as tarefas diárias sofrem uma
interrupção. Há rostos que assomam às janelas, rostos enve­
lhecidos e adultos de uma semelhança comovente. E num des-
As Anotações de Malte Laurids Brigge 227

ses rostos, num muito velho, o reconhecimento desfere repen­


tinamente a palidez do seu golpe. O reconhecimento? Verda­
deiramente apenas o reconhecimento? - O perdão. O perdão
de quê? - O amor. Meu Deus: o amor.
Ele, o que foi reconhecido, ocupado corno estava, tinha dei­
xado de pensar nisso: que o amor ainda pudesse existir.
É compreensível que de tudo o que então aconteceu apenas
fosse transmitido o seguinte: o seu gesto, o gesto inaudito que
nunca antes se vira; o gesto de súplica com que se prostrou
aos seus pés, implorando-lhes que o não amassem. Assusta­
dos e cambaleantes ergueram-no à altura deles. Interpretaram
à sua maneira a impetuosidade dele, perdoando-lhe. Deve ter
sido para ele um alívio indescritível que todos o tenham en­
tendido mal, apesar da evidência desesperada da sua atitude.
Provavelmente foi capaz de ficar. Pois via cada vez melhor, de
dia para dia, que o amor deles, de que tanto se envaideciam e
que entre si secretamente encorajavam, não lhe dizia respeito.
Quase era obrigado a sorrir quando eles se esforçavam e se
tomava evidente que eram poucas as possibilidades de se lhe
referirem.
O que sabiam eles sobre quem ele era? Ele era agora extre­
mamente difícil de amar e sentia que só Alguém o poderia fa­
zer. Mas esse ainda não queria.

Fim das Anotações


. ,
Documento

Carta de Rainer Maria Rilke ao tradutor polaco, Witold Hu­


lewicz sobre As Anotações de Malte Laurids Brigge

(Durante o trabalho de tradução de Malte, publicado em


Varsóvia em 1 927, o tradutor e escritor polaco Witold Hule­
wicz ( 1 895- 1 94 1 ) enviou a Rilke uma lista de questões. O tex­
to da resposta encontra-se publicado em Rainer Maria Rilke,
Briefe aus Muzot 1 921 bis 1 926, organizado por Ruth Sieber
Rilke e Carl Sieber, Leipzig, 1 935, pp. 3 1 8 a 330. Referimos o
número das anotações a que dizem respeito as perguntas colo­
cadas, bem como o número da página e da linha da edição
mais utilizada nesta tradução - a da editora Reclam, 1 997.)

Muzot sur Sierre (Valais), 10 de Novembro de 1925

Caro Amigo

Não gosto de fazer «apressadamente» seja o que for, mas


desta vez corri com os olhos o seu questionário, pressionado
pelo enorme atraso e por todas as outras coisas acumuladas
230 Rainer Maria Rilke

que me cercam, desde que regressei . . . No Malte não é possível


precisar e isolar as múltiplas evocações que contém. O leitor
não deve comungar da sua realidade histórica ou imaginária,
antes, através delas, da vivência de Malte: que também só se
relaciona com elas do mesmo modo que alguém se deixa in­
terpelar na rua por quem passa, ou até por um vizinho. A rela­
ção baseia-se na circunstância de que os que acabam de ser
evocados revelam ter o mesmo expoente de vibração, em ter­
mos de intensidade de vida, que vibra justamente no ser de
Malte; tal como, por exemplo, Ibsen (digamos Ibsen, pois
quem saberá se ele via as coisas deste modo? . . . ), tal como um
dramaturgo de ontem procura provas visíveis dos aconteci­
mentos que em nós se tornaram invisíveis, também é imperio­
so para o jovem M. L. Brigge tornar compreensíveis através de
fenómenos e imagens a vida que continuamente vai desapare­
cendo no invisível; ele encontra-os ora nas suas próprias re­
cordações da infância, ora no ambiente que o rodeia em Paris,
ora nas reminiscências da sua cultura livresca. E tudo isso, in­
dependentemente do local da sua vivência, tem para ele a mes­
ma validade, a mesma duração e presença. Não é em vão que
Malte é o neto do velho conde Brahe que tudo, tanto o passa­
do como o futuro, considerava simplesmente «existente» : do
mesmo modo considera Malte também existentes estas reser­
vas do seu espírito, provenientes de três modos de receptivida­
de: o tempo da sua aflição e o grande tempo de aflição dos Pa­
pas avinhonenses, em que tudo o que vinha para o exterior e
agora desaba irremediavelmente para o interior são equivalen­
tes: não se trata de saber mais acerca do que é evocado do que
o holofote do seu coração permite exactamente conhecer. Não
são figuras históricas ou personagens do seu próprio passado,
mas sim vocábulos da sua aflição : por esse motivo deverá
aceitar-se de vez em quando um nome que não é objecto de ex­
plicações, como a voz de uma ave nesta natureza em que as
calmarias interiores são mais perigosas do que as tempestades.
As Anotações de Malte Laurids Brigge 23 1

Por esse motivo, poderia ser desconcertante focar nominal­


mente as figuras apenas aludidas ; que cada um as justifique à
sua maneira, e se não as puder justificar, ficará mesmo assim
a saber o suficiente a partir da tensão destes anonimatos.
[Depois de responder às questões colocadas: ]
E basta, meu caro Senhor von Hulewicz . . .
O livro destina-se a ser aceite e não a ser entendido em por­
menor. Apenas assim se alcançará o devido tom e a devida so­
breposição. Gostaria de que, antes de dar ao texto polaco o
seu definitivo «lmprimatur», esperasse pelo Malte francês.
É um trabalho absolutamente responsável e, através da clare­
za e da lógica desta língua, talvez pudesse servir para o ajudar
a clarificar o sentido de outros passos sobre os quais ainda te­
nha dúvidas, e especialmente as relações entre as palavras. Aí,
creio eu, muita coisa que lhe pareceu obscura em alemão não
dará lugar a mal-entendidos . Tenho grande confiança nesta
versão francesa que deve vir a lume ainda antes do Natal. (Re­
ceberá de qualquer modo um exemplar, logo que esteja dis­
ponível.)
Agora tenho de me dedicar rapidamente a outras coisas !
Para terminar, aceite amigavelmente a mão que lhe estendo
em espírito e o reiterado agradecimento cordial pela sua fide­
lidade e dedicação.

Seu
R. M. Rilke
Questionário

15 28, 1-3 «Mir schien es, ais ob . . . an seiner . . . aufgelõs­


ten Persõnlichkeit . . . »
«Aufgelõst»: une personalité diffuse, sans contour précis.
[uma personalidade difusa, sem contorno preciso] Mas, neste
caso, aludindo ao carácter peculiarmente ilimitado do ser do
velho conde B . : veja-se o seu modo de sentir como «existen­
tes» tanto os mortos como os que ainda não nasceram.
Trad. , 55

18 49, 1 «Die Kinder loser und verachteter Leute . . . » Livro?


Verso?
Livro de Job: passos isolados de versículos do capítulo 30;
mas segundo as antigas edições da Bíblia de Lutero; nas pos­
teriores, há expressões que perderam força: como, por exem­
plo, esta - «vestido com o colarinho da minha túnica . . . »
O texto francês citado antes da passagem bíblica é de Bau­
delaire (Poemas em prosa).
Trad. , 74

25 70, 1 3 « . . . wie die Schiffsfiguren in den kleinen Glirten


zu Hause.»
As assim chamadas figuras de galeão, galeões: figuras hu­
manas talhadas em madeira e pintadas, da proa de um barco.
234 Rainer Maria Rilke

Os marinheiros da Dinamarca colocam por vezes nos seus jar­


dins as figuras que restam de barcos velhos, as quais assumem
nesse espaço um aspecto bastante estranho.
Trad., 93

26 72, 6 e seguinte « . . . und nun warst du bei den Kolben irn


Feuerschein.»
Estiveste precisamente onde se realiza a mais secreta quí­
mica da vida, as suas transformações e precipitados.
Trad., 95

26 72, 1 3-20 «Du konntest nicht warten» até «im Gleich­


nis der vor ihnen aufgeschlagenen Szene».
A vida, a nossa vida actual, é praticamente impossível de
ser representada cenicarnente, urna vez que desapareceu por
completo no invisível, no íntimo, e se nos comunica apenas
através de «sublimes boatos» ; o dramaturgo, porém, não pô­
de esperar até ela se tomar susceptível de ser mostrada; teve
de violentar esta vida ainda não à altura de ser apresentada;
por isso a sua Obra lhe saltou, no final, das mãos, corno urna
vara dobrada com excessiva força, e ficou corno por fazer. -
lbsen passou os seus últimos anos à janela, observando com
curiosidade as pessoas que passavam, confundindo estas pes­
soas reais de certo modo com aquelas figuras que teriam de
ter sido criadas e em relação às quais já não tinha a certeza de
as ter plasmado.
Trad., 95

46 1 36, 29-32 «0 Doktor, wie heiBt er? - Sperling, Al­


lergnadigsten Kõnig.»
O rei fala com o médico na terceira pessoa, corno então era
costume; pergunta-lhe: Ó Doutor, corno se chama? O médico
chama-se: Sperling. O diálogo foi transmitido assim.
Trad., 1 56
As Anotações de Malte Laurids Brigge 235

52 1 54, 13 «regelmaftigen Gebrauchen . . . » Trata-se do plu­


ral de «der Gebrauch» [o uso] ?
Mais ou menos no sentido de: coisas de outros usos, con­
formes à sua natureza, limitados e regulares, coisas que se
destinam a funções muito precisas e que aqui são usadas de
outro modo, segundo uma liberdade fantástica e irremediá­
vel.
Trad. , 1 7 1

54 1 5 8, 1 0 e s . «Und nun kam leiser auflõsend, diese Mari­


na . . . »
Marina Mniczek (a mãe de Fjedor) reconheceu o falso Di­
mitri como seu filho; mas em vez de o apoiar na sua intrujice,
diminuiu de certo modo o carácter ilimitado das mentiras de­
le, diluiu a sua segurança, em vez de lhe dar firmeza.
Trad., 1 76

57 1 7 1 , 25 e s. « . . . die das "Amt der Engel verrichteten" . . . »


citação de que que obra?
Penso que das Anotações de Bettina, provavelmente de
«Briefwechsel mit einem Kinde» . [Correspondência com uma
Criança] .
Trad., 1 88

59 1 74, 1 5 ; ref. à 1 .ª ed. : vol. II, p. 1 1 5, 6 « . . . neu-wie . . . »


este hífen é uma gralha?
Sim, é uma gralha.
Trad., 1 90

61 1 78, 1 5 <<jasige Wunde»


«Chaga purulenta» : que se encontra cheia de pus e podridão
( <<jasig» expressão obsoleta).
Trad. , 1 94
236 Rainer Maria Rilke

61 1 84, 2 e s. «das Stück Einhom (?) war miBfárbig (?),


wenn es der Mundkammerer (Mundschenk?) daraus zurück­
zog . . . »
Prova para verificar se os alimentos estavam envenenados.
Junto às travessas que eram apresentadas aos grandes senho­
res, encontrava-se frequentemente, preso a uma corrente, um
bocado de chifre de licome que se introduzia nos alimentos ou
na bebida antes de serem tomados; pensava-se que esse troço
mudava de cor quando a refeição ou a bebida estavam enve­
nenados. Mundschenk, afirmativo. Em francês : échanson
[oficial que serve à mesa] .
Trad., 1 99

61 1 85 e ss.
Jacob de Cahors (Papa João XXII, o mais espiritual, de
maior religiosidade e mais produtivo de entre os Papas do
exílio) retractara- se. Propositadamente, esta retractação
(p. 1 85) não é logo explicitada: adiante (p. 1 86) é patenteada a
tese que tomara a convicção do Papa chocante e infundada.
Imagine o que significava para a Cristandade de então ouvir
dizer que ninguém, na outra vida, ainda gozava da bem­
-aventurança e que o acesso a ela só se dava após o Juízo Fi­
nal, que tanto lá como aqui tudo se encontrava em angustio­
sa expectativa ! Que imagem para a aflição de uma época, a
cabeça da Cristandade usar o poder do seu múnus para pro­
jectar a sua insegurança até aos Céus. (A natureza de Malte
em busca de segurança tinha de reparar neste exemplo.) E o
jovem príncipe luxemburguês, cardeal aos onze anos, mor­
rendo aos 1 8 e beatificado imediatamente (o filho do conde
de Ligny) parece-lhe, por sua vez, como uma refutação da
desconfiança do Papa e é também assinalado.
Em relação a todas estas figuras acontece-me, de resto, não
ser capaz de referir dados precisos ! O Malte ficou concluído
por volta do ano 1 909 (já há 1 6 anos !), já não tenho as fontes
As Anotações de Malte Laurids Brigge 237

em que tudo isso se baseia, e a minha memória, como é natu­


ral, não as reteve.
No que respeita a Gaston Phõbus, gostaria que o senhor se
dispusesse a ocupar algumas horas livres com a leitura das
passagens da magnífica crónica de Froissart que dele tratam;
a edição organizada por Bouchon ( 1 865) (Les chroniques de
Sire Jean Froissart) ou a um pouco mais antiga do «Panthéon
Literaire» encontram-se na maioria das grandes bibliotecas e
apresentam, ainda cheias de frescura e força vegetativa, um
material insuperavelmente rico e autêntico para contemplação
interior. Aqui se menciona a cena em que um filho do conde,
sobre quem recaía a suspeita paterna de tentativa de assassí­
nio (da qual fora instrumento, provavelmente sem consciên­
cia disso), é morto pelo próprio Gaston Phõbus. No quarto em
que foi encarcerado, o filho atirou-se, desesperado, para cima
da cama, com o rosto virado para a parede. O conde, com as
veias repletas de suspeita e cólera, entrou. Toma a imobilida­
de e a posição de costas voltadas do jovem por teimosia, fi­
nalmente agarra-o pelo pescoço para o voltar para si, ao fazê­
-lo não põe de lado o pequeno e afiado canivete de unhas que
nesse momento tinha na mão, e cuja lâmina, sem ele dar con­
ta, passa pela artéria do jovem. Mas tudo isso nada relata e
nada acrescenta. Sendo todos estes episódios fragmentários, a
sua função é a de se completarem como um mosaico dentro
do Malte.
«E aquele conde de Foix, Gaston Phõbus . . . » Uma das
maiores figuras cavalheirescas do século XIV, o típico grande
Senhor do seu tempo.
Trad. , 20 1 e segs.

61 1 85, 31 e s. « . . . in einer Ekstase seiner Vollendung ges­


torben war». De quem se trata?
Continua a ser justamente o j ovem conde de Ligny, em
cuja figura a felicidade da juventude e o impulso maravilho-
23 8 Rainer Maria Rilke

so de uma força arrebatada para Deus eram uma e a mesma


coisa.
Trad. , 20 1

62 1 87, 1 7-1 88,8


Todas estas passagens apontam para os esforços feitos pelo
rei para reconciliar o duque de Orleães e o seu inimigo, Jean
Sans Peur, que acabou por mandar assassinar o duque. O que
há de fatídico nessas reconciliações, para as quais se inventa­
ram os processos mais visíveis como o próprio beijo, o beber
do mesmo cálice, o montar o mesmo cavalo, é que, através
dessas aproximações, ainda se alimentava mais o ódio de am­
bas as partes. Tal também se aplica a reconciliações seme­
lhantes e da mesma espécie, por exemplo, de irmãos que se
perseguiram, desavindos por questões de herança; não sei em
que irmãos se estava aqui a pensar. Aquele sobre o qual recaía
a inveja e o ódio do seu irmão não tinha paz, apesar de o
outro reconhecer a sua injustiça e declarar que dela desistia.
Como uma constelação, a cólera e a inveja do irmão pairavam
sobre o que era por tanto tempo perseguido, a sua vida
tomara-se a vida deste perseguido: «não chegava a ter uma
vida própria».
Trad. , 202-203

62 1 89, 1 2- 1 8
«Beau Sire Dieu, und dann die Auferstehung . . . » tudo isto
transmite, em surdina, o monólogo interior de algum senhor
da época, que tinha o pressentimento de vir a ser assassinado.
Pensa cavalheirescamente em Deus, na Ressurreição. Sub­
juga-o o carácter estranhamente vazio e amplo e de certo
modo sem validade do seu ainda-ser. «Em tais horas mal o
alcançava a exaltação de uma amada» ; mal era capaz de ainda
exaltar esta ou aquela aventura amorosa; as figuras dessas mu­
lheres tinham-se tomado imprecisas e como que ocultas nas
As Anotações de Malte Laurids Brigge 239

canções e poemas (alba e canção de amor - formas usadas


pela poesia de amor dos trovadores e utilizadas na relação de
serviço para com a dama à qual eram dedicados). Quando
muito no erguer de olhos de um dos filhos bastardos (mas tam­
bém este filho não é pensado como presente, talvez também o
seu erguer de olhos seja apenas recordado), de um filho de
uma qualquer mulher outrora amada, o olhar desta voltava a
estar presente, tornando-se ela própria de novo reconhecível.
Mas tudo isto não pode, não deve ser explicado, explicita­
do no seu texto, por amor de Deus ! Basta evocar este estado
de espírito; pense que ele se forma no íntimo de um Senhor do
século XIV ou xv, que V. Ex.ª está separado dele por todo
esse homem, pelo seu próprio corpo e pelos séculos.
Trad., 203-204

71 2 1 0, 1 9-24
Os «Baux»: paisagem magnífica na Provença, terra de pas­
tores, ainda hoje marcada pelas ruínas do castelo dos prínci­
pes des Baux, uma estirpe principesca de imponente audácia,
célebre nos séculos XIV e xv pela magnificência e força dos
seus homens e pela beleza das suas mulheres . . .
(Mais informações em folha à parte.)

[Folha à parte]
No que respeita aos príncipes des Baux, sim, bem pode
dizer-se que um tempo petrificado pesa sobre essa estirpe.
A sua existência está, por assim dizer, petrificada na paisagem
dura e cinzento-prateada, na qual as intempéries têm degrada­
do o inaudito castelo; esta paisagem, perto de Arles, é um es­
pectáculo inesquecível da Natureza, uma colina, ruína e po­
voação, abandonadas, de novo transformadas em falésia com
todas as casas e destroços de casas. Em volta, em grande ex­
tensão, pastagens: por isso se invoca aqui o pastor, aqui, jun­
to ao Teatro de Orange e no cimo da Acrópole, com os seus
240 Rainer Maria Rilke

rebanhos, suave e intemporal, como nuvens que passam sobre


os lugares ainda agitados de um grande declínio . . . Como a
maioria das estirpes provençais, também os príncipes des
Baux eram senhores supersticiosos. A sua ascensão foi imen­
sa, a sua felicidade desmesurada, a sua riqueza sem par. As fi­
lhas desta casa movimentavam-se como deusas e ninfas, os
homens eram semideuses impetuosos. Das suas expedições
bélicas não traziam apenas tesouros e escravos, mas também
as coroas mais incríveis; temporariamente intitularam-se a si
próprios «Imperadores de Jerusalém» . . . Mas nas suas armas
encontrava-se o verme da contradição: àqueles que acreditam
no poder do número sete, o «dezasseis» apresenta-se como o
mais perigoso contranúmero, e os des Baux usavam no brasão
a estrela de dezasseis raios. (A estrela que, de resto, guiou os
reis do Oriente e os pastores até ao presépio em Belém: pois
eles acreditavam na sua descendência do santo rei Baltazar. . . )
A «sorte» desta estirpe era uma luta do número sagrado
«sete» (possuíam cidades, aldeias e mosteiros sempre em nú­
mero de sete) contra os «dezasseis» raios do seu brasão. E o
sete foi vencido. O último, o marquês del Balzo, sepultado em
Nápoles, em Santa Clara, no século xvn (o último, pois os ac­
tuais del Balzo em Itália adquiriram este nome e não têm as­
cendência provençal), parece que ainda sabia desta luta: se
não me engano, a sua pedra tumular recolhe uma inscrição a
este respeito.
Trad. , 225

71, 2 1 1 , 32 e s. «Sa patience de supporter une âme» - de


quem é esta expressão?
Creio que de Santa Teresa (de Ávila).
Trad., 226
Nesta colecção

l . FAUSTO 1 7 . DE PROFUNDIS
Johann W. Goethe Oscar Wilde

2. AS LIGAÇÕES PERIGOSAS 1 8 . O MONTE DOS VENDAVAIS


Choderlos Lados Ernily Bronte

3. CONFISSÕES 1 9 . CONTOS ( l .º Volume)


Jean-Jacques Rousseau Tchékhov

4. MOBY DICK (VOLUMES I E II) 20. CONTOS (2.º Volume)


Hermann Melville Tchékhov

5. RETRATO DO SR. W. H. 2 1 . O CRIME DE LORDE ARTUR


Oscar Wilde SAVILE E OUTROS CONTOS
Oscar Wilde
6. MADAME BOVARY
Gustave Flaubert 22. CONTOS (3.0 Volume)
Tchékhov
7. A CARTUXA DE PARMA
Stendhal 23. PEQUENAS OBRAS MORAIS
Giacomo Leopardi
8. A VÉNUS DE KAZABAIKA
S. Masoch 24. ADOLFO
Benjamin Constant
9. ETHAN FROME
Edith Wharton 25. VERÃO
Edith Wharton
10. O LIVRO DE LE GRANO
Heinrich Reine

1 1 . EWALD TRAGY
Rilke

1 2. O RETRATO DE DORIAN GRAY


Oscar Wilde

1 3 . ENSAIOS (Antologia)
Montaigne

14. ONDE NADA EXISTE


Yeats

1 5 . AS ILHAS ENCANTADAS
Hermann Melville

1 6. A MORTE DE EMPÉDOCLES
Hõlderlin
.1

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pode adquiri-lo no endereço www.relogiodagua.pt.

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